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cadernos temáticos CRP SP


Patologização e medicalização
das vidas: reconhecimento
e enfrentamento - parte 3
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06

35
cadernos temáticos CRP SP
Patologização e medicalização
das vidas: reconhecimento
e enfrentamento - parte 3

CRP 06 · São Paulo · 2019 · 1ª Edição


Caderno Temático n° 35 – Patologização e medicalização das vidas: reconhecimento e enfrentamento -
parte 3

XV Plenário (2016-2019)

Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira

Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)

Organização do caderno
Lucia Masini, Rosangela Villar, Maria Rozineti Gonçalves e Lilian Suzuki

Revisão ortográfica
Lucia Masini

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Relações Externas CRP SP

___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Patologização e medicalização das vidas: reconhecimento e
enfrentamento - parte 3. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. - São
Paulo: CRP SP, 2019.
80 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 35)

ISBN: 978-85-60405-62-6

1. Psicologia – Medicalização da Educação. 2. Medicalização da Vida. 3.


Patologização da Educação. 4. Dia Municipal de Luta contra a Medicalização da
Educação. I. Título
CDD 150.7
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Antonio de Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar


um dos princípios que orientam as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogas/os; o segundo é o de identificar
áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
ser um espaço para que a categoria apresente suas posições e questiona-
mentos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção co-
letiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como
ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira


a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que
contaram com a experiência de pesquisadoras/es e especialistas da Psicolo-
gia para debater sobre assuntos ou temáticas variados na área. Reafirmamos
o debate permanente como princípio fundamental do processo de democrati-
zação, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os cami-
nhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes
em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como um fenômeno complexo, multideterminado e historicamente
produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite
à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas/os, bem
como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-
dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 35º Caderno da série. Seu tema é: Patologização e medicalização


das vidas: reconhecimento e enfrentamento - parte 3.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo


para o espaço coletivo informações, críticas e proposições sobre temas rele-
vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita


ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todas/os.

XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial


2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
16 – Psicologia e Segurança Pública
17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social
18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional
19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão
20 – Psicologia Organizacional e do Trabalho
21 – Psicologia em emergências e desastres
22 – A quem interessa a “Reforma” da Previdência?: articulações entre a psicologia e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores
23 – Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção
24 – A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise crítica da realidade brasileira
25 – Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa
26 – Psicologia, exercício da maternidade e proteção social
27 – Nossa luta cria: enfrentar as desigualdades e defender a democracia é um dever ético para a Psicologia
28 – Psicologia e precarização do trabalho: subjetividade e resistência
29 – Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência
30 – Álcool e outras drogas: subsídios para sustentação da política antimanicomial e de redução de danos
31 – Psicologia e justiça: interfaces
32 – Conversando sobre as perspectivas da educação inclusiva para pessoas com Transtorno do Espectro Autista
33 – Patologização e medicalização das vidas: reconhecimento e enfrentamento - parte 1
34 – Patologização e medicalização das vidas: reconhecimento e enfrentamento - parte 2
Sumário

07 Introdução
Núcleo de Educação e Medicalização do CRP SP

Solenidade em comemoração ao Dia Municipal


de Luta Contra a Medicalização da Educação

09 Mesa de Abertura
Palestras

12 Ajax Perez Salvador

17 Lucy Duró Matos Andrade Silva

20 Lucia Silva

23 Debate

A patologização da Educação

29 Pedro Tourinho

29 Rosangela Villar

30 Ângela Soligo

35 Debate
Eu digo não à medicalização
e à patologização da educação

40 Helena Rêgo Monteiro

45 Maria Rozineti Gonçalves

Estado da Arte - Voz dos Territórios: desafios e proposições da


Psicologia no Estado de São Paulo

46 Lilian Suzuki

47 Maria da Penha Tamburú Lopes

48 Rosangela Villar

49 Claudia Lofrano

50 Ione Xavier

51 Elisabeth Gelli

52 Beatriz Mattos

53 Marília Alves

54 Intervenção cultural com Gustavo Braunstein e Debate

56 A Psicologia e a Medicalização da Educação


Anabela Almeida Costa Santos Peretta

60 A Psiquiatria e a Medicalização da Educação


Rossano Cabral Lima

65 A Pedagogia/Educação e a Medicalização
Cecília Collares

71 A Fonoaudiologia e a Medicalização da Educação


Vera Regina Vitagliano Teixeira

75 Debate
Introdução 7

Núcleo de Educação e Medicalização do CRP SP

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Temática fundamental que merece reflexão e tem como consequência a patologização, em
construção de ações de enfrentamento tanto especial de crianças e adolescentes nas esco-
nos aspectos ligados diretamente à Educação, las. Estes PLs são reeditadas sistematicamente
quanto à vida das pessoas. nas casas legislativas e merecem total atenção

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
e articulação do Sistema Conselhos, de profis-
O CRP SP tem essa diretriz fruto de deli-
sionais da categoria e outros – ligados ou não

Cadernos Temáticos
berações de nossos COREPs e CNPs, há várias
à Educação e representantes do Legislativo.
gestões e o presente Caderno Temático traz à
Estes PLs geralmente tem a temática ligada a
categoria e à sociedade debates, palestras e
supostos transtornos de aprendizagem, como

Patologização
conferências que o Conselho organizou, apoiou
a dislexia e o TDAH, mas podem também atin-
ou foi parceiro, na gestão 2016 a 2019.
gir outros temas, que medicalizam, patologizam
Entendendo a medicalização/patologiza- e judicializam – como a manicomialização, as
ção da educação e da vida como um processo/ questões étnico-raciais e de gênero, o abuso de
atitude que transforma, artificialmente, ques- cesáreas no Brasil, o parto desumanizado, a cri-
tões não médicas em médicas, com aspectos minalização de crianças e adolescente, via redu-
da vida - de diferentes ordens - sendo trans- ção da maioridade penal, dentre outras pautas.

Cadernos Temáticos CRP SP


formados em “doenças”, “transtornos”, “distúr-
Dada à abrangência do fenômeno e às
bios”; questões coletivas olhadas como indivi-
consequências desastrosas para a vida das
duais; e problemas sociais e políticos, tornados
pessoas, é fundamental que o CRP produza po-
biológicos; e, tendo como uma das consequên-
sicionamentos e documentos de referência que
cias, a manutenção da des-responsabilização
auxiliem a categoria a identificar criticamente
de pessoas, instituições e governos por esta
práticas patologizantes, medicalizantes e judi-
situação de sofrimento, discriminação e exclu-
cializantes; e, que continue apoiando este en-
são – reafirma-se a necessidade do Conselho
frentamento em todas as formas possíveis.
atuar na temática.
É importante salientar que a partir da prá-
O CRP, via Núcleo de Educação e Medica-
tica despatologizante de profissionais em di-
lização e em parceria com o Fórum sobre Medi-
ferentes setores e de sua efetiva participação
calização da Educação e da Sociedade e o Des-
crítica em espaços de construção de políticas
patologiza - Movimento pela Despatologização
públicas e de controle social, alguns frutos vêm
da Vida, vem realizando e apoiando eventos
sendo colhidos. O protocolo do metilfenidato,
que discutem como enfrentar esses processos.
implantado em Campinas/SP, como uma expe-
As principais ações tem sido dar visibili- riência pioneira; sua implantação em forma de
dade ao 11 de Novembro – Dia Nacional de En- Portaria no município de São Paulo/SP; a cons-
frentamento à Medicalização da Educação e da trução de protocolos – em andamento – em
Sociedade, promover debates, posicionamentos muitos municípios, dentro e fora do estado de
e acompanhar os Projetos de Lei - PLs - que São Paulo; as Recomendações do Ministério da
Saúde para adoção de práticas não medicali- Organização, apoio e parceria de eventos
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zantes e para adoção de protocolos estaduais sobre o tema se tornam fundamentais.
e municipais de dispensação do metilfenidato
Tendo este projeto como eixo estruturan-
para prevenir a excessiva medicação de crian-
te, a organização deste Caderno Temático é
ças e adolescentes; e a divulgação à todas as
mais uma forma de lidar com a temática. Sele-
unidades educacionais do país destas Reco-
cionamos materiais gravados de eventos orga-
mendações pelo Ministério da Educação (MEC)
nizados ou apoiados pelo CRP e os movimentos
por meio da Secretaria de Educação Básica
contra a patologização e a medicalização da
(SEB) e da Secretaria de Educação Continuada,
sociedade e/ou pelo legislativo.
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)
são exemplos destes frutos. Mas ainda há mui- Nesta terceira parte, em ordem de reali-
to a se construir. zação, temos os seguintes materiais para enri-
quecer nossas reflexões e práticas:
Alguns objetivos precisam ser buscados
de forma sistemática pelo CRP: • Solenidade em Comemoração ao Dia Munici-
pal de Luta Contra a Medicalização da Educa-
a. Promover discussões junto aos movi-
ção, Evento nº 2496_2 realizado na Câmara
mentos sociais sobre o tema da medica-
Municipal de São Paulo. Data: 17/11/2017;
lização e da patologização, envolvendo
profissionais da assistência social, da • Evento da Campanha Municipal e Estadual de
saúde, da educação, do sistema de justi- Luta contra a Medicalização da Educação e
ça, das ciências humanas, estudantes de da Sociedade: A patologização da Educação,
psicologia e segmentos sociais afins, in- realizado na Câmara de Vereadores de Cam-
cluindo a construção e divulgação de prá- pinas/SP. Data: 21/11/2017;
ticas psicológicas não medicalizantes;
• Evento Eu digo não à medicalização e à pato-
b. Manter o compromisso com: logização da educação, realizado no Auditó-
rio UNIP Vergueiro. Data: 24/11/2018.
a Resolução 177/2015, do CONANDA,
que dispõem sobre o direito de crian- Esperamos que aproveitem.
ças e adolescentes de não serem sub-
metidos à excessiva medicalização;

a Recomendação Mercosul/XXVI
RAADH/P nº 1/2015, de 6 de julho de
2015, que afirma a importância de ga-
rantir o direito de crianças e adoles-
centes a não serem excessivamente
medicados e recomenda o estabeleci-
mento de diretrizes e protocolos clíni-
cos sobre o tema;

as Recomendações do Ministério da
Saúde para a adoção de práticas não
medicalizantes, de 1 de outubro de 2015;

e a Recomendação nº 19 do Conselho
Nacional de Saúde, de 8 de outubro de
2015, que recomenda ao Ministério e
Secretarias de Saúde a promoção de
práticas não medicalizantes,

c. Elaborar, de forma descentralizada nas


subsedes, pilares de apoio à categoria e
a profissionais de diferentes áreas que
forneçam informações e programas re-
lacionados à compreensão do fenômeno
da medicalização e seu enfrentamento.
Solenidade em comemoração ao 9

Dia Municipal de Luta Contra a


Medicalização da Educação

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e enfrentamento
Mesa de Abertura

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento
Eliseu Gabriel: Boa noite. Vamos começar o nosso logia, é uma imensa satisfação estar aqui, nesses
evento que comemora, pelo sexto ano consecuti- anos todos compondo esses eventos junto com o
vo, o Dia Municipal de Luta Contra a Medicalização Fórum sobre Medicalização. E dizer que a psicolo-
da Educação, instituído pela lei municipal 15.554 de gia sempre tem como pauta contribuir para a de-

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
30 de março de 2012. Foi de minha autoria, vere- fesa dos direitos humanos, para a defesa das po-
ador Eliseu Gabriel, e, hoje, vamos trazer uma re- líticas públicas, especialmente, num momento que

Cadernos Temáticos
flexão sobre o tema “Medicalização da vida, uma vemos cada vez mais o avanço de direitos sendo
questão de saúde, educação ou política”. Mas, an- aviltados. Posso citar alguns deles: recentemen-
tes, temos nossa mesa de abertura. te, tivemos um olhar para a homossexualidade de

Patologização
novo como um desvio, como uma doença. Algo que
Vera Regina Vitagliano Teixeira: Boa noite
a psicologia havia superado, está sendo retomado.
a todas e todos. Primeiramente, eu gostaria de
Tivemos recentemente também, uma lei, conheci-
cumprimentar os membros que compõem a mesa
da como Lei do Risco Psíquico para identificação
de abertura deste evento. Em nome da diretoria
precoce em bebês e crianças, com aplicação de
e do colegiado do Conselho Regional de Fono-
protocolos em larga escala, cujos princípios e mé-
audiologia, agradeço o convite para participar
todos são questionáveis, principalmente por não

Cadernos Temáticos CRP SP


desta comemoração nessa mesa de abertura.
ter sido amplamente discutida com a sociedade
Tenho a dizer que é com imensa satisfação que
e com profissionais envolvidos com a infância; o
faço parte, mais uma vez, desta comemoração,
Conselho, juntamente com entidades do poder pú-
como o vereador Eliseu já claramente colocou
blico, entidades da luta antimanicomial e movimen-
aqui. Eu gostaria de, nesse momento, pontuar
tos sociais, está fazendo um enfrentamento em
uma questão, em tempos tão difíceis, como vi-
relação as violações de direitos em comunidades
vemos atualmente. Diferença deve ser entendida
terapêuticas, pois há um retrocesso ao verem as
como sinônimo de normalidade e não como sinô-
pessoas usuárias de substâncias psicoativas pela
nimo de patologia ou doença. Portanto, acredito
lógica da medicalização. Então, temos um cenário,
que devemos respeitar a diversidade nos espa-
só citando alguns pequenos exemplos, que hoje
ços educacionais e na sociedade em geral. E a
representa muito a necessidade da fazermos esse
fonoaudiologia se preocupa com essas questões
enfrentamento, fazê-lo coletivamente para que se
trabalhando pela valorização das diferenças. E é
potencialize os efeitos das nossas ações. E é por
este o recado que a fonoaudiologia gostaria de
isso que compomos junto, sempre, nesse enfrenta-
trazer aqui na participação deste evento e na
mento. O Conselho está realizando uma Campanha
participação como parceira do Fórum sobre Me-
durante o mês de novembro. Em todo o Estado de
dicalização da Educação e da Sociedade. Agra-
São Paulo estão sendo realizadas rodas de conver-
deço mais uma vez poder estar aqui com vocês.
sas, debates em espaços públicos e abertos, com a
Maria Rozineti Gonçalves: Obrigada, pro- categoria, outros profissionais e com a sociedade.
fessor Eliseu. Queria agradecer a todos, saudar a Então, reafirmo que estar junto nesse enfrenta-
mesa e dizer que, para Conselho Regional de Psico- mento é um prazer e uma necessidade.
Jason Gomes: Bom, boa noite a todos e to- Marilene Proença: Bom, boa noite para to-
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das. Gostaria de agradecer mais uma vez esse mo- dos da mesa, todos os presentes. É uma alegria
mento, ao vereador Eliseu Gabriel que tem sido um em nome da ABRAPEE estar aqui, nesta noite, em
parceiro bastante importante da educação e do que nós celebramos mais um Dia Municipal de
Fórum nessa luta, cumprimentar as demais cole- Luta Contra a Medicalização da Educação. Essa
gas que estão na mesa. E acho que dizer rapida- conquista, que teve como pilar o vereador Eliseu
mente, para não repetir, que o Fórum concorda com Gabriel aqui nessa casa, foi muito importante
as falas que foram feitas anteriormente. E o Fórum, porque, a partir desse momento, a cidade de São
inicialmente, teve uma ação muito de denúncia do Paulo insere no seu calendário oficial esse dia, o
fenômeno da medicalização, principalmente nos dia 11 de novembro, como o Dia Municipal de Luta
anos iniciais da luta contra a medicalização da Contra a Medicalização. Nós marcarmos esse
educação e da sociedade. Foram momentos mui- evento, na Câmara Municipal, porque ele ressalta
to difíceis, porque na hora em que se começa a para nós, que temos trabalhado incessantemente
apontar esse fenômeno da medicalização, há um esses últimos anos nessa ação civil, das entida-
aspecto muito difícil que é como explicar para a des, das pessoas interessadas numa vida melhor,
população as questões desse fenômeno amplo, numa sociedade melhor, numa criança que possa
complexo e tão enraigado no nosso modo de vida, ocupar o espaço da vida, o espaço da educação, o
que tem sido ao longo de muito tempo produzido espaço da brincadeira. Nós temos investido muito
pela lógica medicalizante. Entramos agora no séti- esses últimos anos nesses princípios, e eu creio
mo ano do Fórum, e é muito bacana perceber que que hoje, poder inaugurar, nessa noite, esse de-
já são sete anos de luta, de uma luta consolida- bate mais uma vez nessa Casa sobre a medica-
da em bases da luta coletiva, como a Rozi trouxe, lização, amplia cada vez mais para nós a certeza
buscando os parceiros, buscando as instituições, da importância dessa luta e da importância das
os profissionais, as famílias que estão também ações que temos feito no campo social juntos e
nessa luta. Esse é um momento em que o Fórum na relação que todas essas entidades estão es-
tem se colocado mais em ações propositivas, tan- tabelecendo com o poder público. E o poder pú-
to no âmbito legislativo, acompanhando o que tem blico tem um papel muito importante e que pos-
acontecido e levando temas para discussão, como samos ser o mais criativo possível para ampliar
também no âmbito executivo, quando algumas essas ações e fazer com que, cada vez mais, pos-
pautas, muitas vezes, são colocadas de um modo samos ampliar essa discussão nas escolas, nas
complicado, como a Lei 13.438 que foi aprovada no famílias, na sociedade de maneira geral. Então,
âmbito federal, que é para um rastreio de risco psí- nós só temos a agradecer essa oportunidade.
quico na infância. O Fórum, junto com outras insti- Muito obrigada.
tuições, ficou muito assustado quando isso acon-
Eliseu Gabriel: Eu também quero falar um
teceu, porque foi uma lei que foi aprovada no prazo
pouquinho. Primeiro, eu gostei muito do que to-
de 30 dias no Congresso. Então, o Fórum passou
dos falaram, é a essência da questão que nos
a pautar o tema no âmbito do executivo e propor
traz aqui, e o que a Marilene falou agora pouco
ações junto ao Ministério da Saúde para ver como
sobre a questão do poder público. Eu acho que
isso poderia acontecer. A resposta foi muito posi-
foi assim, um feliz casamento da ação da socie-
tiva. Recentemente, o Ministério da Saúde respon-
dade, da organização da sociedade com o par-
deu a um ofício do Fórum sobre essa lei, trazendo
lamento. Quando iniciamos esse trabalho, acho
considerações muito importantes sobre o quanto
que há oito ou nove anos, fizemos um grande
o próprio Ministério da Saúde entende que essa é
evento aqui na Câmara com 600 pessoas. Depois
uma lei que põe em risco o processo da infância, na
nós fizemos um CD do evento ultra concorrido,
medida em que traz a possibilidade de medicaliza-
distribuímos para o Estado inteiro, para o Brasil
ção no olhar dos profissionais da forma como lei
inteiro, e-mails, telefonemas, foi um fuá. Por quê?
está prevista. Acho que teremos um debate muito
Porque houve uma ação, uma ação da socieda-
importante na sequência e, mais uma vez, obriga-
de a partir da Marilene e de outras pessoas que
do pela presença de todos.
estão aqui, justamente preocupadas com uma
Marcella Milano: Muito obrigada pelo convite lei, eu sempre repito isso, uma lei que obrigava
e dizer que o SINPSI apoia muito a causa da medi- a realização de exames de dislexia para ver se
calização e que somos parceiros de luta e espera- os alunos do ensino oficial tinham dislexia. Isso
mos um bom debate agora. Muito obrigada. assustou as pessoas, então, fomos ver, tinham
cinco leis, cinco projetos de lei em andamento, e na Paulista em 50 ou 30”. Não parece, mas isso é
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até pessoas que a gente achava que eram pro- decisivo. Isso é um alerta, é uma chama acesa, é
gressistas estavam embarcando nessa onda. E uma coisa que leva, porque não podemos imaginar
foi graças a presença de vocês, e nós fizemos a que milhões de pessoas vão se mobilizar, é sempre
nossa parte aqui no parlamento, que consegui- um grupo mais dinâmico que acaba influenciando a
mos reverter esse caso. Inclusive, um caso inte- sociedade. Então, essa luta para mim é absoluta-

- parte 3
ressante de Santos, em que uma lei tinha sido mente fundamental. Tem muito a ser feito ainda e

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
aprovada, já estava até começando a entrar em nós temos de ganhar ideologicamente a socieda-
prática, foi convencido o vereado a refazer a lei de. E, para isso, a gente tem de estar o tempo intei-

e enfrentamento
contrária, anulando aquela lei, quer dizer, foi vo- ro combatendo, o tempo inteiro lutando, o tempo

Psicologia em emergências
tado de novo, extinguindo aquela lei. Mas isso inteiro buscando alternativas. Hoje, aqui, somos
continua pipocando no Brasil inteiro, temos de um grupo absolutamente fundamental “ah, mas
estar sempre atentos, aqui, na Câmara, volta e não tem tanta gente”, mas é essa gente mesmo
meia alguém mais desavisado faz e vamos para que vai fazer a diferença. Existem as publicações,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


o diálogo. Isso mostra o quê? Que a vida é assim, as gravações. Vou divulgar amplamente o que nós
temos de estar o tempo inteiro combatendo. Não fizemos aqui, vocês também, e vamos continuar o
dá para achar: “bom, já terminei esse assunto, vou combate. Acho que essa é a nossa missão aqui. E,
para outro”. Não. Esses assuntos são constan- finalmente, queria agradecer muito todas as enti-
tes, a gente tem de estar o tempo inteiro alerta, o dades que estão aqui, dar os parabéns pela orga-
tempo inteiro trabalhando e sempre lembrar essa nização. Isso é ultra bacana, o esforço, ver como as
questão do poder público. Tem de ver onde está coisas vão saindo. Então isso aqui é fundamental.

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
a institucionalidade, por onde as instituições de- Dar os parabéns para todas que estão nessa luta
cidem as coisas. Então, o Congresso Nacional e me comprometer a continuar junto com vocês.

Cadernos Temáticos
aprovou uma lei que eu nem fiquei sabendo, mas Muito obrigado.
se tivéssemos tido uma atuação no Congresso
Nacional, tivesse alguém lá, se alguém tivesse Jason Gomes: Vou fazer a mediação da pró-

Patologização
descoberto, teria um jeito de barrar, certo? xima mesa. Antes de chamar os componentes,
queria reforçar uma fala do Eliseu Gabriel, que acho
Então é uma luta constante, muito o que é
que é muito importante nesse contexto. A luta é
o nosso dia hoje, porque aqui a tendência da nos-
em defesa da diversidade e eu queria lembrar que
sa sociedade é individualizar o problema, é focar
o Fórum tem feito, nesses últimos sete anos, um
o consumo individual, é cada um ter seu aparta-
esforço muito grande para que essas lutas sejam
mento, é cada um ter seu carro, é cada um con-
em respeito à diversidade nos diferentes modos
sumir individualmente. Isso, de certo modo, vai se

Cadernos Temáticos CRP SP


de ser, existir e aprender, numa sociedade que
tornando uma forma de pensar das pessoas, um
é essencialmente produtora de sofrimento. E a
jeito de pensar, uma maneira de as pessoas agi-
medicalização tem muitos impactos, tem muitas
rem na sociedade. Ninguém pensa num sistema,
facetas, mas se tem um ponto em que ela é co-
no ecossistema, nos outros fatores que podem
mum em diversas dimensões em que o processo
estar influenciando o problema de aprendizagem
de medicalização traz sofrimento, é no caminho
ou o problema da vida de uma pessoa. A pessoa
de individualizar o sofrimento, seja ele na vida de
pensa “não, eu tenho aqui um remédio maravilhoso,
uma criança que está num processo educacional
que é só dar para ele” o problema é dele, não é do
complicado, seja na vida de um adulto que está em
conjunto da sociedade. Essa postura, essa luta de
conflito com questões da vida, e também de um
vocês, e eu também me envolvo, não é uma luta só
adolescente que pode estar em conflito com a lei.
contra a medicalização, é uma luta para produção
A individualização desses processos é um grande
do humano, para preservar a humanidade, para
problema e é contra isso que o Fórum tem lutado,
preservar a relação entre as pessoas e a constru-
e é muito em função disso que a gente pensa os
ção da humanidade justamente em comunhão, em
debates, como o debate que vai acontecer agora
comunidade.
na sequência. Então, gostaria de chamar: Ajax Pe-
Acho que essa é uma luta extremamente im- rez Salvador, médico, psiquiatra e psicoterapeuta
portante e acho que o trabalho que vocês têm fei- junguiano; Lucy Duró, pedagoga e psicopedagoga,
to é absolutamente decisivo, embora muitas vezes membro do Fórum sobre Medicalização da Educa-
nos sintamos isolados, “puxa, eu estou no parque... ção e da Sociedade e Lúcia Silva, socióloga e do-
Parque Piqueri em 20 pessoas fazendo um ato, ou cente em escola pública.
12 Palestras

Ajax Perez Salvador


Médico, psiquiatra, psicoterapeuta junguiano e mestre em Saúde Pública.

Bom, antes de mais nada, obrigado pelo convite, e


agradeço todos da mesa e a presença de todos. “A medicalização, antes de
O tema deste encontro é muito feliz, quan- mais nada, é uma atitude que
do ele pergunta: a medicalização é uma questão
vê aquilo que não corresponde
de saúde, educação ou política? Vou retomar
algo que já foi falado, a atitude medicalizante. ao padrão, aquilo que está
A medicalização, antes de mais nada, é uma correspondendo a algo que é
atitude que vê aquilo que não corresponde ao
visto como errado, como algo
padrão, aquilo que está correspondendo a algo
que é visto como errado, como algo que é para que é para ser tratado como
ser tratado como se fosse um problema médico. se fosse um problema médico.
Tem-se uma generalização do olhar, do sofri-
Tem-se uma generalização do
mento, da limitação, da incapacitação, da dife-
rença, como se tudo isso fosse de ordem médi- olhar, do sofrimento, da limitação,
ca; você não tem mais uma dor de cabeça, você da incapacitação, da diferença,
tem uma cefaleia. Uma cefaleia não é uma dor de
como se tudo isso fosse de
cabeça, ela foi transformada de alguma maneira
para ganhar um sentido médico com protocolo, ordem médica”
com pesquisa, com tratamento. Isso tem de ser
olhado como uma atitude mais geral. Essa ati-
nos afeta menos, e por mais que um valor seja co-
tude que vai definir o que é certo ou errado faz
letivo, universal, ele vai ser vivido singularmente
exatamente uma comparação com algo que é
por cada um de nós.
considerado como certo, bom ou favorável. Es-
ses julgamentos acontecem em todos nós, per- Portanto, um complexo é, ao mesmo tem-
cebamos ou não, eles acabam acontecendo. po, coletivo e, ao mesmo tempo também, se ma-
nifesta de forma singular. Os complexos fazem
A psicologia junguiana, que é a referência
com que signifiquemos as coisas, porque vive-
que eu uso, fala que essas avaliações seguem va-
mos a partir de uma sequência associativa que
lores; tais valores de alguma maneira nos afetam,
nos organiza. O complexo, quando ele se cons-
e vão criando sequências associativas que vão
tela, de alguma maneira aciona toda a sequên-
agindo sobre nós. A isso a psicologia junguiana dá
cia associativa que foi montada durante a vida.
o nome de complexos. Os complexos vão em se-
quência atuando em nós e os valores nos afetam. O Jung nos diz que, às vezes, o que se passa
Os complexos se organizam seguindo valores que na consciência não só está de acordo com o que
são, ao mesmo tempo, coletivos, universais, mas se está fazendo, mas às vezes está em franca
que nos singularizam, porque aquilo que tem mais oposição. Ou seja, em nós funcionam muitos valo-
valor nos afeta mais, aquilo que tem menos valor res, muitos complexos associativos, gostamos de
pensar que somos unificados, mas isso não acon- A doença, na perspectiva junguiana, inver-
13
tece e nem nunca aconteceu. Os complexos têm te um pouco a noção de doença, dizendo que a
autonomia, eles são como pessoas em nós, eles ela é a dominação unilateral de um padrão, de
organizam as sequências associativas que vão um conjunto de valores que se coloca em inci-
influenciando a maneira de pensarmos e agirmos. são e embate contra outros padrões, contra ou-
Podemos personificar o complexo, e quem assis- tras formas de vida diferentes que dão outros

- parte 3
tiu o filme Divertida Mente tem uma ideia do que é sentidos e outras organizações para a existên-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
a personificação de um complexo, nessas figuras cia. É fundamental a atitude da consciência. Se
que o filme apresenta. a atitude for de exclusão e combate, o efeito é

e enfrentamento
de um tipo. Se ao contrário, é uma atitude de
O complexo, então, teria uma posição rela-

Psicologia em emergências
escuta, escuta a sério, de inclusão, uma escuta
tivamente autônoma diante do complexo do eu,
que não é só literal, mas é uma escuta também
ou seja, seriam outros para o complexo do eu. Na
poética, simbólica, metafórica, os efeitos são
perspectiva junguiana, o complexo do eu é um en-
muito diversos. Do ponto de vista junguiano,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


tre vários complexos, um que tem uma importância,
os valores se organizam e eles se associam às
mas os complexos podem invadir a consciência.
questões de infinitas maneiras. Num certo sen-
Nesse momento, trago a poesia de Fer- tido, a vida seria excessiva, a vida é abundante,
nando Pessoa que nos ajuda a aprofundar um ela é prodiga, esbanjadora, ela é múltipla em
pouco nessa reflexão. Ele nos diz: “sou um eva- sentidos, em significados, ela está em cons-
dido. Logo que eu nasci, fecharam-me em mim. Ah, tante mudança. Ou seja, a vida transborda para
mas eu fugi. Se a gente se cansa do mesmo lugar, além do que todas as normas, os padrões, do

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e medicalização
do mesmo ser, por que não se cansar? Minha alma que todas as sequências associativas possam
procura-me, mas eu ando a monte, oxalá que ela querer dar sentido, ela produz novos sentidos. E

Cadernos Temáticos
nunca me encontre. Ser um é cadeia, ser eu, não é é importante que também haja lugar para o des-
ser. Viverei fugindo, mas vivo a valer”. O que essa conhecido, para o mistério, para o inconsciente,
poesia nos coloca é a possibilidade de uma mul- não só para aquilo que cabe nas sequências

Patologização
tiplicidade que se estabelece tanto no mundo associativas que nos faz pensar que sabemos,
quanto em cada um de nós. com certeza, o que é uma coisa ou outra.

Os complexos podem realizar processos de


invasão, que não são necessariamente doença,
porque eles podem ser um momento de paixão, um
“A vida transborda para além
momento de encantamento. São várias as inva- do que todas as normas, os
sões que podemos sentir, e quando um complexo padrões, do que todas as

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toma conta de alguma maneira, sentimos diferen-
te, pensamos diferente, nosso corpo reage dife-
sequências associativas possam
rente. Porque um complexo não é uma coisa men- querer dar sentido, ela produz
tal, ele, ao mesmo tempo, reage no corpo inteiro novos sentidos. E é importante
como um todo.
que também haja lugar para o
desconhecido, para o mistério,
“A doença, na perspectiva para o inconsciente, não só para
junguiana, inverte um pouco a aquilo que cabe nas sequências
noção de doença, dizendo que a associativas que nos faz pensar
ela é a dominação unilateral de um que sabemos, com certeza, o que
padrão, de um conjunto de valores é uma coisa ou outra”
que se coloca em incisão e embate
contra outros padrões, contra Nesse sentido, há um sofrimento que, às
vezes, aparece em nós, não é porque tem nada
outras formas de vida diferentes de errado, não tem nada faltando, mas porque
que dão outros sentidos e outras a vida excede, porque a vida está procurando
organizações para a existência” caminhos, e os caminhos disponíveis não são
suficientes para que a vida possa se colocar. Os deuses: autonomia, independência, autodetermi-
14
caminhos empiricamente dados estão estreitos nação, unidade, autenticidade. Todos esses eram
demais para a vida. Por um lado, os complexos atributos exclusivos dos deuses, e agora vive-se
organizam, eles são importantes, eles dão nor- como se, se você não realiza esses atributos, tem
ma, padrões, mas a relação entre estes valores, algo de errado com você. Se você ainda não virou
entre formas de vida, é fundamental. Se houver Deus, tem algo de errado com você, você não está
uma alternância e colaboração entre comple- sendo suficientemente efetivo para ter uma vida
xos, se houver a possibilidade da multiplicidade plena. Isso Jung já falava, mas essa situação se
colaborando, nós teríamos o que podemos en- potencializou com o tempo porque uma socieda-
tender como uma vida mais saudável. de de consumo propõe que você não tenha mais
nenhum campo de limite, de repressão a nada. A
ética consumista afirma: não ceda em seu desejo,
“A vida excede, transborda e e mais, você para ter uma vida realizada vai ter de
ter gratificação irrestrita, auto-realização, auto-
ela vai precisar produzir normas expressão, auto isso, auto aquilo, não dá para ter
novas em situações novas” relação com outro, é autoestima, autossuficiência.
Dá para ter estima com outro? Ou é só autoesti-
ma? Há um movimento muito grande em que esses
E aqui eu tomo a referência do Jorge Can-
valores, funcionando como certo, bom e saudável,
guilhem, que é um autor que me parece que
vão fazendo o quê? Eles vão produzindo uma vi-
se aproxima muito dessas ideias, dizendo que
vência de que a pessoa, para ser saudável, tem
a saúde é a infidelidade à norma habitual e a
que virar Deus, e se não virou Deus tem algo de
possibilidade de produzir normas novas em si-
errado, e se tem algo de errado é uma doença, e é
tuações novas. E quando é que temos uma si-
uma doença médica para ser tratada e medicaliza-
tuação nova na vida? Não é o tempo todo? Não
da. Esses valores se agregam em grupos de pes-
há nada de errado em termos normas na vida,
soas que defendem valores. E, então, eu diria que
não há nada de errado em existirem padrões
a propriedade privada, o mercado competitivo, são
coletivos na vida, mas por mais que eles exis-
valores que se organizaram em cima do que cha-
tam, eles nunca vão dar conta da vida, a vida
mamos hoje de neoliberalismo. Neoliberalismo é
excede, transborda e ela vai precisar produzir
uma forma de vida, em que a propriedade privada,
normas novas em situações novas. É claro que
mercado competitivo, são grandes valores. Esses
há um conjunto de valores individuais, que eu
valores liberais, na sociedade de consumo, querem
acho que o vereador Eliseu colocou bem, e que
transformar as pessoas em empresas de si mes-
tem a ver com tudo isso que estamos falando,
mo, você tem seus recursos próprios, você tem de
que foram fazendo com que o complexo do ego
gerenciar da melhor maneira os seus próprios re-
fosse inflando, atribuindo a ele características
cursos e virar uma empresa.
sobre-humanas.
Claro que isso produz um efeito, este ego
inflado que não pode ceder em seu desejo, que
“Eles vão produzindo uma quer gratificação irrestrita, vai produzir que tipo
vivência de que a pessoa, para de patologia? A patologia da insuficiência, da
ser saudável, tem que virar disfuncionalidade. Se você não atingiu a sufici-
ência, tem algo de errado com você, é doença
Deus, e se não virou Deus tem para ser tratada e medicada. Então você tem
algo de errado, e se tem algo de uma patologia, porque não só os valores defi-
errado é uma doença, e é uma nem o que é o padrão normal, como eles defi-
nem qual é o limite do que vai ser considerado
doença médica para ser tratada errado e patologizado e, de alguma maneira,
e medicalizada” medicalizado. Com isso, o poder disciplinar vai
usar os parâmetros do que é um indivíduo nor-
mal para poder fazer o quê? Examinar, investir,
O complexo do ego foi acreditando, o eu, fazer experiências, para poder circunscrever
que ter uma vida bem-sucedida é ter atributos aquilo que está errado, ruim, classificar como
que outrora eram atributos das divindades, dos doença e medicalizar.
o mesmo tempo? Mas, então, se percebe que
15
“No jogo de tênis, você joga para isto ganha muito em eficácia, eficiência, ganha
em confiabilidade, validade, fidedignidade. Isso
o outro errar; o jogo de frescobol ganha em produção de mercadoria: eu produzo
só anda se o outro acerta. mercadoria equivalente confiável e eu produ-
Vivemos numa sociedade em zo tratamento, inclusive, você produz doença

- parte 3
a partir do tratamento. Isso é explícito em al-
que os valores vão nos levando

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
guns textos psiquiátricos. Foi, por exemplo, o
a achar que a maneira de viver tratamento do transtorno de pânico que deu ao

e enfrentamento
é jogo de tênis e não jogo de transtorno de pânico a sua solidez diagnóstica.

Psicologia em emergências
frescobol” Mas, em 1980, quando o DSM-3 é lança-
do, também é uma década onde temos uma
Assim, nós temos um mundo de relações impulsão do neoliberalismo como política de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


muito parecido, muito mais parecido com um Estado no mundo. Se você teve o Pinochet, de
jogo de tênis do que um jogo de frescobol. Vo- 73 a 98, no Chile; você tem Margaret Thatcher,
cês já devem ter ouvido essa semelhança. No de 79 a 90, na Inglaterra; o Ronald Reagan nos
jogo de tênis, você joga para o outro errar; o Estados Unidos. Ou seja, esses valores não se
jogo de frescobol só anda se o outro acerta. Vi- colocaram exclusivamente no campo médico
vemos numa sociedade em que os valores vão ou no campo da educação. Eles se colocaram
nos levando a achar que a maneira de viver é também no campo da política e também numa
maneira de viver e de ser. Veja que interessan-

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jogo de tênis e não jogo de frescobol. Agora, é

e medicalização
muito interessante que cronologicamente, tive- te o que isto produziu: a expansão criativa do
mos umas circunstâncias que se casaram. número de diagnósticos. Se mais ou menos até

Cadernos Temáticos
1840, tínhamos duas categorias diagnósticas,
Em 1980, a Associação Psiquiátrica Ame- em 1880 tínhamos, mais ou menos, sete cate-
ricana lança o DSM-3, que foi um marco na psi- gorias diagnósticas. Pinel, Esquirol, no final do

Patologização
quiatria no mundo, por fazer uma mudança im- século 18, tinham por volta de oito categorias
portante na maneira de fazer diagnóstico. Os diagnósticas, todo esse período pré-século 18,
diagnósticos passam a ser feitos de forma ob- nunca teve muito mais do que isso de diagnós-
jetiva, equivalente. Então, eu vou fazer um diag- tico. Quando chegamos na metade do século 20
nóstico vendo se a pessoa tem tristeza, desâ- tínhamos 22 diagnósticos; quando chegamos
nimo. Veja: uma tristeza por acaso é vivida por em 68, 182 diagnósticos; com o DSM-3 vamos
cada um de nós sempre do mesmo jeito, com para 265 diagnósticos e, hoje, no DSM-5, nós

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o mesmo sentido e com o mesmo significado? estamos com 450 diagnósticos.
Se para cada um de nós, nós não sentimos da
mesma maneira, para as outras pessoas e para
cada pessoa sempre tristeza vai ter o mesmo “O problema também está no
sentido, o mesmo significado para se tornar um
fenômeno objetivo a partir do qual eu construo que é considerado a forma de
um conjunto de sinais e sintomas que eu con- vida saudável, porque ela vai
sidero efetivo na construção do diagnóstico? sendo usada de referência para
Há aqui uma questão importante: há um jeito
de olhar. E é interessante porque isto acontece construir o diagnóstico”
no momento em que há uma guinada, há uma
mudança na maneira de fazer diagnóstico. An-
tes do DSM-3, você pensava os diagnósticos Veja: a psique vai produzir diagnóstico.
de maneira mais psicanalítica, você tinha de Para quê? Para colocar em caixas aquilo que ela
ter noção de história de vida, mecanismo de considera errado. Mas o problema não está só
defesa, projeção, introjeção. Ou seja, fazer um no que é considerado errado, o problema tam-
diagnóstico, por exemplo, de depressão, ia re- bém está no que é considerado a forma de vida
querer que você conhecesse a vida da pessoa, saudável, porque ela vai sendo usada de refe-
saber como funcionava. Se você tiver que, para rência para construir o diagnóstico. E aí o que
fazer um diagnóstico, juntar um número de si- temos? Uma privatização do descontentamen-
nais e sintomas, quanto tempo demora? Seria to, se você tem um sofrimento, se você tem al-
gum problema, não tem relação com o contexto Teria a medicalização e aumento do diag-
16
que você vive, não tem relação se você tem ou nóstico uma relação, então, com esses valores?
não tem um emprego, você é que foi incapaz, Com essa forma de vida atual? E aqui eu vou
incompetente para conseguir resolver os pro- colocar uma problematização. Não se trata em
blemas na vida. ser a favor ou contra diagnósticos médicos,
protocolos de investigação, tratamento, exa-
Há uma privatização, segundo Axel Ronald,
mes, prescrições, nada disso é em si o proble-
um sentimento de ser o único responsável por
ma, mas a dominação unilateral de determina-
seu destino. Você é um indivíduo autônomo, in-
dos valores, condutas e atitudes unicamente
dependente, autodeterminado, autossuficiente,
médicas, em oposição a outras, isso sim vai
completamente isolado, e isso vivido como sen-
produzir um problema importante. E, então, eu
do bom, como sendo saudável. Assim, teríamos
coloco a questão. Por que a Anvisa nos diz so-
nos modos de socialização, os modos de ser, ao
bre o aumento de 74% no consumo de Metilfe-
mesmo tempo, os modos do suporte, do sofri-
nidato, entre 2006 e 2011? Ou por que 75% dos
mento vivido, porque há um tipo de sofrimento
jovens medicados com Metilfenidato ou simila-
em todo o processo de socialização, de cons-
res não teriam sido corretamente diagnostica-
trução de identidade socialmente reconhecida,
dos? O que a gente precisa? Diagnosticar mais?
de constituição do eu, ao internalizar padrões
Diagnosticar melhor? Ou quais são os valores
de conduta que podem ser utilizados normati-
que estão orientando? Seriam os problemas
vamente sobre os sujeitos, a psique e a vida.
exclusivamente médicos? Exclusivamente indi-
Num quadro do Debret e do Magritte, a viduais? É, eu acho que isso é o que estamos
mesma figura pode ser vista como a socializa- aqui para colocar. Eu queria só terminar dizen-
ção ou com o encaixotamento. Os processos do que a medicalização da vida é uma questão
de socialização e educação, quando funcionam que passa sim pela saúde e educação, mas se
demasiadamente eficazes e eficientes, podem a gente entender a política como um campo de
produzir a destruição agressiva de outras for- trocas, debates, elaborações entre diversos va-
mas de vida. O que não se submete ao padrão lores que orientam formas de viver, talvez isso
do melhor, do mais adequado, vivido como erro, seja um campo fundamental para colaboração
falta ou fraqueza ou incapacidade, será visto e superação de dominações unilaterais funda-
como doença, que precisa ser tratada, medica- mentalistas. Eu agradeço.
lizada. “Quanto mais jovem”, diz o Jung, “menos
filtro ou barreira haveria para os valores que afe-
tassem com mais intensidade.” Então, estariam
mais sujeitos a esses valores todos.
Lucy Duró Matos Andrade Silva 17
Pedagoga e psicopedagoga membro do Fórum
sobre Medicalização da Educação e da Sociedade

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Medicalização da vida, uma questão de saúde, sentidos, uma lógica completamente questionável
educação ou política? cujo motor, como disse o doutor Ajax, é o consumo.

