Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
24
cadernos temáticos CRP SP
A potência da psicologia obstétrica
na prática interdisciplinar: uma
análise crítica da realidade brasileira
XV Plenário (2016-2019)
Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira
Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Organização do caderno
Jamille Georges Reis Khouri e Beatriz Borges Brambilla
Revisão ortográfica
Andrea Vidal
___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise
crítica da realidade brasileira. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. -
São Paulo: CRP SP, 2019.
52 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 24)
ISBN: 978-85-60405-52-7
CDD 155.91
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.
07 Apresentação
Abertura
09 Paula Machado
11 Miria Benincasa
Palestras
14 Fernanda Lopes
34 Valeska Zanello
46 Alessandra Arrais
Apresentação 7
uma análise
Psicologia
e desastres
interdisciplinar: em da realidade
emergências
crítica brasileira
e desastres
O Centro de Referências Técnicas de Psicologia e temos nos perguntarmos sobre a nossa formação
emergências
Políticas Públicas (CREPOP) tem em suas atribui- social e histórica, que fundamenta e forma as nos-
ções o desenvolvimento de materiais de orienta- sas relações de classe que estão na estrutura da
em CRP SP
ção para a categoria a partir de metodologias par- dominação e exploração das mulheres e do povo
na prática
ticipativas e colaborativas. A prática profissional negro e na diáspora. Tal constatação muito diz so-
Temáticos
das psicólogas e psicólogos possui centralidade bre a realidade das mulheres, especialmente das
Psicologia
na produção das referências. Ao longo de 2018, o mulheres negras em nosso país no que tange as
obstétrica
CREPOP realizou entrevistas com psicólogas e psi- vivências de violência obstétrica.
SP Cadernos
cólogos de todo o Estado de São Paulo, buscando
Nossa história é marcada pelo genocídio e
conhecer as práticas da Psicologia em Direitos Se-
pelo extermínio dos indígenas, pelo culto ao es-
psicologia
xuais e Reprodutivos.
tupro das mulheres nas relações de colonização,
Nessa pesquisa, ouvimos, nas 10 regiões com uma objetificação histórica desses corpos,
potência da CRP
do Estado de São Paulo, as/os psicólogas/os que com relações de exploração sexual de trabalha-
A Temáticos
são referência em sua área de atuação, especial- doras que vinham nas caravelas e eram explo-
mente na interface das maternidades, dos direitos radas pelo europeus em sua força de trabalho e
relacionados à autonomia das mulheres, do abor- também sexualmente, das mulheres escravizadas
tamento legal, das questões relacionadas à Rede e sequestradas da África, que, além do trabalho
Este caderno é, portanto, fruto dessa pes- As mulheres são uma força de trabalho que
quisa e de seus desdobramentos estaduais, com é cotidianamente explorada no mundo formal e no
a formação de um Grupo de Trabalho em Psicologia mundo informal; nas muitas horas em que atua-
e maternidades. No Grupo de Trabalho, os debates mos nos cuidados sem remuneração, sendo tam-
entre as/os psicólogas/os têm tido centralidade na bém a máquina do processo de reprodução social.
discussão da realidade obstétrica brasileira. São O corpo das mulheres, historicamente dominado
psicólogas/os que atuam na rede de atenção à pelo patriarcado, pelo racismo e pelo capitalismo,
saúde pública, psicólogas hospitalares, psicólogas nos leva a compreender as bases liberais que sus-
das maternidades e psicólogas que estão no cam- tentam o mito do amor materno.
po da justiça, especialmente da Defensoria Pública.
Reconhecemos a maternagem e a materni-
Temos considerado que o debate sobre dade como um fenômeno socialmente construído,
Psicologia e obstetrícia ou psicologia obstétrica em que as mulheres devem ter autonomia da es-
exige que consideremos a Psicologia na realidade colha e do modo como construirão suas experiên-
obstétrica de um país como o Brasil. Para tanto, cias. A Psicologia deve debater a autonomia dos
corpos e a ruptura das relações hierárquicas de lhavam, outras se recusavam a deixá-los sozi-
8
poder desnaturalizando a maternidade. nhos e tentavam trabalhar normalmente com eles
presos às costas. Um ex-escravo descreveu um
Ser mãe deve ser uma escolha e, mais do que
caso desses na fazenda em que vivia: diferente
isso, ninguém é mãe sozinha; mães compartilham
de outras mulheres, uma jovem se recusou a dei-
com as famílias, com colegas e com a sociedade.
xar seu bebê no fim da fileira em que trabalhava e
Uma sociedade que culpabiliza, violenta e estig-
inventou uma espécie de mochila, feita de trapos
matiza as mulheres como seres para a maternida-
de lençóis, na qual ela prendia a criança, muito
de, sem problematizar os significados disso, é uma
pequena, nas costas; e ficava assim o dia todo,
sociedade que produz violência e sofrimento.
usando a enxada como os outros. Em outras fa-
Por fim, consideramos fundamental reconhe- zendas, as mulheres deixavam seus bebês aos
cer que não há maternidade ideal ou hegemônica, cuidados de crianças pequenas ou de escravas
teremos que pluralizar para singularizar e compre- mais velhas, fisicamente incapazes de realizar o
ender, assim, cada vivência objetiva e subjetiva trabalho pesado da lavoura. Impossibilitadas de
das maternidades. amamentar ao longo do dia, elas suportavam a
dor causada pelo inchaço das mamas. Em um dos
“A maioria dos proprietários utilizava um
relatos mais populares do período, Moses Grandy
sistema de cálculo do rendimento do trabalho
descreve a difícil situação das escravas que eram
escravo com base nas taxas médias de produti-
mães: na fazenda a que me refiro, as mulheres
vidade exigida. As crianças, assim, eram frequen-
que tinham bebês em fase de amamentação so-
temente consideradas um quarto de força de tra-
friam muito quando suas mamas enchiam de leite,
balho. Em geral, as mulheres eram uma força de
enquanto as crianças ficavam em casa. Por isso,
trabalho completa – a menos que tivessem sido
elas não conseguiam acompanhar o ritmo dos ou-
expressamente designadas para as funções de
tros: vi o feitor espanca-las com chicote de couro
“reprodutoras” ou “amas de leite”, casos em que
cru até que sangue e leite escorressem, mistura-
às vezes sua força de trabalho era classificada
dos, de suas mamas” (DAVIS, 2016, p.21)
como incompleta. Obviamente, os proprietários
buscavam garantir que suas “reprodutoras” des- Desromantizar é um princípio e acolher é um
sem à luz tantas vezes quantas fosse biologica- dever. As mulheres devem ter o direito de decidir
mente possível. Mas não iam tão longe a ponto de e, para isso, precisam receber amparo. Nós, psicó-
isentar do trabalho na lavoura as mulheres grávi- logas e psicólogos, fundamentados na ciência e
das ou as mães com crianças de colo. Enquanto nos princípios éticos, devemos nos posicionar com
muitas mães eram forçadas a deixar os bebês responsabilidade pelo fim de todas as formas de
deitados no chão perto da área em que traba- violência obstétrica contra as mulheres.
Abertura 9
Paula Machado
Defensora pública do estado de São Paulo e coordenadora do Núcleo
brasileira
especializado de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres.
uma análise
Psicologia
e desastres em emergências
crítica e desastres
da realidade
A intenção da minha fala é apontar o que a De- são vistas como cidadãs quando a gente fala
interdisciplinar:
fensoria e o Núcleo da Mulher vêm trabalhando de direitos sexuais e reprodutivos no panorama
emergências
nesse tema. Desde o início do núcleo, o tema da do Brasil. Quando a gente fala das mulheres ne-
violência obstétrica vem sendo acompanhado, gras hoje, muitas não conseguem nem ter aces-
SP
porque, no Brasil, infelizmente, as mulheres são so à anestesia. Esse direito é negado a partir
em CRP
despidas da sua cidadania antes, durante e de- de falas como: “as mulheres negras são mais
na prática
Temáticos
pois do parto. É impressionante como se nega fortes”, “as mulheres negras têm um físico que
Psicologia
a elas o direito à informação, a forma como são aguenta a dor”. Infelizmente, estamos em um
silenciadas, como intervenções no seu corpo cenário em que precisamos ajuizar ação para
obstétrica
SP Cadernos
são realizadas sem sua autorização. É muito as mulheres terem acesso à anestesia durante
chocante a gente constatar que é realizada o trabalho de parto.
uma episiotomia1 sem que essa mulher seja
psicologia
É esse o cenário que temos. E, quando a
informada, ou a ameaça que essas mulheres
gente desloca essa discussão para as mulheres
ainda sofrem no momento do parto para que se
potência da CRP
encarceradas – que já são, por estarem em cár-
mantenham silenciadas ou têm a alimentação
A Temáticos
cere privado, desconsideradas em seus direi-
negada durante o trabalho de parto. As rela-
tos –, constatamos que os bebês ao completar
ções estruturais de poder, de machismo e racis-
seis meses são separados de suas mães, des-
mo estão muito presentes nesse momento da
considerando que essa mulher tem o direto de
da realidade
emergências brasileira
e desastres
Este encontro é o resultado de algumas reuniões recursos, em nossa bagagem, para promover mais
crítica
que vêm sendo realizadas com profissionais que tra- saúde do que doença, para realizar ações de pre-
venção à violência e para lidar com as consequên-
em
balham com a saúde sexual e reprodutiva nos mais
uma análise
cias das práticas violentas. Além disso, reconhe-
Psicologia
variados equipamentos de saúde e de pesquisa. Ini-
e desastres
cialmente, foi sugerida a adoção do termo “violência cemos que a violência obstétrica é mais praticada
obstétrica” para este encontro, em função de tudo quanto mais pobre, quanto mais negra e quanto
isso que vem sendo dito, do quanto é frequente o mais jovem for essa mulher, ou seja, estamos lidan-
interdisciplinar:
impacto da violência e de suas consequências na re- do com questões que estão além das dimensões do
emergências
alidade brasileira. Posteriormente, nos pareceu mais evento do parto, mas que se materializam ali, na-
SP
honesto o termo “psicologia obstétrica” por estar- quele momento, com aquela mulher.
em CRP
mos refletindo sobre os recursos que a psicologia
Optamos pelo termo “psicologia obstétrica”
na prática
Temáticos
tem para lidar com a nossa prática na maternidade,
mais especificamente, mas eu estou sugerindo que
Psicologia
na Unidade Básica de Saúde (UBS), na UTI neonatal e
seja a psicologia na realidade obstétrica que conhe-
em outros tantos lugares. Pensando nas discussões
cemos, por inserir temas transversais e que serão
obstétrica
presenciais que tivemos e em algumas outras dis-
SP Cadernos
refletidos aqui, tais como maternidade compulsó-
cussões virtuais, me vieram as seguintes questões:
ria, maternidade romantizada, parentalidade, abor-
O que a psicologia tem a ver com tudo isso? O que é
tamento, direito sobre o próprio corpo etc. Esses
psicologia
relevante pra iniciarmos essa discussão?
