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cadernos temáticos CRP SP


Psicologia, laicidade do
Estado e o enfrentamento
à intolerância religiosa
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06

25
cadernos temáticos CRP SP
Psicologia, laicidade do
Estado e o enfrentamento
à intolerância religiosa

CRP 06 · São Paulo · 2019 · 1ª Edição


Caderno Temático n° 25 – Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa

XV Plenário (2016-2019)

Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira

Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)

Organização do caderno
Jamille Georges Reis Khouri

Revisão ortográfica
Andrea Vidal

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Relações Externas CRP SP

___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa.
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
28 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 25 )

ISBN: 978-85-60405-49-7

1. Psicologia e Laicidade. 2. Intolerância Religiosa. 3. Estado Laico. 4.


Fundamentalismo Religioso. 5. Racismo. 6. Espiritualidade. I. Título

CDD 150.1954
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar


um dos princípios que orientam as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogas/os; o segundo é o de identificar
áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
ser um espaço para que a categoria apresente suas posições e questiona-
mentos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção co-
letiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como
ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira


a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que
contaram com a experiência de pesquisadoras/es e especialistas da Psicolo-
gia para debater sobre assuntos ou temáticas variados na área. Reafirmamos
o debate permanente como princípio fundamental do processo de democrati-
zação, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os cami-
nhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes
em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como um fenômeno complexo, multideterminado e historicamente
produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite
à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas/os, bem
como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-
dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 25º Caderno da série. Seu tema é: Psicologia, laicidade do esta-


do e o enfrentamento à intolerância religiosa.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo


para o espaço coletivo informações, críticas e proposições sobre temas rele-
vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita


ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todas/os.

XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial


2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
16 – Psicologia e Segurança Pública
17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social
18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional
19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão
20 – Psicologia Organizacional e do Trabalho
21 – Psicologia em emergências e desastres
22 – A quem interessa a “Reforma” da Previdência?: articulações entre a psicologia e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores
23 – Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção
24 – A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise crítica da realidade brasileira
Sumário

Psicologia, laicidade do Estado e o enfrentamento à intolerância religiosa

07 Apresentação
Palestras

Democracia, laicidade e fundamentalismo religioso


08 Bruna Suruagy do Amaral Dantas

Espiritualidade, Religião e Laicidade do Estado


14 Henrique Vieira Passos

Racismo e Intolerância Religiosa: expressões subjetivas


19 Veridiana Machado

23 Franklin Felix de Lima


Apresentação 7

Comissão de Políticas Públicas - CPP CRP SP

em emergências
e o enfrentamento
CRP SPdo estado Psicologia religiosa
e desastres
à intolerância
A história da humanidade é estruturada pela his- pressam formulações culturais advindas de formu-
tória da divisão e hierarquização social, racial e lações religiosas, produzindo diferenciação e hie-
sexual entre os povos, mediados por inúmeros rarquização entre os distintos pensamentos sobre
processos objetivos e subjetivos que sustentam a função social do Estado.
nossa produção humana e cultural, inclusive com
Esse debate sobre a laicidade do Estado
a invenção ou identificação de “terceiros”, do “Ou-

laicidade
Brasileiro faz-se urgente, ao afirmarmos as condi-
tro”, do “Divino”, como quisermos compreender. O
ções de igualdade entre todas e todos no Brasil,
fato é que, nossa história, inclusive de organização

Temáticos
a não indução a convicções religiosas, a negação
da política e da vida comum nas cidades, perpassa

Psicologia,
de todas as formas intolerância religiosa. Por isso,
regimes teocentrados.
o CRP SP afirma e defende um Estado Laico, que
Em nome da centralidade religiosa, vivemos respeita a pluralidade e a cultura do povo brasilei-

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grandes massacres, violências, extermínios. Tudo ro. Somos expressamente defensoras da liberdade
em nome de instituições religiosas que assumiram de expressão religiosa individual, mas entendemos
a organização dos Estados-Nação. Tal cenário nos que nosso Estado é regido por princípios democrá-
exige refletir sobre qual a relação do Estado e da ticos previstos constitucionalmente em nossa car-
política com as religiões, e os riscos que essa pers- ta magna. Que nossas leis, nossas políticas, nos-
pectiva produz enquanto disputa por poder, narra- sas práticas (enquanto psicólogas e psicólogos)
tiva e existência. não serão respaldadas em princípios religiosos.