Começo minha fala apontando um número ex- Essa lógica vem afetando o modo de vida

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pressivo de venda de Metilfenidato, que é a substân- dessa sociedade e de todas as suas instituições,

e medicalização
cia cujo nome comercial é Ritalina e Concerta, e acho principalmente a escola, como um microssistema

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extremamente importante trazer esse número para que acaba reproduzindo em seu interior os grandes
nós termos ideia do quão isso está crescendo a cada problemas sociais. Quer dizer, a escola é um reflexo
dia. Em 2000, foram vendidas 70 mil caixas de Metil- da sociedade. E por trás dessa lógica, que é ape-

Patologização
fenidato; em 2012, esse número aumentou para dois nas a ponta do iceberg, e em que ficamos presos,
milhões e 400 mil caixas de Metilfenidato. Acho um tem dinâmica, tem movimento, tem valores huma-
número bastante expressivo e bastante preocupante. nísticos, diversidade humana, diversidade cultural,
coletividade, singularidade, complexidade, contra-
Embora eu não seja do campo da saúde, en-
dições. Portanto, há um espaço bastante conside-
tendo que, tanto a saúde quanto à educação, a so-
rável para nós conseguirmos superar essa lógica
ciologia e a política, estão imbricadas nessa temática.
tão predatória e que tanto mal está nos fazendo.
Trago aqui Alvin Toffler, escritor e doutor em letras,

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que diz que houve três momentos marcantes na so- Evidentemente que não dá para nós ficar-
ciedade, em todo percurso histórico da humanidade. mos nessa visão maniqueísta de certo, errado,
sim ou não, verdadeiro ou falso. É pensar que, sim,
O primeiro momento foi a agricultura. O se-
essa lógica está trazendo grandes problemas, mas
gundo foi a revolução industrial; e o terceiro mo-
há condições de superá-las porque a vida é feita
mento é o que estamos vivendo, o momento da
de contradições. E essa lógica social traz alguns
informação, da comunicação instantânea, do
elementos, como poder, a diferença de classes so-
desenvolvimento tecnológico, que mudou nosso
ciais, a obediência, a violência, o disciplinamento, a
modo de vida. Antigamente, o conhecimento era
normatização, que, de certa forma, a ampara.
restrito às instituições educacionais, tanto de ní-
vel básico quanto superior, às bibliotecas. Hoje nós Vamos, então, tentar entender como o ser
temos acesso democraticamente a um sem fim humano se constitui. O ser humano se constitui,
de informações, inclusive, em sites científicos e, com base na perspectiva histórico-cultural que é
além disso, nós podemos hoje nos comunicar, em a perspectiva que eu defendo dentro da psicolo-
tempo real, com qualquer parte do mundo. E, por gia, com base na relação com a cultura em toda a
conta disso, as produções científicas, produção de sua expressão. Então, quando falamos em cultura,
conhecimento, vão se tornando cada vez mais am- nós estamos falando de tudo aquilo que o homem
pliadas. Então pensamos que, embora haja todo produziu em todo o seu percurso histórico. É na re-
esse desenvolvimento tecnológico, o homem con- lação com a cultura que o sujeito se constitui.
tinua colocando em risco a própria vida no plane-
Agora vamos para a escola. Entre a escola
ta, com base numa lógica predatória em todos os
atual e a de 1952 praticamente nada mudou, inclu-
sive, o uniforme. Evidentemente que essa é uma es- conhecimento, para se desenvolver enquanto sujeito
18
cola dentre tantas milhares de escola, que eu cha- crítico. Ele estuda para passar na prova, para passar
mo de escola hegemônica, porque é a que tem mais no processo seletivo, para, posteriormente, ingressar
expressão na atualidade. Então, o que está aconte- no mercado de trabalho, e essa é a lógica que nós
cendo com a escola que, embora seja espaço social vivemos. Inclusive, tem uma colega nossa lá da USP,
da maior importância, avançou tão pouco? O que Flávia Asbahr, que agora encerrou o doutorado e está
está por trás dessa incipiência do ponto de vista de numa universidade pública. Em sua tese de doutora-
avanços? Houve avanços tecnológicos; entramos do, ela entrevistou crianças para saber qual o sentido
numa sala de aula hoje e vemos projetor, recursos e o significado da escola para as crianças. Então, as
didáticos espetaculares. Entretanto, o sistema respostas que ela obteve foram as seguintes: “para
continua sendo o mesmo, salvo algumas exceções. poder pegar um serviço bom”, “ser um cara esperto”,
Então, como é essa escola? É uma escola solitária “para trabalhar e dar saúde para aos filhos”, “para
que lida com burocracia; os professores têm um ní- quando eu crescer não ficar desempregado”, “porque
vel de atribuições enorme, muitas vezes trabalham para trabalhar você tem que saber ler, até para catar
em três turnos para garantir uma vida digna; as lixo”. Quer dizer, para as crianças, a função da esco-
JEIF’s (Jornada Especial Integral de Formação), que la é meramente mercado de trabalho, não é forma-
são espaços que foram pensados no coletivo, são ção cidadã, não é desenvolvimento de senso crítico.
cumpridas apenas como protocolo. A sala de aula Bem, e a base, a concepção que ampara tudo isso, é
é alinhada, o espaço limitado, com muitos alunos. uma visão linear, cartesiana que vem do século 16, 17
com Descartes, que disse que era importante dividir
Nós temos uma lei do Deputado Giannazi no
o todo em partes e estudar as partes isoladamente.
Estado, a Lei 15.530, que diz que há um limite de no
máximo 20 alunos numa sala que tenha alguma crian- E assim como a escola, isso pouco tem avan-
ça com uma necessidade especial. No entanto, isso çado. Evidente que há muitas discussões, graças
não é cumprido. Eu conversei com uma professora aos críticos epistemológicos que têm nos trazido
da rede pública estadual e ela me disse que tem 40 possibilidade de pensar que o todo é muito maior do
alunos e uma das crianças é autista. Então, eu fico que a soma das partes. Mas essa visão polarizada
pensando como é que fica essa questão de as leis e fragmentada da realidade continua aí. Concluindo:
estarem sendo criadas e não cumpridas. Bem, o co- a concepção que sustenta o modelo hegemônico de
nhecimento é completamente fragmentado em dis- educação tem como foco o desenvolvimento eco-
ciplinas estanques que não conversam entre si, há nômico e tecnológico em detrimento do desenvol-
a valorização de alguns campos do saber em detri- vimento humanístico. É evidente que um modelo de
mento de outros. Há uma valorização excessiva de sociedade manco não poderia ter como resultado
alguns campos de conhecimento em detrimento de nada diferente do que vemos hoje na educação. Só
outros. Português, matemática, são extremamente que, o mais perverso, é atribuir à criança a culpa por
importantes, mas não podemos desconsiderar a arte, tudo isso que vem acontecendo. Porque nós temos
a música, o movimento, as expressões culturais. Isso essa visão de culpabilizar, alguém tem que receber a
está fora da grade, ou quando consta, apenas cons-
ta, mas, de fato, isso não é vivido como deveria ser
vivido para a formação de sujeitos. A avaliação, que “Então, qual é o grande desafio?
é fundamental em todo o processo de aprendizagem,
O grande desafio pode ser,
não é avaliação. Cipriano Luckesi que, para mim, é um
dos mais proeminentes entendedores do assunto, além de questionarmos o
diz que essa avaliação é uma examinação, na verda- óbvio, mudarmos as perguntas.
de, ela vai avaliar ou examinar o que a criança sabe
Retomo uma questão que achei
naquele momento. Passou disso, não importa mais.
Se uma criança faz uma prova, entrega a prova para bastante interessante trazida
o professor, cinco minutos depois, ela lembra, ela vol- pela professora Marilene Proença
ta “professor, lembrei”, não serve mais. Então qual é o
Rebello de Souza, em que ela
sentido dessa avaliação? Qual é o sentido? É saber
de fato como está o processo ensino/aprendizagem? desloca a pergunta do ‘por que
Então é uma avaliação que tem mais uma conotação a criança não está aprendendo?’,
classificatória, seletiva, excludente. O aluno estuda
para ‘que escola estamos
para tirar nota, ele não estuda para se apropriar do
oferecendo?’”
responsabilidade pelo problema, e esse alguém ou é e não seja apenas um instrumento de ajuste? Não
19
a criança, ou é a família desestruturada, ou é o pro- há como negar o potencial da criança, inclusive, eu
fessor, mas as questões que estão para além disso, entendo que estamos negligenciando esse poten-
não se tem pensado, e é isso que nós estamos fa- cial, criança quer aprender, criança está pronta para
zendo aqui hoje. aprender, tem sede de saber, ela só precisa de uma
escola que fale a sua linguagem, uma escola que
Então, qual é o grande desafio? O grande desa-

- parte 3
considere o direito à sua singularidade. Fui buscar al-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
fio pode ser, além de questionarmos o óbvio, mudar-
gumas alternativas e algumas propostas de escolas
mos as perguntas. Retomo uma questão que achei
diferentes para tentar superar, para tentar entender

e enfrentamento
bastante interessante trazida pela professora Mari-
quem vem tentando superar essa escola hegemô-
lene Proença Rebello de Souza, em que ela desloca a

Psicologia em emergências
nica que temos hoje, e encontrei o Projeto Âncora,
pergunta do “por que a criança não está aprenden-
onde estou fazendo a minha pesquisa e tenho tido
do?”, para “que escola estamos oferecendo?”
resultados bastante interessantes. A escola tradi-
cional parte das disciplinas em direção à criança, e

CRP SPdas vidas: reconhecimento


na proposta pedagógica do Projeto Âncora o ponto
“Não há como negar o potencial de partida é a criança, é o interesse da criança e, a
da criança, inclusive, eu entendo partir desse interesse, existe a tutoria. Essa é uma
escola vista como democrática e classificada como
que estamos negligenciando
comunidade de aprendizagem. Seu ponto de partida
esse potencial, criança quer é o interesse da criança, tem toda uma orientação
aprender, criança está pronta do tutor, e ao final, ela se apropria de fato do conhe-

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e medicalização
cimento, dos conteúdos, das disciplinas, e ganha au-
para aprender, tem sede de
tonomia, ganha cidadania. Essa escola parte de três
saber, ela só precisa de uma

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pilares, e o pilar que acho um dos mais importantes é
escola que fale a sua linguagem, o dos valores. Os valores vitais, os valores estéticos,
os valores políticos, os valores éticos como: solida-
uma escola que considere o

Patologização
riedade, honestidade, verdade, lealdade, altruísmo. A
direito à sua singularidade” ética vai para além da moral, procura os principais
fundamentos do comportamento (ou) da atitude; a
saúde, lidar com o corpo, entender o corpo, a harmo-
A psicologia escolar tem contribuído muito nia; a questão estética, como definir feio e bonito.
para pensar, estudar. A psicologia escolar lá no Ins-
tituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Acho que temos de ampliar um pouco mais o

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com a Marilene Proença, o Laboratório Interinstitu- nosso olhar para entendermos que existe uma coi-
cional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar sa chamada diversidade humana. Crianças apren-
Educacional, do qual eu faço parte, vem pensando dem sempre, entretanto, há modos diferentes de
as políticas públicas no campo da educação. E eu aprender. Eu trago aqui a imagem de uma orquestra
trago aqui uma citação da Marilene que eu acho como metáfora, justamente para mostrar que cada
importantíssima que diz o seguinte: “ao analisarmos instrumento tem uma função e é a junção de todos
tais políticas partimos do pressuposto teórico de que esses instrumentos que nos possibilita ouvir algo
o discurso oficial expressa uma concepção de educa- que mexe com a nossa alma, e assim, essa metá-
ção e de sociedade. Ou seja, nos bastidores de uma fora me leva a pensar o humano. Cada pessoa tem
política pública gestam-se direções a serem dadas as suas preferências, os seus ritmos, o seu jeito de
àqueles que a ela se submetem. Embora muitas vezes ser, as suas experiências, a sua singularidade, e esse
tais concepções não sejam explicitadas aos profes- conjunto pode dar uma obra maravilhosa. Não posso
sores, aos pais e aos alunos, o projeto de sociedade, deixar de destacar o trabalho lindo do professor José
de homem e de mundo presente nas políticas educa- Pacheco, por tudo que ele vem conseguindo dentro
cionais imprime uma série de valores e de diretrizes dessa proposta educacional. Por último, uma frase
que passam a constituir as relações interpessoais que eu achei muito interessante: “por uma educação
e institucionais”. Então, o desafio é ampliar o olhar que nos ajude a pensar e não que nos ensine a obe-
para além da aparência dos fenômenos. E, para isso, decer”. E trago também uns versos do Saramago de
nós questionamos: qual é o objetivo da educação que eu gosto muito: “Penso que estamos cegos, ce-
senão transformar o homem no sujeito de suas prá- gos que veem, cegos que vendo não veem. Se podes
xis para que ele desenvolva uma consciência crítica olhar vê. Se podes ver repara”. Muito obrigada.
20 Lucia Silva
Socióloga e docente em escola pública.

Eu quero agradecer a oportunidade. Eu quero


cumprimentar a todos, cumprimentar a iniciati- “A escola teve um papel
va maravilhosa.
fundamental na domesticação
Então, quero voltar a pensar um pouco dos corpos, na disciplinarização,
nessa escola, que é uma escola que foi confor-
mada junto com a industrialização, com uma ne-
e até hoje é necessário
cessidade de criar pessoas qualificadas para o conformar os corpos porque
mercado de trabalho, porque antes a educação as crianças sempre tiveram o
era voltada para um outro público, ela era para
uma elite. Então, a escola, para atender uma ne-
comportamento de acordo com
cessidade do mercado, precisou ampliar de for- a educação e o meio em que
ma massificada, para atender um contingente viveram”
que se adequasse à necessidade do mercado, à
necessidade da demanda crescente.
sociedade está produzindo que não se conse-
Essa escola foi criada e ela se inspirou no gue conceber que é urgente essa mudança? A
modelo da fábrica. Acho que todo mundo sabe escola teve um papel fundamental na domes-
disso, mas é bom lembrarmos disso de novo. O ticação dos corpos, na disciplinarização, e até
modelo da fábrica inspirou a escola. Então, são hoje é necessário conformar os corpos porque
grades, são disciplinas, tudo segmentado, tudo as crianças sempre tiveram o comportamento
massificado para que essa instituição dê con- de acordo com a educação e o meio em que
ta de formar vastas camadas para atender à viveram. Historicamente, se pesquisarmos um
necessidade. Então, é lógico, essa escola não pouco, vamos lembrar que as crianças e seus
levava em conta nada das questões de impor- comportamentos estão diretamente ligados à
tância, de desenvolvimento do indivíduo, acho educação do contexto em que elas vivem, ao
que isso nunca foi pensado, a escola nunca foi meio em que elas vivem, e é lógico que esse
pensada para isso primordialmente. E até hoje comportamento está se alterando ao longo do
não é. É como foi dito anteriormente, a escola tempo, chegando nos dias atuais com todas as
não mudou muito e essa é uma angústia nossa, mudanças que temos na tecnologia, com o es-
dos professores. tímulo constante para as crianças: tecnológico,
de interatividade, de necessidade de formar
Por que a escola não mudou? Por que te-
para várias coisas.
mos de estar no mesmo modelo do início da
instituição escola? O que nos falta para mudar Assim, a criança hoje tem de ser criativa,
a escola? Por que que a sociedade não dese- ela tem de fazer aula de inglês, judô, tem de fa-
ja então uma escola diferente, não necessita zer várias outras coisas, porque é preciso dar
de uma escola diferente? Que indivíduos essa um suporte. A sociedade, a classe média tem
toda essa preocupação, e até mesmo setores escola também é muito chata, porque não tem
da classe que não é média, que é uma classe espaços dinâmicos, não tem uma preocupação
que tenta se manter, também está entrando em desenvolver o ser humano, em ter interativi-
nessa lógica. Temos, como exemplo, as esco- dade interpessoal, relacionamentos interativos.
las técnicas, as escolas de contraturno para as Faz muita falta isso na escola, mas não existe
crianças e jovens fazerem outros cursos para porque eles criam muitos conflitos. É da vida,
se prepararem para o mercado de trabalho. É como foi dito aqui, um conflito, o sofrimento.
tudo muito voltado para essa necessidade. E por que isso também não pode ser discutido
na escola? Por que só os conteúdos? Por que
só matemática, português, como se a vida não
acontecesse ali? Onde está o link com a vida? O
“Mas ser hiperativa é um tempo todo esse distanciamento que nos isola
problema porque, nos moldes dos nossos jovens, das nossas crianças.
disciplinares da escola, uma O que fazemos com as crianças? Muitas
instituição muito fechada, que vezes, entre nós, professores, discutimos indivi-
dualizadamente “lembra daquele aluno? O José?
não se modernizou, não cabe Ah, então, ele tem um problema assim, assim,
esse tipo de comportamento” assado, assim”, “é, então, por isso que ele tem
essa dificuldade”, “ah, tá bom” “e lembra da Dé-
bora? Então, ela tem outro problema, é aquele,
Mas voltando à criança, ela é superesti- é assim, assim, assado, e é por isso que ela não
mada, a sociedade, com a educação atual, es- tem um bom rendimento”, “ah, tá”. É verdade, tem
timula muito a criança. Assim, é lógico que a isso. E aí, o que fazemos? Nada, porque pratica-
criança é hiperativa, se formos pensar por esse mente não dá para fazer nada numa sala com
lado, porque é um constante estímulo. Mas ser 40 alunos. Essa é a realidade da escola públi-
hiperativa é um problema porque, nos moldes ca, são 40 alunos e você não consegue pensar
disciplinares da escola, uma instituição muito num plano, numa estratégia para ajudar aquele
fechada, que não se modernizou, não cabe esse aluno que você percebe que tem uma dificulda-
tipo de comportamento. Há estudos que falam de. Nossa, se conseguíssemos intervir ali, faria
que o cérebro dos jovens das novas gerações uma mudança, daria uma possibilidade para ele
tem uma alteração de raciocínio por conta de desenvolver melhor suas habilidades, mas não
estarem se moldando a essas tecnologias. En- conseguimos fazer isso com uma sala com 40
tão, com muito acesso à rede, à internet, crian- alunos, no tempo que temos, com as condições
ças e jovens fazem três coisas ao mesmo tem- que temos. Foi dito que as escolas têm tecnolo-
po. Quem trabalha com adolescente, vê isso o gia, só que não. Se eu quiser usar um Data Show
tempo todo. O adolescente está com fone de eu tenho de agendar, ou falta recursos: falta um
ouvido, falando no WhatsApp, está ouvindo mú- adaptador, falta a fonte, “ah, a fonte queimou”,
sica e está conversando com um amigo, tran- o som não tá legal. Mil problemas para resolver.
quilamente. E quando você fala para ele “presta Então, não temos tantos recursos, temos na
atenção no que eu estou dizendo.” “eu tô pres- verdade, várias dificuldades. Então individua-
tando, professora, eu tô prestando atenção em lizamos o problema. Com os familiares, muitas
você”, “tira o fone meu querido”, “professora, mas vezes, justificamos que o aluno tem dificulda-
eu estou te ouvindo.” Então, para ele isso é muito de porque ele tem um déficit de atenção, ele é
normal, ele está conseguindo fazer isso. E nós, hiperativo, não para, não presta atenção e tal.
que não vivemos isso, vamos nos distanciando Mas não pensamos assim: “na escola, por que
desse modelo que é um pensamento difuso, um tantas crianças estão tendo problemas?”.
raciocínio difuso. Nós temos um raciocínio line-
Trouxe esse dado para pensar: a escola
ar, não é isso? A escola sempre trabalhou dessa
tem problemas, o Brasil tem vários problemas
maneira linear com a geração que estranha isso.
de baixo desempenho dos alunos, baixo apro-
Para os jovens, é uma coisa terrível hoje veitamento dos alunos. O último PISA, que é um
a escola. Ao mesmo tempo, é legal porque eles programa internacional de avaliação de alunos,
encontram os amigos, conversam, trocam mui- do qual participam 72 países, mostrou que o
tas coisas, mas é uma coisa chata. Para nós, a Brasil, em 2015, ocupava a sexagésima posição.
dio as taxas de reprovação e de abandono au-
“Deixamos de pensar o sistema mentam muito e teríamos de analisar o proces-
so porque vai acumulando. Muitas vezes, não é
escolar, o modelo, o problema dito para os pais que o problema do filho não
da escola para pensar a começou naquele ano especificamente, mas
questão individual dos alunos vem de antes, do quarto ano, do terceiro ano,
com defasagem em matemática, em português.
problemáticos, dos alunos que Quando chega nos anos finais esse problema
dão problema. E isso é uma só está avolumado.
questão política” Um outro dado que acho interessante
mostra que, no Brasil, a maioria das escolas
Mas, deixando o Pisa de lado e voltando estão na dependência administrativa do poder
à nossa escola, temos dados de aproveitamen- público. Então somando as escolas estaduais e
to, de reprovação, de abandono e de aprovação a rede municipal, são mais de 80% das escolas
dos alunos por etapa. Nos anos iniciais, as ta- no Brasil. Ou seja, o poder público é responsável
xas de reprovação e de abandono vão aumen- pela educação das crianças, só 21% são esco-
tando. Esse é um dado importante. Analisando las privadas. Está na mão do poder público mu-
por etapa, ou melhor, por ano, temos que, no pri- dar isso. Essa é uma discussão que tem de ser
meiro ano do ensino fundamental, no segundo feita com a sociedade civil, com as famílias, com
ano do fundamental, são as mesmas taxas de os pais principalmente, e com as pessoas que
reprovação, de abandono e de aprovação. No pensam educação. Muitas vezes, a solução não
terceiro ano do ensino médio, a taxa de repro- é discutida nas escolas, como agora a reforma
vação de 10%, 10,7%. O que isso nos mostra? do ensino médio. Foi discutida por institutos
Que os alunos realmente não estão aproveitan- parceiros, não foi feita uma discussão na esco-
do, não estão tendo um total aproveitamento la, nem com a sociedade. E esta é uma questão
da escola. Dá para dizer que é problema indivi- política. Muito obrigada.
dual? Não, não dá.

Deixamos de pensar o sistema escolar,


o modelo, o problema da escola para pensar a
questão individual dos alunos problemáticos,
dos alunos que dão problema. E isso é uma
questão política, como também já foi falado. Por
que é uma questão política? Por que será que
queremos mudar essa escola? Será que quere-
mos ter uma escola que tenha uma capacidade,
porque no fundo é a escola que tem que mu-
dar, de oferecer ao aluno, aos jovens e crian-
ças, condições para eles se desenvolverem,
condições para eles terem um melhor aprovei-
tamento? Uma escola que seja capaz de trazer
isso para os alunos? Então, se pensarmos que
a escola está sem um investimento adequado
por muitos anos, que o investimento em educa-
ção, está aquém do que deveria ser, no estado
de São Paulo principalmente, é lógico que uma
escola sem investimento é uma escola que fica
depauperada.

Voltemos às taxas. A partir do quinto ano


na escola, o aluno começa a ter as taxas de re-
provação e de abandono. Isso tem de ser anali-
sado no processo, porque chega no sexto ano,
no nono ano ou no primeiro ano do ensino mé-
Debate 23

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Jason Gomes: A gente que agradece novamen- tinua sendo vista como mercadoria, e você tem
te, Eliseu, sua parceria de sempre. Obrigado. Pri- um produto federal que é muito parecido com
meiro lembrar todo mundo, eu acho que a pro- os manuais dos grandes grupos educacionais
fessora Lúcia falou muito bem da BNCC, não sei privados. E, enfim, eu anotei aqui uma coisa que

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e medicalização
se todo mundo sabe, mas ela mudou a lógica o Ajax falou no começo, que não se trata de ser
completamente na terceira versão, de uma ló- contra diagnósticos, não se trata de ser con-

Cadernos Temáticos
gica de garantia de direitos para aprendizagem, tra procedimentos, mas que é contra uma do-
ela entrou numa lógica de habilidades e compe- minação unilateral e fundamentalista. Acho que
tências que as crianças precisam ter. O governo tivemos isso na fala de todos. De certa forma,

Patologização
atual, inclusive, fez um documento que é sobre é contra uma dominação na forma de aprender,
a mudança, para todo mundo entender como que foi o que a Lucy trouxe na fala dela, e tam-
essas mudanças foram feitas. E o documento é bém contra essa forma escolar, que vem lá des-
muito curioso, porque tem uma parte em que o de, basicamente, a Revolução Francesa, com a
que estava como direito entrou como questões industrialização e com a Revolução Francesa,
transversais, e aí ele aparece com um tracejado que trata a escola como um espaço de docili-
e mais apagadinho assim para você entender zação dos corpos. Enfim, acho que temos esse

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que, naquela habilidade e naquela competên- ponto em comum, que é ser contra uma domi-
cia que a criança precisa ter, era aquele direito nação unilateral e fundamentalista. E quem tem
que estava antes no documento. E isso é muito perguntas, por favor, levantem a mão.
complicado e perverso, porque isso entra den-
tro de uma lógica da mercadoria, na verdade, Participante: Me considero educador, já
da aprendizagem e do aluno como um produto dei aula no ensino médio e no ensino superior
para o mercado, porque o mercado tem algu- e trabalho com avaliação de projetos educacio-
mas habilidades e algumas competências que nais. Eu só queria fazer uma observação para
são importantes para determinados trabalhos provocar a mesa. Não discordo, e nem seria ma-
e para determinados postos. A Base Nacional luco de neste ambiente discordar de qualquer
Comum Curricular, de repente, faz uma mudança papel que a educação tem para o desenvolvi-
total para entrar nessa lógica. Eu acho que isso mento do capitalismo e do neoliberalismo, mas
é muito complicado e tem a ver com uma coisa outro dia, me chamou atenção ao ouvir uma pa-
que o Ajax falou que foi, com a mudança que lestra de uma secretária municipal que é membro
o DSM trouxe, em lidar com o sofrimento das da Undime (União dos Dirigentes Municipais de
pessoas como mercadoria também. E aí você Educação). Uma observação que me provocou a
passa a ter uma mercadoria confiável, dentro seguinte questão: não importa qual é o modelo
do diagnóstico, você começa a produzir essas e qual é o papel, ele sempre vai ter um papel.
coisas. Eu acho que o que é complicado é que Mas me parece que na questão da medicaliza-
a educação, resistimos para que ela não seja ção, não é a escola e o modelo, mas sim as pes-
vista como mercadoria e, de repente, ela con- soas, e o modelo como o Ajax falou. No sentido
de que parece que as pessoas, e aí é uma coisa Participante: Eu sou psicólogo. A per-
24
mais do ser humano, estão abandonando a edu- gunta para a professora Lucia; você falou em
cação enquanto educação, não a escola só, a analisar o processo completo, temos uma parte
educação, pai, professor, o ser humano abando- da educação que não foi bem aprendida lá no
nou a educação, nós não temos mais paciência primário, mas eu fiquei curioso: não é possível
e não gastamos tempo mais com isso. Em casa, resgatar, ao longo do processo de aprendiza-
pai e mãe não gastam mais tempo com educa- gem, não existe ali um salto em alguma fase em
ção, tem um tablet na mão do menino de dois que é possível combater a defasagem? Porque
anos para ele ficar quieto, tem um computador, senão parece que se tem de devolver a pessoa
tem uma televisão, essa permissividade do uso lá para a quinta série.
do tempo. De certa forma, me parece que para
corroborar ou para colaborar com essa questão Participante: Eu queria agradecer a fala
da escola que tem esse papel que a gente criti- de todos. Vou me ater um pouco mais à fala do
ca tanto, nós estamos como seres humanos co- doutor Ajax, em algumas provocações que me
laborando cada vez mais nesse individualismo, pegaram profundamente: Quando você traz a
nesse ego, daquela disputa dos complexos que questão dos padrões, que nunca vão dar conta
Jung fala tão bem. E estamos deixando de dedi- porque a vida excede e transborda; a questão
car tempo à educação. abrimos mão de educar também que você trouxe que nós não somos
a nossa prole, vamos dizer assim. Achamos que deuses, mas parece que o tempo inteiro pre-
a criança, a exemplo de qualquer animal, parece cisamos estar nessa tentativa de nos colocar-
que nasce e tem de andar sozinha daqui dois mos nesse lugar; e a questão dos sentidos e
meses e se virar sozinha, esquecemos que ter- significados, que é uma construção individual,
minamos a nossa formação lá pelos 25, 26 anos, mas uma construção coletiva. Os sentidos e
abrimos mão da educação enquanto sociedade. significados, inclusive, construídos coletiva-
Independente do papel que queremos que ela mente sobre determinadas questões. Então, a
cumpra, acho que a medicalização talvez venha minha questão foi assim, como juntar isso tudo?
mais por esta questão que vai ao encontro do Porque eu vejo, cada vez mais, uma perda des-
que o Ajax falou, do que da questão da escola. ses sentidos e significados e que validamos
A escola pode ser a pior que seja, mas se eu me justamente isso, que a vida transborda. Então
sinto cuidado, se eu sou cuidado, se gastam um vamos construindo sentidos e significados;
tempo comigo, se eu sinto o amor de quem me querem que a vida não transborde, pensando o
cuida, ele pode estar me fazendo instrumento que a psiquiatria e a psicologia também podem
de qualquer coisa, mas eu não vou ser medicali- ir construindo nisso. Porque sempre me parece
zado, e nem a pessoa vai me medicalizar nesse que é muito pouco. Então, como tem visto na
sentido. Essa discussão é só uma provocação, própria psiquiatria essas diversas vozes em que
não sei nem se eu acredito totalmente nela, é cabe o transbordamento?
mais uma coisa que eu ouvi.
Ajax Perez Salvador: Primeiro, eu acho
Participante: Boa noite. Eu sou Bertô, sou que a provocação que você faz em relação à
conselheira de saúde há alguns anos na região mercadoria, eu acho que ela é fundamental. Eu
da Lapa. Fui conselheira municipal e hoje eu es- acho que uma coisa é você pensar uma escola
tou conselheira estadual de saúde. O Eliseu não ou um posto de saúde, um serviço de saúde que
está aqui, mas tem os assessores que podem ele pensa as coisas como mercadoria. Eu acho
transmitir. Eu quero parabenizá-lo pela iniciativa, que tem algumas coisas que não poderiam es-
quero parabenizar o doutor Ajax pela apresenta- tar submetidas à forma mercadoria. O que sig-
ção. E eu quero colocar, em cima da fala do dou- nifica isso? Veja: elas não podem estar quan-
tor Ajax, uma observação minha e uma pergunta. tificadas, qualificadas e equivalentes como se
Porque na fala dele, diz “o sofrimento das pes- elas fossem uma mercadoria. E aí tem um vi-
soas, sejam crianças ou adultos, deveria ser vis- deozinho que rola na internet sobre Finlândia
to não só como doença”. Como você vê a forma que me parece muito interessante. A questão
como a estrutura de saúde e educação estão or- é: que escola nós vamos fazer ou quem é que
ganizadas? Para isso, eu posso falar que a ques- vai para escola? Se escola fosse um direito de
tão não é dos profissionais isoladamente, mas todas as pessoas, e não se diferenciasse clas-
da estrutura. O que o senhor acha, doutor Ajax? se social, e o mais rico e o mais pobre tivessem
que compartilhar a mesma sala de aula, e não Lucy Duró: Nós estamos vivendo a mer-
25
se pudesse comprar ensino como mercadoria, cantilização da vida e ela também está presen-
que transformação a gente teria? Eu acho que te na escola, que, de alguma forma, normatiza,
há uma mudança estrutural aí. A mesma coisa e quem não está dentro dos padrões conven-
para saúde. Não dá para comprar a saúde, qua- cionados socialmente, precisa de alguma forma
lificar a saúde pelo número de consultas feitas, ser contido. Esse espaço está sendo ocupado

- parte 3
pelo número de exames feitos, porque isso é pela indústria farmacêutica, porque a escola

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
transformar a saúde em mercadoria. A mes- tem uma lógica que reflete a lógica social de
ma coisa para habitação. O primeiro imóvel, o mercantilização e a indústria farmacêutica ocu-

e enfrentamento
imóvel que a pessoa mora, não pode ser mer- pa esse espaço que está ali suscetível.

