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MÃOS NEGRAS: SABERES E SABORES AFRO-BRASILEIROS

Ana Cláudia dos Santos Januário

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu de Relações Étnico-Raciais,
do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Relações Étnico-Raciais.

Orientadora: Maria Renilda Nery Barreto


Coorientador: Luis Felipe dos Santos Carvalho

Rio de Janeiro
Fevereiro/2018
MÃOS NEGRAS: SABERES E SABORES AFRO-BRASILEIROS

Dissertação apresentada ao Programa Pós-Graduação em Relações Étnico-


Raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca,
CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de grau de
Mestre em Relações Étnico-Raciais.

Ana Cláudia dos Santos Januário

Banca Examinadora:

____________________________________________________________________
Presidente, Professora Dra. Maria Renilda Nery Barreto (CEFET/RJ) (Orientadora)

____________________________________________________________________
Professor Dr. Luis Felipe dos Santos Carvalho (CEFET/RJ) (Coorientador)

____________________________________________________________________
Professora Dra. Maria Teresa Salgado (UFRJ/PPRER)

____________________________________________________________________
Professora Dra. Sônia Beatriz dos Santos (UERJ)

SUPLENTES

____________________________________________________________________
Professora Dra. Elisângela de Jesus Santos (CEFET/RJ)

____________________________________________________________________
Professora Dra. Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ)

Rio de Janeiro
Fevereiro/2018
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ

J35 Januário, Ana Cláudia dos Santos


Mãos negras : saberes e sabores afro-brasileiros / Ana Cláudia
dos Santos Januário.—2018.
68f. + anexo : il.color. ; enc.

Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação


Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2018.
Bibliografia : f. 64-68
Orientadora : Maria Renilda Nery Barreto
Coorientador : Luis Felipe dos Santos Carvalho

1. Culinária brasileira – Influências africanas. 2. Culinária


africana. 3. Negros. I. Barreto, Maria Renilda Nery (Orient.). II.
Carvalho, Luis Felipe dos Santos (Coorient.). III. Título.

CDD 641.596
A todas as mãos negras de mulheres negras do Brasil, que
aqueceram o coração dos pequenos, batalharam pelo alimento e
trabalharam muito para que suas filhas e filhos não morressem
de fome e de amor. A todas as yabás, com muito respeito e
carinho. Ao doce vento de minha mãe Maria José e minha avó
Alice. Honro a existência dessas senhoras em minha vida para
promover resistências.
AGRADECIMENTOS

Aos que pensaram/pensam numa dissertação feita com apenas duas mãos num
teclado, com cheiro de café para ficar horas acordada, a fim de realizar o mestrado de
relações Étnico- Raciais do CEFET/RJ. Senhoras e senhores, eis aí puro engano
acadêmico. Esta dissertação tem tantas mãos nela que o ditado popular “Panela que
muita gente mexe, desanda”, caiu por terra, feito manga no verão. Ora, muitas mãos
invisíveis e visíveis estão aqui. É hora de abraçar e agradecer.

Agradecer, em primeiro lugar, aos Orixás que me acompanharam durante esta


batalha de 2 anos firmes ao meu lado: Exu, Iemanjá, Xangô, Ogum e, especialmente,
Oxum, a senhora que me ensina a olhar para mim feito um belo rio em dias de sol. À
Umbanda, que me guia com a força dos ancestrais para ter fé na vida, ter sabedoria para
lutar, dançar para alegrar o corpo e aprender a sentir a proteção da natureza presente em
cada grão de areia.

À minha mãe, Maria José, in memoria, por me fazer rir uma vez quando disse que
meu chuchu cozido era o melhor que ela já tinha comido. Te abraço todas as vezes que
mexo uma colher de pau no fogo. Caso exista algum segredo no meu tempero, ele é o
meu amor por você. À minha avó Alice Silva dos Santos, com suas mãos já finas de
quase 90 anos que me ensinou a fazer angu e a usar o pilão para fazer paçoca com fubá,
amendoim, farinha e açúcar. Apesar da distância, peço sua benção sempre. À minha tia-
mãe Lindaura da Silva Carvalho, sempre me chamando pelo apelido de criança
“Nigrinha, Nigrinha”, pela sua batalha de 2017 para superar problemas de saúde e por
sempre no seu abraço-palavra dizer tudo o que sente por mim. Mulheres negras que me
formaram na luta e na cozinha.

À Família Dida, que me acolheu e possibilitou a pesquisa dentro de sua segunda


casa, ou melhor, da extensão de sua casa, Dida Bar e Restaurante. Primeiro, à
matriarca, Dida Nascimento, por me oferecer sempre um abraço na chegada em sua
casa, aos seus filhxs, Stefani Nascimento, Kanu Nascimento, Matheus Nascimento,
sobrinhas-filhas Elu e Mariama. A Maria, Zé, Jefferson, Yuri, garçons e garçonetes
simpáticos e atenciosos comigo. A todos os funcionários e clientes que dividiram um
pouco de seu tempo de trabalho ou diversão para conversar comigo. A Ernani e Elodie,
por me apresentarem os sabores e saberes de Cabo Verde e Benim. Não tem ponto final
essa família Nascimento, que ultrapassa a linha dos sobrenomes e recebe todos no seu
bar com muito afeto e abraços, e acabamos nos apaixonando pela energia explosiva dos
sons e temperos secretos da cozinha da matriarca. Foi uma honra ter participado de
momentos importantes da vida de vocês no ano de 2017. Obrigada!

Às lindas e poderosas amigas do PPRER, gostaria de descrever a primeira vez que


comecei a falar com vocês, porque eu lembro sempre de tudo o que me toca minha pele,
para dizer o quanto são importantes na minha trajetória de vida: Andreia Coutinho,
Aline Nascimento, Priscilla Rosa, Karina, Laura Rose, Sandra Brandão, Simone Brás,
Carol Netto, Marina e Mariane Marçal, e Aleksandra, pelo apoio, afeto e abraços
aconchegantes. Obrigada, moças!

Aos professores do PPRER, Elisângela, Thalita, Mário Luiz, Maria Renilda e Luis
Felipe.

Ao passarinho brilhoso das manhãs de verão, Humberto Manoel Santana Jr.


Obrigada pelo auxílio na cozinha quando estava pegando fogo. Agradeço pelas palavras
de sustância e conforto. À encruzilhada dança-se bem, come-se com gosto e se solta
gargalhadas de alegria, nada é por acaso em caminhos com cheiro de guiné! Axé!

Aos orientadores de pesquisa Luis Felipe e Maria Renilda, pelo incentivo e pela
liberdade dados a mim, a fim de movimentar minha criatividade e autonomia de
pesquisadora. Em especial, ao professor Luis Felipe, por me apresentar a leitura
decolonial para ser o suporte teórico da pesquisa e por acreditar na minha história de
vida como valor motivacional de pesquisa.

Agradeço às professoras Sônia Beatriz dos Santos, Elisângela dos Santos, Maria
Teresa Salgado e Marília Rothier Cardoso, pela atenção com meu trabalho. Suas
contribuições são de grande zelo por mim.

À CAPES, por financiar a pesquisa do meu sonho.


Aos amigxs “sequestradores” de dissertação, que me ouviram nos momentos de
aperto e falavam “vai dar tudo certo, calma Ana”: Samantha, Mari, Martinha, Gizele,
Karla, Suzana, Flávia, Cecília, Bia, Higson e Brayer.

À doçura das crianças com que aprendi mais do que dei aula durante dois anos em
Niterói. Queria aprender a dançar com os olhos de sabedoria, expressada toda vez que
eu explicava alguma curiosidade, contava uma história ou simplesmente remexia a terra
para plantar sementes de jabuticaba. Em seus rostos, a expressão de felicidade e a
descoberta preenchiam de vida o meu olhar de professora humana. Obrigada, pequenas
sementes, por me arrancarem sorrisos e despertarem minha criatividade todos os dias.
Duas frases até hoje guardo com muito amor. De olhos de jabuticabas me disse: “Você é
corajosa!”. De pés delicados: “Eu queria ser o rio, para nunca parar de correr”.

À minha linda e guerreira revisora, que jogou “no meu time”, e jogamos legal! Suas
palavras de alegria, segurança e paixão adoçaram o caminho final da dissertação.
Obrigada, Clara Marinho!

Obrigada, Thiago Braz, pelo lindo trabalho fotográfico para a dissertação. Axé!

Às minhas irmãs e ao meu irmão: Sabina, Maria Alice, Sulamita e Saullo, e à minha
sobrinha Kayllane. Obrigada pela paciência e pelo acolhimento em dias confusos.

Abraços de mãos negras e sabores afro-brasileiros.

Axé!
“O papel, o vento leva e a chuva molha. O que Olorun põe na
nossa cabeça ninguém pode tirar”
Mãe Beata de Iemanjá (in memorian)

“O Tempo me temperou com Dendê.”


Roque Ferreira e Zé Paulo Becker
RESUMO

Esta dissertação aborda a culinária afro-brasileira em seus aspectos históricos de


força e criatividade como uma das formas de repassar heranças identitárias do povo
negro às gerações seguintes. A união entre cozinha, afeto e identidade de uma família
negra, sob a liderança da matriarca, Dilma Nascimento, construiu o Dida Bar e
Restaurante, na Praça da Bandeira (RJ), com um cardápio de comidas africanas e afro-
brasileiras. Esse espaço de difusão da culinária africana também acolhe eventos
relacionados à música e à literatura, interagindo, assim, com essas formas de cultura.
Transforma-se, pois, num ponto de encontro das discussões atuais sobre práticas de
(re)existência/resistência. O suporte teórico para a análise foram os Estudos
Decoloniais. A proposta do discurso decolonial é romper com os espaços de fala do
colonizador e pôr à mesa toda a história ocorrida à margem do sistema colonial, que
passou firme pelas mudanças do tempo e que, hoje, está entre nós, nos sobreviventes,
através das ações de reinvenção. A etnografia e sua técnica de observação participante,
com entrevistas semiestruturadas, subsidiaram a metodologia da pesquisa. A
ressignificação, a partir da substituição criativa de ingredientes africanos por alimentos
da terra brasileira, fez nascer a culinária afro-brasileira: uma estratégia para manter
vivos os costumes da cultura africana. Essa culinária e a família Nascimento preservam
em sua trajetória de vida valores civilizatórios africanos. Assim, corporeidade,
circularidade, ludicidade, coletividade e oralidade são ingredientes observados na
dinâmica do bar. A circularidade traz a possibilidade de renovar energias e transmitir
sabedorias. A partir desta pesquisa, pode-se observar o Dida Bar e Restaurante como
um ponto de diálogo da intelectualidade decolonial.

Palavras-chave: Culinária Afro-brasileira; Decoloniais; (Re)existência; Criatividade;


Resistência.
ABSTRACT

This dissertation addresses Afro-Brazilian cuisine, with regard to its historical


aspects that include strength and creativity, as a way to pass down legacies of identity
about black people to future generations. It investigates the connections between
kitchen, affect, and identity of a black family led by its matriarch Dilma Nascimento,
who built the Dida Bar e Restaurante. The bar and restaurant is located in the Praça da
Bandeira neighborhood of Rio de Janeiro, and has a menu filled with African and Afro-
Brazilian food. The space, which serves African cuisine, also hosts music and literary
events and thus interacts with theses cultural manifestations. The bar and restaurant is
transformed into a gathering place for current discussions and practices of
(re)existence/resistance. The theoretical foundation for the research is based on
Decolonial Studies. The purpose of decolonial studies is to break apart the language and
space of the colonizer and centralize the history that occurred at the margins of the
colonial system, which has survived the changes of time, and which today, is among us,
the survivors, in our actions to reinvent it. The ethnography, grounded in participant
observation with semi-structured interviews served as the research methodology.
Crafting new meanings through the creative substitution of African ingredients for
Brazilian ones has given birth to Afro-Brazilian cuisine: a strategy to keep the customs
of African culture alive. This cuisine and the Nascimento family, throughout the
trajectory of their lives, preserve African values. As such, corporality, circularity,
playfulness, collectivity, orality are main ingredients observed in the dynamics of the
bar. Circularity allows for the possibility of renewing energies and exchanging
knowledge. From this research, the Dida Bar and Restaurant is recognized as a point of
dialogue for decolonial intellectuality.

Keywords: Afro-Brazilian cuisine; Creativity; (Re)existence; Resistance; Decolonial


Studies.
SUMÁRIO
Introdução 12

1 Exu: a circulação de saberes da rua à cozinha 20

1.1 A cozinha /culinária criativa afro-brasileira 25

1.2 As negociações de sobrevivências de amanhã, ontem e hoje 27

1.3 Identidade em corpos e mãos negras 29

1.4 De bisavós, avós e mães: movimento de memórias, afetos e histórias 35

2 A receita: o processo etnográfico, a narrativa do bar e os decoloniais 38

2.1 O olhar sobre a trajetória do bar e os eventos recheados de saberes 41

2.2 “Aqui é a extensão da minha casa, aqui eu bebo, como e danço” 43

2.3 “A casa é pequena, mas o coração é grande” 46

2.4 Iniciação do pensamento decolonial em análise da culinária afro-brasileira 49

2.5 “Não dá pra fazer planos de negócios sem amor” 54

Considerações de uma receita 59

Referências 64

Anexo A - Entrevista com Dona Dida 68


12

INTRODUÇÃO

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.
Provérbio Africano

Desde criança, com 5, 6 anos de idade, ficava dentro da cozinha observando


minha mãe preparar os alimentos para o café da manhã, o almoço e o jantar. E sempre
perguntando quando eu poderia pegar a faca para ajudá-la na função. Lembro-me de
que, aos 10 anos, ela liberou a faca para eu cortar a galinha abatida, criada no quintal
para alimentar a família. Até hoje guardo os sentimentos de alegria e liberdade daquele
dia. Eu aprendi muito “olhando” o que minha mãe fazia. Ela nem precisou ficar perto
para me ensinar o corte da galinha. Aprendi com o afeto dos olhos e o silêncio da
observação.
Tudo o que ela ensinava era explicado passo a passo, e, muitas vezes, os pratos
eram carregados de histórias. Lembro-me do dia de um quiabo com galinha em casa.
Nesse dia, ela relembrou que, quando eram crianças, minha avó fez meu tio comer uma
panelada cheia de quiabo com galinha e angu. Até ele ficar bem satisfeito, pois havia
reclamado da pouca quantidade de comida colocada em seu prato.
Eles moravam na roça, e a comida era reduzida, devido ao pouco orçamento da
família, logo, tudo era feito com cuidado para dar para todos. E não podia ter
desperdício. Minha avó deu uma lição no meu tio por ter reclamado, e minha mãe
contou essa história para que ninguém cometesse o mesmo deslize, pois já sabíamos as
medidas que ela tomaria.
A cozinha é, para mim, e era, para ela, um lugar especial, já que reunia suas
memórias de infância e as receitas que aprendeu com sua mãe. A saudade de sua mãe
sempre vinha ao fazer pé de moleque na semana santa. O espaço da cozinha era e é
sentido como fonte de conhecimento e como transmissor de heranças das experiências
de vida narradas ao calor do fogão.
A memória afetiva de minha mãe ao contar histórias durante o preparo dos
alimentos e suas invenções dentro da cozinha (por exemplo, transformar o socador sujo
de feijão em picolé) são elementos reunidos em minhas mãos negras, que vieram de
mãos negras para gerar a construção da presente dissertação, intitulada “Mãos negras:
saberes e sabores da culinária afro-brasileira”.
13

Alimentação é vida. Os grãos, as sementes e as folhas circulam como pessoas no


mundo. Nosso objeto de estudo é vivo, colorido, às vezes amargo, doce, salgado, azedo.
Bem parecido com os humores e sentimentos do corpo. A gastronomia é a arte de
cozinhar com técnica, conhecimento, ingredientes e Identidade. Neste trabalho, tivemos
a missão de apresentar a culinária afro-brasileira em seus aspectos históricos de força e
criatividade como uma das formas de repassar heranças sobre a identidade do povo
negro no Brasil.
Entre os séculos XVI e XIX, era intenso o movimento de pessoas entre África e
Brasil no oceano Atlântico, devido ao comércio de escravizados. Diversas ervas,
temperos e leguminosas também faziam parte desse mercado de compra e venda.
Os alimentos africanos, como dendê, inhame e quiabo são apresentados na
maioria dos discursos de Vivaldo da Costa Lima (2010), Manuel Querino (2011) e Raul
Lody (2012, 2013) como ingredientes presentes na cozinha afro-brasileira. Os autores
afirmam, em conjunto, que a inserção desses alimentos foi feita pelo africano através
das casas de terreiro.

Pode-se caracterizar a culinária/cozinha de presença e de matriz


africana no Brasil como adaptativa, criativa e legitimadora de muitos
produtos/ingredientes africanos e não africanos, que foram incluídos
tanto nos diversos cardápios regionais quanto em outros, de presença
colonial. O paladar, as receitas, os temperos, as maneiras de fazer e de
servir da predominante população afrodescendente são construídas em
um longo processo histórico, econômico, social e cultural. (LODY,
2013, p. 91)

A dimensão espiritual em relação à comida e ao ato de cozinhar não pode ser


esquecida. As religiões de matrizes africanas se baseiam na feitura dos alimentos
votivos, na estética dos alimentos, na alimentação e na degustação. Cozinhar é misturar
os elementos da natureza, é reunir os Orixás na panela para fazer o axé circular.
A ressignificação, através da substituição criativa de ingredientes africanos por
alimentos da terra brasileira, fez nascer a culinária afro-brasileira: uma estratégia para
manter vivos os costumes da cultura africana. É o que mantém a cultura viva, não
importa o modelo, mas a existência. A natureza nos mostra que o princípio primeiro é a
existência, a vida e, dessa forma, ela não se adapta como reação, mas como ação
primeira da vida (AKBAR, 1984).
14

Quando os escravos chegaram aqui, não trouxeram panelas, não


trouxeram ingredientes, não trouxeram nada. Foram eles que
adaptaram o paladar deles aos ingredientes que estavam aqui. E aí
chegavam a algumas coisas. Eles incrementaram, só que alguns pratos
tinham semelhanças, mas algumas coisas poderiam ser um pouco
diferentes, porque... afro-brasileira... os escravos que teriam que
reproduzir de acordo com o país deles, com os ingredientes que
achavam aqui. (informação verbal)1

Chegados aqui destituídos de qualquer bem material de sua terra, tinham o corpo
como único território e arquivo de suas heranças de África. A culinária afro-brasileira,
bem como a música reelaborada no Brasil, também é fruto da Diáspora2 Negra e carrega
esses aspectos de recriação como estratégia de preservação de saberes.
Então, os alimentos priorizados na mesa eram estabelecidos de acordo com sua
construção de identidade e memória. Nossa escolha pela pesquisa acerca da culinária
afro-brasileira foi fortemente motivada pelos hábitos alimentares incentivados na
infância e pela memória familiar da ancestralidade.
O corpo era o vínculo com os demais, o meio de comunicação, através de gestos
não verbais, como a capoeira, e, ao mesmo tempo, era o protetor dos saberes africanos –
pela memória – a serem transmitidos aos próximos pela oralidade. Essa foi uma das
formas de comunicação e preservação de identidade encontradas pelos escravizados,
pois existem outras (TAVARES, 2012).
A escravidão foi um processo longo e atingiu diversas esferas da sociedade, já
que o escravizado fazia parte da sociedade colonial no cotidiano, na rua, na casa, no
trabalho, no lazer, sabido pelos relatos ou pinturas de época que certificam sua presença
nesses espaços. Suas mãos participaram intensamente das criações de pratos e quitutes
na cozinha do Brasil.
Nossa proposta foi entrar em contato com um espaço físico e fixo que
apresentasse a seguinte característica básica: a relação da culinária afro-brasileira com a
trajetória de vida de seus idealizadores. Dilma Nascimento, proprietária do Dida Bar e
Restaurante, e sua família acolheram nossos intuitos.
O campo de pesquisa está localizado na Rua Barão de Iguatemi, 408, Praça da

1
Entrevista concedida por Ernani Moraes, aluno de Gastronomia da UFRJ, cabo-verdiano, que participou
do Dida Afro (evento mensal do Dida Bar e Restaurante – nosso campo de pesquisa).
2
Compreendemos Diáspora como a remoção coercitiva dos africanos durante o comércio de escravizados
para as Américas entre os séculos XVI e XIX.
15

Bandeira, Rio de Janeiro. Local escolhido pela família Nascimento para unir afetividade
familiar e negócios, a fim de resgatar/reafirmar a cultura negra a partir da culinária e da
musicalidade.