temas estão associados mais ao termo “psicologia
Acredito que aqui seria pretensioso a gente fa- na realidade obstétrica” do que especificamente
potência da CRP
lar de psicologia obstétrica – talvez devêssemos fa- à “violência obstétrica”. Por fim, acatamos o termo
A Temáticos
lar de psicologia na realidade obstétrica que conhe- “psicologia obstétrica” para convidarmos vocês a
cemos. No Brasil, estamos entre as piores realidades acionarem os recursos teóricos, técnicos, éticos e de
obstétricas do mundo. Somos líderes em cesárea resistência da psicologia a fim de lidar com os fenô-
brasileira
e desastres
da realidade
Letícia da Silva Moura
emergências
Psicóloga no Ambulatório de Atendimento às Doenças Transmissíveis de Cubatão.
crítica
Mestranda em Ciências da Saúde pela Unifesp Baixada Santista, colaboradora e
membro do Núcleo de Psicologia e Relações Etnicorraciais do CRP SP e Baixada
em
Santista. Atua no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, é
uma análise
Psicologia
pesquisadora da temática do racismo e saúde mental da população negra.
e desastres
Letícia, mediadora da mesa, antes de convidar as pa-
interdisciplinar:
lestrantes, recita um poema da Conceição Evaristo:
Temáticos
Psicologia
obstétrica
SP Cadernos emergências
em CRP
na prática SP
Vozes-mulheres
psicologia
A voz de minha bisavó ecoa versos perplexos
potência da CRP
ecoou criança com rimas de sangue
A Temáticos
nos porões do navio. e fome.
ecoou lamentos
brasileira
de aprendizado. Tem uma psicóloga pesquisadora que branco é uma raça; a gente pensa que raça
e desastres
muito interessante, que é a Lia Vainer Schucman1, é só a raça negra. No máximo, a gente vai pensar
que trabalha com branquitude, que fala que te- nos indígenas, talvez nos japoneses, mas branco
da realidade
mos o racismo por adesão e o racismo por apren- não é raça, porque nós pensamos que o branco é
emergências
dizado. O racismo por adesão é aquele que a Ku a norma. E quando falamos que enxergamos to-
Klux Klan tem, que afirma “não gosto de negros” dos como iguais – dentro da ideia da democracia
e coloca isso de maneira ostensiva. O racismo racial –, na verdade estamos enxergando todo
crítica
no Brasil é um racismo por aprendizado, porque mundo como branco. Quando dizemos: “Mas eu
em
a gente aprende que há lugares para brancos e vejo todos como iguais, na minha clínica não faz
uma análise
Psicologia
há lugares para negros. Mesmo que a gente diga sentido racializar ou colocar no preenchimento
e desastres
e a gente estude, a gente aprende isso no dia a da anamnese em uma UBS, por exemplo, qual é a
dia, na hora em que a gente chega na faculdade raça, a cor… não faz sentido, porque eu vejo todos
interdisciplinar:
de psicologia e os professores são brancos e a como iguais”. Quando eu digo que estou vendo
emergências
faxineira é negra; na hora em que a gente chega todos como iguais, estou dizendo que vejo todos
no consultório e a recepcionista é negra e os mé- como brancos, e essa é uma ideia que está den-
SP
dicos são brancos; na hora em que a gente chega tro da branquitude. A branquitude é ver o mundo
em CRP
na escola. Enfim, vocês podem pensar em 300 si- como branco e entendê-lo como neutro.
na prática
Temáticos
tuações que elas vão caber nessa ideia de que o
Psicologia
racismo é feito de aprendizado.
“Então, quando falamos
obstétrica
do racismo institucional ou
SP Cadernos
“Quando eu digo que estou vendo
estrutural, estamos falando de
todos como iguais, estou dizendo
psicologia
atos que não são explícitos.
que vejo todos como brancos, e
Ele atua de maneira difusa no
potência da CRP
essa é uma ideia que está dentro
cotidiano das instituições e
A Temáticos
da branquitude. A branquitude
organizações, e isso vai gerar
é ver o mundo como branco e
uma ampliação da desigualdade
entendê-lo como neutro”
Isso é um efeito direto dos 400 anos de Já o racismo institucional ou estrutural tem
escravidão que vivemos aqui no Brasil e de ape- uma definição que eu acho bem bacana, que diz
nas 130 anos de abolição da escravatura. Uma que ele é um racismo que não se expressa em
abolição da escravatura após a qual boa parte atos explícitos, declarados, como xingamentos.
da população negra ainda encontra seu lugar A gente acaba, às vezes, associando o racismo
de existência na servidão. Quando pensamos na apenas àquela ideia de “Eu xinguei o jogador de
história dos lugares sociais e nas características futebol de ‘macaco’, eu chamei aquela assisten-
te social de ‘fedida’”. Então, quando falamos do
racismo institucional ou estrutural, estamos fa-
1 Psicóloga, mestra em Psicologia pela Universidade Federal de
Santa Catarina, doutora em Psicologia Social pela Universida- lando de atos que não são explícitos. Ele atua
de de São Paulo (2012). Realizou como bolsista da Fapesp, a de maneira difusa no cotidiano das instituições
pesquisa de pós-doutoramento “Famílias Inter-raciais, estu-
do psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familia- e organizações, e isso vai gerar uma ampliação
res” pela Universidade de São Paulo (2016). Realiza estudos e da desigualdade e das inequidades. Além disso,
pesquisas nos temas: racismo, psicologia social, branquitude,
como não é explícito, ele dá confusão, porque fica
movimentos sociais. Autora do livro Entre o encardido, o bran-
co e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade invisível em um certo sentido e é difícil falar que
de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.
aquilo foi racismo. Há dúvidas: “Será que foi ra-
16
cismo mesmo ou eu que tô delirando? Será que “A violência obstétrica atinge
aquele dia em que perguntaram se eu era a babá
da minha filha foi porque eu estava mal vestida?”.
hoje, no Brasil, uma em
Enfim, a gente vai passando por esse lugar que é cada quatro mulheres, e eu
difícil de nomear e isso cria uma vulnerabilidade, arrisco dizer que essa mulher
ou seja, a gente está falando de uma população
que corre mais riscos que a média, que sofre mais
provavelmente é preta ou parda.
discriminação, que tem menor representativida- É muito mais provável que
de política, menos possibilidade de se proteger sejam mulheres negras do que
de consequências indesejáveis. Esse é o concei-
to de vulnerabilidade.
mulheres brancas. Então, para
a gente lembrar que isso não é
Quando a gente entra especificamen-
te no cenário da saúde, o que é que acontece? apenas uma questão de recorte
A saúde é um direito de todos e é um dever do social, estamos falando de um
Estado – isso está escrito em algum trecho da
recorte que atravessa a questão
Constituição. Só que a gente tem problemas que
são comuns a todos, que são problemas gerais, social e chega a outros lugares
mas que vão afetar as pessoas de maneiras di- só pela questão da negritude”
ferentes. Nem todo mundo vai viver os mesmos
problemas da mesma forma. Por quê? Quando a gligência por causa do racismo. Mulheres negras
gente pensa na questão da negritude, 80% dos têm mais tendência a ter pressão alta; ela passou
usuários do SUS são negros; quando o SUS não mal no parto e seu atendimento foi negligenciado.
funciona, ele não funciona prioritariamente para Ela fez um relato contando como a negligência
a população negra. No evento da Associação no atendimento dela tinha sido uma questão de
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a bióloga raça. E aí a gente vai entrando um pouco na ideia
Fernanda Lopes2 falou que, quando estamos pen- do que é pensar a violência obstétrica do ponto
sando no desmonte do SUS, estamos fazendo um de vista da mulher negra.
genocídio da população negra, porque, quando o
SUS não funciona, ele não funciona especialmen- A violência obstétrica atinge hoje, no Brasil,
te para essa população. A gente tem problemas uma em cada quatro mulheres, e eu arrisco dizer
iguais, mas a população negra vai viver esses que essa mulher provavelmente é preta ou parda.
problemas de maneira diferente. É muito mais provável que sejam mulheres negras
do que mulheres brancas. Então, para a gente
E o que acontece quando a gente entra na lembrar que isso não é apenas uma questão de
questão de raça e gênero? Apesar de boa parte recorte social, estamos falando de um recorte que
da população negra ser atendida no SUS, isso atravessa a questão social e chega a outros lu-
não impede que mulheres negras de classe social gares só pela questão da negritude. Eu acho esta
mais alta sofram racismo institucional na área da frase maravilhosa: “Um dos traços nefastos do
saúde. Eu não sei se vocês conhecem a história da racismo e do sexismo é reconhecer as diferentes
Serena Williams. Ela é tenista – uma tenista ma- para promover discriminação”. Então, por exemplo,
ravilhosa, inclusive –, uma mulher rica, mas quase se eu já sei que mulheres negras têm mais chance
morreu no parto: ela teve trombose e isso foi ne- de apresentar problemas de pressão alta e de hi-
pertensão, posso produzir um material específico
para isso na saúde pública. Mas não… eu reconhe-
2 Bióloga, mestra em Saúde Pública pela Universidade de São
ço as diferenças para gerar ainda mais discrimi-
Paulo e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São
Paulo. Foi coordenadora das ações de saúde do Programa de nação. E aí a gente chega a um ponto que essa
Combate ao Racismo Institucional, uma iniciativa que reuniu autora, a Fernanda Lopes, debate: a gente vive
Governo Brasileiro e Agências do Sistema Nações Unidas.
Oficial de Programa em Saúde Sexual e Reprodutiva e Direi- diferentes experiências de nascer, de viver e de
tos e Assessora para HIV/Aids. Atua nos seguintes temas: morrer em função da questão racial. E se vivemos
vulnerabilidade, HIV/Aids, combate ao racismo, raça/etnia e
saúde, direitos humanos, mulheres, iniquidades em saúde,
experiências de nascer, viver e morrer diferentes,
políticas públicas de saúde. Foi conselheira nacional de saúde obviamente isso vai atravessar o que estamos
e membro da equipe População e Sociedade do Centro Brasi-
chamando de psicologia no cenário obstétrico,
leiro de Planejamento, Cebrap, e membro do Comitê Técnico
de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde. pois vai atravessar a realidade dessas pacientes.