Psicologia em emergências
cadoria, não pode ser tratado como mercado-
ria, para ser quantificado, ter imposto, tudo do Segundo o que eu li, de cada 10 médicos,
mesmo jeito que os outros. Isto não quer dizer oito prescrevem tarja preta para adolescente.
que tenhamos de acabar com a forma de mer- Esses comportamentos são encontrados na

CRP SPdas vidas: reconhecimento


cadoria no mundo, mas elas teriam de ter restri- sociedade, nas instituições e a escola é uma
ções; elas não podem atuar sobre o imóvel que delas. A escola também acaba cerceando um
a pessoa mora, elas não podem atuar sobre a comportamento, e aquele que é questionador
educação, elas não podem atuar sobre a saúde. acaba sendo considerado alguém que tem ne-
São alguns campos que teríamos de colocar. E cessidade de ser contido. Contido de que for-
isso faz com que a pergunta sobre a estrutura ma? Antigamente era contido com punições
seja muito interessante. Vou falar mais da saú- morais, até físicas. Hoje tem a punição química

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e medicalização
de que eu tenho mais intimidade. Não se trata e a medicalização. A Associação Americana de
de você culpabilizar o médico, o psicólogo ou o Psiquiatria é quem convenciona o DSM de que

Cadernos Temáticos
profissional que trabalha na estrutura, ele tra- falou, aqui, o Ajax. E existem alguns membros
balha funcionando dentro dessa lógica, a hora da Associação Americana de Psiquiatria que
de trabalho dele é por consulta, a produção é tem conflito de interesses com a indústria far-

Patologização
feita de determinada maneira. E aí assim, não macêutica. E isso é muito sério, porque esbarra
interessa se o sujeito morreu de diabetes ou na questão ética. Então vemos que o problema
se ele perdeu um dedo, eu quero saber “olha, é muito maior do que se imagina. É uma ques-
quantas consultas ele teve, se ele fez os exames tão mesmo de poder, é uma questão ética, uma
que fez”. Há uma lógica que é a da mercadoria, questão de mercantilização da vida. Vou falar
e isso funciona muito. Então, eu acho que tem de duas questões que eu acho que são muito
de tomar um cuidado nesse sentido de não cul- importantes que tem acontecido e que nós nos

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pabilizar nem o professor, nem os pais, nem os vemos diante disso e não sabemos nem como
profissionais de saúde, porque o que está em lidar. A obsolescência planejada e obsolescên-
jogo é muito maior do que isso tudo. Agora, eu cia perceptiva. Obsolescência planejada, obje-
acho que podemos pensar de algumas manei- tos feitos para durar muito menos do que dura-
ras. E aí o transbordamento faz sentido. Cla- va antigamente. Quer dizer, a máquina de lavar
ro que o transbordamento é sempre difícil em da nossa mãe durava 30 anos, hoje dura sei lá,
qualquer área, porque ele é o desconhecido, ele um ano. Para quê? Para que nós compremos ou-
é o inconsciente, ele é o mistério. Agora, isto tra máquina de lavar, outros objetos, e aí a gen-
não precisa ser inimigo, o enigma não precisa te continua aquecendo o sistema que nós vive-
ser o inimigo para ser decifrado, o enigma é uma mos. E isso é predatório, porque essa extração
coisa que multiplica sentido. Eu não sei o que de recursos naturais tem inclusive colocado em
fazer com uma criança que está muito agitada? risco o próprio planeta. E outra é obsolescên-
Que bom, se você já soubesse era uma desgra- cia perceptiva, que é fazer com que você esteja
ça, porque você já tinha enfiado numa solução, antenado, na moda, fazendo aquilo que todos
se você não sabe você pode se debruçar. E aí estão fazendo. Então, é no nosso cotidiano que
eu acho a fala interessante também nesse sen- nós temos de tentar superar essas questões.
tido. Veja, há uma relação de afeto ali, outras Quer dizer, onde há espaço, a indústria está en-
coisas podem se produzir, o transbordamento trando. E não dá para negar a importância da
pode ganhar outro sentido e outro significado. indústria nas nossas vidas, a questão não é
Por quê? Porque há um campo de relação que essa. A questão é: a que preço e a interesse de
vai se colocando. quem que isso vem acontecendo? Essa forma
complemente antiética, desumanizadora, enfim. não temos isso não. Então, mesmo para nós,
26
E com relação à Finlândia, ela vem investindo é um drama reprovar o aluno, porque não vai
em escola pública, desde a década de 70, e hoje favorecê-lo em nada, nesse sistema educacio-
ela está fechando presídios, investindo em es- nal. E o que acontece? O aluno vai acumulando
cola pública, valorizando professor, revendo a essa defasagem, porque isso vira uma bola de
sua forma de trabalho, implicando o coletivo, neve. Eu tenho uma colega professora que fala
trazendo a comunidade para dentro da escola. que, quando vai fazer SARESP no terceiro ano
Aqui isso não acontece, né? Como que essa co- do ensino médio, fala assim: “eu tenho de come-
munidade chega na escola? Chega para receber çar, tenho que voltar lá atrás na oitava série, no
reclamação de que o filho isso, o filho aquilo, o oitavo ano para dar a base para eu poder avançar
filho aquilo outro. Agora, nós vamos culpabilizar agora no conteúdo exigido agora para o tercei-
o professor? Ou culpabilizar a família? Não. Nós ro ano. Você acredita? Voltar no oitavo ano?”. E
sabemos que todos nós somos vítimas. Agora, é isso que tem de fazer para poder prosseguir
o que nos cabe? Criar esses espaços para que com o conteúdo. Então, esse é um dilema que
nós possamos discutir e entender que outras está colocado. Por outro lado, existe a pressão
pessoas estão pensando como nós, para ten- do Estado para que não haja reprovação, para
tarmos numa força superar esse sistema que que haja reprovação mínima. E, por outro lado,
está nos destruindo a todos. É isso. a gente também fica na dúvida se deve repro-
var ou não. Então, entendeu? Vão passando o
Lucia Silva: Tivemos, durante um tempo, a aluno com toda defasagem que ele tem. E é
chamada “progressão continuada”, que era uma muito chato você falar para o aluno “olha, o seu
estratégia, uma didática que possibilitasse aos aproveitamento, você não conseguiu, né? Você tá
alunos terem um desenvolvimento, uma pro- com uma deficiência na base”. Ele nem sabe di-
gressão. Só que isso foi muito mal-entendido, reito o que é isso, a gente tenta explicar e tudo,
não funcionou, só acabou se concretizando na mas e aí? Ele vai continuar assim, ele vai sair
chamada aprovação automática. Durante bas- da escola assim. Isso é muito triste. Então, teria
tante tempo, a escola ficou funcionando assim, uma necessidade de investir mais no aluno. Se-
na aprovação automática. Então, aluno se acos- ria necessário mais investimento para que esse
tumou com isso, professor se acostumou com aluno tivesse uma possibilidade, oportunidade
isso, a família se acostumou. E agora? Mesmo para desenvolver o que ele precisa, desenvol-
percebendo que isso não deu certo, um modelo ver outras habilidades. Tem como fazer isso. É
que fracassou, ainda assim, existe uma pressão necessário um programa para isso, um investi-
muito grande para que o aluno não seja repro- mento, vontade; é necessário ser prioridade. É
vado. Mesmo que se perceba que o aluno está ter vontade política. E a educação tem um po-
defasado, que ele não alcançou o conhecimento der. Eles sabem que a educação tem o poder.
para passar para outro ano, mesmo assim, te- Então, serve a quem que a educação continue
mos bastante dificuldade para aprová-lo. Mes- assim? A quem serve? À economia de mercado,
mo o Brasil tendo altas taxas de reprovação, em educação voltada para economia de mercado.
São Paulo é mais baixo, mesmo assim temos
bastante dificuldade para reprovar o aluno. Por- Jason Gomes: É o que tem pautado a pró-
que, por um lado, os professores acham assim, pria discussão da Base Nacional Comum. Na
“mas será que vai valer a pena? Mais do mesmo? audiência que teve em São Paulo, por volta de
O aluno vai ficar mais um ano, ele vai ficar com 30% das pessoas que falaram eram de institui-
uma baixa-estima, ele vai perder a turma dele, ele ções convidadas ligadas ao mercado financeiro.
vai ficar mais um ano numa sala com 40 alunos, Por que essas pessoas, essas instituições do
mais um ano sem ter nenhuma estratégia, assim, mercado financeiro foram convidadas para dis-
um trabalho mais voltado para necessidade dele”. cutir a base?
Que se a gente conseguisse fazer isso, talvez o
aluno nem reprovasse. Mas, mesmo assim se ele Lucy Duró: Só um aparte para comentar
tivesse nessas condições “ah, então vale a pena o que a Lúcia nos trouxe. De modo geral, é o
reprovar porque aí vamos ter condição de ter um aluno que é o responsável, porque é ele que
pouco mais de tempo, trabalhar melhor com esse foi, e que é ainda reprovado, mas por questões
aluno, respeitar o processo dele, o tempo dele, a que são muito mais amplas do que o que está
dificuldade, as características desse aluno”, mas sendo posto. Então, honestamente, se o aluno
que está sendo reprovado não consegue aten- Lucia Silva: Acho que você está dizendo
27
der as necessidades de conhecimento que ele que é necessário ter a dimensão do ser humano,
precisa, a questão é repensar: o problema está abordar, propor e proporcionar que o indivíduo
com o aluno ou o problema está com o sistema? seja compreendido e tenha um espaço na sua
Será que não deveríamos pensar no sistema? dimensão integral, não só do ponto de vista da
Porque se um aluno não está aprendendo, eu necessidade de conteúdo, mas que a vivência

- parte 3
não consigo conceber a separação entre ensi- no espaço escolar possa abordar outras di-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
no e aprendizagem. Ensino/aprendizagem, um mensões. O indivíduo precisa ter uma possibi-
pressupõe o outro, não existe aprendizagem lidade de pensar seu mundo, seu entorno, suas

e enfrentamento
sem ensino e não existe ensino sem aprendi- relações com o seu meio. É lógico que temos,

Psicologia em emergências
zagem. Então assim, quem são os responsá- na disciplina de sociologia, a discussão da so-
veis? É o professor? É o aluno? Eu acho que a ciedade de classes, e para eles, é bem difícil
questão é muito mais ampla. Ao meu ver, penso quando começo a falar disso, no primeiro ano,
que a proposta pedagógica que continua nas porque existe toda uma concepção da merito-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


escolas desde o tempo dos jesuítas, tem que cracia que eles já estão introjetando, sabe? O
ser repensada, porque essa escola produz so- mercado de trabalho está aí para todo mundo
frimento em professor, sofrimento em aluno, em disputar igualmente, conquistar o seu espa-
pais e na sociedade de modo geral. Então, acho ço. É bastante difícil começar essa discussão
que a questão é repensar essa proposta peda- com eles, mas é necessário. É necessário eles
gógica falida. compreenderem qual é o pano de fundo, qual é
a estrutura em que a escola e eles estão inse-

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e medicalização
Participante: Boa noite, trabalho em uni- ridos. E também trazer a possibilidade de eles
dade básica de saúde do SUS, colega do Ajax poderem expressar os anseios, os conflitos que

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há décadas. A mesa apontou a questão do ca- eles têm em cada fase, em cada momento da
pitalismo selvagem no neoliberalismo, influindo sua vida. Sentimos muita falta de ter espaços
na formação das pessoas e na relação da es- dinâmicos, também ter a tecnologia, mas ter

Patologização
cola com o educando. Então, a causa, a gente possibilidade de fazer essas interações com os
já consegue identificar. Agora, como será que nossos alunos que pudessem abarcar esse tipo
poderíamos solucionar essa dificuldade da es- de discussão, de vivência, de troca com eles, e
cola de falar sobre as diferenças de classes? eu acho que seria profundamente proveitoso
Não vejo essa entrada. Somos uma frente que para eles.
incentiva o reconhecimento das subjetividades,
Lucy Duró: Quando você fala em espiri-
as diferenças, e quando chegamos na escola
tualidade, imediatamente já me remete a essa

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somos todos iguais, não? Então, até pelo uni-
questão que vem acontecendo e que está nos
forme que muitas escolas ainda usam. A LDB
deixando muito aflitos que é esse fundamenta-
traz essa inovação que é trabalhar através dos
lismo. Quero aproveitar essa questão da espiri-
Conselhos de escola, através de assembleia
tualidade para trazer isso à baila também. Não
de pais. Eu vejo dificuldade nessa transição de
podemos desconsiderar que a escola é laica.
um modelo ditatorial que era centralizado, para
Entretanto, há meios de se trabalhar as virtu-
agora esse modelo proposto, tanto no SUS, de
des, os valores na escola, porque eu entendo
controle social, com a participação dos Conse-
que as religiões e essa dimensão da espiritu-
lhos gestores, como na educação com o Conse-
alidade trazem essas virtudes e trazem esses
lho de escola, e que ainda os professores e os
valores. Então, trabalhando isso nas escolas, de
adultos que vem dessa educação hierárquica,
alguma forma, você está atingindo essa dimen-
acaba indo atrás desse poder, da centralização,
são. E em se tratando da LDB, ela é extrema-
da competição, de quem chega primeiro, dos
mente flexível no que diz respeito à autonomia
rótulos, dos slogans. A Organização Mundial da
das escolas. Então, acho que é, sim, possível
Saúde coloca que você vê o equilíbrio maior da
trabalhar isso e sinto, inclusive, muita falta de
comunidade através da coesão social, dos mo-
trabalhar essas outras dimensões.
vimentos, da organização, e também, ela coloca
como indicador de saúde também, a espirituali- Ajax Perez Salvador: Bom, acho que a
dade. Então, como trazer a atenção integral na provocação é muito boa e eu não sei se tenho
escola, que perpassa por essas dimensões que uma posição muito favorável em relação a isso.
são difíceis? Acho que estamos numa época de guerrilha, em
que funcionamento hegemônico não é favorável eficiência máxima? Sabemos que lógica é. En-
28
a uma transição, mesmo quando ele apresen- tão, não acho que estamos num momento fa-
ta conflitos. Lucy comentou sobre os conflitos vorável. Defendo participação, Conselhos, tudo
de interesse da classe médica fazendo DSM. isso, o que não quer dizer que tudo isso consiga
Eu estava numa mesa no Congresso Interna- funcionar numa outra lógica. Mas eu acho que
cional da Associação Psiquiátrica Americana é um momento de guerrilha. São posições, no
antes do lançamento do DSM, eles discutindo mínimo inquietantes, para mim.
abertamente o conflito de interesses entre a
Jason Gomes: Agradeço a mesa e as con-
indústria farmacêutica e a indústria médica. A
tribuições que foram muitas. Quero lembrar que,
indústria farmacêutica queria mais diagnóstico
dentro da lógica da máxima produção, temos de
e a indústria médica queria menos diagnósti-
ficar com um alerta na cabeça que ainda exis-
cos. São pequenos os dois titãs? Os dois nos
tem tentativas de que as crianças aprendam a
Estados Unidos tem lobby. Isso tudo era claro,
ler e a escrever na máxima eficiência possível,
explícito, nada velado. Agora, a lógica da estru-
ou seja, até os sete anos de idade. Então até
tura farmacêutica é tão mercantil quanto a ló-
os sete anos de idade todo mundo tem que es-
gica do seguro médico. Este conflito aqui não
tar lendo e escrevendo muito bem, não basta
está ajudando o processo, por quê? Porque eles
começar a aprender a ler e escrever, tem de ler
estão respondendo à mesma lógica. A situação
e escrever muito bem. Tudo na lógica da máxi-
é de guerrilha e é muito mais complicada. Você
ma eficiência. E isso, obviamente, vai produzir o
produz uma sociedade que estimula bastante
quê? Problemas de aprendizagem, que são lidos
que você libere muito Cortisol para ficar bas-
como deficiências ou transtornos ou doenças.
tante na defesa, para ficar o tempo inteiro em
Assim, aqui estamos, de lugares diferentes, com
prontidão, aí você vende uma medicação que
contribuições diferentes, mas entendendo o
reduz o Cortisol. Percebe? Produz-se o proble-
quão complexo, o quão grave, o quão perverso é
ma e produz-se a solução. E não é mentira que
e o quanto temos de aumentar as nossas lutas
a medicação vai reduzir o Cortisol, é verdade.
coletivas nesses espaços de resistência.
Você vai lutar contra a medicação que reduz o
Cortisol? Você vai deixar que o Cortisol aumente
e que a pessoa fique cada vez mais lutando?
Você percebe que isso aqui é um jogo de guer-
rilha, o que parece que ajuda é o que atrapalha,
o que parece que atrapalha é o que ajuda? En-
tão, a gente não está numa situação simples na
qual conseguimos definir claramente o inimigo.
Quem, às vezes, parece o inimigo é o que pode
ajudar e, às vezes, quem parece que pode aju-
dar é o inimigo. O negócio não é simples. Vamos
sempre falando de conseguir o potencial. Mas
por que todo mundo tem de ter potencial? Por
que todo mundo tem de desenvolver tudo? Por
que tem de chegar na meta? Por que a pessoa
não pode ficar menos? Por que menos é pior
do que mais? Por que uma pessoa é chamada
de deficiente mental? Se o sujeito nascesse lá
no campo, plantando, ele ia viver a vida inteira,
plantar, colher, fazer, casar, nunca na vida ele ia
ser um deficiente mental. Se o mesmo sujeito
nascesse numa classe média paulista, intelec-
tual, ele ia ter todo o estudo, todo isso, todo
aquilo, para virar um deficiente a vida inteira.
Quem produziu o deficiente? Os esforços de
tratar, de cuidar, de fazer, desenvolver e chegar
ao máximo. Mas que lógica é essa que tem que
chegar no máximo? No rendimento máximo? Na
A patologização da Educação 29

Pedro Tourinho

- parte 3
Médico sanitarista, docente da PUC Campinas e vereador na cidade de Campinas.

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e enfrentamento
Boa noite a todas. É um prazer receber vocês simplificadoras, que, de certa forma, oprimem as

Psicologia em emergências
aqui na Câmara, eu sou o vereador Pedro Tou- pluralidades das manifestações dos indivíduos,
rinho e no mês de novembro sempre realizamos cada vez mais são apresentadas por gestores
atividades que celebram o dia que nós aprova- públicos, por formuladores de políticas públicas,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


mos como lei municipal do dia do combate à me- como alternativas e soluções. Temos clara dis-
dicalização da educação e da sociedade. Esse cordância disso e pretendemos subsidiar todos
projeto foi apresentado, por mim, no ano de 2013, e todas que queiram fazer esse embate, esse
foi um projeto pelo movimento Despatologiza, o debate com os melhores argumentos possíveis
movimento contra a medicalização e temos ten- para evitarmos que isso se torne política pública.
tado todos os anos, desde então, realizar e dar Eu quero convidar para a mesa, então, as nossas
sentido para esse dia. Achamos que os poucos debatedoras: Rosangela Villar, psicóloga, militan-
dias que decidimos demarcar no calendário muni- te do movimento Despatologiza e colaboradora

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e medicalização
cipal devem ser debatidos com a importância que do CRP; uma pessoa central nessa história; e Ân-
eles merecem. E particularmente um tema como gela Soligo, docente da Faculdade de Educação

Cadernos Temáticos
esse, a medicalização e patologização, cada vez da Unicamp e presidente da Associação Brasilei-
mais se torna necessário, dado que as soluções ra de Ensino de Psicologia.

Patologização
Rosangela Villar

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Psicóloga, militante do movimento Despatologiza e colaboradora do CRP SP.

Mais uma vez, como diz Pedro, estamos aqui para em todas as nossas ações, em todas as nossas
esse tipo de debate e reflexão. Desde 2013, es- formas de relacionamento na sociedade. Desde
tamos junto. Esse ano é, para nós, um pouquinho quando ficamos grávidas, desde quando a gen-
diferente porque ele está encampado também te nasce, desde tipo de alimentação que a gente
pelo Conselho Regional de Psicologia, que, embo- come; o fenômeno da medicalização passa por
ra nos anos anteriores tenha sido nosso parceiro tudo, é um fenômeno transversal.
nessa reflexão, esse ano entra mais forte: o dia
foi aprovado no Estado de São Paulo. Então, ele Hoje vamos falar da patologização da edu-
passa a ser também um dia estadual de enfren- cação, origem do nosso movimento, com a ques-
tamento, ou contra a medicalização da educação tão dos transtornos, da dificuldade da criança,
e da sociedade. Assim, o estado de São Paulo sua culpabilização e também da escola, ou do
todo, no mês de novembro, todas as subsedes professor e a dificuldade em ver isso como um
estão com eventos fazendo a marcação dessa fenômeno que é socialmente construído e que tá
data. Eu digo que isso é só simbólico, porque a lastreado em políticas públicas bastante inten-
gente tem de fazer a demarcação dessa data cionadas. É importante fazermos essa conversa.
e desse enfrentamento o ano inteiro, em cada Mas eu não vou falar mais, eu vou deixar a Ângela
uma das nossas ações, porque a medicalização fazer sua fala e depois ficamos à disposição para
e a patologização da vida, elas estão arraigadas participar da conversa.
30 Ângela Soligo
Psicóloga, docente da Faculdade de Educação da Unicamp e
presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia.

Bom, boa noite a todas e a todos. É sempre um pra- cupado, ou você tem um problema sério a resolver,
zer participar desse debate sobre a questão da me- bom, a solução está num remédio líquido, que o dei-
dicalização, da despatologização; é necessário. E eu xa calminho ou calminha. Se você tem gripe, você
queria começar dizendo que hoje é um dia bastante não pode parar de trabalhar, você tem umas pílu-
emocionante para mim que sou uma pesquisadora las milagrosas que vão deixar você em pé. Se você
do racismo, porque hoje nós conseguimos aprovar quer emagrecer, você vai ter acesso a cápsulas que
finalmente a política de cotas na Unicamp, e parece vão queimar as suas gorduras. Se você está triste,
que não tem relação uma coisa com a outra, mas na desanimado, seja por qual motivo for, você tem re-
verdade, essas frentes todas, as políticas de inclu- médios que vão dar energia, sem falar nos florais
são social, de cotas, a luta contra a patologização, que são tiro e queda. Se você quer o seu cabelo
são lutas por uma vida cidadã plena, que nós não mais brilhante, mais sedoso, você pode tratá-los
temos, não é? Nós não teremos enquanto tivermos de dentro para fora com cápsulas, com remédios.
racismo, enquanto tivermos homofobia, enquanto Se você é mulher e fica irritada por alguma razão,
tivermos misoginia, enquanto tivermos pobrefobia, existem os remédios para TPM. Se você é homem
enquanto considerarmos que a vida social se resolve e anda desanimado, sexualmente meio lento, tam-
com remédios. Então é um dia para mim importan- bém tem remédio pra isso. Não é? Se você vai enve-
te e foi importante vir aqui hoje. Eu faço parte des- lhecer, nem pensa nisso, existem vitaminas que vão
se debate já há algum tempo, participo sempre que retardar o seu envelhecimento. Então, acabamos
possível, mas mesmo que não presencialmente eu brincando muito, as duas, e isto não é brincadeira,
participo da discussão, da produção de conteúdos e é sério. Parece que para viver, na nossa sociedade,
de ideias para esse debate. você precisar tomar, por dia, entre 10 e 12 medica-
mentos, no mínimo. Isso faz parecer que estar vivo
Queria começar minha fala contando uma
é estar doente, e que os problemas cotidianos, os
história. Há uns dias, eu estava sentada com a
problemas da vida em sociedade são problemas
minha filha mais nova, assistindo televisão, o que
do indivíduo, são seus problemas individuais e isso
é raro, mas tivemos aí uns feriados e assistindo a
não tem nada a ver com a sociedade.
TV, pude notar que, num período de mais ou menos
uma hora, de aproximadamente 10 propagandas de
televisão, cinco eram sobre medicamentos. Minha
filha e eu começamos a brincar com isso, porque
“Criamos rótulos e nós os vemos
fomos constatando que, se você trabalhar demais crescer, serem ampliados”
e esse trabalho te produz dores, dor de cabeça, dor
nas costas, dor nas pernas, tem analgésico, anti-
inflamatório e parece que isso resolve seus pro- Eu recebo muitas queixas de pessoas que
blemas trabalhistas. Se você não pode tomar leite, procuram atendimento psicológico, pessoas ne-
tem intolerância, já tem remédio para isso, você gras e, quando relatam situações de sofrimento
toma o remédio e toma leite. Se você está preo- por causa do racismo, elas escutam “racismo não
existe, esse problema é seu”. Então, vamos con- logias. Isso é patologizar. É focar essas questões
31
centrando todas as nossas questões, nossos no indivíduo e deslocar das condições de produ-
dilemas no sujeito individual; e concentrando no ção. Quando dizemos que uma pessoa, que está
sujeito individual, vamos identificando ou criando há mais de uma semana triste, está com depres-
doenças, criando patologias. Porque se é do su- são, não nos perguntamos por que essa pessoa
jeito individual, ele tem um problema que se mani- está triste e o que podemos fazer por ela. Temos,

- parte 3
festa com algum tipo de sintoma e, então, damos portanto, uma compreensão estreita dos proble-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
nome para eles. Eu diria que criamos rótulos e nós mas, limitada, unilateral. Qual é a consequência
os vemos crescer, serem ampliados. Há patologias imediata da patologização? É a medicalização. Se

e enfrentamento
para as quais nós não tínhamos nomes, não ha- dizemos que o sujeito está doente, se situamos

Psicologia em emergências
víamos criado ainda, mas nós vamos modulando os dilemas sociais nele e ele adoece, precisamos
os rótulos. Por exemplo: existem classificações de apontar ou apresentar um remédio. E hoje o que
depressão que vão dizer que mais de um mês de percebemos é que existe medicamento para tudo,
tristeza já é depressão, não importa qual a razão, existe remédio para tudo. E, junto com isso, vem

CRP SPdas vidas: reconhecimento


não importa se o seu filho morreu. Mais de um a crença de que se pode resolver tudo com remé-
mês é depressão, já está rotulado. Para as crian- dios, para tudo há um medicamente, e esses medi-
ças que se movimentam muito, que são mais agi- camentos são incidência no sujeito individual.
tadas, nós também temos rótulos, as hiperativas,
O que faz parecer que vivemos num mun-
as que tem TDAH, não importa como elas sejam.
do de Alice, onde tudo funciona bem, onde tudo é
Essa minha filha quando era criança, era móvel,
maravilhoso, todas as instituições são perfeitas,
fazia ginástica e não parava quieta, pulava, fazia
ninguém tem problemas concretos do cotidiano, a

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e medicalização
exercício, comia pulando. Na escola, também não
escola é maravilhosa, a sociedade é maravilhosa,
parava quieta, mas, ao mesmo tempo, prestava
ninguém passa fome, ninguém está preocupado

Cadernos Temáticos
atenção em tudo, só que pulando. Felizmente, ela
com o desemprego, ninguém está desempregado,
estudava numa escola que não rotulava, porque
ninguém está preocupado com a reforma da previ-
numa escola comum ela seria certamente consi-
dência, com a venda do Pré-sal ou das riquezas da

Patologização
derada hiperativa. Então, as crianças que querem
Amazônia. Então, nos perguntamos: a quem isso
correr, que querer pular, que querem brincar, hoje
interessa? Por que temos funcionado desta ma-
são chamadas de hiperativas.
neira? Selecionei alguns setores.
Quando nos deparamos com crise entre
casais, rapidamente, alguém situa a razão da
crise na mulher e diz que ela tem TPM. Quando “É alarmante a quantidade de
temos crianças questionadoras, adolescentes

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questionadores, e isso com adolescentes acon- medicamentos que hoje são
tece muito, que, na escola ou mesmo em casa, produzidos e consumidos na
problematizam, duvidam, perguntam, hoje exis- nossa sociedade”
te um rótulo para isso que é o TOD, transtorno
de oposição desafiadora.
O primeiro é óbvio, a indústria farmacêutica
que cresce, se expande. Enquanto outros setores
“Vamos transformando aquilo do tecido social se retraem, a indústria farmacêu-
que, de certa forma, demanda da tica cresce, cada vez que você vai à farmácia tem
sociedade flexibilidade, abertura uma marca nova, um fabricante novo. Quando você
pede um remédio bem simples, o farmacêutico lhe
à diferença, diferença que nos oferece uma gama de possibilidades de marcas.
constitui” É alarmante a quantidade de medicamentos que
hoje são produzidos e consumidos na nossa so-
ciedade. Eu estava vendo, na internet, existem uns
Deste modo, vamos transformando aquilo sites que são vinculados à indústria farmacêutica
que, de certa forma, demanda da sociedade fle- que aponta os top ten dos medicamentos, os mais
xibilidade, abertura à diferença, diferença que nos consumidos. E os analgésicos estão entre os cin-
constitui. Temos a criação de rótulo. E o que faze- co mais consumidos, entre outros. Os ansiolíticos
mos com esses rótulos? Transformamos em pato- também estão lá.
Para discutir essa questão, tomo um caso das políticas públicas e não para as políticas em
32
específico, que é o do Metilfenidato, princípio ati- si. Porque para os gestores, investir na medica-
vo dos remédios Ritalina e Concerta. Num dado lização é investir no setor privado, produtor de
de 2014 se constatou que, em 10 anos, a produ- soluções rápidas que não interrompam a cadeia
ção e importação da substância Metilfenidato de trabalho. Mas por que não investir no desen-
aumentou em 373%, e o consumo aumentou em volvimento e na promoção do bem-estar social,
775% no Brasil. Esse consumo abrange pesso- físico, psicológico? Por que não investir nas políti-
as a partir dos três anos de idade, e o Brasil é o cas de promoção? Nas políticas de atenção? Nas
segundo maior consumidor da Ritalina. Entre os políticas de desenvolvimento, dos sujeitos, da co-
cinco remédios controlados mais consumidos es- munidade? Qual é o interesse que efetivamente
tão os ansiolíticos, os remédios para estresse e há no investimento de algo que afinal emancipa
os antidepressivos. Então, interessa à indústria e liberta? Numa sociedade que sequestra direi-
farmacêutica o adoecimento da sociedade? In- tos, emancipar e libertar não é de interesse dos
teressa. Tanto, que é enorme o investimento na nossos gestores das políticas. Quando nós temos
propaganda, como se remédio fosse algo que de- um ministro da Saúde que anuncia que este ano
vesse ser consumindo indiscriminadamente e que tivemos uma economia de X com orgulho e nós
precisássemos de todos eles. A quem mais inte- vamos aos postos de saúde e não há nem espa-
ressa? Bom, no capitalismo neoliberal interessa radrapo, não tem nem material para curativo, nós
ao setor produtivo, não ao trabalhador, interessa entendemos que economia é essa. É a economia
às instâncias de controle do mundo do trabalho. no que gera bem-estar, saúde, liberdade, emanci-
Por quê? Porque, no capitalismo neoliberal, produ- pação, e é atrelamento à indústria farmacêutica.
tividade é uma meta, é um modo de existir, temos Então, no campo das políticas também o inves-
que ser produtivos, certo? E para sermos produ- timento é na patologização e na medicalização.
tivos, não podemos ficar doentes. Tem uma pro-
paganda, inclusive, na TV, com uma atriz famosa,
em que ela diz “ah, eu estou com gripe, mas eu não “Numa sociedade que sequestra
posso parar, eu não consigo parar. Então eu tomo o
remedinho tal porque eu não vou parar”. direitos, emancipar e libertar
Assim, o que se apresenta para o setor pro-
não é de interesse dos nossos
dutivo são as soluções rápidas, quanto mais ime- gestores das políticas”
diatas, melhor. Outro dia, uma colega conversan-
do comigo dizia “tem tantas doenças letais para
Um exemplo disso é a Lei 13.438 que impõe
as quais não estão sendo pesquisadas vacinas, por
que crianças de zero a 18 meses sejam submeti-
que que tem vacina para gripe que, via de regra,
das a um protocolo de avaliação de risco psíquico
não é letal?” Olhei para ela e disse “porque gripe
e de espectros que sejam comprometedores do
deixa você na cama e aí você não vai trabalhar”.
desenvolvimento, entre eles o autismo. E quem vai
Precisa ter uma vacina que garanta a produtivi-
fazer isso? Os pediatras nos consultórios de pe-
dade a qualquer custo. Então, para o capitalis-
diatria vão avaliar risco psíquico. Quando olhamos
mo neoliberal, a medicalização interessa. Assim
para isso, olhando de longe dizemos “poder prevenir
como a patologização, porque são irmãs gêmeas,
problemas é bacana, é legal”, aí olhamos um pouco
certo? Por que oferecem o quê? Soluções rápidas,
mais de perto e dizemos “bom, então para fazer essa
soluções de curto prazo, soluções imediatas em
avaliação de zero a 18 estamos pressupondo que es-
qualquer campo.
sas crianças necessariamente nasceram com essas
características”. Então, de novo, estamos jogando
os contextos socioculturais de produção de nos-
“Para quem mais interessa? sas muitas possibilidades de risco, não é? Olhamos
Interessa para as políticas mais de perto ainda e pensamos “bom, são os pe-
diatras que farão isso? Com que formação? Com que
públicas de saúde”
formação em psicologia? Com que profundidade?”.
Então, esta é uma medida que mostra como as nos-
Para quem mais interessa? Interessa para sas leis vão nos encaminhando para essa dimensão
as políticas públicas de saúde. E, dentro desse da patologização e da concepção de que as coisas
universo, interessa para quem? Para os gestores estão dentro, prontas no indivíduo.
Esta é uma concepção, inclusive, antiga, que a minha amiga saiu de lá bastante descontente,
33
já imaginávamos superada, mas como andamos não comprou o remédio porque ela entendeu na-
voltando ao século 17, não é surpresa. Queria tam- quele momento que, primeiro, não era isso que ela
bém falar um pouco das consequências. Primeiro queria, ela não queria transformar o filho dela num
das consequências físicas, da habituação e da robozinho quietinho, arrumadinho, e ela entendeu
dependência. Falo de habituação, porque mesmo que o que a escola pedia a ela não era correto. Mas

- parte 3
aqueles medicamentos que não são psicoativos, por que eu conto isso?

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
não são tarja preta, ao tomá-los regularmente,
vamos sim habituando o organismo, habituando-

e enfrentamento
nos e nos tornando dependente deles, mesmo que “E as queixas são das crianças

Psicologia em emergências
não fisicamente dependente, não é? Mas parece
que não conseguimos tocar a vida se aquele me- que ‘não para quieta’; ‘Ah, é
dicamento não estiver presente, como se fosse um pouco mais lenta do que
ele a prevenir qualquer possiblidade de risco. Tem os colegas pra ler’ ou ‘é rápido

CRP SPdas vidas: reconhecimento


também a dependência física que é provocada por
muitos medicamentos e o aumento da resistência demais, incomoda os outros’.
aos medicamentos quanto mais os tomamos. São queixas que fazem parte
Se olharmos para o Metilfenidato, a Ritalina, da nossa diversidade, mas
o Concerta, ele é um primo da cocaína, atua no sis- transformadas em queixa, são
tema nervoso central, produz dependência química
e exige doses cada vez maiores para manter a sua
transformadas em um problema

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e medicalização
eficácia. Então, ele é uma droga. A gente poderia que será transformado numa
trocar o nome Metilfenidato por qualquer droga e patologia que necessita de

Cadernos Temáticos
poderia fazer essa mesma descrição. Ele produz
efeitos colaterais já constatados: efeitos no fun-
remédios”
cionamento cardíaco, no funcionamento do sistema

Patologização
gastrointestinal e efeitos psicológicos, inclusive, de
Porque todos os dias, pais e mães de crian-
longo prazo. Já existem estudos internacionais que
ças nas escolas são chamados e são aconselha-
associam o consumo por período muito longo da
dos a levar os seus filhos ou no neurologista, ou no
Ritalina com tendências a suicídio e tendências psi-
pediatra, ou quando, é na escola pública, ao posto
cóticas. Então, ela produz consequências de longo
de saúde, e são aconselhados a pedir a prescri-
prazo e consequências bastante sérias. Mesmo as-
ção de Ritalina. As pessoas vão já com esta fala
sim, esses medicamentos são utilizados, tem sido

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“olha, a professora ou a diretora me disse pra vir
utilizado no Brasil em larga escala, e na escola isso
aqui porque o meu filho tem problemas de condu-
se expande de uma forma assustadora.
ta na escola e ela acha que ele precisa tomar Ri-
O uso da Ritalina na escola, desde as crian- talina”. Isso é comum. Eu tenho uma orientanda
ças do infantil, de três anos para frente até ado- de doutorado que fez sua pesquisa numa cidade
lescentes e jovens, é algo que se expande e se do interior paulista e ela foi olhar, nos prontuários
amplia a cada ano. Vou contar uma história para das queixas escolares, qual é a queixa quando as
poder construir um significado para isso. Há um professoras encaminham uma criança para sala de
tempo, uma conhecida minha recebeu uma queixa reforço, para o serviço de psicologia, para a ida ao
da escola de que seu filho de cinco anos não pa- posto de saúde. E as queixas são das crianças que
rava quieto. O que era não parar quieto? Ele queria “não para quieta”; “Ah, é um pouco mais lenta do que
brincar, ele queria pular, ele queria correr, não é? E os colegas pra ler” ou “é rápido demais, incomoda
a sugestão da escola foi de que levasse o menino os outros”. São queixas que fazem parte da nossa
a um neuropediatra. E a minha colega, mesmo re- diversidade, mas transformadas em queixa, são
lutante, atendeu ao pedido da escola e levou o seu transformadas em um problema que será trans-
filho de cinco anos a uma neuropediatra. E quan- formado numa patologia que necessita de remé-
do ela contou por que estava lá, qual era a indi- dios. A Ritalina é um recurso que tem sido usado
cação da escola, a fala da neuropediatra foi “não cada vez mais, ela é chamada na cultura escolar
se preocupe, fique tranquila, eu vou prescrever um de “droga pacificadora”, e de todos os efeitos que
medicamento para o seu filho e ele vai se tornar um se conhece dela no ambiente escolar, um dos mais
príncipe”. Que medicamento era esse? Ritalina. E fortes é o “efeito zumbi”.
la. No momento em que patologizamos e dizemos
34
“Qual é a felicidade dela? O que a solução daquela conduta é um medicamen-
to, a escola se desresponsabiliza. A escola não
quanto ela vai poder usufruir tem nada a ver com o fato de que, às vezes, as
deste lugar chamado escola, crianças estão desinteressadas ou que não estão
da interação com os colegas, aprendendo tanto quanto deveriam. É como se a
responsabilidade por ensinar e formar não fosse
da própria interação com a da escola. Uma outra dimensão da desresponsa-
professora e com o professor?” bilização é o fato de que, uma vez medicalizada,
uma vez que temos um laudo sobre a criança, e o
O que é o efeito zumbi? É ficar quieto; o su- laudo virou uma arma, dizemos “bom, agora olha,
jeito está ali, mas está ali relativamente dopado. está aqui documentado que esta criança não tem
Mas sem babar. Os remédios mais antigos faziam solução, então não é minha responsabilidade promo-
babar, os atuais não fazem. A criança fica quieta, o ver a sua aprendizagem porque eu tenho um laudo”.
adolescente fica quieto. Mas o que significa para Escutamos afirmações como essa, com muita fre-
ele estar ali na escola daquela maneira? De que quência. A pesquisa que citei acima também men-
serve para a criança, para o jovem estar ali dopa- ciona isso, a professora que diz “eu preciso de um
do? Nós não temos estudos, nem nacionais nem laudo”. Para que eu preciso de um laudo? Para dizer
internacionais, que provem que, de fato, há uma “se essa criança aqui não aprender, não é culpa mi-
eficácia na aprendizagem. Há uma eficácia no con- nha”. Aliás, um discurso muito frequente na cultura
trole da conduta, mas não na aprendizagem. En- escolar é transformar responsabilidade em culpa,
tão, a criança está na escola, quieta, mas ela está e é bom a gente diferenciar essas coisas, porque
aprendendo? Mais do que isso, qual é a satisfação culpa é um sentimento individual, situacional, e
que ela tem de estar ali? Qual é a felicidade dela? responsabilidade é coletiva e, no caso da escola,
O quanto ela vai poder usufruir deste lugar chama- é institucional. Então, nós não podemos falar em
do escola, da interação com os colegas, da própria culpa, até porque se falamos em culpa, tiramos a
interação com a professora e com o professor? espada da cabeça do aluno e jogamos na cabeça
Quanto a administração dessa droga, de fato, per- do professor, o que também é injusto, não é?
mite que a criança usufrua do espaço escolar?
Nós precisamos falar em responsabilidade;
Essa questão me remete primeiro a um as-
responsabilidade institucional, responsabilida-
pecto que, para mim, é muito preocupante, que é
de social e política. Com o quê? Com a promoção
a perda da infância. Hoje, as condutas que nós di-
do pleno desenvolvimento, com a formação, com
zemos que são inadequadas na escola, fora dela
a aprendizagem dessa criança, desse jovem que
são condutas infantis, certo? São condutas infan-
está na escola. A medicalização e a patologização
tis de exploração do espaço, de exploração do
não favorecem que a escola, como instituição, as-
próprio corpo, de desejo do movimento. Wallon já
suma plenamente essa responsabilidade. Queria
nos ensinou isso: movimento para criança é vida,
encerrar dizendo que temos uma tarefa cidadã.
para todos nós.
Temos uma tarefa como movimento - movimentos
Então, o que nós estamos fazendo é matar em favor da despatologização, contra a medica-
a infância. Matar a infância em casa, porque não lização, nós temos uma tarefa como instituições,
pode tirar tudo do lugar, não pode rabiscar, não Conselho Regional, Conselho Federal de Psicolo-
pode mexer, não pode pular. Muitas das nossas gia, Associação Brasileira de Ensino de Psicologia
crianças não têm quintal e não podem mais ir para e tantos outros, e também como docentes, como
a rua para fazer nada disso. APEOESP, como docentes da universidade, como
parte das instituições escolares - que é atuar na
Matamos a infância na escola também, por-
contramão da patologização, atuar na promoção
que tem que ficar sentada, porque não pode pular,
da aprendizagem, na promoção do pleno desen-
não pode correr, não pode fazer barulho. Vamos
volvimento. Atuar para pensar uma sociedade que
transformando as crianças, cada vez mais, em pe-
se pense com responsabilidade e que, portanto, se
quenos adultos, nós até os vestimos como peque-
pense coletivamente. Essa é uma tarefa de todas
nos adultos, como no século 17.
e todos comprometidos que somos com o campo
Uma outra questão que, para mim, é séria, é da educação. Isto não deve ser uma escolha, deve
a desresponsabilização da sociedade e da esco- ser um compromisso. Obrigada.
Debate 35

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Pedro Tourinho: Ângela, muito obrigado. Foram vá- deixar uma receita pronta para o paciente poder pe-
rias provocações. Queria complementar e falar um gar de volta e continuar usando sua medicação sem
pouco da minha experiência de médico. Trabalho prejuízo. Não é possível fazer consulta todo mês para
na saúde da família, na atenção básica, e, em tan- avaliar se o paciente está ou não melhorando com a

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
tas vezes, me senti e senti colegas meus como se medicação. Fazer um plano de desmame, um plano
fôssemos traficantes que operam dentro da lei. Por- para melhorar, ou para diminuir também não existe. O

Cadernos Temáticos
que vemos situações, por exemplo, de renovação de que tem, na verdade, são casos de pessoas com 25,
medicamentos psicotrópicos, especificamente dos 20, 15 anos de uso dessas medicações. E se faltar,
benzodiazepínicos. Benzodiazepínicos são medica- no centro de saúde, especialmente o Rivotril, ou por

Patologização
mentos ansiolíticos. Para quem não sabe é o famoso algum motivo a receita não estiver lá, a briga é feia. Já
Rivotril, o famosíssimo Diazepam, Lexotan. Existem vi barraco na recepção, com todas as características
vários e promovem muita situação de dependência de substância de abuso, de ter uma ansiedade asso-
e de um uso abusivo. Existem milhões e milhões de ciada à eminência da não utilização do remédio.
brasileiros consumindo, na verdade, o Rivotril; ele
Hoje, 18% do PIB norte-americano está no se-
está sempre no top 2 ou 3. Na verdade, ao longo dos
tor saúde, isso é mais do que todo o PIB brasileiro; e
anos 90, houve uma transição, entre o primeiro cam-