A cultura negra pode ser vista como uma particularidade cultural


constituída historicamente por um grupo étnico/racial específico, não
de maneira isolada, mas no contato com outros grupos e povos. Essa
cultura faz-se presente no modo de vida do brasileiro, seja qual for o
seu pertencimento étnico. Todavia, a sua predominância se dá entre os
descendentes de africanos escravizados no Brasil, ou seja, o segmento
negro da população. (GOMES, 2003, p. 77)

Observamos essa característica do povo negro de manter uma união com outros
povos e etnias como um modo de ação pela sobrevivência de suas tradições. Já que uma
diversidade de etnias foi trazida à força de África para o Brasil, sendo constituída,
assim, uma cultura negra com hábitos de africanos de toda parte.
O modo de vida do africano está presente nos costumes culturais e sociais do
brasileiro, devido à sua intensa participação na formação do nosso país. Trabalhar com
essa definição de cultura negra direcionada à culinária afro-brasileira é afirmar
justamente a participação da variedade étnica africana na cozinha. As mãos dos bantos
(África Austral), dos iorubás (África Ocidental) e dos sudaneses, por exemplo, estão
presentes na culinária afro-brasileira (LOPES, 2011).
Nos espaços com cultura negra, percebem-se a valorização e o respeito pelos
ancestrais em diálogo com o presente. A população negra, a partir da experiência
histórica e coletiva da Diáspora e do trauma da Escravidão, viu sua identidade negra
transformada, sem fronteiras rígidas. Somos e fomos atravessados por uma diversidade
de culturas (africana, indígena, asiática, europeia) que foram incluídas com negociações
no interior de nossas experiências com as etnias e os povos citados acima.
Dona Dida visita o passado e ressignifica a comida no presente. No cardápio de
um de seus eventos, a prioridade é levar ao público a culinária africana, apresentando, a
cada mês, um prato típico de um ou dois países africanos, acompanhado da descrição
dos ingredientes usados na receita. Ela faz, em primeiro lugar, um estudo sobre a
culinária e a história do país escolhido e, depois, as adaptações criativas quando não tem
algum ingrediente aqui.
16

Resumindo, no DBR3, observamos a união entre conhecimento, cozinha,


ingredientes e técnicas. Com isso, o bar e restaurante conta histórias de sabores e
saberes afro-brasileiros, utilizando a arte culinária como principal movimento. Trata-se
de uma herança familiar, pois a mãe, o pai e o irmão de Dona Dida já faziam esse
movimento: uniam culinária, samba, afeto e conhecimento sobre África num mesmo
espaço. A fim de imprimir cada vez mais sua identidade negra nos espaços de
sociabilidade e comensalidade (ato de comer em reunião).
Delimitamos nossa pesquisa acerca da culinária afro-brasileira, desenvolvendo-a
num espaço de cultura negra, o DBR, cuja perspectiva particular está em pesquisar e
servir a culinária africana bem como a afro-brasileira. A cozinha africana adentrou aqui
por meio do quantitativo de africanos escravizados no Brasil.
Como vimos, diversas etnias foram escravizadas no território, logo, as
influências vêm de diferentes regiões da África. Essa mesma diversidade formou a
fisionomia racial e cultural do Brasil, incluindo as reinvenções criativas dentro da
cozinha. A culinária afro-brasileira nasceu na junção dos saberes trazidos pelo corpo
negro, adicionando ingredientes de África (na medida em que chegavam ao Brasil) e
alimentos cultivados por povos originários daqui (LIMA, 2010).
Nosso objetivo específico é, portanto, investigar, à luz das teorias da
decolonialidade4, principalmente com perspectiva negra, a culinária afro-brasileira
como ação de (re)existência e resistência junto à memória da população negra em
espaços públicos de sociabilidade. O principal, aqui, é marcar que estamos associando o
pensamento decolonial à escrita sobre culinária afro-brasileira e, em consequência,
contribuindo para a história do negro no Brasil, porque a população negra deste país
também é fruto dessa diferença colonial estabelecida pela colonialidade do poder,
devido ao processo de escravização africana entre os séculos XVI e XIX.
Essa diáspora negra no Brasil produziu uma diversidade de conhecimentos no
limiar da fronteira colonial, a qual chamamos de prática de (re)existência e resistência.
Trata-se, pois, de estratégias de ações criativas para combater as epistemologias
ocidentais e a colonialidade do poder (Mignolo, 2003).

3
Dida Bar e Restaurante. Para maior fluidez na leitura, utilizaremos bastante essa sigla.
4
A decolonialidade é o rompimento com a história única do conhecimento que o colonialismo impôs às
colônias dos continentes americano, africano e asiático. Os decoloniais expõem a ferida colonial deixada
nas sociedades dos colonizados e valorizam as diversidades dos saberes presentes na modernidade.
17

A metodologia aplicada na pesquisa foi a etnografia do espaço, com sua técnica


de observação participante5. Com um aprendizado levado de casa, utilizamos todos os
sentidos para compreender o local e as pessoas, foi uma experiência multissensorial, ou
seja, abrimos todos os sentidos a fim de capturar a experiência do trabalho de campo.
Como forma de registro da pesquisa, tivemos entrevistas semiestruturadas,
principalmente com Dona Dida, com um roteiro aberto, não houve perguntas fechadas.
Contudo, as entrevistas estavam baseadas na temática: culinária africana e afro-
brasileira, trajetória da família e do bar e cultura negra.
Escolhemos uma das entrevistas com a matriarca para compor o texto, encontra-
se no Anexo A. Todas as entrevistas foram autorizadas pela família com o termo de
livre consentimento esclarecido e o termo de uso de imagem e depoimentos somente
para o âmbito desta pesquisa de mestrado.
A partir da narrativa dos sujeitos de pesquisa, destacando a de Dona Dida,
observamos os seguintes elementos: a origem do projeto do bar e da família; o motivo
da escolha do cardápio africano, todos da família estão envolvidos no projeto; os
alimentos de origem africana são adaptados em pratos de acordo com a ausência de
ingredientes dos mercados; a presença de músicas e danças de origem afro-brasileira,
como pagode, samba e jongo. Conforme descrevemos, o roteiro temático, em vez de
perguntas fechadas, trouxe-nos conhecimentos sobre o repertório de vida de todos, a
história do bar e sua construção de projeto relacionado à culinária africana.
No diário de campo, foram anotadas as descrições dos eventos: as modificações
do espaço de acordo com o evento, os participantes e a temática de cada evento. E,
também, as características do bar no que concerne às escolhas de decoração do espaço.
A etnografia do bar consistiu em uma escrita sobre o espaço físico e os cardápios,
desenvolvida gradativamente. As entrevistas gravadas tiveram um tempo médio de 30
minutos cada. Como a preferência de Dona Dida para o local das entrevistas era o
próprio bar, o som do ambiente de comensalidade está presente na gravação.
Nossa trajetória de escolha por esse objeto de estudo e essa metodologia iniciou-
se durante o primeiro trimestre de aulas no Programa de Pós-Graduação em Relações
Étnico-Raciais (PPRER), na disciplina Releituras da Vida Selvagem – estratégias

5
“A observação participante inscreve-se numa abordagem de observação etnográfica na qual o
observador participa ativamente nas atividades de recolha de dados, sendo requerida a capacidade do
investigador se adaptar à situação” (MÓNICO et al., 2017, p. 724).
18

decoloniais, organizada e dirigida pelo professor Luis Felipe dos Santos Carvalho.
Durante as aulas, as reflexões da bibliografia do curso despertaram uma antiga vontade
de pesquisar sobre a culinária afro-brasileira. Devido, justamente, ao afeto pela cozinha
e à experiência familiar – com as histórias contadas próximo ao calor do fogão –,
apresentada no início desta introdução.
Ao fim da disciplina, compusemos um texto relacionado à culinária afro-
brasileira, ao afeto e à leitura decolonial. Naquele momento, nosso tema inicial,
“população negra no pós-abolição”, migrou para “culinária afro-brasileira”. Iniciamos,
então, um novo processo de pesquisa bibliográfica e de lugares possíveis de ser
analisados com as ferramentas decoloniais.
Primeiramente, pensamos nos locais em que havia culinária afro-brasileira e, de
imediato, lembramo-nos dos sabores da Feira das Yabás6, a qual percorremos duas
vezes no ano de 2015. Localizado na Praça Paulo da Portela, entre os bairros Oswaldo
Cruz e Madureira, o projeto idealizado pelo sambista, cantor e compositor Marquinhos
de Oswaldo Cruz tem como objetivo resgatar as tradicionais rodas de samba com
comida em que as mulheres comandavam a cozinha nas casas e no quintal ao som do
samba.
A fim de não deixar essa tradição cair no esquecimento, 16 barracas foram
montadas na praça em 2009. Entretanto, em 2016, a Feira das Yabás já não estava
ocorrendo com a regularidade anterior: todo segundo domingo do mês. Descartamos,
então, a hipótese de a pesquisa ser realizada em Madureira.
Passeamos por feiras itinerantes em que havia a presença da culinária afro-
brasileira, no centro do Rio e na Zona Norte da cidade, mas não obtivemos sucesso,
devido à instabilidade desses eventos. Até que, um dia, alunos do CEFET indicaram um
bar que vendia comida africana na Praça da Bandeira.
Chegando ao endereço do bar, fomos recebidos por Dona Dida. Sentamos e
conversamos sobre a pesquisa. Chegaram, depois, Kanu e Matheus, seus filhos, que
escutaram a proposta de estudar a trajetória de vida deles relacionada à culinária afro-
brasileira. A reunião não pôde ser feita com todos, porque é a família que compõe boa
parte das funções do bar: recepção, recebimento de pedidos para cozinhar, caixa,
arrumação do salão. Por isso, aconteceu um rodízio durante o dia, para todos ouvirem

6
Iabá, Yabá ou Iyabá: orixás femininos.
19

sobre o projeto de mestrado. Por último, sua filha Stefani sentou para ouvir.
Foram atenciosos e ficaram lisonjeados com a escolha de seu bar. Dona Dida
aceitou o convite de imediato. Tudo foi explicado à família: como seria o procedimento
metodológico, com as observações participantes no local em dias de evento, e as
entrevistas. Os quatro concordaram. Seriam os sujeitos da pesquisa: Dida, Stefani,
Matheus e Kanu.
Os primeiros meses foram de observação da dinâmica dos eventos e do
funcionamento do DBR. Íamos lá pelo menos duas vezes ao mês, em eventos pontuais:
o Pagode da Dida e o Dida Afro. Durante esse período, muitas entrevistas informais
aconteceram. Os eventos se multiplicaram ao longo dos meses, pois, além de música e
gastronomia, a literatura foi incorporando a agenda cultural do bar.
O tema da pesquisa tem sua relevância no âmbito dos estudos das Relações
Étnico-Raciais por abordar a culinária afro-brasileira e sua relação com os Estudos
Decoloniais. Ao elegermos como campo de estudo o Dida Bar e Restaurante e seu
cardápio de comidas africanas e afro-brasileiras, assim como sua interação com a
música e a literatura, buscamos discutir as estratégias de (re)existência e resistência das
práticas culturais trazidas pelos negros africanos da diáspora dos séculos XVI-XIX.
Fato é que esse encontro entre culinária, música e literatura transforma o Dida
num polo gastronômico e de rememorizacão entre representantes da cultura negra da
atualidade e as memórias despertadas pelos cheiros, temperos, sabores, acordes e letras
oriundas dos valores civilizatórios trazidos por nossos ancestrais.
Dividimos esta dissertação em dois capítulos. O primeiro aborda as discussões
sobre o que é culinária afro-brasileira, valores civilizatórios africanos e identidade. E o
segundo cuida da descrição do campo, incluindo a etnografia e a análise dos dados
coletados nas entrevistas, relacionando-os com a teoria da decolonialidade.
20

1. EXU: A CIRCULAÇÃO DE SABERES DA RUA À COZINHA

Exu come tudo e ganha o privilégio de comer primeiro


Exu era o filho caçula de Iemanjá e Orunmilá,
irmão de Ogum, Xangô e Oxóssi.
Exu comia de tudo
e sua fome era incontrolável.
Comeu todos os animais da aldeia em que vivia.
Comeu os de quatro pés e comeu os de pena.
Comeu os cereais, as frutas, os inhames, as pimentas.
Bebeu toda a cerveja, toda a aguardente, todo o vinho.
Ingeriu todo o azeite de dendê e todos os obis7.
Quanto mais comia, mais fome Exu sentia.
Primeiro comeu tudo de que mais gostava,
depois começou a devorar as árvores,
os pastos, e já ameaçava engolir o mar.
Furioso, Orunmilá compreendeu que Exu não pararia
e acabaria por comer até mesmo o Céu.
Orunmilá pediu a Ogum
que detivesse o irmão a todo custo.
Para preservar a Terra e os seres humanos e os próprios orixás,
Ogum teve que matar o próprio irmão.
A morte, entretanto, não aplacou a fome de Exu.
Mesmo depois de morto,
podia-se sentir sua presença devoradora,
sua fome sem tamanho.
Os pastos, os mares, os poucos animais que restaram,
todas as colheitas, até os peixes iam sendo consumidos.
Os homens não tinham mais o que comer
e todos os habitantes da aldeia adoeceram
e de fome, um a um, foram morrendo.
Um sacerdote da aldeia consultou o oráculo de Ifá
e alertou Orunmilá quanto ao maior dos riscos:
Exu, mesmo em espírito, estava pedindo atenção.
Era preciso aplacar a fome de Exu.
Exu queria comer.
Orunmilá obedeceu ao oráculo e ordenou:
“Doravante, para que Exu não provoque mais catástrofes,
sempre que fizerem oferendas aos orixás
deverão em primeiro lugar servir comida a ele”.
Para haver paz e tranquilidade entre os homens,
é preciso dar de comer a Exu,
em primeiro Lugar.
(PRANDI, 2001, p. 45-46, grifos nossos)

Abrimos este capítulo com as bênçãos e estripulias de Exu para aproximar cara ou caro
leitora ou leitor da localidade da pesquisa de estudo: a Rua Barão de Iguatemi, na Praça da
Bandeira, Rio de Janeiro. A rua, como espaço de qualquer e todas as possibilidades, possui um
fluxo de circulação de pessoas à procura de caminhos, partidas e chegadas. Tem como seu guardião,
dentro das religiões de matrizes africanas, Exu. O mensageiro entre o Orun e o Aiyê8, “sem ele,

7
Noz-de-cola, fruto africano aclimatado no Brasil.
8
Orun: mundo espiritual. Aiyê: mundo físico.
21

orixás e humanos não podem se comunicar [...] sem sua participação não existe movimento,
mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológica” (PRANDI, 2001, p. 20-
21).
Conforme nosso Itan9, Exu apresentou um problema de fome e de sede devido à sua
insatisfação tanto com os orixás quanto com os humanos, o que foi resolvido com o intermédio da
comida. Nesse sentido, a transferência de energia contida no alimento destinado a agradar Exu
carregou aspectos de mudança de comportamento. Por causa disso não há nenhum alimento que não
tenha que passar pela estrada, pela rua, em carros e caminhões, até chegar à vossa mesa.
Por isso a escolha por iniciar o capítulo com esse Itan. A culinária traz consigo essa
característica de movimentar-se para misturar os ingredientes para se criar um quitute. Sem
movimento, não há Caruru, Vatapá, Feijoada, Angu, Pirão e tantos outros pratos feitos por mãos
negras no Brasil.
Nosso local de pesquisa mantém um diálogo com a rua, por se tratar de um bar e restaurante
que fica de frente para a rua. E por, no passado, sua região, da Praça da Bandeira, ter sido morada
de boêmios, prostitutas, quitandeiros, carroceiros e cozinheiros, muitos trabalhos relacionados com
a venda e a compra de produtos alimentícios. Trata-se da região responsável pelo Matadouro
Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, no século XIX.
A circulação de escravizadas e escravizados era inevitável, uma vez que suas mãos foram
responsáveis por quase quatro séculos de serviços urbanos e rurais no Brasil. Essa localidade está
permeada, tanto no passado quanto no presente, de muita gente com fome de alforria, de liberdade,
de oportunidade. Gente que passa apressada, carregando quilos de legumes e verduras sem fixar o
olhar em nada, e que espera salivando um prato para saciar o estômago no período do almoço.
A presença de corpos negros em todo esse espaço gerou hábitos de vender e comprar
produtos alimentícios secos e molhados próprios de algumas nações, por exemplo, os preto-minas,
escravizados oriundos dos países referentes, na atualidade, à África Ocidental: Níger, Nigéria,
Senegal, Costa do Marfim e Benim (FARIAS, 2015), que dominavam o comércio de bancas no
centro do Rio de Janeiro no século XIX.
E, em destaque, as mulheres donas dessas bancas de venda de legumes e temperos. A
quitanda, palavra de origem do quimbundo10 kitanda, seguiu uma derivação para “quitutes”, que são
os bolinhos salgados e doces criados por mãos negras e vendidos na rua por escravizadas negras que
circulavam nos lugares de grande movimento diário da cidade.
Trazemos aqui toda essa dinâmica da rua, das quituteiras e quitandeiras, território da
criatividade e da sobrevivência dentro da diáspora do Atlântico Negro. Nossa intenção é celebrar as

9
Itan: história em iorubá; são as histórias contadas sobre a vida dos orixás.
10
Língua do país Angola.
22

ações de (re)existência e resistência promovidas pela população negra.

