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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

TARCYENE ELLEN SANTOS DA SILVA

O IMAGINÁRIO CULTURAL HAITIANO EM PAYS SANS CHAPEAU (1997) DE


DANY LAFERRIÈRE: ENTRE O FANTÁSTICO E O MARAVILHOSO

NATAL-RN
2018
TARCYENE ELLEN SANTOS DA SILVA

O IMAGINÁRIO CULTURAL HAITIANO EM PAYS SANS CHAPEAU (1997) DE


DANY LAFERRIÈRE: ENTRE O FANTÁSTICO E O MARAVILHOSO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para
a obtenção do título de Mestre em Estudos da
Linguagem.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karina Chianca


Venâncio

NATAL-RN
2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Tarcyene Ellen Santos da.


O imaginário cultural haitiano em Pays Sans Chapeau (1997) de
Dany Laferrière: entre o fantástico e o maravilhoso / Tarcyene
Ellen Santos da Silva. - Natal, 2018.
152f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem. Natal, RN, 2019.
Orientadora: Profa. Dra. Karina Chianca Venâncio.

1. Dany Laferrière - Dissertação. 2. Literatura Quebequense


Haitiana - Dissertação. 3. Fantástico e Realismo Maravilhoso -
Dissertação. 4. Imaginário - Dissertação. I. Venâncio, Karina
Chianca. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82-93.09

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/170


AGRADECIMENTOS

A Deus, uma vez que tudo é Dele. Minha gratidão se estende à natureza Dele e tudo
que ele faz; até mesmo, a poética e sua ciência.
Ao meu Allyson Muniz, por estar comigo no “ócio e no labor”. Por seu amor,
paciência, dedicação e cuidado.
À Edvânia Silva e Tarcisio Viana, de quem herdei o riso fácil e a falta de tato;
decidam entre os dois a quem pertencem essas características. A Tárcio Silva e Tarcísio Filho,
este último por escutar-me falar sobre Dany Laferrière por horas a fio. À Gladys Picarelli,
pois sem sua contribuição não teria iniciado as primeiras disciplinas. À Marayse Guimarães,
por absolutamente tudo que você fez e faz por mim.
Em especial, à minha orientadora Prof.ª Dr.ª Karina Chianca. Minha gratidão não é
apenas por causa do seu trabalho incansável, nessa labuta que se divide entre orientar,
pesquisar e ensinar. Em outro trabalho, já lhe agradeci por essas competências. Desta vez, sou
grata por ter me dado conta que foi você quem me apresentou diversos autores, dentre os
quais, Dany Laferrière. Obrigada.
Aos professores que compuseram a banca de defesa deste trabalho. Em primeiro, à
prof.ª Dr.ª Heloísa Moreira por ter me concedido a honra de ler meu trabalho, pela sua valiosa
colaboração e pela doçura na correção minuciosa. Em segundo, ao prof.º Dr.º José Luiz por
ter me recebido em sua sala de aula no mestrado, enquanto aluna. Por sempre ser solícito e
não se incomodar com minhas confusões, demonstrando-se sempre acessível ao seu alunado.
Obrigada pelas valiosas sugestões quanto aos textos críticos. Em terceiro, ao prof.º Dr.º
Marcos Venícius por suas contribuições e por sua amizade, pois além de sempre estar
disposto a me socorrer em emergências, me cedeu horas de seu tempo para engrandecer
minha formação como pessoa e pesquisadora.
Ao revisor deste trabalho, meu amigo e incentivador, Valnikson Viana.
Às amigas. À Melina Rodrigues, que apesar de estar em outro continente, sempre se
fez presente em todos os momentos e foi minha primeira leitora. Agradeço também por ter
importado os livros de Dany Laferrière da França. À Débora Loanne, por ter sido uma leitora
ávida deste trabalho. À Isabel Camila e à Ana Emília, por compartilharem comigo o mestrado,
o sufoco, a alegria, os sorvetes de menta, as conversas equilibradas, o engrandecer do ser
humano, a poesia do pôr do sol de Natal, o céu azul e as inúmeras tardes de biblioteca.
Obrigada por todo amor que compartilharam comigo, meninas. Aos amigos Thiago Vieira e
Marcelo Arturo, o primeiro pelas caronas e o segundo por nunca ter pedido o retorno dos
livros de análise crítica. A Kleiton Silva, por me acompanhar na busca pelos gêneros literários
adequados para o objeto de estudo, pela amizade e companhia.
À assistência social estudantil da UFRN, por ter me concedido um lar, durante um ano
e meio. A todos que contribuíram direta e indiretamente para a realização deste trabalho.
“[...] AO DEUS DESCONHECIDO” Atos 17:23 (A
BÍBLIA, 2016).
RESUMO

A presente proposta de investigação direciona a atenção ao trabalho de Dany Laferrière, como


escritor americano que defende uma literatura mundial, mas que detém certas tradições
referentes à cultura da sua pátria materna. Focamo-nos especificamente em Pays sans
chapeau (1997). Partimos do pressuposto que o autor teve como finalidade propor reflexões
acerca do imaginário cultural haitiano, com a intenção de trabalhar e problematizar uma
identidade espiritual ancestral de seu país (KWATERKO, 2002), fazendo uso das métricas
dos gêneros literários Fantástico e Maravilhoso. Assim, objetivamos compreender as funções
estéticas desses gêneros em paralelo as discussões do imaginário. Inicialmente
contextualizamos o autor Dany Laferrière, seu percurso pessoal e profissional, e sua escrita
pós-moderna. Apresentamos parte de suas produções, com a intenção de construir o trajeto do
narrador-personagem Vieux Os e evidenciar o uso frequente do insólito nas narrativas que
possuem conexão com nosso corpus. Posteriormente, procuramos estabelecer uma definição
de Imaginário, nas ideias de Durand (1989), Laplantine e Trindade (1997). Analisamos as
imagens do Zumbi e os mitologemas presentes na obra. Por último, nos concentramos nos
debates acerca dos gêneros Literários Fantástico, Fantástico-Maravilhoso, Fantástico-Estranho
e Realismo Maravilhoso, nos apoiando em Todorov (2013; 2017), Roas (2014) e Chiampi
(2015). Os resultados de nossa pesquisa demonstram que as hesitações fantásticas são
primordiais para o estabelecimento dos subgêneros do Fantástico e para a adesão do Realismo
Maravilhoso colabora para uma discussão sociocultural do imaginário.

Palavras-Chave: Dany Laferrière, Literatura Quebequense Haitiana, Fantástico e Realismo


Maravilhoso, Imaginário.
ABSTRACT

The current investigation proposal directs attention to Dany Laferrière‟s work as an American
author who defends a worldwide literature, but who still holds certain traditions related to the
culture of his mother country. Pays san chapeau (1997) was specifically focused. It was
assumed that the author had as a goal to propose reflection on the Haitian cultural imaginary,
intending to work and question an ancestral spiritual attitude of his country (KWATERKO,
2002), utilizing metrics of the Fantastic and Marvellous literary genre. Thus, we seek to
understand the aesthetical functions of these genres in parallel to the discussions on the
imaginary. Initially, Dany Laferrière‟s professional and personal path was contextualized, and
his post-modern writing. Part of his production was presented, intending on constructing the
trajectory of the narrator-character Vieux Os and emphasize the frequent use of the uncanny
on the narratives which have connexion with our corpus. Afterwards, we pursued to establish
a definition of Imaginary, we took support on the ideas of Durand (1989), Laplantine and
Trindade (1997). The images of Zumbi and the mythologems present in the work were
analysed. Lastly, we focused on the debates regarding the Fantastic, Fantastic-Marvellous,
Fantastic-Uncanny and Marvellous Realism literary genres, based on Todorov (2013; 2017),
Roas (2014) and Chiampi (2015). The results of our research demonstrate that the fantastic
hesitations are essential to the establishment of the Fantastic and Marvellous Realism
subgenre, the presence of the latter collaborates to a sociocultural discussion of the imaginary.

Key Words: Dany Laferrière, Haitian Quebecker Literature, Fantastic and Marvellous
Realism, Imaginary.
RÉSUMÉ

Dans ce travail de recherche nous avons comme objet d‟étude l‟oeuvre de Dany Laferrière,
écrivain américain mais d‟appartenance littéraire mondiale, bien qu‟il garde certaines traces
de la tradition littéraire et culturelle de son pays natal, le Haïti. Pour ce faire, nous délimitons
notre corpus plus particulièrement sur son roman Pays sans chapeau (1997). Nous émettons
l‟hypothèse que cet auteur s‟appui sur l‟imaginaire culturel haïtien, ayant comme but de faire
réfléchir sur une identité spirituelle ancestrale de sa patrie d‟origine, s‟appuyant sur les genres
littéraires fantastiques et merveilleux, fruits de son expérience individuelle et collective au
sein de la communauté haïtienne. Nous avons comme objectif de comprendre les fonctions
esthétiques de ces genres mis en parallèle avec celles de l‟imaginaire culturel à la base de son
ouvrage Pays sans chapeau. Dans ce travail de Mémoire de troisième cycle, nous situons tout
d‟abord l'auteur Dany Laferrière traçant son parcours personnel et professionnel aussi bien
que son écriture postmoderne. Ensuite nous tâchons de présenter une partie de sa production
littéraire, avec l'intention de construire le chemin du narrateur-personnage Vieux Os ainsi que
l'usage fréquent de l'insolite dans les récits qui ont rapport avec notre corpus. Pour, après,
essayer d‟établir une définition de l'imaginaire, nous appuyant sur des idées de Durand
(1989), Laplantine et Trindade (1997). Nous analysons aussi les images de Zumbi et les
mythologèmes présents dans l'oeuvre analysée. Enfin, nous poursuivons cette analyse ciblant
les discussions sur les genres littéraires Fantastiques, Fantastique-merveilleux, Fantastique-
Étrange et le Réalisme Merveilleux, dans les concepts de Todorov (2013; 2017), Roas (2014)
et Chiampi (2015). Les résultats de nos recherches montrent que les hésitations fantastiques
sont primordiales pour la mise en place des sous-genres du Fantastique et du Merveilleux, la
présence de ce second contribuant à la discussion socio-culturelle de l'imaginaire.

Mots-clés: Dany Laferrière; Littérature Québécoise-haïtienne; Fantastique et Réalisme


Merveilleux; Imaginaire.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10

LA DÉRIVE DOUCE D’UN ENFANT DE PETIT-GOÂVE ........................................... 15

1 Do Haiti ao Quebec ................................................................................................... 15


1.1. Dany Laferrière: o jornalista ............................................................................... 15
1.2. Dany Laferrière: o escritor.................................................................................. 22
2 Vieux Os no ciclo haitiano ........................................................................................ 27
2.1. A voz infantil ..................................................................................................... 27
2.2. Um narrador adolescente .................................................................................... 30
2.3. A maturidade: do exílio ao retorno ..................................................................... 32
3 A tradição na pós-modernidade ................................................................................. 39
Pays sans chapeau: do Indigénisme à Estética da degradação ........................................ 41
PAYS RÉEL ....................................................................................................................... 53

1 Da imaginação ao imaginário .................................................................................... 53


Por uma crítica literária do imaginário .......................................................................... 59
2 Traços Latino-Americanos ........................................................................................ 65
3 A morte dos deuses haitianos ..................................................................................... 76
4 Os Surrealismos: entre a Europa e as Américas ......................................................... 87
PAYS RÉEL OU PAYS RÊVÉ?........................................................................................ 95

1 A narrativa Fantástica: características e procedimentos em Pays sans chapeau ........... 95


Entre o figurativo e o literal ........................................................................................ 103
2 As hesitações alegóricas: a morte como metáfora .................................................... 115
3 O inconsciente de Vieux Os: uma abertura ao Fantástico-Estranho .......................... 125
4 O “sonho” de Vieux Os ........................................................................................... 135
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 143

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 148


10

INTRODUÇÃO

Nossas relações com a obra Pays sans chapeau1 (1997) se iniciaram há três anos,
ainda na graduação, na disciplina de Literatura de Expressão Francesa, lecionada pela
professora e doutora Karina Chianca. Foi na sala de aula da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) que surgiram nossos primeiros interesses – tanto afetivos quanto científicos - pela
escrita de Dany Laferrière. Esse contato, enquanto discente, nos rendeu frutos abundantes e
desde então procuramos conhecer essa produção. Embora nosso trabalho não seja a respeito
da didática da literatura ou de seu ensino, é válido frisar a importância dessas aulas para o
surgimento de investigações palpáveis, mesmo que embrionárias, para futuros pesquisadores
da nossa área.
Trata-se de compreender que a sala de aula é também um lugar de encontros de
culturas (CHIANCA, 2004) e que a natureza do texto literário fornece esse ambiente. Foi a
partir desses primeiros incentivos que iniciamos nossas análises da obra com o Trabalho de
Conclusão de Curso, intitulado As hesitações fantásticas em Pays sans chapeau: uma leitura
sobre o aspecto cultural em Dany Laferrière (2016), o qual é aprofundado nessa exposição.
Desde nossos primeiros passos na jornada científica procuramos meios de explicar os
fenômenos da escrita de Laferrière. O componente curricular mencionado anteriormente nos
ajudou a enxergar e compreender as literaturas e seus contextos, nos aproximando de culturas
tão semelhantes à nossa.
Ainda com relação às disciplinas que nos instigaram às descobertas dos fenômenos
literários na escrita de Dany Laferrière, sinalizamos a importância do componente curricular
Literatura e Tradição, lecionado pelo professor doutor José Luiz Ferreira, no Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL), pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). As discussões dos nossos encontros consistiam em examinar as
teorias críticas da tradição e analisar os elementos tradicionais em poemas modernos
brasileiros, conciliando teoria e prática na produção de novas críticas.
A partir da compreensão do que seria a tradição – seu caráter filosófico, estético e
ideológico – percebemos a presença desta em poemas que, aparentemente, se encontravam
codificados pelo estilo dos autores que a renovavam ou, por vezes, rompiam com ela,
configurando uma nova tradição. Tendo em vista esta “codificação” do elemento tradicional
dos poemas que analisávamos, direcionamos nossa atenção ao sobrenatural na literatura de

1
Salientamos que a obra em questão foi pubicada em 1996, porém nossa proposta é analisar a edição datada de
1997. Esse romance foi reeditado três vezes, porém ainda não encontramos análises sobre estas reedições.
11

Laferrière, numa busca por algum “resquìcio” da tradição literária; haitiana e/ou norte-
americana.
Assim, com as produções de Dany Laferrière e um novo olhar acerca das tradições,
fortificamos os laços de amizades entre vizinhos, por meio das similaridades históricas
vividas em nosso continente. Moreira (2010), tradutora de Pays sans chapeau, salienta as
fortes ligações entre os contextos históricos do Brasil e do Haiti. Ela explica que, assim como
os vários países da América Latina, o Haiti compartilha conosco de diversos momentos e
características, tais como: a miscigenação, o sincretismo, a ditadura e entre outros aspectos.
Entre tantas “vozes” de imigrantes no Quebec, a de Dany Laferrière se destacou e
alcançou o mundo, sendo nomeado como um dos grandes autores na Academia Francesa de
Letras. Nesse pequeno parágrafo, poderíamos nos questionar sobre o sucesso de suas
produções. Como um escritor negro e de uma cultura tão distinta daquela do país anfitrião
logrou o sucesso? Sua literatura é distinta das demais produzidas no Haiti? Seu texto é
constituído de muitos paradoxos, grandes rupturas, profundas discussões sobre a identidade
cultural americana e detém abundantes duplicidades. Não seria fácil de resolver estas questões
e também não é nosso foco, mas essas reflexões fazem parte de nossas inquietações
particulares e nos movimenta na busca de compreender os pronunciamentos de suas ficções.
Outro fator que colaborou para nosso envolvimento com o objeto de estudo e sua
análise foi a escassez de material crítico voltado para a análise literária de expressão francesa.
Em nossas investigações, destacam-se os seguintes eixos: “imaginário haitiano” e “literatura
quebequense e haitiana”. Em uma busca pela plataforma Lattes/CNPq, na ferramenta
assuntos, utilizando as palavras-chaves supracitadas, não se encontram trabalhos ou autores
alinhados aos eixos temáticos. Assim também, durante nossa utilização da ferramenta online
Google Acadêmico, podemos encontrar poucos artigos e trabalhos que versam sobre os temas
“Haiti e identidade”, “estética literária e imaginário haitiano”, “representações do Haiti” e
“literatura da diáspora”.
Portanto, é evidente a carência de teóricos e textos críticos que trabalhem tanto a
literatura quebequense, quanto a literatura haitiana. Nesse sentido, com o desenvolvimento de
nossa pesquisa, pretendemos também fortalecer os estudos críticos acerca da literatura
quebequense-haitiana, além de contribuir para o progresso dos estudos da literatura de
expressão francesa no Brasil e no Mundo, em uma área de estudo que leve em consideração a
representatividade cultural presente em nosso corpus.
Nessa perspectiva, a Literatura Comparada também é reconhecida por seu caráter
polìtico, que por vezes “contribui para dissipar o clima de incompreensão e desentendimento
12

entre povos” (JEUNE, 1994, p. 224). Isto é, uma área que viabiliza, cada vez mais, a
aproximação entre as ciências e os povos, devido às demandas que seu objeto contém em sua
natureza, sobretudo em seu espírito humanístico. Assim, essa área de estudo nos permite uma
experiência inovadora com nosso texto, cujo teor é propício para uma análise estética e
cultural do imaginário.
Pays sans chapeau é uma obra escrita por um jornalista haitiano, que enfrentou o
exílio político e se consagrou como autor no Quebec. Em suas primeiras produções, Laferrière
não transparecia tanto o seu país natal, porém ele tem mostrado suas raízes ao Quebec-
Canadá. Essa composição, em questão, se destaca pela abundância de elementos tradicionais
da cultura materna do nosso autor. A referida narrativa reúne as histórias de um escritor
expatriado haitiano, Vieux Os2, que retorna ao país com o propósito de compor uma nova
obra prima. No entanto, o romance é mergulhado em uma atmosfera sobrenatural que anuncia
a temática da morte com a aventura do personagem-narrador no além. O recém-chegado
explora o mundo dos deuses do vodu e conversa pessoalmente com eles. Os fatores culturais e
religiosos movem a narrativa e nos colocam frente a ancestralidade haitiana, mas não é algo
tão simples de compreender.
Acreditamos que, em tal produção escrita, o autor teve por finalidade propor reflexões
acerca do imaginário haitiano, com a intenção de indagar sobre uma identidade espiritual.
Sustentamos a hipótese que a propensão desta narrativa aos gêneros Fantástico, Fantástico-
Maravilhoso, Estranho e Realismo Maravilhoso – trabalhados na visão de Todorov (2013;
2017), Roas (2014) e Chiampi (2015) - é uma tentativa de negociação entre a criação estética
e o mundo social. Ou seja, defendemos que por meio da exploração desses gêneros literários o
autor consegue projetar o imaginário (DURAND, 1989) de um povo e, concomitantemente,
problematizá-lo em sua obra. Tendo em vista esta hipótese, o presente estudo objetiva
compreender e analisar o imaginário haitiano de Dany Laferrière, como escritor nascido no
Haiti e residente no Quebec (Canada), na sua narrativa Pays sans chapeau, bem como
promover debate crítico a respeito das diferenças e relações dos gêneros Fantástico e seus
variantes, observando as funções estéticas e sociais dos mesmos para o referido romance.
Em relação à estrutura organizacional, no primeiro capítulo de nossa pesquisa,
procuraremos expor sobre a vida do autor, levando em consideração os traços autobiográficos

2
De acordo com Moreira (2011), Vieux Os é uma expressão haitiana para designar uma pessoa que mantém o
hábito de acordar muito cedo. Esse codinome do narrador-personagem foi traduzido de forma literal, na versão
brasileira da narrativa. Sendo assim, ficou como: Velhos Ossos. Apesar dessa proposta, optamos em manter o
nome do personagem em língua francesa, sempre que se tratar de nossas análises da obra. Em caso de citação
direta da versão em português, manteremos a tradução de Moreira (2011).
13

ficcionalizados em suas obras, na intenção de compreender seu percurso profissional e


constatar a temática da ditadura em seu projeto autoficcional. Buscaremos apresentar o ciclo
haitiano, segundo a história do narrador-personagem Vieux Os, a fim de identificar as
conexões entre nosso objeto de estudo e essas narrativas. Também discutiremos sobre alguns
movimentos literários haitianos e momentos históricos que antecedem o autor Laferrière, com
o propósito de interpretar os aspectos tradicionais e as rupturas em nosso objeto de estudo.
Já no segundo capítulo desse trabalho, discorreremos sobre a concepção de imaginário
(DURAND, 1989; LAPLANTINE & TRINDADE, 1997), visando uma conceituação
psicossocial e antropológica, a fim de compreender as construções imagéticas das
manifestações culturais de um povo. A partir desse conceito discutiremos sobre como ocorre a
análise do imaginário na literatura, pelo viés da crítica Estruturalista, com a finalidade de
entender as necessidades dos estudos analíticos pioneiros no campo mitológico e
narratológico.
Em seguida, desenvolveremos uma leitura que viabiliza o diálogo entre o referente
literário, a obra, e o extraliterário, as manifestações imaginárias coletivas, como uma
possibilidade para as análises e interpretações do sobrenatural em nossa narrativa. Nesse
mesmo raciocínio, discutiremos sobre as imagens dos deuses do panteão Vodu, presentes no
romance, e iremos contrapô-las à narrativa mítica dos estudos religiosos e antropológicos,
visando à cosmogonia da religião de matriz africana. Ao longo de nosso trajeto, indicaremos
ainda as características que aproximam nosso objeto de estudo das demais produções literárias
americanas, sobretudo as possíveis influências do movimento artístico Surrealista no referido
contexto.
Por conseguinte, em nosso terceiro capítulo, introduziremos os conceitos de Todorov
(2013; 2017) acerca do Fantástico e da Hesitação Fantástica, demonstrando a constância dessa
última na narrativa, com recortes nas reflexões e reações do narrador-personagem, durante sua
investigação acerca do exército zumbi. Subsequentemente, mapearemos os eventos
sobrenaturais conforme as características que solicitam as variantes do Fantástico, sendo elas:
Fantástico-Maravilhoso e o Fantástico-Estranho. Por último, destacaremos o capítulo
homônimo à obra em questão e o analisaremos por meio das métricas de Chiampi (2015),
com o Realismo Maravilhoso, na tentativa de capturar a essência do fenômeno que ocorre
com Vieux Os em seu trânsito entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Nossa pesquisa se ancora na abordagem qualitativa e de caráter bibliográfico, visto
que se alinha à noção da realidade que se constrói na literatura quebequense-haitiana e na
busca de material bibliográfico crítico, assim como o próprio objeto de estudo. Realizar-se-ão
14

análises literárias por meio de um estudo de aspecto exploratório, devido à escolha de


trabalhar com o imaginário haitiano. Portanto, percorreremos boa parcela do nosso corpus.
Vale ressaltar que optamos por analisar o livro Pays sans chapeau em língua francesa,
cotejando sua tradução editada no Brasil por Heloisa Moreira, sendo produto de sua
dissertação de Mestrado, na Universidade de São Paulo - USP, defendida em 2006.
15

LA DÉRIVE DOUCE D’UN ENFANT DE PETIT-GOÂVE3

O primeiro capítulo deste trabalho tem como proposta apresentar o autor Dany
Laferrière, expondo alguns momentos de sua biografia, com destaques em sua trajetória
intelectual enquanto escritor. Discutiremos sobre parte de sua produção literária,
aproximando-a do nosso objeto de estudo, o romance Pays sans chapeau, por meio da
discussão sobre o conceito de tradição, visando também compreender os principais
movimentos literários haitianos que irrompem na referida narrativa.

1 Do Haiti ao Quebec

1.1. Dany Laferrière: o jornalista

As dez primeiras obras publicadas de Dany Laferrière, nomeadas de Autobiographie


Américaine, contém forte teor autobiográfico. Elas se dividem em dois polos: o ciclo norte-
americano e o ciclo haitiano. Estas publicações não seguem uma cronologia que corresponde
aos acontecimentos de sua vida; trata-se na verdade de uma espécie de quebra-cabeça que
funde ficção e realidade. Em sua entrevista à Revista Brasileira do Caribe (2008), ele afirmou
que estes dez romances surgiram de suas histórias íntimas e que não as escreveu obedecendo a
uma ordem cronológica por pensar que seria tedioso. Na ocasião, ele ainda revelou que
decidiu construir sua produção desse modo por causa da sua própria forma de lembrar os fatos
que viveu.
Até o presente momento, encontramos poucos trabalhos que se propõem a estudar o
aspecto autobiográfico nas obras do autor, mas percebemos que existem posicionamentos
consistentes para defender a possìvel inclinação à autoficção na escrita de Laferrière, como é
o caso dos estudos de Figueiredo (2007). A estudiosa usa a classificação de Doubrovsky; a

3
O título do presente capítulo faz mensão ao documentário dirigido e roteirizado por Pedro Ruiz em parceria
com o autor Dany Laferrière, que veio ao ar em 2009 nos cinemas do Quebec (Canadá). Trata-se de uma
biografia cinematográfica que aborda com vivacidade os olhares de Laferrière sobre seu próprio percurso
intelectual e pessoal, em quase todas as cidades por onde o escritor passou. Não nos baseamos neste material
para a elaboração e organização desta primeira parte do nosso estudo. No entanto, decidimos homenagear esse
trabalho imagético, em específico. Esta é uma obra de cunho biográfico do haitiano-quebequense e ela nos
permite uma experiência mais prática aos pronunciamentos que o autor exprime sobre si e sua pátria-mãe.
16

autofiction, para analisar os romances Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer4
(2010) e Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un fruit? (2013).
Conforme a autora destaca, ao dissertar sobre o termo de Doubrovsky, a autoficção
seria uma modalidade pós-moderna da autobiografia, a qual é adotada pelo autor haitiano-
quebequense. Trata-se de uma forma de escrita que permite o compartilhamento das obsessões
do autor com seu público, garantindo uma ficcionalização não só dos aspectos
autobiográficos, como também de fatos históricos. Ela disserta que, na verdade, Laferrière faz
uso da autoficção para falar sobre sua história pessoal, já que o gênero permite “[...] recortar a
história em fases diferentes, dando uma intensidade narrativa própria do romance”
(FIGUEIREDO, 2007, p. 59).
Entretanto, observamos que, ao analisar as obras de Laferrière, Figueiredo (2007) não
leva em consideração a temática da ditadura. Ela destaca a insistência dos seguintes temas:
clichés sexuais e raciais, exìlio polìtico e problemática imigrante – esses dois últimos se
equivalem –, como composição do rol das obsessões do autor haitiano-quebequense. O
trabalho desta estudiosa nos faz concluir que a adesão da autoficção em Laferrière se propõe a
uma autorrecriação do seu universo ficcional, como uma espécie de “[...] desdobramento
narcìsico que permite ao sujeito inventar para si um duplo” (FIGUEIREDO, 2007, p. 81).
Deste modo, o autor cria para si um personagem, compartilhando com o leitor
caracterìsticas de sua personalidade e fatos de sua vida, tais como: nomes de pessoas que
pertencem à sua famìlia e nomes do seu ciclo de amigos, fases de sua vida como a infância, a
profissão, os sentimentos de não pertencimento do exilado, entre outros aspectos.
Não temos a intenção de problematizar a respeito das diferenças entre os gêneros,
autobiografia e autoficção, pois este trabalho já foi feito por Figueiredo (2007). Todavia,
pretendemos articular vida e obra do autor intencionando observar os aspectos autobiográficos
ficcionalizados nas obras que compõem a Autobiographie Américaine, especificamente
aquelas que possuem o enfoque na temática da ditadura haitiana e em seu exìlio polìtico,
posto que esta questão não foi explorada profundamente, até agora.
Apesar da escassez de materiais documentais oficiais sobre a vida do autor Dany
Laferrière, constatamos que há ferramentas importantes que podem nos auxiliar na presente
exposição sobre a vida dele. Assim sendo, utilizaremos os paratextos, ou seja, os anexos das

4
Essa obra foi traduzida por Heloísa Moreira sob o título: Como fazer amor com um negro sem se cançar, pela
editora 34.
17

edições dos livros digitais5 do referido escritor, bem como os dados disponíveis no site da
Académie Française6. Nessa perspectiva, buscaremos aqui apresentar este autor, pouco
conhecido no Brasil, extraindo os traços autobiográficos do nosso corpus: a narrativa Pays
sans chapeau e de suas outras obras.
Windsor Klébert Laferrière nasceu em Porto Prìncipe-Haiti, em 1953, durante a
ditadura de Magloire. Filho de Marie Nelson, que era servidora pública, e de Windsor Klébert
Laferrière, o qual foi um jornalista engajado e grande intelectual, de quem ele herdou o nome,
o ofìcio e o exìlio polìtico. Em boa parte de suas obras, a personagem Marie, mãe do
narrador-personagem, representa a própria mãe do autor. Elas compartilham o mesmo nome e
possuem a mesma ocupação, ambas são servidoras públicas.
O autor não se satisfaz em apenas criar uma personagem e referenciá-la a uma pessoa
de sua famìlia, estabelecendo uma confusão entre ficção e vida, como consegue construir uma
intertextualidade por meio da personagem que hora é apenas mencionada em alguns de seus
romances, como é o caso de L’Odeur du café (2016), e hora é parte integrante da narrativa,
como encontram-se nos romances Le Cri des oiseaux fous (2015) e Pays sans chapeau.
Dany Laferrière, como é conhecido hoje, conviveu pouco tempo com seu pai, que
experimentou a expatriação durante a era Duvalier7, no ano de 1959, momento que é
mencionado passageiramente na narrativa Pays sans chapeau. Esta obra direciona-se ao
retorno ao Haiti do narrador-personagem Vieux Os, que compartilha nitidamente de algumas
características com seu autor, tais como: o nome das mães, as profissões de jornalista e
escritor, os exílios políticos e a perseguição por parte dos ditadores haitianos. Este narrador-
personagem, ao refletir sobre suas escolhas profissionais, revela as consequências que ele
enfrentou por ter exercido seu ofìcio de jornalista em um paìs gerido pelo sistema ditatorial.
No enredo, a figura do pai é apenas rememorada, como alguém que também
compartilha de um mesmo destino: “Com dezenove anos, virei jornalista em plena ditadura
Duvalier. Meu pai, também jornalista, tinha sido expulso do país por François Duvalier. O

5
A coleção de livros digitais de Dany Laferrière está disponível gratuitamente na plataforma de empréstimos da
Bibliothèque des amériques. Este site é uma iniciativa do Centre de la Francophonie des Amériques.
6
Como não há nome do autor e data do texto biográfico sobre o autor Dany Laferrière no site da Academia
Francesa de Letras, e não havendo ainda uma regra na ABNT a respeito deste tipo de caso, optamos por fazer
referência sempre ao nome da academia em francês. Manteremos o seguinte padrão: no caso de citação direta
será em maiúsculo, e em itálico quando se tratar da citação indireta.
7
Dois ditadores marcaram a história política haitiana, responsáveis pelo que hoje chamamos de dinastia Duvalier
(1957-1986). Fançois Duvalier, conhecido pela população como Papa Doc, foi um presidente eleito em 1957.
Após agradar a política internacional controlando as revoltas que aconteciam no país por causa da revolução
cubana que “perturbava” as autoridades do Caribe, ele se nomeou presidente vitalício. Antes de sua morte
conseguiu legalizar uma lei que nomeava seu filho, Jean-Claude Duvalier ou Baby Doc, como herdeiro da sua
posição presidencial (GRONDIN, 1985).
18

8
filho dele Jean-Claude, me empurrou ao exìlio. Pai e filho, presidentes. Pai e filho exilados”
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 121).
É possível observarmos, na obra, a ausência do pai de Vieux Os como um esboço da
situação vivida pelo filho Dany Laferrière. Contudo, Miraglia (2011), ao comparar as
produções Pays sans chapeau (1996) e L’Énigme du retour (2009), revela que o autor
haitiano-quebequense insiste na imagem de uma ausência do pai e da avó do seu narrador com
o propósito de garantir a temática da morte.
Ademais, em Le Cri des oiseaux fous (2015), que foi publicado no ano de 2000,
encontramos uma conexão entre a citação acima, que destacamos a respeito do exílio do pai e
filho, e uma passagem com o mesmo conteúdo. Neste romance, Vieux Os narra seus últimos
dias no Haiti, antes dele partir para as terras frias de Montréal. Desta vez ele apresenta uma
divagação a respeito das consequências de sua partida:

Os homens da casa partem em exílio antes dos trinta para não morrer na
prisão. As mulheres ficam. Minha mãe foi apunhalada duas vezes em vinte
anos. Papa Doc caçou meu pai do país. Baby Doc me caça, por sua vez. Pai e
filho, presidentes. Pai e filho, exilados 9 (LAFERRIÈRE, 2015, p.59).

O episódio mencionado acima se encontra no contexto de despedida entre Marie e


Vieux Os, intitulada de L’adieu. (16h 18)10. Há um contexto melancólico e triste em um
diálogo entre a mãe preocupada e seu filho que é forçado a deixar tudo para trás. Neste
momento, ao refletir sobre seu exìlio, o narrador-personagem relata a dor de sua mãe. Em
contraponto, na citação de Pays sans chapeau, o narrador-personagem desenvolve seu
discurso a respeito da labuta do ofìcio de jornalista, tanto para si mesmo quanto para seu pai.
Ou seja, em Le Cri des oiseaux fous (2015), o olhar do narrador-personagem repousa sobre o
significado do exìlio para a sua mãe, para as “mulheres” que ficam e perdem o contato com
seus filhos e maridos, enquanto em Pays sans chapeau, ele pondera sobre as consequências de
sua própria escolha ao imitar seu pai.
Destarte, a infância do pequeno Laferrière se passou com seus avós, Amélie Jean-
Marie e Daniel Nelson, na cidade de Petit-Goâve. Ele foi enviado aos cuidados de seus avós

8
“À diz-neuf ans, je devenais journaliste en pleine dictadure des Duvalier. Mon père lui aussi journaliste, s‟était
fait expulser du pays par François Duvalier. Son fils Jean-Claude me poussera à l‟exil. Père et fils, présidents.
Père et fils, exilés” (LAFERRIÈRE, 1997, pp. 149-150).
9
“Les hommes de sa Maison partent en exil avant la trentaine pour ne pas mourir en prison. Les femmes restent.
Ma mère a été poignardée deux fois en vingt ans. Papa Doc a chassé mon père du pays. Baby Doc me chasse à
son tour. Père et fils, présidents. Père et Fils, exilés.” (LAFERRIÈRE, 2015, p.59)
10
Os subtítulos da obra Le Cri des oiseaux fous (2015) possuem uma marcação temporal, como se fosse um
registro do tempo que ainda resta ao narrador-personagem, que vivencia o exílio político.
19

no ano de 1957. Após sete anos de convivência com os parentes, ele teve que ser enviado de
volta à mãe, por causa de um surto de malária que ocorreu na cidade. O autor não fala muito
sobre esta fase de sua vida, embora dois de seus romances estejam dedicados à figura infantil
de seu narrador-personagem. L’Odeur du café (2016) e Le Charme des après-midi sans fin
(2016), a primeira publicada antes de Pays sans chapeau e a segunda depois, contendo todas
as travessuras de Vieux Os, sua relação com a avó, que é chamada de Ba 11, e seu amor por
Vava; uma garotinha que mora próximo de sua prima. Laferrière empresta o apelido de sua
avó à personagem secundária dessas duas produções.
Essas obras são interligadas e contam com a narração do narrador-personagem
enquanto criança, a qual descreve a ditadura militar em seu olhar infantil. Embora este Vieux
Os não saiba o que seja a ditadura, ele descreve situações vividas na cidade de Petit-Goâve
que permitem ao leitor identificar as características do contexto hostil do início do
absolutismo Duvalier. A exemplo de Le Charme des après-midi sans fin (2016), a ditadura se
apresenta de forma mais clara: por meio do relato da criança que percebe os desaparecimentos
de alguns homens da cidade, ou por causa dos momentos em que há toques de recolher ao
meio dia, e ainda em virtude das situações vividas pela personagem Ba, ao lidar com um
homem que surge quase morto e coberto de sangue em frente à sua casa.
Outro momento que podemos destacar desta narrativa é quando, no fim do romance, o
garoto deve deixar a cidade dos avós e viver com a mãe, em Porto Príncipe, devido a uma
possível ameaça. Através da conversa entre a avó e um amigo dela, percebemos esta situação:

- O que vai ser da gente, meu filho? Aqui estou eu obrigada a fazer meu neto
partir. Antigamente uma cidade tão calma... Parece, Nèg-Feuilles, que isso
que a gente vive atualmente não é nada comparado ao que está para vir. Vi,
com meus próprios olhos, criminosos ameaçarem gente respeitável com
armas mortíferas. Este mundo está de pernas para o ar. O sangue vai
escorrer, tenho certeza. Não estou preocupada12 (LAFERRIÈRE, 2016, p.
196, Tradução nossa).

Por causa do diálogo entre a avó e seu amigo, conseguimos compreender que a partida
do garoto se deve ao perigo da ditadura, a qual se instala na cidade. O relato da avó, ao

11
Moreira (2006) traduziu o nome da avó de Vieux Os como Ba, ao invés de manter Da de acordo com a versão
em língua francesa. Uma vez que nos utilizamos de sua tradução, ao que concerne a País sem chapéu (2011),
manteremos o padrão Ba, para evitar confusões durante nossa exposição. Mas reafirmamos que nosso objeto de
estudo é a obra Pays sans chapeau (1997), em língua francesa.
12
“- Que va-t-on devenir, mon fils? Me voilà obligée de faire partir mon petit-fils. Une ville autrefois si calme...
Il paraît, Nèg-Feuilles, que ce qu‟on vit actuellement n‟est rien à coté de ce qui se prépare. J‟ai vu de mes
propres yeux des vouyous menacer avec des armes meurtrières des gens respectables. C‟est le monde renversé.
Le sang va couler, j‟en suis sûre. Je ne suis pas inquiète. [...]” (LAFERRIÈRE, 2016, p. 196)
20

enfatizar a presença das “armas mortìferas” nos faz crer que Laferrière, mais uma vez,
ficcionaliza um fato de sua vida e o liga ao contexto ditatorial. Um surto de malária na
infância do autor se transforma em mais um pretexto para trazer à tona a imagem de um país
hostil, o qual enfrenta consecutivamente três ditaduras. A obsessão da temática encontra
espaço em todas as fases da vida deste autor, inclusive em sua infância.
Em sua obra Le Cri des oiseaux fous (2015), o narrador adulto afirma que a época em
que viveu com sua avó, na verdade, foi a primeira vez que experimentou o exìlio: “Conheci,
então, meu primeiro exílio com cinco anos de idade. Em Petit-Goâve, na casa da minha avó
13
Ba” (LAFERRIÈRE, 2015, p. 50, Tradução nossa). O trecho citado reafirma a insistência
da temática da ditadura na fase infantil do narrador-personagem das dez obras de Laferrière.
O traço autobiográfico de Laferrière é contaminado pela ditadura, através do diálogo entre o
narrador enquanto criança em L’odeur du café (2016) e Le Charme des après-midi sans fin
(2016), assim como na posição do adulto que foge mais uma vez dos ditadores em Le Cri des
oiseaux fous (2015).
Já em Pays sans chapeau, Ba está presente de uma forma diferente. Ela surge como
uma espécie de rememoração de alguém que perdeu um ente querido. O narrador recém-
chegado ao Haiti menciona sua avó em vários momentos, porém com uma espécie de
melancolia e saudosismo, como é o exemplo do episódio em que ele a rememora ao beber
uma xícara de café:

Primeiro o cheiro. O cheiro do café de Palmes. O melhor café do mundo,


segundo a minha avó. Ba passou toda a sua vida bebendo esse café.
Aproximo a xícara fumegante do meu nariz. Toda a minha infância me sobe
à cabeça. [...] Jogo três gotas de café no chão para saudar Ba. 14
(LAFERIÈRE, 2011, p. 20)

O cheiro do café que faz Vieux Os lembrar da infância e de sua avó, nos revelando
uma referência a Marcel Proust (1871-1922) e suas Madeleines, dos volumes de Em Busca do
Tempo Perdido (1913-1927). Quando o personagem principal proustiano é tomado pelas
lembranças de seu passado por meio dos sabores e odores deste pequeno biscoito francês.
Entretanto a diferença deste empréstimo, em Dany Laferrière, encontra-se na
autorreferência, produzida no trecho destacado anteriormente. “L‟odeur du café des Palmes”

13
“J‟ai donc connu mon premier exil à l‟âge de cinq ans. À Petit-Goâve, chez ma grand-mère Da.”
(LAFERRIÈRE, 2015, p. 50).
14
“D‟abord l‟odeur. L‟odeur du café des Palmes. Le meilleur café au monde, selon ma grand-mère. Da a passé
toute sa vie à boire ce café. J‟approche la tasse fumante de mon nez. Toute mon enfance me monte à la tête. [...]
Je jette trois gouttes de café par terre pour saluer Da.” (LAFERIÈRE, 1997, p. 21)
21

aponta, na verdade, para a sua obra L’odeur du café (2016), na qual encontramos uma avó
dedicada, que faz o papel de mãe, e uma apaixonada pelo gosto e perfume do café: “O melhor
café, segundo Ba, é o café da região de Palmes. Em todo caso, é isso que ela bebe sempre. [...]
É o café de Palmes que Ba prefere, sobretudo por causa de seu cheiro. O cheiro do café de
Palmes. Ba fecha os olhos” 15 (LAFERRIÈRE, 2015, p. 18).
Portanto, a lembrança de Vieux Os a respeito de sua avó, em Pays sans chapeau, é a
proposta de rememoração de uma personagem. Através de um ritual de saudação aos mortos,
costume cultural haitiano, ele anuncia a morte da avó Ba, que deixa de habitar o plano físico e
passa a ser um espírito. Ela surge como um fantasma que habita o seu antigo quarto na casa
das filhas, Marie e Renée. A mãe de Vieux Os lhe relata que, certa vez, esqueceu-se de lhe
servir seu café e ela se rebelou quase arrancando a taça de sua mão. Sendo assim, a
personagem Ba deixa de habitar o plano físico do universo ficcional de Laferrière, para viver
no mundo dos mortos, ou seja, no país sem chapéu16. A obra também pode ser compreendida
como uma homenagem à avó do autor, pois foi publicada em 1996, no ano de sua morte.
Ademais, em 1972, Dany Laferrière se formou no Collège Canado-Haïtien, onde
estudou a língua francesa. Iniciou-se no jornalismo por meio da crítica artística, e aos dezoito
anos de idade escrevia para a coluna de pintura do jornal haitiano Le nouvelliste. Ele
frequentou as galerias de artistas haitianos célebres representantes da arte naïf 17, como Rigaud
Bênoit (1911-1986), Jasmin Joseph (1924-2005) e Robert Saint-Brice (1983-1977). No ano
seguinte, desenvolveu trabalhos na Radio Haïti Inter e no L’hebdomadaire politico-culturel
Le Petit Samedi soir. Seu conhecimento sobre arte costuma aparecer em todas as suas dez
obras, posto que frequentemente encontramos alusões a pintores e quadros naïf haitianos. Em
Pays sans chapeau, por exemplo, seu narrador-personagem até se compara com um pintor
naïf (LAFERRIÈRE, 1997, p. 11).
Devido à morte de seu amigo íntimo e colega de trabalho Gasner Raymonde (1953-
1976), em 1976, durante a ditadura de “Baby Doc” Duvalier 18 (1971-1986), Laferrière deixou
seu país de origem para se refugiar no Canadá, na cidade de Montréal, fazendo parte da

15
“Le meilleur café, d‟après Da, est le café de la région des Palmes. En tout cas, c‟est ce qu‟elle boit toujours.
[...] C‟est le café des Palmes que Da preférère, surtout à cause de son odeur. L‟odeur du café des Palmes. Da
ferme les yeux.” (LAFERRIÈRE, 2015, p. 18)
16
Em Pays sans chapeau, Laferrière explica que esse título provém de um ditado popular haitiano que remete ao
além. Segundo o autor, para o imaginário popular haitiano o além é um local onde não se usa chapéu, uma vez
que ninguém nunca é enterrado com ele.
17
Arte Naïf ou arte “primitiva” recebe esse nome por ser considerada como uma expressão puramente instintiva,
que não se enquadra nas produções acadêmicas ou na arte popular. Muitos pintores do movimento surrealista
adotavam o estilo gráfico naïf, como é o caso de Joan Miró (FER; BATCHELOR & WOOD, 1998).
18
A Ditadura Duvalier teve início em 1957 com Françoi Duvalier (Papa Doc) e prolongou-se até 1986 com Jean-
Claude Duvalier (Baby Doc) no poder.
22

segunda diáspora haitiana 19. A morte de seu amigo, sua decisão de ir embora e todo o
contexto político do país são relatados por Vieux Os em Le Cri des oiseaux fous (2015). Até
mesmo os dois ambientes de trabalho do autor são mencionados neste livro. Esta é a única
obra em que Laferrière aborda explicitamente a temática da ditadura. O narrador-personagem
descreve as torturas praticadas na prisão de Fort-Dimanche, semelhantes àquelas de 1964, que
eram praticadas durante a ditadura militar brasileira 20. Vieux Os relata a presença cotidiana
dos torturadores na cidade, os quais perambulavam sempre por Porto Príncipe. O narrador-
personagem conta sobre o ambiente massacrante do sistema totalitário de Duvalier.

1.2. Dany Laferrière: o escritor

Apesar do contexto difícil vivido pelo autor, Laferrière explorou literaturas diversas.
Segundo a Académie Française, em sua lista21 de leitura constam os seguintes autores: Ernest
Hemingway (1899-1961), Henry Miller (1891-1980), Denis Diderot (1713-1784), Jun'ichirō
Tanizaki (1886-1965), Witold Gombrowicz (1904-1969), Jorge Luis Borges (1899-1986),
Alejo Carpentier (1904-1980), Marie Chauvet (1916-1973), Charles Bukowski (1920-1994),
Mikhaïl Boulgakov (1891-1940), James Baldwin (1924-1987), Blaise Cendrars (1887-1961),
Yukio Mishima (1925-1970), Gabriel García Márquez (1927-2014), Mario Vargas Llosa
(1936-), J. D. Salinger (1919-2010), Günter Grass (1927-2015), Italo Calvino (1923-1985),
Jacques Roumain (1907-1944), Réjean Ducharme (1941-) e Virginia Woolf (1882-1941).
Ao chegar ao país anfitrião, Laferrière exerceu atividades muito distantes das que
costumava desempenhar no Haiti. Ele trabalhou em fábricas e morou no subúrbio de
Montreal. Sua obra Chronique de la dérive Douce (2014) possui grande referência a respeito
deste momento de sua vida. O narrador, Vieux22, conta sobre sua rotina e relações enquanto
imigrante. Um operário trabalhador de uma grande fábrica, que enfrenta um dilema: se
assumir como exilado ou permanecer como imigrante na cidade de Montréal. Ele narra sua
jornada e modo de vida, suas relações sexuais com as mulheres e sua preferência por literatura

19
De acordo com Moreira (2006), a diáspora ocorreu a partir de 1960. Segundo ela, em resposta a ditadura
Duvalier, os intelectuais que se opunham ao governo deixaram o país e encontraram refúgio na África, Estados
Unidos, França e Quebec. Em sua tese, a tradutora faz um levantamento histórico a respeito desses autores e as
suas contribuições para uma nova literatura haitiana.
20
Sobre as torturas praticadas durante a ditadura brasileira (1964-1985) indicamos como leitura o livro Torturas
e torturados (1996), de Márcio Moreira Alves. Trata-se de um relato detalhado de casos de tortura e das práticas
adotadas pelos torturadores brasileiros, durante a fase do sistema totalitário no Brasil.
21
Esta lista também se encontra em seu livro Comment Faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer (2010), que
também foi mencionada nos estudos de Figueiredo (2007).
22
O nome do narrador-personagem Vieux Os possui diversas variações, nas obras de Dany Laferrière, tais como:
Vieux Os, Vieux, vieux, Laferrière e entre outros.
23

clássica. Todas as dificuldades e prazeres encontrados em um país completamente diferente


do seu, o Haiti, são evidenciados por este narrador-personagem, o qual decide se demitir e
comprar uma máquina de escrever, uma Remingtong 22, com o propósito de se concretizar
como escritor; este é o desfecho do romance.
Essa obra se aproxima, nitidamente, dos momentos vividos pelo autor. Segundo a
Académie Française, em certo momento de sua rotina, Laferrière também decidiu comprar
uma máquina de datilografar para alimentar seu sonho de ser um escritor, a mesma
Remington 22 presente em várias de suas obras. Assim ele deixou as ocupações operárias de
lado. Após esta compra, o autor ganha o público com a o seu primeiro romance, Comment
faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer23 (2010), em 1985. O que todos pensavam ser
um manual, como o Kama sutra, na verdade era um romance que contava a história de Vieux
e seu amigo Bouba. Este narrador-personagem relata sua tentativa de escrever seu primeiro
romance de sucesso, como alguém que alcança seus objetivos por meio dos próprios esforços,
mas que é rodeado de clichés raciais e preconceitos, até no âmbito sexual. Com esta
publicação Dany Laferrière se tornou conhecido no mundo francófono, garantindo diversos
prêmios durante sua carreira. Nesse período nasceu o escritor haitiano-quebequense.
Por causa do seu primeiro sucesso, ele foi convidado a compor a banca do jornal da
TV Quatre Saisons, apresentando a meteorologia. Com esta primeira experiência na televisão
a mídia quebequense descobriu o jornalista Laferrière. Mais tarde, foi convidado a fazer parte
do quadro La Bande de six, na Radio-Canada, como cronista para a imprensa quebequense, e
ainda retornou ao Haiti como colunista no diário para o jornal Le nouvelliste, para cobrir o fim
da era Duvalier (1986) e da força paramilitar haitiana, os Tontons Macoutes.
Dividindo-se entre jornalista e autor, ele publicou, em 1987, Éroshima (1998), que dá
continuidade à temática sobre os clichés sexuais das raças; o narrador discursa sobre o
exotismo que o negro possui, na visão dos orientais. Nesse romance, o narrador-personagem
mantém uma relação amorosa com uma fotógrafa famosa do meio jornalístico, de
descendência oriental. Este casal mantém uma relação aberta e costuma ser cercado de amigos
que se relacionam entre si, em orgias e momentos luxuriosos. Neste curto romance, Laferrière
propõe a comparação entre o sexo e a morte. Em um texto anexado ao livro digital, o autor
explica que a ideia do enredo da obra surgiu ao imaginar um casal no ato da relação sexual,
em pleno orgasmo, durante a explosão da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki.