Na história, foram as mulheres e os povos O presente caderno é oriundo de discussões


africanos, ameríndios e pobres que foram violen- realizadas no Conselho Regional de Psicologia,
tamente oprimidos, explorados e exterminados, in- em que foram apresentadas intervenções/inter-
clusive em virtude de leituras e tensões religiosas. ferências de formulações religiosas no âmbito do
legislativo, que incitam em muitas vezes o ódio e a
As brasileiras e brasileiros têm em sua histó-
intolerância, produzindo cidadanias distintas para
ria a memória de africanos sequestrados de suas
mulheres, pessoas LGBT+, pessoas de religiões
terras; de indígenas, homens e mulheres mortos
não cristãs, crianças, adolescentes, idosos e pes-
em nome da civilidade e do desenvolvimento; de
soas com deficiência.
mulheres, consideradas bruxas, periculosas à so-
ciedade - essa é a nossa história, atualizada nas
É nessa seara que o CRP SP reconhece as
condições objetivas de vida do povo brasileiro, na
subjetividades marcadas por múltiplas experiên-
desigualdade de renda, de gênero e de raça que
cias psicossociais, que perpassam as relações
estrutura nossas relações sociais.
com a espiritualidade e com a religião. Enfrentar a
O Estado, enquanto ente responsável pela intolerância religiosa e o extremismo são deveres
garantia de direitos sociais e humanos de toda a éticos à profissão, por isso devemos superar as
população, por pressão popular vem responden- formas de violência e alienação e reafirmar a liber-
do com intervenções e políticas que enfrentam dade religiosa e a laicidade do Estado Brasileiro,
tais desigualdades históricas, produzindo (ou não) das políticas públicas e da intervenção das psicó-
violências ao instituir princípios e valores que ex- logas e psicólogos.
8 Palestras

Democracia, laicidade e
fundamentalismo religioso
Bruna Suruagy do Amaral Dantas
Professora de Psicologia Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre e
doutora em Psicologia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Pesquisadora dos discursos políticos e ideológicos da bancada evangélica na Câmara Federal

Pretendo discutir, nessa palestra, democracia,


laicidade e fundamentalismo religioso a partir da “A laicidade não representa a evasão
minha compreensão do funcionamento da banca-
da evangélica. Antes de iniciar minha exposição,
da religião da esfera pública, nem a
considero pertinente fazer uma ressalva: a minha privatização do sagrado, mas o fim
apresentação não diz respeito à totalidade da do monopólio religioso, a garantia
bancada evangélica, mas sobretudo aos atores
políticos que alcançaram visibilidade midiática e,
do livre exercício da fé, a defesa da
em função do prestígio político adquirido, colocam- tolerância religiosa, da pluralidade
se na condição de representantes da Frente Par- de crenças, cosmologias e cultos.
lamentar Evangélica, como se todos assumissem
uma posição homogênea e unívoca.
Portanto, a participação política
das religiões não é uma ameaça
Trata-se de um bloco heterogêneo, plural, múl-
tiplo, suprapartidário e interdenominacional. A ban- à democracia, contanto que se
cada evangélica é constituída por parlamentares de garantam os princípios da igualdade
diferentes matizes ideológicas; então, não é possí-
e da liberdade para todos os credos”
vel fazer uma afirmação genérica ou trabalhar com
generalizações. Por outro lado, a discussão requer
do fluxos e trânsitos de suplentes e titulares – em
algum tipo de generalização. Portanto, quero que vo-
alguns momentos, os suplentes assumem e, de-
cês saibam que estou fazendo referência, sobretudo,
pois, os titulares retomam suas cadeiras; esses
ao grupo mais conservador da bancada evangélica,
movimentos, então, produzem certa variação no
que hoje assume a liderança da frente parlamentar.
número de parlamentares. Nas eleições de 2018, a
É inquestionável o aumento da representa- liderança evangélica definiu estratégias eleitorais
ção política dos evangélicos no Brasil, que decor- a fim de ampliar a representação política e conso-
reu certamente do crescimento do número de fiéis lidar seu poder no cenário nacional. O desejo é de
nas últimas décadas. Assim, entendemos que, de que os parlamentares cheguem a 150 e os sena-
alguma forma, o aumento do número de fiéis se dores, a 15 (hoje são 3).
transformou em capital eleitoral, conferindo força
É nesse contexto de envolvimento dos evan-
política às igrejas evangélicas desde 1990 até o
gélicos com a política e de seu interesse em pro-
presente momento, ampliando sua representação
tagonizar episódios de relevância nacional que
nas eleições e instâncias legislativas do país. A
reacende o debate moderno acerca dos perigos
cada legislatura, a bancada ganha volume e desen-
da confessionalização da política e da politização
volve estratégias para estender seus tentáculos.
da religião para a consolidação da democracia.
Na 55ª legislatura, identificamos aproxima- Discursos modernos sempre apresentaram a reli-
damente 93 integrantes da bancada, consideran- gião como uma grande ameaça ao progresso cien-
politicamente do debate democrático, não cau-
9
“Regulação política, jurídica e sando necessariamente danos aos princípios da
institucional das relações entre a laicidade do Estado, do pluralismo ideológico e da
livre manifestação religiosa. Por isso, os evangéli-
Igreja e o Estado, à emancipação do cos não devem, obviamente, ser proibidos de atu-
Estado e dos serviços públicos em ar no campo da política e de participar do debate

religiosa
relação aos poderes eclesiásticos, público. Excluí-los da cena pública e impedi-los de

e desastres
à neutralidade das instituições agir politicamente seriam procedimentos antide-
políticas, à autonomia dos poderes mocráticos. Qualquer forma de exclusão compro-