A rede que a análise da diáspora nos ajuda a fazer pode estabelecer novas
compreensões sobre o self, a semelhança e a solidariedade. [...] Eles sugerem um
modo diferente de ser, entre as formas de agenciamento micropolítico, exercitado
nas culturas e movimentos de resistência e de transformação e outros processos
políticos que são visíveis em escala maior. Juntas, sua pluralidade, regionalidade e
ligação transversa promovem algo mais que uma condição adiada de lamentação
social diante de rupturas do exílio, da perda, da brutalidade, do stress e da
separação forçada. Elas iluminam um clima mais indeterminado, e alguns diriam,
mais modernista, no qual a alienação natal e o estranhamento cultural são capazes
de conferir criatividade e de gerar prazer, assim como de acabar com a ansiedade
em relação à coerência da raça ou na nação e à estabilidade de uma imaginária base
étnica. (GILROY, 2001, p. 20, grifo nosso)

A diáspora é demonstrada com aspectos de criatividade e de prazer, pois, apesar de toda


violência, como descreve Paul Gilroy acima, os escravizados e escravizadas conseguiram
(re)inventar seu modo de ser aqui. Nossa perspectiva é alinhar a culinária afro-brasileira nesse
formato de ressignificação, em que quituteiras, cozinheiras do período colonial, souberam repassar
à sua família posterior receitas de composição e temperos nativos.
A presença das escravizadas e dos escravizados no âmbito da cozinha é explorada pelo
vocabulário coloquial de Gilberto Freyre (2003) em Casa Grande & Senzala. O autor ressalta a
importância dos africanos como “os grandes mestres da cozinha colonial; [que] continuariam a ser
os da moderna cozinha brasileira” (FREYRE, 2003, p. 287).
Os negros eram considerados os grandes dominadores da cozinha, (FREYRE, 2003) e, após
a transição forçada para a América, conseguiram modificar hábitos de servir e inserir os de sua
origem africana. Incluíram legumes e verduras na dieta do colonizador, apesar de sua nutrição
diária, dos escravizados, estar baseada em feijão, farinha e carne-seca (SILVA, 2005).
Eles foram responsáveis pela introdução do azeite de dendê, das frutas, do leite de coco,
entre outros ingredientes para a criação de diversos pratos dentro na cozinha. O que rendeu, a
muitos escravizados, a liberdade e até concessões de herança de testamento (QUERINO, 2011).
Então, pode-se perceber a experiência e a vivência do corpo negro dentro das cozinhas, tanto
nas casas dos colonizadores como dentro das senzalas, local em que era mantido sempre um fogo
acesso com “a possibilidade de estabelecer a maior comunicação entre todas: a comunicação com
todos os outros que viveram antes e que são os ancestrais” (BARBOSA, 2016, p. 67).
Interessante notar a potencialidade da culinária de reativar suas propriedades de energia –
leia-se “de vida” – através do fogo, pois os pedaços de animais mortos são transformados, em
conjunto com temperos, para “reanimá-los”, a fim de tornar esse prato uma experiência de
preservação de sentimentos, identidade e ancestralidade.
O corpo negro constituiu-se de múltiplas vivências e sobrevivências durante o período
23

escravocrata. Desde o desterro de sua terra natal até as inúmeras formas de violência física e mental
impostas aos indivíduos escravizados. O corpo era visto como local de ataque do colonialismo, para
que ficasse marcado em sua aparência o que era, colaborando para uma construção de não
existência de si (COSTA; GROSFOGUEL, 2016). No entanto, estratégias de preservação de
memória foram sendo (re)construídas por esses sujeitos para que suas tradições sobrevivessem.
Falamos de corpo para tratar da dimensão do silenciamento imposto com os discursos
coloniais sobre o corpo negro. Havia um limite para o que ele podia fazer e falar, mas o próprio
corpo transformou-se num corpo-território (SODRÉ, 2002), onde guardava seus valores
civilizatórios: a oralidade, a ludicidade, a corporeidade, a coletividade e a circularidade
(TRINDADE, 2005).
Lançaremos, aqui, a circularidade, que tem a roda como símbolo e que também está no
formato da panela, para pensarmos no movimento circular de renovação que esse valor civilizatório
carrega (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 25-26). Aproximando, ainda, outros elementos de práticas
culturais da população negra que utilizam o mesmo formato de círculo para promover os encontros
de vivência, como a Capoeira, a roda de Samba. As reuniões são feitas com instrumentos musicais,
e a roda é a configuração estabelecida para iniciar a cantoria e o jogo dos corpos, proporcionando
uma “linguagem da recuperação das formulações de energia” (TAVARES, 2012, p. 96).

No espaço circular denominado de Roda, temos, portanto, uma redução do mundo


cósmico e, dentro dela, poderíamos implementar todo nosso potencial, de maneira
que pudéssemos reconstruir nossas baterias energéticas em um entrelaçamento com
a ancestralidade geradora da prática e da cultura. (TAVARES, 2012, p. 95, grifo
nosso)

Amassar os grãos do feijão e depois misturá-los aos demais ingredientes (pé, orelha,
garganta, linguiça, rabo de porco) e começar girar na panela: assim as substâncias são reunidas no
ato de rodar para alcançar seu potencial juntas. Colocar tudo em uma única panela e misturar para
encontrar o ponto do sabor do sal que seja agradável ao paladar traz consigo um saber/fazer de
estratégias de esperar o cozimento de alimentos “desconhecidos” a fim de transformá-los em outra
coisa que não eram antes.
Mas esses alimentos são apreciados justamente pelo tempero da inovação, pois, ao longo de
séculos, muitos ingredientes foram substituídos ou misturados a outros. Dessa maneira, estamos
pensando na diáspora e na identidade negra. O corpo-território teve que renovar suas energias a
partir de seus princípios de ancestralidade, com pitadas de criatividade, pensando na especificidade
da culinária afro-brasileira.
A culinária afro-brasileira que pretendemos apresentar neste texto através do tempero da
etnografia do DBR (Dida Bar e Restaurante) transporta pitadas do tradicional, no sentido de buscar
24

suas raízes, dos seus antepassados, e adiciona ingredientes da atualidade, ou seja, mantém o diálogo
com o presente para continuar sua (re)existência e resistência diante dos ataques de intolerância de
que a população negra ainda é alvo em pleno século XXI. A cozinha afro-brasileira pretende se
colocar à mesa como um dos elementos de ressignificação da cultura negra empregada para o
fortalecimento contra o racismo.

Diz a lenda que Exu foi cozinheiro dos orixás, e que principalmente Ogum e
Xangô, por serem muito exigentes, só comiam com muita pimenta e molhos
especialmente preparados pelo mestre dos temperos dos deuses. Um dia, os orixás
estavam com muita fome e pediam insistentemente que Exu trouxesse a grande
panela que habitualmente seria o repasto. Nisso, Exu esquece a pimenta, porque
não teve tempo de ir até o mercado para a compra, por isso recebe reclamação,
especialmente de Xangô, dizendo:
– Exu, pegue o meu cavalo e vá providenciar a pimenta, pois, assim, sem molho,
eu não como –, Exu sai correndo à busca de pimenta, para atender à vontade do seu
companheiro Xangô.
Enquanto Exu saía, preocupado, para buscar o tempero, todos os orixás começaram
a se servir da gostosa comida, então Xangô sugeriu que, após a alimentação, a
grande panela fosse preenchida com água e que nada fosse relatado, fazendo com
que Exu ficasse pensando que os orixás ainda estavam com fome, aguardando a
pimenta.
Chega Exu, trazendo a pimenta, e vai até a cozinha para preparar o molho tão
desejado por Xangô. Volta e encontra a grande panela cheia de água, e constata
que os orixás já haviam comido. Exu fica indignado jogando tudo no chão, e
sentencia: a partir daquele momento, ele, Exu, seria o primeiro orixá a comer,
e sem a comida de Exu nada poderia acontecer no plano dos deuses e no plano
dos homens. Por isso, todas as cerimônias dos Candomblés e Xangôs são iniciadas
com o padê de Exu, que consta de farofa-de-dendê, farofa com água, acaçá e de
uma quartinha contendo água. (LODY, 2012, p. 21, grifo nosso)

Segundo Raul Lody, ele foi o cozinheiro dos orixás. E, para agradar a todos, manteve um
tempero essencial na comida a fim de satisfazer o paladar dos orixás. O condimento tão exaltado
por Xangô, a pimenta, é pequenina, porém, infesta o calor dentro da boca de todos que a provam.
Exu é o primeiro a comer no Aiyê. Senhor dos caminhos, da rua e também dos mercados.
Mercados dominados pelos escravizados durante o período de escravidão brasileira (do século XVI
ao XIX), onde se vendiam quitutes com cores e sabores diversos. Nesses locais, passa todo tipo de
gente a fim de comprar, alimentar o corpo e repor energias.
Exu é o Orixá responsável pela negociação e pela comunicação entre os seres que habitam a
terra e os Orixás. Trazemos a dimensão dos Itans sobre o orixá Exu para desmitificar a ideia
associada ao demônio, da maldade, ou seja, a demonização que é imposta, injustamente, aos orixás,
inquices e entidades das religiões de matrizes africanas.
Então, quem vende na rua e o considera seu aliado, seu parceiro, oferece os primeiros
quitutes para Exu (ou lhe dando de comer) conforme os praticantes da tradição nas religiões de
matrizes africanas. Por isso, como estamos inseridos nos territórios que Exu protege, a rua e a
25

cozinha, ambos lugares de comunicação, abrimos duplamente o capítulo com Itans de Exu.
E também para experimentarmos uma prática decolonial, de contar histórias a partir de nós.

1.1 A cozinha/culinária criativa afro-brasileira

O território de nossa pesquisa está na Rua Barão de Iguatemi, Praça da Bandeira. Abrigou,
entre 1853 e 1881, o matadouro público da cidade do Rio de Janeiro. Considerado, nessa época, o
final da cidade imperial. As condições insalubres apresentadas no matadouro da Rua de Santa Luzia
(centro da cidade), a falta de higiene e as transformações urbanísticas advindas após a chegada da
Família Real Portuguesa (1808) modificaram até os hábitos alimentares da capital do Brasil e os
locais oficiais de abatimentos de animais (EL-KAREH, 2012).
O matadouro é um exemplo de espaço encarregado de abater os animais – porcos, bois,
carneiros – para alimentar a população da capital e das redondezas. Por isso a importância de o
abatedouro permanecer próximo da cidade.
A função de contextualizar o território de pesquisa é dupla. Trata-se da demonstração do
quanto essa localidade estava ocupada por africanos, libertos ou escravizados, desde o século XIX,
como toda a cidade do Rio de Janeiro. E também da abertura de novos espaços de serviços públicos,
que acarretou a concentração de outros serviços, como a venda de produtos alimentícios através dos
mercados de rua, com suas quituteiras e vendedores ambulantes – tudo feito pela mão negra
escravizada e, no período pós-emancipação, pelos libertos. Com isso, a Praça da Bandeira é um
reduto de (re)existência da população negra das diversas pequenas áfricas do Rio de Janeiro desde o
século XIX (SIMAS, 2016).
O termo empenhado aqui como População Negra, no sentido político-ideológico, tem
referência em Kabenguele Munanga:

Em meus trabalhos, utilizo geralmente no lugar dos conceitos de “raça negra” e


“raça branca”, os conceitos de “negros” e “brancos” no sentido político-ideológico
[...] ou os conceitos de “população negra” e “população branca”, emprestados do
biólogo e geneticista Jean Hiernaux, que entende por população um conjunto de
indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de casamento e que,
ipso facto, conservam em comum alguns traços do patrimônio genético hereditário.
(MUNANGA, 2004, p. 30)

O autor o empregou para se referir aos negros descendentes da diáspora negra no Brasil,
independentemente da classe social, financeira e da tonalidade de pele (pretos e pardos). Na
diversidade de produção de cultura criada na diáspora, percebe-se o caráter de autopreservação
26

praticado a fim de manter vivas as tradições e, no nosso caso, os sabores.


A produção cultural negra teve como pressuposto a existência dos sujeitos, para que
pudessem resistir. Porque primeiro vem a existência. E, depois, a necessidade de produzir,
transformando esse ato em cultura de resistência. Pelo óbvio contato com uma diversidade de
culturas, despontou ali uma característica de negociação com elas, a fim de sobreviverem. Uma
negociação com o objetivo de preservar seus saberes.

As múltiplas configurações que a cultura africana negra toma quando fora do


continente africano são importantes, pois asseveram que as pessoas, ao serem
deslocadas das Áfricas e ao entrarem em contato com o outro sujeito social – as
culturas asiáticas e europeias –, são impelidas a lidar com estranhas e aviltantes
realidades, e, diante disso, obrigadas a criar um conjunto de artifícios com vistas de
sustentar a vida na dinâmica cotidiana. Ao longo do tempo, as produções culturais
negras, “culturas de resistências”, antes de serem entendidas em sua “pureza”,
como manutenção ou retorno às tradições ou legados da “África”, são produções
híbridas, nascidas nos intercruzamentos de culturas, como combinações de
transgressões, submissões, negociações, interdições, trocas, rupturas e subversões.
(SOUZA, 2011, p. 41, grifo nosso)

Procuraremos estabelecer, neste primeiro capítulo, o pressuposto de que a Culinária Afro-


Brasileira designa uma cozinha de culinária criativa, com a (re)invenção e a (re)criação de quitutes,
pratos salgados, doces preparados com alimentos de origem africana ou não. É considerada um
legado da diáspora africana no Brasil.
Muitos pratos são sobreviventes devido ao seu vínculo com as religiões de matrizes
africanas. E, atualmente, espaços de sociabilidade incorporaram em seu cardápio comidas da
culinária afro-brasileira, ou seja, é uma fusão de várias culturas africanas feitas por afro-brasileiros.
Nossa apresentação dos traços da culinária afro-brasileira foi feita a partir das leituras de autores
brasileiros sobre tema: Raul Lody (2012, 2013), Vivaldo da Costa Lima (2010) e Manuel Querino
(2011).
Esses mesmos autores tecem sobre a culinária baiana mais especificamente. Contudo,
optamos por concentrar a pesquisa na abrangência da culinária afro-brasileira. Assim, priorizamos
nosso objeto de pesquisa e, de qualquer forma, já estaremos inseridos na culinária baiana, pois é
uma cozinha que conta com as mãos dos africanos no Brasil. Justamente pelo quantitativo de
indivíduos de uma diversidade de etnias desembarcados aqui, que construíram música, arte,
religiões, lutas a partir da dispersão africana no continente americano.
Apenas não nos aprofundaremos na discussão do que é a culinária baiana, a culinária de
terreiro e a culinária africana por compreendermos que todas elas são elementos da herança da
criatividade dos africanos na diáspora, só que fragmentada de acordo com uma suposição de leitura
separatista.
Compreendemos que todas estão, de certa forma, em qualidade e quantidade, envolvidas na
27

identidade negra viva dentro da diáspora africana. Sobre identidade, falaremos mais à frente, com a
contribuição de Stuart Hall. E, por último, trataremos da memória como instrumento de selecionar
conhecimentos para a consciência coletiva de uma identidade.

1.2 As negociações de sobrevivência de amanhã, ontem e hoje

O verbete “culinária afro-brasileira” de Nei Lopes na Enciclopédia Brasileira da Diáspora


Africana destaca três povos: o banto (África Austral), o iorubá (África Ocidental) e o sudanês como
influenciadores da culinária no Brasil.

A influência negro-africana na culinária brasileira foi fundamental, talvez mais que


a indígena. Tanto que Artur Ramos não hesitou em afirmar que “foi pela cozinha
que o africano penetrou de modo decisivo na vida social e de família no
Brasil”. Responsável pela introdução, na culinária brasileira, de ingredientes como
o azeite de dendê, o camarão seco, a pimenta-malagueta, o inhame, bem como
folhas diversas, utilizadas no preparo de iguarias, molhos e condimentos, o
africano negro não só trouxe para o Brasil pratos de sua tradição como
introduziu novos e saborosos elementos nas cozinhas nativa e portuguesa. Nos
pratos, por exemplo, em que o português usava azeite de oliveira, o negro
empregou o dendê e, a outros, acrescentou o leite de coco, o amendoim e a
castanha de caju. A tradição culinária africana mais influente no Brasil tem suas
origens na região do Golfo do Benim (Nigéria, Benim etc.) e se faz
acentuadamente presente no litoral nordestino, sobretudo na Bahia – fato
comprovado pelo nome da maioria dos pratos, quase todos originários de iorubá ou
de fongbé. A entrada da culinária negra no Brasil se fez principalmente pelo
intermédio dos alimentos votivos da tradição dos orixás e voduns. Depois, a
cozinha sudanesa ganhou as casas das famílias abastadas, chegou nas ruas
como as baianas vendedoras de acarajé e doces, atingindo por fim os
restaurantes especializados nas chamadas “comidas típicas”. Ao lado dessa
cozinha, entretanto, no Sudeste brasileiro, alguns preparos, criollos ou não,
como a feijoada, o angu à baiana, a couve à mineira, o mungunzá, o aluá, a
jacuba etc. parecem revelar traços de costumes de povos bantos da África
Austral. (LOPES, 2011, p. 220-221, grifos nossos)

O DBR fez dois anos de existência em 05 de dezembro de 2017 na Rua Barão de Iguatemi,
localidade oficialmente chamada de Praça da Bandeira, mais um “bocadinho”, já é Tijuca. Como
dona Dida disse “a Praça da Bandeira é um lugar de passagem”. E foi por acaso ela ter escolhido o
bairro para construir seu sonho de ter um bar.
A comida africana preparada por ela “penetrou” feito as primeiras africanas e africanos na
vida social, na cozinha da casa grande ou nas ruas, como nos diz Nei Lopes. É o único restaurante
com quitutes afro-brasileiros e africanos diante de diversos bares e restaurantes já estabelecidos no
circuito gastronômico da Praça da Bandeira.
28

O bar oferece pagode às terças, jazz aos sábados e outras atrações musicais durante o mês.
Devido a sua vizinhança ser majoritariamente residencial, precisou estabelecer um horário de
funcionamento à noite, principalmente no dia do pagode. Os clientes não gostaram muito da ideia
de o pagode acabar logo às 22:00. Mas a dona do estabelecimento decidiu priorizar a lei do silêncio
para manter os laços de boa convivência.
A presença dos africanos na cozinha das casas dos senhores, muito bem apresentada por Nei
Lopes, afirma como sua sabedoria era aproveitada nos hábitos alimentares da casa e que foi aceita
posteriormente até na rua, como já sabemos das vendas de quitutes feitos pelos escravizados. O
destaque fica para os temperos dos iorubás, por sua inserção nos pratos da Região Nordeste.
O autor mostra as mudanças de sabores feitas com os produtos alimentícios africanos
trazidos pelos escravizados ao Brasil. Como muitos alimentos para compor a receita não foram
encontrados no país, eles foram substituídos por alimentos nativos, como Nei Lopes diz, o azeite de
oliva pelo azeite de dendê. E o mais importante é que a culinária afro foi introduzida pelas religiões
de matrizes africanas e, depois, passou a ser comida de rua (pela mão sudanesa).
A substituição até hoje é feita na cozinha no momento do preparo de comidas africanas,
como nos disse Dona Dida:

Porque nem tudo que eles usam lá eu consigo aqui. Eu sou louca pra fazer o FuFu.
O FuFu, o dia que eu fizer o FuFu aqui, eu vou ficar realizada. Eu vou comer até de
manhã. Mas eu não consigo achar a farinha do FuFu... e lá... o FuFu... quase todos
os países na África fazem o FuFu. Entendeu?! É uma massa branca... pode fazer de
farinha de mandioca ou farinha de milho. Entendeu? Fica muito bom! É uma coisa
que faz parte da cultura africana, mas não consigo fazer aqui porque não consigo a
farinha, né? De repente, até... fazer afro-brasileiro. É farinha de mandioca, só que é
diferente da nossa.11

No DBR, a matriarca revela um sonho de preparar o FuFu com os mesmos ingredientes.