23
Bem mais tarde, este livro foi adaptado para o cinema, por volta de 1989 e foi censurado pela mídia
estadunidense, devido ao grande teor de racismo contido no filme.
24

Destarte, por volta de 1990, o autor decidiu deixar Montréal para se instalar em
Miami, junto com a sua esposa e filhas. Sua temporada nesta cidade favoreceu a composição
de mais oito obras. Entre 1985 e 2000, Laferrière finalizou este projeto, ao qual ele chamou de
Autobiographie Américaine. De forma cronológica, elaboramos uma lista24 com os tìtulos que
compõem a proposta do autor, segundo o ano de publicação, acompanhada das premiações
que ele obteve com cada obra em seus respectivos anos, destacando-se a obra que constitui o
nosso corpus de estudo:

 1985- Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer


 1987- Éroshima
 1991- L’Odeur du café (Prix Carbet de la Caraïbe, em 1991)
 1992- Le Goût des jeunes filles (Prix Edgar Lespérance, em 1993)
 1993- Cette grenade dans la main du jeune nègre est-elle une arme ou un
fruit? (Prix RFO du livre, em 2002)
 1994- Chronique de la derive douce
 1996- Pays sans chapeau
 1997- La Chair du maître
 1997- Le Charme des après-midi sans fin
 2000- Le Cri des oiseaux fous

Segundo a Académie Française, após esta fase da sua escrita, Laferrière retornou ao
Quebec em 2000 e decidiu reescrever suas obras, construindo conexões entre elas, para
assegurar seu projeto autobiográfico. Contudo, neste mesmo ano, com a publicação de Je suis
fatigué, o autor surge com uma obra inédita que se aproxima do gênero ensaio, e decide
iniciar uma nova fase na sua escrita, declarando o fim de sua autobiografia ficcional.
No período de 2004, ele publica duas obras: Comment conquérir l’Amérique en une
nuit, cuja temática é novamente o exílio, e Les Années 80 dans ma vieille ford, um livro de
crônicas sobre a vida de um escritor. Já no ano de 2006 ele trouxe a prelo o romance Vers le
Sud, com um texto erótico para adultos, e o conto Je suis fous de Vava, para crianças. Este
último, inspirado em sua obra L’odeur du café (2016).

24
A referida lista também foi adaptada a partir de outra composição de Moreira (2006). Em seu trabalho, ela
enumera os títulos romanceiros de Dany Laferrière, de acordo com os anos de publicações das respectivas
produções.
25

O autor demonstra-se extremamente perspicaz e publica em 2008 seu romance Je suis


un écrivain japonais. Esta narrativa conta a história de um célebre escritor negro, que da noite
para o dia tornou-se famoso no Japão. Mais uma vez, Laferrière consegue a empreitada de
promover uma profunda reflexão sobre a questão racial.
No ano seguinte, ele continua com sua proposta de escrever para o público infantil e
traz à tona uma nova obra: La fête des morts. Uma curta narrativa ilustrada que conta as
aventuras do garotinho Vieux Os e suas descobertas sobre o mundo dos mortos. Ainda em
2009, o autor publica L’Énigme du retour (Prix Médicis em 2009 e Prix des libraires du
Québec em 2010). Neste período ele foi homenageado com o documentário: La Derive douce
d’un enfant de Petit Goâve, de Pedro Ruiz.
Em 2010, Laferrière publicou Tout bouge autor de moi, uma obra que versa sobre o
terremoto que atingiu o Haiti neste mesmo ano. Após a tragédia, o autor retornou a Montréal e
foi convidado para participar de uma conferência que lhe rendeu um texto publicado pela The
University of Alberta Press, intitulado Un art de vivre par temps de catastrophe. Esta
conferência lhe rendeu inspiração para duas publicações, uma em 2011, L’art presque perdu
de ne rien faire, e a outra em 2013, Journal d’un écrivain en pyjama.
Por volta de 2015, mais uma produção surge, Tout ce qu’on ne te dira pas, Mongo.
Um romance sobre o encontro entre dois homens, o recém-chegado Mongo e um velho
escritor morador de Montréal. Esses dois tentam desvendar a cidade e promovem uma leitura
aguçada acerca das relações na sociedade desenvolvida da província quebequense, com uma
experiência intercultural.
Em 2016, a editora Grasset publica a obra Mythologies Américaines, que reúne alguns
dos títulos anteriores de Dany Laferrière, com base na seleção do próprio autor. Neste
presente ano, o haitiano-quebequense fez uma grande surpresa a seu público. Ele produziu
uma espécie de „roman dessiné‟, intitulado de Autoportrait de Paris avec chat. Trata-se de um
romance, literalmente, desenhado por ele mesmo.
Laferrière ganhou vários prêmios, como o Grand prix Metropolis bleu de 2010, em
virtude do conjunto de suas obras. Uma de suas grandes conquistas foi a entrada na Académie
Française, na qual assumiu a cadeira de Hector Bianciotti (1930-2012) e tornou-se um
imortal da literatura em língua francesa no ano de 2013.
Salientamos ainda que Laferrière possui experiência com a sétima arte. Em 1989,
ocorreu a adaptação cinematográfica de seu primeiro romance, Comment faire l’amour avec
un nègre sans se fatiguer. Em 2004, o autor participou, como roteirista, da adaptação de seu
romance Le goût de Jeunes Filles (2017), e no mesmo ano também estreou o filme Comment
26

conquerir l’Amerique en une nuit, roteirizado e dirigido pelo próprio Laferrière. Já em 2005,
surgiu o filme Vers le sud, produzido e dirigido por Laurent Cantet em parceria com o autor,
que tinha como proposta a adaptação das novelas que Laferrière publicava na revista Grasset.
As conquistas de Laferrière, enquanto autor, colocam-nos frente a questões pertinentes
a respeito de sua escrita. Foi por meio do país anfitrião, o Canadá, que ele encontrou a
possibilidade de publicação, para assim tornar-se conhecido no mundo francófono, sendo
traduzido em várias línguas.
Dany Laferrière não é um entusiasta da literatura da Negritude25, mas tem como
proposta a problematização dos discursos raciais, dos preconceitos entre negros, da história do
oprimido, da luta do imigrante, e promove diversas críticas ao sistema totalitário que
governou o Haiti. Ele se recusa a tomar parte do discurso de exilado, como é o caso das
literaturas propagandistas que se estabeleceram em diferentes continentes, durante a diáspora
haitiana, segundo Kwaterko (2002).
Todavia, a vida política haitiana é uma resistência em seus textos, mas não como uma
propaganda exacerbada de denúncias constantes. Seus narradores: Vieux Os, Vieux,
Laferrière (FIGUEIREDO, 2007), possuem as características de um único narrador, em
diferentes momentos de vida, que evolui na história, assim como o percurso do seu autor.
Apesar de alguns trabalhos apresentarem as produções de Laferrière, no viés caribenho-
antilhano, gostaríamos de destacar que sua escrita se aproxima cada vez mais de uma
literatura mundial26, e que embora não exista uma exclusividade nacionalista em Dany
Laferrière, há características do nacional haitiano presente em suas obras, sobretudo a respeito
dos elementos culturais, existentes no ciclo Haitiano.
Procuraremos apresentar, no próximo tópico, este polo destacando exatamente estes
elementos, com a intenção de compreender os arranjos de Pays sans chapeau, obra
pertencente a este grupo. Destacamos também que não faremos um trabalho comparativo
entre os dois polos que dividem a Autobiographie Américaine de Dany Laferrière, uma vez
que nosso trabalho não pretende destacar a evolução estética do autor. Nosso interesse com
esta exposição é compreender as possíveis ligações entre nosso objeto de estudo e as outras
obras dele.

25
A negritude foi um movimento literário que surgiu na França com as revistas Légitime Défense e L’Étudiant
Noir. Esta literatura tinha como foco a consciência negra, num viés pan-africano. Quando se fala desta
manifestação literária o nome de Léopold Sédar Sanghor recebe um grande destaque, pois ele foi o escritor e
pensador que revolucionou a escrita africana e fundou este movimento.
26
Já propomos, em outros trabalhos, a análise da literatura de Laferrière pelo viés da literatura mundial, como no
artigo Pays sans chapeau (1997) de Dany Laferrière: uma escrita entre espaços culturais.
27

2 Vieux Os no ciclo haitiano

A divisão da Autobiographie Américaine27 de Dany Laferrière foi estipulada pelo


próprio autor, após finalizar o seu projeto de reescrita das dez obras que contém seus traços
autobiográficos ficcionalizados. Logo, ele decidiu que quatro de suas obras se dirigem ao polo
norte-americano, enquanto as outras seis correspondem ao ciclo Haitiano. Este último será
exposto aqui, segundo os eventos que conectam Pays sans chapeau às demais obras.
Nossa intenção é apresentar essas seis obras do referido autor, de modo que possamos
contextualizar nosso objeto de estudo dentro deste grupo. Não pretendemos uma análise
exaustiva de cada narrativa, mas expor as obras segundo os elementos religiosos e culturais
haitianos, posto que Pays sans chapeau é o romance que mais explora esse viés. Ressaltamos
que a sequência escolhida para a seguinte apresentação não corresponde à ordem de
publicação dos romances. Pretendemos reconstituir as fases de Vieux Os, respeitando as
seguintes etapas: Infância, Adolescência, Vida adulta (Exílio e Retorno).

2.1. A voz infantil

Um garotinho de dez anos de idade, que mora com sua avó, é o narrador de L’Odeur
du café (2016). Neste romance destacam-se as situações vividas por uma criança que convive
com adultos e passa muito tempo na varanda da casa dos avós maternos, na companhia de sua
avó Ba e de seu cachorro Marquis. Vieux Os, seu nome secreto que foi designado assim por
Ba, conta o seu cotidiano e suas pequenas aventuras na cidade de Petit-Goâve, assim como
seus momentos de enfermidade, tal qual as febres que o faziam delirar corriqueiramente.
É comum encontrar relatos de Vieux Os a respeito de seus sonhos e medos, sobretudo
ao que concernem as possíveis assombrações e seres sobrenaturais que habitam a casa da avó,
ou até mesmo, histórias assustadoras que se passam na cidade. Um exemplo disto é a história
que sua avó lhe conta. A senhora lhe diz que, certo dia, viu o espirito de um antigo conhecido,
diante do espelho oval que ficava no salão de sua casa, local no qual o menino evitava
transitar por medo do ambiente aparentemente assustador. O garotinho conta que Ba viu este
ser quando a filha dela, Ninine, estava se penteando em frente ao espelho. A senhora diz ao
garoto que a assombração queria violar sua filha, tomando o reflexo dela e colocando-o em
uma garrafa, para assim torná-la escrava dele.

27
Destacamos que foi feito a leitura das dez obras, que compõem a Autobiographie Américaine do autor.
28

Em outros momentos da narrativa, o menino cede a narração à sua avó que lhe conta
várias histórias de seu passado: conforme a vez em que confessou que sua casa foi construída
sobre vários túmulos antigos. Não é apenas Ba que conta histórias à criança, mas todos os
adultos que são próximos a casa. Essas histórias miraculosas ou, até mesmo, da rotina de uma
cidade pequena ganham versões diferentes de acordo com a visão apresentada pelos
personagens, e todos eles direcionam seus discursos aos ouvintes: Ba e Vieux Os, que
pacientemente as analisam.
Além da presença do próprio narrador, a obra L’odeur du café (2016) possui ligações
pertinentes com nosso objeto de estudo. Podemos destacar costumes da cultura haitiana
presentes nas duas obras. Tomemos como exemplo a prática de saudar os mortos. Em ambas
as narrativas encontram-se os relatos desta tradição, porém em L’Odeur du café (2016) é Ba
quem a pratica:

Ba pega o copo d‟água e a joga três vezes no chão. Ba diz que devemos
saudar os mortos.
Eu digo a Ba:
- Os mortos estão no cemitério.
Ba me olha e sorri. Para Ba, os mortos estão em toda parte. E desde que as
pessoas morrem, deve haver mais mortos que vivos sobre a terra. [...]
- O verdadeiro cemitério está em toda parte 28 (LAFERRIÈRE, 2016, p. 85).

Anteriormente, na exposição sobre o autor, destacamos uma passagem muito


semelhante a esta, para exemplificar o modo como Vieux Os anuncia a morte de Ba. Na
verdade, esta referência encontrada em Pays sans chapeau, além de estabelecer conexão com
a citação acima, reafirma uma prática cultural que é um ensinamento passado para Vieux Os,
ainda na infância.
Vale salientar que Ba é a personagem que demonstra vasto conhecimento cultural
haitiano. L’Odeur du café (2016), obra dedicada a esta senhora, consequentemente reúne
muitas práticas tradicionais da cultura popular do Haiti, tais como: a briga de galo, a figura da
curandeira ou rezadeira que promove milagres, pronunciamentos sobre os deuses haitianos,
Baron Samedi, Passilus e Érzulie.

28
“Da prend le gobelet d‟eau et jette l‟eau trois fois par terre. Da dit qu‟il faut saluer les morts.
Je dis à Da:
– Les morts sont au cimetière.
Da me regarde et sourit. Pour Da, les morts sont partout. Et depuis le temps que les gens meurent, il doit y avoir
plus de morts que de vivants sur la terre. [...]
– Le vrai cimetière est partout [...]” (LAFERRIÈRE, 2016, p.85).
29

Esta fase infantil possui continuação em Le Charme des après-midi sans fin (2016),
mas este retratará o último ano de Vieux Os com sua avó, pois ele descobre que retornará à
Porto Príncipe, para junto de sua mãe; fato que é revelado apenas no fim do romance. Vieux
Os, aos onze anos de idade, conta novas histórias sobre sua vivência na cidade, e
especialmente suas aventuras com os amigos Frantz e Rico e sua paixão por Vava.
A obra citada acima ainda é tomada por muitos eventos misteriosos e estranhos, que
estabelecem um ambiente místico e ameaçador. Diversas situações acontecem com o
narrador-personagem. Em um dia chuvoso, o grupo de amigos tenta se abrigar embaixo do
telhado de Nozéa, personagem que aparentemente possui poderes místicos. A senhora diz ser
noiva do Baron Samedi, o deus haitiano considerado o mestre dos cemitérios. Além de ver
pessoas que já morreram, esta mulher faz previsões sobre o futuro dos garotos.
Ao pedir para ler a mão de cada um deles, acaba por concentrar-se enfaticamente em
Frantz. Nozéa percebe que o amigo de Vieux Os é habitado por algum espírito. Ela invoca
esse ser, pedindo-o que se revele no corpo do garoto. Em seguida, apresenta grande receio em
ter lhe perturbado: “- Sim papai... Desculpe-me por ter lhe incomodado. Sim, sim, sim... Sim,
29
papai” (LAFERRIÈRE, 2016, p.76, Tradução nossa). Com este balbuciar e olhando
fixamente para o garoto, Nózea assusta os amigos. Ela aproveita e também faz uma previsão
sobre o narrador-personagem: “Pouco antes de se recostar, ela me lança um olhar de uma
30
doçura insuportável. - Você viajará, repete ela, mas você virá morrer em Petit-Goâve”
(LAFERRIÈRE, 2016, p.77, Tradução nossa). Vieux Os desacredita em toda a conversa que
se passou entre a velha e seus amigos, e assim que a chuva passa decide seguir seu passeio
pela cidade.
Outro episódio intrigante na obra é quando o narrador-personagem se esconde em um
cômodo da casa da sua avó para ouvir a conversa entre ela e uma amiga, Thérèse. A jovem
noiva procura Ba para se aconselhar sobre a sua noite de núpcias que se aproxima. Ela revela
que é virgem e que seu futuro marido não poderia saber disso, já que uma de suas amigas lhe
disse que os homens haitianos não gostavam de mulheres inexperientes. Ba a questiona por
causa de sua condição, posto que ela já teria sido companheira de outro homem. Desta
maneira, a idosa pergunta como a moça se manteve virgem. A jovem revela algo insólito a
respeito de sua relação com o primeiro homem de sua vida. Ele era casado com a deusa

29
“- Oui papa... Escuse-moi de t‟avoir dérangé. Oui, oui, oui... Oui, papa...” (LAFERRIÈRE, 2016, p.76)
30
“Juste avant de s‟allonger, elle me jette un regard d‟une douceur insoutenable.
- Tu voyageras, répète-t-elle, mais tu reviendras mourir à Petit-Goâve.” (LAFERRIÈRE, 2016, p.77)
30

Érzulie Dantor e, por este motivo, todas as vezes que o homem a tocava provocava grandes
queimaduras no corpo dela que deixaram marcas.
A infância de Vieux Os é marcada por eventos como estes. A narração do menino nas
duas obras, tanto em L’Odeur du café (2016) quanto em Le Charme des aprés-midi sans fin
(2016) constitui uma verdadeira compilação de momentos surreais.

2.2. Um narrador adolescente

Os momentos infantis de Vieux Os terminam com duas obras recheadas de erotismo:


Le Goût des jeunes filles (2017) e La Chair du maître (2002), ambas dedicadas à fase
adolescente e jovem deste narrador.
A narração deste primeiro livro, Le Goût des jeunes filles (2017), é alternada entre
quatro narradores-personagens: Vieux Os-Adulto, Vieux Os-Adolescente, Dany Laferrière-
Personagem e Marie-Michèle31. O romance começa com o Vieux Os-Adulto relatando seu
cotidiano, sua ligação com a tia Raymonde, e sua vivência na cidade de Miami. Em uma cena
na banheira, ele é interrompido pelo telefonema de Miki, uma mulher que despertou fortes
paixões na juventude. Ela pede que ele compre a revista Vogue do mês, a que estaria
estampada com a foto de Pasqualine 32, nos anos 60.
Após o telefonema de Miki, Vieux Os-Adulto compra a revista e se depara com uma
entrevista de Marie-Michèle, uma antiga conhecida que fazia parte do grupo de amigas de
Miki. A matéria de moda indicava que a haitiana entrevistada havia publicado recentemente
um diário de sua juventude, ambientado em Porto Príncipe. Logo, Vieux Os-adulto decide
comprar o livro dela.
O escritor haitiano (Vieux Os-Adulto) abandona a narração, criando um narrador-
personagem homônimo do autor Dany Laferrière. Ou seja, Dany Laferrière-Personagem
interfere em vários momentos da narrativa, dirigindo e roteirizando um filme, o qual possuirá
a narração de Vieux Os-Adolescente. Desta maneira, o Vieux Os da puberdade contará como
foi sua convivência com Miki e suas quatro amigas, durante um fim de semana turbulento.
Simultaneamente, trechos do diário de Marie-Michèle se alternam com o filme de Dany
Laferrière-Personagem, narrado pelo jovem Vieux Os.

31
Adotamos estas nomenclaturas como auxílio para a exposição a respeito dos narradores apenas na obra Le
Goût des jeunes filles (2017).
32
Uma jovem estilosa que fazia parte de um grupo de garotas populares, as quais moravam próximo da casa do
narrador-personagem.
31

Vieux Os-Adolescente apresenta um perfil casto às mulheres de sua casa, a mãe e as


tias, embora se meta em confusões com seu amigo Gégé, um jovem problemático que possui
o hábito de pregar peças nas pessoas e costuma frequentar os lugares mais perigosos de Porto
Príncipe. A história contada pelo narrador-personagem adolescente é uma destas confusões
que os dois garotos promovem.
Em um bairro perigoso da capital haitiana, Vieux Os-Adolescente espera por Gegé,
especificamente no Macaya Bar, lugar frequentado por prostitutas e militares pertencentes ao
exército ditatorial. Um destes militares estranha a presença de Vieux Os-Adolescente e decide
implicar com ele. Após saber do ocorrido, Gegé pede que o amigo espere do lado de fora do
bar, enquanto ele vai até lá. Gritarias e barulhos de tiros são ouvidos pelo garoto
amedrontado, enquanto o rapaz encrenqueiro retorna ao encontro dele, anunciando fuga do
local. Durante a correria, Gegé lhe mostra o motivo da confusão; ele estava com as mãos
ensanguentadas segurando os testículos do militar que ameaçou o amigo. Em seguida, Vieux
Os-Adolescente, em desespero, pede refúgio a Miki. Deste modo, o jovem adentra a vida do
grupo de amigas de Miki, bem como a própria vida da garota, uma vez que ela acaba sendo a
primeira relação sexual dele.
Esta obra possui fortes críticas ao contexto haitiano: às classes sociais, aos aspectos
históricos e, sobretudo, à cultura pop, consumida pelas personagens. Porém a mulher haitiana
é foco de Vieux Os, seja ela de classe baixa, média ou alta. Podemos destacar um evento
importante para a compreensão do erotismo e da imagem da mulher haitiana: o episódio em
que as amigas de Miki e ela decidem sair no carro de Papa, um homem casado que possui
relações extraconjugais com a maior parte das jovens deste grupo. Durante o passeio, as
garotas escutam uma música no aparelho de som do carro. O ritmo desempenha grande
influência em Marie-Erna. A música faz com que a menina entre em uma espécie de transe:

O solo de guitarra as prendem pelo ventre. Marie-Erna se inclina para frente,


a cabeça apoiada contra o banco de Papa, como se ela acabasse de receber
um violento soco no estômago. Enfraquecida. Os olhos embaçados. A
música a trabalha no ventre. Um corpo a corpo sem piedade. A voz rouca do
cantor é como um gancho. Corpo em transe. Rítmo Ibos. Érzulie Dahomey.
Os Ioas de Guiné. Na Buick 57. Marie-Erna cai, esgotada. Pescoço
quebrado. Espuma no canto dos lábios. A Buick vira na esquina da Cabana
Crioula. As meninas riem se salpicando perfume e pó 33 (LAFERRIÈRE,
2017, p. 75, Tradução nossa).

33
“Le solo de guitarre les prend au ventre. Marie-Erna se penche en avant, la tête appuyée contre le siège de
Papa comme si elle venait de recevoir un violent coup de poing à l‟estomac. Pantelante. Les yeux hagards. La
musique la travaille au ventre. Un corps à corps sans pitié. La voix érraillée du chanteur la revèle d‟un uppercut.
Cops en transe. Rythmes Ibos. Erzulie Dahomey. Les Ioas de Guinée. Dans la Buick 57. Marie-Erna tombe,
32

O possível transe que acontece com Marie-Erna, evocando a figura da deusa Érzulie,
permite-nos compreender seu poder de sedução, como algo proveniente do sobrenatural.
Deste modo, a figura da deusa garantirá o tema erótico na obra, potencializando o teor sensual
das personagens femininas presentes no carro. Marie-Erna experimenta os efeitos de uma
deusa que além de ciumenta é detentora de grande luxúria, como é comprovado por Vieux Os
em sua visita ao mundo dos deuses do panteão vodu, na obra Pays sans chapeau.
Em La Chair du maître34 (2002), um livro de crônicas, Vieux Os continua sua
exposição sobre como era sua adolescência no Haiti. O narrador-personagem, adulto,
rememora vagamente sua adolescência e conta como foi que descobriu sua paixão pelo sexo
oposto. Com descrições suscintas sobre os corpos das mulheres, o adolescente conta sobre as
suas experiências e seus diverções, em uma época difícil como a da ditadura haitiana:

Esse sentimento dominou minha adolescência (e a dos meus amigos). O


perigo estava por toda parte na cidade. Os tubarões passavam tanquilamente
no lago ou circulavam pela cidade [...] Um mundo de trevas. Apesar de tudo,
eu era como um peixe na água. Sabia como evitar os tubarões 35
(LAFERRIÈRE, 2002, p.15, Tradução nossa).

Além dessa crônica, o livro não possui histórias narradas por Vieux Os. Acontece que
essa obra se limita a desenvolver narrações ambientadas no Haiti e que detém uma grande
diversidade de temáticas, bem como de narradores. Encontramos pronunciamentos tanto sobre
as relações sexuais e raciais, quanto a respeito dos mitos e do contexto político do Haiti, nas
narrações de outras personagens.

2.3. A maturidade: do exílio ao retorno

A juventude do nosso narrador é retomada em Le Cri des oiseaux fous (2015). Este
romance contará sobre os últimos dias de Vieux Os em sua cidade natal, antes de partir em
exílio para Montréal. O cotidiano do jovem jornalista é acometido pela morte de seu melhor

épuisée. Cou cassé. Écume au coin des lèvres. La Buik prend le tournant au coin de Cabane Créole. Les filles
rient en s‟aspergeant de parfum et de poudre” (LAFERRIÈRE, 2017, p. 75).
34
Tendo em vista que nossa proposta é reconstruir o percurso de Vieux Os, destacando os eventos e elementos
sobrenaturais das obras, acreditamos que torna-se inviável analisar outras histórias que “escapem” de sua
narração.
35
“Ce sentiment a dominé mon adolescence (et celle de mes amis). Le danger était partout dans la ville. Les
requins passaient tranquilement au large ou circulaient dans la ville [...] Un monde des tenèbres. Malgré tout,
j‟étais comme un poisson dans l‟eau. Je savais comment éviter les requins” (LAFERRIÈRE, 2002, p. 15).
33

amigo e colega de trabalho Gasner Raymonde, encontrado morto em uma praia de Porto
Príncipe. Depois do ocorrido, a vida de Vieux Os sofre uma mudança drástica. Ao descobrir
que o nome do seu filho constava em uma lista de procurados pela milícia haitiana do
governo, sua mãe solicita ajuda a um amigo da embaixada nacional do Haiti. O homem decide
ajudá-la, com a condição de que seu filho abandone o país em segredo, para a própria
segurança do jovem jornalista.
Quando fica sabendo disso Vieux Os toma a decisão de viver intensamente seus dois
últimos dias na capital haitiana. Ele procura se despedir dos seus amigos e se declarar para o
grande amor de sua vida, Lisa. Boa parte da obra desenvolve-se na procura do rapaz pela
moça. Entre esses momentos da saga por sua paixão junvenil há vários episódios insólitos na
narrativa. Por exemplo, quando Vieux Os narra seu encontro com Legba, o deus haitiano
guardião da passagem entre os mundos dos vivos e dos mortos. O narrador-personagem,
decidido a encontrar Lisa, segue a pé para o bairro de Pétionville, onde estava acontecendo a
festa de Régine, uma grande amiga do seu amor. Porém, o rapaz é impedido por causa de uma
matilha que tenta atacá-lo na rua. Logo, surge Legba, um simpático e simples motorista que se
oferece para levá-lo até o local da festa.
Quando chegam à casa de Régine, Legba revela ser irmão do dono da casa, o pai de
Régine. Disposto a cumprimentá-lo o motorista desce do carro e sai à procura do dono da
propriedade. Por sua vez, Vieux Os sai em busca de Lisa. Após a partida de Legba, Vieux Os
relata como conheceu o tio da aniversariante, em uma conversa com a irmã dela, Bibi. O
jovem lhe conta que Legba, o tio das garotas, estava procurando pelo pai delas. Bibi não só
desconhece Legba como também demonstra não entender aquilo que Vieux Os falava.
Segundo a garota, o seu pai havia morrido há muito tempo. Logo, seria a aparição do deus
haitiano? O mistério permanece na obra. No fim do romance, Vieux Os segue para o
aeroporto, se despede discretamente de sua triste mãe, e se dirige ao portão de desembarque.
Ao cruzar o portão, ele é interceptado por alguém:

[...] Meu corpo parece se esvaziar de sangue, quando uma voz familiar
cochicha em minha orelha: “boa viagem, meu amigo”. Eu me viro e
encontro-me face ao rosto resplandecente de Legba. Esse Legba que me
salvou dos cachorros, é o deus que se mantem à porta do mundo invisível.
“Você nunca passará ao outro mundo, dizia sempre Ba, se Legba não lhe
abrir o portão” [...] Posso respirar. A partir do momento em que Legba em
pessoa veio me abrir a última porta, estou fora do alcance de todo mal 36
(LAFERRIÈRE, 2015, p. 313-314, Tradução nossa).

“[...] Mon corps s‟est comme vidé de son sang, quand une voix familière me glisse à l‟oreille: “Bon voyage,
36

mon ami.” Je me retourne et me retrouve face au visage rayonnant de Legba. Ce Legba, qui m‟a sauvé des
34

A resolução apresentada na citação acima se encontra no fim do romance. Podemos


interpretar que o narrador-personagem reconhece Legba, por causa do episódio vivido na casa
de Bibi, durante o aniversário de sua irmã Régine. Quando Vieux Os estava desesperado para
encontrar Lisa, o homem ressurge, revelando-se um deus, com o proposito de tranquilizar este
rapaz durante sua fuga para outro país. É como se Legba estivesse sempre protegendo e
guardando Vieux Os dos perigos no próprio país.
Em Pays sans chapeau, vinte anos depois de seu exílio, ele regressa a Porto Príncipe
com a finalidade de escrever um livro. Agora, na condição de escritor bem sucedido, Vieux
Os narra seus reencontros com a família, antigos amigos e o momento em que, enfim,
consegue se declarar a Lisa. Ele ressurge, na capital haitiana, como um estrangeiro à sua
própria cultura materna. Desabituado às práticas culturais, ele redescobre seu país.
Entretanto, o seu propósito de redigir o livro sobre sua pátria é interrompido quando
ele percebe que há algo de estranho acontecendo na nação. Vieux Os se envolve com o
mistério da formação de um exército zumbi. Suas suspeitas se estendem a Bombardopolis. A
pequena cidade que estava sendo investigada pela ONU por causa de seus moradores. Os
americanos notaram várias situações, aparentemente, difíceis de compreender. A maior
preocupação deles foi quanto à fome.
Segundo as descobertas dos pesquisadores Norte-Americanos, os moradores do
lugarejo não eram como os outros seres humanos. O povo se limitava a comer uma refeição a
cada trimestre, com o pretexto de não sentirem fome como as demais pessoas. Com o auxílio
do professor J.B Romain e o doutor psiquiatra Legrand Bijou, Vieux Os reúne várias pistas
sobre o que realmente seria este exército.
Durante sua pesquisa acerca deste mistério, Vieux Os se depara com o convite de
Lucrèce, o padrinho de sua tia René. Este senhor estimula o narrador-personagem a visitar o
mundo dos mortos, para que ele fale pessoalmente com os deuses do Vodu. Vieux Os aceita o
convite de fazer a excursão pelo além, conhecendo pessoalmente os deuses Legba, Erzulie,
Ogou, Marinette e Damballah. Após este encontro, ele se decepciona com as divindades. Até
que uma delas decide ir ao mundo dos vivos e convencer o escritor famoso a escrever o livro.
Desse modo, Pays sans chapeau se constitui de duplicidades. Até mesmo em sua
divisão, uma vez que há dois polos que nomeiam os capítulos, se intercalando na obra; Pays

chiens, est le dieu qui se tient à la porte du monde invisible. “Vous ne passerez jamais dans l‟autre monde, disait
toujours Da, si Legba ne vous ouvre la barrière.” [...] Je peux respirer. À partir du moment où Legba en personne
est venu m‟ouvrir la dernière porte, j‟ai été hors d‟atteinte de tout mal ” (LAFERRIÈRE, 2015, p. 313-314).
35

réel e Pays rêvé. O primeiro dedica-se ao cotidiano e aos elementos da cultura popular
haitiana, enquanto o segundo direciona-se ao plano místico do religioso haitiano, o seu
imaginário. Estes dois mundos se cruzam constantemente, promovendo verdadeiras
(com)fusões 37 entre os dois países.
Com essa narrativa, Dany Laferrière fecha o seu ciclo haitiano. Através das temáticas
da morte, da prática vodu, das lendas e mitos, ela se conecta às outras obras deste autor.
Podemos perceber que esta obra se vincula as outra narrativas não apenas por causa da
presença dos eventos sobrenaturais, mas também por retomar passagens, construção dos
enredos e garantir a intertextualidade de personagens, que transitam entre as narrativas.
Tomemos como exemplo o seguinte episódio: a personagem Marie, mãe de Vieux Os,
declara constantemente, em Pays sans chapeau, que Porto Prìncipe não passa de um “[...]
38
grande cemitério.” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 86). Na presente narrativa, esta frase é
enfatizada por diversas comparações entre o cemitério e o país, entre mortos e cidadãos e
entre o exército zumbi e as autoridades armadas norte-americanas que estão instaladas em
Porto Príncipe. Todavia, há uma possível conexão entre a frase de Marie e os dizeres de Ba,
sua mãe e avó de Vieux Os, em L’Odeur du café (2016). Na passagem que destacamos sobre
a infância do narrador-personagem podemos reconhecer esta „impregnação‟ da morte, posto
que a própria Ba dizia que o verdadeiro cemitério se encontrava por toda parte. No projeto de
Dany Laferrière, seria Pays sans chapeau a materialização deste post-mortem? Não temos a
intenção de responder esta questão, mas salientamos que esta reflexão nos ajuda a
compreender a referida narrativa.
De acordo com Lucas (2002), o título do nosso objeto de estudo é uma expressão
39
haitiana: “peyis san chapo”, que significa “o lado de lá” ou “além”. Laferrière explica nas
páginas de dedicatória do que se trata este ditado: “Paìs sem chapéu, é assim que se chama o
40
lado de lá no Haiti porque nunca ninguém foi enterrado com seu chapéu” (LAFERRIÈRE,
2011, p. 7). A própria explicação de Laferrière é pouco clara para nós, mas percebemos que é
proposital que o além se torne elementar na obra. Por isso a insistência nas comparações entre
vida e morte.

37
Aqui referenciamos o trabalho de Nathalie Courcy, intitulado: La traversée du Pays sans chapeau :
(Con)fusion des mondes, vérités multipes et identités plurielles. A autora propõe uma pesquisa a respeito dos
entrecruzamentos entre os universos que dividem nosso objeto de estudo.
38
“[...] grand cimetière” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 103).
39
O “Lado de lá” foi escolhido como tradução para “l‟au-delà”, por Moreira (2006), na versão brasileira do livro
Pays sans chapeau de Dany Laferrière. A estudiosa explica em sua tese de mestrado que escolheu adotar este
sentido, para evitar a possìvel satanização e folclorização que a palavra “além” pode trazer ao texto.
40
“Pays sans chapeau, c‟est ainsi qu‟on appelle l‟au-delà en Haïti parce que personne n‟a jamais été enterré avec
son chapeau” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 7).
36

As duplicidades em Pays sans chapeau são tão abundantes que não podemos apenas
compreender esta passagem em conexão à perspectiva do misticismo religioso que a
personagem Ba atribui ao cemitério, no romance L’odeur du café (2016). Há possibilidade de
ser uma obra que retoma não só o viés religioso haitiano, mas que também procura se
pronunciar sobre uma espécie de desumanização enfrentada pelos haitianos após a ditadura
militar de Duvalier. Deste modo, o cemitério, destacado por Ba em L’Odeur du café (2016) e
retomado por Marie em Pays sans chapeau, possibilita a visualização do contexto religioso e
da imagem de um país que luta pela sobrevivência.
Ademais, a viagem feita por Vieux Os pelo mundo dos mortos, relatada em nosso
corpus, está aparentemente vinculada à profecia de Nozéa, personagem mística de Le charme
des après-midi sans fin (2016). Esse episódio, que se passa durante a infância do narrador-
personagem, mencionado anteriormente, pode indicar-nos não só o exílio, como também o
retorno ao país. Nozéa, em sua profecia imprecisa, destaca que embora o garoto viajasse para
outro lugar ele iria retornar para morrer em Petit-Goâve. Todavia, esta morte não ocorre, mas
a viagem é intensificada em toda a obra como se o destino de Vieux Os fosse percebido pelos
personagens adultos, que insistem em dizer que o garotinho nasceu para realizar grandes
coisas fora de Petit-Goâve.
Desde esse momento, Vieux Os se sente em uma constante viagem. Por exemplo,
quando ele fala dos mortos de sua família, em Pays sans chapeau: “Eles estão aqui, bem perto
de mim, os mortos. Meus mortos. Todos aqueles que me acompanharam durante essa longa
41
viagem” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 33). Esta citação pode ser interpretada como a
declaração, por parte do narrador-personagem, como se ele tivesse alegando que finalizou sua
viagem sob a proteção dos seus familiares mortos que sempre estiveram com ele. No entanto,
no decorrer da narrativa, ele descobre a possibilidade de mais uma viagem. Dessa vez, um
deslocamento até o além, num mundo habitado por divindades haitianas.
Quanto às personagens42 que formam uma intertextualidade entre nosso corpus e as
outras obras do ciclo, podemos destacar as divindades Érzulie e Legba. Até o presente
momento, citamos a presença da primeira nas narrativas Le Charme des après-midi sans fin
(2016) e Le goût des jeunes filles (2017). Nas duas obras, a deusa Érzulie surge em um

41
“Ils sont là tout autour de moi, les morts. Mes morts. Tous ceux qui m‟ont accompagné durant ce long voyage”
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 37).
42
Gostaríamos de destacar as personagens presentes em Pays sans chapeau que surgem também em outras obras
do ciclo haitiano, são elas: Vieux Os (narrador-personagem), tia René, Marie, Lisa, Manu, Philippe e as
divindades Érzulie, Ogou e Legba.
37

contexto sexual e luxurioso, seja envolvida com homens casados, seja possuindo o corpo de
mulheres.
Igualmente, em Pays sans chapeau, há eventos que envolvem o comprometimento
entre a deusa e os humanos. Durante as investigações de Vieux Os, o professor Legrand Bijou
lhe conta que seu amigo coronel recebeu a carta de uma jovem senhora casada com um dos
soldados do exército norte-americano. No conteúdo da carta, a jovem esposa contava que seu
marido se negava a manter relações sexuais com ela nas terças e quintas porque seriam dias
dedicados à deusa haitiana:

[...] Naturalmente, reconheci logo Erzulie, a senhora do desejo... Imagine


isso: um jovem loiro do sul dos Estados Unidos, casado misticamente com
uma deusa negra do vodu. E a jovem branca obrigada a dividir o leito
conjugal com uma deusa mais negra que a noite43 (LAFERRIÈRE, 2011, p.
154).

Esse episódio assemelha-se muito à história da personagem Thérèse de Le Charme des


après-midi sans fin (2016). Esta personagem também dividia o leito conjugal com a deusa e
se manteve virgem durante seu primeiro relacionamento, por causa dos efeitos que a
divindade provocava sempre que seu amado a tocava. As duas obras podem nos fornecer um
quadro mais completo desta deusa. Ambas evidenciam as relações que a divindade procura
manter com os humanos, assim como o próprio apetite sexual de Érzulie.
Em outro momento da narrativa, “a senhora do desejo” também tenta possuir Vieux
Os. Ela insiste em mantê-lo como escravo sexual, na tentativa de fazer ciúmes ao seu marido,
Ogou, o qual estava deixando-a de lado há certo tempo. Um problema na relação conjugal
entre os deuses do panteão vodu estava causando um desequilíbrio no mundo dos vivos. Ao
investigar as narrativas podemos constatar que isto ocorre antes de Vieux Os ter nascido, uma
vez que a jovem Thérèse já vivenciava há muito tempo os problemas matrimoniais por causa
da deusa que interferia em seu casamento.
Do mesmo modo, em nosso objeto de estudo o deus Legba desempenha uma grande
função, transportar Vieux Os até o mundo dos mortos em segurança. Este deus assume a
figura de Lucrèce, o padrinho da tia de Vieux Os, a personagem René. Ele é o anfitrião do
escritor durante sua viagem ao além. Todavia, o narrador-personagem aparenta não conhecer

43
“[...] Naturellement, j‟ai tout de suite reconnu Erzulie, la maîtresse du désir... Vous imaginez ça : un jeune
homme blond du sud des États-Unis, marié mystiquement à une déesse noire du vaudou. Et cette jeune femme
blanche obligée de partager le lit conjugal avec cette déesse plus noire que la nuit” (LAFERRIÈRE, 1997, p.192-
193).
38

o seu antigo amigo. Se em Le cri des oiseaux fous (2015) Legba cria um vínculo de amizade
com Vieux Os, em Pays sans chapeau será diferente.
O deus da passagem entre os mundos aparenta ter sofrido alguma espécie de
metamorfose, ou o nosso narrador-personagem ficou tanto tempo fora do seu país, longe de
seus deuses, que se esqueceu do rosto “radiante” do amigo. Contudo, após adentrar o além e
se despedir brevemente de Lucrèce, com a intenção de explorar o mundo dos mortos, Vieux
Os reconhece-o: “[...] Agora sei quem estava comigo. Não era Lucrèce, mas Legba. Legba,
aquele que abre o caminho. É o primeiro deus que encontramos quando penetramos no outro
mundo”44 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 197-198).
A citação acima nos ajuda a decifrar se se trata do mesmo Legba. É como se a situação
de estar entre dois mundos ajudasse Vieux Os a lembrar da figura de seu amigo Legba. Ao
mesmo tempo, a situação do “não reconhecimento” também demonstra o estranhamento do
narrador-personagem que partiu há muito tempo e se despediu de seu antigo mundo. Pays
sans chapeau comprova que Vieux Os cumpriu a sua promessa, ao que concerne a sua nação,
que foi feita no momento de sua partida para o exílio em Le cri des oiseaux fous (2015):

Um nova cidade para conhecer muito bem. Sem guia. Nem deus. Os deuses
não me acompanharão. O antigo mundo não poderá me ser de nenhuma
utilidade. Ao contrário, é preciso esquecer-me dos meus deuses, dos meus
monstros, dos meus amigos, dos meus amores, das minhas glórias passadas,
do meu eterno verão, das minhas frutas tropicais, dos meus céus [...] 45
(LAFERRIÈRE, 2015, p. 313, Tradução nossa).

Dessa maneira, Vieux Os se despede de fato de sua vida na pátria-mãe e ao


reencontrá-la em seu retorno ele a estranha e, por vezes, a desconhece, como ocorre com
Legba. Em seu retorno, Vieux Os comporta-se como alguém que está redescobrindo o Haiti.
Entre seus lapsos de memória dos locais, dos momentos vividos com os amigos e a família,
ele depara-se com a mentalidade conterrânea, as crenças, as práticas cotidianas que revelam a
sua cultura materna. Os eventos sobrenaturais presentes em nosso objeto de estudo podem e
devem ser compreendidos como um reencontro para o nosso narrador-personagem.
A abundância desses elementos culturais e religiosos, distribuídos nessas seis obras,
revela-nos algumas características da escrita de Laferrière. Ao estudarmos sobre os

44
“Maintenant, je sais qui était avec moi. Ce n‟était pas Lucrèce, mais Legba. Legba, celui qui ouvre le chemin.
C‟est le premier dieu qu‟on rencontre quand on pénètre dans l‟autre monde” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 250).
45
“Une ville nouvelle à connaître par coeur. Sans guide. Ni dieu. Les dieux ne m‟accompagneront pas. L‟ancien
monde ne pourra m‟être d‟aucun secours. Au contraire, il me faut tout oublier de mes dieux, de mes montres, de
mes amis, de mes amours, de mes gloires passées, de mon éternel été, de mes fruits tropicaux, de mes cieux [...]”
(LAFERRIÈRE, 2015, p. 313).
39

movimentos literários haitianos, percebemos que a obra Pays sans chapeau, e o presente
ciclo, podem deter algumas características provenientes de um passado estético literário. A
referida narrativa não só recai sobre a temática do retorno do exílio, comumente explorado
pelas literaturas haitianas da diáspora, como também explora os ritos e as crenças referentes
ao imaginário coletivo cultural (MOREIRA, 2006). A recorrência destes elementos e eventos
sobrenaturais nas obras de Laferrière seriam, portanto, proveniente de uma tradição literária?
Na subseção seguinte, exploraremos mais esta questão.

3 A tradição na pós-modernidade

É certo que a tradição literária haitiana penetra a escrita pós-moderna de Laferrière,


mas antes de expor sobre a questão vejamos algumas concepções de Tradição no texto
literário, nas perspectivas de Cândido (2002), Eliot (1989) e Paz (2013).
Em Cândido (2002), a tradição é percebida como uma “espécie de tocha” que é
passada de geração em geração, ou seja, o sentido primeiro da tradição “[...] transmissão de
algo entre homens” (CÂNDIDO, 2002, p. 24). Por sua vez, a literatura é observada como um
sistema de obras interligadas, que possuem elementos de compartilhamento desta tradição.
Nessa perspectiva, a obra literária, quando observada em sua totalidade, apresenta uma
integração a um sistema que revela os seus aspectos em comum às outras obras, as quais
podem ser notadas nas características, nos elementos, estilos e (ou) temas que elas
apresentam. Sendo assim, para este teórico, a tradição na literatura seria uma espécie de
herança.
A analogia desse literato brasileiro implica que enxerguemos a tocha como a própria
obra literária e seu sistema como o percurso no qual a tradição se instalaria. Portanto, a
analogia da tocha implica na participação de um alguém que a acenda, a carregue ao “outro”.
O estudioso afirma que uma nova criação que foge conscientemente deste esquema torna-se o
ponto inicial para a formação de outros sistemas. Ou seja, rupturas que podem iniciar uma
nova herança. Assim, a tradição não surge do acaso, como o próprio Cândido (2002)
argumenta sobre a formação da literatura brasileira. Antes que haja o „novo‟, o „antiquìssimo‟
resiste e atravessa os tempos.
Eliot (1989) aparenta concordar com Cândido (2002) ao dissertar sobre a consciência
de se ater à tradição durante o exercìcio do “escrever”. Porém, ele rejeita a ideia de observar o
autor como um herdeiro dela. Para o crítico literário inglês, a tradição deve ser algo a
40

conquistar-se por meio do esforço de um dado autor, que na atividade de sua maturidade
observa o passado literário histórico para ter consciência de sua própria temporalidade:

[...] e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da caducidade do


passado, mas da sua presença; o sentido histórico leva um homem a escrever
não somente com a própria geração a que pertence seus ossos, mas com um
sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero, e nela incluída,
toda a literatura de seu próprio país tem uma existência simultânea e
constituem uma ordem simultânea (ELIOT, 1989, p. 39).

Nesse sentido, o autor tradicional seria aquele que percebe o fator histórico que a
tradição exige; trata-se de uma formulação da escrita presente que possui a consciência do seu
passado. Ou seja, o novo se adequa e entra em harmonia através desse conhecimento do
passado, que para nós pode ser exemplificado na formação do cânone literário, que procura
sempre a inclusão de novas literaturas. Sendo assim, para perceber a tradição e os elementos
tradicionais de uma obra podemos recorrer aos próprios movimentos anteriores que
interligariam um dado sistema literário, como em uma espécie de investigação diacrónica.
Esse movimento de “olhar” para o passado histórico, apontado por Eliot (1989), nos ajuda a
compreender as composições que os autores do século XXI têm produzido.
O aspecto histórico apresenta-se, em Octávio Paz (2013), na definição da expressão
“tradição moderna”, a qual consiste em outra espécie de tradição:

[...] tradição moderna: é uma manifestação de nossa consciência histórica.


Por um lado, é a crítica do passado, uma crítica da tradição; por outro, é uma
tentativa, repetida frequentemente ao longo dos últimos dois séculos, de
assentar uma tradição no único princípio imune à crítica, já que se confunde
com ela: a mudança, a história (PAZ, 2013, p. 21-22).