à intolerância
políticos e religiosos e à concessão mete a democracia.

em emergências
de tratamento igualitário às Um exemplo foi a notícia divulgada ontem so-
diferentes agremiações religiosas, bre a decisão do Supremo Tribunal Federal de can-

e o enfrentamento
além das liberdades de consciência, celar os títulos eleitorais de 3,4 milhões de brasi-
leiros3. Por questões burocráticas e institucionais,
religião e culto“ alguns brasileiros serão impedidos de participar

CRP SPdo estado Psicologia


do processo eleitoral na condição de sujeitos vo-
tífico e ao desenvolvimento civilizatório. Gostaria
tantes, o que sempre representou uma fragilidade
de fazer algumas ressalvas sobre essa questão:
da nossa democracia, que historicamente atribui
a laicidade não representa a evasão da religião
ao ato de votar a expressão da cidadania. O voto
da esfera pública, nem a privatização do sagrado,
exclusivamente pouco contribui para a consolida-
mas o fim do monopólio religioso, a garantia do li-
ção do sistema democrático. Desse modo, excluir

laicidade
vre exercício da fé, a defesa da tolerância religiosa,
qualquer tipo de ator político do processo eleitoral
da pluralidade de crenças, cosmologias e cultos.
prejudica a democracia.

Temáticos
Portanto, a participação política das religiões não

Psicologia,
é uma ameaça à democracia, contanto que se ga- É nesse contexto que surge uma grande con-
rantam os princípios da igualdade e da liberdade tradição. Se, por um lado, a exclusão religiosa do
espaço público fragiliza a democracia; por outro, a

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para todos os credos.
ausência de regulações jurídicas favorece o dese-
Ricardo Mariano1 apresenta um conceito de
quilíbrio econômico e político entre as religiões, pri-
laicidade que considero relevante e pretendo nes-
vilegiando umas em detrimento de outras. É essa
sa apresentação destacar. Em sua concepção, a
a questão que nos cabe discutir, porque o Estado
laicidade corresponde à regulação política, jurídica
deve intervir para coibir formas de dominação e
e institucional das relações entre a Igreja e o Esta-
abuso de poder econômico nos pleitos eleitorais.
do, à emancipação do Estado e dos serviços públi-
cos em relação aos poderes eclesiásticos, à neu-
tralidade das instituições políticas, à autonomia “Se, por um lado, a exclusão
dos poderes políticos e religiosos e à concessão
de tratamento igualitário às diferentes agremia-
religiosa do espaço público fragiliza
ções religiosas, além das liberdades de consciên- a democracia; por outro, a ausência
cia, religião e culto. de regulações jurídicas favorece o
Tendo em vista esse conceito, cabe ques-
desequilíbrio econômico e político
tionar se há incompatibilidade entre a democracia entre as religiões, privilegiando
laica e a religião pública. Autores como Joanildo umas em detrimento de outras“
Burity2 afirmam que as religiões podem participar
Nas eleições de 2018, o Tribunal Superior
1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Eleitoral (TSE) decidiu intensificar a fiscalização
professor do Departamento de Sociologia da USP, pesqui- das igrejas evangélicas para impedi-las de partici-
sador do CNPq, vice-coordenador do Programa de Pós-Gra-
par ativamente da campanha eleitoral, com a vei-
duação em Sociologia da USP. Realiza pesquisas na área de
Sociologia da Religião.