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o setor saúde americano é um setor particularmen-
peão de todos, o Diclofenaco, para o Rivotril. É inte-
te medicalizante, particularmente médico centrado,
ressante observar essa transição, porque ela acom-
procedimento centrado, medicamentalizante, e é,
panha a mudança no mundo do trabalho. Mudança
também, a principal produtora de conhecimento que
caracterizada pelo processo de desindustrialização,
é estabelecido como conhecimento padrão ouro
de diminuição do percentual da mão de obra, que
para área da saúde no mundo. Então, quando en-
estava ocupada no campo com tarefas do trabalho
tendemos o que que significa essa cadeia, de fato,
braçal, para uma sociedade mais marcadamente dos
toda essa discussão sobre a pressão medicalizante
serviços e com essa questão do ingresso das outras
que existe sobre a vida, é uma discussão, a meu ver,
tecnologias que capturam a nossa força de trabalho
das mais importantes. Tem a ver com o controle dos
permanentemente. Moral da história: um incremento
corpos das pessoas, mas tem a ver com esse con-
imenso do uso de ansiolíticos e antidepressivos, ao
trole num nível profundo. Profundo porque ele tem a
longo desses últimos vinte e poucos anos.
ver com a maneira como seremos e vamos continu-
ar sendo enquanto sociedade, e na minha opinião,
E o que eu já vi em unidade básica de saúde?
existe, de fato, uma tendência a ser zumbi.
O caderninho da renovação. Apesar de ser proibido
pelo Conselho de Medicina, é um caderno em que se É um projeto político, econômico. Tem a ver
anota a data em que vence a receita dos pacientes com a estrutura do capital nesse momento da hu-
com remédios de uso prolongado. Talvez isso não manidade. É uma discussão que nos permite ir
aconteça necessariamente em Campinas, mas nos muito longe. Por exemplo, me incomoda quando eu
interiores do Brasil afora, certamente isso existe. Na vou ler artigos científicos nas grandes publicações
data de vencimento, o médico em questão já tem de internacionais da medicina e vejo publicado, em le-
trinhas bem menores do que as letras do artigo pro- de São Paulo de que pobre não tem hábito alimentar.
36
priamente, no finalzinho ali junto do nome do autor; A farinata, para mim, é a medicalização chegando na
“este pesquisador recebeu bolsa da Pfizer, da Sanofi- coisa mais básica e sagrada que é o direito de comer
Aventis, e outra tantas empresas da indústria farma- e de sentir, de compartilhar, de ter prazer, de sentir
cêutica” e é uma lista enorme. Os vieses são muito gosto, e o prefeito propõe alimentação liofilizada em
grandes, e isso é muito complicado porque não se farinha de aproveitamento de comida que vai vencer
consegue nem ter acesso à informação de qualida- para pobre. Evidentemente, ele não ia propor isso
de produzida com um respeito mais profundo para para o Fasano, para o dono dos restaurantes que ele
evitar que sejamos capturados por esses tipos de frequenta com a família dele. E, depois, uma depu-
vieses. Até porque o financiamento está nas mãos tada do PSDB de Campinas propôs essa maluquice,
da indústria farmacêutica; quem vai financiar uma enfim, para o estado inteiro, e nos opusemos a isso;
pesquisa para provar que o medicamento A, tido eu até protocolei uma lei aqui que proíbe a distribui-
como significativamente diferente do B, na verdade ção de farinata, nas escolas de Campinas. Acho que
era só um pouquinho? Na verdade, ele brincou com é uma coisa desnecessária aparentemente, mas
os números ali para falar que era; ele está só botan- pelo jeito não, melhor não correr o risco. Felizmente,
do mais um remédio que agora está patenteado. depois da nossa divulgação e do constrangimento
que isso provocou na deputada, ela retirou esse pro-
Ângela Soligo: Às vezes não é nem brincar jeto de lei; eu fiquei muito orgulhoso inclusive, muito
com os números, é trocar de indicador estatístico feliz. E o prefeito de São Paulo também retirou.
“não, esse indicador não é bom, não tá me dando o
resultado que eu quero, troca o indicador”. Rosangela Villar: Quero falar um pouco da
questão da patologização e da medicalização, porque
Pedro Tourinho: É isso. Por algum motivo, a Ângela fala bastante na questão do uso dos diag-
quando vence a patente aparece um outro medica- nósticos associados aos remédios, mas é importante
mento, esse sim patenteado, que é um pouquinho lembrarmos que patologizar e medicalizar a vida não
melhor e vai ser indicado e tal. Tivemos recentemen- é só usando remédios. Às vezes indicativos de trata-
te aqui uma discussão na Câmara sobre a questão mentos que fazemos para as crianças também são
dos representantes de indústria farmacêutica no medicalização da vida. Quantas crianças no processo
centro de saúde. Tinha uma normativa da prefeitura regular de construção de leitura e escrita, ou por es-
que proibia a presença deles nas unidades. O que tarem mais lentas, ou por questões mil que são pos-
acontece? Infelizmente, os equipamentos de educa- síveis de acontecer nesse processo, apresentam tro-
ção continuada e permanente da prefeitura são mui- cas, apresentam alguma falha no registro (ainda que
to frágeis. Muitos profissionais que estão na rede se eu não goste de falar em falhas) e as pessoas dizem
veem sem instrumentos concretos de atualização, que essas crianças são disléxicas? E aí o indicativo é
de manutenção do seu conhecimento cotidiana- ir para fonoaudiólogo ou vai para o psicólogo, para o
mente. E, então, quem oferece essa informação mui- psicopedagogo. Ou a criança com as questões com-
tas vezes? Os representantes. Enfim, fui xingado de portamentais, como diz Cida Moysés “a criança deve
tudo quanto é coisa por muitos representantes aqui se descomportar”, mas se a criança se descomporta,
porque eu me opus frontalmente, mas o fato é que ela vai para o psicólogo porque ela dá trabalho. Essas
existe uma pressão tremenda em cima disso. coisas também são medicalizar e patologizar a vida.
É um jeito de pensar a sociedade e o mundo Hoje, um termo vem aparecendo para tentar di-
que invade todos os aspectos da vida e tem um re- ferenciar um pouco a questão do remédio, que é a me-
corte de classe que deve ser colocado muito clara- dicamentalização. Existem várias pesquisas, inclusive
mente. Se a pessoa tem dinheiro, ela realmente tem artigos sendo publicados com a orientação de não
uma escola que permite as vivências da infância, e centrar a preocupação da patologização e da medica-
tantas outras coisas. No fundo, hoje, a medicaliza- lização só no remédio. Então é importante saber que
ção, embora acometa a todos, ela tem um recorte de a indústria farmacêutica não para de crescer, mas não
classe que é muito presente, muito forte. Não posso medicalizamos só nesse viés, medicalizamos ao não
deixar de falar de como é que o achatamento das reconhecer o direito à diferença, à singularidade dos
perspectivas existenciais das pessoas vai se esten- sujeitos. Quando queremos homogeneizar a vida, ou
dendo para todos os aspectos da vida das pesso- queremos todo mundo funcionando do mesmo jei-
as, da limitação à possibilidade de ir e vir, porque o to, aprendendo do mesmo jeito, se comportando do
transporte se torna caro e inviabiliza isso. Há recen- mesmo jeito, estamos patologizando e medicalizando
temente, por exemplo, a determinação pelo prefeito a vida. Acho importante deixar isso registrado.
Ângela Soligo: Acho que isso é importante disse assim “olha, essas estratégias que eu estou
37
mesmo. Acho importante reparar que, hoje, existe descrevendo eu pesquisei, eu as experimentei como
uma pressão para todo mundo ser feliz o tempo pesquisadora, mas antes disso, a minha mãe usou
inteiro. Felicidade virou uma forma de opressão, comigo porque eu sou diagnosticada com hipera-
porque todo mundo tem de ser feliz a qualquer pre- tividade. Isso não me impediu de aprender, não me
ço. Não podemos viver momentos de tristeza, não impediu de me tornar uma professora, doutora e vir

- parte 3
podemos manifestar contrariedade, temos de sor- aqui falar com vocês”. Então um pouco é isso que

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
rir o tempo todo, temos de estar felizes apesar de precisamos aprender também. Quer dizer, quando
qualquer coisa. Essa imposição também é patologi- dizemos que deve caber todo mundo na escola, é

e enfrentamento
zação, porque se você não é feliz, algum problema mais do que espaço. Deve caber no sentido de que

Psicologia em emergências
você tem, não é? E se você não é feliz você tem de deve haver formas diversas, estratégias para ensi-
achar um mecanismo de resolver a sua infelicidade, nar, para aprender. Aprendemos que ensinar de um
mesmo que ela seja momentânea, seja com remé- jeito só não funciona para todo mundo. Isso inde-
dio, seja com exercícios, porque você aumenta a pende do estudante ter algum rótulo do que quer

CRP SPdas vidas: reconhecimento


produção de endorfina e fica legal, certo? Hoje, fe- que seja, não funciona para todo mundo, não é? E
licidade como uma imposição, como norma, é uma isso é em qualquer nível. Os estudantes da univer-
forma de patologizar, de novo, a vida, porque con- sidade sabem disso, numa aula expositiva alguém
cretamente não é possível ser feliz o tempo inteiro. precisa anotar para poder se concentrar, outras
pessoas precisam ouvir porque se anotar vão se
Rosangela Villar: E isso nem é bom, não é?
desconcentrar, não é? Alguém precisa se mexer
A vida precisa de conflitos também. Estudamos
mais. Então sabemos que é preciso ter estratégias
muito isso em processos de aprendizagem. Como

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e medicalização
diversas se quisermos atingir de fato aquela pes-
aprendemos? Não é através de conflitos? Quando
soa que está ali para aprender. Então, precisamos
estamos muito fechados num determinado pro-

Cadernos Temáticos
também superar essa ideia de que há pessoas que
cesso de criação, de construção, não avançamos.
não podem aprender. Todas as pessoas que estão,
Precisamos ser conflitados, precisamos ter dúvida,
na escola ou em qualquer lugar, podem aprender.
precisamos de curiosidade para avançar. Então,

Patologização
processos de conflitos são processos de cresci- Juliana Garrido: Sou Juliana Garrido, sou
mento. Claro que, com isso, não estamos fazendo pedagoga, professora da educação básica e pro-
apologia ao sofrimento, certo? Não é isso, mas é fessora alfabetizadora, e estou passando pesso-
preciso desestabilizar para dar o próximo passo no almente por um momento interessante, porque mi-
seu processo de desenvolvimento. Só que isso não nha segunda filha está aprendendo a engatinhar
está sendo permitido. Quando desestabilizamos e a forma que ela está aprendendo engatinhar é
para dar o próximo passo, já corremos o risco de completamente diferente da forma que meu filho

Cadernos Temáticos CRP SP


estarmos sendo patologizados. mais velho, de sete anos, aprendeu a engatinhar.
No entanto, ninguém em volta está preocupado
Ângela Soligo: E se quisermos entender o
se ela vai engatinhar ou não, ela vai engatinhar;
que nos produz sofrimento, precisamos enfrentar.
ninguém tá preocupado também se ela é capaz
Felicidade a qualquer preço às vezes nos impede
de engatinhar, todo mundo presume que ela seja
de perceber as situações de sofrimento, as situa-
capaz de engatinhar, mas a forma como ela está
ções de opressão e enfrentá-las.
passando por esse processo é totalmente diferen-
Pedro: Microfone aberto para o debate. te da forma como passou o meu filho mais velho.

Ângela Soligo: Queria falar mais uma coisa. Quando a Rosangela fala da escola e da
Mesmo quando estamos diante de uma criança ou alfabetização, e acho que vem ao encontro da
adolescente, que tem uma dificuldade ou certa ca- última fala da Ângela, tem a ver com isso, com
racterística, não significa que ela não seja capaz acreditarmos que não há capacidade naquela
de aprender. Nós recebemos, na Unicamp, há um criança de aprender, e é isso que preocupa. E do
tempo, uma professora da Universidad Complu- jeito como vocês estavam falando, a mesa toda,
tense de Madrid, María del Pilar, que trabalha com a o Pedro contribuiu também bastante para essa
questão da hiperatividade, do TDH. Ela apresentou análise de como, no fundo, estamos mergulha-
na Faculdade de Educação uma proposta de estra- dos numa sociedade que é de consumo, e por
tégias de ensino/aprendizagem para crianças que isso consumimos tudo, inclusive o medicamen-
são consideradas hiperativas e foi descrevendo to, o rótulo e as respostas rápidas, consumimos
as estratégias. No final, foi bem legal porque ela também essa impressão de que diferenças são
incapacidades e, portanto, se o aluno faz qual- sados em vender essas respostas e tudo mais.
38
quer coisa que foge do meu esquema esperado, E, no fundo, é contra isso que lutamos. Enfrentar
eu já penso em interpretar essa diferença como essa avalanche é um trabalho árduo, de formi-
uma incapacidade. Quando, na verdade, não só ga. Queria aproveitar, Ângela, e pedir para você
cada um tem o seu processo como nós mesmo falar sobre como você enxerga, na sua experiên-
passamos por processos diferentes, ao longo cia enquanto professora da universidade, essa
da vida, dependendo do momento, do estudo, do construção da despatologização do ambiente
assunto ou do envolvimento que temos com o escolar no sentido da formação de uma visão
tema em questão. E, no caso da alfabetização, mais ampla, tanto do desenvolvimento quanto
acho que estamos ainda aprendendo, não só da aprendizagem. Como você vê esse momen-
na escola, mas socialmente. E as professoras to, e que passos estamos dando em direção a
não podem sair desse universo. Socialmente, esse entendimento mais múltiplo da infância, da
estamos aprendendo ainda que as diferenças criança e da aprendizagem?
são constitutivas das pessoas e não marcas
Ângela Soligo: A impressão que eu tenho,
de melhor ou pior. Então, você comentar sobre
às vezes, é que damos passos para muitos lados
falhas no processo, acho muito marcante e re-
e andamos pouco. Acho que é um pouco dife-
levante não entender que a alfabetização é um
rente você pensar a formação na Faculdade de
processo, e que o processo se desenha de infi-
Educação na Unicamp, em que vários de nós tem
nitas formas, porque, de verdade, não podemos
uma inserção nessa discussão da questão da
prever como cada criança vai passar. Eu, como
patologização, da medicalização, da questão da
professora, vou vendo como cada criança expe-
diferença. Estou num grupo de pesquisa que se
rimenta aquele conhecimento e vou oferecen-
chama “Diferenças e Subjetividades em Educa-
do estímulos e ferramentas que possam ajudar
ção”. Temos vários grupos olhando para a ques-
no seu processo. Claro que há semelhanças, há
tão da diferença como aquilo que nos constitui e
também crianças que um mesmo estímulo pode
como nosso ponto de partida e chegada. Então
atender aquele momento do desenvolvimento da
conseguimos promover essa reflexão, na sala de
leitura e da escrita; outro grupo de criança, ou-
aula na formação. Do que eu conheço e escuto
tro estímulo pode atender. Mas enfim, o que está
das professoras e dos professores, na formação
posto em jogo é que a diferença é premissa e
continuada, ainda circula na formação na educa-
não o similar. A premissa é que cada um vai pas-
ção, de maneira geral, a ideia da homogeneidade
sar por aquele processo de maneira diferente,
como princípio; e então temos sempre um en-
como uma criança aprende a engatinhar de um
frentamento com esta ideia, com este conceito,
jeito e outra de outro e ninguém está assusta-
de que é bom aquilo que pode ser homogenei-
do com isso. Diante desse processo, os adultos
zado. Assim, acho que ainda esse é um universo
em volta, os professores, os responsáveis vão
diverso, mas eu diria que na Faculdade de Educa-
oferecendo estímulo que pareça mais adequado
ção, se pensarmos no país todo, nós não somos
àquele momento do desenvolvimento.
a regra. Então, é preocupante. Também precisa-
mos reconhecer que muitas das estudantes e
É interessante pensar como, no fundo, de-
dos estudantes que vêm para fazer um curso de
pois de tanta discussão construída, de tanto co-
pedagogia, vêm com a ideia da homogeneidade.
nhecimento agregado a esse debate, queríamos
Então, temos uma tarefa de desconstruir isto.
ver serviços mais avançado, mas ainda não é
isso que acontece. Ainda estamos engatinhan- Uma coisa muito comum, principalmente
do nessa concepção de que a diferença é que é para os estudantes mais inexperientes em rela-
o natural, não é? Portanto, ninguém tem de ter ção à escola real, é a idealização da escola em
medo da diferença. Pelo contrário, eu não preci- que estudaram. “A minha escola era maravilhosa
so correr para classificar aquela diferença por- para mim, então o meu ideal de escola é aquele”.
que, na verdade, ela é só parte de um todo que Então é a primeira coisa que temos de descons-
é comum. O normal, o comum, devia ser muito truir é que o mundo não é tão pequeno assim. A
diverso, mas alguém, que eu não sei quem, re- segunda coisa é a ideia de que encontrarão um
solveu classificar que o normal é muito estrito e, conjunto de saberes e de estratégias que se-
portanto, tudo que foge deste desenho muito es- rão a solução para tudo. “Eu vou aprender a ser
trito, passa a ser classificado como o problema. a melhor professora ou o melhor professor que há
E, então, existem mil respostas e muitos interes- porque eu estou nesta grande universidade”. Isso
vale para todo mundo o tempo todo. Então essa em que ela está, mas o quanto menos ela ficar, o
39
é uma outra ideia que você tem que desconstruir, quanto mais depressa ela voltar para o rumo de
porque ela também é homogeneizante. E aí o que desenvolvimento da vida dela, melhor”. E tem pro-
acontece no estágio é que quando essas pesso- fessor que fala, “mas espera um pouquinho, como
as caem na escola é um desespero. Por quê? Por- assim?”. Eu falo “ela não é doente, ela foi tornada,
que a escola não é do jeito que está na cabeça ela foi construída com essa crença e a gente vai

- parte 3
das pessoas; aquelas crianças, aqueles jovens ajudá-la a lembrar que ela é uma pessoa que tem

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
são a diversidade. E aí, muitas vezes a primeira todas as capacidades para aquilo que ela quiser
reação das pessoas é “então eu não gosto da es- fazer”. Porque isso é o que nós somos. Na nossa

e enfrentamento
cola, não é dessa escola que eu gosto”. diversidade, na nossa potencialidade avança-

Psicologia em emergências
mos para onde quisermos, o problema é que a
O tempo todo temos de trabalhar na des-
sociedade em que vivemos diz que a gente não
construção, mesmo na Unicamp. Na desconstru-
pode, ela nos limita. Então, essa desconstrução
ção dessa ideia de que a homogeneidade deve
é o convite que eu deixo hoje para que a gente

CRP SPdas vidas: reconhecimento


ser um objetivo. Temos de trabalhar na perspec-
faça isso em todos os lugares em que a gente
tiva da diferença; e não é fácil, nem na Unicamp
estiver: na casa, no trabalho, com os amigos. É
nem em nenhum lugar. Porque nós aprendemos
direto, é o tempo todo. Se você estiver cansada
ao longo da vida e todas as mídias nos ensinam
e alguém falar para você “toma um anti-inflama-
que ser considerado diferente é ruim.
tório, toma um Bufferin pra poder dormir melhor”,
Rosangela Villar: Com a ideia da descons- diga “não, muito obrigada, tenho outras formas de
trução, fazemos um convite para um trabalho de lidar com isso”. Ou talvez, você precise repensar

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e medicalização
desconstrução. Nos despedimos daqui da região como está o seu trabalho. Talvez você precise
de Campinas, nesta campanha, mas não da nos- mudar de trabalho. Obrigada.

Cadernos Temáticos
sa luta, que é contínua, de todo dia. O convite é
Ângela Soligo: Temos sim um desafio de am-
para desconstruir conceitos, pré-conceitos, ex-
pliar esse debate para onde vocês estiverem e de
pectativas e tentar trabalhar na contramão dis-
conhecer o movimento melhor, conhecer os conte-

Patologização
so que estão cobrando de nós, de que temos de
údos que já existem sobre o tema. Como eu sou
nos comportarmos, de que temos de nos contro-
da psicologia escolar, vou me dirigir aos psicólogos
larmos, de que temos de ser o melhor, o melhor
também, porque a psicologia está sendo convoca-
em tudo que fazemos; de que falhas são ruins,
da a patologizar. Toda vez que convocarem vocês
de que erros são negativos. Desconstruir esses
para fazer atendimento individual na escola, digam
conceitos é um enfrentamento árduo, mas contí-
não, porque fazer atendimento individual na escola
nuo. E extremamente gratificante.
é atuar na dimensão da patologização. Olhem para

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Eu já estou aposentada em algumas áreas a escola e convidem a escola a se olhar e a pensar
da minha vida, mas não em todas, continuo no nela como produtora daquilo que acontece lá den-
atendimento clínico. E nele, o que eu tenho feito tro. Então esse é um desafio difícil, mas já avança-
é desconstruir, porque o que está chegando para mos e não podemos retroceder. É isso.
mim é a criança que incorporou rótulo, incorpo-
Juliana Garrido: Faço também esse convi-
rou a medicação, e não é só a criança, é a família,
te às pedagogas, às professoras, não se deixem
e os próprios professores. Então, o trabalho é ir
patologizar, não se deixem ser tiradas do seu lu-
pegando um por um dos elos que formam essa
gar de saber e de saber fazer pedagógico, que é
construção e fazer a desconstrução, certo? Para
isso que temos de fazer na escola e é a partir daí
buscar um pouco de felicidade, de bem-estar,
que vamos transformar o ambiente escolar.
que é possível para essa criança, porque quando
ela chega na clínica, ela está em sofrimento. Ela Pedro Tourinho: Bem pessoal, quero agra-
está em sofrimento, a família está em sofrimen- decer muitíssimo a mesa, como a todo mundo que
to e digo que, muitas vezes, o professor está em teve presente. Esse é um tema muito caro ao nos-
sofrimento. Não são todos, alguns estão con- so mandato e ao nosso trabalho aqui na Câmara.
formados com a criança tomar um remédio e É sempre um debate que abre um caminho para
estar no psicólogo; acha que essa é a solução. várias discussões e, sem dúvida nenhuma, acho
E eles acham muito engraçado quando eu digo que contribuímos para que, pelo menos na cidade
para eles, “mas essa não é a solução. A gente só de Campinas, tenhamos mais instrumentos para
está pegando essa criança por conta do momento enfrentar a medicalização. Muito obrigado.
40
Eu digo não à medicalização
e à patologização da educação
Helena Rêgo Monteiro
Doutora em Psicologia (UFF), graduada em Psicologia pela PUC do Rio de Janeiro (1990), especialização em Teorias
e Práticas Psicológicas em Instituições Públicas - Clínica Transdisciplinar pela Universidade Federal Fluminense
(1998) e mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIIRIO (2006).

Atualmente dou aula na Famat, uma faculdade par- Então, com a produção desses eventos,
ticular em Niterói e tenho tido um enorme prazer não foi difícil identificar os nexos que ligam a in-
em conviver com os jovens. Eu dou a mão para Ma- dústria farmacêutica ao advento do medicamen-
ria Helena Souza Patto e vou, porque trabalho com to e a emergência da psiquiátrica biológica. Vou
textos dela. Trabalho com a produção do fracasso voltar a isso mais adiante. É uma engrenagem
escolar. Trabalho com o clássico dentro da Psico- que se formou e se consolidou para produzir o
logia Educacional. Tenho participado do fórum so- que, lá em 2004, eu ficava “ai meu Deus, e es-
bre Medicalização da Educação e da Sociedade, sas crianças tomando Ritalina”. Foi a produção de
desde 2010. Já fizemos muitas coisas: produções, uma engrenagem. Também não foi difícil mostrar,
eventos, parcerias firmadas, mas fica a pergunta: ao longo desses anos, a função da mídia como
a desmedicalização da vida é uma pauta consoli- produtora do sistema: mercado, mercadoria,
dada, já conseguimos pautar isso na sociedade, é consumidor. O quanto esse mercado é produ-
uma pauta que percorre todos os espaços? zido, ao mesmo tempo, em que se inventa uma
mercadoria. As matérias de jornal, as novelas,
Esses espaços coletivos que criamos têm o Fantástico, o Globo Repórter. O quanto, em
trazido essa discussão. Vejo meus alunos que já tempo real, eles estão produzindo mercadoria,
chegam pautando essa discussão, já sabem que mercado e consumidor. Quantificamos o aumen-
existe essa discussão. Acho que já consegui- to exponencial da dispensação dos psicofárma-
mos, desde de 2010 e até de outras produções cos ao longo das últimas décadas. Conseguimos
já mais anteriores, com Cida Moysés, que é a avançar nisso, mostrar, dar visibilidade. Nós
nossa precursora maior. Quando conheci a Cida, não tínhamos esses dados mas conseguimos
em 2003, no evento que participamos juntas, ela produzi-los, que é a nota técnica que mostra o
já pesquisava, já produzia material sobre esse aumento do consumo do Metilfenidato, e tam-
tema. É muito acúmulo que nós temos. Conse- bém do Rivotril. Falamos bastante do Metilfeni-
guimos pautar a medicalização na infância, na dato, porque nos afeta no sentido da educação,
educação, no parto, na menopausa, na velhice. da escola, do TDH, é essa parte da engrenagem.
Tenho a impressão que hoje é bem mais fácil do Mas o Rivotril também é muito sério. Consegui-
que era. Eu me lembro que, em 2003/2004, tinha mos mostrar isso e foi um avanço muito grande.
um amigo jornalista, ele era diretor de jornal, e Em nossos encontros, também alertamos para
eu falei “Dácio, eu tenho uma matéria bombás- os projetos de lei que visam proliferar diagnós-
tica, a gente tem que fazer uma matéria sobre ticos, aumentando o consumo de determinados
essa questão do TDH. Isso é um absurdo e tal...”. psicofármacos. Lutamos contra a judicialização
Ele ficou olhando para mim, como quem diz “tá da vida, que foi outro movimento que começou a
maluca? O que é isso? Teoria da Conspiração?”. acontecer de 2009 para cá. Foi a interferência do
Eu falei, “mas você não está entendendo, o que Judiciário, na judicialização da vida, que começou
está acontecendo?”. Hoje, conseguimos pautar a criar um binômio: medicalização-judicialização.
bastante também na mídia. Essas duas forças agindo no quê? No controle e
no aprisionamento da vida. São duas forças que tinha tido consciência disso. A medicalização não
41
tem caminhado de mãos dadas. E os efeitos da é uma coisa nova, não está acontecendo agora,
judicialização, também temos visto aí em outras mas porque falar a esse respeito, forçar a rede de
áreas, ela realmente tem aprisionado a nossa informação institucional, nomear, dizer quem fez,
vida de forma bem real. O início do fórum, veio o que fez, designar o alvo, é uma primeira inversão
por conta do PL da dislexia em São Paulo. Teve do poder”. Então é uma primeira inversão do po-

- parte 3
a lei lá; no Rio de Janeiro, foi em 2012. Aprovada. der. Mas não podemos ficar só na denúncia, não

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Cochilamos e aprovaram numa sessão, sem mui- é? Ela produz efeitos, produzimos evento em
to alarde, rapidamente, uma lei que estimula a que queremos denunciar, mas temos de produ-

e enfrentamento
capacitação dos professores para identificar as zir também outros eventos para problematizar

Psicologia em emergências
crianças portadoras de TDH. Eles até fizeram, no e pensar alternativas. Eu participei, na Fiocruz,
Rio, uma pegadinha, escreveram TDA, eles vão com Paulo Amarante de um evento que ele já
fazendo de jeito para que fiquemos mais desa- queria trazer alternativas. Então, dessa forma,
tentos e, então, eles emplacam. Fui na audiência designar o alvo constituiu-se como primeiro

CRP SPdas vidas: reconhecimento


pública sobre a lei. Lá estava o Papa do assunto, passo de muitos que empreenderam combate à
no Rio, um psiquiatra que escreveu “Como tratar ideia de uma vida medicalizada.
crianças TDH”. Para os professores, “professo-
Se concordamos com Foucault, que a de-
res, como identificar seu aluno tem TDH?”. Para
núncia não nos basta, o que mais poderemos
as famílias, “como lidar com seu filho que tem
propor como estratégia de luta? Dizer que TDH
TDH?”. Ele tem um projeto de pesquisa, no Rio,
não existe, nos ajuda? Demonizar o psicofármaco
e se dedica a isso. Enfim, ele tem conflito de in-
contribui no enfrentamento ao controle e aprisio-

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
teresses. Sabem o que é conflito de interesses?
namento da vida? São perguntas que temos de
Hoje mais do que nunca, sabemos, ninguém nos
fazer. Muitas vezes, para denunciar a invenção

Cadernos Temáticos
engana mais com relação a isso. E ele estava lá;
desse transtorno, ficamos na afirmação de que
na hora em que eu fui falar, ele saiu da sala e eu,
“TDH não existe, TDH não existe, TDH não existe,
que na época era mais brava, falei “vai sair da
remédio não faz bem, tem efeito colateral”. Mas,

Patologização
sala?”. Tínhamos uma força, ainda temos, porque
o que mais podemos fazer? Como agir no pensa-
nosso grupo renova. Temos pessoas mais jovens
mento viciado em paradigma problema/solução?
para mobilizar forças para coisas seríssimas que
Essa é uma questão importante para pensarmos.
estão tramitando, como PL da luta pela criminali-
Se vivemos nesse paradigma em que tem uma li-
zação da psicofobia, que é colocar, por exemplo,
nha reta entre problema e solução, não criamos,
o movimento do Fórum, o Despatologiza, como
não agimos, não problematizamos, porque não é
crime. Podemos ser tipificados como crimino-
linha reta. Então se pensamos nessa questão da

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sos, porque eles estão fazendo essa alteração
medicalização como problema/solução, então co-
no código penal. Discutir, problematizar, pensar
meçamos a prescrever soluções, e aí prescreven-
os transtornos, pode ser visto como preconceito
do, a estamos na mesma lógica da medicalização.
contra os transtornos, a psicofobia, e podemos
ser enquadrados como criminosos. Esse tema
passou a habitar as sessões da Câmara dos De-
putados, os especialistas divergem sobre uso
“Como agir na desconstrução de
dos medicamentos. Existe uma proposta que tantas verdades fabricadas no
institui o dia do combate à psicofobia. Parece interior do verdadeiro ou falso?”
que já está a passos largos a aprovação do dia
12 de abril, porque é o dia do aniversário do Chi-
co Anysio, ele tinha depressão e falou que sentia Como agir na desconstrução de tantas ver-
discriminado. Vejam como se constrói um enredo. dades fabricadas no interior do verdadeiro ou fal-
so? Segundo Foucault, cada sociedade possui seu
Então, quero dizer que nós denunciamos próprio regime de verdade, ou seja, cada sociedade
a medicalização da vida, em várias vertentes, acolhe um tipo de discurso como sendo verdadeiro
em vários aspectos. Sem dúvida, a denúncia, a partir de um interesse político e econômico. Hoje
num primeiro momento, é necessária. Quem nos está fácil entendermos isso. Assim, cria-se um re-
ajuda, quem me ajudou muito a pensar essa gime de verdade, toda literatura sobre crianças
questão da denúncia é o Foucault que diz, “a TDH, mentes inquietas, tem uma construção de um
denúncia é necessária não porque ninguém ainda regime de verdade. Que outro podemos produzir?
Alguns regimes de verdade tidos como as
42
novas descobertas no campo das ciências do “Com relação às verdades
homem já dominaram em nossa sociedade. Se-
guem exemplos de regimes de verdade que já
que delinearam o contorno
dominaram, que produziram livros, asilamentos, do homem da sociedade
diagnósticos. moderna, vimos que grande
Já acreditamos que podíamos medir o cére- parte das prescrições emergiu
bro e que podíamos identificar anormais de nor-
da racionalidade biomédica
mais a partir dessas medições. O Morel, em 1857,
já escreveu um livro que falava sobre o tratado expressa nos preceitos
da degenerescência física, intelectual e moral da higienistas, formuladas em
espécie humana e das causas que produzem as
consonância com a construção
variedades doentias. Esse era o regime de ver-
dade acolhido nessa época. Inquestionável. Ele de normas criadas pela
falava dessa questão e propunha a esterilidade sociedade disciplinar legitimando
dos degenerados. A questão do crime. É crime
um determinado tipo de olhar”
transmitir seus males à sua futura prole. São
campanhas que já existiram na nossa sociedade
interfere no viver das pessoas. Quem pode casar
para produzir o bem da espécie, da humanidade.
e ter filho, quem não pode casar e que tem de ser
Alguns marcadores auxiliavam na identificação
esterilizado, tudo isso era dito com muita tran-
do mal. Esses são os degenerados, altura, cor
quilidade, porque existia um regime de verdade
da pele, a capacidade intelectual, cor do cabe-
que sustentava essas afirmações.
lo, controle dos instintos, fertilidade, inclinações
morais, temperamento. E aí a gente pode ver Com relação às verdades que delinearam o
quem são os degenerados, né? Eles têm cor, eles contorno do homem da sociedade moderna, vi-
têm na pele a marcação do mal. Estou trazendo mos que grande parte das prescrições emergiu
a teoria da degenerescência como um exemplo. da racionalidade biomédica expressa nos pre-
O que isso tem a ver aqui com a nossa discus- ceitos higienistas, formuladas em consonância
são sobre a medicalização? Estou trazendo para com a construção de normas criadas pela so-
pensarmos que é um regime de verdade que já ciedade disciplinar legitimando um determinado
acolhemos em nossa sociedade. Então, qualquer tipo de olhar. Então, todo esse conjunto, que
descarrilamento do eixo da norma, era tomado chamamos de regime de verdade, expressão
como desajuste patológico. De alguma forma, que Foucault usa, determinava o quê? Um olhar.
podemos pensar isso hoje. O que é o manual Um olhar para o outro.
de psiquiatria senão uma reedição desse “qual-
quer descarrilamento do eixo da norma” tomado Esse é o impacto que sentimos hoje. Uma
como desajuste patológico. professora hoje quando olha para os seus alu-
nos, o que ela tá vendo? Esse é o enredo do
Lombroso foi um outro regime de verdades
filme que eu fiz sobre medicalização da vida
amplamente divulgado que pretendia identificar
escolar, que é uma professora que vai falando
o criminoso nato, a partir das feições, a partir da
sobre seus alunos. Um aluno tem problema de
constituição física. E por que eu trouxe esses
personalidade, o outro de coordenação motora,
exemplos? Porque hoje, é no corpo biológico que
o outro tem TDH, o outro tem dislexia. De onde
esses transtornos estão incidindo, é no corpo
vem isso? Como é que essas palavras foram pa-
biológico do aluno, são nos neurotransmissores.
rar na boca dessa professora? Que regime de
Então é o retorno do corpo biológico do aluno e
verdade sustenta essa fala, esse olhar? Não
das pessoas em geral. Lombroso fez uma grande
vamos fazer o jogo da batata quente e jogar
escola na Europa do século 19. Era, então, um
para os professores. Não é o professor que é
inquestionável regime de verdade. Quem ousava
o mal informado que sai falando um monte de
questionar? Livros, teses, palestras.
loucuras sobre seus alunos. Não. Ele aprendeu
A eugenia de Francis Galton. Sempre na e organizou esse regime de verdades a partir,
ideia de aprimorar a espécie, interferindo na vida muitas vezes, da psicologia, muitas vezes, das
das pessoas. Então, é um regime de verdade que aulas de psicologia educacional.
No Brasil, no início do século, o movimento Esse ponto é o que eu queria chegar: é um
43
higienista buscou explicar a partir dos discursos poder que diz como vamos viver, como vamos
médicos as desigualdades entre as classes so- nos comportar, e o discurso médico, atravessa o
ciais, justificando com isso o racismo brasileiro. tecido social e transforma a nossa relação com
Então, a pobreza classificada como efeito da a vida, há uma captura do viver nesse processo
degeneração e da miscigenação, deixou os go- da medicalização.