Entretanto, não é possível pela ausência do ingrediente principal nos mercados daqui. Isso desperta
a criatividade da economista aposentada e cozinheira Dilma Nascimento (Dida), ao ter que refazer a
receita com um ingrediente semelhante para que se aproxime do sabor e da textura do prato
original.
Notamos que a (re)invenção preserva uma artimanha, no sentido positivo de montar uma
estratégia de preservação de um prato que é “desconhecido” popularmente para que seja
reconhecido e experimentado dentro do projeto do bar. É uma maneira de resgate e amplificação da
cultura negra.
Seguindo o mesmo ritmo, muitos quitutes africanos foram reinventados no Brasil, e outros
alimentos foram incorporados ao cardápio brasileiro. Com a ausência de ingredientes, a dona do bar

11
Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017.
29

lançou mão de estratégias criativas de sobrevivência de receitas, incluindo a substituição deles por
alimentos nativos, similares aos dos pratos africanos.
Trata-se de uma potencialidade da criatividade do povo negro que foi escravizado, mas que
soube utilizar seu corpo para criar um “arquivo” de conhecimentos a ser transmitido às gerações
posteriores. Um exemplo dessa herança: Dona Dida teve sua primeira experiência de bar com sua
mãe. Era uma barraca, mas a ideia permaneceu, evoluiu e, assim, vemos um diálogo constante entre
presente e passado para se manter viva a tradição.
Raul Lody fornece a importância da inserção dos alimentos africanos na culinária e mostra
como foi um longo processo, atingindo diversas esferas da sociedade, já que o escravizado também
estava presente no cotidiano, na rua, na casa, no trabalho, no lazer.
Desde a venda de comida nas ruas pelos escravizados de ganho até as comidas votivas (para
orixás e voduns) – que depois iriam ganhar as ruas também (o mais popular é o acarajé), como nos
falou Nei Lopes, – a culinária afro-brasileira ativou sabores e temperos em diferentes espaços.
Apresentando ações criativas para transformar os alimentos que eles próprios dominavam (dendê,
inhame, quiabo), já usados na cozinha da senzala, para serem “aceitos” na cozinha da casa grande.
Nesse paralelo entre o resumo da história da culinária afro-brasileira, feito por Nei Lopes, e
o DBR, nota-se que o prato principal é a genialidade de preservar uma memória cultural com
ingredientes já dominados, seja pelos escravizados, seja pela cozinheira na atualidade.
Nós, afro-brasileiros, buscamos nossa identidade negra em elementos diaspóricos que nos
conduzam ao sentimento de pertencimento social e cultural. A culinária afro-brasileira pode
funcionar, na prática, como um representante de pensamento da memória e da identidade,
juntamente com materiais elaborados com a criatividade da cultura negra.

1.3 Identidade em corpos e mãos negras

A diáspora africana foi o fluxo migratório forçado de diversas etnias africanas para o
continente americano durante os séculos XV-XIX. A dispersão do qualitativo de seres humanos
transformou as sociedades e os sujeitos, o que nos remete a dizer sobre o significado de mercadoria,
pois o corpo negro foi desumanizado, com objetivos de torna-se um objeto de valor dentro da
economia escravagista. Por isso, sua identidade foi totalmente dilacerada. Dentre as mudanças
ocorridas, iremos nos debruçar sobre a (re)construção da concepção de identidade negra de acordo
com seu território de nascimento ou de renascimento.
Nossa pretensão é caminhar com Stuart Hall sobre o pensamento de como os corpos negros
30

forjaram sua identidade negra em um país como o nosso, alterado culturalmente com a dominação
colonial. A supressão de culturas nativas obteve sucesso a partir da hegemonia da cultura do
colonizador (europeu). Entretanto, a diáspora negra no Brasil articulou formas de arquivar seus
costumes para dar continuidade às suas tradições, reelaborando sua existência neste território. O
aspecto culinário está atrelado a um fator identitário de pertencimento à cultura negra.
A herança tem a finalidade de percorrer todas as gerações familiares para não se perder a
tradição, seja essa herança um patrimônio material ou imaterial. Seja ela transmitida oralmente ou
pela escrita.
A sabedoria do povo negro conta, conforme a historiografia já investigou, que nós tivemos
uma experiência coletiva dentro da escravidão, mas muitas das práticas de (re)existências não foram
registradas oficialmente. Porém, também já sabemos que o corpo foi o arquivo/arma para
salvaguardar a memória comunitária da população negra (TAVARES, 2012) diante da dificuldade
imposta na condição de escravizado. O corpo acumula heranças da identidade negra, ou seja, o
corpo é compreendido “como um dispositivo de poder, de identidade e de pertinência a um ou a
outro grupo” (TAVARES, 2012, p. 84).
Relembrando uma parcela da trajetória da população negra no Brasil, é possível concordar
com o fato de que nossas linhagens de parentesco foram todas (re)construídas a partir de novas
maneiras de existir para que o cultivo de nossos ancestrais permanecessem vivos em nossas
identidades. A cultura negra teve, assim, por excelência, que adicionar os sabores de temperos daqui
aos seus, a fim de dar continuidade a sua existência. Essa presença se faz nos atravessamentos dos
corpos negros que zelam pelo costume, por exemplo, de comer Caruru na Bahia em dia de São
Cosme e Damião (LODY, 2013):

200 quiabos
½ kg de camarão seco
1 colher de (sopa) de gengibre ralado
250g de amendoim torrado sem pele
250g de castanha de caju torrada
Azeite de dendê a gosto
Sal e pimenta do reino a gosto.
(FREGONEZE; COSTA; SOUZA, 2015, p. 22)

Nesse sentido, uma identidade cultural em sociedades diaspóricas na pós-modernidade não


está baseada em elementos tradicionais convocados, geralmente, para comprovar sua origem. Mas
sim no que a reestrutura, sendo essa a própria garantia de existência. Percebe-se que o ato de
cozinhar um prato em “dias santos” ultrapassa a experiência da gastronomia, pois, aqui, ele tem o
compromisso de exercer um significado de preservação de memória e de pertencimento à
identidade da culinária afro-brasileira. A tradição modela nosso imaginário com a ação de
potencializar a representação das raízes de matrizes africanas.
31

Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato


com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente
numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”,
cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si
mesma, sua “autenticidade”. É claro, um mito – com todo o potencial real dos
nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,
conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (HALL, 2013, p.
32)

Nosso passado dentro do registro oficial, em parte, foi silenciado pela história do
colonizador, cuja visão eurocêntrica de nós sobressai. O “cordão umbilical” citado por Hall foi
corrompido, ou seja, mesmo nossos ancestrais que viveram em África e depois sobreviveram e
formaram famílias aqui no Brasil, traçando uma renovação no modo de (re)existir, não puderam
retornar ao seu local de origem, mas isso não os impediu de ressignificar seus saberes neste
território.
Aconteceram modificações, (re)invenções em diálogo relacional com as tradições a fim de
preservar as nossas origens. E a culinária afro-brasileira se ressignifica na atualidade, justamente
alimentando um cardápio com refeições que trazem uma relação de memória e identidade.
A tradição pode ser sentida em diversos momentos no Dida Bar e Restaurante. Destacamos,
então, algo que fica diante dos olhos de todos os clientes já no instante em eles que entram no bar,
um objeto simples e pequenino. No alto do teto, colheres de pau penduradas com fios balançam ao
tocar de qualquer vento ou som de caixas e atabaques em dia de samba e Awuré12:

Figura 1: Colheres de pau no alto. Foto: Thiago Braz.

12
“O termo AWURE faz parte do grande acervo de palavras do povo Yorubá. O termo atravessou o tempo e é, até hoje,
falado, ao lado de outros idiomas, na parte oeste da África, principalmente Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa. Em
grande parte dos cânticos sagrados em reverência aos deuses africanos, o termo AWURE aparece fazendo menção a um
desejo de boa sorte, bênçãos, prosperidade, boas coisas de uma forma em geral” (descrição do evento “Awure e Caruru
da Dida” na página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Publicado em: 12 out. 2017). Disponível em:
<https://www.facebook.com/events/1446573505433328/>. Acesso em: 21 jan. 2018.
32

O utensílio também está presente no logotipo do bar: numa extremidade, é colher de pau,
noutra, a mão de um cavaquinho:

Figura 2: logomarca do Dida Bar e Restaurante 13.

Veja o quanto é significativa a união da musicalidade com a culinária. Mesmo sendo


proibida pela vigilância sanitária, devido ao seu grau de contaminação por ser um instrumento feito
com material natural – madeira –, vemos a colher de pau como símbolo de uma tradição viva que,
para sobreviver, necessita dialogar, negociar com o presente para dizer que ainda existe e resiste.
“Nesse processo, ela, a tradição, reinscreve-se, fazendo da sua existência uma troca constante,
fazendo a sua existência reexistir e permanecer viva” (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 13).
O tempo todo existe um circuito de transformações dos significados transitórios imaginados
sobre o que é afro-brasileiro. A história dos antepassados nos conduz às memórias dos traumas,
inclusive “nossa modernidade é marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo
sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial” (HALL, 2013, p. 33). Como
reconstruir uma identidade quando a sociedade colonizadora impôs violentas formas de ser aos
africanos? Aqui, a diferença será o ingrediente especial para pensarmos a identidade.
A diversidade das etnias responsáveis pela formação do povo negro construiu uma noção
sem binarismos – fator valorizado no modelo europeu –, a diferença, então, funciona como lugar de
passagem (HALL, 2013). Isso significa dizer que as trocas culturais não foram excluídas durante o
contato com outras culturas. Quando pesquisamos receitas de Vatapá, o ingrediente principal (a
massa) varia de acordo com a região ou o estado do Brasil, por exemplo: farinha de trigo ou de
mandioca, fruta-pão ou pão amanhecido. E Dorival Caymmi sugere até o fubá e sua canção
“Vatapá”.

13
Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.187392964735686.48297.161167240691592/649258705215
774/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018.
33

Mas então porque se mantém o mesmo nome do prato mesmo com uma variação tão grande
de ingredientes? Porque o principal mesmo é não deixar de mexer e não embolar, feito angu. Se
tiver caroço não é vatapá e muito menos angu.
Utilizar palavras do campo da cozinha para exemplificar a estrutura da identidade cultural
relacional de Stuart Hall serve para encaminhar nosso objeto de modo associativo à definição de
identidade feita pelo autor. A população negra apresenta características de uma identidade sem
fronteiras rígidas, dentro da Diáspora Negra.
Na receita do Vatapá, os ingredientes são modificados de maneira criativa. O prato é feito
com o que se tem na terra, de acordo com a região e estado do Brasil. E nenhuma das substituições
fez com que o nome do prato fosse modificado. A autopreservação como princípio da vida está
inserida nessa lógica da identidade, pois é melhor a associação com o Outro para que eu sobreviva
do que a Morte repentina sem luta.
Nosso esforço aqui é para exaltar as tantas etnias que adentraram este território com seus
costumes culturais e tiveram a sagacidade de proteger sua identidade, estruturadas num princípio
básico da Natureza: a autopreservação (AKBAR, 1984). Assim, no que diz respeito à alimentação
ou, do ponto de vista da arte, à culinária, foi necessário manter uma identidade relacional com as
demais identidades. Dessa forma, poderiam conduzir a cultura negra às outras gerações, mesmo
com essas transformações – necessárias para a sobrevivência – que, do ponto de vista africano, não
são sentidas como perda de essência de identidade, mas como ato de sobrevivência coletiva.
E, o mais importante a destacar, sem destruir outras culturas para dizer que a sua é superior.
Há um permuta para o grupo sobreviver. O princípio primeiro da Natureza é a vida, a
autopreservação (AKBAR, 1984), então, a tradição é manter o costume vivo com as opções
existentes no território.
Pensar maneiras de decolonizar o pensamento é uma estratégia do colonizado de “colocar
para fora” sua história sob sua própria perspectiva. É registrar uma história de existência de
conhecimentos a partir de mãos negras dentro do presente, retirando o discurso da colonialidade de
poder (BALLESTRINI, 2013).
Dessa forma, colocamos à mesa o projeto central da decolonialidade, pois foram
pluralidades de ações de negras e negros com organizações coletivas (Quilombo) ou individuais (as
quituteiras), a uma pitada de exemplo, que selaram seu modo de existir dentro da diáspora e que
revelam, nas gerações de agora, um novo momento, novas formas de negociação baseadas na
herança do passado (tradição), a fim de que continuem sobrevivendo com suas criações e
recriações.

Central ao projeto político-acadêmico da decolonialidade é o reconhecimento de


múltiplas e heterogêneas diferenças coloniais assim como as múltiplas e
34

heterogêneas diferentes reações das populações e sujeitos subalternizados à


colonialidade do poder. (COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 21, grifo nosso)

Pensamos que a culinária seja uma representante da criatividade híbrida, transcultural da


presença da reunião da gama de elementos das diversas culturas africanas. Como apresentamos no
exemplo da receita do Vatapá, temos também a Moqueca. Existem famílias que fazem com dendê,
outras sem dendê.
O modo de servir o prato é diferente em cada estado, uns com panela de barro, outros sem.
No Espírito Santo, é feito sem dendê, na Bahia não pode faltar dendê nem leite de coco. Mas a
origem do nome do prato é tupi “moquém”, que significa “secar ou toscar a carne” (SILVA, 2015).
Observe a fusão de técnicas de culinárias diferentes nessa deliciosa receita:

Moqueca
Ingredientes:
1kg de peixe cortado em postas
6 tomates
3 cebolas
2 pimentões
1 coco seco
1 maço de coentro
1 maço de cebolinha
Azeite de dendê a gosto
Sal e pimenta a gosto
(FREGONEZE; COSTA; SOUZA, 2015, p. 86)

Demonstra o que explicamos acima sobre o que a cultura negra faz para sobreviver às
adversidades das estruturas do poder hegemônico colonial. A estratégia de união criativa com outras
culturas étnicas representa o seu caráter híbrido e sua autopreservação. Toda essa ação presente no
pensamento afro alia-se à leitura de perspectiva decolonial, que será adicionada no segundo capítulo
dessa dissertação. Trata-se do trabalho de campo feito no Dida Bar e Restaurante.
A identidade da culinária afro-brasileira conduz o saber/fazer da diferença dentro de arranjos
de identidade cultural de relacionamentos híbridos. O DBR é uma “extensão da minha casa”, como
diz Dona Dida, com o cardápio recheado de quitutes e pratos africanos e afro-brasileiros. O bar
consagra-se por ser mais um expoente da culinária afro-brasileira no Rio de Janeiro.
A Casa Omolokum14 direciona sua cozinha para a culinária de terreiro; o Wendaval da
Lapa15, para a comida baiana e a nordestina; e o projeto Afro Gourmet 16 tem como personal chef
Dandara Batista. Todos são espaços da expressão da culinária afro-brasileira, bem como as feiras
gastronômicas das Praças Mauá e Tiradentes, onde encontramos diversos quitutes, cada qual com
um tempero diferente, mas todos têm uma relação com as culturas africana e afro-brasileira.

14
Rua do Jogo da Bola, 102 – Saúde, Rio de Janeiro.
15
Av. Gomes Freire, 663 – Centro, Rio de Janeiro.
16
Da Lapa Designer Hotel, Rua do Lavradio, 200, Lapa, Rio de Janeiro.
35

Aqui, justificamos a aproximação do conceito de identidade cultural de Hall com a culinária


afro-brasileira. A identidade negra nesses restaurantes, bares ou feiras mantém-se fortalecida e
relacionada com a diferença e não com a exclusão do Outro. A autenticidade de origem – o que é
“verdadeiro é o melhor”, “o melhor bolinho” – é um aspecto da identidade do colonizador,
fortalecida através da afirmação da inferioridade do Outro. As nações ocidentais exercem poder
hegemônico destruindo símbolos e saberes dos povos colonizados.
A identidade negra inverte essa lógica de destruição, os sujeitos diaspóricos se
estabeleceram através da diferença e da fronteira do que é do colonizador e do que é seu. Em outras
palavras, os afrodescendentes negociaram uma forma criativa de ação para existirem como sujeitos
a fim de sobreviver nos territórios da Diáspora. A busca de alimentos substituintes aqui é uma
forma de manter as receitas vivas na memória.

1.4 De bisavós, avós e mães: movimento de memórias, afetos e histórias

A memória coletiva ou individual dos negros no Brasil foi corrompida pelo discurso do
colonizador mesmo após a sua emancipação. A estratégia do Estado era/é manter o passado dos
grupos de minorias silenciado. Sua cultura dominante sobressai através de uma imposição violenta,
subjugando e apagando as demais culturas. Os que não são relembrados, os que não são incluídos
nessa memória oficial possuem uma memória subterrânea (POLLAACK, 1989, p. 3).
Essa memória, apesar de não ser oficial aos registros de época, sobrevive dentro dos corpos-
arquivo (TAVARES, 2012). Comparando essas memórias às raízes de mandiocas e inhames,
dizemos que estão embaixo da terra (são subterrâneas), pois, por fora, não enxergamos nenhum
fruto, mas, quando arrancadas, vemos a qualidade da raiz.
A memória sobrevive a partir das negociações e da autopreservação dos sujeitos negros,
alimentada com a memória ativa de mulheres negras que eram responsáveis pela cozinha tanto da
casa grande como da senzala. Apesar de seus corpos estarem sob o domínio do sistema colonizador,
souberam utilizar estratégias de sobrevivência com pitadas de criatividade a fim de adaptar seus
saberes ao novo território, mas sem perder o sabor da terra materna.
A memória dos seus hábitos alimentares, podemos dizer, foi colonizada com pressupostos
da colonialidade. Entretanto, houve criações de receitas que conquistaram a mesa do senhor da casa
grande. A maior prova disso é a Feijoada, uma vez que dos restos do porco fez-se o prato mais
conhecido nacional e internacionalmente.
36

No discurso colonial, o corpo colonizado foi visto como corpo destituído de vontade,
subjetividade, pronto para servir e destituído de voz. Corpos destituídos de alma, em
que o homem colonizado foi reduzido à mão de obra, enquanto a mulher colonizada
tornou-se objeto de uma economia de prazer e desejo. Mediante a razão colonial, o
corpo do sujeito colonizado foi fixado em certas identidades. Diante disso, a trajetória
individual e coletiva dos sujeitos subalternos (especialmente das mulheres negras) é
vista como um privilégio epistemológico de onde se elabora também um pensamento
de fronteira a partir de uma perspectiva subalterna. (COSTA; GROSFOGUEL, 2016,
p. 19-20)

Espaços públicos de sociabilidade reativam essa memória subterrânea – o “não dito” que foi
silenciado no registro oficial – ao investirem em elementos da cultura negra no âmbito da música,
da decoração e, principalmente, da culinária. A partir daí, possibilitam a (re)existência das
memórias de sabores e afetos contidos no espaço da cozinha, mas que foram silenciados em espaços
oficiais.
Dessa forma, reafirmam e confirmam o poder do protagonismo de negras e cozinheiras
como guardiãs da memória da culinária afro-brasileira. E isso pôde ser observado dentro da história
de Dona Dida, ao seguir os passos de sua mãe, Tia Maria, que montou uma barraca na Pavuna para
complementar a renda da família. Lá, sambistas passaram e rodas de capoeira foram organizadas
pelo irmão de Dida. O efeito dessa iniciativa foi que Dona Dida, filha, acompanhou sua mãe nessa
experiência, adquirindo sabedoria relacionada ao comércio de rua e à culinária.
É inevitável retroceder ao passado para articular essa sabedoria às das nossas mais velhas,
que são as escravizadas de ganho, as quituteiras e as donas de barracas de verduras e legumes no
período colonial brasileiro (FARIAS, 2015). E chegar aos fins do século XIX e início do XX, com
as tias baianas, que abriam sua própria casa, ponto de integração que uniu a população negra
naquele momento em que nenhuma ação pública a amparava.
As mulheres compartilhavam as receitas nas casas das tias para todas aprenderem a ganhar a
vida. Por isso o espaço das casas servia para circular os anseios do tempo presente, permeado de
aprendizados, lutas, música, festas, trabalho. Elas acolhiam com afeto a construção do samba. As
tias baianas, com seus quitutes, tinham uma maior locomoção na cidade, seus corpos circulavam
com mais facilidade, fazendo com que a comunicação fosse mais fluida entre a casa e a rua
(NOGUEIRA; SILVA, 2015).