Dessa forma, em Octávio Paz (2013), a tomada de consciência histórica se transforma


em uma convivência temporal do passado, presente e futuro. Diferentemente do “olhar” que
Eliot (1989) sugere, a tradição, em Octávio Paz (2013), consiste em um passado plural e
diverso, o qual recebe uma nova roupagem. Ou seja, a proposta da tradição na modernidade é
o “novo”, a criatividade através daquilo que já existe e existiu e, sobretudo, o “diferente”.
Embora a modernidade seja conhecida por ter promovido rupturas que negam o
passado a fim de desenvolver uma “autodestruição criadora” (PAZ, 2013, p. 17), sua
autocrítica frutificou em arte, que aderiu à concepção de criticar a si mesma. Para sermos mais
claros, podemos exemplificar com a obra Pays sans chapeau de Laferrière, na qual se
destacam discursos sobre o ato de escrever um romance e, ao mesmo tempo, expressa-se
41

sobre a pintura naïf, entre outros aspectos. Porém, a própria crítica pode ser percebida na
narração de Vieux Os, que compartilha com seu autor a profissão de escritor. Trata-se de um
personagem que é um escritor exilado que assume, na obra, seu amor por viajar. Ressaltamos
que, em uma entrevista concedida à Revista Brasileira do Caribe (2008), o autor Dany
Laferrière comenta sobre essa interpretação de sua obra, assumindo que os intelectuais
haitianos exilados têm receio em assumir que o país anfitrião possibilita uma vivência mais
concreta para o exercício da escrita literária, e que seu romance faz parte de sua declaração a
respeito desta temática.
Entretanto, segundo Paz (2013), o interesse da modernidade fundamenta-se não apenas
no novo, mas no diferente. Este último seria o responsável por negar ou aceitar o que foi feito
tanto agora quanto anteriormente. Logo, o passado pode ser contemplado como
contemporâneo devido à sua conotação de novidade que surge na contemporaneidade:
“Ungido pelos mesmos poderes polêmicos que o novo, o antiquíssimo não é um passado: é
um começo. A paixão contraditória o ressuscita, reanima e transforma em nosso
contemporâneo” (PAZ, 2013, p. 17). Isso explica, segundo o estudioso, o surgimento da
produção de várias civilizações antigas na arte moderna e a justificativa se encontraria na
inclinação desta modernidade à sua percepção temporal que considera a convivência do
passado com o agora.
Esta convivência dos tempos que se estabelece na tradição moderna é consequência de
uma aceleração temporal: “Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem
num aqui e agora” (PAZ, 2013, p. 19). Ou seja, se estendemos esta fusão à pós-modernidade,
perceberemos que temos vivido o encontro entre o passado, presente e futuro em uma só linha
temporal.
As três concepções de tradição, aqui apresentadas, ajudam-nos a compreender que ela
pode residir em uma literatura a partir de três diretrizes: a) o elemento tradicional que pode
manifestar-se através da participação de uma dada obra em um determinado sistema, b) a
tradição que ocupa lugar no texto proposital e conscientemente, e c) a tradição pode surgir
como o “novo” e “diferente”. Se há uma tradição em Laferrière, quais destas três formas se
adequam à sua escrita?

Pays sans chapeau: do Indigénisme à Estética da degradação

Até agora levantamos questionamentos a respeito da tradição na literatura de


Laferrière. Terminamos dois tópicos de nossa discussão com duas questões: a primeira
42

pressupõe a tradição por meio dos eventos e elementos sobrenaturais nas narrativas do ciclo
haitiano do autor, e a segunda se dispõe a compreender que tipo de Tradição seria essa. Para
fins de compreensão da tradição 46 na escrita haitiana imigrante do Quebec de Dany Laferrière,
iremos refletir a respeito do Indigénisme47. Esta seria a principal característica das obras do
ciclo haitiano de Laferrière.
Segundo Charles (1984) o Indigénisme não nasceu em 1927, com a revista haitiana
Indigène, apesar de ser um marco na história da literatura nacional haitiana com o surgimento
do movimento Indigéniste. A tese da estudiosa colabora com a visão de que o Indigénisme
sempre esteve presente na literatura haitiana, todavia em graus diferentes. Em sua exposição,
ela aborda historicamente a evolução estética e temática da literatura haitiana, revelando-nos
que, na verdade, o Indigénisme não é apenas o louvor à cultura do negro, mas a própria
identidade haitiana. A prova disso é que, para ela, este termo se aproximará cada vez mais do
haïtianisme. Ou seja, é uma identidade propriamente Haitiana. O surgimento do termo
“Indigénisme” vem desde as lutas pela independência. Portanto, está atrelado aos fatos
históricos do Haiti. Para fins de nossa compreensão, acerca dessa literatura, gostaríamos de
discutir especificamente sobre dois momentos da História haitiana: as revoltas do exército
negro e a ocupação norte-americana.
Inicialmente, o Haiti foi uma rentável colônia dominada por espanhóis (1492) e
posteriormente por franceses (1697). O primeiro grupo foi responsável pelas mortes de quase
toda a população autóctone, enquanto o segundo instaurou o tráfico negreiro, fazendo da ilha
a sua colônia mais rentável. Dessa maneira, Saint-Domingue, antigo nome do Haiti, marcou o
mundo com as primeiras revoltas impulsionadas, arquitetadas e comandadas pela grande
população de negros libertos e escravos:

A revanche dos africanos recentemente escravizados ou dos filhos de


africanos manifestou-se com a Guerra da Independência: arrasaram e
eliminaram os brancos da ilha, conseguindo a primeira revolução e
independência das colônias do sul e estabelecendo a primeira república
negra do mundo. (GRONDIN, 1985, p. 38)

46
Nossa intenção de dissertar sobre Indigénisme e correlacioná-lo às leituras da obra Pays sans chapeau é uma
tentativa de observar como funcionaria a concepção de tradição dentro do sistema literário, na visão de Cândido
(2002).
47
A concepção de Indigénisme proposta aqui se encontra mais próxima da visão trabalhada por Charles (1984),
como uma espécie de essência nacionalista, cujos movimentos literários haitianos colaboram para uma
manifestação. Todavia, Moreira (2006) possui uma concepção de Indigénisme como corrente literária, possuindo
uma cisão com o Noirisme, estes não foram abordadas por Charles (1984). Observando que os dois estudos se
complementam, decidimos utilizar ambos nesta exposição.
43

Durante essas revoluções, travadas entre os brancos franceses e negros africanos, as


raízes patrióticas foram cada vez mais estimuladas à imposição de uma nova língua e religião,
a qual unificou as várias etnias espalhadas pela ilha. Nas palavras de Grondin (1985):

Assim como o créole serviu de língua franca, o vodu serviu de religião


franca entre os escravos africanos de múltiplas tribos. [...] os escravos
integraram crenças, ritos, músicas e danças originários de suas diferentes
tribos para formar uma religião sincrética, símbolo de sua unidade e
diversidade (GRONDIN, 1985, p. 78).

Desse modo, o vodu e a língua créole surgem nesta terra dando prosseguimento à
ancestralidade vinda da África, contrapondo-se ao francês e ao catolicismo do colonizador.
Charles (1984), ao dissertar sobre o conceito de Indigénisme, lembra que este momento da
história haitiana é muito importante para a compreensão do termo, posto que foi a partir das
investidas de Boukman, sacerdote vodu e comandante do exército Indigène, que a religião de
matriz africana tornou-se vital para a vida dos haitianos. O comandante foi responsável por
fazer uma cerimônia vodu antes do ataque ao exército napoleônico, durante a luta pela
independência haitiana (1791- 1804). Com a conquista da independência, o nome de seu
exército foi atrelado à identidade nacional.
Por consequência, as primeiras literaturas nacionais haitianas 48 proveram-se da cultura
popular como inspiração e conteúdo para as suas produções dando prosseguimento com as
“[...] tradições, contos, lendas, crenças e provérbios das diversas culturas africanas, fundidas
em um todo harmonioso”49 (CHARLES, 1984, p. 16). Estas características seriam suficientes
para compreendermos a abundância dos elementos e eventos sobrenaturais, em Dany
Laferrière, como provenientes das crenças historicamente populares e parte da herança
literária haitiana. Sendo a “tocha acesa” (CÂNDIDO, 2002) que permanece até os dias de
hoje. Porém, há algo mais complexo nesta tradição.
O Indigénisme não será apenas a valorização cultural impressa na literatura, mas o
próprio haïtianisme. Charles (1984) afirma que os autores haitianos sempre enfrentaram essa
questão identitária: a defesa do país, da raça e cultura negras, e o social. Nesse sentido, as
obras de Dany Laferrière manteriam a tradição (CÂNDIDO, 2002)? Não. O nosso objeto de
estudo está longe de ser uma ode à identidade nacional.
48
Segundo Moreira (2006), o período de 1830-1930 é marcado como o romantismo haitiano. Com romances e
poemas de imitação, direcionados a vida local, o meio campestre e rural. As literaturas destacadas no trabalho da
tradutora revela que a temática de identidade social já era recorrente destes períodos. Os movimentos literários
agrupados deste período, no trabalho dela, são os seguintes: La Ronde, La Nouvelle Ronde, L’École patriotique.
49
“[...] les traditions, contes, légendes, croyances et proverbes des diverses peuplades africaines, amalgamés en
un tout harmonieux” (CHARLES, 1984, p. 16).
44

Nas outras obras do ciclo haitiano, vemos um narrador-personagem que sente medo e,
consequentemente, acredita nessas divindades do panteão vodu e compreende a cultura local.
Na fase infantil e adolescente, havia uma identificação com o nacional. Contudo, em Pays
sans chapeau, sua postura é completamente diferente. Há um estranhamento aos deuses, à
mentalidade haitiana e até mesmo a sua identificação com o país é conturbada, afinal, Vieux
Os é um expatriado.
Percebemos esse fato em uma dada situação na obra. O nosso narrador-personagem se
encontra com Pierre, o vizinho e amigo de sua mãe. O senhor conta-lhe que o haitiano foi o
primeiro homem a andar na lua. Ele explica que o americano Armstrong pensava estar
sozinho na planície do satélite natural da terra, mas constatou a presença de mais alguém. Era
um espírito de um homem haitiano que pedia-lhe um cigarro. Vieux Os reflete atentamente
sobre isso, mas não consegue compreender, em seguida assume: “Não, eu ainda não tinha
entendido, mas não queria dizer isso ao senhor Pierre para não decepcioná-lo. É nisso que dá
passar quase vinte anos fora do seu país. Já não entendemos as coisas mais elementares”50
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 96).
A incompreensão do narrador-personagem diante de vários acontecimentos na obra
pode ser um indicativo da sua aculturação, ao que se refere à identidade nacionalista. A
realidade local já não surte o mesmo efeito que em outros momentos de sua vida. Entretanto,
é exatamente o que movimenta a obra. Diante da própria incompreensão e dúvidas, ele
investiga o exército zumbi e encaminha a obra a um desfecho: o encontro com os deuses.
Esta mudança em sua identidade, proveniente do exílio, não é apenas a ruptura com o
Indigénisme, mas também o surgimento de uma nova Tradição: o “réenracinement”. Segundo
Kwaterko (2002), este termo se refere a uma reconstrução do passado. Para ele, um dos
autores precursores desta nova característica na literatura haitiana pós-moderna é o próprio
Dany Laferrière. Aqui, encontramos a tradição na visão de Paz (2013): o passado que se
constitui no presente. Esse “réenracinement” também pode ser atribuìdo à própria presença
das figuras míticas nas obras. Os mitos de fundação da pátria, que estiveram presentes durante
as lutas pela independência, rompem nas obras e permanecem em uma pós-modernidade
literária como o “novo”, embora primitivo; no sentido de antiquíssimo.
Destarte, o apogeu do Indigénisme é alcançado após a ocupação militar norte-
americana (1915-1934). Devido ao interesse pela situação política e rentabilidade que o Haiti

50
“Non, je n‟avais pas encore compris, mais je ne voulais pas le dire à M. Pierre pour ne pas le décevoir. Voilà
ce que c‟est que d‟avoir passé près de vingts ans hors de son pays. On ne comprend plus les choses les plus
élémentaires” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 115).
45

ainda podia fornecer, sobe o pretexto da instabilidade política de Cuba, os Estados Unidos
firmam um trato com o governo haitiano e se instalam no país:

Desde a construção do canal do Panamá (1904), o Haiti adquiriu uma


importância estratégica particular para os Estados Unidos. Um dos objetivos
da invasão americana e da ocupação (1915-1934) era precisamente assegurar
o controle da linha marítima que conduzia ao canal – o que foi feito com a
eliminação das forças rebeldes e através do apoio aos governos submissos ao
seu poder hegemônico. O fortalecimento da revolução cubana e seu efeito de
demonstração no Caribe, ameaçando o controle norte-americano sobre a
região [...] levaram os Estados Unidos ao rompimento com Cuba e a
intensificação de sua vigilância sobre os países da América Central
(GRONDIN, 1985, p.46).

Com essa interferência na nação, os haitianos sentem a perda da sua independência,


mais tarde surge a temporada de ditaduras no Haiti. A literatura sofre várias mutações, tanto
de forma quanto de conteúdo, munindo-se sempre do contexto político, social e cultural do
país. Em reação ao ambiente de ocupação, surge o movimento literário Ingéniste (1927-1934),
por meio da revista Indigène, citada no início deste tópico. Com uma proposta de ética racial e
conscientização nacional sobre as raças, tal corrente intencionou trabalhar a identidade
nacional retornando à ancestralidade africana, para se proteger da cultura ocidental dos
ocupantes americanos (CHALES, 1984).
A adição da Négritude e as ideias do movimento Indigéniste originaram a revista
Griots (1934-1940), que, por sua vez, se concretizou enquanto corrente literária. Com uma
busca exacerbada pela doutrinação e retificação da mentalidade haitiana, os escritores
pertencentes ao Les Griots mergulharam no misticismo negro, caracterizado pelas divindades,
pelo vodu, o zumbi, entre outros elementos. A partir dessa corrente, a literatura haitiana passa
51
a dispor de um estilo de escrita próprio: o romance Paysan . Segundo Charles (1984), este
seria o projeto Indigénisme, materializado em conteúdo e forma. Seria um romance de ação,
tomado pelo misticismo religioso: “[...] ele permite também ao autor de voltar até as raízes
originais de seu povo. O fundo, folclórico ao máximo” 52 (CHARLES, 1984, p.84).
Essas duas correntes são os destaques entre os movimentos literários haitianos, porque
representam a identidade haitiana mais próxima de sua ancestralidade africana, conforme
aponta Charles (1984). Nesse raciocínio, seria a literatura haitiana cada vez mais africana?

51
A palavra “Paysan” corresponde a “rural” ou “camponês”, no português.
52
“[...] il permet aussi à l‟auteur de remonter jusqu‟aux racines originelles de son peuple. Le fond, folklorique au
maximum” (CHARLES, 1984, p. 84).
46

Tais correntes literárias representam a miscigenação da nação ao tratarem as questões raciais?


Não temos a intensão de responder estas questões, apenas de colocá-las em evidência.
Gostaríamos de salientar que usufruímos, até o presente momento, do trabalho de
Charles (1984) para falar do Indigénisme em sua plena essência. Percebemos que sua leitura
sobre os movimentos literários é precisa e consistente, em sua totalidade, porém, salientamos
que as suas conclusões sobre os dois movimentos destacados aqui não são plausíveis. Não se
sustenta a ideia de que a “pureza” ancestral africana adotada pelos movimentos Indigéniste e
Les Griots representa aquilo que é de fato haitiano, embora haja uma confirmação de que
houve sempre uma busca pelas essências adotadas por esses movimentos. As conclusões de
Charles (1984) conectam-se às ideologias radicais de um movimento literário, que vigorou
durante as ditaduras haitianas (1957-1986), ocorridas logo após a ocupação norte-americana:
o Noirisme.
A discussão sobre as duas correntes literárias confirma o raciocínio adotado por
Moreira (2006) ao dissertar sobre Indigénisme53 (1930-1960) em aproximação ao Noirisme54.
A tradutora defende que a exploração exacerbada da “África mìtica” foi a base para a
ideologia do Noirisme, corrente literária vigente durante a ditadura Duvalier (MOREIRA,
2006, p. 35). Já Charles (1984) destaca o nome do ditador Papa Doc como parte dos
integrantes do grupo Les Griots.
Para Moreira (2006), o Indigénisme está além do romance Paysan e não se restringe
ao misticismo africano. Os estudos de Moreira (2006) contribuem para a visão de que a
literatura haitiana recorre não só às questões raciais, mas também ao social e ao político.
Observamos que esses dois últimos aspectos seriam as marcas que se destacam na literatura
haitiana. A prova disso são as literaturas que se opuseram à ditadura Duvalier e que
continuaram a se alimentar do contexto social.
Poderíamos agora compreender uma das propostas de Laferrière em Pays sans
chapeau: se a ditadura Duvalier está ligada aos movimentos literários Indigéniste, Les Griots
e Noirisme, que radicalizam a valorização das culturas africanas, qual seria a reação de um
autor que foi banido durante este tempo? Escrever uma literatura exótica em prol de uma
imagem do país caribenho ou se opor, em todas as formas possíveis, ao sistema totalitário que

53
Para Moreira (2006) o Indigénisme encontra-se mais atrelado ao movimento literário Indigéniste, como
explicamos anteriormente.
54
A referida corrente literária não foi teorizada por Charles (1984) e há pouquíssima teorização deste
movimento. Apontamos que esta pode ser uma lacuna que deveria ser preenchida, porém não temos a intenção
de abordá-la profundamente. Acreditamos que as correntes Indigéniste e Les Griots são suficientes para
demonstrar a tradição em Laferrière, assim como as rupturas que sua escrita promove.
47

mudou a paisagem cultural e intelectual do Haiti? Laferrière decidiu pela segunda opção ao
propor reflexões profundas a respeito das raízes patrióticas.
É provável que o misticismo surja nas obras 55 de Laferrière como uma forma de
resistência da tradição, mas recebe uma nova configuração em Pays sans chapeau. Por isso,
há um trecho intitulado “Deuses de classe média” nesta narrativa, dedicado às divindades do
Panteão Vodu. Tal obra reúne o máximo das características adotadas pelos movimentos
Indigéniste e Les Griots: os provérbios em créole que antecedem cada capítulo, as divindades
do panteão vodu, presentes na obra, os eventos sobrenaturais no meio rural na cidade de
Bombardopoplis; como se fosse uma simulação do romance Paysan. Essas composições se
contrapõem ao meio urbano e agressivo de Porto Príncipe, à presença de soldados norte-
americanos na cidade, evidenciando o contexto que surgiu os movimentos literários
mencionados aqui.
Poderíamos observar a própria forma literária adotada em nosso objeto de estudo
como sendo mais uma resistência histórica: a vertente do Realismo Maravilhoso 56, que foi
aderido pela corrente Les Griots e que constitui-se como tradição, segundo Charles (1984). O
misticismo africano se materializa na obra por meio dos eventos ou elementos sobrenaturais,
como, por exemplo, a presença corriqueira de zumbis nos romances Paysan.
Podemos observar o Realismo Maravilho em Pays sans chapeau como exemplo. Há
uma busca de informações por Vieux Os, ao que concerne à formação de um exército zumbi.
Em um dado momento, ele observa a conversa entre sua mãe e uma vizinha. A primeira
percebe o interesse do filho e se direciona a ele, confessando que os que moravam em sua
cidade já não seriam mais seres humanos. Para a senhora, tratam-se das figuras religiosas:
“[...] À noite, são bizangos. De dia, zenglendos” 57 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 41). Vieux Os,
por sua vez, questiona como poderia diferenciá-los das outras pessoas, algo que sua mãe
responde apontando o aspecto de que eles não teriam alma. Ela relaciona a imagem destas
entidades à figura dos zumbis, contando que os sacerdotes vodus procuravam despertar todos
os mortos e entraram em Porto Príncipe com um misterioso exercício:

- O exército dos zumbis - murmura, finalmente. – São dezenas de milhares.


Os sacerdotes vodus vasculharam o país de norte a sul, de leste a oeste.
Vasculharam todos os cemitérios do país. Despertaram todos os mortos que
dormiam o sono dos justos. Em toda parte – minha mãe abre os braços

55
Essas obras seriam: L’Odeur du café(2016), Le Charmes des après-midi sans fin (2016), Le Goût des jeunes
filles (2017), La Chair du maître (2002), Le Cris des oiseaux fous (2015), e Pays sans chapeau.
56
Em nosso terceiro capítulo faremos uma exposição sobre este aspecto da obra.
57
“[...] La nuit, ce sont des bizangos. Et le jour, des zenglendos” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 47).
48

amplamente e aponta em todas as direções. [...] Eles realmente foram para


todo lado. Nós os ouvíamos à noite, quando entravam em Porto Príncipe.
- Quem?
- Você não estava me ouvindo?! Filas de pessoas andando de cabeça baixa,
resmungando histórias pavorosas num patoá incompreensível 58
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 42-43).

Segundo Moreira (2011), Zenglendo foi um termo usado durante a onda de violência
do final dos anos 1980, fazendo referência ao termo “zenglen”, nome dado aos membros da
polícia secreta do Imperador Faustin I. Tratava-se, de fato, de um exército. Todavia, aqui, o
escritor incorpora as figuras míticas pertencentes ao panteão Vodu. A figura do zumbi se
estabelece em toda a obra e é utilizado em metáforas de forma abundante. Segundo Kwaterko
(2002), a obra Pays sans chapeau propõe o trabalho com as identidades haitianas e o próprio
imaginário se estabelece no crivo religioso da noção deste zumbi.
A exploração desses personagens míticos aponta-nos também para o próprio
Indigéniste. Porém, observamos que os zumbis, na obra de Dany Laferrière, adquirem uma
nova configuração, tanto de sentido quanto de valor. Para nós, o caráter que o autor impõe e
explora na figura do zumbi pode ser lido no contexto de tradição que Eliot (1989) disserta: a
consciência de que uma nova criação se estabelece a partir do conhecimento histórico. Ou
seja, Laferrière deve ser contemplado como um autor que, ao escrever, soube manipular o
elemento tradicional e renová-lo de forma ímpar, conservando a resistência às vertentes
literárias estabelecidas na era de Duvalier.
Destarte, as ideias marxistas também são adotadas em Laferrière, o que provém do
meio literário. Os escritores do final do século XX propunham-se a denunciar as formas de
alienação da sociedade, tanto política quanto cultural, com o objetivo de reorganizá-la.
Segundo Charles (1984), essas ideias são características dos escritores Afro-Indigénistes, os
quais buscavam produzir romances socialistas. Eles tentavam chamar a atenção do leitor para
o desemprego, as misérias e entre outras questões que eram problemáticas, mas não haviam
sido abordadas ainda.
Sendo assim, a adoção do Realismo Maravilhoso era atrelada ao termo Realismo
Crìtico: “Nessas obras, o autor lida vantajosamente com os costumes e tradições da sociedade,

58
- L‟armée des zombis, finit-elle par murmurer. Ils sont des dizaines de milliers. Les prêtres vaudous ont ratissé
le pays du nord au sud, de l‟est à l‟ouest. Ils ont réveillées tous les morts qui dormaient du sommeil du juste.
Partout – ma mère fait le geste en ouvrant ses bras largement et en pointant ses doigts dans toutes les directions.
[…] Ils sont même allés chercher des morts jusqu‟au pic Brigand dans le massif du nord. […] Ils sont vraiment
allés partout. On les entendait la nuit quand ils entraient dans Port-au-Prince.
- Qui ça?
- Tu ne m‟écoutais pas ! Des files de gens qui marchait la tête baissée, tout em marmonnant dans un sabir
incompréhensible des histoires épouvantabables (LAFERRIÈRE, 1997, p. 49-50).
49

que são impregnadas de „maravilhoso haitiano‟. Então ele transpõe seu pensamento polìtico e
literário em uma verdadeira arte romanesca” 59 (CHARLES, 1984, p. 103, Tradução nossa).
Nessa perspectiva, os autores buscavam, conscientemente, através do texto literário,
reunir valores e denunciar aquilo que era imposto pelo totalitarismo, promovendo uma
literatura crítica. Em Pays sans chapeau, encontramos, de forma sutil, a presença desta
adoção das ideias marxistas ao longo dos capítulos. Destacamos a seguir a passagem em que o
protagonista Vieux Os procura o professor J. B. Romain para questioná-lo sobre o exército
zumbi:

- Mas isso não é uma novidade no Haiti, professor. E também não é a


primeira vez que proprietários de terra fazem trabalhar zumbis em seus
campos.
- Sim, mas é a primeira vez que se assiste a uma revolta de zumbis...
Geralmente, o zumbi não tem nenhuma vontade. Ele nem chega a manter a
cabeça ereta. Ele só obedece60 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 64).

Na citação acima, podemos perceber que o trabalhador é correlacionado à figura do


zumbi, que exerce uma completa subserviência. O que Dany Laferrière promove é uma crítica
ao próprio sistema que, por sua vez, se manteve colonial durante toda história do Haiti,
explorando a população rural. Segundo Grondin (1985), 80% da população haitiana é
composta de homens e mulheres negras que vivem no meio rural. O professor canadense nos
mostra que essa parcela sempre foi vista como o negro pobre explorado. A classe rural foi
escrava, tanto do branco colonizador, quanto da elite negra da era Duvalier.
Ao que concerne ao Realismo Maravilhoso, constatamos que, durante toda a narrativa,
há um duplo sentido na figura do zumbi. Na primeira situação que apresentamos, pelo olhar
da mãe de Vieux Os, o zumbi será um ser mítico, o morto-vivo que desperta e causa terror. Já
na segunda situação, ele é um trabalhador rural explorado, de classe inferior que se revolta
contra seu patrão. Trata-se de um caráter simbólico, carregado de sentidos que extrapolam as
significações religiosas.
Acreditamos que essa forma de incorporação das ideias marxistas ao próprio elemento
mítico converge para uma crítica ao sistema totalitário que, além de deixar o país na miséria,

59
“Dans ces oeuvres, l‟auteur traite avantageusement des moeurs et des tradicions de la société, qui sont
empreints de „merveilleux haïtiens‟. Aussi transpose-t-il sa pensée politique et littéraire dans un véritable art
romanesque” (CHARLES, 1984, p. 103).
60
“- Mais ce n‟est pas nouveau en Haïti, professeur. Et ce n„est pas la première fois non plus que des
propriétaires terriens font travailler des zombis dans leurs champs” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 64).
“- Oui, mais c‟est la première fois qu‟on assiste à une révolte de zombis... Généralement, le zombi n‟a aucune
volonté. Il n‟arrive même pas à tenir sa tête droite. Il ne fait qu‟obéir ” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 74).
50

baniu diversos intelectuais e sempre explorou o próprio povo. Vale destacar que, em
literaturas anteriores, o zumbi era considerado mais um meio de promover ligações
identitárias entre os leitores que procuraram enxergar suas raìzes com a “maman africaine”,
através do aspecto religioso. Portanto, a renovação do elemento tradicional se instala nesta
incorporação da metáfora, a qual encontra-se comprometida com as ideias marxistas.
Dessa maneira, ligado ao Realismo Maravilho, ao Realismo Crítico e às ideias
marxistas, encontraríamos a Estética da Degradação. De acordo com Lucas (2002), a
61
Degradação seria “[...] um processo de decomposição progressivo e profundo” (LUCAS,
2002, p. 194. Tradução Nossa) e está fundamentada na subversão dos códigos adotados pelas
correntes romanescas haitianas: La Ronde, La Nouvelle Ronde e L’École patriotique.
A Estética da Degradação tem como proposta incorporar ao texto literário aquilo de
mais absurdo que acontecia na sociedade. Trata-se da denúncia da própria degradação
presente nas esferas sociais. Os autores passaram a adotar um engajamento literário de
resistência, conforme ocorre em Pays sans chapeau. Com isso, as múltiplas descrições de um
Haiti que é comparado ao mundo dos mortos, no qual a miséria e a violência ganham
destaque:

O que impressiona primeiro é o cheiro. A cidade fede. Mais de um milhão de


pessoas vivendo em uma espécie de lodo (mistura de lama preta, de detritos
e de cadáveres de animais). Tudo isso debaixo de um céu tórrido. O suor.
Mijam-se em todo lugar, homens e animais. Esgoto a céu aberto. As pessoas
cospem no chão, quase no pé do vizinho. Sempre a multidão. [...] Era assim
que Ba me descrevia as pessoas do lado de lá, no país sem chapéu,
exatamente como estes com quem cruzo no momento. Descarnados, longos
dedos secos, os olhos muito grandes nos rostos ossudos e, sobretudo, essa
fina poeira sobre quase todo corpo. É que a estrada que leva ao lado de lá é
longa e poeirenta. Essa opressiva poeira branca. O lado de lá é aqui ou lá?
Aqui já não seria lá? É essa minha investigação62 (LAFERRIÈRE, 2011, p.
58-59).

A miséria descrita por Vieux Os ganha espaço e toma quase todas as descrições na
narrativa. Não é apenas algo para “enojar” o leitor, mas para despertar sua atenção ao estado
que diversos homens ainda enfrentam em um país pobre e subdesenvolvido. Com isso,

61
“[...] d‟un processus de décomposition progressive et profonde” (LUCAS, 2002, p. 194).
62
“Ce qui frappé d‟abord, c‟est cette odeur. La ville pue. Plus d‟un million de gens vivent dans une sorte de vase
(ce mélange de boue noire, de détitus et de cadavres d‟animaux). Tout cela sous un ciel torride. La sueur. On
pisse partout, hommes et bêtes. Les égouts à ciel ouvert. Les gens crachent par terre, presque sur le pied du
voisin. Toujours la foule. [...] C‟est ainsi que Da me décrivait les gens qui vivaient dans l‟au-delà, au pays sans
chapeau, exactement comme ceux que je croise en ce moment. Décharnés, de longs doigts secs, les yeux très
grands dans des visages osseux, et surtout cette fine poussière sur presque tout le corps. C‟est que la route qui
mème à l‟au-delà est longue et poussiéreuse. Cette oppressante poussière blanche. L‟au-delà. Est-ce ici ou là-
bas? Ici n‟est-il pas déjà là-bas? C‟est cette enquete que je mène” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 68-69).
51

Laferrière faz a apresentação de um Haiti diferente daquilo que os autores caribenhos


costumam ritualizar. O suposto exotismo, que a obra “deveria” conter, cede espaço para a
novidade da denúncia.
De acordo com Lucas (2002) esta nova literatura revelou um sentido de transfiguração
dos humilhados e ofendidos, misturando fantasia e denúncia militante. Nesta perspectiva, a
literatura de Dany Laferrière assume um caráter de combate, e se opõe de forma plena à
colonização e à domesticação mental que a literatura anterior63 explorou, mesmo que passe
por questões coloniais, como o exotismo da África, o misticismo religioso e os diversos
clichês ligados ao colonizado. Não queremos subverter o texto de Laferrière e colocá-lo no
viés do colonialismo, mas acreditamos que seu ciclo haitiano traz toda a carga das questões
coloniais por causa de uma ditadura que se muniu da nostalgia de um povo que pertencia a
outra nação e que ainda se dividia entre África e Ocidente.
Essas características fazem do ciclo haitiano de Laferrière uma produção de
resistência, produzida no exílio. Observamos também que, em tal ciclo, a degradação se
fundamenta no próprio Realismo Maravilhoso, favorecendo a crítica às ideologias que
impunham a cultura africana como a única possibilidade de identificação nacional.
Percebemos que a tradição toma lugar nas obras do ciclo haitiano, sobretudo em Pays sans
chapeau, através dos elementos religiosos e culturais e com a forma do Realismo
Maravilhoso. A renovação da tradição se concretiza na incorporação das ideias marxistas e da
Estética da Degradação nas duplicidades trabalhadas pelo referido autor.
Consideramos que Dany Laferrière exerce em suas obras do ciclo haitiano o que Eliot
(1989) chamou de consciência do passado histórico. Em sua escrita, ele demonstra
conhecimento do seu passado estético literário e utiliza-se, sobretudo em Pays sans chapeau,
da herança do Indigéniste, dos elementos culturais do Realismo Maravilhoso, das ideias
marxistas e da Estética da Degradação para constituir uma nova literatura.
Esse contexto da literatura de Laferrière nos faz questionar a respeito de seu grande
sucesso, em um país que não é seu (o Canadá) e com uma produção como Pays sans chapeau.
Seríamos ambiciosos em argumentar sobre o seu surgimento como algo diferente e novo que
rompe a temporalidade, o tipo de literatura que é de extrema relevância nesta
contemporaneidade do século XXI, a qual Paz (2013) soube dissertar tão bem em seus
estudos. Todavia, podemos assumir que, diante de uma geração que vive em sua busca pelo

63
As literaturas dos movimentos Indigéniste, Les Griots e Noirisme.
52

diferente, as produções de Laferrière se apresentam como “novidades” que reafirmam a


tradição, por apresentarem uma multipliplas de tradições.
53

PAYS RÉEL

Em nosso capítulo anterior, enfatizamos a respeito da vida do autor Dany Laferrière,


de sua escrita - especificamente, o ciclo haitiano de sua Autobiographie Américaine - e de sua
contribuição para a tradição literária haitiana, tanto por meio da continuidade do Indigénisme
quanto por meio das rupturas promovidas nas produções do autor. Foi necessário abordar
parte do contexto histórico do Haiti e o papel que o créole e o vodu desempenharam no país,
enquanto elementos unificadores importantes para a constituição identitária do povo haitiano.
Tendo em vista esse contexto já exposto, gostaríamos de retomar a discussão a respeito da
religião de matriz africana, mas, dessa vez, com a intenção de refletir sobre a construção do
imaginário haitiano em Pays sans chapeau, compreendendo a imagem dos mitos do panteão
vodu na obra.

1 Da imaginação ao imaginário

Como vimos, as obras L’Odeur du café (2016), Le charme des après-midi sans fin
(2016), Le Goût des Jeune Filles (2017), La chair du maître (2002) e Le cri des oiseaux fous
(2015) costumam apresentar passagens sobre as divindades haitianas, porém, em Pays sans
chapeau, encontramos uma imagem mais precisa sobre os deuses do vodu: Érzulie, Ogou,
Marinette, Legba, Zaka e Damballah. A história contada por Vieux Os, em nosso objeto de
estudo, supera a estranheza do sobrenatural. Seu retorno ao país é marcado por um encontro
com os deuses do vodu no mundo dos mortos. Este regresso ao Haiti implica a retomada dos
mitos de origem africana.
Tendo em vista tal imaginário cultural, gostaríamos de promover uma análise sobre a
imagem dos seres mitológicos do panteão vodu em nosso objeto de estudo. Neste raciocínio, é
importante que compreendamos a definição de imaginário para que possamos construir uma
exposição sobre o vodu, como manifestação e expressão do povo haitiano, e suas imagens em
Pays sans chapeau. Pretendemos colaborar para uma leitura sobre imaginário conforme
Gilbert Durand (1989) desenvolveu. As análises deste estudioso foram motivadas pela
necessidade de contemplar a arte em sua função psicossocial. Seu desejo era despojar-se da
acusação de irrealidade conferida ao produto artístico, sobretudo a literatura.
54

O autor de As estruturas antropológicas do Imaginário promoveu grandes avanços no


campo do estudo da imaginação64 e da mitologia. Em seus trabalhos, Gilbert Durand (1989)
constata que a imagem e a imaginação não receberam a atenção que mereciam nos estudos
psicológicos e ontológicos. Para ele, as teorias de Sartre65 (1905-1980) se apresentavam
contraditórias ao colocar a imagem como signo arbitrário 66 e atribuir uma irrealidade a arte.
Ele aponta que muitos foram os erros do precursor dos estudos da imaginação, tais como: a) a
imagem ser compreendida como cópia distorcida de um objeto, como uma sombra de algo,
como o irreal, e b) atrelar à imagem a semiologia 67 de Saussure.
O pensamento do antropólogo e sociólogo francês indica que os estudos psicanalíticos
sartreanos tinham a tendência de abordar a consciência humana em favor de um “[...] niilismo
sociológico do imaginário” (DURAND, 1989, p. 22). Ele indica que os psicanalistas dessa
levada buscavam anular o valor da imagem, empobrecendo a consciência humana e sua
capacidade de formar imagens. Portanto, o primeiro passo do teórico foi retomar a discussão
sobre a imagem, estabelecendo-a como sìmbolo: “[...] O analogon que a imagem constitui não
é nunca um signo arbitrariamente escolhido, é sempre intrinsicamente motivado, o que quer
dizer que é sempre sìmbolo” (DURAND, 1989, p. 22). Ao evocar a imagem como símbolo,
ele a destitui da função de signo arbitrário e retoma uma discussão primordial do campo da
linguagem, no viés naturalista68 que tinha sido refutado por Saussure no estruturalismo.
Durand (1989) distancia a imagem da língua e alerta para a necessidade de lê-la e estudá-la a
partir dela mesma. Para ele, uma vez que a imagem é símbolo, ela possui um sistema de

64
Vale salientar que, em suas obras, Gilbert Durand usa com mais frequência o termo imaginação como
equivalente a imaginário. Portanto, sempre que nos referirmos ao termo „imaginação‟, estaremos solicitando os
conceitos encontrados nos estudos deste teórico.
65
Jean Paul Sartre (1905-1980) foi um grande filósofo existencialista e escritor francês. Ele desenvolveu estudos
no campo artístico, cujos principais questionamentos eram a respeito do irreal e real da arte.
66
As adoções feitas por Sartre, ao analisar a arte e a imagem, partem do campo de estudo de Saussure, o
fundador da linguística estrutural. Este segundo definiu que a língua se desenvolve como um sistema.
Consequentemente, o signo seria a “[...]unidade constituinte do sistema linguìstico” (COSTA, 2013, p.118), que
é formado por imagem acústica (significante) e conceito (significado). O signo, portanto, é produto da “[...]
associação de um conceito com uma imagem acústica” (COSTA, 2013, p.118). A arbitrariedade do signo implica
na associação entre significante e significado como uma convenção cultural “[...] que resulta do acordo implìcito
realizado entre os membros de uma determinada comunidade” (COSTA, 2013, p.120).
67
A semiologia ou semiótica é um campo de pesquisa que se interessa pela ciência geral do signo; sendo este a
linguagem humana de natureza verbal ou sistema de signos naturais, assim como culturais. Sua aproximação
com a linguística ocorreu com Ferdinand Saussure (1857-1913). Ele a observava como uma disciplina pertinente
da relação entre linguagem e realidade. Para este estudioso, a linguística deveria ser um ramo da semiótica. O
que difere a linguística da semiologia é que a primeira se interessa pela linguagem verbal, quanto à segunda
engloba todas as formas de linguagem (CUNHA; COSTA; MARTELOTTA, 2013).
68
Segundo Costa (2013) os naturalistas provém de uma visão filosófica grega, cuja pretensão principal era
compreender a maneira como as pessoas descreviam as coisas em sua volta. O pressuposto naturalista da
linguagem era de que “[...] as palavras eram, de fato, relacionadas por natureza às coisas que elas significavam”
(COSTA, 2013, p.119).
55

leitura próprio, mesmo que sofra mudanças constantes, e é sempre motivada pelo fator
psicossocial.
Uma questão pode surgir nesse momento de nossa exposição: qual a relação entre
imagem e imaginação? Durand (1989) redefine o conceito de imagem, atribuindo-lhe valor e
veracidade, para explorar o inconsciente em um viés psicanalítico. Seu segundo percurso foi
afirmar que o próprio pensamento humano “[...] repousa em imagens gerais, arquétipos, [...]
69
que determinam inconscientemente este pensamento” (DURAND, 1989, p.23). Portanto, o
homem pensa por imagens, no plural. Ou seja, as imagens são produtos da imaginação
humana e assumem proporções coletivas, históricas e universais que imergem do
inconsciente70.
Em uma entrevista a Revista Fanecos (2001), Maffesoli, estudioso e leitor de Durand,
exemplifica esta discussão. Ele comenta que a particularidade de cada cultura gera imagens
que possuem uma estrutura em comum. Ele revela que a proposta da antropologia do
imaginário do seu mestre é investigar a comunhão entre as imagens produzidas pelas diversas
culturas da humanidade, reconhecendo-as no nível universal advindo do inconsciente
humano.
O terceiro e decisivo passo de Gilbert Durand (1989) foi conceituar a imaginação
simbólica. Retomemos os pontos anteriores para compreender este termo. A imagem é
símbolo e o pensamento humano dar-se por meio destas imagens simbólicas universais. Logo,
a imaginação simbólica71 é:

[...] é dinamismo organizador, e esse dinamismo organizador é fator de


homogeneidade na representação. [...] muito longe de ser faculdade de
“formar” imagens, a imaginação é potência dinâmica que deforma as cópias
pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das
sensações torna-se o fundamento de toda a vida psíquica porque “as leis da
representação são homogêneas”, a representação sendo metafórica a todos os
nìveis, e, uma vez que tudo é metafórico, “ao nìvel da representação todas as
metáforas equivalem” (DURAND, 1989, p. 23).

69
Os arquétipos e o inconsciente coletivo são dois conceitos de Carl Gustav Jung (1875-1961) que Durand
(1989) dá continuidade em suas teorias. Trata-se de uma compreensão psicanalítica a respeito das camadas
profundas da psique humana e o seus valores simbólicos enquanto coletivos.
70
Durand (1989) expõe em sua obra que parte de suas análises também possuem base nos estudos do
psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), ao que diz respeito aos sonhos e símbolos do inconsciente presente nas
manifestações da imaginação do homem.
71
A imaginação como dinamismo organizador é um conceito desenvolvido por Gaston Bachelard (1884-1962).
Este filósofo e poeta francês iniciou as primeiras discussões a respeito da imaginação poética. Gilbert Durand
retoma, em várias de suas obras, as ideias deste outro teórico conferindo-lhe mais consistências.
56

A intenção do teórico na citação acima é expandir nosso conceito de imaginação para


além da discussão psicológica e nos fazer enxergar o meio social e a subjetividade psíquica
lado a lado. A imaginação será, portanto, uma força que pulsa e ultrapassa a própria
percepção humana, força capaz de deformar, reformar, transformar e atualizar não só o
pensamento, como também, o meio, em uma espécie de troca psíquica e social.
Em uma “matemática” de cunho antropológico e psicológico, tal estudioso da
mitologia nos propõe que a experiência social, histórica e geográfica do homem, em constante
interação com a sua subjetividade fará surgir a imaginação. Esta última, quando representada
assume uma metáfora homogênea. Com este argumento, o teórico elimina de vez a
possibilidade de a imaginação ser observada como irreal, já que ela também é fundamentada
na experiência social e psíquica do sujeito.
De acordo com Motta (2002), o imaginário de Durand ganha proporções coletiva e
organizadora para ser considerada como categoria analítica. Ao desenvolver seu trabalho com
a ambição de discursar sobre as culturas da América Latina, este estudioso resume as ideias
do teórico da imaginação:

[...] o imaginário de um povo abarca tanto as representações e práticas


ideológicas [...] como as alegorias, metáforas e práticas que expressam os
sentimentos individuais ou coletivos mais profundos e inconscientes. Assim,
o ideológico e o simbólico se tocam e interagem no imaginário” (MOTTA,
2002, p. 105)

A citação acima demonstra a amplitude do conceito que também pretendemos. Trata-


se de observar a imaginação de um povo em sua manifestação e representação, para que
possamos compreender as interações das imagens, assim como seu impacto em nosso objeto
de estudo. Na Revista Fanecos (2001), Maffesoli explica que a intenção dos trabalhos de
Durand era se voltar para a construção espiritual do ser humano, formulando uma ciência que
conseguisse dar conta tanto da objetividade quanto da subjetividade encontrada na vida sócio
psíquica do ser. Para ele, esta necessidade de focar na vivência torna o imaginário uma
realidade e, ao mesmo tempo, confere-lhe uma complexidade de definição.
Desta maneira, a imaginação em Durand (1989) é como um rio de águas turvas, que
mistura os conceitos e nos conduz para conclusões mutáveis e flexíveis. Devem-se fazer
esforços para capturar algo concreto, correndo-se o risco de perder alguma possibilidade em
meio ao percurso. Assumimos que há grande chance de termos subtraído outras dimensões da
imaginação, como por exemplo, seu caráter de essência, atmosfera e força. Entretanto, para o
presente trabalho, conseguimos algumas conclusões de nossa leitura sobre seus estudos, como
57

a noção de que a imaginação é simbólica, coletiva, espiritual, manifestação, epifania e,


sobretudo, real.
Em uma vertente oposta de influência marxista, Laplantine e Trindade (1997) criticam
Durand a respeito da universalidade psíquica do pensamento humano. A principal acusação
dos teóricos é que as pluralidades do imaginário são renegadas no estudo de Durand, por
causa do „universalismo‟ que ele desenvolve. Os autores de O que é imaginário
problematizam essa questão com o propósito de devolver às culturas suas diversidades de
imaginários, em uma espécie de luta pela individualidade dos povos da América Latina.
Entretanto, constatamos que Durand (1989) está longe de ser um aliado do
racionalismo por causa das suas ideias sobre as imagens do inconsciente universal. Para nós, é
nítido que o percurso do sociólogo e antropólogo francês foi o que permitiu Laplantine e
Trindade (1997) desenvolverem suas exposições a respeito do imaginário latino das
literaturas. É como se a obra desses dois fosse um experimento que comprovasse o conceito
de imaginação, destacado aqui. Fundamentados em uma contraproposta, os dois teóricos
optam por não definir imaginação, evitando o debate de Durand (1989), e se propunham à
desenvolver conceitos sobre os termos que este último não distinguiu tão precisamente.
Contudo, nossa intenção é contrapor apenas os conceitos referentes a imaginário, que nas
palavras dos autores seria:

[...] a faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de apresentação de


uma coisa, ou fazer aparecer uma imagem e uma relação que não são dadas
diretamente na percepção. [...] consideramos que a imagem é formada a
partir de um apoio real na percepção, mas que no imaginário o estímulo
perceptual é transfigurado e deslocado, criando novas relações inexistentes
no real. O imaginário faz parte da representação como tradução mental de
uma realidade exterior percebida, mas apenas ocupa uma fração do campo
da representação, à medida que ultrapassa um processo mental que vai além
da representação intelectual ou cognitiva. (LAPLANTINE & TRINDADE,
1997, p. 8)

Na citação acima, podemos observar que o imaginário é uma faculdade, um processo


mental e parte da própria representação e tradução da realidade exterior. Nesta perspectiva, os
teóricos resgatam o diálogo entre a imagem e o real por causa de uma possível premissa: a
representação. A definição de imagem é imposta logo após conferirem ao imaginário a sua
função de atualização da imagem e reconfiguração da experiência humana. Qual a mudança
em relação às ideias apresentadas até agora? Quase nenhuma. Na verdade, eles excluem a
capacidade de dinamismo organizador e a universalidade da imagem, antes conferidos à
imaginação por Durand (1989).
58

Motta (2002) aponta que há duas formas de ler o imaginário: a) a partir da sua
expressão, seguindo na direção da representação literária ou ficcional da realidade, ou b) da
manifestação do imaginário como uma categoria ampla que percorre o sagrado, o mágico e o
transcendental das civilizações. No primeiro caso, o diálogo acontece por meio da produção
material, já para o segundo tudo parte da ideia de epifania histórica, sendo as manifestações
reais de uma civilização. Tanto a definição do imaginário quanto da imagem, em Laplantine e
Trindade (1997), se desenvolvem correlacionando-se com o real, devido à pretensão dos
autores de analisar a literatura como a expressão das imaginações das civilizações. Desse
modo, identificamos que Laplantine e Trindade (1997) dissertaram sobre o imaginário das
expressões, enquanto Durand (1989) discursara sobre a imaginação das manifestações.
Contudo, uma coisa não se dissocia da outra.
Nossa conclusão é que o conceito de imaginário em Laplantine e Trindade (1997)
encontra-se reduzido e condensado por causa das suas premissas, baseadas na ideia de que o
imaginário da literatura é a projeção de um imaginário real manifestado de um povo. Ou seja,
a representação da imaginação. O argumento principal destes dois estabelece que se há um
imaginário tão surreal expresso na obra literária é porque existe um imaginário manifestado
(LAPLANTINE & TRINDADE, 1997). Trata-se da interação entre manifestação e
representação. Logo, como será definida a representação para estes dois teóricos? Ela é a
imagem mental do real, “[...] carregada de afetividade e de emoções criadoras e poéticas.”
(LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p. 8). Para eles o imaginário, na literatura, sempre será
representado e produto da imaginação criadora do autor.
Motta (2002) destaca que o texto literário é escrito por um autor que visa transmitir
uma mensagem ao outro - neste caso, o leitor. Entretanto, o teórico problematiza esta questão
ao tratar do imaginário, na obra de arte. Nesse sentido, ele argumenta que o imaginário estaria
reduzido ao nìvel imaginado, “[...] entendido simplesmente como expressão da imaginação
criadora simbólica no sentido estético do termo, expressando manifestações imaginativas da
literatura” (MOTTA, 2002, 104). Logo, o imaginário será sempre voltado ao autor e sua
criatividade, em específico. No entanto, vale ressaltar que Motta (2002) não se atém à análise
literária, mas apenas às descrições, problematizações e intepretações a respeito do imaginário
Latino-Americano relacionado às artes, às políticas e às notícias.
O caminho indicado por Laplantine e Trindade (1997) para perceber o imaginário
manifestado na obra é justamente este que Motta (2002) chama de reducionista. A partir do
encontro com o mágico, o sagrado, o insólito, na instância da imaginação criadora do autor,
comunicador da mensagem, é que se compreende a presença do imaginário manifestado. O
59

problema não reside em identificar o imaginário na instância de criação estética, mas ter a
concepção de imaginário desligado do real, do manifestado, da epifania.
Eles ainda destacam que é no imaginário da criação literária que se encontra a
ideologia, posta como uma concepção de mundo particular e que, quando imposta à
representação, subverte o real que, consequentemente, atribui outros sentidos ao imaginário;
conforme as literaturas que reconfiguram os mitos presentes na sociedade, modificando as
concepções e causando escândalos ao se pronunciarem sobre os tabus.
Com estas observações, Laplantine e Trindade (1997) reclamam as individualidades,
as identidades fragmentadas da pós-modernidade e as pluralidades das culturas das Américas.
De acordo com Maffesoli (2001), há um paradoxo quando se trata da pós-modernidade ou de
qualquer expressão de busca pela individualidade. Ele diz que alguém pode tentar falar apenas
de si e por si, mas o “eu” que fala está inserido em um grupo ou em um contexto,
correspondente ao pensamento compartilhado. Isto seria suficiente para dizer que a há uma
desintegração do imaginário plural? Não. Nem é aquilo que Durand (1989) pretendia. Ele, ao
recuperar, na psicanálise de Freud, o inconsciente do pensamento coletivo, dos arquétipos e
da universalidade, se referia a algo mais profundo: os desejos, os sonhos, entre outros.
A consciência dessa coletividade presente no imaginário individual, expressão que
parece contraditória, encontra-se aparentemente em evidência para o próprio Dany Laferrière.
Em sua entrevista a Revista Brasileira do Caribe (2008), ele declarou que é impossível se
dissociar do discurso coletivo, enquanto um autor que viveu o exílio político e que possui sua
imagem associada à sua pátria. Ao mesmo tempo, esse autor demonstra dominar a discussão
sobre imaginário. Basta que voltemos o olhar para o nosso primeiro capítulo. Veremos uma
forte tradição literária e cultural, e ao mesmo tempo uma autoficção tomada de aspectos
autobiográficos. O que aparenta contar e proclamar o „eu‟ do autor é tomado pelo plural dos
países de partida e de chegada. Porém, em Pays sans chapeau, Laferrière consegue se superar,
ao compor um imaginário cultural trazendo os mitos de sua pátria mãe, nesta narrativa.
Contudo, como analisar a construção do imaginário, da obra literária? Veremos algumas
ponderações sobre esta questão no próximo tópico.