2 Realizou o doutorado em Ciência Política na University of Essex .3 A palestrante faz referência às notícias veiculadas no dia
(Inglaterra) e o pós-doutorado na University of Westminster (In- 26 de setembro de 2018 sobre o cancelamento do título de
glaterra). É pesquisador titular, professor e coordenador do Mes- eleitor de 3,4 milhões de brasileiros devido à não realização
trado Profissional de Sociologia em Rede Nacional, na Fundação do cadastramento biométrico, disponível em: <https://oglobo.
Joaquim Nabuco; e professor do Programa de Pós-Graduação globo.com/brasil/stf-mantem-cancelamento-de-34-milhoes-
em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco de-titulos-eleitorais-23104769>. Acesso em: 29 abr. 2019.
culação de propagandas, a apresentação dos can- discriminação estatal em relação às organizações
10
didatos, a distribuição de panfletos e a realização mágico-religiosas, não havendo, desse modo, tra-
de comícios nos cultos. Essas práticas configuram tamento igualitário nem garantias constitucionais
crime eleitoral, com penalidades que variam de para algumas agremiações religiosas.
multas à cassação do registro da candidatura ou
O que percebi a partir da tese de doutorado
do diploma em caso de vitória. O TSE tem desen-
que realizei e das pesquisas que venho realizan-
volvido estratégias e tomado medidas para inibir a
do é que a laicidade é tratada, pelos deputados
participação de instituições religiosas no processo
evangélicos progressistas e conservadores, como
eleitoral. Algumas igrejas (neo)pentecostais, como
um valor universal, inegociável. Entretanto, os con-
a Universal do Reino de Deus e a Assembleia de
servadores defendem-na sobretudo quando se
Deus, passaram a adotar um procedimento eleito-
sentem ameaçados pelo poder político da Igreja
ral específico: a definição de candidaturas oficiais
Católica. Nessas circunstâncias em que a disputa
representativas da instituição e a constituição de
religiosa se acirra, a laicidade é reivindicada como
distritos eleitorais. A meu ver, é essa a questão que
um valor inalienável e um princípio fundamental a
se deve considerar na discussão sobre laicidade:
ser garantido pelo Estado.
não se trata do impedimento à participação dos
atores religiosos no processo democrático, mas da Farei menção a um episódio marcante na his-
necessidade de algum tipo de controle institucio- tória da bancada evangélica: o acordo entre o Bra-
nal e de regulação jurídica para coibir os abusos sil e a Santa Sé, aprovado pelo Congresso Nacional
de poder econômico de “monopólios” religiosos, o em 2009 e promulgado pelo então presidente da
que gera um desequilíbrio político e financeiro na República em 2010. Nesse acordo, a Igreja Católica
relação com outras religiões. apresentou prerrogativas que a beneficiavam eco-
nomicamente na relação que pretendia estabele-
Sem qualquer regulação, o Estado termina
cer com o Brasil. Na ocasião, a bancada evangélica
dispensando um tratamento desigual às religiões,
ficou furiosa com a proposta da Igreja Católica,
privilegiando umas em detrimento de outras. No
que a favorecia com privilégios econômicos e, por
Brasil, verifica-se que as regulações institucionais
isso, decidiu produzir um documento similar, intitu-
ainda são frágeis e não conseguem conter a in-
lado “Lei Geral das Religiões, para garantir a equi-
terferência das igrejas evangélicas nas eleições e
dade de direitos entre as religiões. A equidade e
no mandato parlamentar. Observa-se que muitos
a isonomia tornaram-se, portanto, absolutamente
deputados evangélicos representam os interesses
relevantes, quando os protagonistas da bancada
econômicos de suas congregações religiosas, pro-
evangélica se sentiram preteridos pelo governo.
duzindo um desvio no sistema de representação
Demonstraram indignação e exigiram o mesmo
política e contribuindo para intensificar a crise de
tratamento especial concedido à Igreja Católica,
credibilidade da democracia.
utilizando como justificativa o princípio da laicida-
de; contudo, não requerendo do Estado igualdade
de condições para todas as religiões.
“ ‘Laicidade à brasileira’ em
Apesar da defesa contumaz da laicidade e
razão de suas especificidades:
da consequente pluralidade, nas duas últimas le-
o fim da religião oficial e, em gislaturas, a bancada evangélica tem assumido um
contrapartida, a manutenção discurso mais conservador, beligerante, exaltado
e alarmista, que reivindica o retorno às tradições,
de privilégios concedidos às
o resgate dos valores morais e a restauração da
religiões hegemônicas” família heteronormativa e monogâmica. Trata-se,
portanto, de uma reação às políticas públicas que
foram implementadas em favor da diversidade mo-
Ricardo Mariano denomina a nossa laicidade ral, cultural, sexual e de gênero. Conclui-se, pois, que
de “laicidade à brasileira” em razão de suas espe- a bancada evangélica, quando se sente despresti-
cificidades: o fim da religião oficial e, em contra- giada, reivindica a laicidade para obter os mesmos
partida, a manutenção de privilégios concedidos privilégios da Igreja Católica; porém, quando na es-
às religiões hegemônicas. A separação entre o fera pública atua com protagonismo no exercício
Estado e a Igreja no Brasil não eliminou os privi- do poder, age para combater políticas destinadas a
légios católicos – e agora os evangélicos –, nem a efetivar direitos dos grupos minoritários.
No cotidiano da atividade parlamentar, os Nacional de Justiça que obriga os cartórios a regis-
11
deputados evangélicos têm empreendido verda- trar união civil entre pessoas do mesmo sexo; 4) o
deiras cruzadas contra inimigos específicos, inci- Projeto de lei 6.449/2016 torna obrigatório às ope-
tando pânicos morais, fomentando o ódio, justifi- radoras bloquear o acesso a conteúdo sexual gra-
cando a violência e legitimando a guerra política e tuito, para proibir a pornografia e a masturbação;
espiritual do bem contra o mal. A título de ilustra- 5) o PL 8099/2014, cujo autor é o deputado pastor

religiosa
ção, destaco o episódio dos materiais didáticos de Marco Feliciano, visa a obrigatoriedade do ensino

e desastres
combate à homofobia, idealizados pelo Ministério do criacionismo em escolas públicas e privadas;
da Educação e intitulados pejorativamente de “kit 6) o Projeto de lei 6314/2005 prevê a proibição da