As tias baianas que eram os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis


pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes do trabalho comunal, pela
religião, rainhas negras de um Rio de Janeiro chamado por Heitor dos Prazeres17 de
“Pequena África”, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova,
tendo como capital a Praça Onze. (MOURA, 1995, p. 131)

Por tudo isso, observado na história de vida de Dona Dida e na do comércio de rua feito por

17
Heitor dos Prazeres, grande pintor, cantor e compositor negro brasileiro do século XX.
37

mulheres negras, ressaltamos a importância de evocar a mulher negra como articuladora de rede de
solidariedade. Vemos, no bar, dois elementos que atravessaram o tempo e que são símbolos da
herança africana na cultura dos afrodescendentes: a culinária como ferramenta de trabalho e a
solidariedade através da coletividade. Vê-se retomada uma estratégia de suas bisavós para que aja
um movimento de resistência ativa no presente, criando elos de afetividade e de sobrevivência
(NOGUEIRA; SILVA, 2015).
O que queremos elucidar é uma das formas de criatividade de (re)existência da memória dos
saberes culinários dessas mulheres negras, o quanto a memória conseguiu uma flexibilidade para
servir tanto os patrões quanto seus familiares e repassar as receitas para outras gerações.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do


passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou
menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e
fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos,
sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao
passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas
também as oposições irredutíveis. (POLLACK, 1989, p. 7, grifo nosso)

Porém, concomitantemente a esse movimento opressor, existe a resistência das quituteiras


do período da colonização em circular pela cidade com seus tabuleiros e repassar suas receitas à
família. Vale valorizar a história de Luiza Mahin, quituteira que distribuía panfletos dos Malês em
Salvador no ano de 1835. Em seu espaço de trabalho, ela era a ponte de divulgação da Revolta dos
Malês18. Então, esse fato nos ajuda a reforçar que a comida vendida na rua, nos tabuleiros, pelas
trabalhadoras ou trabalhadores de ganho era fonte de compra de liberdade, herança cultural e luta
pela liberdade.
Já na atualidade, trazemos como espaço de sociabilidade e comensalidade o DBR, local que
estabelece sentimento de pertencimento à memória da identidade negra. A escolha do local se deu
pela indicação de alunos do Mestrado em Relações Étnico-Raciais, CEFET/RJ. Quando souberam
do nosso tema, logo disseram que lá seria o local propício para a pesquisa.
Nosso contato com a administração foi feito via internet e marcamos um encontro para
explicarmos o projeto e convidá-los a participar da pesquisa. A resposta foi positiva. E, conforme os
participantes iam contribuindo com suas observações, que acontecerem nos eventos mensais do bar,
ia marinando, aos poucos, entre as entrevistas formais e informais, a história da família Nascimento

18
Revolta dos Malês: importante insurreição urbana contra a escravidão negra no Brasil, no ano de 1835, em Salvador,
Bahia. A revolta foi formada por libertos e escravizados africanos das etnias nagô, hauçá e malê. “Malê: corruptela de
imole, que em iorubá significa muçulmano, ou preto islamizado, o muçurummim” (GONÇALVES, 2013, p. 416). Em
sua maioria, negros e negras de ganho, escravizados autorizados a circular na cidade para trabalhar. Desempenhavam
atividades como alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e carpinteiros, quituteiras (vendedoras de doces e salgados)
etc. Entre os participantes, estava Luisa Mahin, mulher negra escravizada, quituteira, mãe do futuro abolicionista Luís
Gama. A história de Luisa está no romance escrito por Ana Maria Gonçalves Um defeito de cor (GONÇALVES, 2013).
38

durante quase um ano. Isso foi dando um sabor refrescante à pesquisa.


A existência do bar nos encaminhou a pensamentos reflexivos, já explanados acima, sobre
memória, identidade e culinária afro-brasileira. A (re)existência abriga uma reação à colonialidade
do poder. Toda forma de recusar as práticas coloniais é uma forma decolonial. O corpo é o principal
elemento das ações decoloniais, ou seja, quem leva seu corpo para lugares com comidas africanas
está praticando uma ação decolonial e ativando sua identidade e sua herança ancestral negra.
39

2. A RECEITA: O PROCESSO ETNOGRÁFICO, A NARRATIVA DO BAR E


OS DECOLONIAIS

Praça da Bandeira, bairro da cidade do Rio de Janeiro, está situada entre o centro e a Zona
Norte. Descendo ali de trem ou de ônibus, deparamo-nos, os transeuntes, com um pórtico antigo:
símbolo do resquício da construção do matadouro da cidade em 1853, que já se chamou Largo do
Matadouro, no século XIX.
Atravessando a passarela, podemos ver pessoas esperando ônibus na calçada, bares,
restaurantes, prédios antigos e supermercados. Adentramos a Rua do Matoso, dobramos à direita
para a Barão de Iguatemi, visualizando uma rua arborizada e, ao mesmo tempo, com os sons das
buzinas, dos carrinhos de mochila das crianças, e um cheiro de churrasquinho.
No final do dia, por volta das 17h, o burburinho dos pratos e talheres toma conta da rua,
que desfruta de um rico polo gastronômico com uma diversidade de bares e restaurantes. Já quase
no final da Barão de Iguatemi, debaixo da frondosa e alta monguba19, com espadas de Ogum ao pé
da árvore, está o Dida Bar e Restaurante, com suas janelas altas, sem vidro, contornadas de verde
e abertas. Dá para ver todo o bar.
Sua parede do lado de fora estampa um amarelo forte. Dentro do bar, há 40 cadeiras e 10
mesas marrons, cobertas com um papel marrom clarinho com a logomarca e o endereço do bar e
restaurante. No centro da mesa, ficam o guardanapo em canecas maiores esmaltadas, canequinhas
com açúcar, sal e palitinhos, vidros transparentes de pimenta e garrafas de azeite:

Figura 3: Utensílios de mesa.

Dentro do bar, as paredes são recheadas de decoração e de eletrodomésticos de uso do bar.


Na parede à direita de quem entra, estão quatro freezers horizontais, no final, estão os banheiros

19
Árvore com os frutos semelhantes ao cacau; é conhecida também pelo nome castanhola ou castanha-maranhão.
40

feminino e masculino. Entre eles, uma pia e, acima dela, muitos espelhos pequenos com borda
laranja que, juntos, formam um grande espelho:

Figura 4: Espelhos.

Continuando o passeio visual dentro do bar, vemos o balcão de atendimento, alto e feito de
mármore, onde são recebidos e entregues os pedidos de quitutes, bebidas e pratos de comida
africana e afro-brasileira. Do lado de dentro do balcão, uma pia para lavar os copos e, depois, a
cozinha, que não dá para ver dali.
Próximo ao balcão, um espaço com uma espécie de “palquinho” – o piso ali é mais alto que
o do restante do bar –, com uma televisão de plasma acima e, do outro lado, um suporte para caixa
de som. Na parede verde, médios e pequenos retratos de artistas negros do samba carioca: Cartola,
Pixinguinha, Clementina de Jesus, Bezerra da Silva. Vemos, ainda, outros objetos: cabaças nas
cores amarelo, azul, vermelho e verde, uma gamela pintada com traços pretos, um violão, uma
girafa, talheres longos amarelos e instrumentos musicais:

Figura 5: Parede do Fundo com celebridades do samba e instrumentos musicais. Foto: Thiago Braz.
41

Numa parede menor, fica a dispensa com uma porta branca de correr. Em seguida, a última
parede, sem tinta, descascada, com os tijolos à mostra. Ali, estão dispostos oito quadros, na sua
maioria de mulheres negras. O segundo quadro da primeira linha expõe o retrato da Ialorixá Mãe
Beata de Iemanjá:

Figura 6: Quadros das mulheres negras e da Mãe Beata de Iemanjá.

Beatriz Moreira da Costa, falecida em 27 de maio de 2017, aos 86 anos, era uma mulher
negra, ativista dos direitos humanos e do meio ambiente; lutou contra a intolerância religiosa e a
violência contra as mulheres. Recebeu o prêmio de patrimônio cultural do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2015, pelo seu trabalho em prol da preservação da
cultura africana. O quadro inserido após seu falecimento seguiu-se da criação de um prato em sua
homenagem, o “Peixe à Mãe Beata de Iemanjá”. Mais à frente, falaremos sobre ele.

2.1 O olhar sobre a trajetória do bar e os eventos recheados de saberes

Dona Dida classificou a Praça da Bandeira com um “lugar de passagem”, escolhido por
acaso para o desenvolvimento do empreendedorismo da família. Nota-se, e foi informado pela
própria Dona Dida, que o espaço passou por reformas para comportar o projeto em março de 2015.
No local, já funcionava o bar “Tempero da Praça”, com oferta de quitutes, cerveja e música
aos finais de semana. Ao longo de 2015, o espaço foi reformulado com a ajuda de amigos e
vizinhos. O bar não tinha muito movimento, segundo nossa entrevistada, e ela, visionária, pensou
em transformar o espaço numa “pequena Lapa20”, com o objetivo de oferecer diversão, cultura e

20
Lapa, bairro da cidade do Rio de Janeiro, com um espaço cultural de grande expressão musical e concentração de
42

culinária no mesmo lugar.


Terminada a reforma em dezembro de 2015, o bar precisava ser batizado. A escolha
terminou com o apelido da matriarca da família, Dida, de Dilma Nascimento. Agora, seu apelido é
conhecido por todos os frequentadores da região e adjacências, e também por Celeste Estrela 21,
Ana Maria Gonçalves22 e Conceição Evaristo23, que já participaram de eventos relacionados às
questões da mulher negra e da literatura afro-brasileira24.
O Dida Bar e Restaurante acolheu eventos de literatura afro-brasileira. O primeiro que
registramos foi a Roda de Conversa com Celeste Estrela e Conceição Evaristo, ocorrido no mês de
outubro de 2017, com o apoio da Cervejaria Feminista, que produz cerveja artesanal com rótulos
que homenageiam mulheres com a trajetória de vida atrelada à luta pelos direitos femininos e que
rompem com os padrões de que o consumo de cerveja é apenas para o público masculino.
A representante da Cervejaria Feminista destacou o fato de o DBR ser um ponto de
narrativa de resistência negra e a importância de espaços para discutir a condição da mulher na
atualidade. Conceição conversou com o público, majoritariamente feminino nesse dia, sobre a
questão de a mulher negra apropriar-se da escrita como ferramenta de luta. A noite começou com
um recital de poemas de autoria de Celeste Estrela, tendo, ao seu lado, Conceição Evaristo e Dida:

Figura 6: Roda de conversa com Celeste Estrela e Conceição Evaristo.

Logo após a roda de conversa, tivemos a apresentação da cantora Ana Bispo. Suas
participações no bar começaram desde a Primeira Festa Africana e, até hoje, a cantora mantém
essa parceria com o DBR. O dia só acabou com a exibição do programa “Que Maravilha” do canal

bares e restaurantes.
21
Celeste Estrela: escritora, atriz e poetisa.
22
Ana Maria Gonçalves: escritora do livro Um defeito de cor (GONÇALVES, 2013).
23
Conceição Evaristo: escritora de diversos livros da Literatura Afro-Brasileira: Olhos d’ água (2016), Ponciá Viêncio
(2003), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Histórias de leves enganos e parecenças (2016) etc.
24
A Literatura Afro-Brasileira diz respeito aos escritores negros que trabalham com a temática da história da diáspora
negra no Brasil.
43

GNT, do chef de cozinha francês Claude Troisgros, em que Dida e a família abriram as portas da
casa residencial para contar a trajetória de vida da matriarca e participar do quadro principal do
programa: desafiar o chef francês a fazer um prato. Como o tema do episódio era a culinária
africana, Troisgros teve a missão de preparar o prato símbolo da família Nascimento, o “Carril de
Camarão”.
No segundo evento fotografado, em agosto de 2017, o bar recebeu Ana Maria Gonçalves
para uma comemoração pelos dez anos de lançamento do livro Um defeito de cor (GONÇALVES,
2013). O romance é inspirado na história de vida de Luisa Mahim, que foi capturada em Daóme
(Benim), e de Kehinde, escravizada no Brasil que retornou livre à África.

Figura 7: Evento para comemorar o lançamento de 10 anos de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

Esse evento foi uma iniciativa do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras (GIN –
UFRJ)25 e do Blog Conversa de Historiadoras26, em parceria com o DBR. Tivemos “Papo de Bar”
com diversas historiadoras e escritoras e um encerramento feito com uma performance negra.

2.2 “Aqui é a extensão da minha casa, aqui eu bebo, como e danço”

Após um passeio visual pelo concreto do bar, passemos ao cardápio da “casa” de Dona
Dida. O horário do almoço e do jantar é garantido durante toda a semana para os que desejam

25
“O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras foi criado em 2014 por Giovana Xavier e surgiu do desejo de
congregar mulheres negras de diferentes áreas para construção de uma rede feminista negra engajada na produção de
conhecimentos e promoção de ações com foco em comunidades negras, suas experiências e histórias.” Disponível em:
<https://www.intelectuaisnegras.com>. Acesso em: 21 jan. 2018.
26
“Hebe Mattos e Martha Abreu criaram o blog conversa de historiadoras em março de 2014. Durante dois anos, o blog
teve todos os seus textos assinados por ambas, em coautoria. Em 2016, o blog se expande, incorporando novas
colaborações e artigos individuais, mas os textos em coautoria das duas historiadoras continuarão presentes.”
Disponível em: <https://conversadehistoriadoras.com/quem-somos/>. Acesso em: 21 jan. 2018.
44

degustar e conhecer o menu de comida africana. O funcionamento do bar e restaurante é de terça a


domingo, geralmente de 12:00 às 23:00.
Existe uma diversidade de cardápios dentro da casa. Apresentaremos os mais destacados na
observação de campo, feita no período de fevereiro a novembro de 2017. O menu executivo é
oferecido na hora do almoço de terça à sexta. O cliente escolhe sua proteína com os
acompanhamentos oferecidos no cardápio.
Desde maio de 2017, no terceiro final de semana de cada mês, acontece o Dida Afro. O que
é o Dida Afro? É um evento em que são servidos pratos de origem africana. A cada mês, um país
da África é escolhido para ter um de seus pratos típicos como prato principal à mesa do Bar.
A partir das pesquisas feitas pela matriarca do bar, Dona Dida, são escolhidos um ou dois
países para ter suas delícias vendidas durante o sábado e o domingo. Existe o cardápio do Dida
Afro e o cardápio permanente, que já contém pratos de edições anteriores do evento, bem como os
quitutes e tira-gostos da casa.
O cardápio do final de semana “Dida Afro” contém os pratos africanos com a descrição dos
ingredientes principais. E, também, sugestões de acarajé e batidas alcoólicas. No mês de setembro,
tinha: Carril de Camarão (Moçambique), prato que apresentaremos mais à frente; Muamba de
Galinha (Angola); Galinha de Piri-piri (Moçambique) e Peixe à Mãe Beata. “O prato foi criado
para homenagear a matriarca de várias famílias, Sra. Beatriz Moreira Costa, mais conhecida como
Mãe Beata”27.
Abaixo, apresentamos a Galinha de Piri-piri:

De origem Moçambicana, “Piri-piri” significa pimenta do diabo africano. São


sobrecoxas de frango marinadas em molho feito de pimenta malagueta, páprica,
suco de limão e leite de coco. Assadas e servidas com arroz branco, banana frita e o
molho de Piri-piri.28

Figura 9: Galinha de Piri-piri.

27
Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.
28
Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.
45

“Com origem na Angola, a Muamba de Galinha acompanha molho de amendoim. O seu


preparo envolve galinha, amendoim, óleo de palma, quiabos e guindungo29”30:

Figura 10: Muamba de Galinha31.

Destaque para o Peixe à Mãe Beata, que é uma homenagem à Ialorixá Mãe Beata de
Iemanjá, falecida em 27 de maio de 2017. Foi lançado no dia 27 de julho do mesmo ano, dia
Internacional da Mulher Latino-Americana e Caribenha. “O Peixe é assado com camarões, o toque
especial de sabor fica por conta do molho e frutos do mar e a deliciosa farofa de coco. O prato será
servido com arroz branco”32:

Figura 11: Peixe à Mãe Beata33.

29
Guindungo: na língua da família banta falada em Angola, significa pimenta.
30
Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.
31
Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.200431443431838.50332.161167240691592/102132188800
9452/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018.
32
Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.
33
Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.200431443431838.50332.161167240691592/102133070467
46

Como vimos, o retrato da ativista está visível aos olhos de quem observa o espaço físico do
bar e restaurante num conjunto de quadros de mulheres negras na mesma parede do lado esquerdo
do bar. Sinalizando, na visão, no olfato e no paladar, todo o respeito pela ativista, escritora e
Ialorixá Mãe Beata de Iemanjá.
Oferecemos uma descrição etnográfica do espaço físico do DBR, até o momento, com a
decoração e os cardápios, para inseri-los nas características físicas do bar, com o objetivo de
apresentar a “casa” de dona Dida.

2.3 “A casa é pequena, mas o coração é grande”

A presença da matriarca da família é constante no bar. Ela chega por volta das 9h e fica até
o último cliente sair. Geralmente, em dia de evento de roda de samba e do Dida Afro, suas
atividades são diferentes. Na roda de Samba, ela permanece à esquerda do bar, no caixa, vendendo
os tickets de pratos, petiscos e cerveja. Conversando e abraçando os clientes também.
“Pagode da Dida” é o nome da roda de samba, com músicos convidados pela casa que, até
julho de 2017, tocavam uma vez ao mês às terças-feiras. A partir de agosto, a roda de samba
passou para duas vezes ao mês no mesmo dia da semana. O nome da roda de samba foi
modificado para “Bloco da Dida”, com a participação de outros músicos convidados. O evento se
destaca pelo quantitativo enorme de pessoas, está sempre lotado.
E, aqui, pontuamos o evento mais “famoso” da casa de dona Dida, que é o Dida Afro.
Especificamos, mais acima, apenas o do mês de setembro, a fim de demonstrar aos leitores o sabor
africano servido no bar durante o terceiro final de semana desse mês. Nesse evento, em grande
parte do tempo, Dona Dida fica no salão, recepcionando os clientes e conversando sobre os pratos.
Os funcionários também sempre explicam aos que desejarem como é composto o prato africano do
dia.
A diversidade de eventos oferecidos dentro do bar, por consequência, modificou a
dinâmica do espaço. Nos dias de “restaurante”, as mesas são dispostas no salão com as cadeiras
acompanhando. Quando a roda de samba entra no bar, afastam-se as cadeiras para os músicos e
instrumentos começarem o som. E, nos eventos relacionados à literatura, as convidadas, pois todas
que observamos esse ano foram mulheres, ficam ao centro do bar, e o salão é arrumado com
poucas mesas.

5237/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018.


47

Figura 12: Arrumação no dia de Pagode da Dida.