- parte 3
vernantes e suas respectivas políticas públicas

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
isentos de qualquer responsabilidade. Quando Então, o que é essa tal de medicalização, se
começamos a classificar, segregar, o que esta- não é um conceito novo, se é uma lógica que acon-

e enfrentamento
mos fazendo? Ou a educação é um direito à edu- tece há bastante tempo? É a construção de uma
verdade sobre o outro, a partir de um ponto de vis-

Psicologia em emergências
cação para todos, ou instituímos uma política de
segregação a partir de um esquadrinhamento da ta, é a produção do uno e das totalizações.
população infantil. Nessa época, o que resultou?
Uma caçada aos anormais. Então, a partir de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


todo esse regime de verdade o que aconteceu? “Dizer não, nesse sentido,
Uma caçada aos anormais escolares. Então essa
figura do indisciplinado, vicioso, instável, contu-
passa a ser lutar contra a
maz, desequilibrado, impulsivo, esse conjunto de dominação de um certo regime
crianças passou a fazer parte de uma nova noso- de verdade que produz uma
grafia psiquiátrica, que é a dos anormais.
forma de pensamento. Dizer não,
Então, o que que estou trazendo para pen-

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passa a ser não permitir que

e medicalização
sarmos é que o que está na base da nossa dis-
cussão não é novo, é segregação para uma nova as variações das experiências

Cadernos Temáticos
categoria psiquiátrica. Podemos dizer que, das sejam totalizadas, que deixemos
crianças anormais, avançamos para os portadores
de viver as variações das
de transtorno de TDH. A lógica se mantém a mes-

Patologização
ma, construímos um outro regime de verdades, experiências”
para sustentar a mesma lógica, que é segregação
e esquadrinhamento.
Eu digo não à medicalização e à patologi-
No início do século XX, o Pavilhão Bourneville,
zação da vida, é o nosso tema. Dizer não, nesse
no Rio de Janeiro, foi construído para abrigar crian-
sentido, passa a ser lutar contra a dominação de
ças anormais. Minha orientadora de doutorado fez
um certo regime de verdade que produz uma for-

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uma pesquisa grande sobre ele, que é a coisa mais
ma de pensamento. Dizer não, passa a ser não
triste do mundo. Muitas crianças, por diversos mo-
permitir que as variações das experiências se-
tivos, foram asiladas no interior desse pavilhão.
jam totalizadas, que deixemos de viver as varia-
Tem muitos trabalhos de memória mostrando o
ções das experiências.
que acontecia com essas crianças, nesse aprisio-
namento. Hoje, o psicofármaco é um aprisiona- Tem um texto da Adriana Marcondes de que
mento a céu aberto, não precisamos mais do asilo, gosto muito, que reforça a fonte em que eu bebi
porque não deu certo, não. Eles acabaram logo, nesse entendimento dessa discussão, dessa pos-
porque lotou. Qualquer estranheza era classifica- sibilidade da produção do uno.
da como anormalidade, então entrava todo mundo.
Mas o mais perverso é que a lógica permanece. “Lutar contra a medicalização é lutar contra
a redução das verdades sobre o outro que man-
A questão é: como se deu a emergência do
tém um ponto de vista criado por relações de po-
olhar medicalizante. Foucault diz que ninguém é
der e saber em que as variações das experiências
responsável por uma emergência, ela se produz de
são totalizadas. Essa totalização cria uma forma
interstício. E é preciso indagar. Como e qual foi o
de pensamento alicerçada por uma verdade: só
processo de produção desse quantitativo enorme
seria verdadeiro quem pensasse de uma forma.
de crianças diagnosticadas com TDH? Então, o po-
Por isso a necessidade de revisitarmos nossas
der da medicina transforma problemas de ordem
ações e falas para nela investigarmos o perigo da
social em problemas médicos. E ele vai além, pres-
produção do uno.” (Machado, 2012)
creve maneiras de viver, pensar e se comportar.
Qual é o perigo? De se ter, de novo, uma ver- Então, medicalização é como uma engre-
44
dade, TDH não existe. Pronto. Já fechei de novo. nagem, que produz teoria, encaminhamento,
Já estou produzindo uma verdade, já saí da varia- laudo, fracassos, especialista, medicamentos. É
ção das experiências, já totalizei. Esse é o perigo um mercadão circulando. A invenção do manual
da nossa luta o tempo todo. Por isso que a luta, a de psiquiatria também faz parte dessa engre-
nossa luta é um movimento. Então uma distinção nagem. Como esse manual foi sendo construído
importante de a gente fazer essa distinção é: o para capturar mais ainda o nosso viver? Teve um
que que é medicar? Somos contra remédio? Nunca. processo.
Hoje mesmo eu tomei um remédio que eu estava
No primeiro, somente um diagnóstico era
com uma dor no meu braço, tomei, aliviou, estou
aplicado a crianças. A psicanálise perde influ-
aqui segurando microfone sem dor. Perfeito.
ência nestes manuais, quem emerge como for-
Medicamentalizar, que está dentro do pro- ça é a psiquiatria biológica. A quarta versão, em
cesso de medicalização, é o excesso de prescri- 1994, passa a classificar como transtorno todas
ção de psicofármacos. Mas medicalização é um as modalidades do comportamento humano. Eu
guarda-chuva muito maior que é prescrever a vida, sugiro que vocês peguem na internet, abram em
o modo de viver, e aí ninguém escapa, estamos to- qualquer página, qualquer uma, leiam e vocês vão
dos medicalizados. Vocês vão ver. falar, “hum... acho que eu tenho isso”. Muda para
outra e lê, “ih, eu acho que eu tenho esse tam-
Vinho. Todo mundo gosta de tomar vinho.
bém”. Porque o manual foi feito com esse intuito
Então, o médico diz que o vinho tem que ser toma-
de capturar o nosso viver.
do todo dia porque tem antioxidante. Quem é que
bebe vinho por que tem antioxidante? Bebemos As bizarrices do DSM-5 aumentaram muito.
vinho porque temos prazer de beber vinho, porque Desregulação do temperamento com disforia é a
é bom, porque é gostoso. Mas, olha o que a pres- birra em crianças. Aquela birra, todo mundo que
crição tira de nós: o prazer. tem filho sabe, foi classificada como desregula-
ção do temperamento com disforia. Adolescen-
Gestação, parto. Há uma série de prescri-
tes que apresentam de forma particular compor-
ções, durante esse processo, uma série prescri-
tamentos extravagantes. Adolescência, até onde
ções médicas.
eu sei, é o momento de experimentar, certo? Mas
Yoga. Yoga é uma filosofia, é um universo aí você já vira risco, síndrome de risco psicótico.
muito complexo, não é uma prescrição, “ah, vamos
Homens e mulheres que demonstram mui-
nos acalmar, vamos fazer yoga”. Eu recebo pacien-
to interesse por sexo, isso é muito sério, isto é,
tes que dizem, “eu já tô fazendo yoga, eu já tô to-
aqueles que têm fantasias, impulsos e comporta-
mando floral, eu já tô tomando homeopatia, eu já tô
mentos sexuais acima da temperança recomen-
tomando antidepressivo”. A yoga vira uma prescri-
dada, muito provavelmente padecem do distúrbio
ção médica?
psiquiátrico chamada desordem hipersexual. Não
Sexo. Quem disse que temos de fazer sexo escapa nada. Se não faz, tem de fazer, se faz
até morrer? Se o médico diz, e eles dizem, de algum muito também está errado.
jeito eles dizem, também, que temos de consumir
hormônios, consumir Viagra, lubrificantes. Tem
muita coisa para fazer na vida, não?
“Dizer não, nesse sentido,
Medicamentos disfarçados. Para emagrecer,
para fortalecer ossos, entre outros.
passa a ser lutar contra a
dominação de um certo regime
Alimentos. Somos medicalizados na hora da
alimentação. Tudo é fortificado, tem Ômega, tem de verdade que produz uma
vitamina. Por que estamos comendo isso? Leite forma de pensamento. Dizer não,
Ninho fortificado; Densia, para menopausa. Mar- passa a ser não permitir que
garina que faz bem para o colesterol, uma mentira
toda vida. Isso tudo é medicalização da vida. as variações das experiências
É a vida sendo capturada por uma lógica, uma
sejam totalizadas, que deixemos
prescrição médica para o nosso viver. O que consu- de viver as variações das
mimos, não é da nossa escolha, é prescrito para nós. experiências”
A história do medicamento na nossa vida é fazendo aqui. É com isso que vamos desmontando
45
recente. Está lá a Ritalina aparecendo em 1950, essa engrenagem.
mas o que ela não tinha antes para vender como
É preciso interrogar os saberes que agem
agora? O manual, o TDH. Então, é uma engrenagem,
como tecnologia de governo a serviço de um
a Ritalina estava lá, sozinha, não servia para nada.
determinado olhar, que tem o intuito de produ-
Mas, inventa-se o manual, inventa-se um diagnós-
zir uma forma de existir, o uno. O processo de

- parte 3
tico chamado TDH e pronto. Os antidepressivos,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
desmedicalização do olhar, envolve a recusa do
o laboratório até hesitava, “será que vai ter algum
destinado olhar para a criação de um olhar calei-
deprimido que vai consumir esse remédio?”. Então,

e enfrentamento
doscópico. No caleidoscópio, a cada giro tudo se
a gente, divulga, divulga, depressão, depressão,
altera, as possíveis combinações entre as par-

Psicologia em emergências
tristeza não, depressão, depressão, depressão é o
tes geram totalidades sempre provisórias que
carro-chefe de todos os laboratórios.
mudam a cada golpe de mão. Com ele, ousamos
Como agir na desmedicalização? Como mu- pensar a vida na complexidade. Escapamos do

CRP SPdas vidas: reconhecimento


dar o modo de olhar? Como sair dessa enrasca- destinado olhar. A imagem, vocês estão vendo, é
da, dessa teia que nos aprisiona na comida, nas única, não se repete. Com o olhar caleidoscópico,
prescrições, no viver. Como propor alternativas podemos experimentar sempre um outro olhar
sem que, com isso, ocupemos o lugar prescritivo, capaz de tirar da natureza, as naturalidades. E
novamente? Esse “como” não pode ser armadi- é um poema lindo do Manoel de Barros, que eu
lha. Como dissemos, a denúncia é uma primeira usei na minha tese, que tem vários versos aqui
inversão de poder e a luta não se encerra nela, é importantes pra nossa luta.
preciso acessar as forças minoritárias e, com elas,

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e medicalização
“É preciso transver o mundo. Tirar da natu-
desconstruir, desmontar, transformar.
reza as naturalidades, a expressão reta, aquela

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É preciso construir micropolíticas, construir coisa do paradigma, problema, solução, uma reta.
rede, agenciar coletivos, que é isso que estamos A expressão reta não sonha.”.

Patologização
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Maria Rozineti Gonçalves


Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP SP.

Helena muito obrigada. Nossa, você fez um resgate ter uma série de pequenas conversas, nas quais as
histórico para nos trazer para realidade e para as pessoas possam contar como isso está se dando
múltiplas verdades, acho que foi bastante impor- na prática no estado de São Paulo. A Lilian vai co-
tante para o nosso começo de entendimento do meçar, com a voz do território pensando aqui na
dia. Queremos engatar um pouco como isso tem cidade de São Paulo, especialmente na Comissão
circulado nos territórios aqui em São Paulo. Vamos Gestora Metropolitana.
46 Estado da Arte - Voz dos Territórios: desafios e
proposições da Psicologia no Estado de São Paulo

Lilian Suzuki

A Rozi falou do nosso trabalho, da Nossa luta • Campanha em comemoração ao Dia Nacional
cria, e do Núcleo de Educação e Medicalização. da Luta Pela Educação Inclusiva;
Temos uma campanha bastante intensa que já
• Campanha do Dia Estadual de Luta Contra a
começou na gestão anterior que fala sobre o
Medicalização da Educação e da Sociedade;
“Resistir para reexistir”, que também fala sobre
os processos de medicalização e patologização • Evento A infância em risco;
da educação e da vida.
• Campanha sobre a psicologia e as demandas
Vou aqui muito rapidamente pensar porque, escolares na rede de assistência social, saúde
nesse momento, estamos fazendo esse diálogo e e educação, foi um trabalho bastante interes-
fazendo esse link com o COREP. Vou muito rapida- sante que conseguimos apresentar agora no
mente, retomar aqui as diretrizes e objetivos para Congresso Brasileiro de Psicologia.
o nosso COREP, e acho que é muito importante já
• A reforma do ensino médio, a psicologia e as
ir destacando algumas coisas para esse encontro.
conferências nacionais de educação;
A ideia é discutir e analisar o papel da psicologia
na educação e as ações do profissional nos con- • Educação inclusiva e pessoas com TEA;
textos educacionais com base numa psicologia
• Mudar a escola ou mudar as crianças;
crítica, que permita a sua inserção prioritária nas
políticas públicas da educação. • Emancipação e transformação, o que compõe
as metodologias participativas;
Vou apontar como diretrizes e objetivos,
nesse momento, alguns mais direcionados: • Organização da etapa estadual da revisão
das diretrizes curriculares nacionais da gradu-
(1) Destacar a contribuição da psicologia na
ação em psicologia;
luta pela consolidação de uma educação
para todos, combatendo as exclusões so- • Representações em universidades; encontro
ciais, a medicalização, a patologização e a com estudantes de psicologia, encontro com
judicialização da vida; coordenadores de cursos de psicologia e su-
pervisores de serviço-escola.
(2) Dar visibilidade às práticas psicológicas em
educação;
E apoio e participações em eventos parcei-
(3) Aproximar, dialogar e debater os conheci- ros: no GT de formação, no GT de educação, mos-
mentos científicos e as práticas das e com tras de práticas desmedicalizantes, encontros do
as psicólogas, que atuam ou defendem a Despatologiza, encontro natureza e desmedicali-
temática da educação: zação, Congresso Encontro Regional na Abrapee,
Congresso Brasileiro de Psicologia, o Conpe; no
(4) contribuir para combater o preconceito,
Conape, essa também foi uma ação bastante in-
promovendo a diversidade e enfrentando
teressante, em que pudemos marcar, dentro da
práticas patologizantes, medicalizantes e
educação e dentro das conferências, o lugar da
judicializantes.
Psicologia que era um lugar que éramos pouco
Acho que esse é o nosso maior foco, quando convocados; Seminário internacional da Educação
pensamos no nosso núcleo temático. A ideia foi de Medicalizada; Encontros de Psicologia e Educação,
aproveitar este espaço para ampliar e dar transpa- que é o EPE; Encontros Estadual de Serviço-Esco-
rência para as ações que nós fizemos nessa ges- la, junto com os coordenadores; o Seminário Esta-
tão, nesse período também. Vou começar falando dual de Educação em Direitos Humanos, e o Se-
da Metropolitana. Fizemos: minário sobre o Ensino religioso na Escola Pública.
Isso é uma coisa muito legal que a gente pôde fa- ção na Comissão Estadual de Educação em Direi-
47
zer, que é um encontro inter-religioso. É um fórum tos Humanos e a representação no Programa de
inter-religioso, muitas pessoas participam, muitos Atuação do Grupo de Educação do Ministério Pú-
chefes, muitos pastores, para dizer que eles estão blico (GEDUC). Uma mobilização contrária aos PL
muito mais preocupados com educação do que medicalizantes e patologizantes, mobilização con-
com a diversidade religiosa. Elaboramos notas de trária ao ensino à distância. Uma mobilização de

- parte 3
posicionamento. apoio em audiências públicas contrárias à Escola

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
sem Partido, uma mobilização favorável à inserção
Estamos também fazendo a revisão das re- de psicólogos e assistentes sociais na educação.

e enfrentamento
comendações dos serviços-escolas, um documen- E um projeto de lei do atendimento de psicólogos
to que está ligado com a Base Comum Curricular e

Psicologia em emergências
aos alunos da Rede Pública de Educação Básica.
notas contrárias à utilização de muitas das avalia- Participação em orientações e fiscalizações, junto
ções e de muitas portarias. à Comissão de Orientação e Fiscalização, e parti-
cipação das reuniões de direitos humanos e políti-

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Pensando em controle social, participamos cas públicas. Este foi um panorama da Metropoli-
da Conferência Nacional de Educação. A participa- tana. Quero chamar a subsede do ABC.

Maria da Penha Tamburú Lopes

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e medicalização
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Patologização
Pessoal, bom dia, eu sou Maria da Penha. Eu e Então, nos deparamos com uma defasa-
a Elis somos do Grande ABC e nós compomos o gem que é bem conhecida por todos: os psis não
Núcleo de Educação e Medicalização do Gran- existem e os poucos que existem estão aloca-
de ABC, da subsede do Grande ABC. O que eu dos em outras secretarias. Os poucos que exis-
trouxe para vocês hoje é um pouco do nosso tem, em São Bernardo, estão se aposentando
trabalho. Somos novos nessa luta, começamos sem reposição. Isto é: psicólogo escolar, ligado à
em 2015. O nosso núcleo se iniciou, na verdade, escola, realmente quase não existe na nossa re-

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há três anos, então estamos caminhando, meio gião. Embora não seja só na nossa região, acho
que engatinhando, porém, já com alguns traba- que isso é meio recorrente em qualquer lugar.
lhos sendo realizados.
Nossos eventos nesses três anos:

O que nós já fizemos nesses três anos? No • Dois cine-clubes em parceria com a Abrapso;
primeiro momento, nós fizemos o mapeamento
• Um seminário que foi Psicologia Escolar no
das universidades da região. No Grande ABC,
ABC, em 2016, em que a Rozi estava presente;
nós temos cinco universidades. É uma região
pequena, porém, muito cheia de universidades • Uma roda de conversa, em 2017, em que a Li-
que concorrem entre si. Nas universidades na lian estava presente;
região, fizemos um mapeamento para compre-
• E, há três semanas, fizemos o nosso evento
ender como se dão as disciplinas da psicologia
com relação à medicalização, ao dia da Luta da
escolar, educacional, infância, desenvolvimen-
Medicalização, um encontro com professores
to, como os alunos estão tendo conhecimento
da rede e coordenadores da rede do Grande
da disciplina, de que forma é ensinada e como
ABC, em que trabalhamos a potência do pro-
está o trabalho do professor com relação a essa
fessor frente ao histórico da medicalização.
disciplina. E também fizemos um mapeamento,
nas secretarias da educação das cinco regiões • E, enquanto isso, estamos fazendo sempre
do ABC, os cinco municípios do ABC, para poder reuniões ordinárias, reuniões do grupo, e
compreender onde está localizado o psicólogo reuniões ampliadas para toda a comunida-
escolar nas prefeituras, do Grande ABC. de do ABC.
48 Rosangela Villar

Pincelamos algumas das ações que desenvolvemos uma plateia imensa, auditório lotada. E isso foi muito
esse ano, e apontamos que tínhamos de trazer para importante, porque vimos trabalhando na possibili-
cá alguns dos nossos desafios. Queria começar a fa- dade de incluir na grade curricular, de maneira trans-
lar não de desafio, mas de uma coisa que, para gen- versal, a questão do enfrentamento à medicalização.
te, tem sido boa, a parceria do Despatologiza como E ter sido convidado para fazer a fala de abertura,
o Conselho de Psicologia. E como eu represento os foi uma espécie de “acho que a estamos chegando
dois ficou muito fácil articular, fortalecer e capilarizar onde a gente queria”. Parece que é um tema que está
as discussões. Não é todo mundo que vai ter essa chamando atenção. Em novembro, já entrando na
possibilidade, mas eu sugiro que a gente se aproxime campanha mesmo, no mês de fazer o enfrentamento
de todos que tenham a mesma luta que nós porque à medicalização, tivemos, na Câmara de Vereadores,
fica mais fácil de trabalhar. Começamos, em abril, com desde que temos o dia Municipal em Campinas, que
uma prefeitura perto de Campinas, Vinhedo, fazen- é 2012, todos os anos fazemos uma visita no espa-
do um trabalho de intersetorialidade, com a saúde, ço legislativo. A gente brinca: é o lembrete para eles
educação e assistência. A questão da queixa escolar, não esquecerem que estamos de olho neles. Todos
mas não só a queixa escolar, todos os processos de os anos, levamos uma temática diferente no enfren-
patologização e como fazer seu enfrentamento. Foi tamento à patologização. Esse ano, a gente levamos
uma coisa mais pontual, eles ficaram de pensar em Bárbara Costa, psicóloga do Despatologiza Rio de
possibilidade de continuar, mas ainda não tivemos Janeiro, discutindo a Lei 13438, que é a da detecção
retorno. Quando a sede fez a roda de conversa “con- precoce de risco psíquico. Foi superlegal a fala dela,
versando sobre educação inclusiva com as pessoas está gravada e disponível no TV Câmara Campinas,
de transtorno de espectro autista”, a gente foi polo no Youtube. Ao invés de ela focar primeiro a lei, ela
de transmissão em Campinas e convidamos uma falou de uma experiência, no Rio de Janeiro, lidando
mediadora em Campinas, que é a Carmem Ventura, com isso. E depois, ela fala da lei e por que ela é tão
psicóloga da PUC, e que toda a discussão, pós a fala ruim; porque não tinha nada a ver com possibilidade
aqui da sede, a gente levou para o TEA, as questões de atuação despatologizante. Trabalhamos também,
da inclusão e da exclusão, e a patologização que isso ainda em novembro, num outro município, Valinhos,
implica. Estou trazendo aqui só as ações que fizemos também próximo de Campinas. Fomos procurados
no tocante ao enfrentamento à patologização, mas por um grupo de profissionais muito incomodados
independente do eixo em que isso aconteceu, porque com a política altamente patologizante da Secretaria
tentamos trabalhar lá na transversalidade. de Educação e da Secretaria de Saúde em relação à
queixa escolar. Fizemos um trabalho já no início des-
Em agosto, tivemos para o dia do psicólogo se mês; na próxima semana, teremos uma roda de
vários eventos em Campinas e, em um deles, pe- conversa, que vai ser queixa escolar e processos de
gamos as práticas integrativas e complementares patologização, pegando profissionais de saúde, edu-
como uma possibilidade de cuidado das pessoas, cação e assistência. E, para o grupo que a gente fez
mas não só das pessoas que a gente cuida, mas das no começo do mês, tem já uma proposta para 2019,
pessoas nós mesmos. Nós, enquanto profissionais, um trabalho com profissionais de um território em
como uma forma de nos mantermos mais inteiros, Valinhos, que tem uma situação privilegiada, porque
mais saudáveis, mais felizes, não como uma prescri- eles têm um equipamento de saúde, todos os níveis
ção, mas como mais uma possibilidade de cuidado. de escolarização e assistência na mesma rua. É uma
Foi supergostoso, tivemos muitos alunos e muitos área rural em Valinhos; eles não sabem trabalhar de
profissionais da psicologia tentando conhecer que forma intersetorial, e o convite é que os ajudemos a
oferta era essa. Ainda em agosto, participamos da fazer isso. Então, vamos trabalhar intersetorialidade
conferência de abertura na Jornada de Psicologia da e processos de enfrentamento à patologização. Isso
PUC e foi superlegal porque foi uma conferência com- já tá marcado para o começo do ano. Ontem, tive-
partilhada, com uma fonoaudióloga que é a Maria mos atividade na praça: já é o quinto ano em que fa-
Tereza, a Bibi, que a Vera Teixeira, aqui presente, co- zemos práticas integrativas, intervenções culturais,
nhece bem, e eu falando para alunos dos cinco anos, atividades lúdicas e uma aproximação com os equi-
pamentos de saúde mental. Nosso público-alvo tem um trabalho sobre a questão da construção social
49
sido os usuários dos equipamentos da RAPS. E tem da deficiência e os processos de patologização, e
sido muito interessante estarmos todos juntos, fa- nesse, mudamos de território, viemos para cá, den-
zendo conversas, fazendo vivências. Ontem, fomos tro da Faculdade de Educação da USP.
presenteados com uma bela de uma chuva no final
Os nossos desafios são basicamente dois. Um:
do evento, que foi para lavar a alma. Ficamos brin-
é termos perfil de profissional, precisamos nos apro-

- parte 3
cando, saímos de lá todos refrescados frente a isso

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
ximar dos órgãos formadores, por isso que eu fiquei
tudo que estamos vivendo, não é? Acho que foi um
feliz com a história da PUC, mas temos outras facul-
bom encerramento de evento.

e enfrentamento
dades na região em que ainda temos muito trabalho
Temos também as reuniões mensais abertas para fazer. Acho que é fundamental olharmos para

Psicologia em emergências
do Despatologiza dentro da subsede, e isso faz essa isso porque não adianta propormos uma forma dife-
aproximação dupla, de recebermos convites para po- rente de trabalhar, se não temos profissionais que fa-
dermos fazer essa conversa fora. E o apoio e parceria çam, que acreditem e que estejam olhando para isso.

CRP SPdas vidas: reconhecimento


do CRP a dois eventos que o Despatologiza organizou
O outro desafio é, como a região do ABC,
esse ano, uma parceria que é fundamental, enriquece-
também não temos, na maior parte dos municí-
dora, crítica, que precisamos realmente manter.
pios da subsede, psicólogo na educação. Então,
Fizemos o 8º Despatologiza, no qual traba- usamos a intersetorialidade, a saúde, atuando na
lhamos a questão de laudos, relatórios de ava- escola, só que, por conta da formação, temos mui-
liação, processos de avaliação e o desmonte da tos processos de patologização. Então temos que
saúde e das políticas públicas, como eu falei no olhar para isso também. Acho que basicamente

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
começo. E no começo do ano, em maio, fizemos são esses dois desafios para olharmos.

Cadernos Temáticos
Patologização
Claudia Lofrano

Bom dia, gente. Eu sou de São José do Rio Preto, sou Partido não fosse ruim, o mesmo vereador, não satis-
do Núcleo de Educação e Medicalização. E só para feito, escreveu, “Escola sem Pornografia”. Como todo

Cadernos Temáticos CRP SP


situar vocês, o grande desafio nosso é em relação à mundo sabe, tem muita pornografia na escola, então,
medicação. Há mais ou menos 10 anos, saiu uma re- vamos tirar a pornografia da escola. Fizemos também,
portagem que Rio Preto é a primeira cidade do Brasil através do Kleber que é nosso gestor, o acompanha-
em consumo de Ritalina. E o pessoal que medica lá é mento do Escola sem Pornografia que foi aprovado
muito forte, muito ligado à política local, então é uma em Catanduva. O Kleber chegou a fazer uma reunião
guerra realmente que temos de enfrentar. Os neuro- lá, dando posicionamento do CRP, e não teve jeito,
logistas têm cursos de neuropsicopedagogia e por aí oposição e situação se uniram e o projeto foi aprova-
vai. Então é uma prática constante e muito forte. Como do e funciona lá. Escola sem Pornografia.
ações do núcleo na região, nós fizemos, em 2017, uma
roda da conversa de psicologia escolar e de psicologia Sou parte da Comissão de Ética. E por con-
e deficiência, com o objetivo de verificar as demandas ta da comissão de ética, eu tenho sido convidada
do território e trazer subsídios para o planejamento para falar sobre ética nos cursos de psicologia.
estratégico. Em 2017, um evento bastante grande so- Inseri, nessas palestras, quais são as principais
bre educação inclusiva. Em 2018, nós fizemos em São bandeiras do CRP e aproveito para falar um pouco
José do Rio Preto, o acompanhamento do Escola Sem da questão da medicalização, já que é um espaço
Partido, que foi vetado pelo prefeito; foi um projeto de para falar com os alunos e a gente sabe que, em
um vereador, e foi vetado pelo prefeito. Os vereadores Rio Preto, isso não é muito trabalhado nos cursos.
derrubaram o veto e o prefeito conseguiu na justiça Aproveito esses momentos porque é uma questão
a ação inconstitucional. Acabei de receber agora a também ética. E a nossa roda da conversa sobre
notícia, faço parte do Conselho Municipal de Educa- psicologia da educação está agendada para o dia
ção, acabou de sair um novo projeto. Se o Escola Sem seis de dezembro.
50 Ione Xavier

Bom dia a todas, a todos. Não sei se alguns de vocês trole. Vamos inquietando um pouco as diferentes
conhecem, a psicologia, em Sorocaba, é muito pecu- gestões. Antigamente, esses órgãos de controle não
liar, na realidade, muito hospitalocêntrica. Nós, quan- tinham tanta paridade, poder público e sociedade,
do começamos o grupo de educação e medicalização agora vemos o atual prefeito fazendo questão que
lá, pensando no Fórum naquela época, isso foi, em o poder público esteja presente também para mani-
2011. Na época, eu me recordo que havia apenas uma pular os órgãos de controle. Então, vamos tentando
universidade de Psicologia, sete hospitais psiquiátri- pelas beiras, mas estamos no momento agora em
cos na cidade, e foi quando começamos o embate da que o CMDCA tem considerado um pouco as ques-
luta antimanicomial. E hoje a realidade está um pouco tões que temos colocado no plano e, pelo menos em
melhor. Já não temos mais os hospitais psiquiátricos relação a políticas públicas, tentando fazer com que
e temos cinco universidades de psicologia na cidade, as ONG’s, por exemplo, que trabalhem com questão
no entorno. Esse quadro, é animador se pensarmos de violência, com a medicação exagerada com crian-
nas lutas que temos aí pela frente. Mas ainda assim, ças, tenham esse olhar. Mas caminhamos a passos
nós temos uma cidade muito difícil, muitos núcleos, lentos aí. E esse ano também, desde 2011, estamos
lojas de maçons e o nosso maior embate lá tem sido tentando participar como ouvinte, porque como ca-
político para sair dessa lógica medicalizante que a deira é impossível, no Conselho Municipal de Educa-
Helena trouxe para nós, que eu gostei muito de ouvir. ção. Quando tentamos, em 2011, nem o regimento
Então todas as ações que fazemos também quando queriam que fosse lido por nós, era uma coisa bem
vamos para as ruas para falar com a população tem fechada, tudo acontecia ali a portas fechadas. Esse
sido nesse sentido de sair dessa lógica da verdade, ano, conseguimos. Mudou o Conselho e estamos lá.
regime de verdade que trouxe e que eu pensando nis- Então, tem sido um espaço que estamos entendendo
so. Acho que é isso que temos feito, mas com muita que vamos ter bastante abertura.
oposição do lado de lá. Sorocaba foi um dos poucos
municípios em que não conseguimos fazer o levan- E, sempre que acontece também as audiências,
tamento da dispensação do Metilfenidato, claro, por estamos participando. Essa da lei, tentamos barrar,
questões políticas. Ultimamente, ouvimos a Bárbara, barramos da Lei do TEA que a Rosangela colocou. Fi-
também em Sorocaba, que esteve para falar da Lei zemos também as rodas de conversa em Sorocaba,
13438 para alguns psicólogos. Ela, junto com a Cida em Porto Feliz, foi muito bacana a experiência, com
Moysés, nos motivou a correr atrás dessa questão de muita diferença também de uma cidade para outra,
novo, porque não é possível que não consigamos ter porque Porto Feliz tem profissionais na área de edu-
transparências, na forma como a questão da medi- cação, Sorocaba tem, mas eles estão sendo deslo-
cação tem sido determinante na vida das pessoas, cados, tem uma tensão política. Vamos apresentar o
como tem sido em Sorocaba. Então como é que nós trabalho ano que vem, no encontro da Abrapee, em
estamos tentando driblar tudo isso? Via controle so- Sorocaba. E, temos feito ações também todos os
cial, porque nós temos, desde 2011, também um pla- anos no terminal. Essa é uma ação bacana, que fa-
no municipal. Eu participo da Comissão Municipal de zemos, nos parques também, há três anos seguidos.
Enfrentamento à Violência Sexual na cidade e nós te- A do Parque é sobre violência sexual, aproveitamos
mos um plano municipal, elaboramos o plano e vimos para ter uma comunicação com os presos que co-
tentando fazer com que ele seja considerado, porque meteram delitos sexuais. Eles passam plantando o
tem uma proposta bonita. Muitos profissionais nos ano todo, e nesse dia 18, pegamos as plantas, leva-
ajudaram a pensar intersetorialmente a questão; mos para a população e distribuímos as plantas com
só não tem vontade política. Insistimos, insistimos, bexigas para as crianças falando da importância da
cada prefeito vamos lá, falamos, falamos, e ninguém prevenção, distribuindo cartilhas do CRP. E no parque
considera. Chamamos jornal, fazemos estardalhaço, também, tentando sair dessa lógica medicalizante,
mas a coisa não acontece. Ano passado, começamos chamando o pessoal para cantar com a gente, le-
uma participação no Conselho Municipal de Direitos vando os movimentos juvenis para cantar hip-hop na
da Criança e do Adolescente (CMDCA), e vemos que praça, enfim, com várias expressões e parceiros que
o caminho tem sido por aí, estar nos órgãos de con- nos acompanham todo ano. E é isso. Obrigada.
Elisabeth Gelli 51

- parte 3
Eu sou da subsede de Assis, uma região que é bem sar com as mães, porque as crianças eram insu-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
grande. Ela vai de Santa Cruz do Rio Pardo até o portáveis. Aproveitamos um dia que as mães iam
Pontal do Paranapanema. São 110 municípios e fazer a consulta das crianças no médico. Quando

e enfrentamento
desses, somente quatro não possuem psicólo- chegaram, com as crianças, deixei-as à vontade,

Psicologia em emergências
gos inscritos no CRP, na nossa subsede. A região correndo para um lado e para o outro, danifican-
conta com 10 cursos de Psicologia, sendo nove do tudo. Deixei as crianças brincarem bastante e,
privados: Adamantina, Dracena, Marília. E Marília então, perguntei para as mães se elas estavam
tem dois, Unimar e a Faculdade Católica Paulista. achando estranho o comportamento das crian-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Ourinhos, Presidente Prudente, a Unip de Assis e ças. Começamos a conversar a respeito; se aquilo
o curso de Tupã. Isso significa que nós temos mui- era inédito, se elas próprias não foram assim, na
tos psicólogos na região. Tem municípios que têm infância. Diziam que sim, mas que não estavam
uma quantidade exacerbada, quer dizer, são 10 dando conta dos próprios filhos. Uma disse assim,
psicólogos por esquina. Então, a questão da for- “tanto é que a gente veio aqui no médico hoje, por-
mação é uma das preocupações que temos, por- que esse médico daqui,ele dá um remedinho...”. Foi a
que são cursos cujo controle de frequência nem deixa para eu passar o vídeo da Cida Moisés, em

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
sempre é como gostaríamos, em termos de ética que ela fala sobre a Ritalina abrir as portas para o
e formação. Também estamos pretendendo fazer uso da cocaína. Foi o momento em que as mães

Cadernos Temáticos
ações com relação à formação. Foi formado um questionaram a prescrição. Eu queria deixá-las
grupo de estudos e pesquisas, Medicalização do pensando no assunto. Uma mãe se enfureceu e
Social no Contemporâneo, que foi criado pela Ma- rasgou a receita. A outra guardou.

Patologização
rilene e coordenado pela Daniela de Andrade Fer-
Então, essas conversas próximas são óti-
razza, no curso de psicologia em 2010. Esse grupo
mas, e eu quero continuar com as rodas de con-
desenvolveu trabalhos muito importantes, mas o
versa, mas nós não temos material humano. Não
grupo acabou, porque as pessoas que o compu-
tem muita gente que gosta de educação nesse
nham se formaram e foram trabalhar em outros
mundo, então a gente não consegue dentro da
lugares. Participamos agora, em 2018, do even-
subsede ter mais gente interessada em educa-
to Integrando Vertente: psicologia e saúde em

Cadernos Temáticos CRP SP


ção para ir junto para essas conversas.
tempos de crise. O curso de psicologia da Unesp
tem uma empresa júnior, que foi responsável pelo Agora mais recentemente, fizemos uma
evento. Criamos, junto com os alunos estagiários roda de conversa com 36 professoras da rede
da empresa, a ideia de discutirmos a questão da Municipal, em três bairros, que abrangem três es-
medicalização no contexto escolar. Eles acharam colas, e nós fizemos junto com uma psicóloga do
ótimo, já que não é um tema da grade curricular CRAS, a partir de rede intersetorial. Além dos pro-
da graduação. Com a colaboração da Fabíola, for- fessores, tinham coordenadores, supervisores.
mada em Assis, que defendeu seu doutorado no Foi uma experiência oposta à das mães, porque
campo da medicalização, fizemos a discussão. Foi os professores têm um saber arraigado. “Só o
muito interessante, os alunos não só da Unesp, remédio que funciona”. Então, temos de voltar lá
mas das faculdades ao redor, vieram, em grande com esses professores, achar outras estratégias
número. Tivemos também uma roda de conversa para poder trabalhar com eles. Então, trabalhar
com mães participantes do projeto Renda Cidadã com professor é muito mais difícil do que traba-
em Campos Novos Paulista. Campos Novos é uma lhar com as mães. Temos sentido que vale muito
cidade próximo de Ourinhos, que tem uma facul- a pena trabalhar com mães, eu acho que é uma
dade de psicologia. Nos chamaram para conver- ação produtiva que vemos avanços..
52 Beatriz Mattos

Oi, bom dia. Eu sou a Beatriz. Estou como con- fazer uma conversa lá em Ribeirão Preto também.
selheira na gestão de 2016 a 2019 do CRP São Tivemos profissionais de diversas cidades ali da
Paulo, estou na coordenação lá da subsede de região e também de diversas profissões para con-
Ribeirão Preto e represento o NEM lá na subse- tar um pouquinho mais de um trabalho mais pró-
de. Acho que o nosso primeiro desafio, a Beth fa- ximo, mais prático, porque as psicólogas estavam
lou muito bem, é material humano. Nós somos 98 já tinham um conhecimento legal da teoria, mas
municípios, na região de Ribeirão Preto, sendo as na prática, ficavam meio sem saber como agir. Foi
cidades maiores Ribeirão Preto, Araraquara, São muito legal e produtivo o encontro.
Carlos e Franca. São, mais ou menos, 16 univer-
Um outro desafio da região de Ribeirão Pre-
sidades nessa região e em torno de sete mil psi-
to, como a Cláudia colocou, é no campo da sexua-
cólogas inscritas no CRP, e eu no núcleo do NEM.
lidade e gênero. Temos uma vereadora, evangélica,
Então, ou seja, quase nada de material humano
que tem feito discussões bastante retrógradas e
aí para trabalhar. Assim, nosso maior desafio é
ela tem muita força na Câmara de Vereadores de
como aproximamos as psicólogas e as estudan-
Ribeirão Preto. Então, temos também o projeto de
tes das ações do CRP São Paulo para podermos
lei da Escola sem Pornografia. Ele não caminhou,
fazer ações nas diversas cidades.
mas está lá e todas as oportunidades que ela tem
Bom, vamos às ações de 2016 até agora. No para barrar essa discussão, ela barra. Acho que
ano passado, em 2017, pelo NEM, tivemos Cida hoje a nossa maior dificuldade é transversalizar os
Moisés e Cecília Collares lá, a partir da mediação temas de gênero e orientação sexual e a educa-
da Rosangela que nos ajudou a levá-las para Ri- ção. Em São Carlos, também temos uma situação
beirão Preto. Foi muito importante a roda que elas dessa; após as eleições, vários professores fo-
fizeram lá, pois trouxeram uma contextualização ram rechaçados, fotografados, filmados, bastante
das discussões da temática; tivemos fonoaudiólo- polêmica em São Carlos. E em Araraquara, que é
gos, professores, psicólogas. Tivemos uma grande um outro polo importante da região, nós tivemos
diversidade de profissionais nessa roda. Foi mui- a questão da Escola sem Partido. Não avançou
to interessante. E, neste ano, a partir da demanda também não. Estivemos presentes na audiência
de profissionais da psicologia da prefeitura de Ri- que não avançou, está tudo meio parado. É isso,
beirão Preto, convidamos a Beatriz de Paula para de forma bastante sucinta.
Marília Alves 53

- parte 3
Bom dia. Meu nome é Marília, sou da subsede de escolar da cidade. Então, não temos ainda o Es-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Bauru junto com Caio Portela. Ele não pôde estar cola sem Pornografia, mas temos representantes
presente hoje porque estamos com uma atividade de igrejas nas escolas implementando namoro

e enfrentamento
concomitante lá, do Núcleo de Educação também. blindado, que é um projeto que deriva daquele

Psicologia em emergências
casamento blindado que tem na televisão. A ci-
Algumas atividades que realizamos esse
dade de Bauru está com um cenário educacio-
ano por ordem cronológica: em abril, participamos
nal péssimo e estamos tentando nos organizar
da Etapa Municipal do Conae. O Caio foi eleito
informalmente com outros profissionais da edu-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


como representante e foi para etapa intermunici-
cação. Temos representantes da educação não
pal. Isso em abril. Em junho, a precisamos escrever
formal, professores da Apeoesp, professores
uma nota nos posicionando enquanto Núcleo de
universitários. Estamos fazendo essas reuniões
Educação do CRP, dirigida para a Câmara de Ve-
para chamarmos pessoas parceiras, que estão
readores de Araçatuba, uma Câmara muito con-
na luta por uma educação crítica, por uma educa-
servadora, muito reacionária, que várias vezes
ção não medicalizante, para podermos estudar. E
pautou Escola sem Partido. Então escrevemos
no próximo ano, no momento de avaliação do Pla-

Cadernos Temáticos CRP SP


a nota e até onde conseguimos acompanhar, o

e medicalização
no Municipal de Educação, vamos ter argumentos
Escola sem Partido não chegou a ser votado. Em
para combater essas pessoas. Por fim, o último
agosto, realizamos, em comemoração ao Dia da

Cadernos Temáticos
evento é o que está acontecendo hoje, que é o 2º
Psicóloga, uma mesa redonda em Araçatuba com
Encontro de Estagiários e Supervisores de Psico-
o título, “Psicologia e a educação: debates sobre
logia Escolar. Se eu não me engano, a subsede
infância e juventude”. Participaram dois profes-

Patologização
de Bauru conta com aproximadamente 80 cida-
sores da psicologia escolar e militantes pelos
des, e temos muitas universidades de psicologia.
direitos da educação e dos adolescentes. Essa
Em Bauru, são cinco ou seis, tem também em
mesa aconteceu em Araçatuba, principalmen-
Araçatuba, Jaú, Lins e, acho, em São Manoel. E a
te por conta do contexto de uma Câmara muito
psicologia escolar, nessa região, só acontece por
conservadora, muito reacionária; tentamos levar
meio dos estágios. Então, estamos com o nosso
esse debate do que seria uma educação crítica
segundo encontro de estagiários, com o tema: “a

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e uma educação que respeitasse o direito das
Psicologia Escolar no Enfrentamento à Medica-
crianças e dos adolescentes. Nesse mês de no-
lização”. Nosso objetivo com esse evento é fa-
vembro, estamos tentando nos organizar de um
zermos um levantamento de como os estagiários
modo um pouco informal com algumas entidades
em psicologia escolar estão atuando na região,
da cidade. Próximo ano vai ser avaliação do pla-
e podermos nos conhecer e trocar experiências
no Municipal de Educação de Bauru. Bauru tam-
para cada vez mais, fortalecermos os estágios, já
bém tem uma Câmara muito conservadora, com
que essa é a única via de inserção do psicólogo
alguns coronéis eleitos e com representantes de
escolar. Acho que é isso. Obrigada.
igrejas evangélicas, que participam muito da vida

Lilian Suzuki
Obrigado, Marília. Acho legal que a gente possa estão com ações nas subsedes, a Baixada Santis-
esclarecer principalmente para os estudantes que ta, Vale do Paraíba e litoral Norte. Acho importante
quando dizemos Bauru, Ribeirão estamos nos re- marcar que vamos ter a décima primeira subsede,
ferindo à região, para abranger todo o estado de vai ser do Alto Tietê.
São Paulo. Não puderam estar presentes, porque
54 Intervenção cultural com Gustavo Braunstein

Lilian Suzuki: Bom, o Gustavo tem 27 anos, é ator, uma cobrança para que eles se adaptem, para que
artista e educador, dramaturgo formado em atua- eles se enquadrem nas caixinhas, nos padrões de
ção pela SP Escola de Teatro e interpretação pelo comportamento das escolas.
Teatro Escola Macunaíma. Fundador dos grupos
Sou psicóloga da Unidade Básica de Saúde e
Núcleo Tumulto! de Investigação Cênica e Oniro-
recebo muitos casos que vêm das escolas. A orien-
nautas, nos quais desenvolve trabalhos como ator
tação que damos aos professores é justamente a
e dramaturgo. É licenciado em artes cênicas pelo
de tentar fazer um olhar, contextualizar de onde que
Instituto de Arte da Unesp e é ator do 17º Núcleo
vem essa criança, as privações, a privação cultural,
Experimental do Sesi e vai ficar aqui também pra
privação de lazer, antes de tentar exigir qualquer
gente conversar um pouquinho.
resposta conteudista dela. Também introduzir as
Maria Rozineti Gonçalves: Queria agradecer brincadeiras de infância, reforçar os espaços lúdi-
muito Gustavo, acho que é até difícil falar depois cos dentro das escolas, começar a fazer as hortas,
de te ouvir. Estamos com o microfone aberto para levar os professores a fazerem junto. Trabalhar com
quem quer contar como se sentiu tocado pela ma- essa parte não medicalizada. Nós temos o trabalho
nhã, quem quer fazer algum questionamento. intersetorial de rede com o setor cultural na Casa
de Cultura, a Casa dos Esportes. Então, como fa-
Ariadne: Então, eu sou Ariadne. Quero tentar
zer uma comunicação? Por exemplo, tem bairros
unir um pouco essas provocações da Helena com
que têm circo escola, né? Trazer esses profissionais
a provocação do Gustavo. Acho que nosso gran-
para a interação com os professores dentro da sala
de salto para evoluir, sair dessa linearidade que a
de aula. E sempre que possível também trazer a
Helena trouxe, é conseguir introduzir nas nossas
consciência na atenção integral da criança na esco-
relações, no sistema escolar, nas condições de tra-
la, a consciência do exercício de cidadania, que é um
balho da escola, a arte, trazer os artistas para den-
suporte muito grande, um aliado muito forte de po-
tro das escolas. Então esse que é o nosso grande
litização e de participação. Assim, trabalhamos com
desafio: esse trabalho interdisciplinar. Nós esta-
a voz e o protagonismo dos estudantes. Como psi-
mos com um projeto de lei para tentar trazer algo
cólogas, é um jeito de trabalhar muito importante.
novo, um paradigma novo para dentro da escola,
Além disso, chamar os pais para participar e ocupar
para sociedade. Mas ainda precisamos fazer muita
os Conselhos, os fóruns, as audiências públicas, os
discussão para sair desse paradigma: psicólogo,
grêmios e tudo mais. O desafio da desmedicaliza-
fonoaudiólogo, assistente social dentro da escola.
ção tá posto, certo? Obrigada.
É importante, é uma etapa de um processo, mas
precisamos dialogar muito com essa classe dos Elisabeth Gelli: Primeiro queria dizer que fiquei
artistas para ajudarmos essas crianças que têm encantada com esse moço. Eu penso uma coisa de-
os traços mais evoluídos, mais criativos. As pes- pois do que ele trouxe para nós, é como podemos
soas que têm mais criatividade, que têm mais ver- ter essa escuta. A Ariadne estava falando dos vá-
satilidade acabam sendo os mais prejudicados, os rios profissionais que podem levar uma perspectiva
que mais sofrem, porque existe, a todo momento, diferente na escola. Eu acho que, então, nós iriamos
levar perfis já constituídos na sociedade. Levamos coisa de dar milho às galinhas, essa ideia de que
55
um psicólogo, levamos um outro profissional que qualquer migalha serve. Não sei se é esse o senti-
possa dar esse “suporte” para esses alunos. Não do, você lógico depois pode até contar para a gente,
acho que é assim não. Eu acho que nós não sabe- mas me tocou muito isso. E eu estava pensando o
mos, nós enquanto psicólogos. Agora quero falar quanto que nós também, no Fórum e nas discus-
como professor. Quem são esses professores que sões sobre a medicalização no Conselho, podería-

- parte 3
trabalham com as crianças? Com essas crianças? mos talvez trilhar mais esse caminho da formação

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Essas ou outras todas as crianças? O João [de que de psicólogos. Acho importante que o pessoal de
falou Gustavo na sua apresentação]. Quem são os Bauru esteja fazendo o segundo encontro de esta-

e enfrentamento
professores? São outros tantos coitados. Eles não giários e de professores dos cursos de psicologia.