à intolerância
gay” pela bancada evangélica. O então deputado abertura de processos por crimes de injúria e difa-

em emergências
federal Jair Bolsonaro protagonizou as críticas mação contra líderes religiosos; 7) a aprovação do
contra as cartilhas do MEC, alegando que “o kit es- Estatuto da Família, que define a entidade familiar
timula o homossexualismo e abre uma porta para como uma configuração social e afetiva resultan-

e o enfrentamento
a pedofilia”. Um discurso catastrófico, desprovido te da união conjugal e estável entre um homem
de coerência lógica, cujo propósito é produzir pâ- e uma mulher, podendo ser ainda constituída por

CRP SPdo estado Psicologia


nico, desorientação cognitiva e ódio. O inimigo é seus descendentes; 8) a PEC 99/2011, ainda em
identificado, a intolerância se estabelece e, conse- tramitação, confere poder às associações religio-
quentemente, a defesa da laicidade se esvazia na sas de contestar as decisões do Supremo Tribunal
prática parlamentar, permanecendo viva apenas Federal. Caso essa Proposta de Emenda Constitu-
na retórica evangélica. cional seja aprovada, as entidades evangélicas de
abrangência nacional terão autorização para pro-
Especificamente nas duas últimas legislatu-

laicidade
por ações de inconstitucionalidade e constitucio-
ras, a bancada tem resistido à garantia dos direi-
nalidade junto à Suprema Corte.
tos humanos e à formulação de políticas públicas

Temáticos
Psicologia,
de proteção da diferença. Os deputados mais con- Observa-se, pois, uma articulação de forças
servadores erguem-se como soldados em comba- evangélicas para expandir seu poder político, al-
te e enfrentam os adversários – no caso, as mu- cançando, assim, as esferas da Justiça, especial-