Por uma crítica literária do imaginário

Um caminho mais seguro para a análise do imaginário de uma obra seria tomar
empréstimos da teoria crítica estrutural. O Estruturalismo, que surgiu no século XX, marcou
de forma singular os estudos críticos literários, trazendo grandes contribuições para a
60

narratologia; o estudo da narrativa. Ele não é um método ou uma corrente, porém foi
denominado por Câmara (1967) como um posicionamento científico, que pretende observar
qualquer campo do conhecimento humano, através de sistemas e estruturas.
Nessa perspectiva, a linguística, ao se relacionar com o Estruturalismo se desenvolveu,
sobretudo, nos parâmetros de Ferdinand Saussure (1857-1913), que nos possibilitou a 1)
observar a língua como uma estrutura ou sistema de organização, e uma famosa distinção
entre langue e parole72, e 2) a compreender que “[...] tarefa do linguista é analisar a
organização e o funcionamento dos seus elementos constituintes e os princípios que orientam
tal organização” (COSTA, 2013, p. 114).
Posteriormente, com Leonard Bloomfield (1887-1949) na linguística norte-americana,
apoiado na psicologia behaviorista73, essas questões tomaram corpo sob a análise linguística
distribucional74, e passaram a restringir o campo do pesquisador à “[...] descrever uma lìngua,
à classificação dos segmentos que aparecem nos enunciados do corpus e à identificação das
leis de combinação de tais segmentos.” (COSTA, 2013, p. 125). Entretanto, com Edward
Sapir (1884-1939), romperam-se os limites com este estruturalismo formal saussuriano,
adotando-se “[...] o postulado de que os resultados da análise estrutural de uma língua devem
ser confrontados com os resultados da análise estrutural de toda cultura material e espiritual
do povo que fala tal lìngua” (COSTA, 2013, p. 125).
Dessa maneira, segundo Terry Eagleton (2006), o Estruturalismo fez aparentemente o
mesmo percurso na esfera literária. Todavia, em sua fase inicial, podemos observá-lo
admitindo o conhecimento cognitivo presente na literatura e negando-se a estudá-lo. Nesse
raciocínio, o crítico estrutural se aplicou cada vez mais às análises estruturais da literatura.
Estrutura que passou a ser observada como autônoma e detentora de unidades fechadas em si,
com relações mútuas entre as unidades. Tratava-se, basicamente, de se ocupar com as leis
internas de um dado texto literário, descobrindo e analisando suas leis gerais. Para Todorov

72
“[...] o fenômeno linguìstico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma não
vale senão pela outra” (SAUSSURE, 1975, p.15 apud. COSTA) Desta forma, Costa (2013) aponta que a divisão
entre língua e fala ocorre devido a primeira possuir um fator social; detentora de um sistema usado como meio
de comunicação, que se estabelece e se desenvolve sistematicamente nos cérebros dos indivíduos pertencentes a
mesma comunidade linguística, quanto a segunda desenvolve-se no plano individual, tratando-se da expressão do
pensamento deste indivíduo, no momento de comunicação.
73
Segundo Costa (2013), a ligação de Bloomfield ocorreu com Skinner, um dos maiores teóricos dos anos vinte,
da psicologia behaviorista, a qual observa o comportamento humano a partir de estímulos-respostas. Notamos
também que a adoção da psicologia behaviorista, nas ideias linguísticas estruturalistas serviram de base para o
sustento das hipóteses que indicavam o aprendizado de uma língua materna, assim como ensino de língua
estrangeira, ocorre através do meio, sendo este um dos agentes principais para o desenvolvimento linguístico
(CEZÁRIO; MARTELOTTA, 2013).
74
Aparentemente, Bloomfield buscou elaborar um sistema de conceitos que fossem suficientes para a descrição
sincrônica das mais variadas línguas (COSTA, 2013).
61

(2013), isto ocorreu devido à falta de um método de análise literária, o qual parece ser uma
lacuna herdada do formalismo russo:

[...] essa escola nunca elaborou uma teoria que pudesse ser admitida de
modo geral. O grande mérito dos estudos formalistas é a profundidade e a
finura de suas análises concretas, mas suas conclusões teóricas são muitas
vezes mal fundadas e contraditórias. Os próprios formalistas sempre tiveram
consciência dessa lacuna: não cessam de repetir que sua doutrina está em
constante elaboração (TORODOV, 2013, p. 28).

Ainda na concepção deste teórico, os estudos formais demonstraram-se longe da


formulação de um método eficaz e científico para tratar a obra, por isso os estruturalistas se
ocuparam em elaborar, estabelecer e edificar um projeto literário convincente de análise. Um
exemplo disso são os estudos de Vladimir Propp (2001), suas tentativas de mapeamento
estrutural, que serviu como modelo para as análises da literatura de “fantasia”. Seu famoso
título é Morfologia do Conto Maravilhoso.
Essa obra é considerada um marco na história da crítica literária, por ser o primeiro
estudo que verificou modelos estruturais em literaturas que versam o mágico e mítico, de
diversos povos que não mantinham contato entre si. Ou seja, é um dos primeiros estudos
científicos da crítica que visou compreender o funcionamento do imaginário nas literaturas de
diversos povos, verificando estruturas em comum nas obras.
Com as adoções da semiótica e das contribuições das funções da linguagem de Roman
Jakobson75 (1896-1982), essa corrente revolucionou o estudo da poesia. A obra, antes
observada como sistema e fechada em si, encontrou nas ideias da recepção do texto literário o
suporte necessário para um estruturalismo moderno; que agora compreendia as relações
obra/sistema, obra/mundo, mundo/sistema, como parte importante no método de análise de
uma obra. Eagleton (2006) nos faz recordar a singularidade dos estudos de Yuri Lotman
(1922-1993), sobre a percepção do texto poético como um sistema de sistemas, que por sua
vez é transgressor e se coloca a disposição de um jogo complexo, assim como a própria obra
literária:

O significado do texto não é apenas uma questão interna. Ele também é


inerente à relação do texto com sistemas de significação mais amplos, com
outros textos, códigos e normas na literatura e na sociedade como um todo.

75
Jakobson propôs que a linguagem possuía múltiplas funções e para que ocorresse de fato uma comunicação de
dada mensagem era necessário que esta fosse composta por alguns elementos constitutivos, tais como: 1)
contexto, 2) código que seja conhecido por remetente e destinatário, e 3) contato ou canal físico e uma conexão
psicológica entre remetente e destinatário que permita a troca de informações. (MARTELOTTA, 2013)
62

Sua significação também é relativa ao “horizonte de expectativas” do leitor


[...] é o leitor que, em virtude de certos “códigos de recepção” disponìveis,
identifica um elemento da obra como um „recurso‟[...] o recurso não é
simplesmente uma característica interna, mas sim uma característica
percebida por meio de um determinado código e contraposta a um pano de
fundo textual definido. O recurso poético de um indivíduo pode ser a fala de
outro. (EAGLETON, 2006, p.165)

Outra grande revolução do estruturalismo foi a criação da narratologia como ciência


literária. As análises anteriores à sua criação negligenciaram a elaboração de um modelo em
comum para diferenciar as mais variadas formas de narrativa. Mas diante do „caos‟ dos
gêneros literários, da pluralidade, encontrou-se organização e se fez necessário à criação de
um modelo que possibilitasse concretude para as análises literárias:

Diante da infinidade de narrativas, da multiplicidade de pontos de vista pelos


quais se podem abordá-las (histórico, psicológico, sociológico, etnológico,
estético, etc.) O analista se encontrava na mesma situação que Saussure,
posto diante do heteróclito da linguagem e procurando retirar da anarquia
aparente das mensagens um princípio de classificação e um foco de
descrição. (BATHES, 2011, p. 20)

Assim, Barthes (2011) argumenta que podemos compreender a narrativa como um


acúmulo de acontecimentos; os quais seriam frutos do talento artístico de cada autor em
particular, ou pressupor que ela possuiria um sistema de combinatórias que é comum às regras
estruturais, sendo estas perceptíveis em outras literaturas. Desta maneira, escolhendo a
segunda opção, o teórico aponta que o caminho mais breve para a compreensão de uma
estrutura da narrativa seria o método indutivo; que também foi adotado na linguística. Nas
palavras do estudioso:

Que dizer então da análise narrativa, colocada diante de milhões de


narrativas? Ela está por força condenada a um procedimento dedutivo; está
obrigada a conceber inicialmente um modelo hipotético de descrição (que os
linguistas americanos chamam uma “teoria”), e a descer em seguida, pouco a
pouco, a partir deste modelo, em direção às espécies que, ao mesmo tempo,
participam e se afastam dele: e somente no nível destas conformidades e
diferenças que reencontrará, munida então de um instrumento único de
descrição, a pluralidade das narrativas, sua diversidade histórica, geográfica,
cultural (BARTHES, 2011, p.21).

A promessa empenhada do estruturalismo seria compreender a narrativa em seu nível


estrutural de forma sistemática, para então se verificar a pluralidade das culturas impressas em
uma dada narrativa. Contudo, diante dos diversos estudos estruturalistas, poucos foram os que
63

percorreram até as instâncias da “diversidade histórica, geográfica e cultural” que Barthes


(2011) insinua, pois o estruturalismo se concretizou mais no campo esquemático, eliminando
qualquer relação com o externo. Os estruturalistas defendiam que a literatura poderia ser
compreendida dentro do seu próprio sistema, em sua própria composição estrutural e
renegavam o estudo do discurso presente na narrativa, que para Barthes (2011) não deveria
ser ocupação da literatura e sim da semiótica.
Na sua ânsia de compreender a estrutura e o sistema, o método estrutural abriu mão de
observar o fator social, cultural e entre outros, presentes na narrativa. Apesar de romper
radicalmente com vários preceitos da crítica tradicional, o estruturalismo aparentava
concordar com a posição de isolamento da literatura em si mesma. Ao menos foi o que os
estudos produzidos nesta época demonstraram na prática.
A obra literária era compreendida, nos estudos tradicionais, como algo particular do
imaginário de um autor. Agora, no estruturalismo ela passa a ser constituição inerente à mente
humana, lugar onde a própria língua se constitui (EAGLETON, 2006). Neste aspecto
concordamos com a crítica de Eagleton (2006), ao observar que apesar das grandes conquistas
estruturalistas, este método conseguiu aniquilar o indivíduo ao levar até a última instância as
estruturas, isolando-as para além dos conhecimentos humanìsticos: “O estruturalismo e a
fenomenologia, por mais diferentes que sejam quanto a aspectos centrais, nascem ambos do
ato irônico de afastar o mundo material a fim de esclarecer melhor a consciência que temos
dele” (EAGLETON, 2006, p.164-165).
Todavia, o narratólogo Todorov (2013), nascido no estruturalismo, observa que a
referida corrente crítica não atentou para vários problemas, tanto no campo da recepção
quanto do discurso da narrativa. Para ele a teoria crítica queria evitar que as análises fugissem
do campo literário, mas foi assim que baniu-se o histórico, o social, o cultural e até mesmo o
imaginário que se manteve „engessado‟ nas análises das estruturas. O teórico justifica que
estes são problemas herdados dos formalistas russos, mas que poderiam ser decifrados no
próprio campo da linguagem. Este pesquisador demonstra em seus estudos das narrativas
fantásticas certas diretrizes que promovem soluções pertinentes ao nível estrutural, que
colaboram para uma análise que leve em conta o extraliterário; autor, leitor e mundo.
De acordo com Eagleton (2006), as grandes marcas promovidas pelo estruturalismo,
como método crítico literário, foram: 1) seu caráter analítico e não avaliativo, ou seja, a
possibilidade de nos valer de qualquer literatura, introduzindo o livro de bolso bem como as
literaturas ditas “menores”, 2) a rejeição do significado “óbvio” da história, e em lugar disso
64

trabalhar estruturas “profundas”, e 3) o conteúdo desta crìtica se desenvolveu em torno da


estrutura e do próprio sistema, delimitando-se a isto.
Grandes foram os ganhos da crítica estruturalista, mas teríamos um problema se
procurássemos apenas compreender as configurações do mito em uma dada narrativa, apenas
por meio de sua estrutura. É de grande importância que se discuta sobre como os mitos podem
provocar mudanças na estrutura da narrativa, assim como tentar encontrar ou formular um
modelo que funcione para compreensão dos acontecimentos, ações e descrições do fenômeno
sobrenatural. Qual a relevância desse aspecto para o imaginário? Como discutir sua função
sociocultural, poética e imagética na obra sem recorrer aos conhecimentos extraliterários?
Não estamos dizendo que as estruturas são dispensáveis, pelo contrário, elas são a base para
compreensão dos eventos insólitos que irrompem na obra. Todorov (2013; 2017) utilizou a
estrutura para compreender o funcionamento das narrativas fantásticas, as histórias de terror e
os contos maravilhosos.
Contudo, ao abrir mão de analisar o mito em si, as suas funções e implicaturas, em
detrimento da estrutura da narrativa, por mais profunda que seja, revela-se uma premissa: a
racionalidade diante do imaginário. A análise estrutural é capaz de observar o insólito apenas
em sua estética e, no máximo, procura analisar o mito em sua forma narrativa, como um
código, tentando articulá-lo com o simbólico dentro do próprio sistema, tal como Motta
(2002) alertou. Se seguíssemos apenas com uma análise deste tipo, estaríamos de volta ao
pressuposto de que o imaginário não passa de uma “invenção” do autor. É como se os estudos
estruturais procurassem provar que em cada „estranheza‟, por falta de palavra melhor,
encontrada na narrativa mítica há uma espécie de racionalidade explicável.
Na tentativa de preencher estas lacunas, Laplantine e Trindade (1997) constroem,
praticamente, uma ode ao imaginário presente na literatura latino-americana. Na correlação
entre as expressões religiosas e as representações míticas das obras, eles declaram a
necessidade de recorrer a imaginação (DURAND, 1989) para compreender o imaginário
representado.
Isso nos leva aos seguintes questionamentos: o que há de tão específico nas literaturas
produzidas em nosso território? Como analisar essas produções? Acreditamos que a narrativa
Pays sans chapeau pode nos ajudar a responder estas questões, mas adiantamos que a segunda
pode ser respondida com o estruturalismo moderno adotado por Todorov (2013; 2017).
Apesar de ter se pronunciado em alguns momentos em uma espécie de hiper-estruturalismo,
esse teórico iniciou grandes debates a respeito das funções do imaginário nas narrativas
fantástica e maravilhosa, tanto que Laplantine e Trindade (1997) o indica como leitura basilar
65

para a compreensão dos fenômenos imaginários representados na literatura, durante a


teorização do imaginário.

2 Traços Latino-Americanos

O retorno de Vieux Os ao país é um verdadeiro reencontro com suas origens e um


complexo emaranhado de acontecimentos (sobre)naturais. O narrador-personagem surge
como um explorador no meio urbano de Porto Príncipe à procura dos bairros e lugares que
antes frequentava. Vieux Os encontra seus amigos e familiares, deixados para traz por causa
do seu exílio, e tenta se enquadrar no cotidiano agitado da sua cidade natal.
Ele relembra a comida, a língua créole, os aromas e as paisagens da sua antiga vida,
mas sua história pessoal é solapada por acontecimentos estranhos. Em uma de suas
caminhadas pela cidade, por exemplo, ele é abordado por um engraxate, que oferece seus
serviços. Durante a conversa, o rapaz aconselha-o a não ficar ali por muito tempo,
argumentando que o país havia mudado em função das pessoas que já não estavam mais
vivas:

- É tudo que tenho a dizer... se fossem seres humanos de verdade – continua


-, acha que sobreviveriam a essa fome, a todo esse monte de imundícies que
se encontra em cada esquina...? E, além disso, o senhor não vê que todas as
outras nações estão no país? (Ele se refere aos soldados das Nações Unidas
que ocupam as ruas de Porto Príncipe.) o que o senhor acha que eles estão
fazendo? Pesquisas, meu amigo. Eles vêm aqui para estudar quanto tempo o
ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não sabem que já
estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que conseguem
entender. Então, vá embora enquanto é tempo 76 (LAFERRIÈRE, 2011, p.
48).

As situações narradas por Vieux Os instauram este clima sombrio de que algo está
acontecendo ou vai acontecer, como o suspense comum às literaturas de terror, porém em
outros momentos há a aceitação de explicações surreais a favor dos acontecimentos
sobrenaturais, assim como a história sobre o exército zumbi, citada no primeiro capítulo de
nosso trabalho. Relembremos a origem deste evento precisamente.
76
- C‟est tout ce que j‟ai à vous dire... si on était vraiment des être humains, continue-t-il, vous croyez qu‟on
survivrait à cette famine, à tous ces tas d‟immondices qu‟on trouve à tous les coins de rue... Et puis, vous ne
voyez pas que toutes les autres nations sont dans le pays ? (Il fait référence aux soldats des Nations unies qui
occupent les rues de Port-au-Prince.) Que croyex-vous qu‟ils sont en train de faire ? Ils font des études, mon ami.
Ils viennent ici pour étudier combien de temps l‟être humain peut rester sans manger ni boire. Mais ils ne savent
pas qu‟on est déjà morts. Les Blancs ne veulent croire qu‟à ce qu‟ils peuvent comprendre. Alors, partez pendant
qu‟il est encore temps. (LAFERRIÈRE, 1997, pp. 56-57)
66

Vieux Os escuta uma conversa entre sua mãe e a vizinha acerca de sua experiência
com seres sobrenaturais. Marie, a mãe, relata que certa vez viu um Bizango 77, coberto de
cinzas, nu, de olhos vermelhos e cuspindo fogo, procurando por uma nova presa. Ela conta
que ficou apavorada diante deste ser, mas teve cautela e guardou para si o segredo.
Quando percebe o interesse do filho em sua conversa, a senhora decide falar-lhe sobre
a situação atual do país, revelando o estado calamitoso que os haitianos alcançaram. Marie
menciona que não há mais distinções entre vivos, mortos e assassinos. A mulher atribui este
fato aos sacerdotes vodus, que procuravam despertar todos os mortos dos cemitérios, com o
propósito de formar um exército para tomar Porto Príncipe, e alega ter visto fileiras de
pessoas que seguiam uma caminhada de cabeça baixa, falando coisas horríveis. A senhora
também relata sobre uma tradição cultural, feita em sua família, de prevenção para impedir
que um morto seja acordado:

[...] As pessoas colocam nas mãos do morto, quando desconfiam que sua
morte não é natural, um carretel de linha e uma agulha. É assim que a gente
mantém um morto ocupado [...] Até a ressurreição - completa com orgulho –
Só Deus pode Despertá-lo...78 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 43).

Diante do teor místico de sua mãe, Vieux Os reflete sobre os aspectos do tempo,
especificamente, sobre o poder da noite haitiana. Para ele:

É como se dois países caminhassem lado a lado, sem jamais se encontrar.


Um povo humilde se debate de dia para sobreviver. E esse mesmo país, à
noite, é habitado somente por deuses, diabos, homens transformados em
bestas. O país real: a luta pela sobrevivência. E o país sonhado: todos os
fantasmas do povo mais megalomaníaco do planeta 79 (LAFERRIÈRE, 2011,
pp. 40-41).

Nesta passagem encontramos, além de uma afirmação sobre o poder de ressignificação


do povo haitiano, uma justificativa para as divisões de mundos que acontecem na estrutura do
livro. É como se Laferrière quisesse ilustrar, em sua obra, essa cisão entre as práticas do

77
Segundo Moreira (2011) este ser é uma entidade mitológica: “Um homem dotado de poderes diabólicos,
antropófago de hábitos noturnos que, antes de iniciar suas caçadas, despe-se da própria pele, o que lhe permite
voar” (LAFERRIÈRE, 2011, p.50).
78
[...]Les gens mettent dans les mains du mort, quand ils supçonnent que cette mort n‟est pas naturelle, une
bobine de fil et une aiguille sans chas en lui demandant de filer l‟aiguille. C‟est comme ça qu‟on occupe un mort
[...] Jusqua‟à la Résurrection, lance-t-elle fièrement. Seul Dieu peut le réveiller... (LAFERRIÈRE, 1997, p.50)
79
On dirait que deux pays cheminent côte à côte, sans jamais se rencontrer. Un petit peuple se débat le jour pour
survivre. Et ce même pays n‟est habite, la nuit, que de dieux, de diables, d‟hommens changés en bete. Le pays
réel : la lutte pour la survie. Et le pays rêvé: tous les fantasmes du peuple le plus mégalomane de la planète
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 46-47)
67

cotidiano, „compreensìveis‟ ao ocidente, e o irracional do misticismo praticado na noite,


costumeiro ao povo haitiano. O real seria o equivalente do dia, e o irreal correspondente da
noite. Isto não quer dizer que os capítulos correspondentes ao Pays réel se atém a ações e
histórias diurnas, ou que as passagens pertencentes ao Pays rêvé se mantém na instância
noturna.
Pelo contrário, há grandes fusões e confusões80 nos dois universos. Pays réel conta
com a narração de todos os passeios pela capital haitiana, as reflexões sobre lugares e os
momentos com os amigos e familiares, mas sempre com um alerta de perigo constante e
comparações entre vida e morte. Enquanto Pays rêvé relata a busca por informações sobre o
exército zumbi, acontecimentos estranhos, eventos sobrenaturais e histórias sobre seres
místicos. Laferrière impõe uma divisão, nomeando estes universos, porém não consegue
manter uma separação. Confiamos que há grande probabilidade dessa característica da obra
ser proveniente da própria indivisibilidade proposta pela história do exército zumbi, relatada
por Marie.
A mãe relembra ao filho que o exército é proveniente de um trato entre os dois antigos
presidentes haitiano e americano. Um havia espalhado seu batalhão pela cidade durante o dia,
para controlar os haitianos, enquanto o outro optou por “reinar” à noite com seu exército
zumbi. Logo Vieux Os toma consciência da importância da noite para os haitianos:

[...] O tempo é invisível. Começo a compreender e a apreciar ao mesmo


tempo esse curioso pacto. Então os soldados americanos voltam para suas
casernas, à noite. No mesmo momento, o exército dos zumbis se prepara
para sair. Claro como o dia. É preciso dizer que o único pavor do soldado
americano – como esse jovem de Ohio -, era circular na noite haitiana.
Todos eles ouviram falar do vodu antes de chegar a Porto Príncipe, e todos
têm medo de enfrentar o inimigo invisível cujo riso congela os ossos. De dia,
são apenas pobres negros mal equipados – sua arma mais recente data da
Segunda Guerra Mundial – mas à noite...81 (LAFERRIÈRE, 2011, pp. 54-55)

Deste modo, Vieux Os declara que o trato entre os presidentes era perfeito, posto que
o dia seria para o Ocidente enquanto a noite restaria à África. Receosa, Marie acaba revelando

80
Constatamos que já foram desenvolvidos trabalhos que versam sobre esta questão, como o estudo de Courcy
(2006). Ao analisar Pays sans chapeau, ela ilustra por meio de uma tabela as divisões, confusões e fusões entre
os mundos, trabalhando as categorias textuais e estruturais do livro.
81
[...] Le temps, lui, est invisible. Je commence à comprendre et à apprécier du même coup ce curieux pacte.
Donc, les soldats américains rentrent dans leurs casernes, le soir. Au même moment, l‟armée des zombis
s‟apprête à sortir. Simples comme bonjour. Faut dire que la seule panique du soldat américain – comme ce jeune
soldat de l‟Ohio -, c‟était de circuler dans la nuit haïtienne. Ils ont tous entendu parler du vaudou avant d‟arriver
à Port-au-Prince, et ont tous peur de faire face à l‟ennemi invisible dont le rire vous glace les os. Le jour, ce ne
sont que de pauvres Nègres mal équipés – leur plus récente arme date de la Seconde Guerre mondiale – mais la
nuit... (LAFERRIÈRE, 1997, p.64-65)
68

que a situação poderia ser tranquila se o exército zumbi tivesse respeitado o trato e não saísse
também durante o dia:

- Seria bom – murmura finalmente –, se eles não saíssem também de dia.


- Eles quem?
- O exército zumbi... Talvez você esteja brincando, Velhos Ossos, mas é
sério o que estou dizendo. Dá uma volta no cemitério, que você vai ver.
- Escuta, mãe, se eles fazem isso, quer dizer que romperam o trato em
relação ao tempo (o dia para eles, a noite para nós), e aí os americanos não
vão demorar a atacar.
- Os americanos, meu filho - diz minha mãe com um sorriso no canto da
boca -, não sabem nem distinguir um negro instruído de um negro
analfabeto, e você lhes pede agora para fazer diferença entre um negro morto
e um negro vivo82 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 55).

A conversa entre mãe e filho se estende ainda com a indicação de que o escritor tenha
cuidado em seus passeios pela cidade. Ela o aconselha a usar um espelho para verificar se a
pessoa diante dele seria um zumbi ou não, indicando que este ser não teria reflexo. A partir
desta história, Vieux Os procura novas explicações sobre este exército.
Percebemos diversas referências aos eventos históricos do país: a ocupação Norte-
Americana (1915-1934), que Moreira (2006) destacou como um dos eventos „fantasmas‟
presente na obra, revoluções haitianas (1791-1804), e, ainda, uma correlação com os exércitos
e a milícia, constituídos durante a era Duvalier (1957-1986). Por que tantas referências
históricas em Pays sans chapeau? Esta insistência dos acontecimentos históricos é uma das
características do imaginário da literatura de nosso território.
Segundo Laplantine e Trindade (1997), as literaturas Latino-Americanas possuem a
tradição de parodiar o grotesco da realidade do seu povo. Lembremos os milhares de
massacres enfrentados pelos nativos haitianos, na época da colonização, assim como em
nosso país sobe o domínio de Portugal, a importação massiva de escravos nas colônias e entre
outros:

Se é pelo paródico e o grotesco que essas obras nos convidam a entrar na


realidade das sociedades da América Latina, é porque a própria realidade é

82
- Ce serait bien, finit-elle par murmurer, s‟ils ne sortaient pas aussi le jour.
- Qui ça “ils”?
- L‟armée des zombis... tu blagues peut-être, Vieux Os, mais c‟est sérieux, ce que je te dis là. Va faire une visite
au cimetière, tu verras.
- Écoute, maman, s‟ils font ça, la veut dire qu‟ils ont rompu le contrat à propôs du temps (le jour pour eux, la
nuit pour nous) et tu vas vois que les Américains ne tarderont pas à sévir.
- Les Américains, Mon fils, me dit ma mère avec un sourire au coin des lèvres, ils n‟arrivent même pas à
distingues un Noir instruit d‟un Noir illetré, et tu leur demandes maintenant de faire la différence entre un Noir
mort et un Noir vivant (LAFERRIÈRE, 1997, p.65-66).
69

grotesca e tende a parodiar a si mesma. Lendo-as, mergulhamos nos


meandros do sórdido e do ignóbil. Ambiente de pesadelo. Comportamentos
delirantes. Despotismo exacerbado. Brutalidade megalomaníaca. Corrupção
e suspeita generalizadas. Derrocada e decomposição da sociedade. O ditador
parece dotado de todas as abjeções do mundo. Mas esses livros se inspiram
em tiranias reais, em figuras sinistras de torturadores psicopatas que nada
têm de imaginários. Não são apenas as narrativas fabulosas que são
extraordinárias e extravagantes e muitas vezes, para nós, incríveis, mas a
própria realidade que se apresenta como uma realidade alucinada. Realismo,
hiper-realismo, surrealismo das tiranias por si mesmas desmedidas e fazendo
apelo a uma escrita do desmedido (mas também da extrema concisão)
(LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p. 23).

A narrativa Pays sans chapeau ostenta muitas dessas caraterísticas apontadas por estes
teóricos, na citação acima. Uma obra que representa os contextos fatídicos, transgressores,
opressores e políticos de um povo. Um exército de mortos-vivos, que hora encontra-se em sua
literalidade sobrenatural e hora remete ao metafórico, se empenha na sua função de parodiar o
histórico-social haitiano, lhe conferindo um aspecto de „putrefação‟.
A história do Haiti é marcada por grandes transgressões, basta compreendermos o que
se passou durante os eventos históricos. Durante a luta pela independência Boukman não só
popularizou o Vodu, considerado herança cultural de forte tradição na nação. Ele também
muniu-se dos discursos de ódio ao colonizador, ao branco, e conseguiu repetir os erros que
seus colonizadores cometeram. Uma “[...] liberdade conquistada com sangue e morte”
(MARQUES, 2017, p.150).
Quando voltamos ao contexto da ocupação Norte-Americana percebemos novamente
o surgimento das oposições das raças; as segregações em um território em que a maioria era
miscigenada. As Nações Unidas no território era praticamente a perda da independência
(GRONDIN, 1989). É óbvio que houve retaliação de ambos os lados. Uma frase memorável
surge na obra de Laferrière em relação a este contexto, além daquela que acabamos de
lembrar; sobre o preconceito do branco que não distingue o negro iletrado do negro morto.
No momento em que Vieux Os, acompanhado por seu amigo Philippe, se depara com
a presença de um soldado americano, em um supermercado da cidade, ele diz: “- Na primeira
ocupação, de 1915, o governo americano mandou os piores racistas do sul dos Estados Unidos
para reprimir os negros do Haiti. Sei lá, estou falando como um nacionalista puro-sangue, mas
vivo em Miami”83 (LAFERRIÈRE, 2011, p.148-149). O pequeno diálogo entre os amigos,

83
“- Lors la première occupation de 1915, le gouvernement américain avait envoyé, pour mater les Nègres
d‟Haïti, les pires racistes du sud des États-Unis. Enfin, je parle comme un nationaliste pur crin, alors que je vis à
Miami” (LAFERRIÈRE, 1997, p.187).
70

que se encontra na divisão Pays réel, nos concede uma informação sobre as possíveis tensões
instauradas no Haiti com a ocupação Norte-Americana.
Outro exército parodiado nesta obra seria a milícia 84 instaurada pelos ditadores
haitianos, Papa Doc Duvalier e Baby Doc Duvalier. Seus homens, assim como o exército
haitiano, desempenhavam a função de controlar o povo (GRONDIN, 1985). Novamente,
erros são cometidos. Durante o período de opressão, a nação enfrentou grandes massacres.
Segundo Grondin (1989), Duvalier pai subiu ao poder com a estratégia religiosa. Para
conquistar a massa, este ditador declarou-se a favor do Vodu, e foi considerado o primeiro
Houngan, uma posição de grande destaque entre os praticantes da religião. Após subir ao
poder e instaurar a ditadura, este homem passou a ser conhecido por suas investidas contra a
oposição, ele praticava desde a tortura em público, como também autorizava mortes de
pessoas públicas e intelectuais. Uma de suas criações foi a construção de Fort-Dimanche, uma
prisão subterrânea para seus inimigos.
Papa Doc dominou o paìs com „punhos de ferro‟. Por meio do medo, ele “[...] havia
estabelecido no país a maior paz conhecida em muitas décadas: a paz dos cemitérios. Já não
se torturavam as pessoas: o terror havia sido de tal forma internalizado pela população que
esse método já era desnecessário” (GRONDIN, 1985, p.47-48). Seu filho, Baby Doc, deu
prosseguimento com o terror.
Com promessas de melhorar a economia do país, Duvalier filho herda 85 a função de
seu pai. Todavia, não foi bem assim que se procedeu esta investida econômica. Em doze anos
ele conseguiu afundar o país na miséria. Diversos intelectuais foram obrigados a fugir,
obtendo o exílio político em outros países e continentes. Sem contar, dos diversos “[...]
cadáveres de haitianos encontrados nas praias de tantas ilhas do Caribe” (GRONDIN, 1985,
p.50).
É provável que o Exército Zumbi seja uma paródia desses eventos, dos massacres
enfrentados na história. O mundo dos mortos é a temática principal em Pays sans chapeau

84
Quando Duvalier chegou ao governo estabeleceu um novo corpo de forças armadas, ele “[...] acabou com a
oposição do seu exército eliminando oficiais favoráveis ao setor mulato e substituindo-os por oficiais de sua
corrente, treinados por oficiais americanos; criou o corpo de milìcias “populares”, os temidos Tontons-Macoutes
(o nome provém de “tio-mochila”, figura lendária que rouba crianças e as leva em sua mochila) para equilibrar o
poder do exército oficial e controlar o interior do paìs.” (GRONDIN, 1985, p.47) Os homens que pertenciam aos
Tontons-Macoutes eram também reconhecidos como “bicho-papão”.
85
De acordo com Grondin (1985), antes de falecer Papa Doc conseguiu elaborar um documento em que
declarava seu filho como seu sucessor. Ele fez com que as autoridades do governo assinassem o ofício e garantiu
que este fosse cumprido após sua morte.
71

devido a este contexto histórico grotesco86 presente na própria história da sociedade haitiana.
Vale ressaltar que esses são alguns dos massacres, enfrentados pelo povo haitiano, dos quais
se possuem registros, e são eles parodiados na obra. Laferrière tenta, até mesmo, reproduzir a
luta pela sobrevivência, enfrentada no cotidiano pela massa, por intermédio das reflexões de
Vieux Os. As oposições dia e noite recebem uma configuração importante; a
representatividade da religião vodu para o povo, humilhado e maltratado, mas que supera as
adversidades.
Dany Laferrière compõe o Exército Zumbi em vários sentidos, crítico e imagético; no
intuito de evidenciar o imaginário. Ele o conecta ao vodu, na tentativa de discorrer também
sobre o insólito. Se retomarmos a continuação sobre a história do Exército Zumbi, veremos
que o relato de Marie será deixado de lado. O Professor J.-B Romain dá uma nova resolução
ao caso. Ele conta a Vieux Os que tudo começou com uma revolta camponesa.
Os camponeses de uma fazenda se revoltaram contra o dono das terras, o senhor
Désira Désilus. Consequentemente, ele convocou alguns soldados para controlar o levante.
Nesta confusão, dispararam tiros contra os resistentes, mas eles continuaram a avançar contra
os soldados, que por sua vez acabaram fugindo. Depois de certo tempo, um soldado que
vivenciou esta situação identificou um dos homens, e sinalizou que este deveria ter morrido
no combate. No entanto, o camponês estava andando pela cidade. Deste modo, Vieux Os
constata: “ – Então, era um zumbi”87 (LAFERRIÈRE, 2011, p.64).
Se fizermos a comparação entre a história contada por Marie e o desfecho pelo olhar
do personagem J.B. Romain, perceberemos a unificação nas descrições deste ser. A cabeça
sempre baixa, em estado de subserviência e a falta de reação ao contexto em que estão
inseridos. O professor ainda traz a explicação de que as únicas novidades são os
comportamentos reacionários, por parte dos zumbis. Seria a primeira vez que estes seres
demonstrariam vontade própria. Vieux Os indica que não é uma surpresa saber de
proprietários de terras, no Haiti, usufruindo da mão de obra zumbi. A reunião dessas diretrizes
colabora para a insistência do insólito na obra.
É certo que há um grande teor crítico neste episódio, como foi verificado em nosso
primeiro capítulo sobre as ideias marxistas na literatura de Laferrière. Não temos intenção de
ignorar este viés, mas nossa proposta é de observar o ser sobrenatural, neste momento. No
Haiti há um número de relatos sobre a zumbificação, desde notícias que surgem na mídia até

86
Esse termo é utilizado por Laplantine & Trindade (1997), referente às problemáticas históricas que as
civilizações do continente americano sempre vivenciaram. Esses teóricos argumentam que a literatura americana
detém uma forte tradição ao que diz respeito ao paródico de uma realidade histórica, massiva e difícil.
87
“- Donc, un zumbi” (LAFERRIÈRE, 1997, p.74).
72

cientistas que já tentaram revelar o mistério a respeito deste procedimento praticado no país.
Carmen Bernand (2016) traz a definição desse processo:

A zumbificação consiste em retirar a alma de alguém depois de sua morte


para força-lo a trabalhar [...] A vítima é culpada de transgressões múltiplas –
como o adultério ou usurpação de uma terra – mas ela também pode ser
vendida ao sacerdote (boko) por alguém que firmou um pacto com ele, com
a finalidade de enricar. Às vezes, com a morte de um mestre, os zumbis
vagam pelo campo, onde são alimentados por caridade, com o objetivo
também de afastá-los o mais depressa possível88 (BERNAND, 2016, p. 3,
Tradução Nossa).

A citação acima indica uma prática de cunho religioso que beira a lenda e o folclórico.
Independentemente de nossas crenças com relação à descrição de Bernand (2016),
percebemos que há um teor místico em sua definição. Por outro lado, esta estudiosa trata de se
livrar desta primeira concepção, fazendo um contraponto com a experiência de um médico
psiquiatra que tentou estudar os casos.
Segundo ela, o doutor Lamarque Douyon descobriu que o processo de zumbificação
ocorre por meio da administração de substâncias entorpecentes, extraídas de animais ou
vegetais específicos, que promovem um efeito mortífero. Ela explica que assim é simulada a
morte de alguém. Por causa da camuflagem dessas substâncias muitos médicos declaram o
óbito das vítimas, que mais tarde serão desenterradas e submetidas aos cuidados dos
sacerdotes.
Mesmo com essas explicações científicas e racionais acerca da zumbificação, vários
estudos constatam que a prática de transformar pessoas em zumbis existe. Em Um lugar para
os Espíritos, de Bulamah (2015), encontramos relatos de experiências com o vodu. Em um
eixo antropológico de âmbito social, este pesquisador tenta demonstrar a importância dos
espíritos para a comunidade haitiana, na contemporaneidade do século XXI. Sua pesquisa
etnográfica foi realizada em um povoado rural de Sanzon, da Comuna Milot, do Norte
haitiano.
Ao apresentar o contexto do lugarejo, Bulamah (2015) evidencia um relato sobre o
zumbi. Segundo ele, os habitantes do povoado consideram a morte de um jovem como
consequência da maldade humana, ou seja, um assassinato encomendado e premeditado para

88
“La „zombification‟ consiste à enlever l‟âme de quelqu‟un après sa mort pour le forcer à travailler pour le
boko. La victime est coupable de transgressions multiples – dont l‟adultère ou l‟usurpation d‟une terre - mais
elle peut aussi être „vendu‟ au boko par quelqu‟un qui souscrit un pacte avec lui en vue de s‟enrichir. Parfois, à la
mort d‟un maître, les zombis errent dans la campagne, où ils sont nourris par charité, dans le but aussi de les
éloigner au plus vite.” (BERNAND, 2016, p.3)
73

a realização da zumbificação. A crença desta comunidade alerta que quando alguém morre,
em plena juventude, deve-se verificar quem premeditou a morte. Por meio dos poderes do
sacerdote vodu procuram o assassino, a fim de providenciar uma vingança. O pesquisador
constata que os moradores estabelecem a seguinte regra: o assassino deve sofrer a mesma dor
que a família da vítima enfrenta. Não se procura penalizar o „matador‟ com a perda de sua
vida, mas com a dor de perder um parente da família:

[...] se era o filho mais velho, morrerá o filho mais velho do outro; se era a
filha mais nova, morrerá a filha mais nova do outro. As perdas e os
sentimentos daí advindos devem se equilibrar, sem que uma família tenha
perdido ou sofrido mais que a outra. Mas, como toda troca, o equilíbrio
tende a ser sempre dinâmico (BULAMAH, 2015, p. 105).

As pesquisas de Bulamah (2015) estabelecem uma reflexão profunda sobre o


imaginário cultural presente neste povoado. Ele consegue identificar desde a cosmovisão do
vodu até o seu funcionamento na comunidade. Seu trabalho nos faz observar a imaginação
manifestada (DURAND, 1989) nos relatos colhidos e nas experiências vividas por ele. Sua
visão a respeito do zumbi diverge das definições de Bernand (2016), mas acreditamos que
uma complementa a outra. Bulamah (2016) não conceitua o zumbi, apenas relata-o como
exemplo de composição moral da cosmovisão vodu, como mais um elemento de
pertencimento cultural.
Em nossas leituras percebemos que Bulamah (2016) conseguiu registrar o imaginário
manifestado, em sua vivência e convivência com a comunidade, mas o zumbi continua a ser
um mistério e é atribuído ao contexto histórico haitiano. As descrições do zumbi, em Pays
sans chapeau são coerentes com o que encontramos nos estudos citados aqui. Não é mera
coincidência que a obra de Laferrière seja detentora de imagens complexas, já que o
imaginário manifestado é complexo em si mesmo; insólito em sua natureza.
É certo que as reflexões apresentadas até o presente momento sejam suficientes para
discorrer sobre o elemento insólito, em nosso objeto de estudo. Entretanto, o zumbi de Pays
sans chapeau não se retém apenas ao imaginário haitiano. Este ser também se concretiza
enquanto elemento sobrenatural norte-americano, basta que nos lembremos dos diversos
filmes e séries pós-modernas que exploram a temática „zumbi‟ ou versam sobre o apocalipse
zumbi, como: A noite dos mortos vivos (1968), Despertar dos mortos (1980), A morta viva
(1946), Dia dos mortos (1985), Resident Evil (1996), e a série mais assistida até o presente
momento The Walking Dead (2010).
74

Andrea Ruthven (2017) nos garante uma análise desta outra face da literatura de
Laferrière, cujo mito possui características reterritorializadas: “Eu argumentaria que assim
como Vieux Os é um nômade, o mesmo acontece com o zumbi, que se torna reterritorializado
89
através de seus movimentos constantes” (RUTHVEN, 2017, p.9). Assim, ela explica que o
narrador-personagem, enquanto recém-chegado e estranho a sua cultura, se depara com um
tipo de mito modificado e seu país completamente zumbificado por uma cultura norte-
americana.
Nesta perspectiva, a pesquisadora explica que as características do zumbi, na narrativa,
se encontram reconfiguradas segundo o imaginário norte-americano cinematográfico e se
confunde com o mito haitiano. Desse modo, sua análise se volta para a história contada pelo
professor J.B Romain, cujo relato caracteriza um zumbi dotado de reação, apresentando
movimentos, que resiste mediante o ataque dos vivos e procura agredir suas vítimas. Neste
caso, Ruthven (2017) denomina o zumbi como um ser sobrenatural, que busca consumir o
número máximo de cérebros humanos, dotado de matéria putrefata e alienado. Sua leitura
mostra que o clima instaurado em Pays sans chapeau é de uma cidade apocalíptica e
modificada. Essas análises são de extrema importância para compreendermos a garantia do
insólito na narrativa, uma vez que ela se volta para o exame da crítica residente neste outro
tipo de zumbi90.
Ela atenta para o contexto histórico haitiano e a crítica marxistas do consumismo;
onde se visualiza um Haiti povoado por zumbis norte-americanos, proveniente do momento
histórico vivido pela nação com a ocupação das Nações Unidas. Em Ruthven (2017),
podemos perceber o pressuposto de que Laferrière teria estabelecido dois tipos zumbis, para
fornecer ao leitor a origem deste mito, haitiano, tão consumido pela cultura norte-americana.
Ao somar o imaginário haitiano e norte-americano, Laferrière nos propõe um texto
transcultural91 e, acima de tudo, Latino; onde “[...] mais do que em outros lugares, as coisas
parecem levadas ao extremo, tanto no esplêndido quanto no horror. O luxo é mais ostentado.
A riqueza e a pobreza são mais fortes” (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.23). As
imagens do zumbi, seja em uma configuração haitiana ou não, coloca-nos frente ao
improvável e faz surgir uma questão: o que fazer diante do insólito, quando o encontramos na
89
“I would argue that just as Vieux Os is a nomad, so too is the zombi, as it becomes reterritorialised through its
constant movements.” (RUTHVEN, 2017, p.9)
90
Ruthven (2017) analisa o zumbi segundo a teoria do marxismo clássico e constrói uma aproximação entre o
zumbi cinematográfico da obra de Laferrière. Embora nosso foco seja o cultural haitiano é de extrema
importância mencionar o trabalho desta pesquisadora, pois sua análise demonstra a duplicidade do sobrenatural
em Pays sans chapeau.
91
“Transferir, não é transportar, mas sobretudo metamorfosear, e o termo não se reduz a nenhum caso de questão
mal circunscrita e banal de trocas culturais” (ESPAGNE, 2013, p.1, Tradução nossa).
75

literatura? Nosso primeiro passo foi compreender a construção do mito na obra e contrapor
com os conhecimentos extraliterários, nos eixos antropológicos, religiosos e sociais, na
tentativa de compreender a construção e modificação deste ser.
Nossa intenção não é convencer alguém da existência do zumbi, mas de tentar
compreender este imaginário manifestado que se apresenta na obra. Neste raciocínio, deve-se
expandir o debate ao sobrenatural, mesmo que encontremos um estudo como o de Bernand
(2015), que tenta racionalizar a prática da zumbificação. Independentemente de como esse
processo ocorre, nós possuímos a certeza de que ele é real, em seu teor místico ou não.
Laplantine e Trindade (1997) nos alertam que trabalhar com as concepções de
imaginário, como representação do real na literatura, nos exigirá crença em um sistema de
valores específico, beirando o campo das religiões, as quais colocam em cheque as percepções
de um dado leitor. Nas diretrizes dos teóricos da imaginação e o do imaginário há um pedido
acerca do real; para que acreditemos no evento surreal expresso na obra por causa de sua
aproximação e diálogo com as manifestações das epifanias de um povo. Se há um zumbi
representado em nosso objeto de estudo é porque existe uma prática próxima desta
representação. Posto que o „irreal‟ é parte da realidade (LAPLANTINE & TRINDADE,
1997), é necessário que observemos os mitos, sua natureza, seu funcionamento e sua
estruturação, não apenas nos ocupando de um ou de outro.
Não nos esqueçamos da prática religiosa: o vodu. Em Pays sans chepeau, ele é o meio
pelo qual se converte humanos em zumbis, se instaura a morte e demonstra-se poder. Os
mitos, os seres místicos, as tradições culturais, o folclórico e entre outros, são conteúdos na
obra, passíveis de discussão. O vodu desempenha um papel importante na narrativa, não só na
estrutura e na crítica. Ele é mais um insólito da obra a ser discutido.
Portanto, o imaginário em Laferrière possui uma multiplicidade de leituras,
configurações e funções. Tanto no eixo crítico quanto no estético. As imagens dos mitos, por
exemplo, se aproximam cada vez mais de uma representação reconfigurada. Basta que
analisemos as imagens dos deuses na narrativa, para que entendamos que não é apenas um
evento insólito ou somente elementos sobrenaturais fantasiosos, mas uma representação do
imaginário que busca uma soma complexa de conteúdos; resultado da imaginação
(DURAND, 1989) secular vivida pelos povos Latinos. Esse imaginário cultural aguçado,
crítico e intenso, que busca se pronunciar sobre as raízes e problematizar as identidades, nos
permite compreender que o sobrenatural faz parte da discursão sociocultural do autor Dany
Laferrière:
76

Laferrière traduz na escrita o desejo de escapar às verdades totalizantes de


identidades fixas, que vão de encontro à realidade americana, multicultural.
[...] sua obra se abre para o diverso e coloca em questão a paradoxal
identidade do sujeito pós-modernos americano, fragmentada, herdeira da
empreitada colonial e em permanente elaboração (PAULA, 2006, p. 401).

A identidade paradoxal, referida por Paula (2006) na citação acima, é o „carro chefe‟
de Laferrière, que ao recusar etiquetas consegue liberdade suficiente para problematizar tanto
o lugar de nascimento, quanto o „entre-lugar‟. Muitos trabalhos buscam encontrar em
Laferrière a certeza do desligamento com seu país de origem, ou priorizam as leituras que o
conectam diretamente à identidade nacional haitiana, porém ele não se deixa capturar. Se
Pays sans chapeau e o ciclo haitiano retomam os mitos de fundação nacional do Haiti, com o
panteão vodu e os eventos sobrenaturais, Laferrière fragmenta-os, problematiza-os,
flexibiliza-os e, às vezes, os leva à morte.