Temos um subgrupo que é considerado me- mia, por exemplo, ou na manobra de Kristeller3 e
17
nos humano, que tem menos direitos e sobre o na questão do acompanhante que não pode en-
qual há menos pesquisas, inclusive. Eu trouxe al- trar na sala de parto, vemos que são alguns dos
guns dados: as mulheres negras são as que têm quesitos em que podemos nos basear para des-
menos acesso à saúde e, quando têm acesso, crever a violência obstétrica.
são as mais insatisfeitas. Quando pensamos na
Eu trouxe alguns pontos para pensarmos
brasileira
questão dos exames de mama, da mamografia,
e desastres
como isso é diferente para as mulheres negras
constatamos que entre as mulheres brancas 26%
e para as mulheres brancas. As mulheres negras
nunca fizeram mamografia; já entre as mulheres
estão fazendo menos partos normais, fazendo
da realidade
negras esse número sobe para 40%. As mulheres
mais tricotomias4. Tem ainda a lavagem intestinal
emergências
negras recebem menos informação do que as mu-
para o parto. Certa vez, eu acompanhei um parto
lheres brancas em relação à importância do alei-
como doula, em que a gestante estava no chuvei-
tamento materno, e elas são as maiores vítimas
crítica
ro e a enfermeira do hospital disse: “Não molha
de morte materna, que é a morte que vai aconte-
o cabelo” e ela perguntou “Por quê?”, “Porque se
em
cer entre o momento da gestação e uns 42 dias
uma análise
precisar fazer uma cesárea, você não pode estar
Psicologia
depois do nascimento. Ela acontece por compli-
e desastres
de cabelo molhado”. Aí ficamos um tempo pen-
cações obstétricas, diretas ou indiretas, relacio-
sando: “Mas o que o cabelo molhado tem a ver
nadas a acidentes ou incidentes com relação à
com a cesárea? Se precisar de uma cesárea, vai
interdisciplinar:
gravidez ou ao parto, mas, na maioria das vezes,
abrir de qualquer jeito! Se o cabelo estiver mo-
emergências
a gente está falando de morte evitável, tanto que
lhado, vai secar o cabelo antes?”. Então, a gente
a morte materna é um dos instrumentos mais im-
ainda tem essas práticas. Outra coisa de que já
SP
portantes para a gente avaliar as condições de
em CRP
falamos hoje é a questão da anestesia. As mu-
saúde de determinada população em um país.
na prática
lheres negras recebem menos anestesia do que
Temáticos
as mulheres brancas, porque, historicamente, são
Psicologia
Aqui no Brasil a taxa de mortalidade mater-
tidas como boas parideiras e como mulheres que
na é de 69 por 100 mil nascidos vivos. A recomen-
obstétrica
aguentam mais a dor. Isso impacta até no cená-
dação da OMS é que essa taxa seja menor que
SP Cadernos
rio da amamentação: dizem que mulheres negras
50 por 100 mil, então estamos bastante acima
têm menos fissura nas mamas, porque a cicatri-
desse número. Nesse número, mulheres negras e
psicologia
zação é melhor; que mulheres negras aguentam
pardas morrem mais que mulheres brancas; além
mais a dor, então, aguentam mais a dor do parto,
disso, têm menos chance de passar por pré-natal
potência da CRP
aguentam mais a dor na amamentação. Isso tam-
antes dos quatro meses e de ter uma assistência
bém vai chegar ao pós-parto.
A Temáticos
médica adequada – mesmo as que passam por
pré-natal acabam tendo uma assistência médi- Além dessas questões que coloquei aqui,
ca inadequada. Esse problema da pressão alta que são de ordem física, existem ainda as vio-
brasileira
e desastres
uma psicóloga branca ou negra; é preciso que uma o sujeito, tenho que lembrar que é a vivência dele.
psicóloga tenha letramento racial; é preciso que Eu posso ter paciente que vai chegar para mim
o letramento racial seja pautado na graduação; é depois de ter sofrido uma manobra de Kristeller
da realidade
preciso que se fale de letramento racial nos es- sem que aquilo tenha sido apontado para ela
emergências
paços. Se eu tenho letramento racial, se entendo como violência. A violência vai ser a minha inter-
que existem fenômenos sociais, se entendo como pretação, se eu disser para essa mulher que aqui-
crítica
raça e gênero vão atravessar a clínica e a violência lo foi violência. Então, é importante a gente ter
obstétrica, tenho outro olhar para aquilo. Mas não esses norteadores no encontro com as pessoas,
uma análiseem
é porque eu sei que existe racismo e porque eu sei ter letramento racial para poder entender o fenô-
Psicologia
e desastres
que existe violência obstétrica que vou pensar que meno, lembrando que a gente tem os atravessa-
aquela mulher negra que chega ao meu consultó- mentos da cultura e os atravessamentos sociais,
rio vive o racismo da mesma forma que todas as mas sem esquecer que cada sujeito é único.
A Temáticos
Cadernos Temáticos CRP SP Cadernos psicologia
potência da CRP Psicologia
obstétrica
SP Cadernos interdisciplinar:
emergências
em CRP
na prática
Temáticos SP
20 Anna Carolina Lana Soares Cabral
Psicóloga, mestre em filosofia pela PUC do Vale do Chile, revalidado pela USP
São Paulo em psicologia, processos culturais e subjetivação. Doula pelo Grupo
de Apoio à Maternidade Ativa e promotora legal popular pela União de Mulheres
de São Paulo. Trabalha hoje no Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos
Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Eu falo do lugar da Defensoria Pública, onde estou Perguntei a ela: “Vocês já estão pautando isso? A
desde 2010, e do Núcleo Especializado de Promo- gente precisa falar disso, a gente precisa nome-
ção e Defesa dos Direitos das Mulheres. Comecei ar”. E aí tem todo um trabalho incrível no Núcleo
a estudar a questão da violência obstétrica em Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos
2011, quando engravidei da minha filha. Sempre das Mulheres (Nudem) nessa perspectiva.
gostei do tema, mas, quando me vi grávida, mer-
No caso da filha da Márcia, íamos atrás de
gulhei na questão do parto humanizado, fui atrás
alguma reparação, se é que seria possível, mas
de informações. Tive o privilégio de ter uma ex-
ela não quis. E é isso o que observamos na prática
periência de parto muito positiva e satisfatória,
da Defensoria: muitas mulheres não querem en-
porque tive acesso à informação e condições fi-
trar com nenhum tipo de ação, pois pensam: “Eu
nanceiras para bancar uma equipe humanizada.
tenho que cuidar de um recém-nascido, tenho um
Tive um parto domiciliar maravilhoso. Mas é isso,
trabalho enorme, já sofri muito. Quero esquecer,
foi uma experiência prazerosa e que me emociona
não quero mais lembrar, e é nesse hospital que
só de eu me lembrar.
vou utilizar o serviço de pediatria”. Enfim, eu entro
então nesse lugar de fala de muito privilégio, que
Na mesma época, eu convivia com a Már-
reconheço que tenho e com o que ainda preciso
cia, que trabalhava em casa, tinha a minha ida-
trabalhar muito. Minha existência é branca e mi-
de e já tinha três filhos. A filha mais velha dela,
nha família é de origem portuguesa, a família do
de 18 anos, teve um parto logo depois do meu.
meu pai é de fazendeiros e existe na família um
E a Márcia chegou logo depois do nascimento da
documento que registra o imposto de renda de-
neta dela me disse: “Aquilo não foi um parto. Eu
clarado pela venda de uma pessoa escravizada.
passei por três partos normais no SUS; foi mui-
A minha família ganhou dinheiro, o país ganhou
to difícil, mas aquilo não foi um parto”, ela re-
dinheiro com a compra e a venda de pessoas ne-
petia. E eu lembro que sentamos juntas, dei um
gras escravizadas.
copo de água para ela, fui conversando, ela foi
me contando o que a filha dela tinha passado: na O Brasil é isso. Essa é a nossa base, essa é a
tentativa de conduzir um parto humanizado, co- nossa história, e a gente não pode perder isso de
locaram ela na bola embaixo do chuveiro, mas a vista na nossa atuação. Então, esse é o meu lugar
largaram sozinha, sem a acompanhante (que era de fala, o da psicologia social e jurídica. Vou falar
a avó dela). Colocaram ocitocina e deixaram a primeiro de mulheres e maternidades e um pou-
menina ali. Quando voltaram, ela tinha caído da co de violências e privilégios. Para isso, fui bus-
bola, desmaiado, batido a cabeça, a ocitocina ti- car a origem das palavras, a etimologia. Brinquei
nha arrebentado, o braço dela estava sangrando. de buscar os significados no dicionário da língua
E eu disse: “Márcia, isso não foi um parto, foi uma portuguesa e me surpreendi um pouco com as
violência”. Assim que eu nomeei aquilo, ela come- questões de gênero que encontrei nas definições.
çou a se acalmar e eu levei essa questão para a É uma visão biológica, vou ler para vocês: “Mulher:
Defensoria, para uma colega minha que estava lá. substantivo feminino, indivíduo do sexo feminino
considerado do ponto de vista das características
21
biológicas, do aspecto ou forma corporal”, “Re- “O Brasil é um país perigoso para
presentação de um ser sensível, delicado, afetivo,
intuitivo, fraco fisicamente, indefeso, o sexo frágil,
as mulheres, é um país misógino.
idealmente belo, o belo sexo, devotado ao lar e Estamos em quinto lugar em
a família”, “Maternidade: qualidade e estado de casos de feminicídio no contexto
brasileira
ser mãe, laço de parentesco ou hospital que cui-
doméstico familiar. Mulheres
e desastres
da das mulheres no último período de gravidez”.
Mãe, no nosso dicionário, está como “Quem deu que foram assassinadas por
da realidade
à luz, quem cria ou criou”, “Teve crias, cuidados pessoas conhecidas, próximas,
emergências
maternais que protegem, dá assistência, origem,
causa ou fonte”. Não é o tema da mesa, mas fui,
com quem tinham relações
só por curiosidade, ver o significado de pai, que é afetivas, é disso que estamos
crítica
“gerou”; não encontrei nada referente a cuidados, falando. É um ranking muito alto.
em
só relativo ao que gerou, o autor, o fundador; não
uma análise
Um estupro a cada 11 minutos.