Cadernos Temáticos CRP SP Cadernos


lheres e a população LGBT – com a elaboração de mente o Supremo Tribunal Federal, e do Executivo
projetos de lei de conteúdo moral e religioso. Além – no caso a Presidência da República. Refiro-me,
de encaminhar à votação proposituras legislativas, principalmente, aos atores políticos com visibilida-
também impedem a tramitação de propostas que de midiática, que assumem a liderança da bancada
garantem direitos a minorias políticas. e se colocam na condição de representantes dos
demais evangélicos da Casa. Existe uma mística de
que os evangélicos precisam ocupar o Executivo,
migrando depois para outras instâncias de poder.
“A bancada tem resistido à
A primeira conquista eleitoral expressiva no campo
garantia dos direitos humanos e executivo ocorreu nas eleições municipais do Rio de
à formulação de políticas públicas Janeiro, quando o sobrinho de Edir Macedo, Marce-
lo Crivella, tornou-se prefeito da capital fluminense.
de proteção da diferença”
No entanto, os evangélicos alimentam o sonho po-
lítico de eleger como presidente da República4 um
“irmão na fé”, que possa preservar os valores cris-
Selecionei alguns projetos de autoria de de-
tãos, proteger a laicidade e fortalecer a democracia.
putados evangélicos para lhes apresentar, os mais
atuais, que estão em tramitação ou que já foram até Em seus discursos, os parlamentares evan-
aprovados: 1) o PL 5069/2013, elaborado por Edu- gélicos costumam enaltecer a democracia, con-
ardo Cunha e conhecido como projeto antiaborto, cebendo-a como um regime político que cumpre
determina que em casos de estupro a interrupção formalidades institucionais, cujo principal funda-
da gravidez só será consentida por lei mediante a mento é a representatividade e não a participação.
realização de exame de corpo de delito e o regis- Há, inclusive, certa hostilidade em relação ao con-
tro do boletim de ocorrência; 2) a PEC 181/2015, ceito de participação. De acordo com essa pers-
já aprovada em algumas comissões temáticas,
criminaliza o aborto em toda e qualquer situação,
inclusive naquelas asseguradas pela Constituição; 4 É importante frisar que este evento ocorreu em setembro de
2018, portanto, Jair Bolsonaro ainda não havia assumido a
3) o cancelamento de uma resolução do Conselho Presidência da República.
pectiva, a democracia cumpre ritos institucionais ção, ou seja, a democracia é um regime em que o
12
e segue procedimentos formais, como o sufrágio povo vota e deposita sua confiança na capacidade
universal, a realização de eleições periódicas, li- de representação política de quem foi eleito. To-
vres e transparentes, a separação e independên- davia, caso a representação não se realize, a po-
cia dos poderes, o pluripartidarismo e a alternância pulação deve aguardar as próximas eleições para
dos partidos no poder. Os parlamentares defen- fazer novas escolhas. Outro aspecto relacionado
dem essa concepção formalista e institucional da à democracia que merece discussão diz respeito à
democracia, o respeito aos regulamentos formais natureza do governo representativo o qual, segun-
e aos trâmites institucionais, não considerando a do os parlamentares evangélicos, deve favorecer
importância da participação política e do controle a maioria em detrimento das minorias. A minoria
social nem demonstrando preocupação com o au- deve ser submetida ao poder de determinação da
mento das abstenções eleitorais. maioria. Trata-se, pois, de uma ditadura da maio-
ria, e não propriamente de uma democracia que, na
concepção de Chantal Mouffe5, se propõe a articu-
“Não considerando a importância lar os múltiplos interesses da sociedade e atender,
inclusive, as demandas das minorias políticas.
da participação política
e do controle social nem Jair Bolsonaro, em seus discursos, tem des-
tacado essa questão: “somos a maioria. Já que so-
demonstrando preocupação mos a maioria e detemos o poder, a minoria deve
com o aumento das abstenções se submeter a nós”. A bancada evangélica – ao
eleitorais” menos essa parte à qual me refiro – argumenta a
favor do poder da maioria em decorrência de sua
expressiva representatividade. Os parlamentares
Os congressistas mais influentes da banca- evangélicos se designam representantes da maio-
da são favoráveis à democracia representativa, ria moral da sociedade; por isso, sempre falam em
atribuindo um valor absoluto à representação dos nome da sociedade: “Nós estamos aqui defenden-
parlamentares eleitos, que – em sua concepção – do a família, os bons costumes, o resgaste dos va-
necessitam de liberdade para representar devida- lores morais subvertidos. Estamos aqui para supe-
mente o povo. O que isso significa? Eles não devem rar a crise ética, moral e política que assola o país,
ser submetidos a nenhum tipo de escrutínio, moni- representando, assim, os anseios da sociedade”.
toramento e fiscalização por parte da população, Desse modo, a bancada evangélica constrói iden-
cabendo-lhes atuar conforme a consciência moral tificações e obtém apoio de diversos setores so-
e os preceitos cristãos. Os mecanismos de partici- ciais conservadores para a aprovação de pautas
pação política e controle social são considerados morais, adquirindo legitimidade política. O discurso
impedimentos ao exercício da representação, visto sectário e particularista dos evangélicos é subs-
que intimidam os representantes e lhes restringem tituído por um discurso mais abrangente, com o
a liberdade de desempenhar a função que lhes foi propósito de ampliar o espectro de representação,
delegada. Portanto, acredita-se que, no sistema coalisão política e apoio popular.
democrático representativo, o eleitor transfere a
Além da retórica da maioria representativa,
titularidade do poder para o candidato em quem
explora-se a tese da minoria religiosa perseguida
votou, confia nele, entrega a nação nas “mãos de
politicamente, vítima de forças violentas e ações
Deus” e espera as próximas eleições para corrigir
abusivas para coibir sua expansão no campo po-
eventuais equívocos. Desse modo, garante-se que
lítico-religioso – nesta conjuntura, convém fazer
o candidato eleito assuma o mandato e o realize
referência a uma suposta perseguição política. Li
com liberdade. Alguns deputados reivindicam: “Eu
hoje no jornal uma matéria que fazia referência à
preciso ter liberdade para fazer valer a representa-
indignação de um pastor da Igreja Universal em re-
ção que me foi conferida”.
lação à decisão da Justiça Eleitoral de auditar as
Na perspectiva da bancada evangélica, os igrejas que estão fazendo campanhas eleitorais,
processos de monitoramento e fiscalização da
gestão pública assim como a participação popu-
lar dificultam a atividade parlamentar. Para eles, a 5 Cientista política belga; professora de Teoria Política na Uni-
cidadania se exerce exclusivamente por meio do versidade de Westminster, no Reino Unido. Foi professora
visitante em diversas universidades: Harvard, Cornell, Prince-
voto. Não se reconhece a relevância da participa- tone no Centre National de la Recherche Scientifique.
na contramão do que prevê a legislação. Em sua ria as pregações da palavra de Deus. A retórica da
13
concepção, essa medida do TSE é arbitrária e evi- catástrofe e do absurdo instigava a sensação de
dencia o clima de perseguição política contra as pânico e horror, favorecendo o ataque aos inimi-
igrejas evangélicas no país: “Estamos vivendo uma gos e a formação de alianças. O PL122, que visava
perseguição política sem precedentes, em razão proteger a população LGBT de preconceitos, into-
do nosso crescimento e também porque temos lerâncias e violências, passou a ser chamado de

religiosa
ocupado cargos políticos relevantes”. Como se lei da mordaça pela bancada, que o retratou como

e desastres
pode constatar, nesse caso, o argumento da mino- uma medida tirânica e ditatorial, em benefício dos
ria religiosa perseguida politicamente favorece a privilégios de determinado grupo, que pretende