3 A morte dos deuses haitianos

Motta (2002) destaca que a pluralidade de imaginários na América Latina é


proveniente da propagação imagética vivida historicamente em nosso território. O que isto
quer dizer? Desde o passado se promoviam os encontros das diversidades e das
manifestações, mesmo que inicialmente algumas expressões do imaginário fossem lidas como
bárbaras, profanas, entre outros. O professor indica que o fenômeno da globalização,
atualmente, apenas intensificou e propiciou o encontro e o compartilhamento dos imaginários,
revelando as pluralidades. Com este contexto torna-se favorável a representação do
imaginário manifestado nas narrativas literárias.
O vodu haitiano, por exemplo, expresso nas obras de Dany Laferrière ganha sua
popularidade em solo quebequense, mesmo sendo posto como algo ficcional. Por meio das
imagens, viabilizadas pelo texto literário, o cultural haitiano propaga sua imaginação. Assim,
o imaginário se expande no território do „outro‟, com imagens das manifestações religiosas;
os mitos. De acordo com Motta (2002), se nossa finalidade é compreender essas expressões
do imaginário, bem como as imagens dos mitos, podemos nos munir da análise do
mitologema, conceituado por E.C. Whitmont:

As imagens mitológicas particulares representam forças religiosas vivas,


coletivamente válidas enquanto estiverem de acordo com a essência e as
formas das correntes psicológicas que surgem da psique objetiva para a
77

maioria dos indivíduos de um período e ambiente cultural particular. Toda


vez que o mitologema tradicional perde sua adequação como uma
representação simbólica, ele parece estar „morto‟. Não foi Deus quem
morreu, então, em nossos dias, mas um mitologema ou uma imagem
particular. A força criadora de mitos não morre, pode-se esperar que
mitologemas recentemente válidos surjam (WHITMONT apud MOTTA,
2002, p. 118).

Conforme a citação acima, o mitologema é a imagem religiosa, formada a partir do


coletivo, detentor de essência e forma; segundo a experiência psíquica dos indivíduos de um
tempo e lugar específico. Nesta perspectiva, ele é resultado da imaginação (DURAND, 1989),
aquela onde se encontram as epifanias manifestadas. Quando o mito sofre uma alteração e se
distancia do padrão estabelecido, experimenta o enfraquecimento e torna-se nulo. A ilustração
sobre a morte de Deus, exemplo retirado das análises de Friedrich Nietzsche 92 (1844-1900),
revela que a representação simbólica do mito deve estar de acordo com suas imagens
tradicionais, para que ele se perpetue mantendo-se „vivo‟.
Nesse sentido, poderíamos afirmar que os mitos representados em Pays sans chapeau
são fundados a partir de um mitologema, e através dessas imagens representadas, o leitor, seja
ele qual for, entra em contato com o religioso haitiano. Todavia, resta-nos uma questão:
como estariam representados os mitos93 na referida obra? Para responder nossa indagação
retomemos a narrativa, nos momentos de pronunciamentos e contextos que envolvem as
imagens dos deuses94 do vodu, na perspectiva do narrador-personagem.
Durante sua pesquisa sobre o exército zumbi, Vieux Os recebe um convite de Lucrèce,
padrinho de sua tia. Este homem simples do campo descobre que o narrador-personagem está
escrevendo um livro sobre o Haiti e o convida a conhecer o mundo dos mortos. Após este
momento, Vieux Os procura uma segunda opinião. Ele recorre ao professor J.-B. Romain, na
tentativa de se informar sobre as possíveis consequências de sua ida ao além. O professor,
por sua vez, argumenta que assim como os ocidentais avançaram em sua ciência os haitianos

92
Nietzsche foi um filósofo alemão que escreveu sobre diversas áreas do conhecimento humano. Sua empreitada
maior foi diagnosticar as concepções religiosas alemãs sobre Deus, no imaginário social. Quando escreveu a
frase “Deus está morto”, este escritor e pensador fornecia um quadro descritivo e reflexivo sobre a imagem
deturpada e distorcida que a sociedade alemã tinha do ser superior, estabelecido pela Bíblia Sagrada protestante.
Entretanto, este assunto não é tão simples assim. O trabalho de Mário de Paula (2010) mostra as contradições
que se encontram ligadas às análises de Nietzsche sobre a reforma protestante e o reformado Lutero, que às
vezes são sinônimos de atraso quanto ao retorno da imagem de um cristianismo medieval. Recomendamos a
leitura deste estudo para compreender mais sobre esta questão.
93
Adotamos a concepção de mito de Durand que o definiu como: “[...] um esboço de racionalização dado que
utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em ideias. O mito explicita
um esquema ou um grupo de esquemas. [...] o mito promove doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como
bem viu Bréchier, a narrativa histórica e lendária” (DURAND, 1989, p.44).
94
Devido à falta de material teórico sobre as entidades haitianas no Brasil, nos ateremos apenas a analisar as
imagens de Ogou, Erzulie e Damballah.
78

também progrediram: “Eles fizeram progressos, nós também progredimos, mas não
95
costumamos falar disso” (LAFERRIÈRE, 2011, p.129). Deste modo, o narrador-
personagem, convencido da possibilidade de explorar o além, passa a refletir sobre a
finalidade de sua visita:

- Talvez os deuses do vodu queiram que falemos agora. Talvez eles queiram
simplesmente um reconhecimento internacional... Porque, professor, o que
vale Santa Cecília comparada a Erzulie Dantor, dita Erzulie dos olhos
vermelhos? O que vale um simpático São Cristóvão comparado ao terrível
Ogou Badagri, o mestre do fogo, ou o inocente São Francisco de Assis
comparado ao Baron Samedi, o zelador dos mortos? Essas pessoas querem,
talvez, que o mundo inteiro reconheça seu poder, e me escolheram para esse
trabalho de propaganda [...]96 (LAFERRIÈRE, 2011, pp. 129-130).

Estas são as primeiras imagens atribuídas aos deuses haitianos. Aqui, Vieux Os
destaca as entidades principais da religião vodu, atribuindo-lhes poder e contraponto com os
santos católicos. Os deuses haitianos seriam realmente mais fortes ou temíveis que os demais?
Na verdade, a correlação entre o panteão vodu e os santos da igreja católica, cujos poderes
demonstram-se enfraquecidos perante a força das divindades haitianas, revela o sincretismo
histórico dos mitos:

No contexto do Haiti, o sincretismo manifesta-se na mistura entre os ritos


católicos e do Vodu. [...] Na religiosidade popular que se manifesta no povo
haitiano, há uma especificidade marcante: a devoção à Maria e as festas dos
padroeiros de santos assimilados a alguns espíritos da religião vodu
(JOSEPH, 2014, p. 75).

Conforme Joseph (2014) aponta, os haitianos praticantes do vodu fazem


aproximações entre as entidades que eles cultuam e os santos católicos, por intermédio da
leitura simbólica dos elementos referenciais; a partir de alguma característica que lembre a
entidade, e vice-versa. Nesse raciocínio Bernand (2016) indica que Ogou, um espírito de
batalha e guerra, se aproxima do santo Jacques ou santo Santiago, por causa das lanças que
ambos carregam.

95
“Ils ont fait des progrès, on a fait aussi des progrès, mais nous on n‟en parle pas” (LAFERRIÈRE, 1997,
p.161).
96
- Peut-être que les dieux du vaudou veulent qu‟on en parle maintenant. Peut-être qu‟ils veulent tout
simplement une reconnaissance internationale... Car professeur, que vaut sainte Cécile face à Erzulie Dantor, dite
Erzulie aux yeux rouges? Que vaut un sympatique sait Christophe face au terrible Ogou Badagri, le maître du
feu, ou l‟innocent saint François d‟Assise face à Baron Samedi, le concierge des morts? Ces gens-là veulent
peut-être que le monde entier reconnaisse leur puissance, et ils m‟ont choisi pour ce travail de propagande [...]
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 161-162)
79

Assim, o pronunciamento de Vieux Os promove uma abertura ao sincrético, mesmo


que ele procure o distanciamento estabelecendo a supremacia do religioso haitiano sobre o
católico. O procedimento que Laferrière utiliza aqui é a ironia. Através desta tensão entre as
religiões, ele evoca a disputa histórica vivida na nação. Grondin (1985) atenta que desde a
colonização, o vodu é combatido no território haitiano. Enquanto na ocupação norte-
americana, houve uma luta pela erradicação da religião:

Em 1941, foi decretada pelo governo mulato uma campanha de destruição


do vodu e de saneamento do conteúdo do catolicismo. A campanha
correspondeu a um verdadeiro empreendimento de desculturação, como nos
primeiros tempos da colônia, na época da Inquisição: destruição geral de
tambores (muitas vezes peças de valor artístico extraordinário), cântaros,
imagens, garrafas, postes, cruzes, pedras, colares, templos (GRONDIN,
1985, p. 83).

Se o professor J.B. Romain argumenta que o haitiano nunca fala dos seus avanços na
ciência noturna, deve-se ao fato da ocorrência desta „caçada‟ aos templos vodus e seus
praticantes. Enquanto Vieux Os, oposto ao silêncio, se dispõe a propagar a imagem dos
deuses e aceita o convite de ir até o além, com o pressuposto de que encontraria coisas
realmente inspiradoras para a escrita de seu livro. Todavia, essa postura do narrador-
personagem não se mantém assim por muito tempo.
A partir do dialogo entre o professor J.B Romain e Vieux Os, fica subentendido seu
consentimento em visitar o mundo dos mortos. Lucrèce não é avisado sobre a decisão do
escritor, tudo fica subentendido. Mais tarde, o escritor sai para reencontrar seus antigos
amigos e saber sobre os desfechos do mistério do Exército Zumbi, e retorna à sua casa para
dormir e acaba tendo um sonho estranho.
Sem saber se está acordado ou não, o narrador-personagem relata que Lucrèce surge
diante dele para conduzi-lo até o além. O momento de transição, entre o mundo dos vivos e o
país sem chapéu, é um dos maiores mistérios da narrativa de Laferrière, e nos encaminha para
uma discussão sobre o gênero literário 97 da obra, pois o seu caráter é tão insólito que nos faz
questionar a natureza deste „sonho‟. Entretanto, independentemente da natureza de sua
passagem ao além, o escritor atravessa a barreira entre os dois mundos e conhece os deuses do
vodu pessoalmente.
Assim, Vieux Os tira suas próprias conclusões acerca das divindades. Este evento se
desenvolve no penúltimo capítulo da narrativa, onde encontramos o subtítulo Deuses de
97
Posteriormente trataremos sobre esta questão do gênero literário da narrativa, uma vez que esta discussão nos
ajudaria a compreender a estruturação dos eventos sobrenaturais da obra.
80

classe média; passagem que marca a crítica mais ousada de Vieux Os. Ao falar das divindades
haitianas, durante sua visita no além, ele descreve uma espécie de desentendimento entre a
famìlia dos deuses Erzulie, Ogou e Marinette. Logo, ele reclama: “Estaria eu aqui para ouvir
um deus me contar suas dificuldades com a mulher? E principalmente, é com esse monte de
besteiras pequeno-burguesas que o vodu pretende enfrentar os mistérios do catolicismo?” 98
(LAFERRIÈRE, 2011, p.202).
Ele conta que Ogou estava programando um casamento com a sua filha Marinette, e
consequentemente abandonara seu primeiro matrimônio com a deusa do sexo, Erzulie. Diante
desta confusão, o escritor escapa da deusa, que pretendia mantê-lo como escravo sexual dela.
Ela estava furiosa por causa do adultério do marido e queria se vingar com o mortal, como
vinha fazendo durante este tempo em que estava morando sozinha em um casebre. Esta
confusão entre os deuses pode também ser percebida como mais uma paródia produzida por
Laferrière. Desta vez, ele tenta trazer para sua obra a narrativa lendária dos mitos. Nos
estudos religiosos e antropológicos sobre o vodu, há uma leitura que diz respeito ao
envolvimento íntimo entre Ogou e Erzulie.
Joseph (1014) explica que na base da narrativa mítica 99 do vodu, Mahou é o deus
criador, a divindade principal. As outras entidades, Jany e Iwa, são seres inferiores que fazem
a intermediação entre Mahou e os homens. Em sua pesquisa, este estudioso tenta caracterizar
os principais seres do panteão vodu para perceber os símbolos que promovem o sincretismo
no Haiti.
Ele revela que Ogou é considerado um símbolo de guerra e batalha, mas também
representa fertilidade, devido a seu envolvimento íntimo com a deusa Erzulie. Três
personalidades são conferidas a esta deusa: “[...] Erzulie Fréda que representa o amor sensual,
Erzulie Dantor que é o amor paixão e é simultaneamente criadora e destrutiva e enfim, Erzulie
Zilá que seria a mãe criadora” (JOSEPH, 2014, p. 90). A característica de matriarca lhe é
atribuída por causa de Legba, considerado seu filho. Este último é um mistério no vodu. Ele
assume formas diferentes e está associado à Dambalah, considerado uma espécie de
revelação, que assume o formato de cobra para os praticantes da religião.

98
“Étais-je ici pour entendre un Dieu me raconter ses misères avec sa femme? Et surtout, est-ce avec ce ramassis
de ragots petit-bourgeois que le vaudou compte faire face aux mystères du catholicisme?” (LAFERRIÈRE, 1997,
p.256)
99
É provável que existam várias versões sobre as relações entre os deuses haitianos, o que torna mais complexo
a sistematização para uma comparação entre nosso objeto de estudo e a narrativa do mito. Vale salientar que as
dificuldades para uma exposição sobre os mitos são várias, dentre elas, a falta de material científico no Brasil.
Acreditamos que não nos convém nos apropriar deste debate, neste momento, mas confiamos que a nossa
proposta pode indicar lacunas a serem preenchidas nos estudos antropológicos e religiosos, os quais devem
servir como ferramentas para o auxílio na análise do mito presente no texto literário.
81

É possível perceber a correlação entre as narrativas mítica e nosso objeto de estudo.


Dany Laferrière subverte as relações dos deuses Ogou e Erzulie, proclamando uma efêmera
briga entre a família das divindades. Ao observarmos a imagem de Ogou, percebemos que
Vieux Os destaca-o como um trabalhador: “[...] um pai, supostamente Ogou ferreiro, que mais
100
parece um pobre operário afundado até o pescoço em frustrações matrimoniais [...]”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.202). A imagem do mito Ogou, um deus que é considerado o “[...]
espìrito guerreiro e protagonista da emancipação do paìs” (BULAMAH, 2015, p.92) e uma
divindade poderosa de combate e de guerra, ganha ares de um ferreiro trabalhador, lutando
para se resolver com suas mulheres.
Erzulie Dantor, que segundo a narrativa mítica é a matriarca do espírito mais
misterioso do panteão vodu e é comprometida com Ogou, desenvolve outro papel. Aqui ela
enfrenta a falta de reciprocidade do amor marital e se entrega a vingança. Ela ainda tenta
manchar a reputação de seu marido, para Vieux Os: “[...] desde que o caro Ogou não dá mais
101
no couro, sou obrigada a buscar parceiros entre os mortais” (LAFERRIÈRE, 2011, p.203).
O escritor se percebe cercado pela mulher que planeja a vingança e reflete: “[...]Érzulie Fréda
Dahomey, a mais terrível deusa da cosmogonia vodu, tentando me seduzir para que eu vá
ferir, com a arma do ciúme, o coração de seu marido, Ogou Badagris ou Ogou Ferreiro, o
intratável deus do fogo e da guerra”102 (LAFERRIÈRE, 2011, p.205-206).
Damballah, este ser que assume o formato de uma cobra vinda do mundo invisível e
revela-se ao praticante da religião, é atribuído ao personagem J.-B Romain, no romance. No
fim da narrativa, quando Vieux Os retorna do mundo dos mortos, ele se encontra com o
professor e depois de um longo diálogo este homem revela-se como Damballah:

Bem no momento em que ele atravessa o portão, reconheço seu andar


ondulante, visto que Damballah o magnífico sempre é representado por uma
cobra na iconografia do vodu. Esta manhã, ele tinha tomado os traços do
estimado professor J.-B. Romain para vir tentar, pessoalmente, me
convencer a escrever um livro [...]103 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 213)

100
“[...] un père, supposément le terrible Ogou Ferraille, qui m‟a plutôt l‟air d‟un pauvre ouvrier pris jusqu‟au
cou dans des frustations matrimoniales.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.256)
101
“[...] depuis que ce cher Ogou ne bande plus, je suis obligée de trouver mes partenaires chez les mortels [...]”
(LAFERRIÈRE, 1997, p.258)
102
“[...] Érzulie Fréda Dahomey, la plus terrible déesse de la cosmogonie vaudou, tentant de me séduire pour que
j‟aille piquer, avec l‟arme de la jalousie, le coeur de son mari, Ogou Bagadris ou Ogou Ferraille, l‟intraitable
dieu du feu et de la guerre.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.261)
103
Juste au moment où il franchit la barrière, je l‟ai reconnu à sa démarche ondulante, puisque Damballah le
magnifique est toujours représenté par une couleuvre dans l‟imagerie vaudouesque. Ce matin, il avait pris les
traits de l‟estimable professeur J.-B. Romain pour venir tenter, personnellement, de me convaincre d‟écrire un
livre [...] (LAFERRIÈRE, 1997, p.271)
82

Laferrière promove uma verdadeira sátira, com a imagem desse ser misterioso e sua
conexão ao nome J.B. Romain. J. Michael Dash (2013) comenta que este personagem, em
nosso objeto de estudo, já é uma crítica ao etnógrafo Noiriste J.B. Romain, um teórico muito
citado nos estudos sobre identidade cultural religiosa haitiana:

Irreverentes e disruptivos, os romances posteriores de Laferrière se


envolvem diretamente com o resíduo fantasmagórico de um discurso
identitariano duvalierista. Em Pays sans chapeau, seu romance de retorno à
sua" terra natal ", ele ridiculariza o etnógrafo haitiano noiriste JB Romain,
um discípulo de Price-Mars. Neste retrato satírico do professor Romain, o
autor o visita e entra em um minúsculo escritório que está completamente
desconectado do mundo real [...]104 (DASH, 2013, p. 228, Tradução nossa).

Dash (2013) mostra que Laferrière promove grandes críticas apenas incorporando os
nomes dos “filhos do Haiti”, os quais possuem a missão de propagar a bandeira haitiana.
Concordamos que esta leitura é viável e possui grande relevância. Ela nos ajuda a
compreender que além de rechaçar a supervalorização nacional, Laferrière planejou satirizar
os mitos de fundação desta pátria, aliando-os aos que defendem o vodu e sua perpetuação
como prática religiosa. Certamente, trata-se de uma mesma crítica às duas imagens, ao
etnólogo Noiriste e ao deus Damballah, que se antropomorfiza em J.-B. Romain.
O diálogo que ocorre entre o narrador-personagem e Damballah é extremamente
crítico e apologético, como se o mito fosse realmente dotado de um conhecimento científico
sobre a temática religiosa. De um lado constatamos o catolicismo e do outro o vodu; duas
religiões opostas na obra, mas que se mantém ligadas pelo sincretismo. No entanto, o deus
haitiano assume o enfraquecimento do panteão vodu, antes constatado por Vieux Os: “[...]
nossa reputação está em baixa. E pedimos a todos os filhos do Haiti que façam um esforço
105
suplementar para restabelecer a honra de nossas raìzes e de nossos deuses...”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.211). Dash (2013) não percebeu que para Laferrière, não é apenas o
etnógrafo que está sendo criticado, mas também os deuses. Na narrativa, J.-B. Romain é
aproximado de Damballah, como se a imagem do professor fosse mais convincente para
Vieux Os, do que a sua forma comum; a cobra.

104
Irreverent and disruptive, Laferrière's later novels engage directly with the ghostly residue of a Duvalierist
identitatian discourse. In Pays sans chapeau, his novel of a return to his 'native land', he mocks the haitian
noiriste ethnographer J.B Romain, a disciple of price-mars. In this satiral portrait of professor Romain, the author
visits him and enters a tiny office that is completely disconected from the real world [...]" (DASH, 2013, p.228).
105
“[...] notre réputation est au plus bas. Et nous demandons à tous les fils d‟Haïti de faire un effort
supplémentaire pour remettre à l‟honneur nos racines et nos dieux ...” (LAFERRIÈRE, 1997, p.268)
83

O que Laferrière pretendia quando decidiu caracterizar os principais mitos da religião


vodu deste modo? Em seu pronunciamento sobre Pays sans chapeau, na entrevista a Revista
Brasileira do Caribe (2008), ele diz que os haitianos não gostaram muito desta parte sobre os
deuses:

[...] o capítulo sobre o vodu os incomodou um pouco de destacar um capítulo


„Os deuses de classe média‟, eles não gostaram muito disso, eles sentem que
há uma ironia nele. Eu não vejo ironia, são deuses de classe média! Os
deuses que não mudam. Mas como isso não me interessa, não mais, de
cuspir nas coisas e que é ridículo de adorá-las, eu digo que são deuses de
classe médica. Se você cospe nisso eles pensam que você é um inimigo,
então isso os tranquiliza, mas se você diz „não é tão bom assim‟, daí, eles
ficam chateados! 106 (PAULA, 2008, pp. 310-311, Tradução nossa)

Como podemos observar, na citação acima, o autor Dany Laferrière ignora o possível
teor irônico de seu texto, posto que para ele trata-se de algo claro em sua obra. Ele não tem
interesse em esconder sua opinião sobre os deuses e o vodu, ou de discutir as questões
concernentes à religião. Apesar deste posicionamento, por parte do autor, sua narrativa retém
um debate profundo acerca da cosmologia vodu, especificamente no diálogo entre Damballah
e Vieux Os. Por exemplo, o pedido que a entidade faz ao escritor - que ele escreva seu livro
para aumentar a popularização dos deuses - revela uma espécie de negociação. O narrador-
personagem ainda pergunta se haveria uma garantia de que os deuses estariam do seu lado,
caso ele escrevesse algo.
Esta troca se assemelha muito as relações que as divindades estabelecem com seus
seguidores, na prática vodu. De acordo com Bulamah (2015) o relacionamento entre as
entidades e os praticantes da religião é baseado em um sistema de troca, que visa os dois
lados. Por isso os praticantes da religião devem fazer oferendas e sempre agir segundo as
instruções dadas pelos espíritos, caso pretendam ser agraciados com algo. Podemos inferir
que as instruções de Damballah para Vieux Os são um destaque para essa troca religiosa. Não
temos a intenção de inferir que a escrita do livro seria uma oferenda para os deuses, não é o
caso. A troca consistiria no fato de Vieux Os solicitar a proteção dos deuses para escrever
aquilo que ele bem desejar, garantindo que os deuses receberiam o foco da sua obra.

106
[...] le chapitre sur le vaudou les a troublés un peu de tirer un chapitre „Des dieux de classe moyenne‟, ils
n‟aiment pas ça, ils sentent qu‟il y a une ironie là-dedans. Je ne vois pas d‟ironie, ce sont des dieux de classe
moyenne! Des dieux qui ne changent pas. Mais comme ça ne m‟intéresse pas, non plus, de cracher sur les choses
et que c‟est ridicule de les adorer, je dis que ce sont des dieux de classe moyenne. Si vous crachez dessus ils
pensent que vous êtes un ennemi, alors ça les rassure, mais si vous dites “ce n‟est pas si bon que ça”, alors là, ils
sont fâchés! (PAULA, 2008, P.310-311)
84

Outra característica da presença do debate cosmológico do vodu haitiano, na referida


narrativa, é o discurso sobre as raízes culturais. No diálogo entre Damballah,
antropomorfizado em J.B. Romain, e Vieux Os, por exemplo, há uma convocação aos „filhos
do Haiti‟. Esta expressão em si remete a ideia de que uma vez que se nasce haitiano há esta
obrigação de pertencimento. Portanto, todos nascidos lá devem assumir postura em prol do
religioso e cultural. Diante disto, Vieux Os responde ao deus haitiano: “- Devo dizer,
professor, que a palavra “raìzes”, vinda de onde vier, me deixa de cabelo em pé. Se formos
por aì, como censurar os nazistas?” 107 (LAFERRIÈRE, 2011, p.212)
O combate às „raìzes‟ enfrentado por Vieux Os é mais uma ruptura na obra com
imagem dos deuses. É como se o escritor estivesse recusando sua herança enquanto praticante
da religião. Se ele insiste em dizer „não‟ a Damballah, ele nega sua herança religiosa. Para
compreender melhor o tipo de herança que estamos nos referindo vejamos outra versão da
narrativa mítica do panteão vodu.
Bulamah (2015) conta que oficialmente108, na cosmologia desta religião, Jany e Iwa
são considerados anjos rebeldes expulsos do paraíso devido à desobediência perante as ordens
de Deus. Neste raciocínio, eles seriam espíritos, organizados como nações, que possuem
divisões e subdivisões; sendo tão numerosos que não foram totalmente catalogados pelos
estudos clássicos religiosos. Essas entidades são agrupadas de acordo com as suas
características em comum. Assim, haveria vários tipos de Erzulie, Legba, Ogou, Ti Jean; que
são os principais nomes dados a eles. Esses espìritos possuem personalidades próprias, e “[...]
apresentam contradições que ultrapassam divisões entre bem e mal, certo e errado”
(BULAMAH, 2015, p.89). Seus princípios morais são próprios de sua natureza caída.
Para Bulamah (2015), essa multiplicidade de mitos ocorre por causa do conceito de
herança referente aos espíritos ancestrais do grupo familiar. Logo, cada família (lakou) herda
seus próprios espíritos, conforme a etnia da primeira formação dos parentes. Ou seja, os
primeiros escravos africanos que foram trazidos ao território e transportaram consigo os
deuses. Os membros que compõem a família, mesmo os que se desconectem da comunidade
para viajar ou morar fora do país, devem continuar a propagar a religião e o serviço às
entidades, pois não são destituídos da obrigatoriedade de servir aos deuses. Sabendo dessas

107
“- Je dois vous dire, professeur, que le mot racines d‟où qu‟il vienne me fait dresser les cheveux sur la tête. Si
on le fait pour nous, pourquoi on l‟interdirait aux Allemands, alors?” (LAFERRIÈRE, 1997, p.269)
108
Em nossas pesquisas sobre a narrativa mítica nos estudos religiosos, antropológicos e etnológicos percebemos
que há uma recorrência maior desta versão, como é o caso do estudo de Gentini (2013) que expõe sobre o lugar
de origem da religião, a cidade lendária de Fon Ewe, África ocidental, no reino de Daomé.
85

informações, podemos compreender a subversão conferida à imagem dos deuses, em Pays


sans chapeau.
É por causa desta primazia de obrigatoriedade, conferida ao haitiano herdeiro da
religião, que inicialmente Vieux Os assume seu papel de propagandista dos deuses. Ele
realmente acreditava nos poderes das entidades. Como vimos anteriormente, esta postura se
inverte após sua visita ao além. E apesar de tudo, Damballah o convence a escrever o livro
falando sobre os deuses. Com a condição de formular uma nova história sobre eles, Vieux Os
aceita a tarefa: “- O senhor me pede demais... Inventar uma nova imagem para os deuses do
109
vodu... Pode me garantir que os deuses estarão do meu lado?” (LAFERRIÈRE, 2011,
p.212). Entretanto, o romance termina sem uma resolução quanto à escrita deste livro. Resta
apenas a promessa dessa nova composição, e do favoritismo dos deuses pela nova versão que
será produzida.
Embora não seja evidente se Vieux Os conseguiu escrever o livro sobre o Haiti há uma
frase que nos confere a pista de que o livro que ele pretende escrever, na verdade é o nosso
objeto de estudo: “[...] escrever um livro sobre esse curioso paìs onde ninguém usa chapéu”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.213). Encontramos aqui a justificativa para o título do romance,
neste penúltimo capítulo. Novamente a ironia de Laferrière demonstra-se evidente110. Ele
concede a seu personagem principal a autoria de sua obra. A nova imagem do panteão vodu é
esta que tratamos até agora, e que possivelmente foi „aprovada‟ pelos deuses. Laferrière
credita a Vieux Os a missão de negar os deuses e falar sobre os espíritos ancestrais de seu
povo, dando espaço para a crítica ao vodu e sua prática.
Não nos esqueçamos do incesto vivido entre as divindades. Se não há um parâmetro
moral para os espíritos, o incesto entre Ogou e Marinette não causa alguma preocupação.
Vieux Os não reflete sobre o incesto, este fato é apenas mais um evento considerado inferior.
Aparentemente o narrador-personagem ignora o matrimônio entre pai e filha, como se
conhecesse um tanto sobre a natureza dos espíritos. Sua revolta se direciona à ocupação dos
111
deuses em si, que ele caracteriza como “[...] uma estúpida disputa de famìlia”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.209).

109
“- Vous me demandez beaucoup... Fabriquer une nouvelle image aux dieux du vaudou... Pouvez-vous me
garantir que les dieux seront à mes côtés?” (LAFERRIÈRE, 1997, p.270)
110
Lembremos que uma característica da escrita do autor Dany Laferrière é a auto referência, como é o caso da
obra L’odeur du café (2016), destacada no nosso primeiro capítulo. Em Pays sans chapeau, este recurso torna
tudo mais confuso e abre espaço para as múltiplas interpretações ao público leitor, que decidirá o desfecho.
111
“[...] une stupide chicane de famille” (LAFERRIÈRE, 1997, p.265).
86

Não há nenhum pronunciamento sobre o casamento consanguíneo, além da profunda


irritação por causa da disputa entre as divindades. A explicação dos comportamentos dos
espíritos se encontra na fala de Damballah, durante o diálogo com Vieux Os:

[...] lá ao menos, há vida, os sentimentos são levados ao extremo (o amor, o


ciúme, a morte), as cores também são muito fortes (o preto, o vermelho, o
violeta e o branco cintilante)... O sexo torna-se um fruto tropical que cresce
na árvore humana... Acho, meu jovem amigo, essa história bem mais
palpitante que a outra, aquela da família do pobre carpinteiro em Belém 112
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 209).

As explicações provindas da revelação vodu, o deus Damballah, confere ao panteão


dos espíritos esta intensidade humanística, que no julgamento de Vieux Os é vista como
simplória e menos valiosa do que a história do menino Jesus do cristianismo. A natureza das
divindades, descrita nesta citação, corresponde com as ideias de Bulamah (2015). As
características humanísticas das entidades são garantidas em Pays sans chapeau, embora
sejam consideradas „medianas‟ ou quase indignas de „culto‟, no olhar do narrador-
personagem.
Os mitologemas, em Pays sans chapeau, são enfraquecidos em sua construção, por
causa do próprio imaginário expresso, que em sua manifestação mítica possui um papel
fulcral para o Haiti que baniu o autor Laferrière. Nesse sentido, pretendemos chamar a
atenção para a temática da resistência deste imaginário na fase de exílio do autor. Na sua
busca de rejeitar as etiquetas e clichês do exilado dotado de misticismo africano, o haitiano-
quebequense usa o imaginário de sua pátria para expandi-lo à toda América. Nas novas
imagens dos deuses haitianos, assim como nas figuras dos zumbis, ele adentra o intercultural
e tenta promover uma literatura além do nacional haitiano diásporo.
Este posicionamento, sobre os deuses do panteão vodu, revela um escritor crítico e
extremamente político, que busca combater as identidades haitianas ditas como “verdades
totalizantes” (PAULA, 2006, p. 401), promovendo uma ruptura por meio desta construção do
imaginário da obra. Talvez, esta seja a narrativa de Laferrière que mais se mune do imaginário
religioso e cultural com a função de problematizar as identidades. Conforme Paula aponta em
sua análise sobre as obras do autor, “[...] a criação literária, além de tocar em aspectos do

112
[...] là-bas au moins, ça vit, les sentiments sont poussés à l‟extrême (l‟amour, la jalousie, la mort), les couleurs
sont aussi très vives (les noir, le rouge, le violet et le blanc étincelant)... Le sexe devient un fruit tropical qui
pousse sur l‟arbre humain... Je trouve, mon jeune ami, cette histoire bien plus palpitante que l‟autre, celle de la
famille de ce pauvre charpentier de Bethléem. (LAFERRIÈRE, 1997, p.266)
87

inconsciente, representa, para Laferrière, um espaço de emergência de reflexões críticas,


ironias e provocações desafiadoras e indiscutivelmente conscientes” (PAULA, 2006, p.416).
Não se trata de usar os mitologemas para fazer surgir o inconsciente das
manifestações, mas de manipulá-los ao ponto de harmonizá-los à crítica, o historicismo, as
ironias e as duplicidades em sua representação literária. Com estas configurações de um
imaginário crítico, Pays sans chapeau adentra o rol das literaturas da América Latina de
aspecto Maravilhoso e surreal. O insólito nesse romance consegue estabelecer algo além da
crítica ao mitológico, como a viagem pelo mundo dos mortos através de um evento
misterioso, ou a natureza humanística dos deuses; que nesta característica se mantém
tradicional, e o teor sobrenatural do zumbi. Todos esses eventos e seres sobrenaturais
demonstram as irracionalidades das manifestações da imaginação, exatamente aquilo que
sempre foi idealizado pelo movimento surrealista.

4 Os Surrealismos: entre a Europa e as Américas

O Surrealismo surgiu na França, entre duas guerras mundiais. Diante das tragédias da
humanidade e do campo de batalha, os artistas necessitavam romper com tudo aquilo que
poderia representar uma humanidade racionalista. Para eles, até a arte tornou-se sinônimo de
“tolice” (NADEAU, 2008, p.27). Apesar do contexto problemático, os artistas não se
entregaram, inicialmente, a um frenesi destrutivo.
Tal movimento “[...] foi precedido pelo cubismo, pelo futurismo, pelo dadaìsmo”
(NADEAU, 2008, p.14), porém manteve-se mais próximo desse último. O dada, também
chamado assim, mantinha uma proposta muito parecida com aquela que desejavam os
surrealistas. Nomes como: Paul Valéry (1871-1945), Léon-Paul (1876-1947), André Breton
(1896-1966), Blaise Cendrars (1887-1961), Jacques Vaché (1895-1919), Guillaume
Apollinaire (1880-1918), Pablo Picasso (1881-1973), Tristan Tzara (1896-1963), Francis
Picabia (1879-1953), Conde de Lautréamont (1846-1870) ou Isidore Ducasse (1846-1970) e
entre outros, são a prova de que vários movimentos estavam próximos e mantinham um
diálogo, com um novo propósito. Não é atoa que a maioria dos artistas do Surrealismo
surgiram da vertente dadaísta.
A ruptura era algo que se pretendia em todos os níveis, tanto na arte quanto na
filosofia. Essa era a modernidade se anunciando e seu grito de guerra consistia em “abaixo ao
racionalismo!”. O Dadaísmo se comprometeu, fortemente, com a causa e conseguiu fazer da
88

revista Littérature, editada por André Bréton (1896-1966) e Tristan Tzara (1896-1963), o seu
meio para as críticas mais severas da arte. Eles desejavam romper com tudo o que era e
poderia ser clássico, e (ou) tradicional. Nem mesmo a arte moderna da época escapava: “[...]
Dada negava tanto a arte moderna quanto a arte tradicional, como a arte simplesmente”
(NADEAU, 2008, p.35). Diante do poder autodestrutivo, produzido no dadaísmo, vários
artistas e pensadores decidiram abandoná-lo. Encabeçados por Breton, esses homens fazem
surgir um novo cenário para a produção artística.
Segundo Nadeau (2008), André Breton (1896-1966) foi o precursor e grande
influenciador desse movimento. Foi ele quem redigiu os dois manifestos do Surrealismo, cujo
conteúdo se voltava para a definição desta nova expressão e filosofia, assim como para as
discussões a respeito da produção artística de sua época. No primeiro Manifesto Surrealista
(1924) podemos perceber que Breton inspirou-se em Guillaume Apollinaire (1880-1918) para
a nomenclatura do movimento:

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que morrera há pouco, e que por


diversas vezes nos parecia ter obedecido a um arrebatamento desse gênero,
sem entretanto ter aí sacrificado medíocres meios literários, Soupaul e eu
designamos com o nome de SURREALISMO o novo modo de expressão
pura, agora à nossa disposição, e com o qual estávamos impacientes para
beneficiar nossos amigos. (BRETON, 1924, s/p.)

Breton (1978) demonstra que este termo foi escolhido a partir da produção de
Apollinaire, cuja letra detinha a “profecia” do Surrealismo ainda não teorizado. Ele declara
que seu ídolo foi a inspiração basilar desta nova empreitada, uma vez que é na escrita do
italiano que Breton se debruça para compreender que já nascia o projeto de suas aspirações.
Neste mesmo documento o teórico surrealista define o movimento como a capacidade
de exprimir o “[...] Automatismo psìquico puro” (BRETON, 1978, s/p.). Para ele, a expressão
do pensamento humano e do inconsciente seria o conteúdo e a regra característica do
Surrealismo. A necessidade de Breton (1978), bem como de seus amigos artistas
contemporâneos, era produzir algo que se libertasse da imposição estética, da moral da
sociedade francesa, e, sobretudo, do exercício racional. O inconsciente foi declarado como
matéria e, antes de tudo, a primazia das produções desta escola. Para isso, o referido autor
incorpora as discussões sobre as atividades cerebrais do inconsciente, e ainda toca na questão
da imaginação:
89

Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as


profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de
aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo
interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o
caso, ao controle de nossa razão (BRETON, 1978, s/p.).

Nessa declaração, o teórico francês se refere exatamente ao sonho; como produto da


vida psíquica noturna do ser humano. Ele discorre especificamente sobre as literaturas que se
apropriam desta matéria e torna-a parte integrante da realidade. Numa espécie de nostalgia,
Breton (1978) procura tecer elogios aos contos de fadas, que chegam ao auge no século XIX,
e acusa o racionalismo de se desfazer da imaginação, concedida ao homem apenas no período
da infância, um espaço curto de tempo.
Apesar de creditar ao romantismo a introdução da imaginação nas artes, ele entendeu
que a instância imaginativa poderia ser mais expandida, por esta razão ele interroga por duas
partes do pensamento humano: o consciente e o inconsciente. Esse último, nunca antes
explorado, compreenderia: “O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são
molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas,
quase” (BRETON, 1978, s/p.).
De acordo com Batchelor (1998), essa citação mostra que Breton „enxergava‟ as
limitações da imaginação, no contexto romântico. Para ele, o surrealista francês percebeu que
a concepção de imaginação estava correta ainda no século XIX, porém ela deveria ser
expandida a outra instância. Por isso a prioridade do teórico surrealista foi explicar,
didaticamente, em seu manifesto, que seu interesse maior seria o “[...] depósito do
inconsciente do instinto, da experiência e do desejo” (BATCHELOR, 1998, p. 50).
É certo que por causa desta nova dimensão do pensamento humano, adquirida em
Sigmund Freud (1856-1939), as produções do movimento se desfizeram de várias “amarras”
das tradições estéticas de movimentos anteriores. Mesmo assim, Breton (1978) faz elogios
tanto à aptidão de escritores de seu tempo, como é o caso dos seus colegas de trabalho citados
na obra, quanto a artistas de outro tempo, como o caso de Dante Alighieri (1265-1321),
William Shakespeare (1564-1616), Marquês de Sade (1740-1814), Bertrand Russell (1872-
1970), Charles Beaudelaire (1821-1867), Arthur Rimbaud (1854-1891) e entre outros.
A maioria dos leitores de Breton (1978) enxergara e enxerga o Surrealismo como algo
extremamente psicanalítico e quase emparelhado ao caos, contudo encontramos, em seu
manifesto, vários elogios às produções maravilhosas. As literaturas que conservavam
fantasias e demonstravam as inquietações inerentes ao homem.
90

Nesse raciocínio, segundo Breton (1978), os surrealistas deveriam buscar na


profundeza de si mesmo a inspiração, ao invés de olhar para o externo, como outros
movimentos artísticos fizeram. Dessa maneira, a produção artística se voltou para o “sentir”,
não apenas o pensar sistemático, ou o racional. Batchelor (1998) explica que os artistas do
movimento seguiram à risca as ideias de seu precursor e procuraram aplicar, até mesmo, as
técnicas terapêuticas da psicanálise para produzir, como a “escrita automática” empregada
frequentemente nas composições de obras literárias. Esse procedimento era comumente
utilizado por psicanalistas, com o propósito de identificar e compreender o modo como
funciona o inconsciente do paciente:

Para os surrealistas, a teoria do inconsciente e a técnica do automatismo


funcionariam, não como um meio de ajudar os indivíduos a ajustar-se às
normas sociais estabelecidas, mas como um meio, em primeiro lugar, de
sistematicamente desviar-se dessas normas, e em seguida de equipar-se do
material necessário para demonstrar seu caráter limitado e repressivo.
(BATCHELOR, 1998, p. 52)

A escrita automática aparenta ser uma técnica bastante coerente com o movimento
surrealista, inclusive com a definição desse verbete, visto alguns parágrafos acima. Entretanto,
gostaríamos de chamar a atenção para nosso objeto de estudo.
“Escrevo tudo que vejo, tudo que ouço, tudo que sinto. Um verdadeiro sismógrafo” 113
(LAFERRIÈRE, 2011, p.12). Essa passagem encontra-se no primeiro capítulo de Pays sans
chapeau, intitulado de Um escritor primitivo114. No momento em que Vieux Os reflete sobre
sua atividade de escrita, enquanto autor, em pleno exercício da profissão, ele confessa ao
leitor que escreve apenas o que sente. Com certo automatismo, o narrador-personagem
descreve seu engajamento com o ato de composição de uma obra: “[...] Opa, um pássaro
atravessa meu campo de visão. Escrevo: pássaro. Uma manga cai. Escrevo: manga. As
115
crianças jogam bola na rua entre os carros. Escrevo: crianças, bola, carros”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.13). Essa passagem indica que tudo quanto Vieux Os sente em sua
volta, ele escreve.
O narrador-personagem nos coloca frente à sua composição desregrada e automática.
Logo, essa passagem seria uma referência ao movimento surrealista, produzida por

113
“J‟écris tout ce que je vois, tout ce que j‟entends, tout ce que je sens. Un vrai sismographe” (LAFERRIÈRE,
1997, p.13)
114
Na versão em francês encontra-se como Un écrivain primitif.
115
“Tiens, un oiseau traverse mon champ de vision. J‟écris: oiseau. Une mangue tombe. J‟écris: mangue. Les
enfants jouent au ballon dans la rue parmi les voitures. J‟écris: enfants, ballon, voitures.” (LAFERRIÈRE, 1997,
p.14)
91

Laferrière? Na verdade, existem diversas referências e críticas ao Surrealismo. Por exemplo,


nossa discussão sobre o imaginário, desenvolvida anteriormente, possibilitaria uma reflexão
acerca do inconsciente da imaginação, pretendida por Bréton. Entretanto, o interesse desse
teórico aparenta se ater aos interesses da abolição de uma moral do inconsciente, mais do que
as discussões sobre as manifestações do imaginário humano (CHIAMPI, 1980).
Não podemos alegar que não há consciência na escrita de Laferrière. Pelo contrário, a
pena do nosso autor revela-nos forte tradição e uma grande fundamentação na história do país.
Novamente, estamos diante de um paradoxo: Pays sans chapeau seria surrealista ou não?
Essa questão nos ocorreu assim que adentramos as discussões sobre a definição de
imaginário, pois Laplantine e Trindade (1997) nos encaminham para a problematização do
Surrealismo francês e sua propagação no território ocidental.
Quando observamos o imaginário cultural multifacetado do nosso objeto de estudo
compreendemos que Laferrière é um desses autores que está além do projeto surrealista.
Contudo, com Pays sans chapeau, o autor haitiano-quebequense muito se aproxima da
perspectiva surrealista latina.
O Surrealismo foi um movimento que alcançou diversos países e continentes. Maurice
Nadeau (2008) evidencia sua presença em toda a Europa, em parte da Ásia, da África e das
Américas. Ela destaca a Exposição Internacional do Surrealismo (1938), realizada em Paris,
que contou com a exibição de obras diversas, provindas de diferentes locais do mundo. O
movimento teve uma grande divulgação e propagação em nosso território, mas se
desenvolveu de forma distinta aqui. Não poderíamos demarcar todas as características do
Surrealismo latino, pois seriam muitas e não é nosso foco, porém é conveniente que
compreendamos a sua realização no novo mundo. Não se trata de identificar superioridade de
um movimento sobe o outro, mas de compreender o deslocamento do Surrealismo francês e
sua adaptação no território americano.
Laplantine e Trindade (1997) salientam que ao invés de manter um Surrealismo
“acadêmico”, mergulhado completamente na psicanálise, o surrealista americano preferiu
voltar-se à própria cultura, ao interior de seu paìs. Eles destacam: “Não é uma atitude
intelectual, mas uma atitude vital, existencial. É a do índio que com uma mentalidade
primitiva e infantil, mistura o real e o imaginário, o real e o sonho” (LAPLANTINE &
TRINDADE, 1997, p.24).
Nesse sentido, o pressuposto desses dois teóricos consiste na afirmativa de que, as
ideias surrealistas francesas apenas estimularam os artistas americanos a compreenderem a
matéria surreal abundante em nosso território; nossa cultura. Não era necessário buscar o
92

automatismo, ou qualquer tipo de estímulo para a fantasia, posto que aqui já vivíamos o
Surrealismo, embora não concretizado nas artes:

Os surrealistas europeus procuram fugir de sua civilização enquanto os


surrealistas latino americanos (e também, sob vários aspectos, os
modernistas brasileiros) procuram reencontrá-la. Os primeiros se deixam
seduzir pela fuga e exotismo, enquanto para os segundos o estranho, o irreal
e o fantástico constituem o que todos eles chamam de "nossa realidade".
(LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.23)

Desta maneira, compreendemos que o Surrealismo foi de grande importância para a


América Latina, como um todo, pois foi a partir desse movimento que o homem americano
foi impulsionado a conhecer a si, não apenas sua profundeza psíquica, porém também sua
identidade. Nesse sentido, ao trazer o contexto histórico e religioso para a sua obra, Laferrière
nos demonstra sua atitude mediante uma realidade territorial, que mergulha em uma discussão
cultural do imaginário. Essas características nos revelam que ele, assim como outros autores,
compreende-se enquanto parte de seu povo, mas também nos mostra que sua pena se inspirou
em suas leituras surrealistas116, tanto francesas quanto conterrâneas.
Essa atitude de voltar-se para as origens culturais não quer dizer que não houve
recepção do movimento. Pelo contrário, foi ele quem colaborou como combustível para esse
contexto. Entretanto, não sejamos simplórios e aleguemos que nosso autor escreveu Pays sans
chapeau com o propósito de reafirma sua identidade. Como verificamos, Laferrière propõe
discussões profundas sobre o identitário, assim como promove diversas rupturas, logo a
influência surrealista em sua obra não é apenas o fantasioso. Sua proposta é, acima de tudo,
mostrar uma realidade cultural americana. Nesse aspecto ele se aproxima um tanto de Alejo
Carpentier (1904-1980).
De acordo com Irlemar Chiampi (1980), Alejo Carpentier (1904-1980), citado entre os
autores117 preferidos do escritor haitano-quebequense, foi um dos responsáveis por incitar
uma nova produção literária nas Américas com sua proposta do Realismo Maravilhoso, por
volta de 1940. Nessa perspectiva, o estudioso acentua que Carpentier estimulou diversos
escritores “[...] latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de

116
Vale salientar que encontramos nas obras de Laferrière diversas passagem que fazem referência ao
movimento surrealista, tanto francês quanto americano. Indicamos como leitura, duas crônicas de sua obra La
Chair du maître (2002): Un tableau naïf e Un mariage à la campagne. Nesta primeira, ele chega a citar um
trecho do manifesto surrealista de Breton (1924), enquanto na segunda ele cita diversos nomes de pintores e
escritores do Surrealismo latino.
117
Há uma lista de nomes dos autores citados por Dany Laferrière, os quais são considerados inspirações para o
escritor haitiano-quebequense, segundo a Académie Française.
93

prodìgios, garantia o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeias”


(CHIAMPI, 1980, p.32).
Com a citação acima, podemos perceber que, inicialmente, Alejo Carpentier procurava
estabelecer uma supremacia do Surrealismo americano sobe o Surrealismo francês. Contudo,
Chiampi (1980) comenta que este autor cubano estava fortemente influenciado pelo
movimento francês quando propôs, no prólogo de uma de suas obras, as concepções sobre o
Realismo Maravilhoso. Segundo o estudioso, ao falar a respeito do texto Maravilhoso,
Carpentier pretendia questionar a definição de realidade na literatura, e nas artes como um
todo:

A intenção evidente é deslocar a busca imaginário do maravilhoso e avançar


uma redefinição da sobre-realidade: esta deixa de ser um produto da fantasia
– de um “dépaysement” que os jogos surrealistas perseguiam – para
constituir uma região anexada à realidade ordinária e empírica, mas só
apreensível por aquele que crê. (CHIAMPI, 1980, p.36)

Para Chiampi (1980), esta característica da problematização da realidade, pretendida


por Carpentier, evidencia seu envolvimento profundo com as ideias do Surrealismo europeu.
Enquanto Breton (1924) procura refletir sobre o Maravilhoso, em seu manifesto,
demonstrando a importância para a questão da imaginação e das inquietações do homem
francês, Carpentier traz a discussão para a sua realidade americana na tentativa de abolir as
oposições real-irreal da literatura. O artista e teórico cubano, procura sua poética diretamente
na fonte do primitivo e do religioso, tornando-os os elementos reais de sua escrita. Nesse viés,
Pays sans chapeau se aproxima desse autor, demonstrando-se também adepta de uma
realidade cultural. Não é em vão que Laferrière busca „misturar‟ o real e o sonhado, o noturno
e o diurno, assim como a vida e a morte.
A insistência da temática da morte, o zumbi, o ser sobrenatural haitiano, a presença
dos mitos do panteão Vodu, a correlação entre as narrativas míticas e nosso objeto de estudo e
entre outros aspectos, analisados até o presente momento, são parte das manifestações de um
imaginário vivido cotidianamente. Esses eventos sobrenaturais não são fantasiosos em suma,
mas são insólitos, poéticos e parte da realidade cultural de um povo, que solicita do leitor a fé;
tão pretendida também por Carpentier. Ele “[...] invoca justamente essa América primigênia,
não contaminada pela reflexividade, como um universo de mitos e religiosidade primitivos,
capaz, portanto, de efetivar o projeto de poetizar o real maravilhoso” (CHIAMPI, 1980, p.36).
Chiampi (1980) demonstra que de fato a proposta literária de Alejo Carpentier possui
fortes ligações com o movimento surreal, embora essa relação seja problemática. No entanto,
94

para ela o “[...] identificador cultural americano” (CHIAMPI, 1980, p.50) é o material do
Realismo Maravilhoso. Nessa perspectiva, Laplantine e Trindade (1997) encontram
motivação para atrelar o Realismo Maravilhoso ao Surrealismo latino. Nas palavras deles:

“O que uns chamam de "realismo mágico" (Astúrias) ou "realismo


alucinado" (Caillois), outros de "realismo maravilhoso" (Carpentier), ou
ainda de "realismo mítico" (Octavio Paz), são na verdade várias maneiras de
se designar o que na Europa chamamos de surrealismo, que "encontramos
em estado bruto, latente, onipresente em tudo que é latino-americano"
(Carpentier). (LAPLANTINE & TRINDADE, 1997, p.23)

Impulsionados pelo elogio ao campo cultural, esses teóricos aparentam confiar que o
Surrealismo latino nunca chegou ao fim, em nosso território. Com efeito, eles relacionam o
sobrenatural presente nas literaturas de nosso continente, como expressão de uma identidade
cultural, com o projeto surrealista americano. Ou seja, para Laplantine e Trindade (1997) o
Realismo Maravilhoso e seus variantes são sinônimos de Surrealismo, porque a cultura do
nosso povo é proveniente de um imaginário manifestado (DURAND, 1989).
Concordamos que o surgimento desse gênero literário, considerado também uma
escola para a literatura de língua espanhola, é proveniente da materialização da realidade
cultural no texto literário, mas essa afirmativa não quer dizer que necessariamente o
Surrealismo perdura até os nossos dias. Conquanto, a influência das ideias surrealistas se
propaga na literatura, até os dias atuais, por causa dessa estreita conexão entre a identidade
cultural americana e o empreendimento surrealista formulado no nosso continente.
Dito isso, resta-nos compreender como o Realismo Maravilhoso se caracteriza na obra
de Laferrière. Ressaltamos que Pays sans chapeau é detentora de diversas duplicidades e
complexidades. Portanto, não aplicaremos apenas as teorias instituídas por Chiampi (1980).
Tentaremos resgatar a discussão sobre os gêneros literários Fantástico e Maravilhoso francês
em outros teóricos, ditos tradicionais, dos estudos estruturalistas. Nesse sentido, nosso estudo
se voltará para a estrutura da narrativa. Trabalharemos essa outra problemática no próximo
capítulo.
95

PAYS RÉEL OU PAYS RÊVÉ?