As mudanças na configuração do ambiente são para favorecer a especificidade de cada


evento. Existe a reconfiguração do espaço com os mesmos objetos (cadeiras e mesas) e também
com objetivos diferentes. O que nos conduz ao pensamento da constante movimentação no espaço
para abrigar a diversidade de dispositivos da cultura negra. Seja a música, a culinária ou a
literatura, o espaço negocia formas criativas de acolher o evento. “A casa é pequena, mas o
coração é grande”.
Existe, pois, uma mexida constante no espaço para agregar, incluir as práticas culturais da
população negra. O ambiente apega-se a valores civilizatórios afro-brasileiros, fruto da diáspora
negra. Formas de existência imprimidas pelos africanos no modo intelectual, espiritual e material,
apresentadas no plano da música, da arquitetura e da gastronomia (TRINDADE, 2005).
A circularidade é um dos valores civilizatórios de origem africana, seu conceito trata do
quanto esse movimento em círculo marca diversas criações da cultura negra. Em se tratando do
nosso campo de pesquisa, a roda de samba e as constantes mudanças na configuração do espaço do
bar para atender à diversidade de eventos acolhidos são movimentos que nos fazem pensar no
mesmo trabalho exercido pela cozinheira na panela.
Observamos o quanto do empreendedorismo criativo da família está baseado nas tradições
e culturas africanas e afro-brasileiras e emergido de dentro deste valor civilizatório africano: a
circularidade. Percebida pelo movimento constante de modificações para acolher os eventos da
casa.
Há a necessidade de sempre movimentar o óleo com o alho e a cebola, para dourar e depois
colocar os pedaços de galinha. Há movimento no ato de cozer, não só na culinária afro-brasileira,
mas em outras também. Pressupomos que a sobrevivência adquire forma no ato de conexão com a
ancestralidade negra em movimentos carregados de circularidade. A circularidade desloca o
pensamento para mobilizá-lo, a fim de ressignificar os espaços, os sabores, os sons.
48

Então, o que sobressai dessa análise sobre a mutação constante do espaço do bar é que
existe a presença de um valor civilizatório circulando o projeto. Significando que o ato de
imprimir sua identidade negra está aliado aos valores de seus ancestrais, ou seja, afastando-se das
epistemologias ocidentais.
A circularidade, a corporeidade, a ludicidade, a cooperatividade e a oralidade, formam esse
conjunto de valores civilizatórios de origem africana distribuídos nas esferas sociais e culturais da
população negra, que tem como característica vital a afirmação da vida.
O próprio ato das entrevistas traz a oralidade. Os eventos musicais durante todo mês trazem
a ludicidade, e o fato de a família toda trabalhar no bar traz a cooperatividade. A corporeidade é
vista na valorização do corpo como arquivo de conhecimentos e, como Kanu Nascimento disse: “o
Dida, ele acabou sendo uma convergência de várias questões, na realidade, é. Foi uma
possibilidade de a gente colocar pra fora o que teve dentro da gente, né? Eu falo a gente como
população negra, como um todo”.
Através de objetos materiais ou imateriais, como pudemos observar no bar, com a
transformação do ambiente para incluir uma diversidade de eventos, vemos que sem movimento
não há transformação. Para acontecer qualquer mudança, a ação foi essencial para modificar a
existência.
Há um respeito aos mais velhos. A matriarca da família, Dona Dida Nascimento, alcança
os objetivos do seu projeto culinário africano com o auxílio dos filhos, afilhados e amigos. A
maioria das criações do bar (a decoração, as pesquisas sobre os pratos africanos) são ingredientes
trazidos pelas diversas pessoas que circulam ou circularam sua vida.
Desde o pai, que pesquisava sobre África – lembra ela de sua infância, durante a entrevista
–, até uma sobrinha que precisava comemorar sua formatura. O que inspirou Dona Dida a fazer
uma festa africana em sua casa, dando início ou retomada ao seu projeto familiar de louvar sua
ancestralidade através da culinária africana.
Podemos ajustar a existência de negociações de saberes e sabores durante esse constante
movimento de ir ao passado e estar no presente para ressignificar a existência de corpos negros
dentro da música e da culinária, heranças sobreviventes da Diáspora (SANTANA JÚNIOR, 2017).
Nada se perdeu durante a mistura do tempo, e há uma renovação constante para continuar a
ocupação de espaços na cultura. Precisamos descansar feito Obatalá 34, mas não deixamos queimar
os quitutes tão deliciosos de nossos ancestrais.

34
Obatalá é o rei do branco. Obá: rei; talá: branco.
49

2.4 Iniciação do pensamento decolonial em análise da culinária afro-brasileira

Inspiramo-nos no modelo de descrição etnográfica que José Jorge de Carvalho realizou


com a música contemporânea em seu ensaio Transformações da sensibilidade musical
contemporânea. Ele nos diz: “a ideia de uma descrição densa implica um certo fechamento ou uma
delimitação do universo observado” (CARVALHO, 1999, p. 55). No mais de seu texto, a sugestão
de Carvalho é de uma descrição leve, a fim de que se possa abrir caminhos de (re)leitura e
(re)observação do espaço contemplado.
Assim fizemos com a descrição dos pratos sobre sabores, texturas e gosto. Estes não foram
tão detalhados. Para que sejam provados algum dia ou, ao menos, imaginados por nossos leitores.
Outro fator que colaborou para a utilização desse método foi a questão da existência. O bar está
vivo, no presente do tempo e, principalmente, aberto para qualquer um degustar seus petiscos e
refeições e conversar com Dona Dida e sua família. Isso amplifica a possibilidade de deixar a
etnografia em “regime semiaberto”.
É mais expansivo do que servir a culinária de um bar aos olhos de quem nos lê, estamos
descrevendo um local de reafirmação da identidade negra, que percorre o passado da história de
seus familiares para construir, na coletividade, o presente de resistência negra no agora do nosso
tempo. Esse é um espaço comum para as diversas formas de família negra.
Em O olhar etnográfico e a voz subalterna, de José Jorge de Carvalho (2001), o autor se
refere ao fazer etnográfico nos países do continente americano colonizados pelos europeus há
séculos (XV-XVIII). A antropologia tem origem como ciência no continente europeu, sendo
assim, seu método está carregado de pressupostos de alteridade, como a maioria das ciências
existentes no Ocidente e organizadas pelo homem branco europeu.
Após as lutas de independências dos países latinos durante os séculos XVIII e XIX, eles se
tornaram libertos da organização política dos países colonizadores. Entretanto, tudo o que Espanha,
Portugal e Inglaterra inseriram, à base de coerção na América, em matéria de cultura, arte, política,
modo de trabalho e até simples hábitos de fazer uma refeição, permaneceu e continua no modo de
ser das sociedades latino-americanas (EL-KAREH, 2012, p. 43).
Pensando no caso da etnografia e da Antropologia, a possibilidade de diálogo com Eduardo
Viveiros de Castro colabora com essa virada de pensamento em que o nativo é o próprio
pesquisador do seu local de cultura, enquanto sujeito, que sempre foi, pensante. Sua escrita tem o
próprio sabor do que ele é, ou seja, sua experiência, sua vivência e seu olhar não estão distanciados,
não são “diferentes”.

O nativo é, sem dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas


se ele é objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo,
50

a expressão de um mundo possível, ao mesmo título que o pensa o antropólogo [...]


Tal problema não é cognitivo, ou seja, psicológico; não concerne à possibilidade
empírica do conhecimento de uma outra cultura. Ele é epistemológico, isto é,
político. (CASTRO, 2002, p. 119)

As pluralidades de gnoses (saberes) dos africanos, amplificadas no pensamento fronteiriço


da colonialidade do saber (MIGNOLO, 2003), são evidências do afastamento que fizeram das
epistemologias ocidentais, que são rígidas e tratadas como a única história para ser considerada
científica. O que os autores decoloniais projetam em sua escrita são movimentos que rompem com
esse tipo de pensamento, a ideia é contar a história pela nossa perspectiva, com nossos saberes
criados e reiventados.
De que forma seria essa prática de reconhecer o “nativo” como sujeito nas pesquisas
etnográficas? Os estudos pós-coloniais justamente rompem com o discurso de que ele não pode ser
autor de seu próprio locus de enunciação. O nativo se torna o pesquisador/etnógrafo. Ele já não é o
observado, mas sim o observador (vivente) da dinâmica social, cultural em que está inserido no
presente.

a voz do nativo ainda não é vista como voz subalterna. Na perspectiva pós-
colonial, a questão já não é apenas a voz nativa, como a do outro diferente, mas o
reconhecimento das condições históricas e políticas de construção de alteridades,
submetidas a um regime colonial de subalternidade. [...] trata-se de deslindar os
mecanismos de articulação do nativo (o objeto etnográfico) junto com o etnógrafo
(e sobretudo o etnógrafo do país periférico), ambos, na verdade, enquanto sujeitos
coloniais (ou neocoloniais). (CARVALHO, 2001, p. 128, grifo nosso)

Submetemos as construções históricas e sociais do campo de pesquisa a esse método de


respeito. Dessa forma, a relação de alteridade é rompida, pois quem pesquisa é também fruto da
colonialidade e, neste momento, tem a “tarefa de decolonização das paisagens mentais”
(CARVALHO, 2001, p. 111) que foram impostas e pode fazer um trabalho decolonial.
Modificamos o locus de enunciação, como diz Walter Mignolo (2003). Agora, nossa tarefa é
esmiuçar os argumentos centrais do pensamento decolonial.
Existe um legado de séculos de colonização territorial e, além do mais, da forma de
colonização coercitiva: para que sua supremacia de poder fosse aprovada como a superior, foi
necessário apagar, silenciar todas as culturas locais já existentes antes de 149235.
A partir dos séculos posteriores, estruturaram-se relações de colonialidade de controle
econômico, político, da natureza, dos recursos naturais e da subjetividade nas colônias e nos corpos
dos colonizados. Ou seja, o colonialismo e o colonizador, com a colonialidade do poder, do saber e
do ser, exerceram domínio sobre o território físico, sobre os corpos, o consumo, o conhecimento e o
imaginário dos colonizados. Destacando-se que a modernidade nasceu justamente com essas

35
1492: ano do “Descobrimento da América”.
51

relações desiguais e hierarquizadas de trabalho, raça e gênero impostas pela colonialidade


(BALLESTRINI, 2013).
Estamos trazendo à mesa os conceitos de Anibal Quijano e Walter Mignolo pela
compreensão de Luciana Ballestrini para elucidar o quanto a experiência colonial causou
consequências na América, não somente aos povos indígenas, mas aos africanos escravizados. O
povo negro está intrinsecamente ligado a essa ferida colonial, devido ao genocídio, à
marginalização e ao racismo que foram construídos desde a criação da divisão de trabalho de
acordo com a cor de pele.
A colaboração da leitura decolonial é uma forma de combater a colonialidade, junto com a
população negra e de analisar as estratégias de existência e de resistência construídas a partir da
ferida colonial. Por isso utilizamos esse referencial teórico. Antes, para entendermos a colonialidade
do poder, precisamos nos remeter ao colonialismo e, depois, às formas de dominação política, social
e cultural sobre os dominados no período colonial.

[…] fue establecida una relación de dominación directa, política, social y cultural
de los europeos sobre los conquistados de todos los continentes [América, África,
Asia]. Esa dominación se conoce como colonialismo. [...] no obstante que el
colonialismo político fue eliminado, la relación entre cultura europea, llamada,
también, ‘occidental’, y las otras sigue siendo una relación de dominación colonial.
No se trata solamente de una subordinación de las otras culturas respecto de la
europea, de una relación exterior. [...] Consiste, en primer término, en una
colonización del imaginario de los dominados. [...] La colonialidad, en
consecuencia, es, aún, el modo más general de dominación en el mundo actual, una
vez que el colonialismo como orden político explícito fue destruido. Ella no agota,
obviamente, las condiciones ni las formas de explotación y de dominación
existentes entre la gente. (QUIJANO, 1992, p. 11-12, 14)36

Após as lutas de independência, com a retirada do domínio europeu na América Latina, caiu
o poder político europeu sobre o território das Américas. Entretanto, a cultura europeia, considerada
também como ocidental, permanece nas relações de mercado, de compra e venda de produtos; são
valorizados aqueles de origem ocidental. Os produtos importados são considerados “melhores” do
que os nacionais. É dessa forma que Quijano demonstra como a colonialidade do poder e do ser
permanecem no imaginário nos colonizados.
Podemos pensar, juntamente com as palavras de Dona Dida, sobre “porque” eles conhecem
e nós “não conhecemos” nossa própria cultura:

36
Em português: “[…] estabeleceu-se uma relação de dominação direta, política, social e cultural dos europeus sobre os
conquistados de todos os continentes [América, África, Ásia]. Essa dominação é conhecida como colonialismo. [...]
embora o colonialismo político tenha sido eliminado, a relação entre cultura europeia, também chamada de ‘ocidental’,
e as outras continua sendo uma relação de dominação colonial. Não se trata só de uma subordinação das outras culturas
à europeia, de uma relação exterior. [...] Consiste, primeiramente, em uma colonização do imaginário dos dominados.
[...] Consequentemente, a colonialidade é, ainda, o modo mais geral de dominação no mundo atual, uma vez que o
colonialismo como ordem política explícita foi destruído. Ela não esgota, obviamente, as condições nem as formas de
exploração e de dominação existentes entre as pessoas” (QUIJANO, 1992, p. 11-12, 14, tradução nossa).
52

nossos ancestrais, como eram? Como viviam? Porque, por exemplo, você vê o
italiano... o italiano sabe lá da raiz dele da mama de mil novecentos e tal e das
tradições dele. É isso aí que eu vejo... as outras pessoas, os outros povos... eles,
gente, não conhecem tanto nossas tradições, não é? Uma coisa que eu faço e
parece quase impossível... de saber as coisas lá dos seus avós e bisavós... de onde
eles vieram? Quais as tradições deles? Porque vieram muitos... muitos “príncipes”
e “princesas” vieram... chegando aqui no Brasil... aqueles... os mais fortes, e os
mais fracos ficaram no oceano, faleceram... aquela coisa toda. Então vieram os
mais fortes. Então nós somos descendentes de pessoas fortes. Eu acho legal a
gente saber nossas histórias de uma forma ou de outra. Somos todos... quase
120 anos de Abolição, então, de Escravatura muito mais. É... da gente saber,
houve uma evolução. Eu quero também uma evolução, eu não quero falar
muito na tristeza da Escravidão, vamos... vamos ver como estão os países
hoje? O que está acontecendo, né? Principalmente através da culinária, que eu
gosto.37

Vejamos a quantidade de indagações feitas por Dona Dida sobre por que as tradições dos
“outros” são valorizadas e a cultura negra não. O saber é ressaltado para potencializar o presente e,
quiçá, o futuro. A origem de nossos antepassados é considerada primordial para termos
conhecimento “de quem fomos e de quem somos” na atualidade. Percebemos pelas suas palavras, a
vontade de (re)construir a história da sua própria família negra, dando margem ao pensamento de
que será uma contribuição para formar outras famílias negras e para que elas também conheçam sua
própria história.
Santana Júnior ressalta para nós como se deram as formações e os laços familiares no tempo
passado a que Dona Dida se refere:

No contexto do intenso processo de escravização dos povos africanos, as relações


que deram origem à formação da família negra, na América Portuguesa, foram
iniciadas ainda nas embarcações que eram utilizadas para o tráfico dos negros,
saindo do Continente Africano. A partir da chegada dos negros à América
Portuguesa, a senzala constituiu-se enquanto território de grande interação dos
indivíduos que vieram de diversas localidades, com seus costumes e línguas.
Chegando às fazendas, os negros africanos escravizados – que foram retirados de
suas famílias e de seu território de origem – deram continuidade aos laços que
começaram nas embarcações, assim como criaram novos laços nesse novo local,
onde o caráter consanguíneo não era o elo, mas sim as semelhanças e diferenças.
Assim, a família negra começa a ser formada na América Portuguesa, em meio ao
regime escravocrata, como forma de existir dentro de um regime que os
coisificavam, desumanizaram esses indivíduos. (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 24)

Ela descreve, ainda, os escravizados que chegaram aqui como “príncipes e princesas” fortes,
enaltecendo a importância de humanizar seus antepassados e apontar o quanto elas e eles eram
pessoas importantes dentro dos locais de que foram arrancados à força a fim de serem inseridos no
sistema escravocrata do Brasil.

37
Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017.
53

O tempo presente é valorizado na fala de Dona Dida. Ela fala do passado, mas o presente
está lá como “evolução”. Esse movimento de procurar saber da sua história e de ressignificá-la com
elementos do passado para valorizar sua identidade no agora é um movimento de existir e resistir.
Ela diz da Escravidão, mas não quer saber apenas desse período de mazelas. Existiu toda a
violência e o silenciamento sobre a memória, a cultura, o conhecimento da cultura negra, porém, ela
incorpora o sentido de redobrar a atenção para as heranças recebidas hoje, que foram formas de
existir e resistir no passado. Quer mostrar as transformações, as modificações que foram repassadas
às gerações com o ingrediente principal dito por ela, a culinária.
Aqui, mistura-se o refogado: Dona Dida, matriarca do seu bar, pesquisa sobre os países
africanos e sua culinária para servi-la no cardápio enquanto busca contar sua própria história, como
fazem “os italianos”. E, ao mesmo tempo, serve na bandeja a valorização da história do negro no
Brasil, na perspectiva humanizada e com o compromisso de contar essa história com elementos
potencializados, no caso, o fato de serem seres humanos que tinham profissões qualificadas, títulos
de nobreza do território africano antes do deporto aqui no Brasil. Quando desliga o fogo para ver se
já está pronto esse feijão, percebe, entre a fumaça e o cheiro dos temperos, as características do
projeto decolonial.
A proposta do discurso decolonial é romper com os espaços de fala do colonizador e pôr à
mesa toda a história que aconteceu à margem do sistema colonial, que sobreviveu às mudanças do
tempo e que, hoje, está entre nós, nos sobreviventes, através das ações de reinvenção.
A experiência dos escravizados deve ser destacada com os seus modos de existência no
período colonial. Apesar de toda violência, havia formas de existir que, hoje (e ontem), são
consideradas formas de resistir.

Aqui reside uma importante diferença entre o projeto decolonial e as teorias pós-
coloniais. Essas tematizam a fronteira ou o entrelugar como espaço que rompe o
binarismo, isto é, onde se percebe os limites das ideias que pressupõem essências
pré-estabelecidas e fixas. Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras
não são somente este espaço onde as diferenças são reinventadas, são também
loci enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das
perspectivas, cosmovisões ou experiência dos sujeitos subalternos. O que está
implícito nessa afirmação é uma conexão entre o lugar e o pensamento.
(COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 19, grifos nossos)

Os laços de existência são colhidos no entrelugar e na fronteira onde foram abertos espaços
de criação de saberes e conhecimento durante a experiência de escravização. As teorias pós-
coloniais pressionam um retorno do que “eram antes” da experiência de escravizados. Já a
decolonial expõe o que foi feito durante o período de “fronteira” vivenciado por negras e negros, no
caso, aqui no Brasil. O que (re)construímos dentro do território em aspectos sociais e culturais.
54

Neste momento, está nítida a nossa filiação com o projeto decolonial, pois, apesar de haver
uma necessidade de conhecimento sobre quem são nossos antepassados, existe a chance de
potencializar o que foram essas heranças de sobrevivência (re)inventadas, que são até hoje
cultivadas no seio de famílias negras. A possibilidade de observar o bar com uma perspectiva
decolonial advém da própria dinâmica de experiência experimentada durante os eventos
organizados pela família Dida.

2.5 “Não dá pra fazer planos de negócios sem amor”

A parceria entre estudantes africanos da UFRJ e o bar rendeu um caldo. No final de semana
dos dias 17 e 18 de junho de 2017, o Dida Afro recebeu o estudante de Gastronomia Ernani Lima
Moraes, do Cabo Verde, e a estudante de Enfermagem Elodie Camelle Lokossou, do Benim.
Ambos universitários da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A convite de Dona Dida, eles participaram do final de semana com culinária africana,
referente aos seus países de origem. Dona Dida os conheceu no “I Encontro Celebrando a África e
comendo Cultura”, ocorrido no dia 24 de maio de 2017, dia de África. O idealizador do evento
havia sido o próprio Ernani. O encontro teve o objetivo de explanar e difundir a cultura alimentar
africana, com a participação de alunos africanos, que palestraram sobre cultura, culinária e África.