à intolerância
articulação das diferentes denominações, inclusive instalar “a ditadura gay” no país. Observa-se, pois,

em emergências
aquelas cujos sistemas teológicos e doutrinários uma espécie de inversão conceitual ou malabaris-
são divergentes. De acordo com essa perspectiva, mo cognitivo, que transforma os homossexuais,
todas as congregações evangélicas são discrimi- vítimas diárias de violência, em indivíduos tirânicos

e o enfrentamento
nadas, marginalizadas e perseguidas; constrói-se, e privilegiados. Os evangélicos, por sua vez, são
assim, um inimigo político, que pode ser encarnado considerados perseguidos políticos, cuja liberdade

CRP SPdo estado Psicologia


pela Igreja Católica, Rede Globo, mídias hegemôni- encontra-se ameaçada.
cas, movimentos sociais e coletivos de esquerda.
A defesa da democracia e da liberdade as-
A construção desse inimigo comum propicia uma
sume ares corporativos, visto que só ganha rele-
identificação entre “crentes” de diversas denomi-
vância quando os evangélicos se sentem prejudi-
nações, suspendendo provisoriamente as dissi-
cados pelos privilégios da Igreja Católica e pelos
dências, que são numerosas, para viabilizar esse
direitos de determinados grupos sociais. É nesses

laicidade
enfrentamento em nome de combater e derrotar o
momentos que reivindicam um tipo de liberdade, a
inimigo. Recorre-se, portanto, ao discurso da per-
liberdade de consciência, de culto e de religião dos

Temáticos
seguição política, da discriminação religiosa e da

Psicologia,
cristãos; porém, impõem aos demais cidadãos a
restrição da liberdade de culto.
restrição da liberdade ética em nome da preserva-
ção de um sistema normativo particular. É esse o

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grande paradoxo. Trata-se de uma concepção res-
“Recorre-se, portanto, ao discurso tritiva de liberdade, dado que o livre exercício da
da perseguição política, da fé não é a condição de liberdade mais abrangen-
discriminação religiosa e da te, mas uma das dimensões da liberdade da vida
humana. Contudo, os evangélicos entendem que
restrição da liberdade de culto” essa liberdade religiosa é a condição primeira da
liberdade, que atribui consistência à democracia.
Dessa forma, preserva-se o princípio da liberdade
A categoria “liberdade religiosa” é utilizada
religiosa, mas coíbem-se as liberdades individuais.
de forma recorrente com diferentes acepções, a
depender do contexto e dos interesses que es- Em um Estado genuinamente laico, deve-se
tão em jogo. Um exemplo que costumo apresentar atribuir um valor especial à liberdade e não à re-
refere-se ao antigo projeto de lei 122/2006, que ligião, porque se o Estado preserva a liberdade,
criminaliza a homofobia e esteve em tramitação certamente preservará a liberdade religiosa, um
na Câmara até 2015. Essa proposta legislativa foi dos aspectos da liberdade democrática. Para fi-
arquivada por pressão da bancada evangélica, que nalizar, outro aspecto interessante que diz res-
se sentia aviltada e ameaçada pelo referido texto. peito à questão da liberdade é que os princípios
Um dos seus artigos que provocou agitação entre cristãos são apresentados pela bancada evan-
os evangélicos estabelece que os livros cujo con- gélica como referência ética para a sociedade,
teúdo reforçam visões e práticas homofóbicas se- assumindo o papel de moral universal. Verifica-se
riam recolhidos. Esse projeto causou uma polêmi- a negação do pluralismo ético e a restrição das
ca incrível, dando origem a reações intempestivas, liberdades individuais. Os deputados empenham-
extremadas e inflamadas. Foram elaborados argu- se para transformar códigos de conduta e sis-
mentos infundados em torno da categoria “liber- temas normativos específicos de determinado
dade religiosa” para justificar a resistência política grupo em proposituras constitucionais com valor
que se constituiu à época. Em uníssono, os parla- legal. É aí que ocorre a perda da laicidade, uma
mentares anunciavam que esse projeto, se apro- vez que a pluralidade, princípio fundamental da
vado, autorizaria o confisco das bíblias e censura- laicidade e da democracia, é negada.
14
Espiritualidade, Religião
e Laicidade do Estado
Henrique Vieira Passos
Teólogo formado pela Faculdade Batista do Sul do Brasil, Bacharel em Ciências
Sociais pela Universidade Federal Fluminense, bacharel em História pela Universidade
Salgado de Oliveira e ator formado pela Oficina Social do Teatro. Membro do Conselho
deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e da Frente de Evangélicos pelo Estado de
Direito. Organizador do Coletivo Esperançar (Evangelho e Direitos Humanos).