O terceiro capítulo de nosso estudo tem como objetivo analisar a narrativa Pays sans
chapeau a partir dos estudos de Tzvetan Todorov (2013; 2017) e Irlemar Chiampi (2015) no
que diz respeito aos gêneros literários que utilizam o sobrenatural como elemento importante
em sua constituição: Fantástico, Fantástico-Maravilhoso, Fantástico-Estranho e Realismo
Maravilhoso. Assim, focaremos o acontecimento sobrenatural, com a intenção de
compreender o estabelecimento desses gêneros em nosso corpus.

1 A narrativa Fantástica: características e procedimentos em Pays sans chapeau

Em nossa discussão acerca do imaginário cultural e sua construção em Pays sans


chapeau, problematizamos o Estruturalismo como ferramenta crítica literária do imaginário e
propomos o procedimento de comparação entre áreas. Esse modo de análise nos forneceu uma
melhor visão a respeito do imaginário cultural referenciado em nosso objeto de estudo. Com
isso, adotamos um pressuposto que já foi considerado subversivo nos estudos literários.
Rompemos com a postura unilateral do viés Estrutural, que se limita à análise tão somente da
narrativa e suas configurações, para compreender a semântica dessa obra: aquilo que Todorov
(2017)118 denominou como “temático”. Ou seja, para nós, o próprio imaginário cultural
haitiano é um dos referentes extratextuais solicitados por nosso corpus. No entanto, chega o
momento de compreender os mecanismos e procedimentos adotados por Dany Laferrière para
o estabelecimento do sobrenatural na referida obra.
O romance Pays sans chapeau é marcado por inúmeros acontecimentos e elementos
insólitos, como vimos no capítulo anterior. O sobrenatural é corriqueiro na narrativa, mas
oscila continuamente, tornando-se questionável. Esta complexidade da natureza dos
elementos e acontecimentos sobrenaturais em nosso objeto de estudo pode ser proveniente de
algumas características da obra de Dany Laferrière, como sua propensão ao gênero Fantástico.
Segundo Todorov (2013, p. 148), o Fantástico “[...] é a hesitação experimentada por
um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente
118
No capítulo anterior, não utilizamos os termos deste teórico ou sua teoria de identificação das temáticas da
narrativa fantástica por causa dos estudos que propomos sobre o imaginário. Há de fato uma incompatibilidade
entre teorias. Enquanto na visão de Todorov (2017) o imaginário é racionalizado e desenvolvido na psique do
autor, o sentido de imaginário que adotamos é coletivo e dotado de epifania. Contudo, confiamos que até mesmo
na leitura sobre o imaginário há uma duplicidade ao que diz respeito a esta questão, e visamos abordar a ideia de
Imaginário do referido autor no presente tópico, com a intenção de também compreender a função do gênero
Fantástico no eixo semântico da obra.
96

sobrenatural”. Isto é, o acontecimento sobrenatural e/ou seu elemento, possuem naturezas


desconhecidas pelo narrador e/ou personagens de uma dada obra, causando o desequilíbrio do
universo ficcional, o qual se promove enquanto real119. Deste modo, é necessário que o leitor
implìcito da literatura Fantástica acredite no “real” sugerido pelo texto, para que oscile entre
as explicações sobrenaturais e naturais quanto aos acontecimentos na narrativa. Enquanto não
houver uma decisão a respeito da natureza dos eventos, seja por parte do leitor ou do narrador,
estaremos diante do Fantástico.
Na narrativa, Vieux Os retorna a seu país após anos de exílio, com a intenção de
escrever um livro sobre sua pátria e encontrar sua família e antigos amigos. Sem os eventos
insólitos, nosso corpus seria o relato de viagem de um intelectual expatriado e preocupado
com a situação de seu país: uma ficção dotada apenas de eventos “reais”, na falta de palavra
melhor. No entanto, não é isso que acontece. Como sabemos, a história de Vieux Os é
articulada aos eventos “estranhos” e situações que impõem certo mistério, com a insinuação
do sobrenatural. Aqui, podemos visualizar exatamente as características apontadas por
Todorov (2017), como um universo real que se contrapõe ao evento insólito.
Logo, um dos procedimentos120 adotador por Laferrière, para a garantia deste gênero é
o estabelecimento de um universo ficcional semelhante ao mundo do leitor, em contraponto à
sugestão do sobrenatural, com a finalidade de garantir dúvidas: “[...] é preciso que o texto
obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a
hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
evocados” (TODOROV, 2017, p.39). Todavia, como esse universo real pode ser instaurado
no texto? Vejamos os exemplos encontrados em nosso objeto de estudo.
Em Pays sans chapeau, constatamos vários nomes de cidades, bairros e lugares
referentes aos ambientes existentes no Haiti do nosso mundo, como o bairro de Martissant,
uma das zonas mais pobres e superpovoada de Porto Príncipe. Na obra, esse local é também

119
O sentido de real aqui se encontra em uma perspectiva estruturalista, discutida por Roland Barthes (1915-
1980) em seu texto O efeito do real (1971) Segundo ele, o real no texto literário não é o mimético da realidade,
conforme apontada nos estudos de Aristoteles. Ao analisar as literaturas do Realismo, Barthes chegou À
conclusão de que os “pormenores inúteis” encontrados nas descrições detalhistas do texto literário eram
significantes importantes para a estrutura de uma dada obra. Suas conclusões indicam que o real na literatura é
uma simulação da presença de elementos e não se trata de uma projeção da realidade, mas uma referência a algo
existente da realidade.
120
Todorov (2017) demonstra que estudar uma narrativa, por meio de sua estrutura é ter como pressuposto que
há semelhanças entre outras produções e o objeto estudado. Ele nos indica que para um estudo rigoroso é
necessário que identifiquemos as características de variadas narrativas e as comparemos, as agrupando pelas
propostas semelhantes concernentes aos vários arranjos que podemos encontrar. Embora não façamos um estudo
comparativo entre várias obras do Fantástico, confiamos que as teorias de Todorov (2013; 2017) são suficientes
para a verificação de características que possuem o Fantástico como gênero. Os procedimentos destacados aqui
já foram comprovados em outras literaturas por este teórico.
97

um dos mais temidos pelas personagens secundárias Marie e René. Outra cidade haitiana é
referenciada na obra: Bombardopolis, uma comuna localizada no noroeste do Haiti. Ela é
ficcionalizada no romance e se torna um lugar prodigioso e, ainda, o ambiente preferido de
pessoas que vivem no além e que costumam visitar o mundo dos vivos.
O Haiti de Laferrière também se aproxima constantemente das imagens dos países
americanos subdesenvolvidos121 que conhecemos. Através das descrições de Vieux Os,
visualizamos uma nação de terceiro mundo, que enfrenta crises políticas e problemas
econômicos sérios, beirando a miséria. A luta pela sobrevivência é evidente e nos mostra o
cotidiano de um povo em situação precária, mas que faz de tudo para ganhar seu pão. Em seu
passeio pela cidade, Vieux Os descreve as multidões do centro da capital haitiana, as crianças
que brincam na rua, um trânsito caótico e entre outras características de Porto Príncipe. Esse
contexto nos revela uma realidade urbana, fatídica e difícil, enfrentada até os dias de hoje pelo
povo haitiano.
Basta lembrar as nossas análises sobre a Estética da Degradação, no primeiro capítulo
desse estudo. Quando dissertamos acerca da nova escrita haitiana, tínhamos em mente as
características realísticas do Haiti, que se apresenta em nosso corpus. Tentamos destacar essa
maneira como Laferrière referencia a realidade local de sua nação, que está mergulhada no
caos, massacrada pela ditadura, enfrentando as consequências da ocupação norte-americana e
de um contexto histórico difícil. A partir desse ambiente, nosso autor explora as deteriorações
humanas em prol do sobrenatural.
Essas referências ao Haiti possuem uma utilidade interna à obra. Elas impõem a
estabilidade de um equilíbrio inicial e garantem o real do universo ficcional. Assim, pode-se
confiar que Vieux Os se encontra em Porto Príncipe e está empenhado em escrever um novo
livro sobre seu país, como se sua viagem fosse uma ocasião perfeita para saudar antigos
amigos e se reencontrar com sua nação.
Todorov (2013) postula outra forma de garantir o “real” do universo ficcional: por
meio do narrador, o qual deve deter características naturais. Ou seja, quem conta a história da
trama deve dispor de uma mínima identificação para com seu público. Nesse sentido, a
narração feita por Vieux Os não é um mero detalhe. Esse narrador-personagem se aproxima
de seu autor em diversos momentos da narrativa. Em uma das passagens do romance, quando
Vieux Os decide procurar o doutor Legrand Bijou para conseguir informações sobre o

121
Utilizamos este vocabulário em consonância com os termos adotados, em Pays sans chapeau, por Dany
Laferrière. No munimos de seu linguajar para acentuar as críticas sociais encontradas na trama em questão. O
mesmo se aplica ao nossa insistência com o termo “terceiro mundo”, aplicado aqui para designar diversas nações
que ainda são consideradas emergentes ou em desenvolvimento.
98

exército zumbi, ele se apresenta à recepcionista do psiquiatra haitiano como Laferrière.


Vejamos o diálogo que ocorre entre os dois:

- A quem devo anunciar?


- Laferrière.
- Ah! o senhor é o escritor? Claro! Eu o vi na tevê, ontem à noite. Concordo
plenamente com o que o senhor falou... Espere, acho que ele acabou de
chegar... Vou transferir a ligação...122 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 78)

O procedimento de utilizar o homônimo de Laferrière, atribuindo-lhe ao narrador-


personagem, garante uma identidade verídica à Vieux Os, bem como a veracidade ao que ele
conta. A evocação do nome do autor da obra, neste diálogo, personifica e caracteriza Vieux
Os com imagem do plano real do leitor. Ou seja, o nome de Laferrière concede ao seu
narrador-personagem uma identidade humana, no mundo do leitor. Consequentemente, não
encontramos descrições sobre o narrador-personagem, posto que a imagem de o autor Dany
Laferrière materializa-se na narrativa. Além disso, as situações que ocorrem com Vieux Os ou
os diálogos entre ele e as personagens da trama, garantem seu perfil. Assim, é testificada a
veracidade da condição deste recém-chegado.
Outro aspecto em Vieux Os, que pode promover uma identificação entre leitor e
narrador, é sua identidade “estrangeira”. Em vários momentos da narrativa, constatamos que
ele é percebido como um estranho. Logo no primeiro dia de chegada, durante seu passeio pela
cidade, o escritor se depara com um engraxate que oferece seus serviços. Ao começar seu
trabalho, o rapaz o questiona sobre sua chegada:

- Acabou de chegar, patrão?


- Como é que você sabe?
- Patrão, dá pra ver, tá na cara. Posso lhe dar um conselho?
- Vá em frente. 123 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 47)

A resposta do engraxate a Vieux Os demonstra que nosso narrador-personagem é


também reconhecido como alguém que não pertence àquele lugar. Quando ele solicita
explicações sobre a facilidade com a qual foi identificado, o rapaz argumenta que sua

122
“- Qui dois-je annoncer?
-Laferrière.
- Ah ! vous êtes l‟écrivain ? Mais oui ! Je vous ai vu à la télé, hier soir. Je suis assez d‟accord avec ce que vous
avez dit... Attendez, je crois qu‟il vient d‟arriver... Je vous le passe tout de suite... (LAFERRIÈRE, 1997, p.92)
123
- Vous venez d‟arriver, patron?
- Comment vous savez ça?
- Patron, ça se voit comme le nez au milieu de la figure. Puis je vou donner un conseil?
- Allez-y” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 56).
99

condição é perceptível. Muitas situações como esta são encontradas na narrativa. O próprio
narrador-personagem alega sua falta de familiaridade à sua cultura materna, como durante o
diálogo entre o amigo de sua mãe e ele. Durante uma visita à Marie, Pierre encontra com
Vieux Os por acaso. Em dado momento da conversa que se passa entre os dois homens, Pierre
conta sobre o dia em que o norte-americano Neil Armstrong pisou na lua. Ele afirma que o
astronauta famoso acreditava ser o primeiro homem a visitar o satélite natural da terra, porém,
ao chegar lá, deparou-se com um haitiano sentado na superfície do referido satélite natural,
pedindo-lhe um cigarro.
A conversa se prolonga e Vieux Os tenta compreender do que se trata essa história.
Depois de tantas explicações, concedidas por Pierre, o narrador-personagem se dirige ao
leitor: “Não, eu ainda não tinha entendido, mas não queria dizer isso ao senhor Pierre para não
decepcioná-lo. É nisso que dá passar quase vinte anos fora do seu país. Já não entendemos as
124
coisas mais elementares” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 96). Essa passagem é um dos eventos
que não recebe explicação, na obra. Aqui, percebemos mais uma afirmação sobre o
estranhamento a uma questão aparentemente basilar para a compreensão da espiritualidade
haitiana, por parte do narrador-personagem.
Ao confessar sua confusão ao leitor, Vieux Os cria um laço com seu público,
revelando a sua não familiarização com o imaginário local e sua abertura ao desconhecido. É
possìvel que esse “estrangeirismo” creditado ao narrador-personagem promova uma
identificação para com o leitor, o qual o acompanha na busca por respostas sobre os eventos
insólitos da obra. Essa característica de Vieux Os o promove enquanto um haitiano que está
redescobrindo a cultura e permite que o leitor o acompanhe nessas „descobertas‟.
Nesse raciocínio, os sentimentos de estranhamento, vividos pelo narrador-personagem,
podem ser compartilhados com o leitor, que igualmente pode desconhecer os eventos e
elementos que serão apresentados na narrativa. A afirmação constante de que o escritor
famoso é um recém-chegado e estranho às suas origens garantirá ao leitor que as descobertas
daquele universo ficcional são verídicas. Da mesma forma, essas características reafirmam
que o narrador-personagem será alguém confiável aos olhos do leitor, numa busca pela
confirmação ou refutação da presença do sobrenatural.
De acordo com Todorov (2017), a dúvida diante do insólito, experimentada pelo
narrador, é um dos recursos mais utilizados por autores do Fantástico. Essa situação se deve

124
“Non, je n‟avais pas encore compris, mais je ne voulais pas le dire à M. Pierre pour ne pas le décevoir. Voilà
ce que c‟est que d‟avoir passé près de vingt ans hors de son pays. On ne comprend plus les choses les plus
élémentaires” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 115).
100

ao fato de que o leitor costuma compreender a narração como um testemunho de alguém


disposto a desvendar os mistérios do enredo. Assim, em conjunto com o narrador, o leitor
procurará “[...] uma explicação racional para estes fatos bizarros” (TODOROV, 2017, p. 93).
Todorov (2017) estipula que, dentre os vários tipos de narradores, aquele que se
utiliza da primeira pessoa (eu) em seu discurso e que se coloca também enquanto personagem
é o mais propício para provocar a ambiguidade no texto fantástico, pois ele possui mais
credibilidade do que os demais tipos de personagens. Para o teórico búlgaro, o discurso de um
narrador-personagem é demasiadamente confiável aos olhos do leitor, porque sua narração se
configura como um discurso baseado nas experiências de alguém que, verdadeiramente,
vivenciou as incertezas diante do sobrenatural. Sendo assim, o narrador-personagem que
“vacila” (ROAS, 2014) frente ao insólito é um recurso importante para estabelecer confiança
ou desconfiança sobre os acontecimentos narrados.
Nesse sentido, David Roas (2014) indica que o pacto ficcional também é um dos
motivos pelo o qual o leitor tem confiança naquilo que é narrado: “[...] aceitamos sem
questionar tudo o que ele nos conta, de modo que nossa atitude hermenêutica como leitores
fica condicionada a uma suspensão voluntária das regras de verificação” (ROAS, 2014, p. 51).
A “verificação” referida nesta passagem significa que o leitor não desconfia do narrador, mas
procura verificar a natureza dos mistérios que se apresentam na trama em conjunto com este
segundo. Ou seja, quando o leitor inicia a leitura da obra ele aceita o pacto e,
consequentemente, é conduzido por um narrador.
Depois do estabelecimento de uma realidade haitiana e da adoção de um narrador-
personagem “estranho” à cultura materna, qual o outro procedimento que garantirá as
hesitações em nosso corpus? Antes de responder essa questão, gostaríamos de retomar nossa
primeira definição sobre o Fantástico.
Como vimos inicialmente, esse gênero literário solicita uma transgressão do universo
real pelo elemento ou evento insólito, provocando dúvidas ao narrador, ou às personagens, e
ao leitor. De acordo com Todorov (2013; 2017), para uma obra ser declarada fantástica, ela
deve manter a dúvida até o fim. É necessário que ela termine sem assegurar respostas ou
explicações sobre os acontecimentos insólitos, suspendendo a confirmação ou a não-
confirmação do sobrenatural. Contudo, esse estudioso aponta que a narrativa fantástica não
101

sobreviveu125 até os dias atuais. Para ele, seria impossível que em sua contemporaneidade a
Hesitação de uma obra seja mantida até o limite final da narração.
Observamos que o teórico búlgaro-francês expôs esta questão, motivado pelas
mudanças na paisagem industrial-tecnológica de épocas anteriores a ele, e ainda com o
adendo do avanço científico da psicanálise. Ele ainda recorre aos empréstimos da psicanálise
para explicar o vasto campo semântico-temático das narrativas do Fantástico, salientando que
essa ciência explicaria quase todas as questões concernentes à exploração do sobrenatural em
literaturas do século XVIII e XIX.
Para Todorov (2013; 2017), as mudanças promovidas no século XX foram tão radicais
que conceberam uma nova compreensão sobre fenômenos ditos “sobrenaturais”, mas que
ainda eram desconhecidos pelos autores tradicionais do fantástico. Logo, o leitor, munido de
uma nova realidade, poderia decidir entre as explicações que suscitassem o insólito,
encontrando respostas para este. Neste viés, o teórico aponta os subgêneros que usariam o
Fantástico como gênero “evanescente”:

Um fenômeno inexplicável acontece; para obedecer a seu espírito


determinista, o leitor se vê obrigado a escolher entre duas soluções: ou
atribuir esse fenômeno a causas desconhecidas, à ordem normal,
qualificando de imaginários os fatos insólitos; ou então admitir a existência
do sobrenatural, trazendo pois uma modificação ao conjunto de
representações que formam sua imagem no mundo. O fantástico dura o
tempo dessa incerteza; assim que o leitor opta por uma ou outra solução,
desliza para o estranho ou para o maravilhoso. (TODOROV, 2013, p. 191-
192)

Comumente, inúmeros autores recorrem à utilização do Fantástico, como momento de


passagem, para transferir-se ao âmago de outros gêneros, como o Maravilhoso e o Estranho.
Essa explicação nos fornece outra constatação em nossa narrativa, que trataremos nos tópicos
seguintes. Contudo, ainda em relação a declaração sobre a “morte” do gênero Fantástico em
Todorov (2013; 2017), percebemos certo equívoco no que diz respeito ao fim das literaturas
fantásticas. Em seu livro Ameaça do fantástico, David Roas (2014) propõe que o gênero
sofreu algumas modificações e evoluiu, adotando uma nova forma de se comportar perante os
seus subgêneros. Para ele, desde os estudos pioneiros sobre o Fantástico até o século passado,
os linguistas muniram-se de visões excludentes e reducionistas na tentativa de definir este
gênero. Ele destaca as características do Fantástico:

125
Todorov (2013) aponta que esse gênero surgiu no século XVIII de forma sistemática e perdurou até o século
posterior. Ele afirma que o que a literatura produz hoje é um gênero evanescente, uma Hesitação Fantástica que
pode ser resolvida pelo público leitor da obra.
102

[...] a literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar
sem a presença do sobrenatural. E o sobrenatural é aquilo que transgride as
leis que organizam o mundo real, aquilo que não é explicável, que não
existe, de acordo com essas mesmas leis. [...] A narrativa fantástica põe o
leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito pelo
contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo
real (ROAS, 2014, p. 31).

Na citação acima, observa-se que o sobrenatural é característica principal da narrativa,


e sua função transgressora é a tentativa de discussão sobre a realidade do mundo do Leitor. É
neste ponto que Todorov (2013; 2017) e Roas (2014) discordam. Para o primeiro, a função do
sobrenatural no texto fantástico é também promover transgressão do real do universo fictício
e, ao mesmo tempo, promover ponderações sobre tabus presentes na sociedade, tais como: a
necrofilia, as doenças mentais, o religioso minoritário, entre outros. Contudo, Todorov (2013;
2017) mantém o argumento de que a hesitação perante aquilo que é aparentemente
sobrenatural será o que configura o Fantástico. Já Roas (2014) constrói uma análise do
sobrenatural como categoria. Para este teórico, o elemento sobrenatural não causa uma
hesitação no texto, mas projeta a hesitação para uma discussão extraliterária, numa espécie de
jogo provocador de emoções e “flexibilizador” da realidade no mundo do leitor. Trata-se da
hesitação que provocará questionamentos acerca das realidades que se contrapõem, em uma
dada obra fantástica.
As dúvidas e vacilações propostas por Todorov (2013; 2015), como foco de análise no
texto fantástico, não são alvo dos estudos de Roas (2014). No entanto, para este estudioso, a
hesitação se insere num conjunto de sentimentos e emoções que devem ser despertos durante
a leitura de obras fantásticas. Ele constata que a dúvida é um efeito, entre tantos, resultante
dos procedimentos textuais adotados no texto que detém o sobrenatural em sua constituinte.
Notemos que a realidade ficcional, que serve para ser transgredida pelo sobrenatural,
foi o que destacamos nos procedimentos adotados na escrita de Laferrière, sob indicações dos
estudos de Todorov (2013; 2017). Sendo assim, estaria o linguista búlgaro errado em suas
diretrizes? Não. Embora a sistematização do gênero, pretendida por ele, discorresse diversas
vezes sobre a questão da hesitação para o leitor, este teórico não deixou de notar
características importantes que serviram para a análise das literaturas do Fantástico nas
perspectivas de Roas (2014).
Ao identificar o estabelecimento do referente real na literatura fantástica, Roas (2014)
reafirma que os estudos de Todorov foram suficientes para uma exposição inicial sobre o real
103

e sua transgressão pelo sobrenatural. É certo afirmar que Todorov (2013; 2017) se estendeu
mais sobre o funcionamento das hesitações do que as transgressões que o sobrenatural
promove. No entanto, salientamos a importância de suas pesquisas. O autor de Introdução à
Literatura Fantástica promoveu uma sistematização das temáticas abordadas pela Literatura
Fantástica, de modo que dialogou crítica estrutural e crítica psicanalítica. Ao trabalhar a partir
das estruturas narrativas do gênero em questão, ele identificou diversos procedimentos no
texto literário que dialogavam com as teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856-1939);
esse foi um dos primeiros passos para a compreensão do diálogo entre mundo, como projeção
nas artes, e obra literária.
Quanto a Roas (2014), ao promover uma análise voltada para a transgressão da
realidade, soube utilizar as ideias socioculturais para uma análise estrutural e intertextual.
Quando identificamos o imaginário cultural de nossa narrativa, pretendíamos promover essa
intertextualidade entre realidade ficcional e referente extratextual; o mundo povoado por
crenças primitivas, no bom sentido desta palavra. Nossa finalidade seria trazer as perspectivas
de Roas (2014) para nos ajudar a compreender como o gênero fantástico também pode
receber uma nova configuração na obra de Laferrière. Seria antagônico propor uma análise
que solicitasse tanto os estudos de Todorov (2013; 2017) quanto às observações de Roas
(2014)? Não. Pelo contrário. As hesitações presentes em Pays sans chapeau devem ser
analisadas à luz de teorias que se contrapõem; como as desses dois estudiosos.
As duas visões podem nos conduzir adiante, na busca pela compreensão dos
mecanismos utilizados na escrita de Dany Laferrière, que aparenta propor uma flexibilização
da realidade e, ao mesmo tempo, sustenta hesitações no texto literário. Entretanto, para
responder nossa questão sobre os procedimentos adotados para a instauração das hesitações
fantásticas em nosso corpus, é necessário que retomemos a narrativa como um todo, uma vez
que as dúvidas de Vieux Os são decorrentes dos acontecimentos distribuídos por todo
romance.

Entre o figurativo e o literal

Todorov (2015) indica que, para manter o caráter Fantástico de um texto, é necessário
que a obra seja lida do início ao fim. Caso o leitor decidir avançar para outros capítulos
ignorando aqueles que os sucedem, corre-se o risco de perder a progressão do suspense e,
consequentemente, das hesitações que sustentam o gênero. Esse é o princípio
sintático/composicional, do texto Fantástico. Laferrière quebra essa regra ao contrapor duas
104

histórias na narração de Vieux Os. Ele liberta o leitor da leitura progressiva e contínua,
conduzindo-lhe à indivisibilidade entre as histórias narradas. Nosso autor promove confusões
interligando os capítulos – dispostos entre dois universos: Pays Réel e Pays Rêvé – por meio
da autorreferência nas histórias. A composição da obra de Laferrière permite duas narrações
simultâneas que progridem simultaneamente, promovendo múltiplos discursos.
Assim, se desejamos evidenciar as hesitações do narrador-personagem deveremos
compreender como o sobrenatural funciona na narrativa. Ele se instaura em níveis e graus
diferentes, nos textos dos dois universos que dividem a obra. Nos capítulos referentes ao Pays
rêvé encontramos os mistérios do imaginário haitiano e histórias que insistem em manter uma
sobrenatureza dos eventos e elementos insólitos, enquanto nos episódios do Pays réel nos
deparamos com as hesitações sobre o que ocorre neste primeiro mundo ou, ainda, uma
possível naturalização do sobrenatural pelo discurso social.
Deste modo, a obra fragmenta o sobrenatural que oscila entre o literal e o figurativo.
Sempre que o sobrenatural se anuncia, o discurso social se impõe aos eventos “miraculosos”,
os quais terminam por ser naturalizados, e vice versa. Na narrativa, há diversas sobreposições
de acontecimentos, cuja função é desestabilizar a confirmação do sobrenatural para o leitor.
Em nossas leituras, percebemos que diversas posturas do narrador-personagem, diante dos
acontecimentos, podem deslocar o leitor para hesitações não representadas 126 no texto.
Vejamos algumas situações.
No primeiro capítulo de nosso corpus, intitulado Écrivain Primitif, a narração de
Vieux Os se volta para a temática da escrita. Este episódio não se encontra nomeado segundo
os universos que dividem a obra, como os demais capítulos. O narrador-personagem nos
confere informações básicas. Ao falar de seu ofício, ele descreve o local de trabalho. Ele situa
o leitor, dizendo que estava ansioso pelo momento de escrever em sua máquina, numa mesa
bamba, no quintal de sua casa próximo à uma mangueira. Já no capítulo posterior, nomeado
como parte do Pays réel, a narração é introduzida por outra situação; a chegada do narrador-
personagem ao Haiti. Apesar da quebra entre os dois capítulos, a obra continua representando
o mundo como ele é. Vieux Os conta sua chega ao país, narrando a recepção calorosa feita por
sua mãe e a tia. Ele descreve a casa em que moram e recorda de sua cidade. No entanto, o
primeiro momento “estranho” se apresenta na narração.

126
De acordo com Todorov (2017), há dois tipos de hesitações fantásticas: as hesitações não representadas ou
implícitas, cujo procedimento consiste em não evidenciar a dúvida sobre a natureza do evento sobrenatural, e as
hesitações representadas ou explícitas, que se tratam de dúvidas evidentes e, por vezes, são tema de uma dada
obra.
105

Ao falar de sua avó Ba, ele a recorda saudosamente, enquanto pratica o ritual de lhe
servir o café, jogando algumas gotas da bebida quente por terra. Em um contexto em que o
narrador-personagem praticamente assegura a imagem de Ba como um fantasma que habita a
casa das filhas, surge a primeira declaração na obra, por parte de Vieux Os: “Minha avó partiu
127
para o país sem chapéu já faz quatro anos. Às vezes, tenho vontade de ir visitá-la”
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 20).
Vale ressaltar que o “pays sans chapeau”128, referido por Vieux Os, é uma expressão
idiomática haitiana para designar o além. Quando ele o menciona aqui, concede ao além sua
dimensão espacial, ou seja, um lugar propício à visita. Ele sugere a possível existência do
além naquele plano ficcional. O leitor pode distanciar o sobrenatural desta expressão, como
também há possibilidade da admissão deste, mesmo que o narrador-personagem não hesite.
No entanto, essa situação é retomada no capítulo seguinte, o qual introduz o universo
Pays rêvé. Diante de sua máquina no quintal da casa de sua mãe, o narrador-personagem se
distrai com o lugar. Marie lhe serve um café. No momento em que Vieux Os decide tomar a
bebida, a mãe o adverte para servir os mortos antes de beber a xícara com o líquido. Podemos
notar um procedimento de reconfiguração da autorreferência nesse episódio. Enquanto em
Pays réel, Vieux Os serve Ba sem precisar de lembretes, no Pays rêvé é diferente. Ele não só
esquece como, depois de ser advertido, decide derramar o líquido em nome de todos os seus
antepassados mortos:

Viro meia xícara de café no chão nomeando meus mortos em voz alta. Ba,
que tanto gostava desse café de Palmes que provo neste instante. Borno, o
filho de Edmond. Arince, o irmão de Daniel (meu avô). Victoire, a irmã de
Brice. E Iram também, o jovem irmão de Ba. Mas principalmente Charles, o
ancestral, aquele que fundou a dinastia (sessenta filhos segundo as
estimativas mais moderadas. E a cada nome pronunciado, sinto a mesa
vibrar. Eles estão aqui, bem perto de mim, os mortos. Meus mortos. [...] Eles
estão aqui, eu sei, estão todos aqui me olhando trabalhar neste livro. Sei que
me observam. Eu sinto. Seus rostos roçam-me a nuca129 (LAFERRIÈRE,
2011, p. 32-34)

127
“Ma grand-mère est partie pour le pays sans chapeau depuis quarante ans déjà. Des fois, j‟ai envie d‟aller lui
rendre visite” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 22)
128
A explicação sobre essa expressão encontra-se no primeiro capítulo deste trabalho.
129
“Je jette la moitié de la tasse de l atasse de café par terre en nommant à haute voix mes morts. Da qui aimait
tant ce café des Palmes que je dégoute à l‟instant. Borno, le fils d‟Edmond. Arince, le frère de Daniel (mon
grand-père). Victoire, la soeur de Brice. Et Iram aussi, le jeune frère de Da. Mais surtout Charles, l‟ancêtre, celui
qui a fondé la dynastie (soixante enfants selon les estimations les plus modérée). Et à chaque nom prononcé, je
sens vibrer la table. Ils sont là tout autour de moi, les morts. Mês morts. [...] Ils sont là, je le sais, ils sont tout là à
me regarder travailler à ce livre. Je sais qu‟ils m‟observent. Je le sens. Leur visages me frôlent la nuque”
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 37).
106

A passagem acima nos coloca numa situação de “ameaça” ao Fantástico conceituado


por Todorov (2013; 2017). Onde estão as hesitações de Vieux Os? Não há algum suspense
que envolva este episódio ou hesitações representadas. O ritual de servir os mortos realmente
é praticado pelo narrador-personagem e há uma resposta por parte dos espíritos que ele
homenageia. Como é destacado acima, eles interagem com Vieux Os. Se não há vacilação e
qualquer dúvida ao narrador-personagem ou aos personagens da cena, neste momento, onde
residiria a hesitação sobre a natureza dos eventos em questão? Estaríamos diante de algum
subgênero do fantástico? O sobrenatural do acontecimento é confirmado?
O episódio em questão referencia o ritual dos mortos presente no capítulo posterior,
aquele em que o narrador-personagem declara seu saudosismo enquanto serve o espírito de
sua avó. Lá, a senhora não responde ao seu neto. Não há manifestações espirituais. Em
contrapartida neste outro momento, os ancestrais se apresentam e fazem vibrar a mesa onde o
escritor está trabalhando. Deparamo-nos, aqui, com as consequências do uso do figurativo, na
escrita de Dany Laferrière.
Segundo Todorov (2017, p. 85), “[...] o sobrenatural nasce frequentemente do fato de
se tomar o sentido figurado ao pé da letra”. As diversas narrativas fantásticas que fazem uso
das figuras da linguagem, na composição de um discurso figurativo, tem a finalidade de
promover hesitações ao leitor diante do evento ou elemento insólito. Ele explica que existem
dois tipos de relações entre o sobrenatural e o figurativo, no discurso Fantástico: as relações
diacrônicas, quando o sobrenatural é oriundo das figuras de linguagem, e sincrônicas, quando
existe a presença tanto do figurativo quanto do sobrenatural.
Se o espírito de Ba não se manifesta e Vieux Os, apenas, utiliza o modo figurativo
para falar do além, estamos diante da relação diacrônica: não há como confirmar o
sobrenatural de fato, mas podemos afirmar sua evocação por meio do figurativo. A expressão
dos anseios de Vieux Os, em visitar sua avó no plano espiritual, implicam na sua crença de
que o local existe, mas o teor figurativo induz o leitor a ignorar esta passagem, não
concebendo o sobrenatural deste episódio. Se nesta primeira situação o autor Dany Laferrière
utiliza uma expressão idiomática para indicar que o além existe, na situação seguinte, ele faz
com que esse plano espiritual seja habitado pelos antigos parentes mortos do narrador-
personagem, na ênfase da possível existência do sobrenatural, recorrendo à relação
sincrônica.
Ainda que Vieux Os tenha dito que gostaria de visitar sua avó no além, esta insinuação
do sobrenatural é percebida como algo estranho, mas não literal. O uso do discurso figurativo
sede espaço para interpretação, servindo como o anúncio da morte da avó do narrador-
107

personagem; aspecto destacado em nosso primeiro capítulo. Mas o procedimento na passagem


seguinte é diferente. Laferrière insiste na existência do post-mortem quando seu narrador-
personagem retoma o ritual de servir os mortos em conjunto com as interações com os
espíritos ancestrais. Vieux Os, tão somente, relata o ocorrido de forma naturalizada, sem
hesitar. O leitor implícito da obra, por sua vez, pode duvidar diante desse sobrenatural, por
causa da condição figurativa; a relação diacrônica, na situação inicial. É como se na leitura,
no nível de percepção, o mesmo evento se repetisse, agora com mais intensidade.
Nas duas passagens encontramos níveis de insinuação do sobrenatural. Inicialmente, o
insólito seria introduzido pelo figurativo no Pays réel para, em seguida, tornar-se comprovado
o sobrenatural no universo ficcional do Pays rêvé. O “vai-e-vem” entre o figurativo e o
sobrenatural favorece a ambiguidade, quanto à natureza dos eventos que se anunciam na
narrativa. Esse contexto implica em níveis de transgressão da realidade, pelo sobrenatural e
pelo desconhecido. Solicita-se aqui o conceito de Fantástico de Roas (2014), uma vez que
estamos diante de uma prática cultural cotidiana, que pode causar hesitações ao leitor, caso
este não compartilhe dos códigos extratextuais solicitados pelo texto literário.
Assim, o referente extraliterário cultural é solicitado para questionar duas realidades:
àquela do leitor e a do Pays réel. Se a hesitação fantástica não é garantira pelo narrador-
personagem, ela torna-se existente ao leitor que “estranha” o código referenciado na narrativa,
tornando-se uma hesitação implìcita. Roas (2014) denomina que “[...] a literatura fantástica é
aquela que oferece uma temática tendente a pôr em dúvida nossa percepção do real” (ROAS,
2014, p.51). Ele indica que para alcançar o choque da ruptura e transgressão do real é
necessário que se crie um real inquestionável, no universo ficcional. E se o referente
extraliterário, solicitado por Laferrière, não for uma realidade racional ocidental?
Observamos que em Pays sans chapeau a referência extraliterária é também projetada
nas manifestações do imaginário coletivo, na realidade americana mística e mítica que
discutimos em nosso segundo capítulo. Do mesmo modo, notamos que há uma dupla
realidade, esta que acabamos de discorrer e a realidade racional de um mundo secularizado.
Podemos constatar este segundo aspecto em outras situações na narrativa. Como na
continuação do ritual de servir aos mortos. Depois da interação com os espíritos, no mesmo
capítulo, Vieux Os faz o seguinte comentário:

Estou aqui, na frente dessa mesa bamba, debaixo dessa mangueira, tentando
falar uma vez mais da minha relação com este incrível país, do que ele se
tornou, do que eu me tornei, do que nós todos nos tornamos, desse
108

movimento incessante que pode até nos enganar e dar a ilusão de uma
inquietante imobilidade 130 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 33).

Vieux Os conduz o olhar do seu leitor para além daquilo que ele está narrando. Ele
declara, na citação acima que pretende discorrer sobre sua relação com o país, mas
anteriormente ele invoca seus mortos e interage com seu passado, evidenciando a
manifestação dos espíritos que movem sua mesa de trabalho. Qual a pretensão desta reflexão
após a possível manifestação sobrenatural dos espíritos ancestrais? O narrador-personagem
não indaga a situação, mas a submete a uma reflexão de cunho moral, potencializando a
reflexão sobre um passado histórico. Isso permite que o leitor ignore parcialmente o aspecto
sobrenatural, conduzindo-o ao plano do sentido figurativo novamente, o qual pode favorecer a
ambiguidade do discurso do narrador.
Outra característica que pode favorecer o discurso ambíguo de Vieux Os é a descrição
que ele faz da mesa. O escritor diz que está ao ar livre, à sombra de uma mangueira,
utilizando uma mesa bamba para escrever. Por causa desse ambiente, propício ao vento e a
outras interferências “naturais”, o leitor pode desacreditar que a vibração da mesa é
proveniente da interação entre os espíritos ancestrais de nosso narrador e ele mesmo. O
objetivo de falar sobre o “movimento incessante” que engana ou ilude, destacado pelo
narrador-personagem na citação supramencionada, naturaliza o caráter sobrenatural das
manifestações espirituais dos mortos, nesta passagem.
Os aspectos atribuídos ao ambiente em que ele se encontra distancia o sobrenatural do
foco, e o coloca como ilusório como a principal ponderação. Até este momento, podemos
destacar a sequência que surgem o sobrenatural. Na primeira situação há uma sugestão do
sobrenatural em nível figurado, com a evocação do além como lugar habitado por Ba. Em
seguida o sobrenatural manifesta-se, a interação dos ancestrais com Vieux Os, para ser
neutralizado por uma descrição de um ambiente “natural” e confuso, a mesa que é bamba e
um vento incessante no ambiente, elementos que denotam um teor “ilusório”. Vejamos, ainda,
outra situação.
Em um capítulo do Pays réel, Vieux Os sai pela cidade sem um objetivo específico.
Ele passeia pelas ruas de Porto Príncipe e observa os lugares com profunda reflexão. Ao se
deparar com o cemitério ele declara: “É o ponto de encontro de todos” 131 (LAFERRIÈRE,

130
“Je suis là, devant cette table bancale, sous ce manguier, à tenter de parler une fois de plus de nom rappor
avec ce terrible pays, de ce qu‟il est devenu, de ce que je suis devenu, de ce que nous sommes tous devenus, de
ce mouvement incessant qui peut bien être trompeur et donner l‟illusion d‟une inquiétante immobilité”
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 37-38).
131
“C‟est le lieu de rendez-vous general” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 41).
109

2011, p. 36). Essa contemplação do cemitério não tem aparentemente algum teor sobrenatural.
Dizer que o cemitério é um espaço de encontros não atribui características insólitas ao
ambiente e nem desperta hesitações. Laferrière faz uso da figura de linguagem novamente.
Desta vez, sua finalidade é promover uma reflexão acerca do local que serve de “descanso”
para os mortos, na ideia de que a morte é um evento que ocorre a todos. Já que a obra toca
tanto a questão do além, poderia ser creditado algum teor insólito ao ambiente, mas não
ocorre isso. Não neste momento.
Já em Pays rêvé, o lugar ganha um clima hostil, favorável ao sobrenatural. Quando a
mãe do narrador-personagem o conta sobre sua aventura com seres sobrenaturais, ela revela
que o cemitério foi o lugar utilizado pelos sacerdotes vodus, para a formulação do exército
zumbi. O cemitério não é mais o ambiente de descanso. A mulher o descreve como
misterioso, caótico e inseguro. Destaca-se mais uma vez o uso inicial das figuras retóricas e a
insinuação do sobrenatural, numa relação sincrônica. Vemos assim, lado a lado, o figurado e o
sobrenatural evocados pelo mesmo elemento: o cemitério.
Nesse contexto, nos deparamos com os diálogos entre Marie e seu filho, ambos no
quintal de casa, à sombra da mangueira. A mãe de Vieux Os lhe conta sobre o dia em que teve
de lidar com os seres sobrenaturais e sua experiência com o exército zumbi, os mortos-vivos
que deixaram o cemitério e tomaram a cidade de Porto Príncipe. Como sabemos, essa história
percorre todo o restante do romance. Enquanto Marie explica a situação do país e seus
temores para com os mortos-vivos, a situação caótica-sobrenatural do país torna-se o foco da
problemática da obra.
O teor “ilusionista”, conferido pelo narrador-personagem na situação que analisamos
nos parágrafos anteriores é abandonado, e o sobrenatural se destaca. Marie incita seu filho a
acreditar em suas histórias, mas Vieux Os demonstra-se interessado em outros aspectos, como
a postura de sua mãe. Ele confessa ao leitor: “Minha mãe vira-se e percebe que estou
interessado em sua história. Não pelas razões que ela pensa. O que me toca é sua capacidade
132
ilimitada de reviver seus medos noturnos” (LAFERRIÈRE, 2011, p.40). Nessa passagem
compreendemos que o escritor direciona a sua curiosidade não ao mistério do sobrenatural,
mas ao locutor que conta suas aventuras. Entretanto, a admiração pela locutora da história é
irônica. Esse aspecto pode ser notado no seguinte diálogo:

132
“Ma mère se retourne et remarque que je m‟intéresse à son récit. Pas pour les raisons qu‟elle croit. Moi, ce
qui me touche, c‟est sa capacité pratiquement illimitée à revivre ses peurs nocturnes.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.
46)
110

- Sinto que alguma coisa te perturba, mãe.


- Sim - acaba confessando -, eles são tão espertos que podem muito bem
fazer você acreditar que são seres vivos.
- Não entendo. Você está falando sério, mãe? Você acredita mesmo nessas
coisas?133 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 42)

A questão formulada por Vieux Os denota certa descrença diante daquilo que sua mãe
o conta. Ele quase não acredita que Marie tem realmente segurança naquilo que ela
testemunhou; nos seres sobrenaturais que invadiram a capital haitiana para despertar os
mortos. Ao questionar as crenças de Marie, ele também demonstra duvidar do relato dela. O
narrador-personagem utiliza uma pergunta retórica, objetivando a obviedade de sua descrença
para com o evento que ela lhe apresenta.
Os recursos adotados por Laferrière, para inserir a ironia, nas questões do narrador-
personagem, é a adoção dos modalizadores discursivos tanto verbais como adverbiais:
“croire” e “sérieusement”. Essa modalização é uma caracterìstica já constatada por Todorov
(2013; 2017) em outras literaturas fantásticas que abusam do uso deste recurso. Ele diz que
sua utilização serve como indicação de “[...] incerteza em que se encontra o sujeito que fala
quanto à verdade da frase que enuncia” (TODOROV, 2017, p. 44). No entanto, quando a
modalização se apresenta em forma de questão, o discurso do narrador-personagem enfatiza
mais a descrença do que a incerteza.
Ademais, Marie conclui seus relatos com um “tutorial”, cujo propósito é fornecer
informações ao seu filho para a identificação de zumbis. Ela indica que basta colocar a pessoa
suspeita de zumbificação frente a um espelho, para constatar a ausência de reflexo, indicando
que o zumbi seria destituído dessa característica. A mãe entrega ao filho seu espelho de bolso,
enquanto ele reflete: “O que é completamente falso, aliás, uma vez que um zumbi não é um
fantasma nem um espectro”134 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 55). Desta maneira, Vieux Os
desacredita nas dicas de sua mãe e assevera o seu conhecimento acerca de seres sobrenaturais.
Mais uma vez a complexidade do texto de Laferrière se apresenta. Ao formular um
inquérito sobre o exército vodu, Vieux Os pretende encontrar a verdade acerca da situação do
seu país, mas há momentos em que as dúvidas se estendem aos interlocutores que ele
„entrevista‟. O narrador-personagem não duvida somente do sobrenatural, ele hesita diante das

133
“- Je sens que quelque chose te tracasse maman.
- Oui, finit-elle par avouer, ils sont tellement malins qu‟ils seront capable de te faire croire qu‟ils sont des êtres
vivants.
- Je ne comprends pas. Tu ne parles pas sérieusement, maman? Tu ne crois pas dans ces trucs?” (LAFERRIÈRE,
2011, p. 48).
134
“Ce qui est tout à fait faux, d‟ailleurs, puisque un zombi n‟est pas un fantôme ni un revenant”
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 66).
111

histórias e daqueles que as relatam. Mesmo quando o sobrenatural surge como explicação
para as situações, ele é desacreditado pelo narrador-personagem que, por sua vez, tentará
reunir o máximo de informações a respeito dos mistérios que se apresentam na sequência de
acontecimentos. A insistência com a historia de Marie se perpetua. Vieux Os, numa busca por
respostas que confirmem ou não os relatos de sua mãe, conduzirá o leitor por diversos
diálogos, em que as hesitações diante do sobrenatural oscilam.
Durante seu passeio pela cidade, ele é abordado por um engraxate, situação destacada
anteriormente. Quando o rapaz constata que ele é um recém-chegado ao país, o aconselha a ir
embora. Ele conta que o Haiti havia mudado e que os vivos haviam se misturado aos mortos.
Não se distinguiria quem teria vida ali. O narrador-personagem, por sua vez, o indaga: “-
Você está falando do caso dos zumbis? – digo bem baixinho para não comprometê-lo”135
(LAFERRIÈRE, 2011, p.48). Se na situação anterior, Vieux Os desacredita das resoluções de
sua mãe sobre o exército zumbi, neste outro momento ele traz a problemática à tona. A
resposta que o engraxate apresenta para a pergunta de nosso narrador-personagem é a
seguinte:

- É tudo o que tenho a dizer... se fossem seres humanos de verdade –


continua -, acha que sobreviveriam a essa fome, a todo esse monte de
imundícies que se encontra em cada esquina...? E, além disso, o senhor não
vê que todas as outras nações estão no país? [...] O que o senhor acha que
eles estão fazendo? Pesquisas, meu amigo. Eles vêm aqui para estudar
quanto tempo o ser humano pode ficar sem comer nem beber. Mas eles não
sabem que já estamos mortos. Os brancos só querem acreditar naquilo que
conseguem entender. Então, vá embora enquanto é tempo136 (LAFERRIÈRE,
2011, p. 48).