Psicologia
tem relação com criar.
e desastres
Todas as mulheres estão
E então, falando de violência, eu entendo sujeitas a opressões, todas nós
interdisciplinar:
violência nesse sentido de que a Fernanda falou,
estamos nesse contexto, mas as
emergências
de como a violência é sentida pelas mulheres,
cada qual de um modo. Fui conversar com pro- violências e as opressões serão
SP
fissionais de uma maternidade, e uma das en- maiores ou menores dependendo
em CRP
fermeiras perguntou: “Mas é violência obstétrica
da classe, da raça e da geração”
na prática
Temáticos
deixar sem comer?”. Eu respondi: “Depende. Se a
Psicologia
mulher está implorando por um pedaço de cho-
colate, o que você acha? Ou se a mulher não está Mulheres, raça e classe é básico – a gente
obstétrica
nem aí para a comida, está enjoada ali no traba- não consegue pensar psicologia na atuação obs-
SP Cadernos
lho de parto, depende. Deixar sem comer nem tétrica sem ler esse livro. Para quem não conhece,
sempre é violência”. A violência é o que é para Angela Davis é ativista, feminista, professora, es-
psicologia
cada mulher. Às vezes, para uma mulher, uma critora e militante até hoje. Esse livro, de 1981, é
cesárea não é violência, ainda que desnecessá- uma das obras fundamentais do feminismo negro
potência da CRP
ria. Às vezes, para uma mulher, só de pensar em em que ela discute as condições da população
A Temáticos
passar pelo trabalho de parto já é uma tortura, negra nos Estados Unidos. É diferente aqui no
porque a gente tem um país que vende parto vio- Brasil, e precisamos nos apropriar das questões
lento para vender cesárea. Então, é assustador brasileiras, mas, como ela faz uma análise muito
aprofundada, acho importante termos como refe-
brasileira
res com quem a gente trabalha na Defensoria é
pobreza, e aí vemos claramente
e desastres
um lugar de perder o bebê. Muitas estão fugindo
a questão da discriminação e do das maternidades e tendo seus bebês na rua, en-
da realidade
preconceito social” tão, os bebês que queremos proteger e acolher,
emergências
na verdade, vão ficar em maior risco, porque não
Essas questões interferem diretamente vão receber assistência nenhuma. E a Saúde não
é um braço do Judiciário; a Saúde é a Saúde, é um
crítica
no nosso trabalho como psicólogas, que somos
obrigadas, coagidas – aí, mais uma vez, tem uma lugar de acolhimento, não é um lugar de entregar
em
ninguém. Não podemos perder isso, porque se-
uma análise
questão de violência institucional – a declarar
Psicologia
para a justiça, por exemplo, se as mulheres já fize- não perderemos a relação de confiança, de víncu-
e desastres
ram uso de drogas. O sigilo e a ética, ficam onde? lo. Muitas mulheres dizem: “Eu queria pelo menos
Nossa atuação técnica fica onde? Nosso vínculo tentar”. Já escutei várias vezes esse pedido: “Eu
interdisciplinar:
com as mulheres? Então, as mulheres são consi- posso tentar? Eu queria tentar ser mãe”. Tentar
emergências
deradas moral e socialmente incapazes de serem ser mãe no Brasil é, portanto, um privilégio, e ele
mães por uma questão de classe, de pobreza, e é dado ou não, ele é válido apenas para alguns
SP
aí vemos claramente a questão da discriminação grupos em detrimento de outros.
em CRP
na prática
e do preconceito social. São mulheres deixadas
Temáticos
em vulnerabilidade: há um vazio socioassistencial
Psicologia
ou, quando tem serviço, não é articulado, não se “Tentar ser mãe no Brasil é,
portanto, um privilégio, e ele
obstétrica
conversa, não trabalha de forma efetiva. Temos
SP Cadernos
aí, então, um fenômeno de mães órfãs, o que, em é dado ou não, ele é válido
algumas maternidades, é chamado de bebês so-
ciais ou de bebês da Vara. Trata-se de mulheres apenas para alguns grupos em
psicologia
que decidiram ser mães, mas que foram sumaria- detrimento de outros”
potência da CRP
mente afastadas de seus bebês com dias, horas
ou segundos de vida.
A Temáticos
A gente acompanha uma mulher – ela já fa- A Saúde, nesse caso, acaba entrando no lu-
lou até no Fantástico – que, em entrevista, disse gar de reprodutora das opressões, gerando ado-
que a filhinha dela nasceu no dia 14 de fevereiro ecimento e sofrimento. A proibição de ver o rosto
brasileira
serviço que está sendo oferecido: ela tem trans- saberes muito importantes, mas são limitados
e desastres
porte para ir? Como que eles a tratam lá? O que as e precisam da gente. Por isso, a importância e o
mulheres contam para a gente é algo como: “Eles cuidado com os nossos relatórios, porque, nessas
da realidade
me olham de cima a baixo com nojo, eu não quero situações, eles se baseiam, muitas vezes, 90% ou
emergências
mais voltar lá”. Precisamos sugerir políticas públi- mais nesses relatórios. Muitas vezes, é a gente
cas, evidenciar modelos e propostas eficientes, que está contribuindo para uma sentença.
apresentar soluções a curto e médio prazos.
crítica
Então, vamos dar aula de direito para pro-
Não estou dizendo que toda equipe de ma- fissionais de psicologia – fazemos muito isso no
uma análiseem
ternidade ou de fórum faz isso, nem que toda mãe Nudem. O direito tem toda essa linguagem rebus-
Psicologia
e desastres
precisa necessariamente ficar com os filhos. Te- cada, mas ele existe para a gente, então também
mos de ter cuidado com todas as generalizações. precisa ser apropriado pela gente, do mesmo jeito
A psicologia nos hospitais e nas maternidades que no Plano de Parto procuramos ensinar para
interdisciplinar:
precisa promover a saúde, na verdade, porque o as mulheres os direitos sexuais e reprodutivos
emergências
que você vê é que as mulheres estão surtando, delas. Nós, enquanto psicólogas, também pre-
chorando, sofrendo, tendo recaídas fortíssimas cisamos conhecer nossos direitos e os direitos
em CRP SP
no uso dos recursos que elas têm, que são as dro- das mulheres que acompanhamos como cidadãs.
na prática
gas. Vemos, então, a psicologia produzindo mais Muitas vezes, nos deparamos com situações no-
Temáticos
doença, o hospital produzindo mais adoecimen- vas, que reúnem múltiplas vulnerabilidades; se fi-
Psicologia
to. O que é isso? Vamos produzir conhecimento, carmos isoladas e sozinhas no nosso saber, isso
obstétrica
aproximação, avanços na busca por esse acesso só vai gerar mais angústia, vamos fugir daquele
SP Cadernos
à justiça social, entendendo esse contexto, mini- assunto, colocar o caso naquele lugar dos casos
mizando as violações. Antes eu trabalhava com a complicados em que ninguém mexe, que ninguém
psicologia
garantia de direitos, agora eu trabalho minimizan- acompanha, e isso vai gerando paralisação. Daí a
do as violações, porque são muitas e são viola- importância da construção conjunta, dialogada.
potência da CRP
ções históricas, então, a gente vai minimizando o Não é ir lá no meu setor, fazer meu relatório e en-
quanto dá, com respeito à diversidade dos sabe- tregar – isso é uma prática que isola, que fecha,
A Temáticos
res e às possibilidades de maternar. Sem aquele que não avança.
ideal da maternidade, da “bela, recatada e do lar”.
O que eu percebo, na minha prática como
Há outras formas de maternar, buscando a igual-
psicóloga na Defensoria, é o tempo todo essa
5 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Santa Catarina: Civiliza- 6 REZNY, Priscila Ferrari. Coisa de menina. São Paulo: Companhia
ção Brasileira, 2018. das Letrinhas, 2016.
Leituras críticas da maternidade 27
Adriana Navarro
brasileira
Psicóloga, mestra em Psicologia da Saúde (Universidade Metodista de São Paulo/ Instituto Superior de Psicologia
e desastres
Aplicada de Lisboa – ISPA), doutoranda em Psicologia da Saúde (Universidade Metodista de São Paulo).
Especialista em Psicologia Hospitalar e da Saúde (CEPPS). Docente do curso de especialização em Psicologia
Hospitalar e da Saúde da Universidade de Taubaté. Suas principais áreas de pesquisa e atuação são: 1.
da realidade
Psicologia Obstétrica; 2. Humanização da assistência ao Parto e do Nascimento; 3. Saúde Materno-infantil.
emergências
Adriana, como mediadora da mesa, convida e apresen-
crítica
ta as palestrantes. Ela anuncia que a mesa tem como
em
título: “Ser mãe é um sonho de todas as mulheres?
uma análise
Psicologia
Diálogo sobre leituras críticas da maternidade”.
Temáticos
Psicologia emergências
em CRP
na prática SP e desastres
interdisciplinar:
Irene Rocha Kalil
obstétrica
Jornalista, mestra em educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutora em
SP Cadernos
Informação e Comunicação em Saúde (ICICT/Fiocruz), realizando pesquisas acerca dos discursos sobre
amamentação e maternidade numa perspectiva de gênero. Atua como coordenadora de comunicação do
Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
psicologia
potência da CRP
O tema da mesa na qual essa fala se insere – lei- pleno com seu protagonismo no parto: um parto
A Temáticos
turas críticas da maternidade – é extremamente sem intervenções, a prática do aleitamento ma-
atual e tem suscitado discussões tanto no campo terno sobre livre demanda, o co-sleeping – pais e
acadêmico quanto fora dele, em várias partes do bebê dormindo juntos –, entre outros elementos
mundo. Acredito que a maternidade, a opção ou que compõem um modelo de criação dos filhos
brasileira
a gente citou anteriormente, sendo uma das cor- ser problematizada, já que é possível apontar a
e desastres
rentes a maternidade mamífera. Esse novo mo- presença desse modelo em muitos dos discursos
delo ou ideologia foi chamado pela pesquisadora internacionais em defesa do aleitamento mater-
da realidade
Joan Wolf, em 20075, de “maternidade total”, e por no. No Brasil, a situação não é diferente. Na minha
emergências
Sharon Hays, em livro de 19986, de “maternidade tese, na qual eu analisei materiais educativos pro-
intensificada”. Tal modelo, que em grande medida duzidos pelo Ministério da Saúde e voltados para
se assemelha a um desdobramento do discurso mulheres e profissionais de saúde, além de cam-
crítica
higienista do início do século XX sobre a respon- panhas da Semana Mundial da Amamentação, que
em
sabilidade da mãe com o cuidado dos filhos, sua acontece anualmente de primeiro a oito de agosto,
uma análise
Psicologia
saúde e seu pleno desenvolvimento, está relacio- constatei alguns pontos importantes que são co-
e desastres
nado à ideia de um exercício intensivo da mater- muns à maioria desses discursos. Alguns desses
nidade, de uma maternidade que se coloca como pontos eu queria compartilhar com vocês hoje.
interdisciplinar:
total ou totalizante no que diz respeito à subjeti-
emergências
vidade e à identidade da mulher que opta por ter
um filho. Na maternidade intensificada ou total,
SP
as mães devem se tornar especialistas em tudo “Os discursos não mencionam
em CRP
o que seus filhos possam encontrar ou precisar,
quaisquer sentimentos da mulher
na prática
Temáticos
desde pediatras, psicólogas e educadoras, até
que amamenta e minimizam
Psicologia
responsáveis por inspecionar a segurança dos
bens de consumo. possíveis dificuldades, colocando
obstétrica
SP Cadernos
Na maternidade total, segundo Joan Wolf, no desejo da mulher a possibilidade
é esperado das mães não apenas proteger seus ou não de continuar amamentando
psicologia
filhos de ameaças imediatas, mas também pre-
ver e prevenir qualquer circunstância que possa
ao final da licença-maternidade, por
exemplo, com frases como ‘toda
potência da CRP
interferir em seu desenvolvimento supostamente
normal, responsabilidade essa que tem início ainda mulher é capaz de amamentar’.