Psicologia em emergências
têm oportunidade de dizer da vida sacal que eles Quantos cursos de psicologia nós temos no esta-
levam, que eles não têm apoio das escolas, eles não do de São Paulo? É o estado que mais tem curso
têm apoio da Secretaria de Educação, eles não têm de psicologia no Brasil, que mais forma psicólogos
nenhum tipo de apoio que possa torná-los menos no Brasil. Como é que nós poderíamos talvez criar

CRP SPdas vidas: reconhecimento


dependentes de coisas que eles veem na televisão, uma proposta como NEM, e ir se articulando com
“é uma experiência bacana, vi na televisão, então eu as faculdades, com a Abep, com a Abrapee, com
vou reproduzir”. Eles acabam sendo reprodutores de as entidades que já compõem o núcleo, e levarmos
coisas que nem sempre são as melhores naqueles isso como uma proposta anual de encontros, não
espaços. Então, eu acho que trabalhar os professo- é? Seria interessante que tivéssemos esse lugar de
res, mas não trabalhar dando modelos. Que outra estar trabalhando na formação de psicólogos, prin-
psicologia pode ser feita, que outra pedagogia pode cipalmente com os que já estão próximos à escola,

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e medicalização
ser feita? Temos modelos predeterminados, temos essa discussão da medicalização, de como pensar
modelos que nós aprendemos e que até está no esse trabalho junto às novas gerações. Nós temos

Cadernos Temáticos
Google, mas temos de quebrar esses paradigmas, pensado bastante nos professores, nas escolas,
quebrar esses modelos que já estão postos. Quer mas talvez precisemos pensar também nos nossos
dizer, quando pensamos numa psicologia dentro do estudantes que estão aqui. Ficamos muito felizes

Patologização
ambiente escolar, pensamos naquele psicólogo que de ver todo esse grupo e tantos outros que pode-
vai lá trabalhar com as crianças, vai trabalhar com riam estar participando dessa discussão e que mui-
os professores. Não quebra isso nunca. Quer dizer, tas vezes desconhecem. Acho que essa poderia ser
quem é esse psicólogo? Que formação ele tem para uma ação nossa estratégica de atuar no campo da
poder quebrar isso que está acontecendo den- formação de profissionais.
tro da escola? Deixa falar o professor, deixa falar
o aluno, deixa falar a mãe. Eu gosto muito dessas Vera: Sou Vera, Vera Teixeira, sou fonoaudió-

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escutas, essas escutas que estão dentro da esco- loga. E eu gostaria de estar compactuando com a
la que podem dar algum caminho para rompermos fala da Marilene, de todos e agradecer ao Gusta-
com o que está acontecendo hoje e que vai pioran- vo. E dizer o seguinte: isto que você está falando,
do, não é? Nós estamos vendo que os movimentos Marilene, da formação, essa é uma questão que
mais retrógados estão entrando na escola de bota também nos preocupa na fonoaudiologia, e quem
mesmo. De bota, pisando duro e com a cruz. Nem ficar à tarde vai entender um pouco por que que es-
sei se, às vezes, é com a cruz. Mas, enfim, a gente tou falando isso. Acho que, como profissionais que
está vendo quais são esses movimentos que estão também estamos na educação, é importante que a
entrando nas escolas e que vão ocupar o lugar que gente se una. Acho também que o trabalho em rede,
nós, supostamente mais críticos, psicólogos, peda- intersetorial é fundamental. Se temos uma propos-
gogos, assistentes sociais, que temos uma forma- ta e um olhar que acreditamos ser fundamental e
ção universitária, não estamos fazendo, porque nós que pode estar abrindo as possibilidades para que
temos paradigmas que nós aprendemos na facul- se entenda as pessoas que estão ali naquela sala
dade também. Então, nós temos de romper esses de aula, sejam os professores como os próprios alu-
paradigmas para poder dar sentido ao João, para nos, enfim, nós temos que estar juntos para poder
a vida do João, e para outros tantos Joãos que a discutir essas questões. Nos fóruns que existem,
gente tem no nosso cotidiano. Era isso. MARILENE: fórum municipal, Conselhos municipais, estaduais
Queria parabenizar o Gustavo pelo trabalho mara- e tal, as categorias profissionais todas estão lá,
vilhoso, acho que tocou o coração de todos nós. E então, temos de fazer uma coisa conjunta. Eu acho
eu estava pensando, Gustavo, no milho. Nesse sen- que é por aí que temos de trabalhar. E à tarde fala-
tido do milho que você espalhou aqui no chão, essa mos um pouco mais disso. Obrigada.
56 A Psicologia e a Medicalização da Educação

Anabela Almeida Costa Santos Peretta


Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1997), aperfeiçoamento em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1999), mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2002 e 2008, respectivamente). Atualmente
é Professora Adjunto 4 da Universidade Federal de Uberlândia, onde ministra aulas na graduação em
Psicologia e em cursos de Licenciatura, supervisiona estágio em Psicologia Escolar. É membro do Núcleo
Uberlândia do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Tem desenvolvido pesquisas sobre a
atuação e formação do psicólogo para atuar no campo da educação e sobre a medicalização da educação.
Tem experiência na área de Psicologia Escolar. Atuando principalmente nos seguintes temas: atuação e
formação do psicólogo escolar, registros escolares, cadernos escolares, medicalização da educação, pesquisa
etnográfica, escola pública, cotidiano escolar.

Começo dizendo que é um prazer estar aqui, com-


pondo essa mesa para fazer essa discussão a “A psicologia contribuiu e
partir desses diversos olhares, vindos em diversos
campos do conhecimento. São vários os saberes
contribui para a reprodução
que têm composto o estudo do processo de me- de uma sociedade opressora
dicalização e que vai se voltando para aquilo que e manipuladora, na qual as
não vai bem no processo de escolarização. Quan-
do surge uma criança que não aprende, facilmente
pessoas se expressam por meio
surgem algumas perguntas: será que essa criança de mordaças sonoras, a fala
tem um problema neurológico? Ou será que é um amordaçada pela ideologia que
problema psicológico? Será que uma fonoaudióloga
não poderia ajudar? Subjacente a essas perguntas
silencia formas de compreender
temos a educação muitas vezes se ausentando do situações que só maquiam
seu lugar no processo de ensino-aprendizagem. situações de desigualdade e de
Professoras e professores que não se reconhecem
como profissionais que têm um saber, um saber a
falta de oportunidades”
respeito de como se ensina, de como se aprende,
a respeito dos seus alunos, com quem convivem. Falo a partir da psicologia. Sou psicóloga,
Os saberes médicos vão ocupando um lugar de dar trabalho na formação de psicólogos, também na
respostas e de aprisionar destinos, de criar modos formação de professores com a disciplina Psico-
como os sujeitos se reconhecem, são as bioiden- logia da Educação e falo a partir desse campo
tidades. “Sou TDAH”, “sou disléxico”. Pessoas pas- de conhecimento, que fortemente tem contribu-
sam a se definir e se reconhecer na relação com o ído para o reducionismo na compreensão das
mundo e com o conhecimento por meio de diagnós- questões que surgem no encontro entre os su-
ticos, de categorias nosográficas. jeitos e a educação. Psicologizar também é uma
forma de medicalizar. Outra forma de medicali-
Essa mesa se propõe a discutir a medicali- zar é oferecer tratamentos, acompanhamentos
zação da educação a partir de vários olhares, de para crianças e adolescentes diagnosticados,
vários campos de pesquisa e atuação. Temos aqui sem que esse atendimento tenha também como
a psicologia, a fonoaudiologia, a psiquiatria e a pe- propósito colocar em análise, em questão, em
dagogia. São esses são campos do conhecimento movimento, o enquadramento em categorias
que compuseram e que compõem a medicaliza- que reduzem a compreensão dos fenômenos
ção da educação e também são campos que têm escolares à dimensão individual. Maria Helena
participado, em alguma medida, da construção de Patto, de quem a Helena falou agora há pouco,
reflexões e práticas desmedicalizantes, e por isso e como pensar sem ela, vem desde os anos 80
que eu acredito que hoje a gente vai ter uma rica desvelando os compromissos ideológicos assu-
discussão aqui. midos pela psicologia, compromissos que visa-
vam, e que ainda visam, manter sob uma aura trei de Antunha, que dizia o seguinte, “é muito
57
de cientificidade as desigualdades sociais e frequente que se encontre cadernos todos ras-
educacionais. Assim, a psicologia foi responsá- gados, puídos, riscados, sem capa, com ore-
vel por identificar quem seriam os educáveis e lhas, cheios de desenhos perseverativos, tudo
os que não seriam, quais caberiam na escola e revelando desligamento, desprezo, violência ou
quais não caberiam, numa escola cuja estrutura agressão simbólica”. Ao longo dos anos, fui eu

- parte 3
e modos de funcionar não entravam em questão. a campo, fui participar do dia a dia das esco-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Como denuncia Maria Helena Patto, a psicologia las, buscando entender como é que nós, como
contribuiu e contribui para a reprodução de uma psicólogos, podíamos olhar para esse material,

e enfrentamento
sociedade opressora e manipuladora, na qual as e eu identifiquei algo muito diferente. Encontrei

Psicologia em emergências
pessoas se expressam por meio de mordaças muitos cadernos que estavam rasgados, puí-
sonoras, a fala amordaçada pela ideologia que dos, amassados, sem capa, com orelhas, e eram
silencia formas de compreender situações que de crianças que caminhavam 20, 30 minutos por
só maquiam situações de desigualdade e de fal- estradas de terra, debaixo de sol, umedecendo

CRP SPdas vidas: reconhecimento


ta de oportunidades. A medicalização da educa- os seus cadernos com o suor das mãos. Depois,
ção surge como uma dessas mordaças sonoras, a prefeitura conseguiu uma mochila para elas
modos de compreensão da realidade ideologica- e as distribuiu. Elas eram um pouco menores
mente comprometidos com a manutenção e am- que os cadernos, e os cadernos iam ficando
pliação das desigualdades, um modo de atribuir amassados, quando as crianças os colocavam
aos sujeitos, sejam eles estudantes, famílias, e dentro delas. E assim, cadernos amassados,
muitas vezes professores, a responsabilidade sujos, gastos eram efeitos de políticas públicas

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
por todas as mazelas da educação. Gostaria de educacionais, de falta de transporte escolar,
tomar algumas cenas para ilustrar essa questão, do fato de a escola ser distante de casa. Indi-

Cadernos Temáticos
para discutir esses fenômenos que nos aprisio- vidualizar, psicologizar, o que observamos, cria
nam, que silenciam aspectos sociais, políticos, um modo muito limitado de compreender e de
históricos, se revelando numa interpretação úni- explicar. Tal forma de compreensão do que se

Patologização
ca e verdadeira dos fatos. encontra nos cadernos escolares tem ganhado
nova roupagem. Ainda esses dias entrei nuns
sites para procurar o que que estava sendo
“E eu me pergunto, quantos dito, encontrei lá vários psicólogos, ou psis pelo
menos, psicopedagogos, que iam contar como
dos erros e dificuldades,
é que a gente olha para os cadernos e detecta
manifestadas pelas crianças sinais de TDAH, de dislexia, de discalculia. E eu

Cadernos Temáticos CRP SP


em seus materiais escolares, me pergunto, quantos dos erros e dificuldades,
manifestadas pelas crianças em seus materiais
não revelam outras mazelas da
escolares, não revelam outras mazelas da edu-
educação, como a superlotação cação, como a superlotação de salas, a falta
de salas, a falta de respaldo dos de respaldo dos professores para desenvolver
atividades plenas de sentido? Ou até mesmo a
professores para desenvolver
dificuldade da escola em lidar com as diversida-
atividades plenas de sentido?” des de formas de aprender. Um outro caso, que
talvez nos ajude a ilustrar um pouco os riscos
dessa psicologização e dessa medicalização,
Tempos atrás, quando eu ingressei no aconteceu comum caso que recebemos lá na
mestrado, isso foi lá no começo dos anos 2000, Clínica Psicológica da Universidade Federal de
me propus a entender o que revelavam os ca- Uberlândia, a UFU, onde eu sou professora. Nós
dernos escolares. Como psicóloga, queria en- abrimos um serviço, um atendimento para ado-
tender o que eu podia entender desses obje- lescentes encaminhados por queixa escolar e
tos, desses instrumentos que mediavam tantas recebemos um menino de 13 anos. Ele foi enca-
relações de aprendizagem. Naquele momento, minhado pela escola porque não estava acom-
encontrei uma psicologia que compreendia os panhando as atividades, tinha muitas dificulda-
cadernos e seus conteúdos como expressão de des, especialmente em relação à matemática,
aspectos individuais, neurológicos. Por exem- mas eram dificuldades mais gerais em relação
plo, essa foi uma das pesquisas que eu encon- à escola. Além disso, uma incontinência fecal,
que se manifestava de vez em quando. A mãe com estudantes para acolher o sofrimento ge-
58
tinha investigado causas orgânicas e vinha mui- rado por essas brincadeiras. Eram brincadeiras
to angustiada com essa questão. Poderíamos, que os faziam sofrer muito. Eram as brincadei-
a partir desse caso, pensar em diversos dis- ras que eles tinham conseguido inventar naque-
túrbios de aprendizagem, discalculia, dislexia, le espaço que era violento com eles. Mas eles
conflitos internos, familiares, psicologização e também começam a pensar em outras coisas,
medicalização. Facilmente vão nos oferecendo “e se a gente tivesse música no intervalo? E se
vários nomes, várias respostas pra compreen- tivesse uma bola?”, e aí começam a se organizar,
der e nomear essas situações. Nós fomos à es- os estudantes se organizam para propor e ne-
cola. As estagiárias voltaram assustadíssimas gociar algumas mudanças na escola. A equipe
com o que elas viram lá. Muitas aulas vagas, de profissionais vai começando a pensar tam-
a escola sem professores, os alunos ficavam bém em formas de reivindicar junto à prefeitura
aguardando na sala de aula, no pátio, tinha uma que seja solucionada a questão de falta de pro-
aula, outra não tinha, outra também não tinha. fessores, que era recorrente naquela escola. E
Enquanto eles aguardavam, já estava quase no a psicologia vai entrando como parceira em re-
horário do recreio, eles foram para o pátio brin- lação a todas essas ações que foram surgindo
car e a brincadeira que eles improvisaram, não na coletividade da escola, no sentido de pensar
tinha uma bola exatamente, eles fazem uma formas de relação menos violentas e de con-
bola com um pouco de lixo, com o que tem na quistar que os direitos sejam garantidos. Talvez
escola, e fazem uma brincadeira que se chama o lugar de mascarar e de encobrir funcionamen-
Passou, Levou, uma espécie de futebol, só que tos educacionais fosse o que os diagnósticos
quando a bola passa por entre as pernas de al- pudessem nos oferecer, e não era esse o que
guém, todos que estão jogando, e os que estão pretendíamos, não é? Queríamos movimentar
assistindo em volta da quadra, correm atrás da- aquilo que estava posto. Então, assim como a
quele que tinha deixado a bola passar embaixo psicologia compõem formas de olhar estreitas,
e batem nele, com tapas nas costas dessa pes- que descontextualizam, que aprisionam, que ro-
soa. A maioria corre rápido e não apanha muito. tulam, também a psicologia pode compreender
Um dos meninos corre muito, quase não é pego, os fenômenos escolares a partir de perspecti-
até que, quando ele está chegando, escorrega, vas mais amplas.
e aí ele é alvejado, várias crianças batem muito
nele, pisam nele, pegam o lanche que já tinha
sido distribuído e derramam o lanche em cima “Ele volta, vai para a
dele e ele sai muito envergonhado, sujo, triste.
arquibancada contendo o choro,
E então ele volta, vai para a arquibancada con-
tendo o choro, muito triste. E a diretora também muito triste. E a diretora também
muito triste, chorando num canto porque ela vê muito triste, chorando num canto
aquela situação e não sabe o que fazer. E as
porque ela vê aquela situação e
estagiárias voltam chocadas com o que tinha
acontecido. A escola tinha resolvido suspender não sabe o que fazer”
alguns alunos e pronto, e tinha sido esse o pro-
cedimento. E ficamos com algumas questões.
Como é possível aprender num contexto tão Temos um exemplo interessante que acon-
violento, em que as violências vão se expres- teceu em Uberlândia. Nós temos uma escola de
sando fisicamente entre os alunos, na ausência educação básica que é ligada à Universidade
de professores, na solidão dos profissionais da Federal, e que conta com uma equipe de psicó-
educação que não vão encontrando recursos logos. É algo raro de termos numa escola, não
para lidar com aquilo que acontece na escola? é? Eles têm uma equipe de cinco psicólogos.
Conhecer a escola vai nos ajudando a compre- E existe um serviço de diagnósticos de ques-
ender o não aprendizado desse estudante. Vai tões ligadas à educação que funciona dentro
nos ajudando, inclusive, a entender por que al- da universidade também, e a escola começou a
guém faz cocô nas calças de vez em quando, receber vários formulários enviados pelos mé-
com medo daquilo que acontece ali. Então, era dicos para preencher. Formulários rápidos, em
necessário pensarmos em outros modos de re- que eles iam lá fazer Xs onde já havia resposta;
lação naquele espaço. Fizemos alguns grupos perguntas prontas para auxiliar os médicos nes-
para brincar. Quantas dessas crianças, que não
59
“Chamar a atenção para a têm espaços para brincar, têm chegado para
atendimento psicológico? Quantas têm sido ca-
importância de que a psicologia racterizadas, categorizadas como crianças hipe-
abranja, nas suas formas de rativas? Temos ainda a perspectiva da educação
compreensão, os contextos à distância se ampliar em todos os níveis de en-

- parte 3
sino. As diretrizes para ensino médio, aprovadas
econômicos, políticos, sociais

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
essa semana, preveem até 80% de educação à
em que os indivíduos estão distância no EJA, a Educação de Jovens e Adul-

e enfrentamento
inseridos” tos. Presidente eleito propõe EAD para o ensino

Psicologia em emergências
fundamental. Considerando o quanto o vínculo,
se diagnóstico de TDAH. E aqueles formulários a proximidade, o quanto conhecer a condições
tinham perguntas como essa: “sai do lugar na concretas de vida dos nossos estudantes são
elementos fundamentais para a condução de

CRP SPdas vidas: reconhecimento


sala de aula ou em outras situações em que se
espera que fique sentado?”, são perguntas que processos de ensino-aprendizagem pleno de
revelam mais sobre a expectativa docente do sentido, promotores de desenvolvimento, como
que sobre a criança em questão, certo? Quan- nos posicionaremos num cenário de cresci-
do esperamos que uma criança fique sentada? mento de educação à distância? Como nos po-
É compreensível que um professor deseje que sicionaremos ao recebermos crianças que não
seus alunos fiquem sentados, e como se con- aprendem? Respaldaremos visões, explicações
quista isso é uma outra discussão. Talvez a orgânicas que atribuem a elas a culpa pelo não

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
psicologia também possa ajudar a pensar em aprendizado em um momento em que a milita-
relação a isso, quando pensamos sobre o senti- rização da educação ganha força? O que fare-

Cadernos Temáticos
do das atividades escolares e outros caminhos. mos? Vamos reforçar os diagnósticos de TOD,
Mas diante desses formulários em que as per- de Transtorno Opositor Desafiante, enquadran-
guntas estão prontas e as respostas são quase do todos aqueles que não se submetem, que

Patologização
óbvias, os professores se propuseram a ocupar questionam, que não se enquadram? Em um mo-
um outro lugar. Eles decidiam que não iam mais mento em que professores se veem fiscalizados,
preencher formulário, que não era isso que eles silenciados, perseguidos e que se sentem muito
tinham a dizer, e se propuseram a fazer relató- vulneráveis, tomaremos o adoecimento docente,
rios. Relatórios que contassem da experiência como um fracasso pessoal, uma sensibilidade
deles com esses estudantes, daquilo que eles extrema a condições de trabalho um pouco difí-
haviam tentado e não tinha dado certo, aquilo ceis? Chamaremos esse adoecimento político de

Cadernos Temáticos CRP SP


que eles haviam tentado e que tinha dado certo. Burnout? Ou, tal como temos defendido, vamos
Eles estavam assumindo o lugar de quem tem a fortalecer a nossa luta por uma escola democrá-
dizer, de quem sabe sobre o estudante, de quem tica, em que todos possam aprender e se desen-
conduz o processo de ensino-aprendizagem. E volver? O modo como nós recebemos, ouvimos e
assim eles foram construindo caminhos desme- ajudamos as pessoas a darem sentido aos seus
dicalizantes na relação com a medicina. E, assim, sofrimentos nunca é neutro. Estamos sempre
eu gostaria de chamar a atenção para esse pa- comprometidos com uma visão de indivíduo, de
pel que a psicologia vem assumindo, chamar a mundo, de psicologia. Espero que consigamos,
atenção para a importância de que a psicologia nos vários espaços profissionais que ocupamos,
abranja, nas suas formas de compreensão, os assumir o compromisso com a emancipação hu-
contextos econômicos, políticos, sociais em que mana, com a qualidade da educação. E só para
os indivíduos estão inseridos. Estamos tendo fechar, volto a tomar emprestadas as palavras
um número crescente de crianças hiperativas? da Maria Helena Patto, que diz, “precisamos, mais
Uma notícia da semana passada, talvez alguns do que nunca”, ela dizia isso em 2001, “insistir na
de vocês tenham visto, foi publicada no G1. A reflexão, na crítica, na denúncia, na coragem de
notícia dizia sobre a ausência de áreas verdes, dizer que o rei está nu, recuperar a força do pen-
de pátios, de espaços de brincar nas escolas samento e da expressão, que desvelam mentiras,
de educação infantil públicas no Brasil. Onde e camuflagens, ilusões e vão além do já dito”. Me
como brincam essas crianças que estão nessas parece que está muito atual, não é? E sse é o
escolas? A maioria das escolas de educação in- nosso compromisso na luta contra a medicaliza-
fantil, públicas, do nosso país não tem espaços ção da educação.
60 A Psiquiatria e a Medicalização da Educação

Rossano Cabral Lima


Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1995), residência em Psiquiatria
(1998) e Psiquiatria Infantil (1999) pelo Instituto Municipal Philippe Pinel - RJ, mestrado (2004) e doutorado
(2010) em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com
doutorado sanduíche no Instituto Max Planck de História da Ciência (Berlim, Alemanha). Trabalhou na rede
de atenção psicossocial do município do Rio de Janeiro (CAPS Pedro Pellegrino e CAPSi Eliza Santa Roza) e
foi supervisor clínico-institucional do CAPSIJ Duque de Caxias-RJ. Foi Professor Visitante do NUPPSAM/IPUB/
UFRJ (2011) e desde 2012 é Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ, do qual é Vice-Diretor
desde 2016. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Psiquiatria, atuando principalmente nos
seguintes temas: saúde mental de crianças e adolescentes, políticas públicas de saúde mental, Centros de
Atenção Psicossocial, diagnósticos psiquiátricos e identidades sociais, saúde mental global, medicalização,
transtorno do déficit de atenção/hiperatividade e transtornos do espectro autista.

Boa tarde, principalmente para quem tá resistindo nóstico psiquiátrico do nascimento até os 21 anos
aqui desde de manhã. Mas eu acho que é isso, te- de idade. Então, começamos a perceber que, óbvio,
mos essa oportunidade, como a Anabela falou, de tem alguma coisa muito errada acontecendo, já que
ter uma discussão interessante, qualificada, inter- os normais, aos 21 anos de idade, correspondem a
disciplinar, que já começou pela manhã com as apre- 17% da população. São os sortudos que consegui-
sentações, principalmente com a conferência da ram, nessa idade, mas conseguiram até aí não ser
Helena. Vou tentar, então, contribuir com essa dis- enquadrados em nenhuma categoria. Como a Hele-
cussão sobre medicalização da educação e a rela- na disse, em algum momento, serão enquadrados.
ção da psiquiatria com isso, numa abordagem mais
Como é que entendemos, então, esses núme-
crítica, que eu acho que é o interesse mesmo desse
ros? Temos várias possibilidades, várias explicações.
evento e desse debate. Agradeço então o convite
do CRP de São Paulo para estar aqui com vocês. A primeira costuma ser a explicação oficial
do campo psiquiátrico, pelo menos nas últimas três
Vou tomar como ponto de partida dessa con-
décadas, que, na verdade, o que está acontecendo
versa alguns números. Bem recentemente, a partir
é um aperfeiçoamento dos instrumentos diagnós-
dos anos 2000, começamos a ter estatísticas, da-
ticos, que antes então haveria um subdiagnóstico
dos epidemiológicos. Antes havia, mas de qualidade
e que agora, de fato, estamos enxergando a verda-
mais duvidosa do que os atuais, ainda muito raros. E
de, estamos vendo quantas crianças e adolescen-
geralmente os números vão nessa direção, que num
tes, de fato, apresentam transtornos.
determinado momento, segundo o site da OMS, 10
a 20% de crianças e adolescentes teriam algum tipo Uma outra possibilidade de explicação é de
de transtorno mental. Um resumo de vários estudos que, de fato, a vida contemporânea estaria produ-
interacionais achou uma mediana de 12%. Os estu- zindo um aumento de psicopatologia em criança e
dos brasileiros, que também começam a ser mais adolescente, seja por fatores físicos, do ambiente
frequentes, a partir de 2004 principalmente, com nú- físico, ou fatores socioculturais, segundo explica-
meros que vão mais ou menos de 12 a 19%, muito ção a ser explorada. É claro que cada uma dessas
parecidos com os números da Organização Mundial explicações pode caber mais para um determinado
de Saúde. Então isso já chama a atenção. Isso re- tipo de situação, menos para outras.
presenta, se tomarmos o limite superior, 1 em cada
Um outro tipo de possibilidade é entender que
5 crianças têm algum tipo de transtorno mental, al-
há mudanças nos critérios diagnósticos, ou seja, o
gum tipo de transtorno psiquiátrico? Mas os núme-
modo como descrevemos os quadros psicopatoló-
ros vão além. Um pesquisador americano fez um es-
gicos na infância e adolescência vêm promovendo
tudo sobre prevalência cumulativa. Ou seja, vamos
variações artificiais nesses números, certo? Então,
somar os transtornos que a pessoa supostamente
são artifícios epidemiológicos produzidos, não pelo
apresenta durante a infância e adolescência até o
aumento da incidência do número de casos novos
início da vida adulta. E ele verificou que 83% das
em crianças e adolescentes, mas por mudanças, alar-
pessoas se qualificavam para ter tido algum diag-
gamentos, afrouxamentos dos critérios diagnósticos.
E por fim, uma outra possibilidade, tem mais faz parte desses grupos menos empoderados, por
61
a ver com o que a gente está discutindo aqui, em- que como é que a gente descreve a infância des-
bora essa penúltima também, é entender esses de a modernidade? Imaturo, inocente, dependente,
números a partir dessa grade de leitura, que pro- não responsável, deve ser alvo de proteção no seu
blemas relacionais ou pedagógicos, começam a melhor interesse, os comportamentos então des-
ser reescritos em vocabulário médico, como pro- viantes, quaisquer que sejam, são considerados

- parte 3
blemas médicos, e passam a ser entendidos como desviantes, classificados e descritos por nós. Não

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
quadros patológicos passíveis de tratamento. En- são as crianças em geral que acham, de fato, que
tão é nesse último registro que está a discussão uma questão comportamental, o comportamento

e enfrentamento
sobre medicalização, principalmente nesses dois desafiador dela é um problema psiquiátrico. Nós,

Psicologia em emergências
últimos registros. adultos, é que muitas vezes achamos isso. Então
somos nós que classificamos. A criança tem pou-
ca voz nesse processo. Pois bem. Agora, embora
o tema medicalização, venha sendo estudado

CRP SPdas vidas: reconhecimento


“Não são as crianças em geral principalmente dos anos 70 para cá, como vocês
que acham, de fato, que uma também viram de manhã, se voltarmos no tempo,
questão comportamental, o encontramos, digamos assim, precursores do pro-
cesso de medicalização.
comportamento desafiador dela
Estamos mais interessados nesse proces-
é um problema psiquiátrico. Nós,
so hoje, aqui e agora, é verdade, mas ganhamos
adultos, é que muitas vezes quando conhecemos um pouco a nossa própria

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
achamos isso. Então somos nós história, a pré-história do nosso campo. Então, eu
sempre gosto de mostrar esse texto, que é da Liga
que classificamos”

Cadernos Temáticos
Brasileira de Higiene Mental, do campo do higie-
nismo, uma visão muito moralizante, racializada,
Bem, eu não vou estender aqui a discussão uma pretensão de um certo saneamento moral da

Patologização
sobre medicalização, até porque de manhã vocês sociedade, a extinção de alcoolismo, criminalidade,
já tiveram uma ótima introdução a esse respei- prostituição, loucura, crianças malcomportadas.
to. Você tem várias possibilidades, várias manei- A liga foi muito forte no Rio e em São Paulo, nos
ras. O próprio debate. Eu não vou me aprofundar anos 30, com muita adesão médica. Ela publicou
nisso, porque é interessante, mas corre um certo os arquivos brasileiros de higiene mental, e ela tem
risco de ficar muito acadêmico. Mas tem um deba- um panfleto dos anos 30 que já mostrava coisas
te grande dentro do campo dos estudos sobre a que estamos preocupados hoje, no vocabulário da

Cadernos Temáticos CRP SP


medicalização, tem gente que acha que o conceito época. O que a liga dizia para as mães? E olha só
de medicalização, inclusive, já se esgotou, porque que é para as mães, não é exortação aos pais. O
ele foi utilizado para tudo. Em todo o momento, o pai estava trabalhando, fora de casa. Era a mãe.
tempo todo propõe outros conceitos. De qualquer “Estais certa de que teu filho não possui nenhuma
maneira medicalização não é um campo homogê- predisposição nervosa? A criança normal é geral-
neo, nem como campo de estudo, nem aquilo que mente alegre, sorridente, ativa, chora pouco e gos-
ela pretende explicar. Eu peguei uma das possibi- ta de brincar. Se teu filho é tristonho e apático ou
lidades, a do Peter Conrad, de que a medicaliza- excessivamente excitado e brigão, se chora muito
ção é um processo pelo qual fenômenos sociais ou e tem ataques de raiva, cuidado com a predispo-
subjetivos passam a ser descritos em linguagem sição nervosa”, o termo “predisposição nervosa”
médica, passam a ser encarados como quadros era muito forte desde o final do século 19, “que o
patológicos, tornando-se passíveis de abordagens pode transformar no futuro em uma criança doente
terapêuticas. Mas como vocês viram de manhã, e infeliz. Teu filho é tímido, ciumento, desconfiado,
muitas vezes o processo de medicalização vai para é teimoso, pugnaz e exaltado? Cuidado com esses
além de quadros patológicos e se estende a fenô- prenúncios de constituição nervosa. Teu filho tem
menos da vida como um todo. Mas, ainda segundo defeitos na linguagem, é gago? Manda-o examinar
o Conrad, num livro anterior, existem alguns grupos pra saber sua verdadeira causa. Teu filho tem vícios
populacionais, digamos, mais desempoderados, de natureza sexual? Leva-o ao especialista pra que
que são população de risco, de maior risco para te ensine a corrigi-lo. Teu filho é mentiroso ou tem o
ser alvo do processo de medicalização. E criança vício de furtar? Trata-o sem demora, se não quise-
res possuir um descendente que te envergonha. Teu essas crianças difíceis pedagogia é tratamento e
62
filho tem muitos tiques ou cacoetes?”, não sobrou tratamento é pedagogia. Bem, o tempo passou, a
quase mais criança nenhuma nessa altura do tex- gente não está mais nesse momento. Na verdade,
to, não é? “Teu filho tem muitos tiques ou cacoetes? a partir dos anos 80 e 90 o panorama da psiquia-
É um hiper motivo. Procure evitar a desgraça futura tria muda bastante. Então, vou dar um salto no
do seu filho, que poderá ser candidato ao suicídio. tempo aqui. As mudanças no campo da psiquiatria,
Teu filho pouco progride nos estudos? Antes de cul- em geral, a partir dos anos 80, se assentam num
par o professor”, a escola aqui, né, “antes de culpar certo tripé. São basicamente esses três pontos: a
o professor, submete-o a um exame psicológico. Co- ascensão da psicopatologia descritiva dos manu-
nhecerás então o seu nível mental, o seu equilíbrio ais, principalmente a partir do DSM 3, que a Helena
emotivo e terás assim elementos pra melhor o en- já falou de manhã, e junto com o declínio da psico-
caminhar na vida. Lê e reflete. A felicidade do teu patologia, psicodinâmica, psicanalítica; junto com
filho está, em grande parte, nas tuas próprias mãos. isso, a ênfase na causalidade biológica, nas raízes
Não esperes, portanto, que o teu filho fique nervoso genéticas ou cerebrais dos transtornos mentais, e,
ou atinja as raias da alienação mental. Submete-o claro, a ênfase da psicofarmacologia como o eixo
o quanto antes a um exame especializado, a fim de do tratamento, aquilo que seria o mais importan-
que amanhã não te doa nem de leve a consciência. te. Então isso muda a cara da psiquiatria dos anos
É essa a exortação que te faz a Liga Brasileira de 80 em diante; talvez um dos principais exemplos é
Higiene Mental, que somente deseja ver felizes to- esse artigo do psiquiatra americano, Samuel Guze,
das as mães”, como se fosse possível quando você cujo título é: Psiquiatria Biológica. Há alguma outra
chegar nesse ponto do texto, “para que felizes se- mostrando, em 89, como é que esse tipo de noção
jam também todos os filhos desse querido Brasil”. começava a, de fato, se impor no campo psiquiá-
Então é esse, nos anos 30, o discurso médico di- trico. Claro, a Helena já disse hoje de manhã, não
rigido para as mães? Exatamente. Ou seja, para é querer dizer que não há uma riqueza da biologia
a guardiã, porque de fato, a estratégia higienista, aplicada à psiquiatria. A questão é reduzir o estu-
uma das táticas que ela usou foi exatamente uma do das razões, dos motivos, dos contextos pelos
aliança, não entre médico e família, mas entre mé- quais nós adoecemos mentalmente, a questões
dico e mãe. Era a figura da mãe a aliada do higie- puramente neuroquímico-genéticas.
nismo dentro de casa. Agora, vemos alguma coisa
muito parecida, também tirada dos arquivos de Chegando à infância, chegando àquilo que
higiene mental, mas isso num congresso aqui em nos interessa. Na infância, esse movimento che-
São Paulo, em 41, 1º Congresso de Saúde Esco- ga um pouco depois, mas chega. Principalmente
lar, aí discurso, não para os leigos, para as mães, a partir dos anos 90, você tem a disseminação
mas discurso para os profissionais. O que o Raul de uma série de novos diagnósticos, os transtor-
Bittencourt, que é um médico, diz? Olhem só que nos invasivos, várias siglas, parece uma sopa de
interessante, “o mecanismo genuíno da educação, o letrinha a psiquiatria infantil a partir daí, porque
psicológico, só encontrará colaboração plenamente você tem o TID, que depois é o TEA, Transtorno
eficaz na medicina psiquiátrica. Só ela substituirá o Invasivo do Desenvolvimento, que vira Transtorno
velho conceito de indisciplina pelo de perturbações do Espectro do Autismo; o TOD, Transtorno Opo-
funcionais do psiquismo em seu ajustamento social sitivo Desafiador, Transtorno Bipolar da Infância,
e a anacrônica mais subsistente noção de castigo, e o TDAH, que, de certa maneira, foi o carro-chefe,
pela renovadora e luminosa concepção de cura da foi a locomotiva desse processo. Foi ele que veio
indisciplina”. Tudo isso então sendo vendido como carregando os demais diagnósticos e com uma
alguma coisa moderna, que ia superar os anacro- presença muito forte, não só dentro, mas também
nismos no modo leigo de se lidar com a criança. fora do campo exclusivamente psicológico, psiqui-
“Só ela, pelo conhecimento da etiologia psicossocial átrico. Ou seja, uma presença forte na mídia. Este
das neuroses”, então vemos que esse discurso vai exemplo é de um episódio do Simpsons, onde o
englobando até categorias psicanalíticas, “desven- Bart é diagnosticado como TDAH e toma um si-
dará o mecanismo encoberto de formação dos desa- milar da Ritalina, e já mostrando uma associação
justados, das crianças e adolescentes de difícil esco- muito íntima do trio TDAH, Ritalina e escola. Isso
laridade e fornecerá ao professor a compreensão de passa a andar junto. De certa maneira, o TDAH se
cada caso, colocando em condições de cooperar com transforma num diagnóstico escolar, mais do que
o médico especialista no objetivo comum, e até certo qualquer um outro. Isso já estava presente numa
ponto indistinto, de educar e curar”, ou seja, para antecessora do diagnóstico de TDAH, que foi a
Disfunção Cerebral Mínima, desde os anos 60 e força com as últimas classificações; e as últimas
63
70, e a relação entre o diagnóstico e o remédio classificações reforçando um certo tipo de visão a
se tornou cada vez mais estreita, a ponto de Paul respeito da origem e da natureza desses quadros,
Wender, que talvez seja o principal pesquisador que inclui o TDAH numa nova categoria chamada
de Disfunção Cerebral Mínima, nesse momento, Transtornos do Neurodesenvolvimento. Não é do
ter afirmado isso, “foi a reação comum às anfe- desenvolvimento, é Transtornos do Neurodesen-

- parte 3
taminas que se constituiu numas das razões para volvimento, que inclui grupos variados, o autismo

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
reunião desse grupo, aparentemente heterogêneo está aqui, retardo mental, com outro nome, está
de crianças”, crianças com problemas de compor- aqui, e o TDAH, então, faz parte desse grupo nas

e enfrentamento
tamento, mas os mais variados possíveis, “sob o duas classificações mais usadas no mundo todo.