As explicações do engraxate denotam um forte teor social, aborda a temática da fome


e da exploração, creditadas à ocupação norte-americana ocorrida no Haiti. Segundo o rapaz,
os mortos não são verdadeiramente zumbis, mas se tratam dos haitianos que estão passando
por uma crise socioeconômica histórica. Laferrière utiliza a discussão social sobre a fome no
país, anulando mais uma vez o teor sobrenatural, conferido ao exército zumbi do capítulo
anterior. As pessoas são zumbis por causa da fome, segundo o engraxate. Vieux Os não

135
“- Vous parlez de l‟affaire dez zombis? Dis-je à voix très basse pour ne pas le compromettre.”
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 56-57)
136
- C‟est tout ce que j‟ai à vous dire... Si on était vraiment des êtres humains, continue-t-il, vous croyez qu‟on
survivrait à cette famine, à tous ces tas d‟immondice qu‟on trouve à tous les coin de rue... Et puis, vous ne voyez
pas que toutes les autres nations sont dans le pays? [...] Que croyez-vous qu‟ils sont en tain de faire? Ils font des
études, mon ami. Ils viennent ici pour étudier combien de temps l‟être humain peut rester sans manger ni boire.
Mais ils ne savent pas qu‟on est déjè morts. Les Blancs ne veulent croire qu‟à ce qu‟ils peuvent comprendre.
Alors, partez pendant qu‟ils est encore temps” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 56-57).
112

questiona essa afirmação e, em outro momento, o garoto alega estar igualmente morto. Como
um morto estaria dialogando com o narrador-personagem? Qual o procedimento adotado
aqui?
Laferrière justifica o exército zumbi, aparentemente sobrenatural, como a realização
literal de uma expressão de cunho figurado, a qual não se encontra no texto. Dizer que alguém
está “morrendo de fome” é um exagero; uma hipérbole, porém aqui essa expressão torna-se
concreta. Estamos novamente diante da relação sincrônica, do discurso Fantástico. O
procedimento adotado promove a convivência entre a figura retórica e o sobrenatural, não
necessariamente nessa ordem. O insólito é contaminado pelo teor social, conferido pelo
discurso do engraxate. Esse aspecto subverte o sobrenatural e permite que o leitor e o
narrador-personagem ignorem o teor insólito presente nos relatos de Marie, acerca dos seres
sobrenaturais que invadiram a cidade. Nesse sentido, o exército zumbi seria uma população
marginalizada que se encontra em contexto de vulnerabilidade.
O viés social possui continuidade em outros episódios da narrativa, os quais demarcam
a insistência de um olhar sobre a decadência enfrentada pela população. Nesse contexto
encontramos uma hesitação representada137; algo raro em nosso objeto de estudo. Ainda em
seu passeio pela cidade, na continuidade de seus reencontros, Vieux Os se depara com uma
multidão de pessoas. Ao observá-los ele nota as extremas semelhanças entre os vivos e
mortos, naquela situação. Novamente, o sentido figurado é insinuado no texto. Já esperamos
que algo aconteça para que o sobrenatural seja deslocado da narração. Diante do aspecto
decadente da multidão, ele declara:

[...] Descarnados, longos dedos secos, os olhos muito grandes nos rostos
ossudos e, sobretudo, essa fina poeira sobre quase todo o corpo. É que a
estrada que leva ao lado de lá é longa e poeirenta. Essa opressiva poeira
branca. O lado de lá. É aqui ou lá? Aqui já não seria lá? É essa minha
investigação138 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 59).

A passagem evidencia a decadência da massa haitiana, que enfrenta a pobreza, a


escassez de alimento e o aspecto físico adoecido. As comparações que Vieux Os promove
submete o além ao mundo real e denuncia a situação do cidadão haitiano. Notemos que apesar
de todo o contexto social, o narrador-personagem trata de representar sua verdadeira dúvida: a
137
Segundo Todorov (2017), a hesitação representada pode surgir tanto por parte do narrador quanto das
personagens de uma dada obra fantástica.
138
“[...] Décharnés, de longs doigts secs, les yeux très grands dans des visages osseux, et surtout cette fine
poussière sur presque tout le corps. C‟est que la route qui mène à l‟au-dèla est longue et poussiéreuse. Cette
oppressante poussière blanche. L‟au-delà. Est-ce ici ou là-bas? Ici n‟est-il pas déjà là-bas? C‟est cette enquête
que je mène” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 69).
113

distinção entre os dois mundos. Os vivos e os mortos são tão parecidos, em sua percepção,
que esse ambiente o confunde.
Com a somatória dos eventos anteriores às histórias do zumbi, o narrador-personagem
evidencia que talvez sua dúvida não seja sobre a existência do além, mas a delimitação deste.
Esse fato nos revela que a percepção de Vieux Os está abalada, ao que concerne o mundo real
do seu universo ficcional. Para ele, a imagem daqueles haitianos encontra-se num nível de
deterioração humana, sendo algo que permite uma comparação com a imagem do além que
ele formulou ainda na infância. Aqui, não se trata mais do figurativo. Vieux Os evidencia a
perda de limites das experiências do imaginário. Há uma confusão entre a realidade fatídica
do povo de sua nação e o além.
Passado esse episódio, as situações seguintes evidenciam o sobrenatural de forma mais
concreta. Vieux Os procura o professor J. B-Romain para investigar a história do exército
zumbi. O professor explica que houve de fato evidências da existência de zumbis no país,
especificamente na cidade de Bombardopolis, mas sua história se opõe a de Marie. O
pesquisador J. B- Romain conta sobre uma revolta camponesa; em que descobriram que o
povo daquele lugar eram mortos-vivos, e pede a Vieux Os para visitar seu colega Legrand
Bijou, pois ele poderia fornecer mais detalhes ao narrador-personagem.
Vieux Os, por sua vez, questiona o professor acerca do relato de sua mãe: “-Será
verdade que o velho presidente levantou um exército de zumbis para enfrentar o exército
americano?”139 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 64) O professor não lhe concede uma resposta e
deixa a questão em aberto, permitindo que o narrador-personagem tire suas próprias
conclusões. Essa dúvida se estende para outros diálogos entre o protagonista e as demais
personagens da obra.
Notemos que a dúvida de Vieux Os consiste em apenas descobrir a veracidade dos
fatos narrados por sua mãe, porém, ao não encontrar respaldo para a certificação dessas
histórias, o narrador-personagem segue com seu inquérito. Salientamos que no diálogo entre
ele e o professor J. B-Romain o sobrenatural é confirmado, porém transforma-se em mais uma
versão sobre o exército zumbi. Posteriormente, Vieux Os procura o doutor Legrand Bijou e
descobre outro testemunho acerca do mistério que envolve a cidadezinha de Bombardopolis.
Para todos os personagens há confirmação do sobrenatural, entretanto em versões diferentes.
A busca de Vieux Os consistirá em chegar a alguma resolução sobre o caso.

139
“- Est-il vrai que le vieux Président a levé une armée de zombis pour faire face à l‟armée américaine?”
(LAFERRIÈRE, 1997, p.75)
114

Em paralelo a esse episódio do diálogo entre o professor e nosso narrador, percebemos


novamente uma situação em que a versão de Marie se sobrepõe ao relato do professor J.-B
Romain. Desta vez, o sobrenatural torna-se mais presente. Em um capítulo do Pays réel,
durante o seu passeio pela cidade, o recém-chegado é abordado por uma senhora
desconhecida. Ela conta sua triste história e tenta sensibilizar Vieux Os, na tentativa de lhe
oferecer à sua filha. A mulher lhe confessa que precisa entregar a jovem a alguém
responsável, porque ela via um destino trágico para a moça, caso esta permanecesse com a
mãe: “[...] não consigo dormir pensando nessas bestas sedentas de sangue que a espreitam... O
perigo está em todo lugar. Mesmo o senhor está em perigo”140 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 68).
As figuras ameaçadoras, a quem a mulher referencia remetem às criaturas evocadas na
história de Marie. Este alerta de perigo incita o suspense de outras situações, como os avisos
do engraxate e da mãe do narrador-personagem, que intercedem pela postura de cuidado que o
recém-chegado deveria manter. Nesse contexto, as histórias lendárias contadas por Marie
dominam a narrativa e se sobrepõem aos demais relatos e situações presentes na narrativa.
O vai-e-vem entre o figurativo e o literal cede espaço para uma relação entre o
sobrenatural e suas versões. Há criaturas de natureza duvidosa na cidade, mas não se sabe
qual relato é o verídico. Percebemos que se trata de um desequilíbrio do sobrenatural na
narrativa. Dany Laferrière não apenas rompe com o „real‟ do universo fictìcio de Pays sans
chapeau, introduzindo hesitações implícitas por meio do jogo entre as figuras de linguagem e
a literalidade dos acontecimentos insólitos, como também ele propõe uma instabilidade do
sobrenatural.
Todorov (2017) disserta que uma das características mínimas de uma narrativa
fantástica consiste em: a) o estabelecimento de um equilíbrio inicial, b) a ruptura desse
equilíbrio por meio de um evento aparentemente sobrenatural e c) o suspense da restauração,
insinuando o desequilíbrio. Em Dany Laferrière, acontecem diversas oscilações a respeito da
natureza do sobrenatural, e o equilíbrio inicial da obra não é restaurado. Como destacamos, o
teor figurativo estabelece relações (diacrônicas e sincrônicas) com o insólito;
consequentemente o sobrenatural torna-se ambíguo, com explicações de cunho figurado e
social. A ambiguidade também se mantém por causa da busca por informações acerca do
fantástico, mas nem sempre a hesitação é algo explícito no discurso de nosso narrador-
personagem.

140
“[...] je n‟arrive pas à dormir rien qu‟en pensant à ces bêtes assoiffées de sangs qui la guettent... Le danger est
partout, monsieur. Vous même, vous êtes en danger” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 81)
115

Assim, Laferrière submete seu leitor à confusão em que o narrador-personagem se


encontra; uma percepção confusa a respeito de um Haiti que se equipara ao além, onde os
mortos “vivem”. A presente exposição, sobre as Hesitações Fantásticas em nosso objeto de
estudo, poderia se prolongar mais, porém, seria apenas reafirmação a respeito dos
mecanismos que evidenciamos até o presente momento. Gostaríamos de formular algumas
conclusões a respeito das oscilações de Vieux Os, como provisórias para as análises dos
outros subgêneros do Fantástico, que prosseguiremos na exposição.
Por hora, devemos compreender que a hesitação fantástica está presente de forma
evanescente em nossa narrativa. Ou seja, a obra mantém, de certo modo, a versão tradicional
do gênero fantástico. Entretanto, devido às oscilações entre o figurativo e o literal na
narrativa, a hesitação fantástica torna-se um artifício para o estabelecimento de outros
subgêneros do fantástico, característica que pode gerar hesitações implícitas na obra.
Essa constante oscilação entre explicações sobrenaturais e o teor figurativo, presente
em diversas passagens da narrativa, também pode indicar a existência do Neofantástico141
contemporâneo, o qual ainda está passando por transformações.
A autorreferência também é um procedimento que reafirma hesitações e sugere
múltiplas significações para os eventos sobrenaturais. É através dela que dois universos; Pays
réel e Pays rêvé, dialogam, interrogando-se. As histórias se cruzam porque, corriqueiramente,
Dany Laferrière utiliza a realidade ficcionalizada do Pays réel como base para o
estabelecimento de outra realidade em Pays rêvé. As duas se entrecruzam constantemente, o
que pode gerar mais dúvidas e confusões ao público-leitor.
O jogo de narração de Vieux Os não questiona tão somente o sobrenatural, como
promove a flexibilidade das realidades ficcional e extraliterária: aquela do seu leitor. Assim,
são sugeridas duas realidades: a) a primeira com referência ao extratextual, um Haiti
mergulhado nas questões sociais, dotado de um descaso institucionalizado, e b) uma
referencia o próprio universo imaginado da obra, o sobrenatural.

2 As hesitações alegóricas: a morte como metáfora

141
O Neofantástico é a evolução do gênero Fantástico tradicional. A principal característica do gênero na
contemporaneidade é sua insistente “[...] transgressão linguìstica em todos os nìveis do texto: no nìvel semântico
(referente da narrativa), como superação de limites entre duas ordens dadas como incomunicáveis
(natural/sobrenatural, normal/anormal); no nível sintático (estrutura narrativa), refletido sobretudo na falta de
causalidade e finalidade;59 e no nível do discurso, como negação da transparência da linguagem (utilização, por
exemplo, de uma adjetivação fortemente conotada, tal como vimos antes)” (ROAS, 2014, p. 72).
116

No tópico posterior, vimos que o Fantástico desempenha a função de gênero


evanescente em nossa narrativa. Ou seja, nosso corpus utiliza-se das hesitações fantásticas
para encaminhar-se aos demais gêneros que derivam do Fantástico. Em outras palavras, Pays
sans chapeau é uma obra que mantém hesitações a respeito da natureza dos eventos insólitos
em seu enredo, com a finalidade de confirmar ou não o sobrenatural. Não é fácil delimitar a
procedência dos acontecimentos em nosso corpus, posto que sua composição complexa
desenvolve uma função desestabilizadora tanto do „real‟ quanto do „sobrenatural‟, do universo
ficcional.
A complexidade dos procedimentos na escrita de Dany Laferrière não impede o
surgimento do sobrenatural, mas o torna difìcil de ser „capturado‟. Sempre que constatamos a
presença deste nos deparamos com outro gênero literário: o Maravilhoso. Todorov (2013)
define esse gênero como a naturalização daquilo que é insólito. O teórico argumenta que se
trata da passagem da hesitação fantástica, articulada entre personagens e leitor que “[...]
decidem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado”
(TODOROV, 2013, p. 156). Portanto, o gênero Maravilhoso requer o universo ficcional
integralizado ao sobrenatural.
Ao dissertar sobre o Maravilhoso, o estudioso divide-o em dois eixos: a) Fantástico-
Maravilhoso, compreendendo a classe de narrativas que se apresentam como fantásticas e que
terminam no sobrenatural, sugerindo a existência deste, e b) Maravilhoso Puro, no qual os
elementos sobrenaturais não comprovam qualquer reação particular nem nas personagens,
nem no leitor. Desta maneira, o Maravilhoso não se caracterizaria por uma atitude para com
os acontecimentos contados, mas pela própria natureza desses acontecimentos (TODOROV,
2013, p. 159-160). O que isto significa? Narrativas que fazem uso do Maravilhoso podem ter
como mecanismo dois modos de percepção do Maravilhoso: incitar dúvidas sobre os
acontecimentos da trama até que se confirme o sobrenatural ou ser completamente integrada
ao sobrenatural e manter o foco em outras questões, como nas ações dos personagens, nas
mensagens morais, nas metáforas, entre outros.
Marçal (2009) argumenta que, ao projetar um universo completamente sobrenatural, o
maravilhoso se opõe ao mundo real e estabelece uma estrutura diferente do Fantástico. Para
ela, a principal diferença que se encontra no gênero Maravilhoso é “[...] a suposição implìcita
que o sobrenatural pertence à categoria do imaginário” (MARÇAL, 2009, p.3). Por não
provocar dúvidas da procedência do sobrenatural, o Maravilhoso:
117

[...] anula esta existência, radicalizando a oposição entre real e imaginário, e


também é apropriado pela a ideologia racionalista e positivista moderna
como um discurso de apoio a supremacia do real sobre o irreal, do lógico
sobre o ilógico, do racional sobre o irracional (MARÇAL, 2009, p. 3).

Desta forma, se não precisaríamos discutir a (não) existência do sobrenatural no texto


literário, qual seria a função do Maravilhoso? Para Marçal (2009), o conto de fadas, um
exemplo de gênero maravilhoso, admite o fato sobrenatural como pertencente ao real, na
tentativa de revelar uma mensagem moral presente no discurso do imaginário, no campo
metafórico e alegórico. Para ela, o universo totalmente sobrenatural implica numa ode à frase
„é apenas imaginação‟.
Marçal (2009) distancia-se das ideias de Todorov (2013; 2017) ao não utilizar as
divisões propostas por este teórico. Ela ignora a possibilidade deste gênero ser híbrido,
compartilhando parte de sua estrutura com o fantástico. Apesar desse posicionamento por
parte da estudiosa, notamos que seu raciocínio é coerente com os comentários de Todorov
(2017) acerca da função do Maravilhoso. De acordo com o teórico Búlgaro, a admissão do
sobrenatural “é um recurso para evitar uma condenação” (TODOROV, 2017, p. 168) moral e,
sobretudo, uma forma de discutir o viés moralista da sociedade. Quanto a função textual, o
Maravilhoso é aquilo que transgrede o “real” do universo ficcional, posto que ele se
concretiza ao se admitir o sobrenatural no texto.
Em nosso objeto de estudo a função deste subgênero solicita às uniões entre ideias de
Todorov (2013; 2017) e de Marçal. Embora Pays sans chapeau não seja um conto de fadas, a
adesão do Maravilhoso é algo sutil, mas comprovável. O subgênero se instaura por meio das
alegorias referentes a morte, palavra esta que encontra-se incumbida de uma multiplicidade de
significados na obra. De acordo com Todorov (2017) a

[...] alegoria implica na existência de pelo menos dois sentidos para as


mesmas palavras; diz-se às vezes que o sentido primeiro deve desaparecer,
outras vezes que os dois devem estar presentes juntos. Em segundo lugar,
este duplo-sentido é indicado na obra de maneira explícita: não depende da
interpretação (arbitrária ou não) de um leitor qualquer. (TODOROV, 2017,
p. 71)

A alegoria também é uma forma de discurso que provoca hesitações, justamente por
causa deste duplo-sentido, referido na citação acima. Se encontramos em uma obra a
diversidade de sentidos para um mesmo elemento, como leitores, poderíamos ter mais
dificuldade de capturar a literalidade ou a subjetividade de um ou outro sentido. Esta última,
por sua vez, será parte do discurso narrativo, facilitando hesitações implícitas em diversos
118

níveis. Todorov (2017) salienta que por isso é necessário constatar a existência das alegorias
em uma obra, para depois compreender os níveis delas.
Dentre os quatro níveis de alegorias, apontadas por Todorov (2017), destacam-se uma,
em especifico: a alegoria hesitante. Quando esta se apresenta no texto, o leitor, seja ele qual
for, hesita entre a interpretação alegórica e a literal, por causa da possibilidade da coexistência
das duas interpretações na narrativa. Seria o que encontramos em Pays sans chapeau? Sim,
exploremos alguns dos sentidos atribuídos à morte, no referido romance.
Como notamos, o discurso figurativo desta obra colabora para a problemática da
procedência da natureza dos elementos insólitos. Essa complexidade facilita a hesitação
fantástica. Poderíamos dizer que a oscilação entre o figurativo e o sobrenatural, na verdade, é
decorrente das diversas alegorias que Dany Laferrière utiliza em seu romance, e quando estas
insinuam o sobrenatural vemos a possibilidade de concretude do Maravilhoso. Isto é, antes
que se decida entre um sentido e outro, a hesitação fantástica toma espaço na obra. Quando a
alegoria deixa de ser ela mesma e, consequentemente, confirma-se o sobrenatural estaremos
diante do Maravilho.
A amplitude de significados atribuídos à morte faz parte das hesitações implícitas de
nosso corpus. Nesse sentido, ela é mais um elemento desestabilizador que pode significar
algo que já estamos familiarizados, como o seu aspecto restritivo da vida humana, ou pode
pertencer ao campo do imaginário religioso, como uma oportunidade para vivenciar o além.
Em diferentes momentos da narrativa, podemos constatar a morte como a conhecemos, em
um viés ocidental e racional. Há um episódio em que Marie conta as últimas notícias sobre
assassinatos que ocorrem na capital do Haiti:

- Pierre me disse esta manhã que acharam um cadáver na frente da padaria


Au Beurre chaud em Bois Verna. Parece que era um jovem revendedor. Ele
tinha vindo comprar pão para revendê-lo... Um podre vendedor ambulante
que foi morto e levaram seu dinheiro. Pobre rapaz. Toda manhã acham dois
ou três cadáveres nesta cidade. 142 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 90)

Nesta passagem, a mãe de Vieux Os comenta sobre a onda de violência que a cidade
enfrenta. O foco da fala da senhora é evidenciar a insegurança que, até mesmo, os
trabalhadores vivem, por causa da ganância de criminosos. É certo que esse trecho vai além

142
“- Pierre m‟a dit ce matin qu‟on a trouvé un cadavre devant la boulangerie Au Beurre chaud, à Bois Verna. Il
paraît que c‟est un jeune vendeur. Il était venu acheter du pain pour aller le revendre... Un pauvre marchand
ambulant. On l‟a tué et on lui a pris son argent. Pauvre garçon. Chaque matin, on trouve deux ou trois cadavres
dans cette ville” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 108).
119

da comunicação de acontecimentos, ele intensifica o teor ameaçador que a temática da morte


já havia instaurando numa sequência de eventos anteriores, na obra.
Antes deste pequeno destaque sobre a violência, encontra-se o desenvolvimento sobre
o exército zumbi, nas versões de Marie, do professor J. B-Romain e do doutor Legrand Bijou.
Se nesses outros contextos a morte denota algo sobrenatural, aqui ela serve como
intensificação para garantir a extensão do efeito de dúvida ao leitor que segue o fluxo de uma
leitura contínua da obra. Entretanto, no recorte destacado acima, a morte é percebida como
consequência das ações humanas, em seu sentido natural: a restrição da continuidade da vida.
Gostaríamos ainda de destacar outro aspecto na passagem em questão. Marie chama
atenção para frequência de cadáveres que encontram na cidade. Desta vez, ela não se refere à
morte sobrenatural, como o zumbi ou os distúrbios relatados em momentos anteriores da
narrativa. A mulher destaca o fato de que a violência se tornou um evento cotidiano para os
haitianos. Esse detalhe da fala da personagem também revela a denúncia sobre os efeitos da
ditadura na nação. Dany Laferrière utiliza-se desta personagem secundária para discorrer
sobre o contexto vivido na Era Duvalier. Lembremos as palavras de Grondin (1985):
“Duvalier tinha, há anos, o controle da situação e havia estabelecido no paìs a maior paz
conhecida em muitas décadas: a paz dos cemitérios.” (GRONDIN, 1985, p.47) Se por meio
do terror e da tortura o ditador haitiano promoveu esse efeito, na pena de Laferrière os
haitianos seriam mortos e (ou) mortos-vivos, e o Haiti se consagra como o próprio além.
Assim, a morte, seja em qual sentido encontrarmos, ela assegura um projeto de crítica
filosófica e política, acerca de um sistema totalitário que explorava os indivíduos que faziam
parte dele, mesmo aqueles inferiores. No entanto, não há apenas esse episódio que referencia
a morte como consequência dessa violência. Durante um passeio pelo centro da cidade,
acompanhado de sua mãe, Vieux Os desenvolve o seguinte diálogo com Marie:

- Está cansada, mãe?


- Não – diz depois de um tempo. – Quero saber se alguém nos segue.
Mataram uma mulher assim, na semana passada. Eles a seguiram até sua
casa e voltaram, à noite, para roubar seu dinheiro. Como ela tentou resistir,
foi degolada.143 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 103)

143
“- Tu es fatiguée, maman?
- Non, dit-elle après un moment, Je veux savoir si personne ne nous suit. On a tué une femme comme ça, la
semaine dernière. Ils l‟ont suivie jusqu‟à sa maison et sont revenus. Ils l‟ont suivie jusqua‟à as Maison et sont
revenus, la nuit, lui voler son argent. Comme elle a tenté de résister, ils l‟ont égorgée” (LAFERRIÈRE, 1997, p.
124).
120

O medo nas personagens é um sentimento constante na narrativa, em situações que


ocorrem em ambientes abertos, como o centro da cidade e nas ruas. A insegurança não é
proveniente, somente, das aflições por causa dos roubos. Na fala de Marie constatamos,
novamente, o relato sobre a morte de alguém que resistiu aos agressores e perdeu a vida.
Nesse sentido, os resistentes são sempre os que perdem a vida. É necessário deixar-se perder o
pouco que se tem. Não há qualquer reflexão sobre o teor sobrenatural, apenas mais uma
adição aos assassinatos que ocorrem com frequência em Porto Príncipe. Quando a morte
deixa de evidenciar os assassinatos e passa a deter outro significado?
Ela também passa a implicar na descontinuidade da vida social. Em nosso primeiro
capítulo, citamos a presença da crítica marxista como um horizonte da literatura quebequense-
haitiana de Dany Laferrière. É justamente nesse aspecto que a morte social encontra-se em
nosso corpus. No entanto, a construção desta alegoria é mais complexa. Ela se mistura ao
sentido literal, apontado nos parágrafos acima, e se estabelece de acordo com as percepções
do nosso narrador-personagem, como nos episódios em que suas descrições tornam-se
reflexões sobre a miséria enfrentada pela população.
Entre simples passeios em seu antigo bairro e reencontros com amigos, o narrador-
personagem descreve diversos cenários caóticos em Porto Príncipe. Ele narra a divisão de
bairros por classe sociais, descrevendo em porcentagem como foi feita a organização
territorial: “[...] 56% da população ocupa 11% do território. 33% da população ocupa 33% do
território. 11% da população ocupa 56% do território” 144 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 36).
Vieux Os ainda adiciona a explicação deste contexto. Ele justifica que devido à
ocupação imigrante na capital do Haiti, os ricos se instalaram nas encostas das montanhas,
foram os primeiros a escolher onde morariam, enquanto a classe média ganhou o centro da
cidade e os pobres amontoaram-se na parte baixa da capital, onde a miséria, a sujeira, o mau
cheiro e a pobreza são características principais.
Ao rememorar este fato dos bairros, o escritor famoso revela que muitos pertencentes
à classe média ainda eram assombrados pelo medo de perder a casa em que moravam, ao
exemplo de sua mãe que sempre vivia temerosa em perder a locação de sua residência. Ao
longo de toda a narrativa há vários exemplos sobre esta necessidade de ter uma boa
localização para morar, e vê-se, claramente, Martissant como um lugar abastardo e de extrema
miséria, o bairro que se encontra no perímetro da pobreza.

144
« [...] 56% de la population occupe 11% du territoire. 33% de la population occupe 33% du territoire. 11% de
la population occupe 56% du territoire” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 40).
121

Os passeios do narrador-personagem nos colocam frente a problemática da luta pela


sobrevivência, uma vez que perder seu território é descender moralmente 145. Observamos que
não há na obra alguma personagem que consiga mudar de vida e subir na posição social. Os
pobres continuam pobres e os ricos se mantêm em suas montanhas. A luta pela permanência
da posição social pertence a esses que oscilam entre o meio-termo, que optam pelas marcas de
perfume francesas e nacionais, assim como pela negociação, aqueles que através do esforço e
do trabalho buscam o pão e se esforçam para não perder seu lugar.
As porcentagens expostas pelo narrador-personagem evidenciam a injusta divisão de
terra que o Haiti apresenta desde os primórdios, quando foi colonizado pela Espanha e França,
também responsáveis pela imigração africana que ocorreu no país. Segundo Grondin (1985),
depois que a França e Espanha se retiraram do território, o Haiti se transformou numa espécie
de segunda África. Sem os autóctones, a terra já havia sido apossada pelos europeus e logo
em seguida pelos afrodescendentes da classe alta. Esta denúncia sobre as divisões territoriais é
algo notado até nos dias atuais. Mais de 70% da população pobre continua a viver nas
baixadas dos morros, enquanto os outros 30% da população rica vive em suas mansões em
bairros como Pétion-Ville (Porto Príncipe), lugar citado na obra, onde um dos amigos mais
próximos de Vieux Os mora.
A morte social em nosso objeto de estudo não é mero detalhe que passa despercebido.
É válido salientar que as diversas formas como Dany Laferrière representa essa morte social é
proveniente de diversas comparações entre o além e o mundo real de seu universo ficcional.
Uma vez que já destacamos diversas passagens sobre esta questão, não faremos mais análises
sobre esse comparativo entre mundo real/Haiti e universo imaginado/além. Gostaríamos
apenas de adicionar mais uma informação acerca destas comparações que Vieux Os costuma
promover em sua narração.
Na maioria das vezes em que o narrador-personagem destaca a semelhança entre vivos
e mortos, ele o faz submetendo o além ao seu mundo, mas sem antes ter tido contato com este
outro lugar. O referente de Vieux Os, na verdade, é a própria miséria local e a forma
desumana como os haitianos têm vivido. Na obra, há mortos-vivos por diversos fatores, por
causa da escassez de alimento e recursos, por causa das condições precárias do meio

145
Antônio Cândido em seu ensaio sobre o espaço e a degradação do ambiente na narrativa L‟Assommoir, de
Émilie Zola, discursa sobre a questão espacial e como ela é influenciadora nos personagens desta narrativa fin
des siècle. Através do viés simbólico, ele disserta que a personagem principal do romance, Gervaise, era
consumida pela degradação moral e social que sua casa apresentava. Em Pays sans chapeau, a questão da
degradação assume proporções parecidas, porém nunca há uma ascenção moral, social ou econômica dos
personagens, justamente porque, como Gervaise, os personagens de Laferrière são tomados pela miséria do
ambiente.
122

ambiente, o qual está completamente contaminado pela sujeira, como no bairro Martissant.
Todavia, quando a morte social implica realmente em um esquecimento, a sensação de
estranhamento se instaura no texto. Qual fenômeno acontece na narrativa para desencadear
esse sentimento?
Sempre que Vieux Os promove suas reflexões e evoca um imaginário cultural para
formular o comparativo entre os mortos do além e os vivos de seu mundo, ele o faz numa
instância reflexiva, evidenciando a mensagem que quer transmitir. No entanto quando a
alegoria encontra-se em seu sentido literal, para outro personagem, o narrador-personagem se
desestabiliza. Em uma conversa com sua mãe, Vieux Os conta que decidiu encontrar o pai,
quando estava nos Estados Unidos. Ele narra uma conversa que teve com o pai:

- Quem está aí?


- Teu filho – respondi.
- Não tenho filhos, todos os meus filhos morreram.
- Sou eu, pai, vim ver você.
- Volte para o lugar de onde veio, todos os meus filhos morreram no Haiti.
- Mas eu estou vivo, pai.
- Não, só há mortos no Haiti, mortos ou zumbis. 146 (LAFERRIÈRE, 2011, p.
193)

O presente diálogo encontra-se no antepenúltimo capítulo do romance. Após diversas


analogias sobre a morte, em seu sentido social, ela torna-se concreta. De fato, existia alguém
que acreditava no pleno esquecimento do indivíduo. Uma morte que beira a discussão
filosófica sobre o valor do humano, seu apagamento da sociedade e ainda outras reflexões
pertinentes à existência humana. Destaca-se ainda uma fala que remete às discussões sobre os
zumbis: “[...] só há mortos no Haiti, mortos ou zumbis” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 193). Este
diálogo personifica e resume boa parte da situação dos gêneros literários na obra.
Novamente, os zumbis são naturalizados e passam a pertencer à discussão
existencialista, de cunho humanístico. O elemento insólito sai do campo sobrenatural e
fantasioso para uma instância reflexiva que subtrai a literalidade, sem a qual não há
sobrenatural. Portanto, não há Maravilhoso. Lembremos que a presença do sobrenatural é o

146
« - Qui est là?
- Ton fils, dis-je.
- Je n‟ai pas d‟enfants, tous mes enfants sont mort.
- C‟est moi, papa, je suis venu te voir.
- Retourne d‟où tu viens, tous mes enfants sont morts en Haïti.
- Mais je suis vivant, papa.
- Non, il n‟y a que des morts en Haïti, des morts ou des zombis” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 244).
123

que garante a estabilidade deste subgênero. Quando a morte significará algo sobrenatural? No
momento em que a alegoria seja o agente que provoca e evoca o sobrenatural.
Em diversos episódios a morte apresenta-se vinculada ao sobrenatural, seja nos relatos
de Marie, do Professor J. B-Romain ou no doutor Legrand Bijou. A morte significa algo além
do sentido literal e social. Ela é uma forma de acessar outro universo. Aqui se encontra o
Maravilho. Um dos exemplos que citamos em nossa exposição é referente à personagem Ba,
que aparentemente é um fantasma que vive na casa das filhas. Dizer que um fantasma vive é
contraditório, mas é exatamente isto que Laferrière desenvolve em Pays sans chapeau. Ele
estabelece um mundo para os vivos e outro para os mortos, por vezes, ambos se tocam e se
cruzam.
Em nosso corpus, ainda, encontramos uma explicação sobre essa forma de
compreensão sobre a morte. Quando Vieux Os decide visitar o doutor Legrand Bijou, para
questioná-lo quanto às novidades da cidade de Bombardopolis e o mistério dos zumbis, este
psiquiatra conta como essa história começou. Em sua versão dos fatos, Legrand Bijou diz que
tudo começou com o interesse dos Estados Unidos em saber quantos haitianos existiam no
país. Logo, pesquisadores foram enviados à pequena cidade, para promover uma pesquisa e
aplicar questionários aos moradores locais:

- [...] Um recenseamento no Haiti, imagine só... As pessoas dizem qualquer


coisa. “Quantos filhos a senhora tem?” “Dezesseis.” “Onde eles estão?” “Os
nove estão na escola.” “ E os outros?” “Que outros?” “Os outros sete filhos.”
“Mas senhor, eles morreram.” “Senhora, não contamos os mortos.” “E por
que não? São meus filhos. Para mim, estão vivos para sempre.” Como vê,
Laferrière, nós somos diferentes dos norte-americanos. Duas visões
diferentes. Os americanos subtraem os mortos deles, nós, negros,
continuamos a somá-los... Incompatibilidade de gênios...147 (LAFERRIÈRE,
2011, p. 79-80)

Ao discorrer sobre a forma como o povo de Bombardopolis compreendem questões


aparentemente simples, o doutor Legrand Bijou evidencia a diferença do conceito da morte
para aqueles haitianos. O trecho acima demonstra que os vivos e os mortos possuem o mesmo
grau de valor e importância para este povo. A alegoria da morte ganha seu sentido explícito.
Ela é espiritual e parte do processo da vida. O psiquiatra ainda justifica: “Como vê, Laferrière,

147
“- [...] Un recensement en Haïti, tu parles... Les gens disent n‟importe quoi. “Combien d‟enfants avez-vous,
madame?” “Seize.” “Où sont-ils?” “Tous les neuf sont à l‟école.” “Et les autres?” “Quels autres?” “Les autres
sept enfants.” “Mais, monsieur, ils sont morts.” “Madame, on ne compte pas les morts.” “Et pourquoi? Ce sont
mes enfants. Pour moi, ils sont vivants à jamais.” Comme vou voyez, Laferrière, nous sommes différents des
Nord-Américains. Deux visions différentes. Les Américains soustraient leurs morts, nous, Noirs continuons à les
additionner... Incompatibilité de caractères…” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 94).
124

nós somos diferentes dos norte-americanos. Duas visões diferentes. Os americanos subtraem
os mortos deles, nós, negros, continuamos a somá-los...” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 80). Esse
trecho, em específico, é uma explicação que evidencia a crença numa morte que proporciona
um plano espiritual.
A exploração deste terceiro sentido da morte é mais uma evidência da presença do
imaginário cultural haitiano, destacado no segundo capítulo de nossa exposição. É neste
sentido da alegoria que o sobrenatural pode ser comprovado. Uma morte que evoca um
mundo „desconhecido‟ e povoado por deuses e entes queridos. Sempre que houver a evidência
do significado espiritual da morte, estaremos diante do Maravilho.
Nesse viés, os costumes de servir aos mortos, o zumbi, o panteão dos deuses e, até
mesmo, a crença em um plano espiritual solicitam este conceito da morte, numa continuidade
da vida que se estende ao outro “mundo”. A existência deste outro lugar, onde os mortos
operam e transitam, é frequentemente evocada na obra, como no episódio em que Vieux Os é
convidado a visitar o além. No momento em que sua tia Renée fica sabendo que o padrinho
dela, Lucrèce, fez o convite ao sobrinho, ela lhe revela que o homem era alguém muito
poderoso. Vieux Os confessa ao leitor:

Tia Renée uma católica fervorosa. Ela crê em Cristo e ao mesmo tempo nos
poderes de Lucrèce. Na sua capacidade de cruzar as fronteiras quando bem
entende. De trocar de mundo à vontade. De passar para o lado dos vivos
assim como para o lado dos mostos. E esse homem me oferece o mais
terrível negócio [...] Ele me oferece a possibilidade de ser mais do que um
escritor. De tornar-me um profeta. Aquele que viu. Passar uma temporada
entre os mortos e voltar para junto dos vivos para contar. Ultrapassar as
aparências. Viver um tempo na mais absoluta verdade. Chega de comédia,
chega de tragédia. Somente a verdade. A verdade ofuscante. O mais antigo
sonho dos homens.148 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 111)

Vieux Os não demonstra dúvida quanto à possibilidade de visitar o além e retornar são
e salvo para o mundo dos vivos. Ele realmente acredita que essa alternativa é possível de se
concretizar e que existe verdadeiramente outro mundo a ser visitado. Do mesmo modo, ele
demonstra o sincretismo presente na crença de sua tia, que mesmo sendo católica é convicta a
respeito do além e dos poderes de seu padrinho.

148
“Tante Renée est une catholique fervente. Elle croit dans le Chist et en même temps dans les pouvoirs de
Lucrèce. La possibilité qu‟il a de traverser les frontières comme bon lui semble. De changer de monde, selon ses
désirs. D‟aller du côté des vivants comme de celui des morts. Et cet homme me fait le plus terrible marché [...] Il
me donne la possibilité d‟être plus grand qu‟un écrivain. De devenir un prophète. Celui qui a vu. Séjourner parmi
les morts et revenir chez les vivants en rendre compte. Traverser le voile des apparences. Vivre un temps dans le
vrai de vrai. Plus de comédie, plus de tragédie. Seulement la vérité. L‟éclatante vérité. Le plus vieux rêve des
hommes” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 136-137).
125

Destarte, o sentido espiritual/sobrenatural da morte consegue se concretizar no fim da


obra. Quando Vieux Os vai ao além e conhece os deuses do vodu. É neste momento que nos
encontramos com a maior confirmação do sobrenatural da obra; aspecto que discutiremos em
outro subtópico de nosso estudo. Para continuar nossa exposição a respeito da insistência de
outros dois gêneros literários em Pays sans chapeau devemos sintetizar o raciocínio que
construímos até o presente momento sobre o Maravilhoso.
A morte, carregada de significados e críticas, é também um elemento solapado pelas
diversidades das mensagens morais e sociais, mas o Maravilhoso será confirmado sempre que
for evocado o sentido espiritual/sobrenatural. Seria uma modalidade de Maravilhoso
tradicional, cujo sobrenatural corriqueiramente nasce da alegoria, e vice-versa. No entanto, os
usos das alegorias mantêm as hesitações fantásticas, justamente porque a multiplicidade de
representar a morte, em conjunto com a diversidade de sentidos que encontram-se atribuídos a
esta, dificultam ainda mais a percepção do sobrenatural. É deste contexto que o discurso
figurativo do Fantástico torna-se tão complexo, causando dúvidas ao narrador-personagem e,
consequentemente, ao leitor.

3 O inconsciente de Vieux Os: uma abertura ao Fantástico-Estranho

Como sabemos, a cidade de Bombardopolis é o alvo de acontecimentos sobrenaturais,


em Pays sans chapeau. Os camponeses da cidadezinha demonstram ser superdesenvolvidos.
A ausência de fome, consequência da pureza da língua créole, é uma das características que
os colocam como superiores aos demais haitianos daquele universo ficcional. O sobrenatural
desses humanos sugere a existência do gênero Maravilhoso na obra, constatado no tópico
posterior. Em nosso objeto de estudo, percebemos que Laferrière faz o uso das hesitações
fantásticas para transferir a narrativa ao âmago do gênero Maravilhoso, mecanismo comum às
obras que adotam o Fantástico como gênero evanescente (TODOROV, 2013; 2017; ROAS,
2014). Todavia, há uma situação ainda a ser abordada: a probabilidade da existência do
gênero Estranho em convivência com o Maravilhoso, em nosso corpus.
Todorov (2013; 2017) diz que as narrativas do Estranho reúnem acontecimentos que
parecem ser sobrenaturais, mas que possuem uma explicação racional. As hesitações
fantásticas funcionam como agentes do sobrenatural, insinuando a sua possível existência
numa dada narrativa, porém essas dúvidas recebem uma explicação racional no fim da obra.
O teórico divide o subgênero em dois eixos: Fantástico-Estranho e Estranho Puro. Nosso
126

interesse se volta para este primeiro. Segundo o estudioso, o Fantástico-Estranho é


caracterizado pelo agrupamento de oposições em seu jogo narrativo. São elas: a) “real-
imaginário”, em que nada aconteceu e tudo é fruto de uma imaginação desregrada (resultado
de sonho, loucura, droga etc.), e b) “real-ilusório”, na qual os acontecimentos se produziram
realmente, mas explicam-se de modo racional (TODOROV, 2013, p. 156-158). Como
podemos constatá-lo em nosso corpus? Observemos alguns episódios da obra.
A partir das descobertas científicas de um linguista Belgo, os americanos chegam à
conclusão de que os haitianos daquela cidadezinha tinham „evoluìdo‟ geneticamente. Eles
estavam se transformando em árvores, fator pelo qual os moradores de Bombardopolis
comiam apenas uma vez a cada trimestre. Essas conclusões são refutadas no penúltimo
capìtulo da obra, intitulado “Pays sans chapeau”. Nesse episódio, Vieux Os vai ao mundo dos
mortos e conversa com os deuses ancestrais do Haiti. Assim que chega ao lugar, o narrador-
personagem se dirige à mercearia e conversa com a dona do local. Percebendo a poeira no
ambiente, Vieux Os diz que a senhora recebia poucos clientes por ali. Em resposta, ela
argumenta:

- Às vezes passa um, mas na verdade é raro... Exceto quando volta de


Bombardopolis.
- Quem vai a Bombardopolis?
- As pessoas daqui, elas sempre tiveram o hábito de ir lá.
- Por que vão justamente para Bombardopolis?
- Não sei, nunca fui lá... Estou aqui para receber os novatos que ainda não
sabem que não precisam mais comer. As pessoas custam a se livrar de certos
hábitos. Então, chegam e me pedem um sanduíche e uma limonada.
Entende?, Estou no caminho deles.149 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 199)

O diálogo acima sugere outra explicação sobrenatural, para o caso de Bombardopolis.


Os camponeses da pequena cidade são, na verdade, moradores do além que frequentam o
lugarejo e, por isso, não possuem o hábito de comer constantemente. Com as indicações da
dona da mercearia também podemos concluir que os cidadãos do mundo dos vivos estariam
visitando o país sem chapéu, e foram orientados a abandonar o hábito de comer, com as dicas
desta mulher.

149
“- Il en passe de temps en temps, mais à vrai dice c‟est rare... Sauf quand ils reviennent de Bombardopolis.
- Qui va à Bombardopolis?
- les gens d‟ici, ils ont toujours pris l‟habitude d‟aller là-bas.
- Pourquoi vont-ils précisément à Bombardopolis?
- Je ne sais pas, je n‟y jamais été... Moi, je suis ici pour recevoir les nouveaux qui ne savent pas encore qu‟on n‟a
plus besoin de manger. On a de la dificulte à se défaire de certaines habitudes. Alors, ils arrivent et me
demandent un sandwich et une limonade. Tu comprends, je suis sur leur chemin” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 252).
127

Outras histórias do Pays rêvé também são justificadas nesse capítulo, como o caso do
soldado americano casado que matinha relações extraconjugais com a deusa do panteão vodu
Erzulie, dedicando-lhe dois dias da semana. O narrador-personagem descobre que o
casamento dos deuses haitianos estava em crise e, devido a esta situação, a senhora do desejo
buscava parceiros entre os mortais. Novamente, percebe-se a insinuação do sobrenatural para
eventos que já haviam sido explicados como irracionais: o casamento entre mortais e
divindades. Essa deusa estaria causando um distúrbio no mundo dos vivos que afetavam até
humanos de outras nações.
No segundo capítulo da obra, Marie entrega um espelho à Vieux Os, com o propósito
de ajudá-lo a identificar os zumbis. Agora, nessa última explicação sobre os fatos da nossa
narrativa, o narrador-personagem retoma essa questão. Quando Vieux Os volta do além,
acompanhado de Lucrèce, ele desce o morro L‟Hôpital para atravessar a barreira que divide
os dois mundos: o portão de sua casa. No momento em que vai se despedir do padrinho de sua
tia, ele suspeita que não era mais Lucrèce quem o acompanhava de volta para o mundo dos
vivos.
Com isso, ele procede como Marie o havia indicado. Mediante a suspeita da natureza
do homem que estava com ele, Vieux Os narra sua ação: “[...] Tiro bruscamente o espelhinho
oval que minha mãe me deu para coloca-lo na frente de Lucrèce. Naturalmente, nenhum
reflexo. – Era exatamente o que eu pensava – digo antes de cruzar o portão”150
(LAFERRIÈRE, 1997, p. 206). Apesar de hesitar quanto às histórias de sua mãe, o escritor
demonstra confiar em suas dicas, comprovando que o homem que lhe acompanhou na viagem
não era mais o passador do mundo dos mortos e, nem mesmo, o padrinho de sua tia. Ele não
tinha reflexo. Já que Marie indica que a ausência de reflexo é uma das características do
zumbi, o leitor pode se questionar sobre a possível veracidade do relato da mulher.
Onde estaria a ameaça ao Maravilhoso? O sobrenatural ainda é colocado como
explicação, nas situações citadas até agora. A probabilidade do gênero Estranho reside na
natureza da viagem de Vieux Os ao além, pois esse evento é dotado de certa obscuridade. No
capìtulo antecedente à “Pays sans chapeau”, Vieux Os retorna de sua visita à casa de seus
antigos amigos e vai descansar na cama com sua mãe. A conversa entre eles se desenvolve a
respeito do pai do escritor. O narrador-personagem se cansa e decide dormir. Ele se despede

150
“[...] Je sors brusquement le petit miroir ovale que m‟avait donné ma mère pour le placer en face de Lucrèce.
Naturellement, pas de reflet. – C‟est bien ce que je pensais, dis-je avant de franchit calmement la barreire.”
(LAFERRIÈRE, 1997, p.262)
128

de sua mãe: “– Durma bem, você também”151 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 194). O capítulo
termina com a despedida entre os dois e, em seguida, inicia os episódios do capìtulo “Pays
sans chapeau”:

Sinto uma mão rugosa no meu pescoço. Tenho um sonho estranho e nesse
sonho me perseguem. Uma pequena multidão de pessoas furiosas quer me
pegar. Corro. Normalmente em situações parecidas, consigo sempre
desaparecer no momento crítico. Dessa vez, minhas pernas se recusam a
mover-se. E a multidão se aproxima perigosamente. Alguém acaba me
pegando pelo pescoço. Uma mão rugosa. 152 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196)

Notemos que o inìcio e o fim dessa citação são marcados por um elemento “une main
rugueuse” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 248). A impressão que temos é que Vieux Os está nos
relatando o sonho que teve naquela noite do capítulo anterior. Talvez um sonho aflito, no qual
pessoas o perseguiam e, do nada, ele se sente paralisado. Uma mão o salvaria. O diálogo e a
narração que ocorrem, em seguida, demonstram que há probabilidade desta mão pertencer a
de Lucrèce:

- Está na hora.
- Hein! O que?
O rosto enigmático de Lucrèce na minha frente.
- Devemos ir agora.
- Onde vamos?
- O Senhor vai ver ...
- Ok- digo me levantando -, vou me lavar rapidamente e nos encontramos no
portão.
- Não – Diz secamente. – É uma viagem que a gente faz mantendo o cheiro
do sono.”153 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196)

A forma como Lucrèce aparece não é também muito clara. O narrador-personagem


apenas indica “O rosto enigmático de Lucrèce” 154 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196) que surge do

151
“- Bonne nuit, toi aussi” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 245).
152
« Je sens une main rugueuse sur mon cou. Je fais un rêve étrange, et dans ce rêve, on me poursuit. Une petite
foule de gens en colère veut m‟attraper. Je cours. D‟ordinaire, dans de pareilles situations, je parviens toujours à
m‟envoler au moment critique. Cette fois, mes jambes refusent de bouger. Et la foule s‟approche
dangereusement. Quelqu‟un finit par me prendre par le cou. Une main rugueuse.(LAFERRIÈRE, 1997, p.248)
153
- C‟est le temps.
- Hein! Quoi?
Le visage énigmatique de Lucrèce en face de moi.
- On doit partir maintenant.
- Où va-t-on ?
- Vous verrez...
- Ok. Je dis en me levant, je vais faire un brin de toilette et je vous retrouve à la barrière.
- Non, dit-il sèchement... C‟est un voyage qu‟on fait en gardant sur soi l‟odeur du sommeil. (LAFERRIÈRE,
1997, p.248)
154
“Le visage énigmatique de Lucrèce en face de moi." (LAFERRIÈRE, 1997, p.248)
129

nada, junto com a mão rugosa que destacamos anteriormente. A mão pertenceria mesmo ao
padrinho da tia de Vieux Os? Vieux Os acordou ou ele continua sonhando? Mesmo que na
situação acima fique claro o desejo do narrador em querer se aprontar: “[...] vou me lavar
rapidamente”155 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196), as ações daquele momento não são tão
evidentes em sua narração. Tudo é muito confuso. O leitor fica sem informações precisas do
que aconteceu. Isso pode ser explicado com a adoção do tempo psicológico 156, na narração de
Vieux Os.
Sem dicas de como e quando as coisas estão acontecendo, a Hesitação fantástica
mantém sua forma implícita. O narrador-personagem não oscila, não duvida daquilo que ele
está vivendo. Ele relata com naturalidade tudo o que acontece no além, mas o leitor pode se
questionar se esse capítulo seria a continuidade do episódio anterior de Pays réel. A narração
é um sonho contado em um momento posterior ou seria o principio da narração de um evento
sobrenatural, consistindo numa viagem ao além?
Há um sonho nesta passagem, o problema seria delimitá-lo. Questionamo-nos se ele
continua até o momento em que Vieux Os recebe a visita do deus Damballah, no mundo dos
mortos. Ou seja, até o final deste capítulo que se encerra com uma promessa do narrador-
personagem, na qual ele se compromete em escrever algo sobre os deuses do vodu. Ou se o
sonho se estende até o momento em que Lucrèce surge, despertando o narrador-personagem
para leva-lo ao mundo dos mortos, onde de fato ele vivenciou todo o sobrenatural que o texto
aparenta indicar. Vale salientar que em outras narrativas de Laferrière, como em L’Odeur du
café (2016) ou Le Charme des après-midi sans fin (2016), Vieux Os vivencia sonhos
parecidos com este, nos quais acontecem perseguições ao narrador-personagem infantil.
Nessas duas narrativas há explicitação do sobrenatural em diversos momentos. No entanto,
em nosso corpus o sobrenatural é um paradoxo que se confunde ao sonho e a ilusão da mente
de Vieux Os.
Junto à utilização do tempo psicológico, notemos outro aspecto marcante da narração
de Vieux Os: sua habilidade de promover o “subentendido”. A hesitação fantástica “se
esconde” na inacessibilidade da linguagem utilizada por ele, ao contar como teve acesso ao
além. Com isso, Laferrière cria para o seu narrador-personagem uma distância das resoluções
para com o evento insólito, gerada também pela narração pouco detalhista e raramente

155
“[...] je vais faire un brin de toilette” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 248).
156
Segundo Yves Reuter (2004), as indicações temporais na narrativa, quando são precisas e correspondentes às
nossas noções de tempo da realidade, podem garantir a concretização dos fatos na narrativa. Ela argumenta que o
tempo psicológico, por sua vez, garante a fragmentação temporal e se distancia da percepção real dos fatos na
narração.
130

opinativa. As explicações sobrenaturais são sempre pronunciadas por personagens


secundários, não por ele. Este penúltimo capítulo é o único momento em que, de fato, o
narrador-personagem nos concede um relato experiencial.
O texto garante uma última hesitação, como consequência do efeito de
“estranhamento”157 causado pela narração imprecisa deste sonho. Se reconstituirmos o
percurso feito por Vieux Os, neste capítulo, veremos que há como alegar que este sonho
possui algo sobrenatural. Basta que investiguemos a forma como Lucrèce nega o “despertar”
ao narrador, quando Vieux Os o pede para se lavar. Ele diz que é necessário manter “o cheiro
do sono” para realizar o tipo de viagem que eles estavam prestes a fazer. O que seria essa
condição? Ela pode designar uma forma figurativa para designar o estado crepuscular do
sono; momento em que não se distingue se estamos acordados ou não. Justamente, esta é a
imprecisão sobre o estado físico do narrador-personagem que se impõe ao leitor implícito da
obra.
Silva (2016) argumenta que se considerarmos a ideia de que Vieux Os não acordou e
tudo não passa de um sonho narrado em um tempo distante, estaremos apontando a existência
do gênero Fantástico-Estranho como uma ameaça ao Maravilhoso da obra. Contudo, notamos
que não se trata de tensão permanente dos gêneros. Embora os mistérios que se apresentam
em nosso corpus recebam explicações sobrenaturais, percebemos que a existência do
Fantástico-Estranho é uma sugestão intrínseca à percepção do leitor. Mesmo que neste
capítulo os eventos sobrenaturais recebam novas resoluções, desta vez contada por nosso
narrador-personagem, o leitor pode optar por ignorar as declarações de Vieux Os, voltando-se
para a estranheza de sua narração. Nesse caso, caberá a ao leitor conferir a sobrenaturalidade
ou a inexistência dela aos eventos presentes neste capítulo.
O que acontece na narrativa? Por que o texto não garante a existência deste gênero ou
a indicação do Maravilhoso? O testemunho de visita ao além do narrador-personagem pode
ser considerado mais uma explicação duvidosa sobre os mistérios da obra. É como se ela
fosse mais uma sugestão entre tantas outras fornecidas por personagens da narrativa. Nosso
objeto de estudo não nega a existência do Fantástico-Estranho ou do Maravilhoso, por causa
das características que apontamos em relação a narração obscura de Vieux Os. Os aspectos
que apontamos favorecem ambos os gêneros.