A Temáticos
na gestação. Para a autora, a prática desse código
moral implica, frequentemente, uma negociação
Também não problematizam as
entre aquilo de que as mães podem gostar e aqui- interações e os impactos sociais
brasileira
las próprias mães, aquelas que amamentam. As seu filho já na primeira hora de vida, deixo-o ma-
e desastres
mães que não amamentam ou que não obedecem mar o quanto quiser, seu leite é o único alimento
rigorosamente aos parâmetros definidos de ama- que ele precisa até os seis meses, só depois co-
da realidade
mentação podem sentir culpa, tristeza ou inade- mece a dar outros alimentos, mas continue ama-
emergências
quação. Além disso, mães que não correspondem mentando até os dois anos ou mais. Amamentar
às expectativas de amamentação hegemônicas é muito mais que alimentar a criança, é um impor-
podem ser vistas como se rejeitassem um ideal tante passo para uma vida mais saudável”11. As
crítica
de feminilidade que relaciona a amamentação à respostas das entrevistadas foram dois questio-
em
natureza feminina. Tais críticas podem fazer com nários que nós fizemos: um sobre o material e ou-
uma análise
Psicologia
que uma mãe que não amamenta se sinta uma tro sobre as percepções delas sobre a amamen-
e desastres
mulher incompleta. tação e o desmame em geral. As respostas das
entrevistadas referentes às motivações que as
No artigo “Da intenção ao gesto, aproxima-
interdisciplinar:
levaram a amamentar demonstraram uma subs-
ções e distanciamentos entre informações oficiais
emergências
tancial incorporação desse discurso oficial, então
e percepções maternas sobre amamentação”10,
já estava no discurso das próprias mães muito
publicado em 2014, eu e os pesquisadores Mar-
SP
daquilo que o discurso oficial pregou.
em CRP
celo Robalinho Ferraz e Adriana Cavalcante de
na prática
Aguiar buscamos observar convergências e diver- Isso reflete o efeito discursivo que o teó-
Temáticos
gências entre o conhecimento produzido pelo Mi- rico Eliseo Veron, da área da análise de discurso,
Psicologia
nistério da Saúde e o conhecimento de mãe sobre nomeou, em 2004, de discurso absoluto, ou seja,
obstétrica
amamentação. Para isso, propusemos a análise aquele discurso que tem efeito de verdade. Na
SP Cadernos
discursiva de uma peça de campanha da Semana construção imagética, a concepção idealizada da
Mundial da Amamentação de 2010 e, posterior- amamentação como prática perfeita, sem proble-
psicologia
mente, procuramos conhecer as percepções ma- mas, distancia-se das experiências e percepções
ternas sobre amamentação e também acerca do maternas. Vou dar alguns exemplos para vocês de
potência da CRP
mesmo material que nós, pesquisadores, analisa- falas de duas mães: Mãe 1 – “A preparação para
mos. Naquele momento foram entrevistadas sete a amamentação não pode ficar restrita apenas a
A Temáticos
mães. Foi um estudo piloto, por isso uma amos- decidir amamentar e achar que é só pôr o bebê
tra bem pequena, envolvendo mulheres da região no peito e ele vai sair sugando automaticamen-
Nordeste do país com idades entre 25 e 40 anos, te. Algumas mães conseguem isso, outras não, e
brasileira
lizam a prática reduzindo-a a comportamentos mulheres de decidir o uso que farão de seus seios
e desastres
eminentemente biológicos que definiriam o papel e corpos. Assim, caberiam aos profissionais de
natural da mulher na sociedade. Tal situação im- saúde o acolhimento a essas mulheres, a compre-
da realidade
plica a valorização de uma visão instrumental do ensão do seu modo de vida e o respeito às suas
emergências
aleitamento materno, implica a valorização ou o opiniões para assim apoiá-las nas decisões refe-
destaque de determinados sentidos com relação rentes ao processo de amamentação.
à prática em detrimentos de outros, temporaria-
crítica
Como bem pontuou o sociólogo Pierre Bour-
mente apagados ou ofuscados. A amamentação
dieu em 1995, o corpo feminino foi historicamente
em
como experiência complexa é pouco explorada, o
uma análise
constituído como um corpo para o outro, assim, a
Psicologia
que nos ajuda a compreender o contexto em que
e desastres
imagem da mulher sobre seu próprio corpo cons-
o desmame é um processo de transição silencia-
titui-se fundamentalmente pela representação
do nesses materiais. A condição psicológica da
objetiva desse corpo, ou seja, pelo feedback re-
interdisciplinar:
amamentação é recorrentemente relegada na di-
enviado pelos outros pais e pares. Essa reflexão
emergências
vulgação feita tanto pela mídia quanto pelos ser-
demonstra como os discursos contemporâneos
viços de saúde. Sendo assim, as mulheres e suas
pró-aleitamento materno corroboram para a con-
SP
diferentes perspectivas sobre amamentação são
em CRP
cepção dos seios maternos e do corpo da mulher
estereotipadas, restando um modelo de materni-
na prática
como um todo em sua própria subjetividade como
Temáticos
dade rígido que constrange as mulheres em suas
objetos de regulações externas, compreendidos
Psicologia
formas de cuidar, sua opção por amamentar ou
como um meio ou canal para fornecer aquele ali-
não amamentar, e suas motivações para dar con-
obstétrica
mento, produto que é um direito da criança. Para
tinuidade ou encerrar o aleitamento.
SP Cadernos
concluir, embora seja perceptível uma considerá-
No âmbito da atenção à saúde, Jordana Mo- vel polifonia nos discursos emitidos em diferentes
psicologia
reira de Almeida, Silvana de Araújo Barros Luz e situações nos materiais do Ministério da Saúde,
Fábio (UED), em 201512, destacaram que, embora ainda permanece a centralidade da criança na
potência da CRP
as mães procurem um profissional para ajudá-las abordagem sobre amamentação por meio de
com seus problemas relativos ao aleitamento, uma linguagem que objetifica a mulher, deixando
A Temáticos
esse profissional geralmente impõe tantas nor- transparecer a ideia de que é seu dever atuar no
mas e regras que não contemplam sua realidade sentido da conquista da saúde física, mental e
que isso acaba gerando medo e insegurança na emocional de seus filhos. Fonte do precioso leite,
Eu vou falar sobre o dispositivo materno e apre- mulheres que eu conheço; ela não teve dúvidas:
sentar algumas ideias que são fruto dos meus últi- botou, por trás do quadro, um esparadrapo no bu-
mos 14 anos de pesquisa na área de saúde mental raco. Só que ficou um buraco branco, por isso a gê-
e de gênero. Publiquei um livro em março deste ano nia pintou uma árvore ali. Então, aquela araucária,
que se chama Saúde mental, gênero e dispositivos: que não tem nada a ver com esse ambiente, é obra
cultura e processos de subjetivação1, e as ideias da minha avó, um acréscimo ao quadro. Meu avô
que vou apresentar são uma parte desse livro. Tem morreu sem saber dessa história. Ele dizia assim:
uma parte do dispositivo dos homens, das mascu- “Maria, mas que estranho… esse quadro só tinha
linidades, sobre a qual não vai dar tempo de falar, uma árvore”, “Você está ficando doido, meu filho?
infelizmente. Então, eu queria começar falando da Como é que apareceu uma árvore? Claro que eram
capa do livro. Esta capa não foi escolhida aleato- duas árvores”. E todo mundo ria.
riamente; é um quadro que pertenceu aos meus
Essa é uma das várias histórias que minha
avós maternos.
avó tem – ela dava nó em pingo d’água –, mas
Meu avô era um homem que gostava muito como feminista e estudiosa de gênero isso me
de viajar, e, em uma dessas viagens, trouxe esse coloca outra questão: que lugar é esse em que
quadro. Ele ficava na sala de jantar dos meus avós, nós, mulheres, nos subjetivamos como tendo
que tiveram nove filhos, entre eles a minha mãe. que cuidar dos outros e das relações, em que o
Meu avô era um homem patriarcal, como todos silêncio é um comportamento muito relacionado
os homens da época dele, e, durante uma dessas ao adoecimento psíquico das mulheres? Não é à
viagens dele, meus tios e minha mãe decidiram: toa que, na nossa cultura, as mulheres adoecem
“Vamos fazer uma festa aqui em casa, aproveitar de depressão e ansiedade. Isso tem a ver com
que o papai não está aqui”, aquelas coisas que a uma implosão psíquica. O silêncio é um compor-
gente faz: “Mãe, não conta para o papai”. Minha tamento altamente desejado, é uma performance
avó falou: “Não, tudo bem, vamos, mas desde que das mulheres na maternidade. Não podemos falar
vocês deixem a casa impecável no outro dia, por- do mal-estar, não podemos falar do cansaço, não
que não pode ter rastro”. Aí, tiraram o quadro da podemos falar do arrependimento, não podemos
parede e colocaram em um canto. Só que nesse nem falar que não queremos ter filho que ainda
canto tinha um prego. existe preconceito. Então, no livro, faço uma de-
dicatória para a minha avó, para as mulheres que
No outro dia, quando eles foram arrumar a
tiveram que desenvolver esse saber, que nós pas-
casa e botar o quadro no lugar, ele estava perfu-
samos umas para as outras: “Amiga, não faz isso,
rado. Minha avó pensou: “Lascou, porque, além de
não briga, deixa para lá” e também para aquelas
estragar o quadro, eu vou ter que explicar a razão”.
que começaram a fazer diferente.
Minha avó é uma gênia do cotidiano, como muitas
Dito isso, vou começar falando sobre o que
1 ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultu-
é gênero. Eu sei que vou chover no molhado para
ra e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018. algumas pessoas aqui, mas é uma palavra que tem
sido muito mal utilizada nos tempos atuais, por dou nas minhas palestras é: “O nome disso aqui na
35
causa da ideologia de gênero, que é uma opinião nossa cultura é mesa, e mesa é um instrumento
completamente equivocada, de gente que não se que pode servir para muitas coisas: para se apoiar,
deu o trabalho de estudar. E, antes de eu começar para colocar objeto, para comer, para estudar; mas
a falar sobre o que é gênero, é necessário desta- não serve, por exemplo, para fazer cocô”, concor-
car que o conceito de pessoa não é somente um dam? Se alguém entrar e fizer cocô na mesa, vai
brasileira
conceito biológico anatômico, é um conceito an- todo mundo dizer: “Nossa, essa pessoa não está
e desastres
tropológico, sociológico. Então, no século XVI, in- muito bem”. A não ser que seja uma performance
dígenas não eram pessoas, pessoas negras não artística sobre a finitude da vida, aí todos dirão:
da realidade
eram pessoas e mulheres não eram pessoas. Es- “Ah, captei vossa mensagem!”, mas, tirando isso,
emergências
ses grupos só foram reconhecidos como pessoas vocês vão dizer: “Essa pessoa está precisando de
depois de muita luta política. Precisamos entender ajuda”. Mas se essa mesa for jogada no meio da
o surgimento da palavra gênero como relacionado Amazônia, encontrada por uma comunidade que
crítica
a essa luta. Precisamos pensar em pelo menos al- nunca teve acesso ao Ocidente, se essa mesa for
em
guns movimentos de mulheres ou movimentos fe- nomeada de “titi” e adotada como um totem, colo-
uma análise
Psicologia
ministas. Hoje, já se fala em cinco; eu vou aqui até cada pendurada em uma árvore e todos os dias as
e desastres
o terceiro, que é o que nos interessa. O primeiro pessoas forem adorar a mesa, começarem a fazer
deles, no final do século XIX e começo do século oração pra “titi”, daqui há 10 anos, se um antro-
interdisciplinar:
XX, foi a luta das mulheres pelo direito ao sufrágio. pólogo entrar em contato com essa comunidade,
emergências
Temos uma memória muito curta no Brasil, então não vai poder traduzir “oração a titi” por “oração
esquecemos que há 50 anos as mulheres casadas à mesa”, porque “titi” e “mesa” não são a mesma
SP
teriam que usar o CPF do marido para votar. É tudo coisa, apesar da mesma materialidade. É por isso
em CRP
muito recente, são direitos adquiridos há pouquís- que os movimentos de minorias lutam tanto pelas
na prática
Temáticos
simo tempo e muitos deles já estão em risco. palavras, por isso que a gente tem que falar “presi-
Psicologia
denta”, evitar palavras que juntem a negritude com
Foi na segunda onda, que veio no final da
coisas ruins, como a ideia de “denegrir”. Quando
obstétrica
década 1960 e no começo da década de 1970,
reinventamos as palavras, reescrevemos mundos
SP Cadernos
que surgiu a palavra gênero a partir de um autor
e recriamos emocionalidades.