Psicologia em emergências
cognome de Disfunção Cerebral Mínima”. Disfunção Se passarmos os olhos pelos critérios diagnósti-
Cerebral Mínima passa a ser então... que é Disfun- cos do DSM 5, vamos ver o quanto isso que estou
ção Cerebral Mínima? Ah, é aquilo que as anfeta- ressaltando, ou seja, um certo caráter do TDAH
minas tratam. E o que as anfetaminas tratam? É como um transtorno escolar, fica evidente nos

CRP SPdas vidas: reconhecimento


disfunção cerebral mínima. Gera-se um raciocínio próprios critérios. Se vocês procurarem os crité-
circular. E olhem só então, uma publicidade ainda rios de outros diagnósticos infantis, a escola não
usando a antiga, americana, porque lá você pode aparece tanto quanto aparece nos critérios diag-
fazer publicidade direto ao público. Aqui, pelo me- nósticos do TDAH. Vou passar só por alguns. No
nos, temos essa vantagem, de não ter isso. Mas campo principalmente da desatenção. Não presta
já mostrando, “estudos controlados demonstram atenção e comete erros por descuidos em tare-
os benefícios da Ritalina na Minimal Brain Dys- fas escolares, etc; tem dificuldade para manter a

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e medicalização
function”, Disfunção Cerebral Mínima, e está aqui atenção em tarefas, como manter o foco durante
o garotinho concentrado, comportado, um certo as aulas; frequentemente não segue instruções

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ideal de criança, caucasiana, o que também não até o fim, não consegue terminar os seus traba-
é à toa. Pois bem. Se pegarmos então, chegan- lhos escolares, tarefas, etc.; frequentemente evi-
do mais para cá, agora já com o TDAH, as publi- ta, não gosta ou reluta em se envolver em tare-

Patologização
cidades, também fora do Brasil, as publicidades fas que exigem esforço mental prolongado, como
dos remédios para TDAH, vemos que é a escola trabalhos escolares ou lições de casa; frequente-
que está no centro da publicidade. Concerta, que mente perde coisas necessárias para tarefas ou
é uma apresentação de longa duração do Metil- atividades, material escolar, lápis, livro. É a escola
fenidato. Na peça publicitária está dizendo quais dentro dos critérios diagnósticos do TDAH. No
são as duas possíveis trajetórias, com o remédio campo da hiperatividade também aparece aqui:
e sem o remédio. Não é à toa que sem o remédio frequentemente levanta da cadeira em situações

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é ladeira abaixo. Com o remédio, segundo o fabri- que se espera que se permaneça sentado, sai do
cante do Concerta, o menino toma o Concerta, vai seu lugar na sala de aula, etc. Pois bem. Uma das
pra biblioteca com o amigo, fica sabendo quem foi consequências desse cenário que eu estou des-
George Washington, e a professora fica orgulho- crevendo é uma tabela publicada na Nature Neu-
sa, “makes teacher proud”. Ou seja, no final das roscience ainda, já tem um tempinho, que mostra,
contas, segundo a indústria, o objetivo do remé- em alguns países, já no final dos anos 90, a taxa
dio é fazer a professora ficar orgulhosa. Aqui, se de uso de doses diárias de Metilfenidato por mil
ele não toma, segundo a indústria, ele esquece a habitantes, então é a dose pela população. Em
sua mochila no ônibus, briga com a irmã, “George alguns países, como os Estados Unidos, já era
Washington, quem mesmo?”, ele pergunta, e a pro- alta, no final dos anos 90, e aumentou; outros pa-
fessora chama a mãe. Ou seja, então o objetivo íses, como Reino Unido, era relativamente baixo o
também é não fazer com que a professora cha- uso e aumentou várias vezes. Mas isso também
me a mãe, segundo a publicidade. Aqui de novo, acontece na Suíça, na Holanda, na Austrália, na
a publicidade do Adderall, que não temos aqui no Bélgica, um pouco menos; aqui perto da gente, no
Brasil, mas é outro remédio para TDAH, mostran- Chile. Curiosamente, eu ainda estou sem explica-
do que o efeito do remédio é o menino tirar B+. Eu ção, eu não li nenhuma explicação, nessa época
não sabia que existe um remédio que faz a crian- o país que tinha o maior consumo per capita de
ça tirar B+ e A, mas segundo o laboratório, tem, e Ritalina era a Islândia. Não sei muito bem o por-
está aqui o moleque de novo; outro moleque, todo quê da Islândia. Eu só conheço a Björk, e não acho
concentrado, todos caucasianos, tomando o seu que deve ser por causa dela, mas eu não conhe-
remédio. Pois bem. Esse tipo de questão só se re- ço mais muita coisa. Vamos ver Brasil. No Brasil,
dados mais recentes de uma doutoranda lá do uso compensam os riscos? Um dos argumentos
64
Instituto de Medicina Social mostraram que nós, usados é: a pessoa deve ser livre para escolher,
nos anos 2000, basicamente repetimos a traje- na visão mais ultraliberal, a pessoa deve ser livre
tória americana uma década antes. Aumentamos para escolher se ela toma ou se não toma, mas de
775% de prescrição entre 2003 e 2012. fato será que a escolha é livre ou não tem havido
uma pressão social por desempenho que quase
Bem, caminhando para o final, mas eu acho
coage a pessoa a tomar? Mas num concurso, é
que tem um outro tema importante que, falando
honesto uma parte estar usando Ritalina sem ter
de Ritalina, não podemos deixar de falar, porque
o diagnóstico e a outra parte não? Isso é dop-
geralmente essas estatísticas não conseguem
ping? Como é que você pode lidar com diferença
diferenciar, já que, na maior parte do mundo, a
social de acesso a medicamentos se chegar um
Ritalina é comprada com receita, uma receita ra-
momento e dizer, “não, então tá bom, tá liberado
zoavelmente controlada, mas você não consegue
pra todo mundo”, mas nem todo mundo pode pa-
discernir quem dessas pessoas está fazendo um
gar? E claro, qual é o interesse do complexo indus-
uso porque teve um diagnóstico de TDAH e quem
trial médico farmacêutico nessa expansão? São
está fazendo o uso por outros motivos. Mas que
perguntas que ficam para o debate.
outros motivos? O Metilfenidato é uma dessas
substâncias que tem sido usada para aprimora- Já comentei um pouco isso. O uso de Metil-
mento, mesmo que a pessoa não tenha TDAH. fenidato e outros, seja associado ao TDAH, seja
Agora já não estamos falando mais de criança, como estratégia de melhora, mostra que a aten-
é de adolescente para frente. Aqui alguns da- ção se tornou um valor no mundo contemporâneo.
dos americanos. Esse uso, eles chamaram nesse No fundo, é isso que as pessoas estão correndo
artigo de uso não médico, porque não é um uso atrás, de maior eficácia, de maior desempenho, de
para tratar TDAH, é um uso que variou, dependen- maior produtividade, em mim ou no meu filho? É
do da pesquisa, entre 5 a 35%, especificamente essa a questão que está colocada. Eu acho que
para melhorar a performance acadêmica, entre a pergunta, seja do ponto de vista clínico, seja
3 a 10% dos estudantes tomando Ritalina, inde- do ponto de vista escolar, que precisamos sem-
pendente de terem o diagnóstico de TDAH, para pre fazer, uma pergunta pragmática, no sentido
ficarem, no mínimo, acordados à noite, virarem a da filosofia pragmática, qual é a utilidade clínica,
noite estudando. Uma pesquisa da Nature, tam- ética, pedagógica de descrever o comportamen-
bém informal, feita no site dela, revelou que 20% to disfuncional de uma criança como transtorno
já tinham usado, de um modo não prescrito, não psiquiátrico ao invés de você primeiro utilizar um
recomendado, medicamentos para concentra- outro ponto de vista para entender o porquê que
ção e memória, e o Metilfenidato, a Ritalina, foi aquele fulaninho não está se comportando, não
o mais usado. Uma pesquisa aqui próxima a nós, está tendo um desempenho como esperado? En-
num cursinho pré-vestibular em Belo Horizonte, tão a minha proposta é essa, que a gente inver-
21% dos estudantes fazia uso de psicofármacos ta a lógica, antes de lançar mão do diagnóstico e
sem prescrição médica, psicofármacos fitoterápi- do remédio como primeira resposta, que a gen-
cos e homeopáticos é a maioria, mas as drogas te possa explorar outras narrativas que ajudem
para déficit de atenção e hiperatividade também a entender e a lidar de um modo mais integral, o
em um número significativo, de pelo menos, em problema apresentado pela criança. Até porque
alguns cenários, 1 em cada 10 estudantes, pelo nunca é apresentado só pela criança. E por fim,
menos, usam Ritalina não tendo tido diagnóstico acho que é possível utilizar diagnóstico, utilizar
de TDAH, usam porque ou ouviram dizer, leram, al- psicofármaco de uma maneira... a Helena fez essa
guém disse que era bom, que aumentava o foco, distinção também de manhã, de uma maneira não
que não deixava dormir etc. Isso é um debate medicalizante, desde que isso possa significar
principalmente entre bioeticistas, mas é um deba- abertura de possibilidades de vida, superação de
te que todo mundo precisa fazer. Nós precisamos obstáculo, alívio de sofrimento e não submissão
fazer porque isso não está atingindo as nossas a padrão de conduta, adequação rígida à média,
crianças, mas está atingindo os nossos adoles- tem que todo mundo se comportar do mesmo
centes e adultos jovens, principalmente vários de jeito, e perseguição obstinada de ideais de nor-
nós, que somos professores universitários. Tem malidade que são inatingíveis pra nós, que já so-
uma série de perguntas ainda sem respostas. Há mos meio velhos, imagina pra quem tem sete, oito
benefícios de fato? Os benefícios desse tipo de anos de idade. Era isso. Obrigado.
A Pedagogia/Educação e a Medicalização 65

Cecília Collares
Possui graduação em Pedagogia pela PUC São Paulo (1961), mestrado em Educação (Psicologia da

- parte 3
Educação) pela PUC São Paulo (1977); doutorado em Sociologia e Política pela Fundação Escola de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Sociologia e Política da USP (1981) e Livre-Docência em Psicologia Educacional pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Faculdade de Educação da UNICAMP, no Departamento

e enfrentamento
de Psicologia Educacional, atualmente aposentada. Sua atuação em ensino, pesquisa e extensão
é no campo da Educação, em especial nas áreas ligadas a fracasso escolar, escola, formação de

Psicologia em emergências
professores e medicalização dos processos ensino-aprendizagem. Publicou inúmeros artigos em
periódicos científicos nas áreas de Educação e Psicologia. É autora do Livro Preconceitos no Cotidiano
Escolar: Ensino e Medicalização. É militante do DESPATOLOGIZA - Movimento pela Despatologização
da Vida, que tem articulado reflexões críticas e ações que buscam enfrentar e superar os processos

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medicalizantes da vida de crianças e adolescentes.

Gente, muito prazer, boa tarde. Muito obrigada miliares mais velhos e experientes”. “Uma for-
para as organizadoras do evento. É um grande ma”, diz o Illich, “de expropriação da saúde asse-
prazer estar aqui com vocês e eu vou tentar ver gurada e organizada pela medicina. Uma oficina
se eu consigo entreter vocês com algumas coisas. de reparos e manutenção destinada a conser-

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e medicalização
var o funcionamento do homem, usado como
um produto não humano”. É uma fala pesada do

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Illich, não? Agora o nosso amigo, o Foucault. O
“O que é medicalizar? É
Foucault diz o seguinte, “a medicina como téc-
descontextualização da nica geral de saúde assume num lugar cada vez

Patologização
vida, é naturalizar a vida, mais importante nas estruturas administrativas
e nesta maquinaria de poder que durante o sé-
é estigmatizar diferenças,
culo 18 não cessa de se estender e de se afir-
é destruição de direitos, é mar. O médico penetra em diferentes instâncias
despolitização, é naturalizar de poder e constitui-se igualmente uma ascen-
dência político-médica sobre uma população
desigualdades, é antiético, é uma
que se enquadra com uma série de prescrições

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institucionalização do humano e que dizem respeito, não só à doença, mas às
é uma violência contra o humano” formas gerais da existência e do comportamen-
to”. Em 76, Foucault já falava do biopoder, e ele
dizia: “a assunção da vida pelo poder, ou seja,
Ao longo dos últimos 50 anos, 60 anos, uma tomada de poder sobre o homem enquanto
muitos autores importantes pesquisaram e ser vivo, uma espécie de estatização do bioló-
escreveram a respeito da medicalização e da gico”. E o Conrad, nosso amigo, que já esteve
patologização. Vou citar aqui três que são os conosco aqui pelo Brasil, participou do nosso
mais relevantes para os nossos estudos. O pri- fórum, “processo pelo qual problemas não mé-
meiro é o Ivan Illich. Ivan Illich diz o seguinte: “a dicos passam a ser definidos e tratados como
ampliação e extensão do poder médico minam problemas médicos, usualmente como doenças
as possibilidades de as pessoas lidarem com e transtorno, aumentando o controle social do
as dificuldades, com os sofrimentos e perdas comportamento”. Então, em síntese o que é pa-
decorrentes da própria vida, transformando as tologizar? O que é medicalizar? É descontextu-
dores da vida em doenças”. Outra fala do Illich: alização da vida, é naturalizar a vida, é estig-
“a medicina busca autoridade sobre as pessoas matizar diferenças, é destruição de direitos, é
que ainda não estão doentes, sobre as pessoas despolitização, é naturalizar desigualdades, é
para quem não se pode racionalmente esperar antiético, é uma institucionalização do humano
a cura e para pessoas com problemas para os e é uma violência contra o humano. Isso tudo
quais os remédios prescritos por médicos têm é uma patologização. Muitos de nós nos for-
resultados semelhantes aos oferecidos por fa- mamos nas produções desses autores. Quem
de nós aqui não estudou Nietzsche, Foucault, política? A existência de inúmeros projetos edu-
66
Conrad? Todos nós já lemos algo deles, não é? cacionais bem-sucedidos e sistematicamente
Nós nos formamos nessas produções. Educa- ignorados nos fornece pistas. Quero ressaltar
dores famosos, competentes, estudiosos, co- aqui um projeto pedagógico, implementado em
legas nossos ou nossos mestres, eles também Franco da Rocha pela professora Andrea de Je-
trataram e trabalharam esses conceitos e, na sus, que foi minha aluna. E o NAAPA, em sua ver-
maioria das vezes, nem eles e nem nós fazemos são original, quando coordenado pela Adriana
a vinculação destes conhecimentos, não com a Watanabe, ambos com a supervisão de Biancha
educação, com a educação no geral muitos de Angelucci e ainda, um desenvolvido pelo Sindi-
nós fazemos, mas com o cotidiano da sala de cato de Trabalhadores da Educação de Sergipe,
aula, onde acontecem as coisas da educação. assessorado por Wanderley Geraldi. Provavel-
mente não temos nem notícia do que eles são. E
Bem, esse tema costuma passar ao largo
são projetos que deram muito certo e absoluta-
da formação de professores. Devo ressaltar que,
mente ignorados. Talvez o futuro muito próximo,
de fato, passa ao largo da formação de todos os
ou melhor, o tempo presente, nos desvele esse
profissionais. Entretanto, aqui, eu vou me debru-
cenário com mais clareza. Tempos de Escola sem
çar especificamente no campo educacional. Isso
Partido, ideologia de gênero, ensino à distância
não significa que com o médico está tudo bem, o
em todos os níveis, delação de professores e de
psicólogo, o fonoaudiólogo. Não. Todos eles têm
estudantes, e ainda hoje, ontem, a escolha do
problemas, porém eu vou ficar na minha alçada.
futuro ministro da educação. Isso tudo vai nos
Bem, a área da educação, e mais especificamen-
revelar como é que vai andar a nossa educação,
te a escola, é uma das instituições mais atingi-
ou melhor, a nossa vida.
das pelos processos patologizantes, e daí é uma
das que mais patologiza a vida das crianças e
dos adolescentes. A escola tem uma quantida-
de significativa de problemas, de diferentes or-
“Na voz dos atores da escola,
dens, desde a precariedade da estrutura física, as causas desse fracasso estão
como já foi salientado aqui pela colega de Minas, centradas principalmente nas
mas também uma precariedade material gran-
de, que também já foi salientada, e de recursos
crianças e, em menor escala, nas
humanos também, e até mesmo problemas de famílias, e pedagogicamente o
ordem pedagógica propriamente dita, todos os índice é zero. Ninguém acha que a
problemas de ordem política, devo ressaltar. En-
tretanto, aqui eu quero abordar apenas o tema
causa é a escola, é a formação, não”
da patologização. Eu entendo todo o conjunto de
fatores que permeiam as dificuldades da escola,
Bem, em pesquisa realizada há alguns
mas aqui hoje eu vou tratar só dessa questão
anos, mas continuadamente confirmada por
da patologização, pensando também em possi-
nós mesmos e outros autores, e infelizmente
bilidades de minimizar ou, pelo menos, limitar um
ainda muito válida, constatamos que, na voz
pouco este problema.
dos atores da escola, as causas desse fracas-
Os índices de reprovação, evasão de crian- so estão centradas principalmente nas crianças
ças desde o primeiro ano da escola, mesmo ten- e, em menor escala, nas famílias, e pedagogi-
do diminuído nos últimos anos, ainda continuam camente o índice é zero. Ninguém acha que a
muito altos, sem esquecer do número alarmante causa é a escola, é a formação, não. É a família
de analfabetismo funcional. Será mesmo o fra- e a criança, principalmente a criança. Elas são
casso da escola ou seria um sucesso? Um su- culpadas por não aprenderem em uma escola
cesso político, destaco. Lanço essa provocação que não ensina. Constatamos também que as
para refletirmos. Será que os educadores, os te- vozes de outros profissionais que atuam dire-
óricos da educação não têm propostas para me- ta ou indiretamente com essas mesmas crian-
lhorar a qualidade da educação brasileira? Será ças, médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, são
que eles não têm noção do problema educacio- tão iguais as falas, que se dissermos de quem
nal brasileiro, suas causas e possibilidades de é a fala, não sabemos. Todas igualmente pre-
enfrentamento e superação? Ou suas propostas conceituosas. Então só para trabalharmos, vou
não são consideradas pelos formuladores da passar para vocês algumas falas dos atores
que trabalham na escola. Então a voz dos pro- E é verdade, nunca ouvem falar. A pedago-
67
fissionais da educação. gia é difícil, não fala sobre isso.

“Ela não acredita que o problema é só peda- “Você aprende sozinha. A pedagogia não
gógico, a criança é que tem problema. O que que prepara para a sala de aula. Pode-se ficar instru-
ela pode fazer?” ída na psicologia da escola, mas a sala de aula
se aprende sozinha. Nunca discuti essas ques-

- parte 3
“A criança com mais de duas repetências

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
tões no meu curso de pedagogia. A experiência
não vai, precisa ser encaminhada pra prefeitu-
me ensinou. Sempre ouvi falar disso. Nunca estu-
ra, para a saúde mental. Criança com distúrbio,

e enfrentamento
dei nada que me ajudasse a encaminhar crianças
com problema, você percebe pelo olhar, no falar.
que não conseguem aprender. A experiência e a

Psicologia em emergências
A gente chama os pais, peço pra fazer exame, não
prática de mais de 20 anos de escola é que me
vai. A criança não aprende a ler e a escrever de
ensinaram”,
jeito nenhum. A escola não tem que assumir isso,
é ela que precisa fazer um eletro”. “Sabe onde é que aprendi muito? Na sala

CRP SPdas vidas: reconhecimento


dos professores”. A professora nova vai pra sala
“Procuro fazer diagnóstico todo dia, toda a
do professor e pega a lista dela de chamada e
hora. Elas são muito apegadas a mim. Tenho jei-
eles caracterizam uma por uma das suas alunas,
to, tenho experiência. Nunca recebi de volta uma
porque a prática e a experiência das mais ve-
criança que dissesse que não tinha nada, que era
lhas passa pra mais nova. Agora, como é que as
normal”
mais velhas aprenderam, né? Como é que eles
“Pode ter um distúrbio na criança e distúr- aprendem? Com quem eles aprendem? “O mé-

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e medicalização
bio na criança, minha filha, nem Cristo faz mila- dico da escola examinava e dizia”, isso nos anos
gre, tá? Mas os pais, muitas vezes, não aceitam 80, “desnutrição. A criança quer aprender, mas

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esse diagnóstico da escola, né? Eles não aceitam não aprende”, um bichinho comeu o neurônio, né,
facilmente isso. Então Natália é alheia ao mundo, acho, “ele vinha e era muito bom”, o médico, “em
mas a mãe dela não concorda, diz, “lá em casa menos de duas horas conseguia examinar de 15 a

Patologização
ela é ótima”. 20 crianças. Quando eu estava no magistério, eu
tive uma aula prática e pudemos assistir aplica-
“eu nunca tinha percebido que o meu filho era
ção do teste. Mas a médica do postinho esteve
doente. Foi aqui na escola que disseram isso. Eu não
aqui explicando tudo”, quer dizer, ela aprendeu a
acredito. Em casa ele não tem nada disso”.
aplicar teste.
Então existe ainda alguns pontos de dis-
Profissionais da saúde que atuam direta
cordância. E também a voz discordante dos
ou indiretamente na escola, o que é que eles di-

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professores. Essa professora, ela tem uma fala
zem, esses profissionais? Ouçamos os médicos.
muito interessante:
“Sempre peço de rotina alguns exames ge-
“é notável, principalmente nas escolas de
rais, de sangue, de urina, de fezes. Se dá alguma
periferia, crianças com problemas de saúde e como
coisa eu trato e mando voltar em seis meses. Se
consequência professoras usando disso para rotu-
não dá nada, aí depende, às vezes eu peço um
lá-las de carentes de aprendizagem. O que tenho
eletro, às vezes mando pra saúde mental, mas
conhecimento é que saúde é um fator que pode
tem criança que dá pra perceber logo que tem
interferir, mas não é a causa. Se pensarmos mais
algum problema de desenvolvimento, um retardo.
na prática de sala de aula poderíamos talvez ter
Aí não adianta nada. E depois tenho número de
resposta para esse problema”.
casos pra atender, mais de 15 por período, e a fila
Então existem ainda brechas de falas de de espera pros especialistas acaba não fazendo
professoras, de pais, na outra direção. Entre- nada mesmo. Eu faço uma avaliação rápida pra
tanto, a gente pergunta, como é que foi a for- ver se precisa de eletro ou se já encaminho pra
mação dessa professora? Na sua graduação, saúde mental. Se não tem nada peço alguns exa-
depois na educação continuada, como é que mes, de sangue, de fezes de urina, pronto”.
foi isso? E veja só que respostas interessantes
Entre 19 dos médicos entrevistados, ape-
que elas nos dão,
nas um relatou que tivera algum contato com o
“eu nunca estudei nada que falasse sobre tema na sua graduação. Eu sempre brinco que a
essas coisas no meu curso de formação” maioria dos médicos, só vai na escola para le-
var o filho, para o carro na porta, o filho desce, mentos individuais na escola com crianças, por
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ele vai embora. Ele não sabe o que acontece. favor. Isso patologiza, isso cria as classes dos
Ele nunca teve nenhum trabalho dele na sua for- doidinhos. Vocês não fazem ideia da quantida-
mação que fale de escola. Eu também não sei de de estigmas que se cria só pelo fato de uma
se era para ter, não é? Mas ele não tem. Ah, é criança ser atendida individualmente na escola
verdade, apenas o médico que disse que ouvira pela psicóloga. É muito bem-vindo o trabalho de
falar alguma coisa na sua graduação. É só vi- vocês para a área educacional nesse trabalho
sita nas escolas, faz aqueles programinhas. A mais coletivo com as professoras, mesmo com
Cida me conta, quando ela estava no Butantã, as crianças, ajudando na dinâmica da escola. O
que tinha uma aula de educação e saúde. En- trabalho institucional é de uma riqueza muito
tão, perguntaram para os garotos, “que aula é grande, e aí a psicologia pode ajudar muito a
essa?”, “eu não sei não, mas eu acho que é aquela educação, até ajudar a educação acordar, cer-
aula do Modess“. Aula do Modess, que mostrava to? Porque infelizmente ainda ela dorme. Mas
para as meninas o que era menstruação, como temos de trabalhar, temos de cutucar, para que
é que fazia. Então ia lá, distribuía Modess. Isso elas possam acordar. E vocês são nossas par-
era educação. Isso é o que elas faziam na esco- ceiras para isso.
la. Reunião do Modess.
As fonoaudiólogas, é a mesma coisa, elas
O médico disse isso, “era um programa repetem que a dislexia é uma doença neuroló-
tocado pela pediatria, era voluntário. No curso gica que se caracteriza pela grande dificuldade
mesmo tinha duas ou três aulas teóricas em seis em aprender e escrever. Realmente, é impossí-
anos... onde eram tratados todos os problemas vel sabermos quem é que fala. Agora, eu quero
de saúde do escolar”. dizer que, há um tempo, a fonoaudiologia tem
sido nossa parceira também. Ela tem nos aju-
Agora, ouçamos os psicólogos.
dado, tem feito grandes discussões, tem parti-
“Hiperativa é a criança com problema neu- cipado dos nossos coletivos. E é isso que nós
rológico. Não para, nada satisfaz, distraída”, a precisamos, juntar para poder ajudar.
fala chefe, “incomodam”. Se ela tivesse tudo
Foram muitas falas emitidas por estes
isso, mas se ela ficasse quietinha, estava tudo
atores no desenrolar do nosso trabalho nas es-
bem, mas ela incomoda, então ela tem que ter
colas. Apresentei somente algumas represen-
alguma doença.
tativas desse universo estudado. Quem tiver
“As crianças não têm carinho. Aí você passa interesse pode procurar que já tem uma nova
a mão na cabeça e ela se encolhe. Parece que edição do livro em que saiu essa pesquisa, que
querem entrar no útero novamente. Elas saem chama Preconceitos no Cotidiano Escolar.
com uma carência afetiva terrível. No fundo são
revoltados, não têm amor nenhum”. Bem, aqui eu
quero fazer um parêntese. Eu quero ressaltar
que a psicologia é o campo que mais avançou “Bom, chama a atenção a falta
nos processos de patologização da vida, inclu-
sive no terreno educacional. Inclusive o Conse-
de preparo de quase todos para
lho Federal e vários Conselhos Regionais de Psi- lidar com um assunto tão sério e
cologia e alguns Sindicatos de Psicologia têm tão polêmico, tão importante na
sido parceiros fundamentais nesse avanço. Eu
tenho que dizer que a área educacional não nos
vida profissional de todos”
ajuda praticamente em nada. Quem nos ajuda,
quem nos fortalece, quem enseja as nossas dis-
cussões e possibilita os nossos encontros é a Bom, chama a atenção a falta de prepa-
área de psicologia, eles têm sido parceiros fun- ro de quase todos para lidar com um assunto
damentais. Entretanto, se na psicologia esco- tão sério e tão polêmico, tão importante na
lar predomina a concepção de trabalho institu- vida profissional de todos. A maioria não tem
cional, na psicologia clínica ainda predominam preparo. As professoras não sabem, mas elas
concepções patologizantes. Eu sempre quero pensam que os outros sabem e se submetem.
fazer também um parêntese na minha fala di- Elas pensam que elas não sabem, e elas têm
zendo que, por favor, psicólogos, não a atendi- que ser empoderadas porque só elas são as
responsáveis por ensinar. Todos nós podemos trabalhando junto conosco. Para cada um dos
69
ajudar, mas quem ensina é a professora. Então problemas apresentados pelos professores e
um dos nossos trabalhos fundamentais é em- detectado no coletivo, os professores faziam o
poderar essa professora, porque ela pensa que levantamento de dados da sua própria escola
não sabe e ela se submete achando que o mé- e a partir daí aconteciam as discussões, trocas
dico sabe, que o psicólogo sabe. Vocês sabem, de experiências, proposta de ação, encami-

- parte 3
mas vocês não sabem ensinar. nhamento de estratégias baseadas em teorias

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
pedagógicas adequadas ao caso em questão,
Quem tem de ensinar é a professora. Os
sempre levadas a efeito de forma lúdica, atra-

e enfrentamento
outros, que não são vocês, claro, também não
ente e que trouxesse resolutividade e adesão
sabem, mas eles pensam que sabem, não é?

Psicologia em emergências
do corpo docente. Era um trabalho bastante in-
Esse é o problema, a maioria pensa que sabe.
teressante, porque eram duas equipes, a equi-
“Como pedagoga eu continuo no campo pe da escola e a equipe da universidade, que
educacional. Eu penso que para reverter esse interagiam respeitando os saberes e a realida-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


processo de patologização, minimizar e até su- de concreta de cada uma, em alguns momentos
perar esse tão velho e tão atual fracasso es- constituindo uma equipe única, em outros se
colar, será preciso cuidar seriamente da forma- diferenciando, mas sempre sem hierarquia, com
ção dos professores. Será na graduação ou na um trabalho de fato entre pares. Sem dúvida, o
educação continuada. É muito importante pre- desafio maior era para a equipe da universida-
parar para assuntos macros, então se estuda a de, que devia se despir de qualquer resquício de
psicologia, sociologia, política, filosofia, porém prepotência, de todo o saber, topando diálogo

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
existe uma necessidade premente de se voltar de teorias com a realidade concreta dessa es-
a olhar para dentro da sala de aula. É preciso cola em particular, a partir da assunção de não

Cadernos Temáticos
aprender as necessidades e possibilidades de ter a vivência de submeter seus conhecimentos
soluções do fazer no cotidiano da sala de aula, ao embate do mundo real, sem prepotência.
da praxis pedagógica. A meu ver a educação, a

Patologização
formação continuada em serviço deve ser um
trabalho coletivo, entre pares, em que podem “Estou convencida e tenho
estar juntos os fonoaudiólogos, os psicólogos,
médicos, quem tiver, no acompanhar do traba-
experienciado a necessidade de
lho docente de maneira respeitosa e compe- nos agruparmos, tendo em vista
tente, construindo conjuntamente o programa, determinados objetivos, desafios,
sempre a partir de necessidades e demandas e
utopias, enfim, pensar e agir

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dos problemas detectados na prática docente,
com o intuito de melhorar saberes e práticas de coletivamente nos fortalece”
todos os envolvidos na ação. Não o que vemos
com frequência, propostas de cursos distantes
Entretanto, falo aqui, não apenas só como
e desconectados do trabalho pedagógico, que
pedagoga, mas como alguém que se pretende
acontece naquela escola concreta com os seus
militante de uma causa mais ampla, a luta pela
problemas, suas dificuldades e possibilidades,
democracia, pela igualdade, equidade, pela jus-
mas desenhados a partir de interesses de pes-
tiça social, pelos direitos humanos, pela despa-
quisa ou de docência de professores da univer-
tologização da vida. Estou convencida e tenho
sidade, cursos e não formação conjunta, espa-
experienciado a necessidade de nos agrupar-
ços em que alguém que sabe ilumina os que não
mos, tendo em vista determinados objetivos,
sabem. E isso não deu certo há mais de 30 anos
desafios, utopias, enfim, pensar e agir coletiva-
e não dá certo”.
mente nos fortalece. Assim identifico, em minha
A título de exemplo, apresento uma expe- história de vida, que sempre fui constituindo e
riência que nós desenvolvemos. Após essa pri- construindo grupos de reflexão e ação. Hoje in-
meira pesquisa, fizemos uma outra que chama- tegro e sou militante do Despatologiza, movi-
va Construindo o Sucesso na Escola, e que nós mento de despatologização da vida. No Despa-
iniciamos com quatro escolas em Campinas, tologiza, nós realizamos reuniões mensais com
depois ela foi se espalhando por várias DREs espaço para discussões teóricas sobre temas
do estado de São Paulo. E nós tivemos 34 DREs escolhidos pelo grupo, seguido por discussão
de metas, propostas e ações. Isso é uma ação Bem, acho que para ampliar mesmo, os
70
pedagógica. Quem nos procura tem o interesse, nossos eventos não estão centrados apenas
mas ele traz consigo os resquícios da não for- na área educacional ou psicológica, mas temos
mação. Então, tentamos trabalhar a formação aberto para outros assuntos, para outras áre-
nesse grupo em que ele está interessado na as que também patologizam. Então também
ação. Porque a ação sem teorização é bobagem. temos participado de fóruns internacionais. O
E só a teorização, ela é inócua. Então é preciso Despatologiza é membro da Associação Latino-
juntar e fazer a práxis. E essa práxis é que nós Americana e Caribenha de Direitos Humanos e
temos tentado levar nas nossas reuniões. Nós Saúde Mental e também do Fórum Infâncias da
fizemos o protocolo, que a nossa coordenadora Argentina. Acho que esse espraiamento dessa
geral, que é a Rosangela Villar já trouxe pela ma- ideia ajuda para que possamos caminhar numa
nhã. Esse protocolo, ele foi implantado em Cam- sociedade menos patologizada.
pinas com muito sucesso. A dispensação de Me-
Mas nós temos desafios. Nós temos de
tilfenidato diminuiu mais de 70%, apenas com o
contextualizar, desnaturalizar a vida, valorizar
protocolo. Então foi muito importante. A cidade
e acolher diferenças. Controle social, defesa
de São Paulo implantou esse mesmo protocolo.
de direitos, ética, devemos bater sempre nes-
E nós conseguimos aprovar oficialmente esse
se ponto, politização e desnaturalização das
protocolo no estado de Pernambuco. Porém a
desigualdades. Temos também a nossa utopia,
Associação Pernambucana de Psiquiatria inter-
que é despatologizar a vida e repolitizar a vida.
viu e até hoje ele não saiu do papel. Ele está
Porém a gente vive tempos sombrios, tempos
aprovado, mas eles não deixam, né? Lá é uma
em que é fundamental politizar a vida, lutando
lei, não é só um protocolo, mas não consegue
por direitos, contra a destruição de políticas
sair porque a Associação dos Psiquiatras não
públicas, na defesa da universidade pública,
deixa. Bem, uma outra coisa importante que nós
de movimentos em entidades comprometidas
fizemos foi a alteração do edital do vestibular
com a democracia, a liberdade e a justiça so-
da Unicamp, para coibir os abusos na sessão
cial. Tempos em que, ao mesmo tempo em que
destinada à condições especiais de exame. Ele
comemoramos a eleição do Conselho Federal
então foi refeito para os anos subsequentes
de Psicologia para o Conselho Nacional de Di-
e os resultados são muito bons, conseguiu di-
reitos Humanos e para o Conselho Nacional de
minuir muito o número de alunos pedindo isso,
Saúde e também o Prêmio de Direitos Humanos
né? Então, eu destaco eventos, que nós fizemos
conquistado em 2018, também temos que nos
muitos, porém tem uma coisa importante, que
articular na defesa dos Conselhos de psicolo-
nós, nos últimos anos, desde 2016, temos co-
gia, eleitos alvos prioritários na caça aos de-
locado dentro dos nossos eventos. Nós come-
fensores de direitos. E vamos à luta. Temos o
çamos a aceitar trabalhos para apresentação
desafio de estarmos todos juntos, articulados,
nos nossos eventos e temos constatado um
interagindo, para nos fortalecermos. Temos que
aumento significativo dos trabalhos inscritos e
construir quilombos, temos que nos aquilombar.
aprovados. Começou em 16, com 14 trabalhos,
Muito obrigada.
em 17, 22, em 18, 48. Com isso, também, peda-
gogicamente, começamos a fazer com que os
nossos alunos e os professores, comecem se
interessar pelo tema, comecem a estudar e pro-
duzir trabalhos, aumentando então, espraiando
essa ideia. E acho que faz parte daquele traba-
lho de formiga, não tão pequeno, já maiorzinho,
mas que está interferindo, já está começando a
dar os seus resultados. E mesmo esse trabalho
aqui que nós fizemos com pessoas com defici-
ência na USP, este ano, também nós tivemos um
número significativo de trabalhos apresenta-
dos, e foi a primeira vez mesmo que inovamos,
trazendo pessoas com deficiência para partici-
par das mesas e estar na plateia, e houve uma
interação muito boa, foi muito interessante.
A Fonoaudiologia e a Medicalização da Educação 71

Vera Regina Vitagliano Teixeira


Possui graduação em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1972) e mestrado

- parte 3
em Fonoaudiologia pela mesma instituição (2004). É professora assistente mestre do Departamento de

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Clinica Fonoaudiológica e Fisioterápica da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC SP. Título
de especialista em Linguagem concedido pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia - CFFa. Exerceu a

e enfrentamento
Coordenação Didática do Curso de Fonoaudiologia da PUC SP de agosto de 2007 a julho de 2009 e a Chefia
do Departamento de Clinica Fonoaudiológica e Fisioterápica de agosto de 2011 a julho de 2015. Atualmente

Psicologia em emergências
ministra disciplinas nos Cursos de Fonoaudiologia, Fisioterapia e de Especialização em Psicopedagogia
da COGEAE/PUC SP. Tem experiência na área de Fonoaudiologia, com ênfase em linguagem oral/escrita,
motricidade orofacial e surdez, sendo que suas áreas de atuação envolvem a atividade clínica em consultório
e de assessoria em Fonoaudiologia Educacional. Tem interesse nos seguintes temas: linguagem, surdez,

CRP SPdas vidas: reconhecimento


formação e avaliação acadêmica, supervisão clínica, fonoaudiologia e educação. Faz parte da Associação
Palavra Criativa e, no momento, exerce a função de diretora geral. Atualmente é conselheira do 11º
Colegiado do Conselho Regional de Fonoaudiologia - 2a região, exercendo a vice-presidência do órgão.