Figura 13: Flyer do evento: “I Encontro Celebrando a África comendo Cultura”.

Esse evento proporcionou a aproximação entre os estudantes e Dona Dida, causando o


convite para adentrar sua cozinha e homenagear a história de Cabo Verde e do Benim com a
culinária dos respectivos países, o primeiro no sábado e o segundo no domingo.
55

Na entrevista feita após alguns dias do final de semana Dida Afro de junho, Dona Dida
expressou sua satisfação em trabalhar em conjunto com Elodie e Ernani. Ela nos contou sobre o
quanto gostou de que eles contassem as histórias da cultura alimentar de seus respectivos países,
Benim e Cabo Verde, aos clientes que chegavam para almoçar no restaurante interessados nas
histórias dos pratos cozidos pelos estudantes:

Quando você sai do seu núcleo, você começa a pegar um monte de informações. E
o que acontecia comigo talvez seja porque eu tenho tanta coisa, tanta tarefa aqui.
Eu não estava conseguindo enxergar isso... eu estava falando, mas não estava
enxergando, entendeu? Eu não estava enxergando... estava falando... eu sabia o que
queria, mas não estava encontrando. E eu acho que encontrei agora. São as coisas
que acontecem... eu acho que encontrei... tem é um trabalho de pesquisa, de chamar
pessoas, de convidar... Fiquei muito feliz que o cônsul esteve aqui... de Cabo
Verde... no sábado. Esteve aqui, entendeu? Eu acho que estou conseguindo essa
parte que eu falo da História. De procurar histórias que realmente... Histórias
que deverão ser contadas pela gente AQUI, entendeu? Eu achei assim um
máximo, eu adorei! (grifos nossos)38

Organizar um evento com a participação de africanos para contar suas histórias rompe com a
hegemonia do pensamento ocidental. A presença de pessoas com importância política, social e
internacional: o cônsul de Cabo Verde, por exemplo, também é outro ingrediente do projeto do bar
em diálogo com a teoria decolonial.
A preparação dos pratos desse final de semana deu a conhecer a culinária africana e, em
consequência, a história da família dos próprios convidados (Elodie e Ernani). A partir desse
entrosamento de histórias culinárias de lá (África) e de cá (Brasil), pensamos em fazer uma escrita
gastronômica cultural sobre o Dida Bar e Restaurante.
Durante a entrevista, Elodie Camelle Lokossou, que cozinhou o Aiwó no dia do Dida Afro,
falou do significado afetuoso e político do prato em sua família no Benim:

Essa comida, Aiwó, é... na minha casa, quando eu estava no meu país... é uma
comida que a gente fazia todos os primeiros dias do mês de agosto. Porque é um...
esse dia é o dia da Independência do país, então já estamos acostumados a fazer
essa comida, principalmente nesse dia. Mesmo se minhas irmãs mais velhas...
quando elas se casaram, saíram de casa... nesse dia, todo mundo pensa nessa
comida. Até tem uma irmã mais velha, ela estava na casa dela só que ela ligou e
falou: “Mãe, tô chegando, tá? Não come tudo!”. Nossa mãe falou: “Mas como você
sabe que é essa comida?”. É sempre essa. Que a gente já acostuma. É... realmente,
nesse dia, era essa a comida que a gente fez em casa. (grifo nosso)39

38
Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017.
39
Entrevista concedida por Elodie Camelle Lokossou, aluna de Enfermagem da UFRJ, beninense, que participou do
Dida Afro (evento mensal do Dida Bar e Restaurante – nosso campo de pesquisa).
56

Figura 14: Aiwó40.

O entrosamento da culinária com a comemoração da independência do Benim aproxima-se a


uma característica da decolonialidade, já que potencializa a culinária local dentro de um dia que
simboliza a liberdade da ação colonial sobre o país. Essa estratégia amplifica as ações de
valorização do que pertence à cultura do Benim e é uma partícula de análise sobre como estratégias
decoloniais dentro do seio familiar podem atingir ou transformar outras famílias.
Momentos importantes na vida são comemorados com muita festa, música e, claro, muitas
comidas. Estes são elementos da herança dos africanos que aqui chegaram no século XVI e
acompanham, até hoje, as festividades dentro das casas da população (SANTANA JÚNIOR, 2017).
O evento traz o significado de renovação de energia, pressuposto básico também da
culinária afro-brasileira, pois alimentar-se é ingerir nutrientes, vitaminas e minerais para repor as
energias perdidas durante um esforço físico ou qualquer atividade diária. Essa tríade de festa,
música e culinária é permanente no âmbito das atividades do DBR desde sua primeira Festa
Africana.
Para comemorar a formatura de quatro membros da Família Black 41 (Renatinha, Monique,
Juno e Kanu), em outubro de 2010, aconteceu a primeira Festa Africana da Família Dida. Durante o
dia, tiveram apresentações de dança afro, capoeira, samba de roda, Jongo e almoço com
“paneladas”42 trazidas pelos familiares dos integrantes da Família Black para a casa de Dona Dida
no Méier.
O prato principal ficou a cargo de Dona Dida, para “abençoar os tambores e chamar nossos
ancestrais”. O Carril de Camarão é oriundo de Moçambique, “a iguaria é preparada com camarão,
vem em molho espesso de tonalidade amarelada, com toques de açafrão, cominho, coentro e curry.

40
Aiwó (Aiw: óleo; ó: massa) é “um prato de farinha de milho, só que a diferença é a cor vermelha e também se
cozinha com um pouquinho de óleo” (Elodie Camelle Lokossou).
41
Círculo de amizade composto de amigos e familiares da Dona Dida que faziam churrasco na casa dela e juntavam
dinheiro durante o ano para promover viagens da Família Black.
42
Expressão de domínio popular que significa “panela grande com comida em grande quantidade”.
57

Para tornar mais saboroso é servido no abacaxi.”43 Lá, cada família tem seu curry (mistura de
diversos temperos), e Dona Dida também fez o seu aqui.

Figura 15: À direita, Carril de Camarão acompanhado de arroz e farofa de dendê.

A partir dessa primeira festa, veio a vontade de fazer outras comemorações e de construir
um bar. A segunda Festa Africana aconteceu com a formatura de sua filha Stefanie e de Luana
(amiga de Salvador-Bahia). Como a festa e a família cresceram, tiveram outro espaço para
comemorar as formaturas: o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Lá, realizaram a
“Festa da Família Preta”, em 2013, com diversas atrações musicais e artísticas:

Figura 16: Flyer da Festa Africana organizada por Dona Dida em 2013.44

Acompanhamos a trajetória da família por sua história de realizar o sonho da matriarca,


Dida, de dar continuidade ao legado de sua família: o bar, fazer música e cozinhar com perspectivas

43
Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.
44
Disponível em: <http://recuperacaodoipcn.blogspot.com.br/2013/>. Acesso em: 21 jan. 2018.
58

afro-brasileiras. Sua mãe e seu pai já desenvolviam projetos na Pavuna e no Méier, relacionados
com identidade, cultura e culinária afro.
Então, Dida deu continuidade à herança familiar, vitalizando-a com elementos do seu
presente, como a divulgação. O marketing do projeto é feito por uma especialista na área. Mas, na
essência, as articulações de conhecimento e os laços familiares foram construídos há décadas, desde
sua mãe, por isso eles conhecem muitas personalidades do samba. E isso aumenta a sua rede de
amigos que fortalecem o projeto dentro do bar.
Percebe-se que a união entre os valores afro-brasileiros, a circularidade e a família negra são
elementos ativos para se considerar que um bar pode ser decolonial: é justamente quando a força
dele está nas raízes da ancestralidade.
59

CONSIDERAÇÕES DE UMA RECEITA

Após horas de árduo trabalho na cozinha preparando os quitutes, está na hora de conferir o
resultado da receita. Está na hora de servi-los e alimentá-los para que a energia seja renovada em
vossos corpos.
O corpo é um território (SODRÉ, 2002) guardião de valores civilizatórios afro-brasileiros
com seu modo de ser baseado na diversidade das culturas africanas. “É através do corpo que
vivemos e existimos no mundo e, assim, este é valorizado por uma população que foi retirada do
seu território de origem e trazida para o Brasil somente com seu corpo” (SANTANA JÚNIOR,
2017, p. 26). O escravizado foi arrancado de sua terra natal e de sua família, foram retirados todos
os seus bens materiais, rompendo-se, portanto, sua linhagem familiar e cultural.
O corpo torna-se um instrumento importante para salvaguardar suas memórias, saberes e
valores. A diáspora negra em território brasileiro começa a produzir uma cultura fundada em
valores civilizatórios africanos: oralidade, coletividade, corporeidade, ludicidade e circularidade são
dispositivos de cultivo da ancestralidade vivenciados no presente.
Trouxemos a circularidade como símbolo principal experimentado nas rodas de samba e nas
rodas de conversas relacionadas à literatura afro-brasileira do Dida Bar e Restaurante. E, também, o
ato de fazer na culinária afro-brasileira, envolvendo a prática de movimentar as mãos para misturar
os ingredientes, as substituições de ingredientes (a troca do azeite de oliva pelo azeite de palma, por
exemplo) na cozinha.
Nós nos ressignificamos pelo modo de ser cíclico e não linear. A circularidade tem a
possibilidade de renovar energias, transmitir sabedorias, transformar os sabores quando se misturam
vários ingredientes até alcançar o sabor desejado.
A culinária afro-brasileira foi explorada nesta dissertação como uma maneira de conexão
com a ancestralidade, referente à identidade negra através da cozinha, lugar onde os laços de
herança matriarcais são potencializados nas lembranças dos sujeitos da pesquisa. Sendo essa a
grande motivação para produzir um projeto de um bar com o cardápio de comidas africanas e afro-
brasileiras. Elementos apresentados no discurso dos sujeitos nas entrevistas livres no decorrer da
pesquisa.
As africanas e os africanos retirados de seu território à força, de África para o continente
americano, fizeram do seu corpo reduto de memórias sobre o conhecimento de seus ancestrais. Seu
corpo-território tornou-se o principal agente de arquivamento de seus saberes, que são, aqui,
reinventados com estratégias de criatividade. Os seus valores civilizatórios, como a circularidade,
são reorganizados em dispositivos marcados por símbolos, por exemplo, a roda. Presente na
60

capoeira, no jongo, na roda de samba.


Marcamos a culinária afro-brasileira também como um dispositivo em que está presente esse
valor, no uso de ferramentas mais naturais na cozinha, como a colher de pau para girar a comida na
panela. Destacamos a autopreservação como um saber, uma estratégia, feito a que a natureza faz, de
permanecer ativa, viva (AKBAR, 1984).
A preservação de um prato se faz com negociações constantes, como podemos observar
quando não se tem a farinha de fazer o fufu e esta é substituída com criatividade por outra farinha
de mandioca. Percebemos, aqui, uma permuta de ingredientes com o objetivo de não deixar de fazer
a comida africana no dia do Dida Afro.
Essa é uma estratégia de continuar sua existência e, cada vez mais, amplificar sua cultura
através do ato de alimentar-se com pratos de reinvenções criativas feitos pelos seus antepassados e
que continuam em nós, porque a terra pode nos fornecer a vida. Nesse caso, a natureza é
extremamente importante para não deixar uma herança imaterial falecer.
Por isso, devemos ter respeito e cultivar cada vez mais os bons frutos, nomeados por Raul
Lody originais de África: inhame, quiabo, dendê e jiló. A fim de potencializar o valor da identidade
negra presente nos pratos com esses legumes, que o bar oferece no cardápio: Mufete, Caruru,
Acarajé, Jiló recheado. Portanto, o bar faz esse exercício de pertencimento através da experiência
gastronômica de sabores africanos para reafirmar a identidade negra.
Num mesmo espaço, percebemos a diversidade das criatividades e reinvenções feitas pela
diáspora Negra no Brasil: a culinária, a música e a literatura. Apresentamos esses ingredientes como
estratégias de resistência às epistemologias ocidentais a partir dos saberes transmitidos entre as
gerações na família Dida.
Os pais da Dona Dida são apresentados por ela como os primeiros com quem teve a
“experiência” de montar uma barraca, pesquisar sobre a cultura e a história da África e promover
festas em família com elementos da cultura negra. Movimentando, assim, práticas de resistência
relacionadas à culinária e à música.
Deles também vem o incentivo para a qualificação profissional a fim de ocupar os espaços
de trabalho negados no passado, ou seja, a importância da instrução da população negra para
enfrentar a sociedade excludente e racista que ainda não promove políticas permanentes à ascensão
da população negra na sociedade, apesar da evolução na legislação.
Esse valor também está entre os objetivos de Dida para com os filhos. Tanto que
observamos que tudo começa com uma festa africana para comemorar as formaturas dos mais
jovens da família Nascimento. Portanto, a origem identitária e os valores da educação são essenciais
para combater o racismo.
A casa é o espaço de receber as festas, recepcionar os amigos e criar os laços de
61

solidariedade, apontados por Dona Dida como o princípio do projeto, “como tudo começou”. Por
isso, o lar é apresentado como o reduto de fortalecimento, com práticas artísticas e gastronômicas.
Existem aprendizagens multissensoriais na prática de ouvir músicas relacionadas com sua
origem, como o samba, por exemplo. Escutar as criações artísticas de cantoras e cantores negros
durante esses encontros promovidos nas primeiras festas africanas da família “Black”, escolher um
prato de Moçambique (Carril de Camarão) correspondendo à comemoração das formaturas das
negras e negros da família. Tudo isso são formas de aprender sobre a identidade e a cultura negra
experimentando-as. Formas de “aprender fazendo”.
O bar reformado acolhe os mesmos pressupostos da casa, com as festas e a culinária. As
atividades continuam sendo construídas na coletividade. O bar é dito como a extensão da casa:
“aqui eu bebo, como e me divirto”, são as palavras de Dona Dida abrindo o evento de roda de
conversa com Conceição Evaristo.
O bar/casa casa/bar é, pelo que pudemos observar com a pesquisa, um estabelecimento
comercial baseado nos princípios da família negra Nascimento, e com muito afeto. No salão,
acontecem trocas simbólicas materiais e imateriais atravessadas justamente por elementos já ditos
aqui: música e culinária.
O que nos foi retirado de primeiro na travessia do Atlântico? O afeto. E o afeto atravessa as
relações dentro do bar. Iniciando pela matriarca, que recepciona todos os clientes com carinho e
atenção. Característica retirada do seio da família e levada aos seus clientes, tratando, assim, todos
como parte dessa família. O amor é o prato principal. O seu amor pelo ato de cozinhar não é levado
apenas à cozinha, mas aos negócios e à clientela do bar.
Com as leituras decoloniais, vinculadas à etnografia do bar e à trajetória da família de Dilma
Nascimento, a dona Dida, fomos, aos poucos, observando que suas ações são recheadas de
decolonialidade (WASH, 2009). Isso é perceptível a partir do momento em que ela transforma a
ferida colonial em criatividade dentro do território do bar. E também no ato de fazer pesquisas sobre
a culinária africana, e de trazer as receitas para sua cozinha, substituindo ingredientes que não são
encontrados no Brasil.
Essa é uma característica de quem desenvolve um conhecimento em oposição às
epistemologias ocidentais (MIGNOLO, 2003). Ela acessa conhecimentos através de sua linhagem
de parentesco, sua mãe e seu pai, que lhe ensinaram o cultivo de procurar a origem de seus
antepassados e de fazer reuniões com o propósito de festejar, mas também de batalhar para que
mais pessoas negras tivessem acesso a esse conhecimento, usando representantes do pensamento da
cultura negra, na música ou na culinária.
Ao oferecer um cardápio uma vez ao mês com bandeiras de diferentes países africanos,
buscando contatos com africanos residentes no Brasil para cozinhar em sua cozinha, como vimos na
62

análise do Dida Afro de junho, com Benim (representado por Elodie) e Cabo Verde (por Ernani),
Dona Dida nos ajuda a dizer que esse evento tem perspectiva de prática decolonial, por se afastar da
história única, universal, promovida pelos ocidentais. O bar mostra seu objetivo de apresentar aos
clientes uma diversidade de histórias africanas e suas culturas gastronômicas.
Seu histórico familiar e suas ações de (re)existência e resistência são importantes dentro do
espaço da gastronomia brasileira e do polo gastronômico da Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro,
com a comida africana e/ou afro-brasileira e a musicalidade negra. Assim, ela tempera sua luta com
características decoloniais. Portanto, a partir da pesquisa, percebemos o Dida Bar e Restaurante
como um ponto de diálogo da intelectualidade decolonial.
Essas foram nossas possibilidades de leitura na duração do mestrado. O campo continua
aberto para uma pesquisa de doutorado a fim de esticar cada vez mais os saberes e sabores das
pesquisas sobre as práticas de resistências e (re)existências criadas pela população negra na
Diáspora no Brasil. No futuro, pretendemos ampliar a dissertação com uma discussão sobre gênero,
por se tratar de um bar liderado por uma mulher negra.
Que a escrita gastronômica utilizada com pressupostos decoloniais contamine os sentidos de
mais estudiosos negros e negras. E que mais famílias negras sejam pesquisadas, potencializadas e
acolhidas no âmbito da pesquisa acadêmica no Brasil.
Alimentação é vida. E manter a vida foi a prioridade de nossos ancestrais, por isso, em nosso
corpo, há vestígio de força, fome e luta. O corpo não podia apresentar afeto, o corpo era um objeto
material de uso exclusivo do trabalho braçal. Mas toda essa carga afetiva reprimida podia ser
conduzida à criatividade de escolher os alimentos e tratá-los com cuidado e carinho. Então, durante
o preparo dos pratos era possível depositar sentimentos afetivos.
Será que por isso o ato de cozinhar é tantas vezes comparado ao amor? Na cozinha é tudo
quente, cheiroso, sempre há possibilidade de fazer mais e mais comida e de inventar delícias doces
ou salgadas para agradar a todos. Principalmente para quem se coloca lá de corpo e alma,
aproveitando cada herança adquirida ao fogo das panelas.
Talvez até mesmo a dor dos escravizados tenha sido transformada em um modelo de
cozinhar brasileiro, com amor, que é tão elogiado internacionalmente. Percebemos a importância de
pesquisar as origens de nossa história afro-brasileira e da história do negro no âmbito da culinária,
para que nós tenhamos respeito por nossas criações e possamos honrar nossos ancestrais.
63

Figura 17: Dida, Stefani, Kanu e Matheus Nascimento. Foto: Thiago Braz.

Ninguém amarga nosso paladar!