chamado Robert Stoller, médico e psicanalista. E
psicologia
o que o Stoller dizia? Ele dizia: “Olha, existem di-
ferenças físicas anatômicas entre homens e mu-
“Quando reinventamos as
potência da CRP
lheres e gênero é uma construção social a partir
dessa diferença”. São os famosos papéis sociais, palavras, reescrevemos mundos
A Temáticos
papéis sexuais e papéis de gênero. Na terceira e recriamos emocionalidades”
onda, que ocorreu no final da década de 1980, a
autora expoente foi a filósofa Judith Butler. A pri-
brasileira
as mulheres se subjetivam em uma carência. Uma mulher for envelhecendo, mais o dispositivo amo-
e desastres
metáfora que exemplifica o dispositivo amoroso é roso vai funcionando de forma lancinante. Passa
a de que as mulheres se subjetivam na prateleira um “emperebado” aqui. “Hum, eca!” Aí, o cara diz:
da realidade
do amor. Essa prateleira é profundamente perver- “Boa tarde, Valeska”, e eu “Ah, ele até que é inte-
emergências
sa, porque é mediada por um ideal estético que ressante”. Essa é uma das principais formas de
se construiu do início do século passado para cá. vulnerabilização emocional e psíquica das mu-
Esse ideal é branco, louro, magro e jovem. Quan- lheres. Qual é o nosso botão de vulnerabilidade?
crítica
to mais distante desse ideal, mais para trás da Ser escolhida. Deu para entender isso? Tem uma
em
prateleira você vai ficando, o mais importante, é a frase do meu livro de que gosto muito que diz o
uma análise
Psicologia
construção do preterimento afetivo dos homens seguinte: “No Brasil, os homens aprendem a amar
e desastres
brancos e negros em relação a elas. “Ah, então muitas coisas e as mulheres aprendem a amar os
sou linda, sou a Gisele Bündchen” também é er- homens”. Não pode dar certo. As relações hete-
interdisciplinar:
rado. A prateleira é péssima para todas as mulhe- rossexuais são profundamente assimétricas: a
emergências
res, mas com certeza é pior para algumas: “Mas gente dá mil e recebe 10, e quando recebe 100
você vai envelhecer, você vai engordar”. No fundo, acha que tirou a sorte grande. Casamento hete-
SP
para quem é boa a prateleira do amor? A pratelei- rossexual, no nosso país, é um fator de risco para
em CRP
ra do amor é boa para os homens. a saúde mental: mulheres casadas têm mais de-
na prática
Temáticos
pressão, e é um fator de proteção para o homem,
Psicologia
independentemente da qualidade do casamento.
“Tornar-se mulher na nossa
obstétrica
“Mas e as lésbicas?”. Também é um grande
SP Cadernos
cultura se dá em dois erro dos estudos de gêneros – isso eu coloco no
livro, claramente, e apareceu em várias pesquisas.
dispositivos: o amoroso e
psicologia
Subverter orientação sexual não subverte gênero.
materno. O dispositivo amoroso Homens gays, em sua maioria, são profundamen-
potência da CRP
implica que as mulheres se te misóginos; é por isso que a gente diz que no
mundo lésbico – em relação ao dispositivo amo-
A Temáticos
subjetivem em uma relação roso – as lésbicas não namoram, elas se casam;
consigo mesmas, mediadas são dois dispositivos amorosos, mas uma lésbica
pelo olhar de um homem que lucra com o dispositivo amoroso da outra. Então,
início do século passado para cá. Outra coisa, se a gente também se subje-
tiva na prateleira, nos subjetivamos umas em re-
Esse ideal é branco, louro, magro
lação às outras pela rivalidade: porque eu quero
e jovem. Quanto mais distante brilhar mais, vou apagar o brilho da coleguinha.
desse ideal, mais para trás da Quem lucra com a rivalidade? Os homens. Já vi-
ram a ex e a atual brigando? Quando você vai ver
prateleira você vai ficando”
o cara, percebe que ele acha que é o Brad Pitt. Eu ral, as pessoas ficam “Nossa!” – claro, é o capita-
38
sempre digo isso e vai ser o tema de uma pesqui- lismo que traz a ideia do público e do privado; não
sa que eu ainda vou fazer. Ocorre especialmente tinha como fechar a porta, entravam ratos, elas
com o homem branco hétero: a autoestima é qua- tinham que trabalhar, isso era uma forma de livrar
se delirante, deveria ser objeto de investigação as crianças dos animais. A taxa de mortalidade
da psicologia clínica no Brasil. Enfim, vamos agora infantil ainda era muito grande.
para o dispositivo materno. Como muitas vezes
o dispositivo materno vem como um chancela-
mento do dispositivo amoroso, esse é um ponto “O capitalismo precisa de
importante. Ainda tem muita mulher que tem filho
excedente populacional.
para ser a mãe dos filhos do homem: “Não fui só
escolhida na prateleira, eu sou mãe”. Eu já vi viúva Criou-se o que eu chamo de
dizendo assim, na hora de receber os pêsames: empoderamento colonizado e
“Ele já estava há cinco anos com outra, mas foi
que persiste na maternidade até
pra mim que vieram dar os pêsames” – a dona do
defunto. Que gozo narcísico é esse? E tem a ver hoje. Primeiro, se convenceu as
com essa ideia de ter sido chancelada. mulheres a amamentar, depois
a cuidar, depois a educar; por
“A capacidade de cuidar é uma fim, com os desserviços das
habilidade humana. Todos nós psicologias, da psicanálise e
somos capazes de cuidar, mas isso da pediatria, se construiu a
tem sido interpelado historicamente maternidade científica. E qual é
apenas em uma parcela da o discurso dessa maternidade
população – voltando ao que disse, científica? É que a mãe, a
àquelas que têm útero” procriadora, é responsável pela
personalidade do filho”
brasileira
não vai dar, não estou a fim de ser mãe, não”. As
a questão identitária tem muito
e desastres
mulheres estão cansadas. Esse modelo de ma-
mais a ver com trabalho, a ternidade da nossa cultura é profundamente
da realidade
virilidade laborativa e a virilidade massacrante para as mulheres. Não é à toa que
emergências
tem aumentado o índice de depressão pós-parto,
sexual” existe um mal-estar na maternidade.
crítica
Ela trabalhou? Ela deixava na creche?”. Ninguém Hoje existem mais de 300 etnias indígenas
pergunta do pai, se o pai era alcoolista, se era no Brasil. Quando uma mulher procria, é algo cole-
uma análiseem
violento, se era negligente. Pai negligente, no Bra- tivo; ela pariu, mas quem cuida é o coletivo. Creche
Psicologia
e desastres
sil, é pleonasmo, e eu não estou falando de pais é uma intervenção em saúde mental de mulheres,
que não botam o nome na certidão, estou falando creche é direito mental das “humanas”, porque a
daquele que é um abajur em casa, o que é muito falamos de Direitos Humanos e esquecemos que
interdisciplinar:
comum. Aí tem homens que ficam indignados: “Ah, tem as “humanas”, em geral, as “humanas” são
emergências
mas eu gosto de ser pai”, mas se ele botar o seu esquecidas. Aí você poderia dizer assim: “Ah, mas
eu não sou mãe, escapei!”. Errado, porque o dispo-
SP
bebê no canguru e for ali na padaria amanhã, ga-
em CRP
nha um post no Facebook. Homem, quando faz um sitivo materno, a metáfora de base do dispositivo
na prática
pouco, é elogiado; a mulher, quando faz, não é nem materno é a ideia de heterocentramento. Existem
Temáticos
pedagogias afetivas através dessas tecnologias
Psicologia
lembrada. Ela é lembrada quando deixa de fazer.
Isso mostra o quanto a maternidade é naturaliza- de gênero que nos ensinam, que nos configuram
obstétrica
da para as mulheres. afetivamente, nos ensinam a sempre priorizar os
SP Cadernos
outros em detrimento da gente. Aprendemos a
Tanto o amor quanto a ideia de maternida- priorizar em primeiro lugar o outro, em segundo
de para as mulheres são identitárias, mas não o
psicologia
o outro, em terceiro o outro… aí, em quinto lugar,
são para os homens. Para os homens, a questão vem a gente. E os homens? O caminho de subjeti-
identitária tem muito mais a ver com trabalho, a
potência da CRP
vação dos homens é o egocentramento: primeiro
virilidade laborativa e a virilidade sexual. Então, eu, segundo eu, quinto eu… em sexto vem alguém.