Primeiro de tudo, agradeço ao CRP, a todas as


pessoas que me convidaram para estar aqui “O início claramente marcado por
com vocês.
determinada motivação política

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Venho da fonoaudiologia e quero falar da
nos fez também nos aproximarmos

e medicalização
nossa compreensão sobre a medicalização. É im-
de uma ideologia, que é a ideologia

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portante situar que a fonoaudiologia nasceu na
educação. Helena e Rossano já trouxeram algu- do bem falar, presente na nossa
mas informações sobre a década de 20, 30, época
sociedade até hoje”

Patologização
Vargas, em que havia uma questão importante, a
questão da unificação para fortalecimento do país
como nação. Naquele momento, era importante o
E aqui temos uma questão importante para
sentido de unidade e um dos aspectos necessá-
pensarmos. O início claramente marcado por de-
rios para isso era a unificação da língua. Nós tí-
terminada motivação política nos fez também nos
nhamos muitos migrantes e filhos de migrantes na
aproximarmos de uma ideologia, que é a ideologia
escola. E o que acontecia? Esses migrantes tinham
do bem falar, presente na nossa sociedade até

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suas próprias línguas e sotaques. Para que se ga-
hoje, não é? Para falar da ideologia do bem falar,
rantisse a força da língua nacional, um grupo de
vou antes trazer um exemplo de Marcos Bagno,
professores foi treinado para trabalhar, no âmbito
linguista, que, dentre outros temas, estuda muito
da educação, com crianças de modo a suprimir os
sobre preconceito linguístico. As pessoas do Nor-
estrangeirismos e o sotaque, o que, supostamen-
deste, em geral, têm uma característica no seu re-
te, traria a unidade pela língua.
gionalismo linguístico, muito comum, que é falarem
Isso começou a ser feito e outros aspectos “muitcho” para muito, certo? E esse “muitcho” é
começaram a ser observados em relação à lin- “muitcho” criticado também. Porém, por que é cri-
guagem dessas crianças e jovens que estavam ticado? “Ah, porque é nordestino, não sabe falar
na escola. E os professores, aqueles primeiros direito”. E quem sabe falar direito? É quem detém o
professores que trabalharam nessa linha, preci- poder, poder político e econômico; no nosso caso,
savam se aprimorar com alguns conhecimentos o Sudeste. Então, a fala do paulista, por exemplo,
para poder entender melhor o que acontecia com seria o padrão de fala correta. Porém, em São Pau-
as questões de articulação, de troca de sons, que lo, como é que chamamos uma pessoa que é irmã
aparecia na fala de muitas dessas crianças, jo- do pai ou irmã da mãe? É “tchia”, não é? “Tchia”,
vens e até adultos. Então, a fonoaudiologia foi se igualzinho ao “muitcho”, só que com outra vogal.
aproximando da medicina e nos tornamos profis- Mas ninguém fala mal do paulista falando desse
sionais da área da saúde. Afastamo-nos um pou- jeito, porque aqui temos poder político, social e
co dessa relação inicial com a educação, nos co- econômico. As classes dominantes frequentemen-
locamos como profissionais da saúde e até hoje te estão aqui, então este é o padrão que deve ser
somos assim entendidos na sociedade. tomado para uma fala correta.
É a partir desse lugar que a fonoaudiologia principais que aparece nos projetos de lei e em tra-
72
foi se constituindo. E, nesse sentido, fomentando balhos de identificação.
a ideia de que há uma forma de falar e de escrever
Baseado nessa perspectiva o que o fono-
também consideradas a norma padrão na socie-
audiólogo vai ter então? Diagnósticos precoces,
dade, a que ditaria como todo mundo tem de fa-
o uso de protocolos, a validação de resultados
lar e escrever. E tudo aquilo que se desvia, que sai
baseados em evidências e a patologização do
deste padrão, dessa norma é considerado patoló-
que foge à norma.
gico, desvio, erro. A explicação para aquilo que era
considerado desvio foi ganhando outras nuances. Mas existe uma outra perspectiva que se
Com o afastamento da motivação inicial e a apro- contrapõe a essa primeira, que tensiona a ideolo-
ximação com a medicina, fomos encontrando cau- gia do bem falar e que vai entender a saúde e o
sas orgânicas para esses desvios que facilmente uso da linguagem como uma possibilidade de com-
passaram a categoria de patológicos. preensão biopsicossocial. Baseado nisso, o fono-
audiólogo valoriza a singularidade, potencializa os
diferentes modos de ser, de falar, de escrever e de
“A ideologia do bem falar se aprender, aposta na promoção da saúde. Seu tra-
balho baseia-se no uso do diálogo, da palavra per-
mantém viva até hoje, com raiz suasiva; buscando entender o que acontece com
nas questões sociais e políticas, aquela pessoa naquele ambiente em que ela vive,
mas disfarçada de ‘doenças’, ou seja, todos os fatores que contribuem para que
ela seja daquele determinado jeito e use a lingua-
‘patologias’ a serem tratadas” gem daquela determinada forma.

Dentro desta perspectiva, buscamos ampliar


A ideologia do bem falar se mantém viva até o repertório cultural de um modo significativo para
hoje, com raiz nas questões sociais e políticas, cada sujeito. Se ele tem, por exemplo, uma dificul-
mas disfarçada de “doenças”, “patologias” a se- dade com o seu letramento escolar, não é incidindo
rem tratadas. Ao fonoaudiólogo cabe tratar sem no letramento escolar que vamos conseguir uma
questionar, eliminando os sintomas inadequados mudança, muitas vezes. É podendo entender por
ou trabalhar em outra direção. Pensar a respeito onde essa criança vai, o que ele usa no seu dia a
de fonoaudiologia e a ideologia do bem falar é dia em termos de escrita, em termos de leitura que
pensar também na medicalização nesse campo de não tem a ver, às vezes, tão claramente com re-
saber e atuação. Para falar mais disso, vou trazer lação àquilo que é feito no letramento escolar. E
um conceito de Bakhtin, filósofo russo que desen- esse é o caminho de se ampliar o repertório cultu-
volvia estudos sobre a linguagem, quando ele diz ral de modo que o letramento escolar faça sentido.
que diferentes modos de falar e escrever estão em
constante conflito com dois tipos de forças: as for-
ças centrípetas, que levam ao centro, ao padrão, e “Agindo desta forma, estamos
as forças centrífugas, que fogem ao padrão.
atuando nas forças centrífugas,
Parte dos fonoaudiólogos entende que é valorizando aqui o sujeito,
preciso levar os sujeitos à padronização da lingua-
gem em detrimento de compreender suas histórias
seus modos de ser, de falar e
de vida que justificariam seus modos singulares de de escrever, e não nas forças
falar e de escrever. Assim, existe uma forte tendên- centrípetas que puxam para o
cia na fonoaudiologia, um grupo na fonoaudiologia
que fala e que entende desta forma. Isso leva a
centro, para o padrão, para a
um olhar medicalizante do processo de aquisição, norma”
tanto da linguagem oral como da linguagem escri-
ta do sujeito. E com ações dentro desta ideologia,
desse olhar mais medicalizante, o que mais vamos Agindo desta forma, estamos atuando nas
observar? A necessidade de identificação precoce forças centrífugas, valorizando aqui o sujeito,
de riscos de quadros patológicos. Hoje de manhã seus modos de ser, de falar e de escrever, e não
já se falou um pouco sobre isso, Marilene e Helena nas forças centrípetas que puxam para o centro,
falaram dos projetos de lei, este é um dos pontos para o padrão, para a norma.
Retomando o paralelo entre as duas posições lhe falou assim, “nossa, como ele evoluiu! Ele tá tão
73
distintas já citadas. Na primeira, calcada na ideologia bem, que eu nem tenho ido mais na sala de aula olhar
do bem falar e na busca da padronização, há uma para ver como ele está”. Ou seja, ele já não está mais
relação entre a fonoaudiologia e medicalização, em naquele padrão do desvio, daquilo que fugiu à norma,
que as explicações são fundamentalmente orgânicas não precisa mais ser olhado. Esse é um olhar dentro
para explicar os fenômenos que são observados na um modelo biomédico, não é um modelo que pensa na

- parte 3
linguagem da pessoa; enfim, uma visão biomédica. Na promoção da saúde. Evidente que ele ainda precisa,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
segunda, não calcada na atenção à ideologia do bem como todos os outros, ser olhado. Não é ser olhado
falar, há potencialização do sujeito na sua singulari- apenas porque tem uma questão que está fugindo à

e enfrentamento
dade, sendo os fenômenos observados na linguagem regra, que está fugindo ao padrão, não é?

Psicologia em emergências
compreendidos a partir da sua história de vida, dos
aspectos sociais, políticos, econômicos, ambientais e O segundo caso é o do Lucas, 12 anos, estudan-
relacionais que a compõem. te do sétimo ano. O Lucas chegou para mim já tendo
passado por algumas etapas, chegou para o atendi-

CRP SPdas vidas: reconhecimento


Retomando o que Rossano trouxe muito bem mento fonoaudiológico porque ele tinha dificuldades
sobre a questão do DSM, na Fonoaudiologia usamos escolares. Ele já tava há cinco anos em atendimento
dois instrumentos de classificação conhecidos dentro psicopedagógico e as questões não se resolviam. A
da área da saúde. Um deles é o CID, cuja referência família procurou um serviço que fazia uma avaliação
é a doença, um olhar para a sintomatologia e para a multidisciplinar. Alguns exames foram solicitados,
deficiência, para aquilo que não está bem; é, portanto, audiometria, processamento visual, processamento
um instrumento de um modelo biomédico. O outro é auditivo, exame neurológico, (EEG). O único que deu
a CIF, a Classificação Internacional de Funcionalidade,

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uma alteração foi a avaliação do processamento au-

e medicalização
cuja referência é a funcionalidade, que procura ampliar ditivo, que apresentava uma imaturidade das funções
o olhar para aquela pessoa. “Qual é a sua participa- de integração auditiva. Lá nesse serviço ele passou

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ção? Qual é a sua singularidade? Que fatores ambien- por uma avaliação neuropsicológica, passou também
tais podem auxiliar, podem limitar, podem capacitar, por avaliação de linguagem, que deu como conclusão
podem incapacitar?”; enfim, entender melhor o que

Patologização
um quadro importante de desatenção e dislexia. Esta
acontece com essa pessoa, sendo, dessa forma, um avaliação estava baseada apenas e exclusivamente
instrumento de um modelo biopsicossocial. em aspectos biomédicos. Na medida em que ele che-
Essas são algumas questões para pensarmos gou para mim, fui tentar entender um pouco melhor o
um pouco sobre como reconhecer brechas que po- que acontecia com esse garoto.
dem ampliar a nossa visão desse tensionamento en-
Então sob um olhar desmedicalizante, a história
tre práticas medicalizantes e desmedicalizantes no
pode ser diferente. Como os pais já tinham dito que

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campo da saúde.
o problema havia começado durante o período de al-
Dois casos para ilustrar melhor essa perspecti- fabetização, eu fui tentar entender um pouco o que
va que tensiona a ideologia do bem falar. tinha acontecido nesse momento da alfabetização.
Segundo a mãe, ele estava, naquela época, numa es-
Eu atendo um garoto de três anos de idade,
cola de orientação construtivista e já tinha começado
estamos em seis ou sete meses de atendimento. Ele
a apresentar algumas dificuldades, segundo ela, que
chegou para mim com a queixa de que ele falava mui-
a própria escola estava dizendo, daí já ter começado
to pouco e as pessoas não entendiam o que ele fala-
uma avaliação psicopedagógica e o tratamento. E ela,
va. Fui conhecer essa criança e, logo em seguida, fui
já sabendo dessas dificuldades, achou por bem que
à escola, onde tem uma fonoaudióloga que me disse,
ela podia fazer um trabalho em casa, então comprou
“ele não tem linguagem, essa foi a questão de a gente
uma cartilha e começou a alfabetizar essa criança.
ter encaminhado” ao que respondi, “não, eu entendo
que ele tem uma linguagem própria”. Durante esses Então, nesse momento, temos de parar para
seis, sete meses fomos desenvolvendo o trabalho e pensar, primeiro, o quanto esta mãe desautorizou
ele foi modificando esta linguagem, entendendo quais os professores, educadores de uma escola que ela
os processos que estávamos trabalhando, respeitan- tinha escolhido para alfabetizar seu filho. E depois,
do o que ele trazia, valorizando a sua possibilidade e como fica para uma criança dois referenciais tão di-
mostrando que ele era um sujeito falante, já era um ferentes de alfabetização? Porque a cartilha foi algo
sujeito falante, mas que ele tinha de ser melhor com- bem tradicional, numa metodologia que ia diametral-
preendido. Recentemente, a mãe me disse que ela mente oposta à construção da linguagem, das hipó-
havia encontrado com a fonoaudióloga da escola que teses da escrita realizada na escola. Ou seja, ele não
foi compreendido nesse momento. Talvez a escola com todas as informações, trazia dados dos lugares
74
também não o tenha entendido o suficiente, mas a que conhecia. Tanto que usamos todo esse seu co-
família teve um papel preponderante nesse senti- nhecimento para criar atividades terapêuticas.
do. É importante esclarecer que ele era de família de
Então o que que eu fiz? O meu ponto de parti-
origem japonesa, que cultivava muitos valores cultu-
da, e que é um olhar que procuro ter, é valorizar aquilo
rais e ambientais. Frequentava uma escola domini-
que é atividade principal fora da escola. O que ele faz,
cal budista, fazia aulas de japonês, seu convívio era
fora da escola, onde ele passa mais tempo? A partir
basicamente com os familiares e alguns amigos da
desta ideia, fui construindo possibilidades com esse
família. Quando perguntado se ele saía com amigos,
uso das mídias, das redes sociais. Começamos a fa-
sua resposta era “não”, o tempo inteiro ele ficava
zer o trabalho em cima dessa potencialidade para
só nessas relações do contexto familiar. O convívio
que depois chegássemos àquilo que queríamos, que
com amigos era apenas na sala de aula, no período
era potência para olhar o letramento escolar. De fato,
que ele estava na escola. Podemos dizer que ele ti-
esse caminho foi sendo uma possibilidade para ele se
nha uma redoma em volta dele em relação à questão
expressar cada vez mais neste letramento escolar.
de ampliar seus horizontes culturais. Se ele fosse
para outros espaços, poderia também ter uma ou-
tra representação nesses espaços e ser valorizado,
acolhido e respeitado na sua individualidade, na sua
“É a partir desta potência que
singularidade. vamos ampliar e poder trabalhar
No decorrer do trabalho, vou começando a ver depois com aquilo que é a sua
um outro garoto e outras questões. Ele tinha uma dificuldade, a sua questão”
irmã mais velha, brilhante nos estudos, e o tempo in-
teiro ele era comparado a ela. Ele trazia nas situações
de terapia: “mas eu sou burro mesmo, eu não sei ler, eu
Fui acolhendo seus movimentos singulares
não consigo ler”, teve uma situação em que ele falou,
para fortalecê-lo no enfrentamento das suas dificul-
“eu tenho que ler um livro, eu não consigo”, falei, “então
dades pontuais de leitura e de escrita. Este é o pon-
vamos ler juntos”. Quando era sua vez de ler, pergun-
to que temos como premissa para fazer o trabalho
tava se tinha lido e a resposta era “Li. Ah, não lembro
nesse tensionamento da ideologia do bem falar. Pro-
nada”. Mas em seguida começava a falar e o que eu
pomos a criação de espaços terapêuticos de lingua-
percebia é que tinha uma memória ótima, lembrava
gem oral, de linguagem escrita a partir daquilo que é
de todos os fatos que eu já havia lido, e sustentava
fundamental para a criança, naquilo em que ela pode
a conversa sobre a comparação das nossas leituras.
se mostrar potente. É a partir desta potência que va-
Sua autoestima também era algo que estava ali bas-
mos ampliar e poder trabalhar depois com aquilo que
tante comprometido: suas dificuldades mostravam-
é a sua dificuldade, a sua questão. Era isto.
se sempre mais gritantes do que suas potencialida-
des, o tempo inteiro. Só mais uma coisa importante. Como eu falei,
eu estou no Conselho de Fonoaudiologia, no Conse-
A ideia era sempre ampliar o olhar para ou-
lho Regional, Crefono 2, e temos levado com muito
tras questões. Então, se ler livro não era uma coisa
mais frequência o debate sobre desmedicalização,
interessante, o que ele gostava de fazer? “Ah, eu
ou seja, tratar da medicalização e das possibilidades
gosto de jogos... eu jogo na internet, tenho os vide-
de outra forma de enfrentamento. No Conselho Re-
ogames da vida”. Fui descobrindo que gostava das
gional e no Sistema de Conselhos temos uma ges-
redes sociais, tinha familiaridade com essa tecno-
tão que está sensível a essas questões conseguin-
logia, sabia fazer busca. Ou seja, existia um outro
do capilarizar a discussão sobre a medicalização e
letramento que era potente, mas que era pouquís-
um enfrentamento a ela. E temos conseguido levar
simo valorizado tanto pela escola quanto pela fa-
essa discussão para esse espaço que entendemos
mília. Então, fomos construindo esse universo com
ser fundamental: o da aprendizagem da escrita. Fica
ele, mostrando e valorizando esse outro lado de
aqui uma ideia que gostaríamos que todos levassem
potência que ele demonstrava ter.
adiante. “Onde há lógica, potência e curiosidade, não
Ele tinha uma linguagem oral bastante compe- há dislexia”. Temos de difundir isso. Isso é muito im-
tente, que também não era valorizada, e tinha um re- portante, porque sempre que a criança escreve, te-
pertório interessante do ponto de vista cultural. Sua mos de tentar entender qual foi a sua lógica. Sempre
família viajava muito para fora do país e ele sabia lidar há uma. Muito obrigada pela atenção.
Debate 75

- parte 3
Psicologia em emergências e desastres

Psicologia em emergências
CRP SPdas vidas: reconhecimento e desastres
e enfrentamento
Anabela Almeida Costa e Santos Peretta: Obri- para buscarmos espaços potencializadores, inclu-
gada, Vera. Encerramos agora essa etapa de sive na área da pedagogia também. Como esta-
participação da mesa com falas de áreas de co- mos distante da escola, distante dos professores,
nhecimento, que tantas vezes compõem uma dos alunos e como poderíamos ter um outro olhar

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e medicalização
despotencialização da escola, dos professores, para tudo o que acontece na escola. Não sei se
dos estudantes, mas que também trazem uma eu tenho alguma pergunta, mas eu tô aqui ainda

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possibilidade de compor essa potência, esse impactada com todas as falas. Mas queria proble-
fortalecimento, essa recuperação da educação matizar isso, de não deixarmos esse momento fi-
como um espaço político. Estamos com o micro- car só aqui, de pensarmos numa reprodução dele

Patologização
fone aberto para que possamos ter um momento em outros espaços. Eu já fiz uma proposta, inclu-
mais coletivo também. sive, uma proposta pensando nessa perspectiva,
para levarmos para o Conselho de Psicologia, de
Ione Xavier: Ione de Sorocaba falando. Es-
estarmos mais vezes juntos. Nós vamos ter o en-
tou encantada com a riqueza das falas, com a
contro da Abrapee no ano que vem, em Sorocaba,
riqueza dessa mesa e me perguntando se vocês
então estão hiper convidados. Com certeza, eu fi-
todos não podem ir para Sorocaba para travar-
quei pensando no seu trabalho, Cecília, de leva-lo

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mos uma luta lá, gente. Porque olha, é tamanha
para lá. Ia ser muito reconfortante para a cidade
potência do que vemos de possibilidade desse
ter essa mesa lá, sabe? Obrigada, gente.
discurso interdisciplinar na mesma causa, pen-
sando nessa questão de luta contra essa tendên- Vera Regina Vitagliano Teixeira: Ione, eu
cia medicalizante que está aí e nos engole muitas acho que você tem razão naquilo que você fala.
vezes. Esse saber dividido, que ouvimos aí de mui- Nem tem curso de fonoaudiologia lá ainda, não
tas formas, e o olhar também para essa criança é? Parece que estão querendo fazer. Mas exis-
me faz pensar que ainda precisamos desconstruir tem fonoaudiólogos, que talvez estejam em ou-
muito. Muito na nossa formação, no nosso diálogo tros espaços que não o educacional, não sei.
entre si. E eu acho que é esse tipo de proposta Tem um serviço que trabalha com a deficiência
que pode ir abrindo caminhos, sabe? Eu fico pen- auditiva lá. Enfim, eu acho que é importante. E
sando na realidade de Sorocaba sempre, porque hoje cedo, assim que a Marilene falou, eu pedi
a área médica não conseguimos acessar, muito a palavra, falando da formação. Nós duas está-
difícil ter parceiros na área médica, fonoaudiólo- vamos conversando de propor um encontro in-
gos, viu, Vera? Há muito poucos na cidade. Nós terprofissional, acho que a educação podia tam-
fizemos uma roda de conversa lá com os psis de bém estar junto nessa proposta de fazermos um
Sorocaba e vimos a angústia das psis da rede, encontro interprofissional mesmo, intersetorial,
porque não tem para quem encaminhar. Prefeitura para discutir essas questões. Estou disponível,
não tem um fonoaudiólogo sequer. Aí eu fico pen- a hora que você quiser, tanto eu como a Lucia,
sando também se esses diálogos, não temos de ir o Jason, nessa área, estamos disponíveis para
travando de forma mais efetiva entre Conselhos, poder conversar cada vez mais sobre isso.
Cecilia Collares: É, eu acho que esse en- na ou de Sociedade Brasileira de Psiquiatria. Há
76
contro é extremamente importante, mesmo para muito pouca abertura para noções mais críticas
acordar a área educacional e levar um pouco de a respeito do saber que é produzido e é dissemi-
alento. Porque, na realidade, as professoras, elas nado pelo próprio campo, até por uma série de
parecem querer milagre, não? Elas ficam sem sa- conflitos de interesses, a relação íntima entre
ber como fazer e ficam apelando para os outros essas sociedades com a indústria farmacêutica,
profissionais, na tentativa que eles possam aju- por exemplo, é um desses conflitos de interes-
dá-las, quando, na realidade, a resolução está no se mais intensos hoje em dia. Eu, pelo menos lá
diálogo e na troca entre profissionais. E tem de no Rio, tenho conseguido uma abertura maior de
começar, porque em todas as áreas existe uma diálogo dentro do campo, maior abertura. Inclu-
certa relutância, porque é sempre alguma coisa sive, acabamos de ter o Consoperj, o Congresso
a mais nas nossas atribulações do dia a dia. Mas da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de
acho que é extremamente viável, tem muita gen- Janeiro, há três semanas. Embora não seja, por
te trabalhando com isso, tem muita gente preo- formação, pediatra vim da psiquiatria para psi-
cupada com isso. Eu acho que precisa descobrir quiatria infantil. Eu faço parte do comitê, mas
quem está junto para poder estar discutindo e faço parte do Comitê de Saúde Mental, é um
propondo trabalho conjunto de ação. E nesse comitê pequeno, o Comitê da Sociedade de Pe-
momento agora, é o que eu disse, temos que nos diatria do Estado do Rio. E, no congresso, acon-
aquilombar, juntar pessoas que tenham a mesma teceu uma mesa em que eu fui apresentar um
posição e que possam fazer a diferença, porque tema sobre medicalização do comportamento. É
senão, não sei. um tema que, hoje, por exemplo, no congresso
da Associação Brasileira de Psiquiatria é impos-
Anabela Almeida Costa e Santos Peret-
sível, se você propuser esse tema, ele vai ser
ta: E eu fico pensando até no quanto esse é um
vetado na primeira avaliação e você entra para
modo estratégico de estarmos juntos, de pensar
lista negra da sociedade, ponto final. Mas você
como é que não acabamos sendo criminalizados,
tem, no campo da pediatria, uma entrada maior,
de como é que podemos encontrar formas de
mas, mesmo assim tem coisas difíceis. Só para
se manifestar que sejam as possíveis e as que
dar um exemplo. A Sociedade Brasileira de Pe-
produzam de fato efeitos. Eu acho que é um mo-
diatria tinha, como temos lá no Rio, um Comitê
mento de pensarmos junto mesmo nesses mo-
de Saúde Mental, que é o nacional. O Comitê de
dos de manifestação, de ação, não é?
Saúde Mental foi, de certa maneira, tomado por
Maria Rozineti Gonçalves: Pensando um um determinado grupo e agora ele chama Comitê
pouco na história da nossa formação, falamos de Comportamento e Desenvolvimento, alguma
dos desafios do professor na formação do fono- coisa assim, o que já mostra um certo enviesa-
audiólogo, do psicólogo. Queria saber um pouco mento. Acho que é possível fazer alianças pon-
na psiquiatria, se também é pensado na questão tuais específicas, tentar identificar aliados lo-
dos desafios para a medicina não só no cam- calmente, no estado e nacionalmente no campo
po da psiquiatria, mas da neurologia, porque na médico e tentar estabelecer essas alianças. Eu
educação o encaminhamento direto, muitas ve- acho que tem outras associações, a Associação
zes, é para o neurologista e, às vezes, também Brasileira de Saúde Mental, você encontra pro-
para o psiquiatra. Como pensar na possibilidade fissionais, inclusive, médicos, Associação Brasi-
de um coletivo interconselhos, que a formação leira de Saúde Coletiva, a Abrasco, também é ou-
considere outras dimensões que não só a bio- tra sociedade onde as parcerias são possíveis.
lógica? Embora saibamos do avanço das neuro- Então há, como a Cecília falou, fissuras onde é
ciências, e não estamos contestando isso, que possível fazer esse tipo de interlocução.
ela também não sirva como única via, como dis-
Oradora não identificada: Eu falo num pa-
se a Helena, da verdade absoluta para todos, na
pel de discente. Acho muito importante realmen-
linearidade de causa e soluções dos problemas,
te esse fortalecimento dentro da preparação do
enfim. Queria ouvir um pouquinho.
psicólogo, porque vejo que, quando tem a disci-
Rossano Cabral Lima: Bem, acho que es- plina de psicologia escolar educacional, ela mexe
sas parcerias envolvendo o campo médico talvez muito com todos os nossos conceitos. É uma
sejam um pouco mais complicadas se pensar- disciplina que acaba tendo muito mais conflito,
mos em termos de Conselho Federal de Medici- dentro da sala de aula. Traz muitas realidades
que, às vezes, as pessoas não estão preparadas parar para isso? Vai fazer uma clínica. E nós já
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para ver ou não querem ver e a forma como o tivemos uma época dessa, na década de 70, 80,
campo de atuação do psicólogo escolar é apre- foi um horror. E, no Rio de Janeiro, também, há
sentado, às vezes, traz desmerecimento e causa muito pouco tempo se colocou psicólogos na
falta de interesse do novo profissional, do futu- rede municipal, foi um terror, e por quê? Porque
ro profissional de psicologia, de estar atuando infelizmente a formação avançou, mas ainda é

- parte 3
dentro do ambiente escolar. Então, realmente eu pouco para o contingente da escola, porque é

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
acho muito importante que tenha esse pensa- muita, é muita escola e muita necessidade, mas
mento dessa preparação do futuro profissional tem que haver uma formação. Acho que temos

e enfrentamento
de psicologia, porque se não abrirmos a mente de lutar muito para as nossas formações, tan-

Psicologia em emergências
para a questão de contextualização, de desnatu- to do educador como do psicólogo. E acho que
ralização, vai estar sempre voltado para o aten- você tem razão quando você fala da dificuldade
dimento clínico e não vamos conseguir modificar da medicina, porque infelizmente o status social
e trabalhar essa questão da medicalização. do médico permite determinadas coisas. Vemos

CRP SPdas vidas: reconhecimento


que o médico é ameaçado, inclusive, né? Tem um
Anabela Almeida Costa e Santos Peretta:
amigo nosso, neurologista, que simplesmente foi
Eu também sou professora de psicologia escolar,
ameaçado pelos seus pares, exatamente porque
e entendo que a psicologia escolar teve muito
estava dizendo da medicalização publicamente.
esse lugar, até na história da psicologia, de es-
Quer dizer, é proibido um médico com algum re-
tar à frente de questionar esse lugar ideológico
nome se manifestar em meios de comunicação a
que a psicologia foi ocupando e, estando à fren-
favor da nossa vertente. Então isso é uma coisa
te de uma série de revisões, de reformulações

Cadernos Temáticos CRP SP

e medicalização
que nós temos de discutir para ver o contexto no
no modo da psicologia se colocar. Entendo que
geral, para que não aconteça um enviesamento e
outras áreas também têm feito isso, a psicologia

Cadernos Temáticos
que vá contra aquilo que pensamos, certo? Esse
escolar não está sozinha. Mas, em relação ao que
é um problema.
você traz, da questão da inserção do psicólogo
na educação, essa é uma luta, é uma luta grande.

Patologização
Mônica: Acho que uma coisa importante
A Marilene aqui, pode contribuir em relação ao
que aconteceu na área da psicologia, em 2013,
projeto de lei, que está em tramitação desde o
foi termos construído as nossas referências
ano 2000, que foi reformulado em 2007, o 3688, e
técnicas para atuação do psicólogo na educa-
que prevê a inserção dos psicólogos nas equipes
ção básica. Esse documento foi, pela primeira
de educação. Essa é uma batalha política que eu
vez na história da psicologia, do Sistema Con-
entendo que é importante realmente. Hoje temos
selhos, construído coletivamente por cinco mil
vários municípios que não têm a psicologia na

Cadernos Temáticos CRP SP


psicólogos de todo o Brasil, não é? Ele tem uma
educação, na Secretaria de Educação. Também
discussão bastante crítica sobre que escola é
conduzimos uma pesquisa, já há algum tempo,
essa que nós queremos, qual é o trabalho que
no período de 2008, em que identificamos que
nós devemos fazer na escola. Então nós já te-
são poucos os municípios, menos da metade,
mos as nossas referências. Elas precisam ser
no estado de Minas Gerais, que têm psicólogos
trabalhadas na formação de psicólogos; estão
nas suas redes de educação. Muitos municípios,
sendo trabalhadas na formação de psicólogos,
apesar de terem, têm um número muito peque-
mas temos de ampliar cada vez mais essa dis-
no, nem sempre a gente pode falar de equipes
cussão. E se nós pensarmos, todos os profissio-
realmente. É um campo a ser ampliado, a ser for-
nais têm os seus problemas, e se nós levarmos
talecido também. Não sei o quanto a gente vai
isso como argumento, nós não vamos ter profis-
conseguir agora nesse momento.
sionais em lugar nenhum, não é? Porque todos
Cecilia Collares: Vou botar um pouquinho a os profissionais têm dificuldades. O professor
colher aí. Eu acho que a fala da estudante é mui- tem dificuldade para ensinar, o fonoaudiólogo
to importante. Porque vamos imaginar que abris- tem uma parte crítica e uma parte não, o mé-
se agora, então, vagas para psicólogas na rede dico tem uma parte crítica, uma parte não. En-
educacional. Sem essa mudança de mentalidade tão todas as profissões nossas nasceram das
numa parte grande da formação desses alunos, mesmas raízes. Isso que o professor trouxe, nós
o que seria da escola? Um centro de saúde, não todos fomos influenciados pelo higienismo. Os
é? Então, é preciso ver as duas pontas. Como é professores foram influenciados, os médicos
que você abre o espaço na educação sem pre- davam aula para os professores, não é? Então
essa pedagogização da medicina e essa medi- cos, a Marisa Rocha, que era uma grande parcei-
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calização ou patologização da educação é his- ra nesse campo, se aposentou, saiu do campo.
tórica no Brasil. Todas as nossas profissões fo- Está sendo muito boa essa experiência de dar
ram influenciadas, ninguém se salva. Então, qual aula lá e trazer a experiência de São Paulo, a ex-
tem sido o trabalho das profissões? Tem sido periência de outros lugares que têm uma discus-
levar essa crítica o máximo que pudermos para são bem fortalecida, eu percebo isso. Porque é
todos os lugares, que é o que temos feito. E não aquela disciplina que ninguém quer dar, que nin-
só levar a crítica, acho que é isso que foi fala- guém quer fazer. Agora estou numa campanha,
do um pouco hoje pela Helena aqui, nós temos lá na faculdade que eu dou aula, de trazer essa
a denúncia e o anúncio, que é foucaultiano e é disciplina mais para o meio da formação. Porque
freireano também. Paulo Freire disse isso, nós ela acontece lá no final, quando o aluno já esco-
temos de denunciar e temos que anunciar. E eu lheu o estágio, já está em clínica, enfim, já não
acho que as nossas áreas têm caminhado na di- quer mais saber desse assunto de escola, não
reção das propostas deste anúncio. Tem muito a é? Eles têm concordado comigo, quando a cada
caminhar, porque, lógico, o outro lado também se semestre eu falo sobre essa questão do currícu-
organiza, não é? O lado do biologicismo, o lado lo também. Não basta ter a disciplina, que lugar
de defender posições que são cada vez menos essa disciplina ocupa no currículo? Isso também
contextualizadas social e historicamente. Eles é importante pensar. Na UFRJ, era no nono perí-
estão se organizando também, mas nós esta- odo, então para que, não é? É só para constar.
mos fazendo a nossa parte. Hoje nós estamos Agora, nessa faculdade que eu trabalho, eu te-
aqui num sábado à tarde pensando essa ques- nho me dedicado tanto, que eles me deram as-
tão, então isso não é pouca coisa. Nós estamos sim de presente, eu estou formulando uma ele-
muito envolvidos com todo esse movimento. En- tiva, da minha cabeça, que eu posso inventar o
tão acho que todas as ações no sentido de uma que eu quiser, olha que coisa boa. E vou fazer a
formação continuada são fundamentais, porque ementa, fiz a ementa da disciplina de psicologia
nós temos de atingir o máximo possível de pes- escolar educacional que, por enquanto ainda é
soas que nós pudermos, certo? E essa é uma ta- junto, e eu pretendo separar em algum momento.
refa nossa e a gente fica muito contente de ter Enquanto eu estiver lá, né? Porque com esse ne-
vários estudantes aqui conosco hoje. gócio de Escola sem Partido, daqui a pouco vão
me mandar embora, porque eu não posso ficar
Anabela Almeida Costa e Santos Peretta:
falando nada e eu falo.
Só complementando, a psicologia escolar hoje
tem uma produção vastíssima e muito propo-
Anabela Almeida Costa e Santos Peretta:
sitiva em termos do que se fazer na escola, de
Pensando um pouco mais sobre essa questão
como se relacionar com a educação. Então acho
de em que momento da formação a psicologia
que já temos aí a possibilidade de produzir uma
escolar está, lá na UFU, na Federal de Uberlân-
reflexão numa outra direção. Isso é algo impor-
dia, temos no sexto período, no meio do curso.
tante de marcar.
Me parece muito bom o momento, não? Eles já
Helena Rêgo Monteiro: Duas coisas. Es- tiveram várias disciplinas de aprendizagem, de-
sas referências podiam ser reeditadas, não? Eu senvolvimento e aí vão ter escolar, e ainda tem
trabalho com os meus alunos em estágio as re- a possibilidade de fazer uma ênfase nesse dire-
ferências, lemos junto. É muito legal, é um ma- cionamento. Mas uma coisa que eu sempre digo
terial muito legal. E lá no Rio de Janeiro temos para os meus alunos é assim, “tudo bem, você
um problema sério, que é a ausência dessa dis- não tem interesse no campo da educação, mas a
ciplina, de psicologia escolar educacional. Agora, gente tá numa sociedade em que a escola tem um
na UFRJ, teve um concurso que entrou uma pes- papel fundamental. Ela tem uma marca na vida de
soa, que eu espero que seja bem bacana, enfim. todos com quem você for se encontrar. E se você
Mas antes eram professores substitutos, era se encontrar com quem não passou pela escola,
uma disciplina que ninguém queria. Lá nós temos aí ela tem uma marca talvez ainda maior, que é do
esse problema. Na UFF, por exemplo, a disciplina desejo, da ausência, do ‘não pude’, do ‘não nas-
não tem nome “escola”, não tem nada, são pro- ci pra isso’, né? Então não tem como nos tornar-
cessos institucionais, enfim, não tem nada que mos psicólogos sem estudar a psicologia escolar”.
traga a referência da psicologia escolar. Na Uerj, A escola nos marca, ela é muito importante na
por exemplo, que são os nossos espaços públi- nossa vida.
Mônica: Então, eu sou professora na Unip. lacionadas à vida e aos modos de viver, nas
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A Universidade Paulista é muito grande, tem em disciplinas de psicologia do cotidiano e PSS.
vários lugares do Brasil. São 25 cursos. É um Então, de algum modo, a psicologia escolar,
curso em 25 campi, são vários lugares de São quando começamos a trabalhar nessa vertente
Paulo capital, interior de São Paulo, Brasília, Ma- crítica, vem influenciando as outras disciplinas
naus e Goiânia. E existe um sistema de liderança que acabaram incluindo textos que trazem essa

- parte 3
de disciplina e eu sou líder da disciplina de psi- discussão. Tenho muito orgulho mesmo de tra-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
cologia escolar. Junto com os professores que balhar com a Mônica nessa disciplina e deste
ministram essa disciplina nós montamos uma modo como é dado. Sei que não são todos os

e enfrentamento
ementa, que é utilizada durante todo o curso e professores que querem dar, tem os professo-

Psicologia em emergências
depois questionada, revista, e segue toda uma res falando, “não, isso aqui... não, não, quero fa-
perspectiva crítica de atuação do psicólogo es- lar dos problemas da aprendizagem”. Porque tem
colar. Só que não é uma disciplina. A disciplina de professores de psicologia formados com uma
psicologia escolar acontece no sexto semestre, outra escuta, com um outro olhar, e que bom

CRP SPdas vidas: reconhecimento


mas há um conjunto de disciplinas dentro de um que eles não deem, que deixa que quem gosta,
eixo, a partir das diretrizes, que forma o psicólo- quem acredita possa trabalhar, não é? A psico-
go para atuar em processos educativos. Então a logia escolar tá no lugar certo aqui na Unip. Te-
psicologia escolar não está sozinha, não é uma nho percebido que quando os estudantes vão
disciplina. Tem psicologia do desenvolvimento, para disciplina de psicodiagnóstico, no semes-
psicologia da aprendizagem, educação inclusi- tre seguinte, eles estão mais críticos e dizem
va. Eu tenho a minha colega, Valéria Braunstein, “lá a gente vai fazer essa anamnese desse jeito,

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e medicalização
aqui na Unip, que é professora desse eixo de ah não, a gente quer ir na escola, porque a gente
disciplinas que forma o psicólogo para atuar em estudou com você que é importante ir na escola”.

Cadernos Temáticos
processos educativos, que não é só na escola. Tem mudado esta prática. E os professores têm
Porque os processos educativos acontecem na permitido e endossado que os nossos alunos
área jurídica, na área da saúde, na área da comu- vão às escolas na época do psicodiagnóstico.

Patologização
nidade. Então acho que pensar a psicologia es- Tem sido muito bom.
colar como uma disciplina isolada também não
Lilian Suzuki: Esse evento, que chamamos
é por aí. E me sinto feliz de ser professora de
de Eu Digo Não à Medicalização e à Patologi-
psicologia escolar, na Unip, como líder de disci-
zação da Educação, é o primeiro evento prepa-
plina. E o nosso currículo forma psicólogos para
ratório do Núcleo de Educação e Medicalização
uma atuação crítica. Então tem muito psicólo-
do nosso Conselho aqui de São Paulo para o
go aí. Eu hoje tenho 77 estagiários de psicolo-
10º Congresso Nacional de Psicologia. E é mui-

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gia escolar se formando, que estiveram comigo
to bom que possamos estar escutando, porque
no nono e no décimo semestre, e que estão se
ele também faz parte de um eixo, dentro do pla-
formando numa perspectiva crítica. Serão psi-
nejamento estratégico que nós temos, que fala
cólogos egressos muito bem formados. Só aqui,
da ampliação da inserção social do psicólogo. É
tenho no CPA aqui da Vergueiro, no CPA Pompéia
tão bonito quando escutamos essa diversida-
e no CPA Chácara Santo Antônio. Então só eu
de. Falamos tanto de diversidade, que bom que
tenho 77 estagiários de psicologia escolar, que
no final ficamos tão encantados com as falas.
foi o que eu apresentei numa mesa junto com
Acabamos discutindo um pouquinho menos,
a professora Roseli Caldas e a professora Silvia
abrindo menos um tempo de diálogo, mas talvez
Cintra, que também têm estagiários, mas numa
exatamente pelo encantamento da ampliação
proporção muito menor. Aqui estamos formando
da inserção que vamos tendo. Quero agradecer
psicólogos críticos.
muito a participação de vocês.

Valéria: Só queria complementar que essa Maria Rozineti Gonçalves: Quero agrade-
questão da psicologia escolar nessa vertente cer imensamente a Anabela, Cecília, Vera, Ros-
crítica acabou influenciando as outras disci- sano, a Cida também aqui presente, Marilene,
plinas. Temos textos que discutem a medicali- Mônica, e a Helena, e a todas vocês que pude-
zação na educação e na vida, na disciplina de ram vir e nos prestigiar, enfim, dando por encer-
políticas públicas; temos na disciplina que fala rado o nosso evento de hoje, meu agradecimen-
sobre psicologia social. Nas disciplinas que eu to em nome do Conselho Regional de Psicologia
dou, discutimos o Foucault e as questões re- de São Paulo.
Realização:

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