Axé!
64

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69

ANEXO A - Entrevista com Dona Dida

Nome: Dilma Nascimento

“Então eu tive a experiência de ficar com a minha mãe que ela tinha um butequinho, uma
barraca, a gente até chamava de barraca né ela parou de trabalhar né ela era cozinheira de bar,
botequim. Ai, ela parou de trabalhar e começou fazer alguma coisa em casa ai começou com
empadinha começou com um monte de coisinhas assim pequeninhas.
E a gente também tinha o hábito mesmo ela trabalhando fora, de fazer comida para pessoas nos
finais de semana nas casas das pessoas.
Hoje o negócio está mais chique e que você fala que vai contratar um chef de cozinha que vai
fazer uma comida tal para você, aquela coisa toda no final de semana para você receber os amigos.
Então antigamente não era assim, a pessoa era, o que acontecia, não tinha antigamente era
cozinheira era como se fosse a empregada da casa que estava ali pra fazer comida. Hoje o negócio
está mais sofisticado.
Então ai eu comecei gostar de fazer comida né, porque eu também trabalhava, sempre trabalhei
e estudei. Então nunca me dediquei assim pra cozinhar. Depois casei, continuei a trabalhar e só
fazia comida no final de semana.
Mas minha mãe já tinha aberto a birosquinha dela foi na Pavuna, era na Pavuna. Foi numa
época que ela tinha separado do meu pai, e tudo. Então ela fazia alguma coisa para complementar a
casa. Ai começou fazer as comidas e meu irmão incentivou com o samba porque meu irmão
gostava muito de samba e capoeira.
Aí começa fazer roda de samba chamando as pessoas nessa é poxa eu já estava me casando, já
estava grávida. Foi minha mãe começou fazer as coisas foi no final de 70 inicio de 80. Me casei em
oitenta e pouco.
Aí quando a barraca já estava pegando fogo na época de pagode bom aquela coisa gostosa já
estava grávida pra ter filho e sempre ajudando ele sempre ajudando na barraca até que eu mudei pra
Pavuna porque eu trabalhava morava no Meier aí meu filhos, eu tinha meus filhos, meus dois filhos
lá no Meier. Então eu resolvi morar na Pavuna, porque não poderia olhar minhas crianças pra me
poder trabalhar. Foi ai que fui me tocando as coisas. Ai a gente ficou envolvido com a barraca,
envolvido com o no Centro. Porque além de ter a barraca, ela também era rezadeira. Até Achei unir
as coisas. Porque mesmo tempo que eu parecia uma pessoa que sentia mal, qualquer coisa lá no
pagode “Vem aqui meu filho vamô rezar, vamo atira essa dor não sei de onde”
E minha mãe, ela com até as pessoas antigamente conheciam muitas ervas, muitas ervas
mesmo. Então minha mãe. As vezes a pessoa chegava resfriada, minha mãe fazia um chá, as vezes
chegava com bronquite ela curava bronquite. Fazia simpatia de bronquite. Então tinha essa relação
de FAMÍLIA dentro do samba. Então era uma mistura muito boa. E a gente gostava muito daquilo.
E os filhos foram crescendo também, ouvindo aquilo. E minha mãe cansada né ela já não podia
mais ficar na barraca e eu tinha minha vida no meu trabalho.
Eu trabalhava numa empresa de energia em Niterói, que hoje é a AMPLA, antigamente era
CERJ. Eu era Economista da empresa. Fui economista durante muitos anos na empresa. Então eu
tinha que continuar com minha profissão ali dentro que graças a Deus eu estava indo e tudo eu
consegui chegar até o fundo de pensão em cargo de Diretoria e tudo. Mas nunca esqueci a barraca, o
samba, a comida, porque isso tá no sangue. Que quando eu me aposentar eu ia abrir um bar pra até
dar continuidade do que minha mãe fazia que a gente gostava. Porque nessa época eu estava
trabalhando, mas me envolvi com música, com banda, eu ia pra tudo quanto é lugar, me ajuda olhar
as crianças e então eu saia. Então eu gostei sempre gostei muito de samba.
Ai quando eu me aposentei né até me aposentar, mas continuei a trabalhar, mas uns três anos
atrás. Eu resolvi sair da empresa né eu acho que você tempo de vida laboral dentro daquela
empresa. Minha vida laboral na empresa, durou 35 anos. Foi 25 anos dentro da AMPLA e 10 anos
no fundo de pensão. Então eu acho que até passei do da idade de você estar ali dentro. Já tinha
acontecido tudo que tinha que acontecer. Eu achava ainda acho posso trabalhar, trabalhar bastante
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agora que tô vendo que estou trabalhando muito. Antigamente eu pensava que trabalhava. Mas
depois que você abre um bar e que você vê o que é trabalho mesmo. Isso tudo aconteceu comigo.
Ai, o Matheus já estava ligado a Gastronomia que ele já tinha feito curso de gastronomia.
Como eu gostava e queria continuar trabalhar. Ai a gente resolveu abrir um bar. O bar tem pouco
tempo. A gente tem muito trabalhado.
[Abertura do bar]
Foi dia 17 de março de 2015. Então a gente abriu neste dia. A gente assumiu, porque aqui já era
um bar, né. Então a gente pegou um ponto. A gente deu forma esse ponto. A gente botou nossa
identidade, a gente mexeu na comida, a gente usa alguns pratos que já tinha no bar que achava
interessante, outros pratos a gente começou colocar.
A música, o bar já tinha música. A gente começou colocar outros tipos de música né, estamos
até hoje.
Então essa é história do bar, chegar até aqui. Eu gosto.
Não só pra mim pra meus filhos aqui é como se fosse a nossa segunda casa eu pelo menos
passo mais tempo aqui do que, a minha casa né pra dedicação aqui tem que se dedicar.
Abre 12:00 mas você tem que estar aqui cedo. Quando você abre 12:00 para o público você já
com o almoço pronto você tem que estar com tudo.
Ai eu geralmente chego às nove horas não tem hora pra sair.
E mais os eventos. A gente tem que estar atento a todos os eventos e você tem que estar
alinhado a tudo. Então é muita dedicação. Mas como a gente por exemplo. Vim de uma área que
não vim do bar eu tinha a minha mãe tinha coisinha, a gente não tem experiência em bar e
restaurante. Então, a gente apanhou bastante, a gente ainda está apanhando pra alinhar as coisas,
não é. Então hoje eu já vejo, que a gente pode tá vendo outro lado do bar. A gente está juntando
experiência com conhecimento. Então agora a gente já tem o conhecimento, já tem uma certa
experiência, agora a gente vai estruturar as coisas. Pra ficar melhor, pro cliente e pra gente também.
Até agora a gente só apanhou né, foi bom. A gente já está com uma experiência, pra dar mais
um formato a vai entrar numa outra etapa.
Então é tudo que a gente gosta![risos]
Por que a gente já tinha, eu já fazia, na família reuniões com a família toda e amigos, pra fazer
festas. Eu gosto eu adoro fazer festas. Sempre gostei de festas então a gente, por exemplo, a última
festa que a gente fez a gente já fazia festa africana né, com tudo isso a gente vê aqui, a gente já tinha
o hábito de fazer. Então isso tudo também começou.
Deixa eu começar para você ter sequência...
A festa mesmo, a festa mesmo, a gente começou nessa nossa característica, na nossa linha,
nossa cara, começou com formatura. Porque tinha uma [....] Kanu[Thiago Nascimento] se formou,
ele fez Biologia isso já teve ter uns cinco, sete anos por aí ele fez Biologia, Ah... duas sobrinhas
minhas que são sobrinhas mas são amigas, mas eu chamo de sobrinhas. Formando em Jornalismo e
tinha o ex-namorado da minha filha da Elu, minha filha sobrinha que estava na Administração.
Então eu é queria valorizar isso, até mesmo porque o que aconteceu, a Renata. Tudo começou
por causa da Renata. A Renata tinha feito uma faculdade, Monique também fez faculdade particular
que tinha até existe sempre uma diferença, né. A formatura foi num lugar legal, aquela coisa toda.
Então tinha custo, não é pra você fazer uma formatura, geralmente, colégio particular. Você aluno
gasta dinheiro. Então aquele negócio. Então tinha um número limitado de convite. Então tinha um
custo pra isso. Como eu não podia levar, já essa turminha, que se reunia pra as festinhas eu resolvi
fazer uma festa, que chamassem essas pessoas, pra comemorar a formatura dos quatro, né. Que eu
achava que era uma coisa muito legal.
A gente negros é difícil estar chegando numa formatura. Eu já... eu já vi... já tive uma visão
porque o que aconteceu por meu pai, por exemplo. O meu pai, se fosse vivo hoje estaria com oitenta
e pouco anos, mais ele tinha 2ª grau completo. Então ele... Então não era só meu pai, minha mãe
também já tinha um pensamento voltado para estudos, então eu fui fazer minha faculdade né, eu fiz
minha faculdade, meus filhos fizeram faculdade. Bem, diferente de mim, porque eu fiz numa
faculdade particular, Então eu fiz investimento neles, mais eles passaram pra faculdade do Estado,
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né e da Federal também. Então eu achei assim a gente tinha que comemorar isso, né porque era
difícil você ver um negro se formando. Na minha época, por exemplo, na minha turma na minha
formatura de oitenta pessoas você podia contar uns quatro negros só.
Hoje graças a Deus não acontece mais isso, já tem bastante. Então eu achei assim que a gente
tinha que comemorar. Ai que veio a ideia de fazer a festa africana. Falei não, vamos fazer a Festa
Africana.
Vamos soar os tambores. Vamos chamar nossos ancestrais que eles vão ficar super felizes de
estar vendo isso, vendo nem sei como, iam ver mais as coisas iam acontecer, da gente pensar nos
avós e tudo e ver evolução.
Eram quatro pessoas se formando. No mesmo ano. O Kanu que se formou um semestre antes
ou um ano antes. Mas ele fez na UFRJ não teve formatura, só teve colação, não teve festa. Mas ai as
meninas não, já eram outra apegada, né aí pô no fim vamos fazer tudo junto. Então eram quatro
formaturas. Então eu resolvi chamar uma pessoa que era o paraninfo. Como se fosse o paraninfo
que o via o seguinte: que pra mim foi difícil lá quando eu me formei. Mas eu tive sorte. Tive um
professor da faculdade, que me ajudou muito né, não só a mim, mas também alguns negros, que
tinham dentro da faculdade, de tá encaminhando, orientando .
Eu não sabia se eles teriam isso né, é uma coisa muito difícil e também não queria que eles
desaminassem, porque você se formar é uma coisa difícil, às vezes você se forma e você pensa no
mercado de trabalho vai te abraçar aquela coisa toda e você vai ter muita dificuldade né, até para
conseguir um emprego. Você é... embora eles já falassem inglês, já tinham uma cultura toda, mas
tinha o preconceito, que é difícil você dar um emprego de nível emprego superior, pra um negro né,
ainda mais um tempo atrás. Agora com as cotas, isso tudo mudando bastante. Eu acho que as coisas
estão evoluindo muito, graças a Deus.
Então eu queria, a minha grande preocupação de passar pra eles, pra eles desaminarem nunca
né, que eles iam se formar, ia fazer festa, e eles iam é... eu era uma coroação e eles iam que tá
buscando o futuro, não desaminando aquela coisa.
Ai eu tinha como paraninfo, um negro que eu achava, tenho assim uma verdadeira admiração
por ele, que é o Prudente, Wilson Prudente, ele é promotor do trabalho, ele é uma pessoa que é
muito estudioso, isso me admirava muito, a dedicação dele, que era uma pessoa que passava em
concurso público, em vários concursos públicos, era uma pessoa muito estudiosa, é uma pessoa
estudiosa né. Então eu chamava ele, pra poder falar algumas coisas pra essas pessoas né. Então ele
fazia assim, chamava o Prudente, olha e falava: “Olha aquele cara ali conseguiu, então não é
impossível, não é”.
Eu graças a Deus me formei, no meu trabalho como Economista, não é impossível tem que ter
dedicação, ter disciplina, não é dizer que a disciplina que eu falo, também queria seja certinho
estudar vinte e quatro horas; porque eu não estudava vinte e quatro horas. Eu trabalhava, estudava,
ia pro meu pagode, mas sempre dentro dos meus horários né. Então, ai começou a Festa Africana.
Entendeu?
Começou a Festa Africana, começou as comemorações. E hoje a gente já vê as coisas de uma
outra forma, mas nunca esquecemos aquela base da Festa Africana. Que era o Jongo né, então, nesta
festa a fazia, era à reunião das famílias, das pessoas que estavam se formando. Ai na época eu fazia
o almoço, eu procurava, eu procurei o prato que fosse assim... eu usava camarão né, sempre usei
camarão, que para mim era assim suprassumo[risos]. Então fazia um prato de camarão que acho
caia bem pra festa africana, né, porque poxa, a gente estava comemorando uma coisa importante.
Aí tinha Capoeira, tinha Samba de roda, isso o dia inteiro, o dia inteiro, passava dia inteiro e
Pagode e Jongo. Eu chamava as pessoas, sempre chamando um monte de gente, eu conheço muitos
grupos e chamava um grupo, falava com meus filhos: “Ah, vamos fazer Jongo?” ”Vamos!”. Ai
arruma o pessoal do Jongo, daqui a pouquinho que eu via já estava lá em casa fazendo Jongo. “Ah
vamos fazer um samba”. Não sei o que e, a gente sempre fazendo alguma coisa.
Foi legal, isso tudo trazendo aqui pro bar, tudo que a gente fazia a gente está fazendo aqui no
bar. Algumas coisas, né. Eu ainda não fiz uma Festa Africana aqui no bar. Na realidade ainda não
fiz uma Festa Africana aqui no bar. Eu acho que nem vai dar, teria que ser em outro local. A Festa
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Africana é muito boa, é muito boa mesmo. Você fica ali o dia inteiro comendo, bebendo e
dançamos. E vendo tudo assim, tudo que se refere a Mamãe África a gente está trazendo[...] ai vai,
assim que veio a ideia de tá fazendo música com a comida, com as atrações, eu ainda não fiz, não
fiz, mas vou fazer.
[QUINTAL]
Eu nunca consegui fazer num quintal, mas eu acho que essa festa que eu gosto né, que eu faço,
ela teria que ser num quintal, quintal assim no chão mesmo, para o pessoal dançar e ficar bem à
vontade. Eu também fazia o que acontece agora, que se tá falando eu tô lembrando, das festas da
minha casa do meu pai.
Meu pai gostava de fazer, festa na família. Que minha avó morava num lugar. Até meu pai
separar da minha mãe.
Não isso era em outro lugar porque minha mãe quando se separou do meu pai que foi morar em
Pavuna, mas a gente morava no Cachambi, perto do Meier. Ai tinha um quintal né, com tipo era a
gente chamava. Eu vejo até vejo como mini Quilombo. Que era um quintal, que ia de uma rua à
outra e ali morava vários os filhos da minha avó morava quase todos ali. Eram nove filhos que ela
tinha e moravam quase todos os filhos ali. Então ficava a família toda naquele quintal e a gente
fazia festa. O meu pai fazia festa de final de ano, ai era samba o dia inteiro, samba. Minha avó era
evangélica, mas a gente fazia samba, o pessoal caia no samba, comia bebia o dia inteiro. Era muito
bom.
Isso tem muitas famílias que fazem isso.
Também tem isso. Mas não pode deixar não, que essa parte da família, é de estar junto, esta se
comemorando, se comunicando, é essencial pra você, pro crescimento de qualquer pessoa, sabia
depois quando você está na alegria ou na dor. Quando você ver claro que você tem amigos, que
você tem amigos que você pode contar, mais geralmente é a família esta ali...
É o berço, e o berço. Se você chega em casa chateado, e quando você está com seus pais, tem
irmão, se alguém te faz alguma coisa: “Poxa vida, tô chateada acho que eu vou comentar com meu
pai, com minha mãe, meu irmão, no final são essas pessoas que você pode até chegar e falar com
um amigo. Tudo bem! Mas na cabecinha vai passar a família, né. É isso. Nem sei se eu te respondi.
[SOBRE REGISTRAR AS RECEITAS]
Sabe que foi você comentou isso comigo? Ou uma outra pessoa comentou de colocar pratos. Eu
nunca pensei nisso, mas depois que a pessoa falou isso, eu pensei. Gente, eu acho que tenho que me
organizar a gente vai fazendo os pratos, pratos, pratos, pesquisa, pesquisa, pesquisa e eu tenho
mania de cada lugar, escrever num lugar e acabar deixando. É daqui a pouco escrevo em outro
lugar. A receita pesquisa e tenho que começa a juntar, quem sabe né.
Vai ser gostoso né...
É porque o que me fez pensar também que um dia desses eu estava juntando, porque eu perdi
as fotos dos pratos, aí eu fiquei cutucando, pra verse eu achava no face né, aquele negócio todo. Aí
quando eu joguei é: Comida Africana, eu verifiquei alguns pratos que a gente faz aqui, dentro do
Google, eu falei gente...
Não o site até daqui, mas quando eu jogo pra ver as imagens, pra ver se... eu vi pra ver se
achava alguma coisa minha mesmo, eu vi os pratos e achei interessante, aí falei assim, não vou ter
que me organizar mais. E agora também estou gostando mais dessa pegada da comida africana.
[...]
Eu sou apaixonada pela África. Eu tenho assim, ainda mais do lado do meu pai, do lado da
minha mãe. O agora do meu lado do meu pai fazia pesquisa sobre a África. Ele pesquisava tudo,
pesquisava principalmente a parte de Esportes. Porque os maiores corredores eram africanos. Então
ele pesquisa, porque na realidade ele fazia não só da África, ele fazia dos negros, ele verificava os
negros que mais destacava no mundo, Presidentes, aquele coisa toda, então ele via as guerras que
tinham na África ele comentava comigo, os povos, na parte de esportes também. Então eu sempre
fiquei ouvindo fala muito da África. Então aquilo me cultuava.
Mas eu ouvia talvez, porque eu estava em outra pegada trabalhando e estudando [espiro] e eu
não via como pudesse utilizar isso pra alguma coisa. Só a informação né, tinha muita informação,
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muita informação. Ele tinha quando ele faleceu ele tinha assim muito material, material mesmo
sobre a história da África, sobre tudo que se falou/falava sobre os negros. Ai eu fiquei com aquilo
na cabeça né. E o meu irmão também ela era assim, louco pela África, mesmo antes dessa moda do
ele já usava aquelas roupas, aquelas batas né, que ele gostava, ele jogava capoeira, embora não seja
da África, mas foi desenvolvida por todos aqueles que vieram pra cá. Tinham que se defender.
Então meu irmão, ele via muito a parte de música, ele gostava muito de ver as tribos. Ele tinha uma
paixão pelos Massais falava os caçadores de leões [...] ai [...] isso tudo ajudou muito, para eu criar
essa laço e estreitar mais hoje.
Estou muito feliz da comida africana, já esta pegando em outro formado. Não sei se você está
observando, mas agora com a entrada de africanos, vindo fazer comida. Eu acho que está dando
outro formado. E uma evolução então é aquela coisa às vezes a gente fala as coisas as coisas vão
acontecendo.
Quando eu falo que as pessoas. Eu até tenho uma fala que Thiago [Kanu] que uma vez nem
sabia que era falada, que comecei falar que eu vi o seguinte que as pessoas viam aqui atrás de
histórias. Histórias que deviam ser contadas. Então eu acho que essa história que eu também estava
meia perdida, eu não sabia essa conotação é o que está acontecendo agora com a entrada dos
africanos aqui no bar, né porque eles podem contar a história né, porque eles vieram de lá. Isso daí
me realizou. Eu consegui fecha uma coisa que estava dentro de mim, eu não sabia bem o que, que
era. Consegui encontrar isso. Entendeu?
Fica assim fico muito feliz desse mês, ter dois africanos aqui conversando bastante com eles
saber na realidade, uma coisa é você saber pela internet, outra coisa é saber os costumes das
pessoas. Eu achei muito engraçado eu não sei contigo, em relação ao Mufete. Adoro fazer Mufete,
mas além de ser peixe, que eu gosto e ter essa pegada simples que é batata, banana e fica uma coisa
bonita.
É escutei uma africana, a menina de Luanda, me contou a história do Mufete. Então não
conhecia, são essas histórias aí que a gente vem atrás. Ela me falou que o Mufete ele é consumido,
as pessoas começavam a comer às vinte e três horas, que ficava o dia inteiro, a noite toda, sentava
comia, batendo um papo, aquela coisa toda. Eu vejo assim como se fosse o churrasco nosso. Que a
gente faz o encontro né com as pessoas de até [a última carne] Eu acho que o Mufete é mais ou
menos isso. Nas família se reúnem aos sábados geralmente, aos sábados tem Mufete, em casamento
tem Mufete, em funeral, tem Mufete.”

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