A Temáticos
por exemplo, eu lembro que encontrei com um Os homens têm cuidado pouco e muito mal.
amigo meu que fez o mestrado quando eu esta-
va no doutorado e aí ele disse: “Valeska, estou A grande dificuldade das mulheres é apren-
obstétrica
brasileira
e desastres
Isabel Bernardes
da realidade
Graduada em Psicologia (Licenciatura e Formação de Psicólogo) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho – Unesp (Campus Bauru – 2009) e Mestra em Psicologia Social pela PUC-SP (2016). Atua desde
emergências
2010 como Psicóloga Agente de Defensoria na Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
crítica
Isabel, como mediadora da mesa, se apresenta res em situação de rua e/ou usuárias ou acusadas
em
como psicóloga no Centro de Atendimento Multi- de serem usuárias de entorpecentes na cidade de
uma análise
Psicologia
disciplinar da Defensoria Pública do Estado de São São Paulo. Afirma que esse grupo tem discutido o
e desastres
Paulo, participante do grupo de trabalho que discu- afastamento entre essas mulheres e seus bebês
te o acolhimento sistemático de bebês e de mulhe- como uma violência obstétrica.
interdisciplinar:
emergências
em CRP
na prática
Temáticos SP
Ariane Goim Rios
Psicologia
Psicóloga. Mestra em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Pós-graduada
obstétrica
em Dependência Química (Unifesp) e Psicoterapia Analítica de Grupo (SPAG). Atualmente é diretora do
SP Cadernos
Departamento de Proteção Social Especial da Unidade de Gestão e Assistência Social da Prefeitura de
Jundiaí, com direção de serviços para pessoas em situação de rua, mulheres vítimas de violência doméstica e
famílias em situação de violência. Presidenta do COMAD (Conselho Municipal Antidrogas), de Jundiaí.
psicologia
potência da CRP
“A potência da Psicologia Obstétrica na prática tado às questões médicas, às questões do parto,
A Temáticos
interdisciplinar: uma análise crítica da realidade enfim, ao que ocorria no momento do nascimento
brasileira”... fico muito feliz de ouvir esse termo, das crianças. Mas hoje já conseguimos ampliar
porque, há poucos anos, discutíamos em Jundiaí um pouco isso para outras questões, e essa é
a importância de ter com as populações mais vul- minha fala. Vou falar sobre as relações de desi-
a experiência obstétrica na vida de Quando essa mulher fica grávida, ela sai da
invisibilidade e fica em supervisibilidade; todos os
mulheres marginalizadas”
holofotes se direcionam para a vida dessa mu-
lher, no sentido de controlar a sua conduta, no
Havia uma desigualdade de investimento
sentido de chegar a um diagnóstico, a um critério
de tempo, de recursos humanos, de intervenções
do “Ela vai ser capaz de ser mãe?”. Porém, é um
técnicas, inclusive, pensando em todo o contexto
diagnóstico estruturado em preconceitos, em ró-
em que esse bebê nasce. E isso me incomodou
tulos, e não algo que parte de uma neutralidade.
bastante. E aí o que a gente faz em nome da de-
Muito pelo contrário: parte de um julgamento por
fesa da vida? A gente pratica violência institucio-
vezes moral, inclusive de profissionais que atuam
nal, violência direta, violência estrutural e uma
na nossa área. Eu cansei de ver, em audiências
série de outras coisas que fomos percebendo,
de que participei, julgamentos morais que não ti-
em nome da defesa da vida da criança. Mas uma
nham a ver com uma condução técnica, com uma
coisa que começamos a pautar em Jundiaí foi: os
boa avaliação, com o manejo do caso. Mulher so-
direitos não são concorrentes, você não precisa
freu violência, está grávida, faz uso de drogas.
dizer do direito da mulher ou do direito do bebê;
E temos pesquisas dizendo que todo usuário de
você pode somar o direito da mulher e o do bebê,
droga pode ser vítima de algum tipo de precon-
porque é claro que ninguém em sã consciência
ceito, mas a mulher usuária de drogas sofre mais
quer causar mal a um bebê e ninguém está de-
preconceito do que o homem usuário de droga. O
fendendo esse discurso. Dizer “Ah não, eu quero
estigma é de que ela é negligente, agressiva, pro-
que ele realmente tenha complicações” não é o
míscua, ou seja, não é a mesma medida que se
objetivo, mas não são coisas que se alternam,
tem para o homem.
que são concorrentes; pelo contrário, elas estão
intimamente relacionadas.
Explorando esse labirinto – eu coloco a 1 SOUZA. Jessé. Crack e exclusão social. Brasília: Ministério da
Justiça e Cidadania/Secretaria Nacional de Política sobre Dro-
questão do labirinto porque foi o título da minha gas, 2016. Disponível em: < http://www.aberta.senad.gov.br/
dissertação –, na verdade, fazemos a reflexão de medias/original/201702/20170214-115213-001.pdf>. Acesso
em: 10 abr. 2019.
ram filhos, mas que às vezes o pessoal fala assim:
43
“Quando essa mulher fica grávida, “Ela já é conhecida da rede, já passou em tal, tal e
tal lugar. Isso já vem acontecendo há algum tempo”.
ela sai da invisibilidade e fica Eu entendo que, por vezes, com a infância e a juven-
em supervisibilidade; todos os tude, o Poder Judiciário é mais rígido do que a nos-
holofotes se direcionam para a sa vara criminal: para ser condenada por um crime,
brasileira
você tem que ter cometido ele, não pode apenas ter
vida dessa mulher, no sentido
e desastres
tido a intenção de cometê-lo. Você não vai ser con-
de controlar a sua conduta, denada por isso, mas nessa esfera você pode ser
da realidade
no sentido de chegar a um condenada antes mesmo de ser mãe, antes mesmo
emergências
de praticar uma possível maternidade. O que obser-
diagnóstico, a um critério do ‘Ela vamos quando eu estava fazendo a minha disserta-
vai ser capaz de ser mãe?’. Porém, ção de mestrado e em alguns casos que acompa-
crítica
é um diagnóstico estruturado nhei enquanto caso analisador da pesquisa: qual é o
em
poder que está incidindo na vida dessas mulheres?
uma análise
em preconceitos, em rótulos,
Psicologia
O que está atravessando esse contexto de Jundiaí,
e desastres
e não algo que parte de uma Belo Horizonte, São Paulo e outras cidades? É o po-
neutralidade. Muito pelo contrário: der disciplinar, é o controle do corpo? É o poder so-
interdisciplinar:
berano? “Não, mas será que o poder soberano faz
parte de um julgamento por vezes
emergências
sentido no contexto em que a gente vive hoje?”. O
moral, inclusive de profissionais que a gente percebia era o biopoder. Mas como é
SP
que atuam na nossa área” que se desenha isso dentro dessa situação?
em CRP
na prática
Temáticos
Quanto mais eu me aproximo das mulheres
Psicologia
que estão vivendo em situação de rua, mais eu “Mulheres que já sofreram violência
em outros espaços continuam
obstétrica
tenho tido contato com histórias de vida em que
SP Cadernos
nossa avaliação, às vezes, é muito rasa para dizer
sofrendo a violência na rua, mas, de
que ela está exposta à violência – eu vou dizer
uma coisa agora que parece inacreditável, mas alguma maneira, para algumas, isso
psicologia
estar na rua pode significar proteção em vários significa quase uma redução dos
potência da CRP
aspectos. Mulheres que já sofreram violência em
danos. Em alguns arranjos que se
outros espaços continuam sofrendo a violência
A Temáticos
na rua, mas, de alguma maneira, para algumas, formam no território da rua, o que a
isso significa quase uma redução dos danos. Em gente chama de ‘rua’, ela vai estar
alguns arranjos que se formam no território da
chamando de ‘casa’ ”
brasileira
que está por trás dos julgamentos de relatórios e
daquilo que é possível e daquilo que de
e desastres
de uma série de coisas que a gente observa.
fato faz sentido enquanto intervenção
E isso – é claro – é violência obstétrica. É
da realidade
nesse período de gestação que essas mulheres para a vida delas e para a vida desse
emergências
estão lutando para serem mães. Então, é uma bebê, porque, ainda que aconteça uma
ameaça ao direito à maternidade, entre outros
destituição do poder familiar, a forma
crítica
direitos que são violados nessa situação, os pro-
dutos disso, desassistência, desamparo: se a vida como esse processo judicial acontece
uma análiseem
dela não é importante, “por que eu vou fazer pré- vai impactar sobre a vida de ambos”
Psicologia
e desastres
natal? Por que mesmo eu tenho que ir ao ambula-
tório fazer tal exame?”. Não faz sentido, não chega
está posto, então, não se pode ameaçar explicita-
nela. O preconceito, a discriminação, a violência, a
interdisciplinar:
mente o direito à vida, mas se pode expor alguns à
judicialização, a gravidez de repetição, que é uma
emergências
morte, expor a condições que não são adequadas
coisa muito comum de acontecer… a mulher perde
para sua sobrevivência. Isso o Estado é capaz de
o bebê para o Estado e fica grávida de novo de-
SP
fazer, e, por mais que tenhamos uma defesa in-
em CRP
pois de pouco tempo. Aí entra outra violência, que
transigente do direito à vida, observamos essas
na prática
é fazer uma laqueadura não consentida, com falsa
Temáticos
nuances, essa violência estrutural que atravessa
justificativa médica, não adotando os critérios que
Psicologia
a vida dessas mulheres e que vem condenando a
a gente tem na legislação para que seja feita a la-
maternidade delas.
obstétrica
queadura. Então, se diz coisas como: “A gente não
SP Cadernos
tem certeza se você vai ficar com o bebê, então é Temos trabalhado em Jundiaí no sentido de
melhor você nem ver ele, nem criar vínculo” ou se pensar o acolhimento conjunto, isto é, da mãe e
psicologia
dificulta o contato dessa mulher com o bebê até do bebê. Existem alternativas: existe família ex-
que se tenha certeza disso. tensa, família guardiã, que é a guarda subsidiada
potência da CRP
para a família extensa. Existem vários desenhos
Enfim, são inúmeras as manifestações de
possíveis. Ninguém está dizendo “Ah, tá bom, ela
A Temáticos
violência que podem acontecer nesse desenho,
vai ficar com essa criança que, às vezes, nasce
como a exigência de emprego e de moradia. Eu
prematura em uma situação complicada”, “Ah, ela
cansei de ver mulheres que interromperam o uso
vai criar na rua?”. Não, eu não estou dizendo isso.