157
De acordo com Todorov (2017), o estranhamento é um sentimento correlacionado a uma imagem originada
ainda na infância do indivíduo, que por vezes pode suscitar medo, espanto, dificuldade de percepção e entre
outras reações.
131

Contudo, a função interna, ou estética, do Fantástico-Estranho é desestabilizar o


sobrenatural. Aqui, ele se impõe como antagônico ao Maravilhoso e, ao mesmo tempo,
convive com este gênero, como um recurso metaficcional. Por que metaficcional? Lembremos
também da possibilidade de estarmos lendo uma obra que “aparentemente” foi escrita pelo
narrador-personagem.
Desde o primeiro capítulo da obra, Vieux Os anuncia seu projeto de escrever um livro,
sobre seu país, e termina este penúltimo episódio, no capítulo “Pays sans chapeau”, com a
promessa da escrita a respeito dos deuses: “[...] escrever um livro sobre esse curioso paìs onde
ninguém usa chapéu158” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 213). Nossas análises sobre a hesitação
fantásticas também impõem que estamos diante do imaginário do nosso narrador-personagem.
Como? A narração de Vieux Os destaca-se pelo procedimento de autorreferência.
Observemos dois recortes que comprovam nossa indicação desta característica na referida
narrativa.
No segundo capítulo, pertencente ao Pays réel, Vieux Os faz sua primeira refeição na
terra natal, na casa de sua mãe. Quando a mulher percebe que seu filho está com calor pede
para sua irmã, Renée, abrir a porta da casa:

- Abre a porta da frente, Renée, faz muito calor a esta hora... Você vai ver,
Velhos Ossos, tem um ventinho gostoso aqui...
Tia Renée corre até a porta que dá para a pequena varanda. Reparo em suas
pernas frágeis e brancas.
- Virou uma obsessão para a Renée... Ela fecha todas as portas. Cada vez
mais, ela se fecha em si mesma. 159(LAFERRIÈRE, 2011, p. 25)

De acordo com a passagem acima, Renée é a responsável por fechar as portas da casa,
como uma atitude de cunho emocional, pois “ela se fecha em si mesma”. Dois capìtulos
depois, no Pays rêvé, a situação é outra. Vieux Os retoma essa passagem a reconfigurando.
Quando Marie, sua mãe, o conta sobre a investida do exército zumbi na cidade de Porto
Príncipe, o filho lhe questiona sobre o que os haitianos têm feito para lidar com o fato da
ameaça desses seres, que perambulam pela cidade em todos os horários do dia. O seguinte
diálogo se apresenta:

158
“[...] écrire un livre sur ce curieux pays où personne ne porte pas de chapeau.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.271)
159
- Va ouvir la porte en avant, il doit faire chaud maintenant, Renée... Tu vas voir, Vieux Os, il y a un bon petit
courant d‟air...
Tante Renée court vers la porte qui donne sur la petit galerir. Je remarque ses jambés frêles et blanches.
- C‟est devenu une obsession chez Renée... Elle ferme toutes les portes. De plus en plus, elle se referme sur elle-
même” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 29).
132

- De dia também?
- Também. À noite são bizangos. De dia, zenglendos. Às vezes, já nem
sabemos se é de dia ou de noite.
- E o que fazemos?
- Fechamos as portas ao meio-dia.
- Ah! é por isso que as venezianas estão sempre fechadas? – perguntei para
tia René, que fingiu não entender.160 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 41)

As venezianas fechadas retomam o fato destacado à pouco. Desta vez, o motivo de se


fechar as portas da casa não está ligado ao emocional de Marie, como na primeira situação.
Nesta passagem são as venezianas do lugar que se encontram fechadas e não permitem que a
luz de fora penetre no ambiente. Por causa disso não há distinção ente o dia e a noite para as
personagens que moram ali. Se no primeiro caso Renée fecha as portas do lar, na indicação de
Marie, agora são todos que praticam o “confinamento”, por causa do medo daquilo que se
apresenta no ambiente externo a casa.
Nosso objeto de estudo possui diversas autoreferências como esta que garantem
confusões entre Pays réel e Pays rêvé. Para nós, este é mais um procedimento adotado por
Laferrière para garantir a característica metaficcional de sua obra. Estamos diante não
somente de uma obra escrita por Dany Laferrière, como estamos diante da imaginação de seu
narrador-personagem, que simula ser o autor da obra que lemos. Essa dimensão da nossa
narrativa propõe outras dúvidas: qual imaginação seria conferida a Vieux Os, a que se
encontra em Pays réel ou em Pays rêvé? Como distinguir ambas? Quais foram os fatos
“inventados” por nosso narrador? Não temos intenção de responder nenhuma dessas
indagações, mas de demonstrar como a ambiguidade de nossa obra solicita outros subgêneros
como o Fantástico-Estranho, o qual intercede por uma discussão sobre o real-imaginário.
O sonho de Vieux Os, considerado como fruto do seu inconsciente, e a auto referência
entre os universos que dividem a obra nos confere uma discussão ocidental acerca do
imaginário. O sobrenatural como fruto do inconsciente seria o campo ideal para uma análise
psicanalítica, de leitura das psiquês do narrador-personagem e do autor Dany Laferrière.
Todorov (2017) indica-nos que a psicanálise é uma ciência estruturalista e, consequentemente,
uma ferramenta para a técnica de interpretação literária: “No primeiro caso, descreve um
mecanismo, aquele, digamos, da atividade psíquica, no segundo, revela o sentido último das

160
“- Le jour aussi?
- Oui. La nuit, ce sont des bizangos. Et le jour, des zengledos. Des fois, on ne sait plus si on est le jour ou la nuit.
- Et que fait-on?
- On ferme les portes à midi.
- Ah! C‟est pour ça que vou gardez toujours les volets fermés. J‟en ai parlé à tante Renée, et elle a fait celle qui
n‟a rien entendu” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 48).
133

configurações assim descritas. Ela responde às perguntas “como” e “o que”” (TODOROV,


2017, p.158).
Entretanto, ele salienta que a análise da pisquê do autor não é algo que possa ser
considerado relevante no viés da crítica literária, já que nosso foco é o corpus e não o autor:
“Supor que a literatura não é senão a expressão de certos pensamentos ou experiências do
autor é condenar de imediato a especificidade literária, atribuir à literatura um papel
secundário, o de médium entre outros.” (TODOROV, 2017, p. 107)
Neste sentido, o linguista búlgaro-francês aponta que essa ciência nos é útil para
delimitar apenas o campo semântico das obras que se utilizam do sobrenatural, como é o
nosso caso. Dentre as diversas temáticas destacadas por Todorov (2017) percebemos que
existem diversos agrupamentos de temas que se destacam, sobretudo, aqueles que se voltam
para o “eu”. O que seria este grupo? Segundo o teórico, trata-se de etiquetas concretas que
podemos atribuir ao sobrenatural, quando este estabelece uma regra de funcionamento
compatível com as leis estruturais universais de outras áreas. Nesse grupo encontram-se as
temáticas que se projetam em relação ao homem; os personagens humanos, e suas reações
diante de acontecimentos insólitos. Neste grupo, foquemos a respeito da experiência dos
limites.
Segundo Todorov (2017), a experiência dos limites está ligada ao gênero Estranho.
Trata-se do sentimento de estranheza gerado a partir das explorações de temas evocados pelo
gênero “[...] os quais se ligam a tabus mais ou menos antigos” (TODOROV, 2017, p. 54).
Nesse raciocínio, quais tabus estariam ligados ao uso do Fantástico-Estranho em nossa obra?
A função do Fantástico-Estranho é garantir a insinuação constante de que tudo narrado em
Pays sans chapeau pode ser fruto da mente do escritor Vieux Os ou Laferrière, heterônimo
que o narrador-personagem também utiliza na obra. Logo, ao trazer à tona mitologemas
enfraquecidos, senão mortos - como vimos no capítulo dois de nossa exposição, Dany
Laferrière pode negar ou não que abordou questões pertinentes à sua cultura materna.
De fato, existem diversos tabus explorados em seu texto, desde o incesto entre deuses
às tensões entre as religiões sincréticas vigentes no Haiti. Contudo, sem tocar estas questões,
bastante exploradas até o presente momento, gostaríamos de falar sobre um aspecto que
aproxima nosso corpus de outras obras desse gênero: o seu pandeterminismo161.

161
De acordo com Todorov (2015), todos os acontecimentos na obra fantástica possuem uma causa, mesmo que
esta seja de cunho sobrenatural. O pandeterminismo é a ideia de que não há “sorte” ou coincidência, tudo
caminha para algo e por alguma razão.
134

No pandeterminismo encontramos a experiência dos limites. A exploração da


causalidade, sendo ela sobrenatural ou não, esconde-se com a hesitação em nosso corpus. Se
no penúltimo capítulo da obra não existe sobrenatural, ainda assim há explicações a cerca dos
demais acontecimentos sobrenaturais da narrativa. Já vimos que há uma linha tênue entre o
real e o imaginário, no sonho de Vieux Os. No entanto há outros detalhes que fazem com que
o Maravilhoso e o Estranho se intensifiquem na obra.
Notemos um detalhe que acontece em nosso corpus, que pode ser facilmente
escapável ao leitor, mas que garante o pandeterminismo na obra. Quando Vieux Os decide
sair em um passeio pela cidade ele cruza com um calango em seu caminho. Reflete sobre as
capacidades de raciocínio do animal e se questiona como este ser se mantém numa cidade
grande, com recursos escassos. Aqui se anuncia a primeira indicação da causalidade no texto:
“[...]A impressão precisa de que tudo foi coordenado de maneira que eu chegasse a tempo de
162
ver esse calango. O objetivo secreto da minha viagem” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 51). As
reflexões de Vieux Os incitam a ideia de que seu regresso ao país tinha um propósito secreto,
mas o que haveria de surpreendente com este animal, além de sua capacidade de
sobrevivência?
A atenção que o narrador-personagem confere a este momento não causa nenhuma
insistência, ou provoca qualquer hesitação. Poderíamos dizer que se trata apenas de um
registro da banalidade cotidiana, porém a sensação atribuída ao episódio é justamente esta do
pandeterminismo. Havia um propósito até neste registro. No capìtulo “Pays sans chapeau”
durante sua caminhada pelo mundo dos mortos, Vieux Os segue em direção à casa da deusa
Erzulie e ele constata: “[...] Há tantos calangos que correm para todo lado em torno de mim
que poderíamos batizar esse lugar de jardim dos calangos” 163 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 202).
Novamente os lagartos no caminho do escritor famoso. Não é coincidência que surjam
tantos calangos no mundo dos mortos? Não. Para a surpresa do leitor, quando Vieux Os se
encontra com a deusa Erzulie, a interferência desses répteis é explicada: “Ela agarra um
calango e lhe dá uma abocanhada.- Estou de regime – Explica - , só me alimento de calangos
atualmente...”164 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 203) Esses sãos os únicos momentos em que esse
tipo de animal recebe atenção na narração. Um detalhe surge como irrelevante e encontra-se
explicado como um fenômeno do sobrenatural e proveniente do onírico.

162
“[...] L‟impression aiguë que toout a été coordonné de façon que j‟arrive à temps pour vois ce lézard. Le but
secret de mon voyage.” (LAFERRIÈRE, 1997, p.61)
163
“[...] Il y a tellement de lézards qui courent partout autour de moi qu‟on pourrait baptiser ce coin le jardin aux
lézards.” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 257)
164
“[...]Elle attrape un lézard et en fait une bouchée. – Je suis en régime, explique-t-elle, je ne me nourris que des
lézards, ces jours-ci...” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 257)
135

O pandeterminismo da obra é o que permite a retomada dos diversos eventos do


restante da narrativa e faz com que o penúltimo capítulo da obra seja o núcleo de explicações,
no qual as naturezas dos eventos insólitos continuaram a oscilar entre real e imaginário. Esse
aspecto da obra desenvolve também a ideia de pansignificação: “[...] já que existem relações
em todos os níveis, entre todos os elementos do mundo, este mundo torna-se altamente
significante.” (TODOROV, 2017, p. 120). Ou seja, o sonho de Vieux Os, sendo ele o meio de
comunicação com o além ou não, nos coloca diante de um mundo de significações e de
sentido profundos. Colabora para a existência do Maravilhoso e ao mesmo tempo do
Fantástico-Estranho e, sobretudo, nos permite múltiplos questionamentos a respeito do poder
do onírico e do subconsciente, como um mundo onde o físico e o mental se confundem e se
tocam. A função do pandeterminismo é esta: a proposta de suspensão das distinções entre
“[...] a coisa e a palavra” (TODOROV, 2017, p. 121).

4 O “sonho” de Vieux Os

A viagem de retorno ao país, feita por Vieux Os, resulta em uma nova experiência: um
encontro com os deuses do vodu, no mundo dos mortos. Sua ida ao além é algo real para ele.
Sua postura para com o sobrenatural é de extrema credulidade. Ele não hesita e nem duvida
que está naquele ambiente. Ainda assim, o momento de passagem entre os dois mundos nos
impõe uma hesitação. Este episódio seria um sonho ou ele vivenciou uma experiência
sobrenatural?
Até o presente momento, ao que diz respeito ao mecanismo dos gêneros em nosso
corpus, nossas análises indicam que a „fórmula‟ utilizada por Laferrière consiste em: a)
estabelecer a dúvida por meio de um discurso figurativo (hesitação fantástica); b) admitir o
sobrenatural por meio de alegorias (fantástico-maravilhoso), para, em seguida, c) insinuar que
tudo é fruto do inconsciente do narrador-personagem (fantástico-estranho). Admitir que a
obra conclui-se com o fantástico-estranho seria confirmar que os acontecimentos misteriosos
são produtos da imaginação fantasiosa de um narrador-personagem, o qual se confunde com o
próprio autor da obra. Apesar de apontarmos a presença do subgênero em questão, a nossa
obra impõe outra possibilidade de gênero que admite o sobrenatural na narrativa. A „viagem‟
de Vieux Os ao país sem chapéu pode também nos conceder uma imagem da expressão
religiosa e cultural haitiana, configurando-se o gênero Realismo Maravilhoso.
136

Chiampi (2015) disserta que, embora este gênero mantenha laços com o projeto
Fantástico e Maravilhoso europeu, ele está além da proposta de fantasticidade e Hesitação.
No texto da teórica, não há uma definição concreta do gênero, mas diversas indicações de
características. Para ela, o Realismo Maravilhoso une o impulso de uma expressão ontológica
das Américas ao conceito de Maravilha:

O maravilhoso é o que contém a maravilha, do latim marabilia, ou seja


“coisas admiráveis (belas ou execráveis, boas ou horrìveis) [...] O
maravilhoso recobre, nesta acepção, uma diferença não qualitativa, mas
quantitativa com o humano; é o grau exagerado ou inabitual do humano,
uma dimensão de beleza, de força ou riqueza, em suma, de perfeição, que
pode ser mirada pelos homens. Assim o maravilhoso preserva algo do
humano, em sua essência.[...] Em segunda acepção, o maravilhoso difere
radicalmente do humano: é tudo o que é produzido pela intervenção dos
seres sobrenaturais. Aqui já não se trata de grau de afastamento da ordem
normal, mas da própria natureza dos fatos e objetos. Pertencem a outra
esfera (não humana, não natural) e não tem explicação racional. (CHIAMPI,
2015, p. 48)

Nesse raciocínio, o Realismo Maravilhoso consistiria na união dessas duas dimensões:


o natural e o sobrenatural. Assim, seu projeto referencia o cotidiano dos países americanos, o
historicismo das nações, o imaginário das sociedades, as discussões humanísticas: como a
condição mestiça, os ideologemas americanos, entre outros.
De acordo com Chiampi (2015), a forma discursiva do Realismo Maravilhoso
compõe-se em sua capacidade representativa. Ele expressa “[...]um espaço cultural, uma
sociedade, uma problemática histórica, com uma perspectiva não documental, mas
integradora das várias faces do real.” (CHIAMPI, 2015, p.135) Assim, o realismo deste
gênero não se equipara da competência detalhista de uma escrita que visa materializar o
objeto, mas uma literatura que consegue evidenciar o real, em sua amplitude e subjetividade, e
consequentemente a „sobrenaturalidade‟ seria também parte constitutiva da realidade de
mundo, como no conceito de Imaginário em Durand (1985), Laplantine e Trindade (1997).
Como este gênero consegue integralizar sobrenatural e natural sem causar rupturas?
Segundo Chiampi (2015), as narrativas realistas maravilhosas costumam libertar-se do
discurso ambíguo ou figurativo, como àqueles que estão presentes nos textos fantásticos. A
estudiosa indica que o narrador e as personagens de uma obra realista maravilhosa não
duvidam ou oscilam diante do sobrenatural, por causa da sua modalidade discursiva. Ela
explica: “A operação consiste em buscar o modo de reunir o natural e o sobrenatural numa
relação não disjuntiva das isotopias e que resulte tanto na oposição com as moralidades
137

realista e maravilhosa” (CHIAMPI, 2015, p. 140). Portanto, os fenômenos sobrenaturais,


observados como “desequilìbrios” na narração do texto Fantástico, agora se comportam de
forma homogênea, no mesmo nível que os acontecimentos naturais na narrativa. O
sobrenatural seria parte integrante da realidade ficcional da obra porque ele é parte
constituinte do real: numa instância cultural.
O reino deste mundo (2014), de Alejo Carpentier, é um exemplo clássico na esteira
deste gênero. Esta obra direciona-se ao Haiti. O narrador, em terceira pessoa, conta sobre
como ocorreu o processo de independência haitiana. Ele narra as diversas metamorfoses que o
negro Mackandal realizou para tornar-se um deus do panteão vodu e, consequentemente, a
arma principal utilizada para expulsar os senhores feudais das terras de Saint Domingue. O
sobrenatural se estende ao ato de sacrifício de um animal, para a realização de um culto aos
Ioas africanos. Como consequência desse ato, o exército de Boukman derrotou as tropas
napoleônicas, libertando a nação.
Alejo Carpentier utiliza-se dos aspectos históricos do Haiti, explora as imagens do
imaginário cultural do povo haitiano, desenvolvendo um enredo voltado para a atuação do
sobrenatural. As diversas transformações espirituais e materiais vividas pelo “ex-humano”
Machandal, desperta orgulho entre os seus amigos e irmãos. Esse personagem alcança a
extrema espiritualidade. Os únicos que se aterrorizam com os eventos são os brancos, mas
nada causa a dúvida quanto aos eventos sobrenaturais que ocorrem na narrativa. O que esta
obra tem em comum com nosso romance? Embora Pays sans chapeau se utilize de hesitações
implícitas e explícitas quanto aos fenômenos sobrenaturais em toda o enredo, esta obra
compartilha da referência à uma ancestralidade espiritual tal como utilizada em O reino deste
mundo (2015). Contudo, o sobrenatural é concretizado no penúltimo capítulo de nosso objeto
de estudo.
O pormenor que nos ajuda a compreender a mudança do Fantástico-Estranho para o
Realismo Maravilhoso seria o elemento do “sonho”. Retomemos os fragmentos da obra, do
inìcio do capìtulo “Pays sans chapeau”. Assim que inicia a narração, Vieux Os conta ao leitor:
[...] Tenho um sonho estranho e nesse sonho me perseguem. 165 (LAFERRIÈRE, 2011, p.
196). Na continuidade de acontecimentos não sabemos se ele acordou ou não, esta é a
hesitação explícita, abordada no tópico anterior. Se o leitor decide que foi apenas o relato de
um sonho, fruto da imaginação do narrador-personagem, narrado em um momento posterior,
estaremos diante do Fantástico-Estranho. Mas caso o leitor decida que tudo aquilo foi uma

165
"[...] Je fais un rêve étrange, et dans ce rêve, on me poursuit."(LAFERRIÈRE, 1997, p. 248)
138

experiência sobrenatural, estaríamos diante do Maravilhoso, já que ele é o subgênero que


admite o sobrenatural como parte da realidade ficcional? Não, pois nesse caso, o referente
“sonho” não implica em um viés sobrenatural. Ele possui algumas conexões com a realidade
extraliterária. O que isto quer dizer?
De acordo com Grondin (1985), no vodu, os Ioas (as divindades) “comunicam-se com
os seus servidores por meio de encarnação (transe), sonhos ou formas humanas” (GRONDIN,
1985, p.80). Com essa informação sobre a comunicação entre deuses e humanos, na religião
de matriz africana, podemos compreender a referência do texto de Laferrière. Assim, o
“sonho” de Vieux Os passa a representar o meio de acesso que os humanos têm para contatar
os deuses e ao mundo deles. Lembremos que ao visitar o além, o narrador-personagem
conversou pessoalmente com as divindades do panteão vodu e após seu retorno o deus
Dambalah, considerado a revelação divina da religião, assumiu a forma humana do professor
J. B-Romain e tentou convencer-lhe a escrever um livro sobre eles. Novamente, se confirma
as referências ao cultural-religioso em nosso corpus.
Ao comentar esse evento da obra, Kwaterko (2002) pondera que a discussão do enredo
se baseia na pluralidade de realidades e, ainda, numa discussão sobre as raízes haitianas. Ele
argumenta que a temática de retorno ao país natal, nesta narrativa, faz parte de uma retomada
dos valores do universo cultural do Haiti. O pesquisador justifica que esse aspecto é uma
característica percebida inicialmente na literatura haitiana atual. Essa literatura tem como foco
o “réenracinement”166; um processo que se fundamenta na reconstrução do passado dos
autores que vivenciaram a diáspora. Para ele, essa literatura mergulha no imaginário haitiano
e ainda se estabelece em todas as línguas dos lugares que os autores exilados percorreram
(KWATERKO, 2002, p.226).
Ainda de acordo com Kwaterko (2002), a mudança de cenário para o mundo dos
mortos, em específico, nos últimos capítulos da obra seria a visita do narrador-personagem ao
plano espiritual. Ele comenta que, nesta passagem, Laferrière trata do irracional e supera a
estranheza com a função de domar totalmente uma espiritualidade ancestral, promovendo sua
visão individual a respeito do próprio país e, sobretudo, das crenças do vodu em questão.
Essas características podem ser percebidas em outros trabalhos do haitiano-canadense; o que
de fato é comprovável em suas obras do ciclo haitiano.
Postos esses fatores, podemos compreender que o gênero literário Realismo
Maravilhoso denota uma função cultural na obra. Sendo assim, o penúltimo capítulo de Pays

166
Aspecto citado no primeiro capítulo de nosso trabalho.
139

sans chapeau encontra-se como a expressões de ideologemas e de uma identidade, a qual


dispensa raízes e procura renovar os laços familiares e culturais com o Haiti. O sonho que
transporta Vieux Os ao mundo dos mortos nos impulsiona a observar a leitura do duplo
significado que o referente linguístico solicita: o sonho como um elemento estranho à cultura
ocidental que desestabiliza o leitor e promove hesitações extremas, ao ponto de não
conseguirmos decidir entre uma coisa ou outra, pois ambas podem se estabelecer. Ainda
assim, tudo aquilo relatado pelo narrador-personagem pode ser parte de seu jogo narrativo;
facetas de uma obra meta-ficcional, ou o sonho é um evento sobrenatural de comunicação
com um universo a ser descoberto pelo leitor.
Esse aspecto remete a outra característica deste gênero, como a exploração de uma
técnica de escrita e linguística: a paródia. Em um pressuposto anti-estruturalista, que intercede
pela mestiçagem literária, Chiampi (2015) estabelece análises próximas ao raciocínio de
Mikhail Bakhtin (1895-1975), ao que concerne a perspectiva linguístico-literária
heterodiscursiva167. Sobre a paródia, Bakhtin (2015) comenta:

O autor parodia ora com maior, ora com menor intensidade esses e aqueles
elementos da “lìngua comum”, às vezes põe a nu sua inadequação ao objeto,
às vezes ao contrário, quase se solidariza com ela, conservando apenas uma
ìnfima distância e às vezes faz sua própria “verdade” soar nela de modo
direto, isto é, funde integralmente com ela a sua voz. (BAKHTIN, 2015, p.
80)

A técnica da paródia, em Bakhtin (2015) é considerada um dos procedimentos mais


explícitos de evidenciar o diálogo dos discursos na narrativa, porém seu sentido sempre está
interligado ao texto épico, que não temos a intenção de discutir em nossas análises, pois nosso
corpus não solicita esse outro gênero narrativo. Contudo, para Bakhtin (2015) a paródia será a
forma que o autor encontra para introduzir as situações sociais – desde os aspectos
linguísticos aos acontecimentos históricos de uma dada sociedade – na literatura.
Em nossa exposição vimos que Laferrière tenta reelaborar a história lendária da
cosmogonia vodu, reformulando os perfis lendários dos deuses, que consequentemente
modifica as imagens míticas religiosas. Ele também atribui a história do exército vodu aos

167
De acordo com Bakhtin (2015), o hesterodiscurso é a diversidade de discursos que encontramos na literatura.
Em sua obra, encontramos uma nota de tradução que exemplifica este termo: “Na terminologia bakhtiniana,
heterodiscurso inclui: dialetos sociais, maneiras de grupos, jargões profissionais, as linguagens dos gêneros, das
gerações e das faixas etárias, das tendências e dos partidos, as linguagens das autoridades, dos círculos e das
modas passageiras, dos dias sociopolíticos e até das horas. Em suma, trata-se de um heterodiscurso social que
traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua
dimensão histórico-antropológica, fecunda a linguagem da prosa romanesca através da dissonância individual de
cada autor em relação ao conjunto do processo literário” (BAKHTIN, 2015, p. 243).
140

eventos históricos haitianos: como às forças armadas haitianas que tiveram pleno exercício na
nação durante o sistema totalitário Duvalier e, ainda, assegura uma proximidade com a
formação do exército negro do contexto de independência do Haiti.
Seriam apenas o sistema religioso e os contextos históricos parodiadas em Pays sans
chapeau? Não. Encontramos também uma paródia sobre a situação econômica e histórica da
nação, vivida na era Duvalier. A investigação de Vieux Os acerca do exército zumbi o coloca
frente aos problemas da cidade de Bombardopolis. Ele descobre que, na verdade, todo o
mistério dos mortos-vivos tinha relação com essa pequena cidade. Em suas primeiras
conversas com o professor J.B. Romain, o escritor famoso procura testificar aquilo que Marie
o havia contado: a história dos sacerdotes vodus que haviam invadido Porto Príncipe para
despertar os mortos do sono eterno. Assim, o sobrenatural do relato da mãe do narrador-
personagem recebe uma nova versão.
Para o professor J. B-Romain, tudo começou quando trabalhadores de uma fazenda, no
noroeste do país, se manifestaram contra o dono das terras em que trabalhavam. Désira
Désilus era o patrão deles. Com a situação descontrolada, esse senhor convocou os soldados
da polícia para colocar um basta na revolta camponesa. Os oficiais não conseguiram controlar
a situação, pois os tiros que atingiam o povo não lhe causava nenhum dano à vida. Sem tantos
detalhes, o professor ainda conta a Vieux Os que os soldados fugiram e fizeram um registro
da situação, encaminhando um relatório ao major Sylva. O presidente do país foi alertado e
em seguida solicitou explicações aos quartéis do ocorrido.
Por último, J. B-Romain conta que um dos soldados do corpo da polícia que estava na
fazenda naquele dia, reconheceu um dos camponeses andando pela cidade: “– E, segundo o
soldado, esse homem estava morto há muito tempo” (LAFERRIÈRE, 2011, p.63). Assim,
concluiu-se que se tratavam de zumbis e que outros mistérios aconteciam no lugar, mas o
professor indica que o escritor procure informações com o seu amigo Legrand Bijou.
Após diversos desencontros o narrador-personagem consegue conversar com esse
psiquiatra. A versão deste homem é bem diferente daquela contada por J. B-Romain. Na
verdade, Bombardopolis enfrenta um recenseamento. Com o propósito de colher informações
para contabilizar o número de haitianos, os Americanos foram para essa cidade e
desenvolveram uma série de entrevistas com os moradores da pequena cidade. A confusão foi
grande, segundo o doutor. As perguntas mais simples se transformavam em diálogos
incompreensíveis. Os haitianos do local não foram compreendidos pelos seus entrevistadores,
porém uma pergunta específica chamou a atenção de todos:
141

“Quantas refeições faz por dia?”. A resposta veio de chofre: “Uma por
trimestre”. “Uma o que por trimestre?” “Uma refeição, senhor.” “E em que
consiste essa refeição?” “Um prato de arroz com um pedaço de carne de
porco.” “E nos outros dias?” “Nada.” “Como nada?” “Nada, não como nada”
[...] três especialistas ficaram por volta de uma semana em Bombardopolis,
da primeira vez. Segundo eles, os moradores da cidadezinha de
Bombardopolis não ingeriram nada, nem mesmo um copo d‟água, durante a
estadia deles lá.168 (LAFERRIÈRE, 2011, p. 80)

O pesquisador chefe foi alertado e solicitaram a presença de outros pesquisadores que


os observaram por vinte dias, porém todos permaneceram em jejum. Para pesquisar mais
seriamente aquela conjuntura, convocaram uma poderosa organização americana, a Food and
Drug Administration, que passou três meses na cidadezinha, comprovando que somente após
esse trimestre as pessoas manifestaram desejo de comer. Para o psiquiatra, isso rapidamente
virou um segredo de Estado. Cercaram a cidade com arame farpado e os americanos
começaram as atividades para descobrir o que acontecia com as pessoas de Bombardopolis.
Para Vieux Os, tal revelação seria de suma importância, pois poderia resolver a
questão da fome. O doutor oferece o contra-argumento de que isso seria um desastre para as
organizações alimentícias, podendo quebrar o sistema capitalista e originar uma má reação, já
que, segundo a CIA, “[...] a fome ainda é a mais poderosa arma...”169 (LAFERRIÈRE, 2011,
p. 81-82) O psiquiatra confessa que, por um momento, os americanos pensaram mesmo em
dizimar todos os habitantes de Bombardopolis, e que não o fizeram por causa da ambição
científica dos americanos. Eles só descansariam quando descobrissem porquê de os
moradores de lá são indiferentes à fome.
Esses eventos na cidade de Bombardopolis aparentam expressar as problemáticas
econômicas enfrentadas pelos haitianos que Grondin (1985) costuma discutir em seus estudos.
Diante do contexto de produção rural no Haiti, esse estudioso expõe um período muito
conturbado que a nação enfrentou durante o mandato de Baby Doc Duvalier. O historiador e
economista registra em seu livro Haiti: cultura, poder e desenvolvimento, as consequências
das interferências norte-americanas no país. Segundo ele, os Estados Unidos e o Canadá
foram dois países que apoiaram pesquisas no meio rural, com a finalidade de compreender as
necessidades dos Paysans, visando o combate à fome e a concretização de uma economia que
rendesse capital interno e externo.

168
“Combien de repas prenez-vous par jour?” La réponse fusa: “Un par trimestre” Un quoi par trimestre?” “Un
repas, monsieur.” “Et en quoi consiste ce repas?” “Un plat de riz avec un morceau de viande de porc.” “Et les
autres jours?” “Rien.” “Rien quoi?” “Rien, je ne mange rien” [...] Les trois experts sont restés près d‟une
semaine à Bombardopolis, la première fois. Selon eux, les habitants de la petite ville de Bombardopolis n‟ont
rien pris, même pas un verre d‟eau, durant leurs séjour là-bas” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 95)
169
“[...] la faim reste encore la plus puissante arme...” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 97)
142

Grondin (1985) relata nomes de empresas e organizações que promoveram


“excursões” ao campo; como a Food and Drug Administration, referenciada em nosso corpus.
Essas corporações diagnosticaram a precariedade vivida nos lugares mais remotos do Haiti.
Apesar deste contexto, foram apontadas diversas alternativas para sanar os problemas da
classe “marginalizada”. De acordo com Grondin (1985) todas as soluções voltavam-se para
uma necessidade: tomar medidas que privilegiassem o público considerado a “força braçal”, a
classe trabalhadora. O teórico aponta que para ocorrer o avanço tecnológico e econômico, em
um patamar suficiente para tirar o país da miséria, seria necessário que o governo tomasse
medidas para o aperfeiçoamento daquilo que já estava em processo de desenvolvimento.
Neste caso, Grondin (1985) opina, enquanto economista, que as necessidades
principais seriam: a) investir nos pequenos agricultores e nas organizações familiares, ditas
primitivas por causa do seu modo organizacional comunitário (lakou 170), b) aperfeiçoar a
educação básica com propostas que visem as identidades múltiplas do país, como o ensino do
créole e das etnias, entre outras. No entanto, os ditadores não colocaram em prática nenhuma
proposta que visava os beneficiários da classe inferior, posto que a burguesia do país era
beneficiária do poder Duvalierista.
Os fragmentos citados aqui, a respeito de Bombardopolis, parodiam não só o histórico
e religioso, mas deslocam a discussão para o eixo econômico, sobrecarregando a questão com
o teor sobrenatural que beira uma ficção cientìfica. O “super desenvolvimento” dos haitianos,
em nossa obra, também coopera para a discussão de uma realidade fatídica, como
consequência do sistema político que explorou a classe pobre haitiana.
Deste modo, a paródia em Laferrière não é utilizada com a finalidade de recontar a
história ancestral da independência haitiana, como em Alejo Carpentier (2015). Essa técnica é
um modo de recompor a história, concedendo um final distinto daquele já conhecido. Nesse
caso, a paródia reconta as problemáticas haitianas, fundindo história e imaginário. Não seria
essa a definição do Realismo Maravilhoso de Chiampi (2017)?

170
De acordo com Grondin (1985) o termo lakou, em língua créole, designa o pátio: o conjunto de casas
pertencentes às famílias ancestrais. Comunidades de grandes extensões de terras que possuem um sistema
interno cultural, como sua própria cultura (religião vodu, regras de comportamento, código de ética, entre
outros), e econômico.
143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nosso primeiro trabalho, As hesitações fantásticas em Pays sans chapeau: uma


leitura sobre o aspecto cultural em Dany Laferrière (2016), pré-requisito para a conclusão do
curso de Licenciatura em Letras pela UFPB, constatamos a presença das hesitações
fantásticas, a partir das dúvidas do narrador-personagem. Nesta primeira experiência
acadêmica já percebíamos a dificuldade de atrelar a referida obra às teorias estruturalista
europeias, em sua totalidade. À princìpio assumimos que “[...] Laferrière possui as métricas
estabelecidas por Todorov (2013), mas ultrapassa as linhas estipuladas por esse teórico”
(SILVA, 2016, p.54). Esse argumento era sustentado pela hipótese de que o autor haitiano-
quebequense era um escritor que mantinha uma estética particular do gênero dramático auto.
Ou seja, o sobrenatural complexo de sua obra era sua forma única de expressão artística, que
por vezes se enquadrava nas métricas estruturalistas.
Nesta fase, não tínhamos ainda conhecimento acerca da tradição literária do Realismo
Maravilhoso nas produções haitianas, bem como a propagação deste gênero nas Américas.
Portanto, não conseguíamos explicar as diversas ambiguidades que nosso autor nos propunha.
Consequentemente, atribuíamos às discussões sociais à mensagem moral que o gênero
Maravilhoso europeu “solicita”. Confiávamos plenamente em nossas leituras europeizadas, as
quais são comprovadas nesta nova fase de nossa crítica. Realmente há características dos
subgêneros do Fantástico europeu, em nossa narrativa, como constatados em nossas análises a
respeito do Fantástico-Maravilhoso e do Fantástico-Estranho. O que faltava, então? Não
tínhamos visto as outras faces da literatura de Dany Laferrière.
O aspecto cultural, analisado pela crítica que visualizava o inconsciente de um
narrador-personagem, se limitava a leitura prematura do religioso haitiano. Com o tempo
necessário e o adicional de outras perspectivas, como a Dialética, nossas preocupações
evoluíram e chegamos ao Realismo Maravilhoso. A adesão deste gênero em nossas análises,
no presente momento, nos possibilitou a leitura de um sobrenatural ancestral e histórico,
proveniente de uma tradição cultural do imaginário. Contudo, nossas dificuldades consistiam
em explicar a alternância de gêneros aparentemente distintos em Pays sans chapeau, nos
questionando quanto às funções desses gêneros na narrativa de Laferrière.
Agora, com a intenção de compreender as problemáticas dos gêneros literários
Fantástico e seus variantes, investigando as hesitações implícitas e explícitas em Pays sans
chapeau, e a possível convivência destes com um gênero de perspectivas divergente: o
Realismo Maravilhoso, desencadeamos uma discussão quanto aos referentes extraliterários.
144

Nossa hipótese apontava que a convivência entre esses gêneros literários fazia parte de uma
divagação sobre o imaginário cultural haitiano, como uma proposta crítica do projeto
escritural de Dany Laferrière. Após as diversas reflexões no campo das discussões dos
gêneros literários e do imaginário, desenvolvidos aqui, é necessário que explicitemos nossas
conclusões.
Em primeiro, a insistência do sobrenatural em nosso corpus faz parte de uma tradição
estético-literária, que mantém diálogo com o mundo real, tais como os fatos históricos
haitianos. A presença da tradição, sobretudo literária, é abundante em Pays sans chapeau,
uma vez que essa obra se apresenta em sincronia com os movimentos literários haitianos
anteriores a ela; aspecto que foi observado a partir da presença do movimento Indigénisme, do
Realismo Maravilhoso, das ideias marxistas e da estética da degradação, na escrita
contemporânea em Laferrière.
Quanto aos fatos históricos, percebemos uma pluralidade de situações aparentemente
sobrenaturais que referenciam o cotidiano de uma nação sob intervenção. Apesar da ditadura
no país já ter acabado no ano da publicação da nossa narrativa, a obra demonstra discursos a
respeito de vários momentos históricos do Haiti: a ocupação norte-americana, as mortes
misteriosas, as ondas de violência que se instalou sob o pretexto de uma religiosidade
ancestral, durante a ditadura militar. Nossas análises demonstram que os diversos
pronunciamentos, presentes em nosso corpus, a respeito do sistema político totalitário que
baniu o autor surgem por intermédio das alegorias referentes à morte, nas quais percebemos
as denuncias das várias formas de alienação e miséria em que a população haitiana se
encontrava.
Em segundo, a obra de Laferrière resguarda certos elementos e eventos que
referenciam o campo do imaginário coletivo. Com nossa leitura acerca deste imaginário,
comprovamos que a narrativa imprime as diversas problemáticas vividas no Haiti, no campo
religioso. Desta maneira, o autor aborda os preceitos de uma África mística, tecendo críticas
incisivas à supervalorização cultural africana, que pode ser considerado como mais uma
característica de resistência ao sistema Duvalierista. Lembremos que Papa Doc se apropriou
do discurso ancestral africano para a manipulação e controle da classe pobre, promovendo
uma identificação entre ele e o público eleitor, com fins de auto beneficiar-se (GRONDIN,
1985).
Nesse viés, haveriam possíveis justificativas para uma ruptura com os mitologemas,
em nosso romance. Se a ditadura haitiana adotava as imagens dos deuses como o símbolo de
resistência, e foi por causa deste sistema político que o jornalista Dany Laferrière foi banido,
145

podemos inferir que o autor promoveria a ruptura por meio de uma reconstrução da
espiritualidade ancestral e do imaginário coletivo, em sua obra. As imagens dos deuses que
investigamos, em Pays sans chapeau, devem ser consideradas uma nova expressão ideológica
de identidade, que dispensa raízes estritamente africanas e que procura renovar os laços
familiares e culturais com um Haiti; que está se libertando de imposições culturais, na busca
pelo reconhecimento da miscigenação.
Outro aspecto que se destaca, a partir da leitura do imaginário no romance, é a
representação de conceitos distintos. Durante nossa exposição, nos deparamos tanto com
ideias niilistas e ocidentais quanto com as expressões do imaginário haitiano: a espiritualidade
ancestral e o sincretismo católico vivido na nação. Tendo em vista estas premissas, o autor
adota o procedimento de referência às múltiplas realidades, para arquitetar os gêneros
literários em Pays sans chapeau.
Finalmente, observamos que os gêneros literários adotados em Pays sans chapeau
podem ser explicados por meio dessa múltipla referência às diversas realidades. Ou seja, os
gêneros literários se alternam na narrativa conforme o referente extraliterário é solicitado pelo
referente literário de duplo sentido. Assim, não há apenas hibridismos no referido romance,
constatamos que existe a possibilidade da existência de cada gênero analisado em nosso
estudo. É possível que uma obra detenha tamanha abertura?
Diversos teóricos, como Todorov (2013; 2017), inferem que o leitor do Fantástico
pode decidir entre a concretização do sobrenatural ou sua ausência, enquanto outros teóricos,
como Roas (2015), indicam que apenas o texto pode garantir o sobrenatural. O referente
extraliterário, para ambos, é completamente dispensável, o que para nós tornou-se
fundamental. Nosso objeto de estudo nos demonstra que o referente extraliterário, quando
detém um duplo significado, pode interferir na concretização do gênero literário, ao que diz
respeito ao sobrenatural. Assim, a alternância de gêneros é consequência do uso frequente de
elementos e eventos insólitos que denotam múltiplos sentidos, algo que foi observado em
nossas análises sobre o “sonho” de Vieux Os e sua inclinação tanto ao Fantástico-Estranho
quanto ao Realismo Maravilhoso e, ainda, a respeito das variedades de significações
atribuídas à morte.
Portanto, elementos e/ou eventos insólitos, que possuem múltiplas significações e que
suscitam a percepção de mais de uma realidade extraliterária, podem garantir uma mudança
completa de gênero na narrativa. Considerar o referente extraliterário como parte integrante
do texto é uma inovação para os estudos do Fantástico em nossa contemporaneidade. Esse
146

pode ser o princípio colaborador para uma crítica do Neofantástico, um gênero que ainda
passa por transformações, mas que se insere no rol de literaturas de resistência.
Além disso, compreendemos que os fenômenos da escrita de Dany Laferrière
solicitam teorias opostas por causa da utilização de elementos díspares, tanto nos
questionamentos a respeito do sobrenatural quanto acerca do intertexto que se sobrepõe ao
teor insólito; numa crítica às opressões. Nesse contexto, podemos observar que a alternância
dos gêneros em Pays sans chapeau viabiliza um encontro entre a fantasia da literatura
europeia; a imaginação de um narrador-personagem – e o imaginário ancestral americano – a
viagem ao além.
Com isso, percebemos que ao estudar os gêneros literários em Laferrière, nos
deparamos com paradoxos que lhe aproxima de intelectuais americanos, os quais também
vivenciaram os complexos identitários. Cabe aqui, lembrarmo-nos das reflexões do
historiador e literato Alfredo Bosi (2013), quanto os estudos de Jorge Schwartz (1944-) sobre
as vanguardas latino-americanas e os diversos homens das letras que possuíam uma aguçada
sistematização interna, da instância cultural, representadas nas artes destes. Em seu livro,
Entre a literatura e a história (2013), o autor comenta:

Basta atentar para a fecundidade de alguns desses itinerários quando vividos


por intelectuais como Vellejo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Borges, Carpentier ou Mariátegui; e basta deter-se na forjadura de certos
conceitos polêmicos (como “nacionalismo pragmático” e “nacionalismo
crìtico” de Mário; “antropofagia”, de Oswald; “nação incompleta”, “esboço
de nação”, de Mariátegui; ou, em outra perspectiva, “realismo mágico”, de
Astúrias, e “real maravilhoso”, de Carpentier) para reconhecer nessas
invenções de pensamento e fantasia o trabalho de uma razão interna e a
expressão de uma fome de verdade. (BOSI, 2013, p.208)

Para Bosi (2013), os projetos desses autores modernos anunciavam um funcionamento


interno, que mescla paradoxos tanto temáticos quanto estruturais, por causa de uma busca
pelo reconhecimento da fecundidade proveniente da miscigenação. Com nossa leitura sobre as
existências dos gêneros literários: europeu e americano, em Pays sans chapeau, nos
deparamos justamente com essa “razão interna” dos vanguardistas latino-americanos. Não que
nosso autor seja um vanguardista, mas sua literatura nos aproxima das Américas com
discussões pertinentes ao eixo americano modernista.
Portanto, os procedimentos estéticos adotados por Laferrière para personificar o
sobrenatural e, consequentemente, desestabilizá-lo com preceitos de outras realidades, nos
147

revelam um projeto autoral que reafirma os laços com a memória secular de uma tradição
literária americana.
Se na introdução deste trabalho nos questionamos quanto ao sucesso de nosso autor e a
possível distinção entre suas produções e as literaturas da pátria mãe, agora nos voltamos para
as seguintes afirmações: o sucesso de Laferrière pode ser explicado por sua capacidade de
saciar sua “[...] fome de verdade” (BOSI, 2013, p. 208), que intercede pela reafirmação da
miscigenação continental, para além do viés nacionalista-haitiano/quebequense. Essa
característica nos revela a sua própria condição intelectual, um escritor negro, que ocupa uma
cadeira na Academia Francesa de Letras como um imortal da literatura francesa, que publica
as suas produções pelo Canadá, com obras multifacetadas e de estilos híbridos. Ou seja, um
escritor americano que se expressa em língua francesa, sobre as diversas realidades de um
território miscigenado, tanto em raça quanto em perspectivas.
148

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