Fui incumbida de falar sobre a atuação crítica da cologia obstétrica, e reforça ainda mais esse bra-
psicologia obstétrica. Eu defendi a minha tese de ço da psicologia da saúde e hospitalar, muito as-
doutorado em 2005 e sofri muito porque estava sociada à área da obstetrícia. Mais recentemente,
estudando as mulheres com depressão pós-par- eu e minhas parceiras de trabalho – a Bianca Amo-
to e só encontrava referenciais dentro da área da rim e a Luciana Rocha – temos tentado juntar os
psicologia que desconsideravam esse contexto, termos “psicologia perinatal” e “parentalidade”.
que ficavam muito mais no intrapsíquico, espe-
cialmente a psicanálise. As linhas teóricas que fo-
cavam muito nisso, então eu encontrava registros “Nós temos que cuidar das mães
de que uma mulher com depressão era basica-
não com olhar interesseiro, como
mente imatura e tinha problemas com a mãe. E eu
falava “Tá, e aí? Ela está aqui na minha frente, tem se ela fosse uma hospedeira que
um bebê para amamentar daqui a quatro, três ho- está ali apenas para gestar um
ras, duas horas. E aí? Nós vamos ter que resolver
bebê, interessada apenas na saúde
o problema dela com a mãe primeiro? Como é que
é?”. Eu não sentia respaldo. Só consegui encon- do bebê, mas como alguém que
trar algo quando saí da psicologia e parti para a está interessada na própria saúde.
teoria do gênero. Foi absolutamente libertador;
É preciso que a gente mude esse
para mim, foi a saída para poder entender aquela
mulher, o contexto da maternidade. referencial e tenha um olhar mais
O que eu trouxe aqui, bem brevemente, é
complacente e inclusivo para essa
uma evolução dessa área denominada psicologia mulher, deixando de olhar para ela
obstétrica, que surgiu na defesa de um pré-natal como a causa dos problemas de
humanizado. Ela é um braço da psicologia clínica
e um braço da psicologia hospitalar ou da saúde.
seus filhos”
Então, inicialmente, recebeu alguns nomes, como
psicologia da gravidez, nos livros da Maldonado de
19801. Depois, foi publicado um livro que também Então, todo o trabalho que venho desenvol-
foi um marco na área, que é o Psicologia aplicada à vendo desde 2005 e antes, ao elaborar a tese, tem
prática obstétrica2, da Bortoletti, que traz o termo como base a teoria do gênero, um olhar ampliado
“psicologia perinatal”. Bortoletti sintetiza, em psi- para essa mulher. Eu me incomodava – e me in-
comodo até hoje – que o olhar seja voltado para
o bebê, tanto que escrevo isso na minha tese e
1 MALDONADO, Maria Tereza. Psicologia da gravidez. São Paulo: sempre falo disso: a minha bandeira é pelas mu-
Vozes, 1981.
lheres. Nós temos que cuidar das mães não com
2 BORTOLETTI, Fátima Ferreira. Psicologia aplicada à prática olhar interesseiro, como se ela fosse uma hospe-
obstétrica. São Paulo: Manole, 2007.
deira que está ali apenas para gestar um bebê,
47
interessada apenas na saúde do bebê, mas como “A terminologia Psicologia Obstétrica
alguém que está interessada na própria saúde. É
preciso que a gente mude esse referencial e te-
não é consensual. É uma área
nha um olhar mais complacente e inclusivo para nova, em construção, que eu tenho
essa mulher, deixando de olhar para ela como a chamado de psicologia perinatal.
brasileira
causa dos problemas de seus filhos.
Estuda os fenômenos psíquicos que
e desastres
Eu concordo com a Valeska Zanello: a psi-
ocorrem em torno do nascimento
cologia prestou um desserviço muito grande, ao
da realidade
lado da pediatria, e as mães foram crucificadas. A e da parentalidade, entendendo a
emergências
gente aprende no curso de psicologia que, quan- parentalidade como uma construção,
do você faz uma anamnese, vai atrás de quem?
e aí eu vou me apoiar nas teorias
crítica
Da mãe. Se esse menino tem problema, a culpa é
de quem? Da mãe. É sempre da mãe, ninguém fala de gênero. Ela não está dada, não
uma análiseem
do pai, e, quando o menino tem sucesso, ninguém está pronta, não é natural. Ser mãe
Psicologia
e desastres
culpa a mãe. A culpa é sempre da mãe. A gente
não é natural, a mulher não nasceu
prestou um desserviço e precisa reverter esse
olhar na área da psicologia obstétrica. para ser mãe; apesar de andarem
interdisciplinar:
dizendo muito isso ultimamente,
emergências
A terminologia Psicologia Obstétrica não é
consensual. É uma área nova, em construção, que não é a realidade. Assim como um
SP
eu tenho chamado de psicologia perinatal. Estuda pai também não nasceu para ser
em CRP
os fenômenos psíquicos que ocorrem em torno do
pai. Todos vão ter que aprender,
na prática
Temáticos
nascimento e da parentalidade, entendendo a pa-
Psicologia
rentalidade como uma construção, e aí eu vou me desejar, estudar, treinar, construir
apoiar nas teorias de gênero. Ela não está dada, esses papéis. As funções materna
obstétrica
não está pronta, não é natural. Ser mãe não é na-
SP Cadernos
tural, a mulher não nasceu para ser mãe; apesar
e paterna deveriam ser de
de andarem dizendo muito isso ultimamente, não acolhimento e provisão”
psicologia
é a realidade. Assim como um pai também não
nasceu para ser pai. Todos vão ter que aprender, cia. Então, nós, psicólogas, precisamos… Sabem
potência da CRP
desejar, estudar, treinar, construir esses papéis. o peixinho, quando sobe o rio? Está todo mundo
A Temáticos
As funções materna e paterna deveriam ser de descendo e ele está subindo sozinho. Nós somos
acolhimento e provisão. Então, tanto o homem esse peixinho: temos que ir contra a maré, porque
quanto a mulher fazem os dois, cuidado e provi- geralmente a maré padroniza, a maré objetifica,
devemos incluir a teoria do gênero. É por isso que apenas o mundo intrapsíqui-
co não serve de base para a gente. A subjetivida-
Temos que saber de obstetrícia,
de é construída de acordo com uma visão sócio-
mas também que entender essa histórica, assim como os profissionais de saúde.
construção sócio-histórica da Então, eles vão deixar que isso apareça em sua
prática; de alguma forma, às vezes muito bem-in-
mulher. Isso é fundamental para
tencionados, vão acabar atravessando e usando
atuar criticamente nessa área, esse discurso, que é muito opressor. É o discurso
senão vamos simplesmente estar ativista, como já foi falado aqui. Hoje, toda mulher
tem que amamentar, e esse discurso é opressor.
reproduzindo discursos históricos,
tradicionais, vamos reproduzir
estereótipos de gênero” “Hoje eu defendo que a depressão
pós-parto é uma grande decepção
todo mundo volta o olhar para a mãe e esquece o
pai; ninguém cuida do pai enlutado, ninguém cui-
com a maternidade, pelo pacto
da da avó enlutada. Então, temos também que ter do silêncio que a sociedade faz,
esse olhar. Nos casos de aborto espontâneo ou porque ninguém quer falar do lado
mesmo de aborto legal – eu atuo como psicóloga
na Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Fe-
B da maternidade, ninguém quer
deral, e lá nós temos um programa de aborto legal falar do lado ruim, do lado difícil”
que é chamado Programa de Interrupção Gesta-
cional Prevista em Lei –, as questões de gênero
são atravessadas o tempo inteiro. Quando escrevi minha tese de doutorado, captei
as participantes da minha pesquisa no banco de
Eu trabalho com vítimas de estupro que en- leite; todas as mulheres que eu encontrei com de-
gravidaram, e brinco que a gente sofre bullying dos pressão pós-parto foi no banco de leite. Por quê?
outros profissionais de saúde dentro do hospital. Por causa desse discurso opressor. A mulher que
Muitas vezes, a mulher sofre violência obstétrica, não consegue amamentar se vê como uma mu-
além da violência sexual que já sofreu. Então, ela lher defeituosa, como uma mulher que não serve
vai fazer uma ecografia e a gente vai junto, por- para ser mãe, que é incapaz. Esse é o start para
que, se não formos, vão mostrar o feto para ela a depressão pós-parto. Já ouviram isto: “Eu sou
e dizer “Olha aqui o batimento cardíaco do bebê uma mãe desnaturada?”. Porque o natural é sa-
que você quer tirar”. E nós vamos como guardiãs ber amamentar, o natural é ter um parto normal,
mesmo. Eu falo que somos guardiãs da subjeti- o natural é amar incondicionalmente um filho, o
vidade dessa mulher: a gente cuida para que ela natural é ser exclusiva para o filho. Então, quan-
não sofra violência institucional, não seja violen- do a mulher não se identifica com isso, começa a
tada novamente, até porque os próprios procedi- achar que é um monstro, que “Eu não nasci para
mentos são violentos. Esta semana recebemos ser mãe”, e aí começam todas as decepções.
uma africana que mal falava português. Acho que
foi um dos casos mais difíceis, porque ela não su- Hoje eu defendo que a depressão pós-parto
portava fazer o exame da ecografia transvaginal, é uma grande decepção com a maternidade, pelo
então foi um problema absurdo. O trauma era tão pacto do silêncio que a sociedade faz, porque
grande que tiveram que fazer uma ecografia pél- ninguém quer falar do lado B da maternidade, nin-
guém quer falar do lado ruim, do lado difícil. Eu tive
49
uma colega que fez uma tese também lá na UNB “No meu pós-doutorado, descobri
sobre depressão pós-parto e tentou falar sobre
isso nos postos de saúde de Brasília. Ela foi expul-
que essa visão ajuda a prevenir
sa. As mães diziam assim: “Você está aqui agou- o adoecimento psíquico no
rando a nossa gestação. Nada disso vai acontecer puerpério, a depressão pós-
brasileira
com a gente; não queremos falar disso”. E isso, na-
parto, o adoecimento, porque
e desastres
quela época, era muito forte. Hoje melhorou muito.
As pessoas já se permitem falar mais do assunto, essa mulher vai chegar vacinada,
da realidade
porém, tem um limite importante. Eu não sei se vo- com uma visão mais realista,
emergências
cês se lembram de um caso recente no Facebook
envolvendo uma puérpera que tinha acabado de
com menos opressão em relação
ter o filho e que não postou as fotos lindas que ao que é ser uma boa mãe. Ela
crítica
geralmente vemos por aí. Ela postou as fotos dela vai imprimir na relação com o
em
acabada de tanto amamentar e o título do post
uma análise
bebê o jeito dela de ser mãe.
Psicologia
dela era: “Amo meu filho, mas estou odiando ser
e desastres
mãe”. Ela foi banida do Facebook. Vocês conhe- Se for necessário trabalhar a
cem alguém que já foi banido do Facebook? Eu amamentação possível, não é
interdisciplinar:
não conheço. Ela foi banida porque não se pode
uma amamentação a qualquer
emergências
falar disso; a gente tem que manter essa noção
idealizada do que é ser mãe, e isso, como a teoria custo, a qualquer preço. Isso
SP
do gênero vai mostrar, foi construído ideologica- não vai fazer dela mais mãe ou
em CRP
mente, de maneira proposital. E aí vem o pacto do
menos mãe, assim como o tipo
na prática
Temáticos
silêncio: a gente não fala disso.
Psicologia
do parto; também se inclui aqui a
A psicóloga, para atuar com tudo isso, não
parentalidade compartilhada”
obstétrica
pode compactuar com essas coisas. Não pode
SP Cadernos
entrar e reforçar esse discurso. Eu dou algumas
palestras nos cursos do IHAC, que é o Hospital mais velho do filho e não assume. Não trabalha-
psicologia
Amigo da Criança, sobre os sete passos da ama- mos com a paternidade compartilhada, com a pa-
mentação. Disse para a minha colega enfermeira rentalidade. Então, acho que nós, enquanto psi-
potência da CRP
que me convida: “Não espere ouvir de mim que ela cólogas, precisamos imprimir tudo isso na nossa
tem que amamentar, que o leite materno é o amor
A Temáticos
atuação. Eu faço muito isso no trabalho do pré-na-
líquido, que ela tem que fazer o sacrifício, que ser tal psicológico, uso tudo o que estou falando aqui,
mãe é padecer no paraíso. Não é isso”. Quando porque acredito que isso é uma vacina psíquica
eu cheguei lá, ela me deu uns slides que vêm do para a gestante. Precisamos pegar essa mulher já