Começo por uma concepção mais filosófica, distin- tematização e organização da espiritualidade. A
guindo espiritualidade de religião a partir de uma religião pressupõe cultos, liturgias, cerimônias, uma
abordagem do Frei Betto para, então, destrinchar determinada narrativa de mundo, uma teodiceia,
o fundamentalismo religioso, a relação que ele tem uma doutrina, um código comportamental. Gosto
com o neoliberalismo e o risco que ele oferece de de pensar essa distinção entre espiritualidade e
fato para a democracia, o Estado laico e os direitos religião para chegar ao seguinte ponto, com o Frei
humanos. A espiritualidade, desse ponto de vista, Betto: existem experiências religiosas que sufocam
é algo tão antigo quanto a humanidade. a espiritualidade; trata-se, portanto, do fundamen-
talismo religioso. O fundamentalismo religioso con-
segue a proeza, aparentemente contraditória, de
“Destrinchar o fundamentalismo sufocar a espiritualidade. Enquanto a espiritualida-
de é abertura, o fundamentalismo é fechamento;
religioso, a relação que ele tem
enquanto a espiritualidade é pergunta, o funda-
com o neoliberalismo e o risco mentalismo é resposta; enquanto a espiritualidade
que ele oferece de fato para a é experiência, o fundamentalismo é doutrina. Enfim,
o fundamentalismo religioso seria uma maneira de
democracia, o Estado laico e os
experimentar a religião de forma a sufocar a potên-
direitos humanos” cia criativa, lúdica e aberta da espiritualidade.

A espiritualidade nasce do espanto, do sus-


to que o ser humano tem diante da potência e, ao
“De uma verdade absoluta,
mesmo tempo, da efemeridade e da fragilidade da eterna, estática, atemporal e
experiência humana. Ou seja, a gente pode tudo absolutamente inquestionável”
e quase nada ao mesmo tempo e, diante dessa
consciência, dessa potência e dessa tragédia que
é a vida, o ser humano desenvolve possibilidades
É importante citar aqui algumas caracterís-
de transcender. Então, a espiritualidade é lúdica, a
ticas do fundamentalismo religioso. Primeiro, uma
espiritualidade é poética, a espiritualidade é artís-
concepção fechada e absoluta de verdade: a ver-
tica, a espiritualidade é metafórica, a espiritualida-
dade é inquestionável, é estática, é atemporal e é
de é simbólica, a espiritualidade é abertura e curio-
revelada. Estou falando especialmente da teologia
sidade. É pergunta, não é resposta; é experiência, é
cristã, dos códigos do cristianismo, portanto, de
subjetividade. A espiritualidade é tão antiga quan-
uma verdade absoluta, eterna, estática, atemporal
to a humanidade nesse sentido. É quase intrínseca
e absolutamente inquestionável. Essa verdade, em
à experiência humana a produção de símbolos que
tese, se materializa em uma doutrina. Tal doutrina
apontam esse caráter insuficiente da vida.
expressa essa verdade absoluta. Questioná-la não
Dentro dessa abordagem, a religião seria é, portanto, questionar o próprio Deus. Logo, revi-
datada historiograficamente, uma espécie de sis- sar a doutrina é uma impossibilidade, uma vez que
Deus é eterno e imutável, Ele não se modifica, não é Ela demorou alguns segundos para responder, e
15
passível de revisão, de crítica, nem de reformulação. aquilo gerou uma pausa no monólogo – monólogo
Então, essa verdade materializada em uma doutri- porque só ela falava; eu não conseguia transfor-
na gera uma perspectiva totalitária de mundo, e é mar aquilo em um diálogo, fazer perguntas.
a esse ponto que eu quero chegar. Só que tem um
detalhe fundamental para a gente entender isso:

religiosa
não estamos falando apenas de razão, não esta- “ ‘O que mobiliza mais você, o

e desastres
mos falando apenas de discurso. Estamos falando
que escandaliza mais você, o
da formação profunda da subjetividade humana. O

à intolerância
fundamentalismo forja forma, cria, induz, conduz, que te provoca mais choque? Um
beijo entre dois homens ou um

em emergências
formata emoções, sensações, perspectivas.
homossexual sendo assassinado

e o enfrentamento
“O fundamentalismo forja por ser homossexual?’ ”
forma, cria, induz, conduz,

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formata emoções, sensações, Então, ela olhou para mim e disse: “As duas
perspectivas” coisas, não é, filho?”. Então, ela equiparou uma ma-
nifestação espontânea e livre de afeto com um as-
sassinato em termos de gravidade. E qual é a tese
que eu estou apresentando? Não necessariamen-
Eu cheguei a ser parlamentar durante qua-

laicidade
te ela tem um caráter péssimo, entendem? É uma
tro anos na minha cidade de origem, Niterói. Fize-
subjetividade que foi forjada e formada. Acho que
mos um debate lá sobre a inclusão da educação

Temáticos
o pior caminho para resolver isso é dizer: “Ah, você

Psicologia,
de gênero e da diversidade nas escolas. Eu votei
é mau-caráter”. Eu acho que está em outro regis-
favoravelmente, entendendo que a escola tem um
tro, está em outro lugar. Se a gente não entender
papel a cumprir na afirmação da democracia e do
isso, vai ficar batendo a cabeça na parede.

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combate a violências históricas, estruturantes, es-
truturais, especialmente contra mulheres e LGBTs. O fundamentalismo é, então, essa concep-
Eu, pastor Henrique, votei favoravelmente, então ção fechada de verdade, materializada em uma
imaginem como foi a situação na Câmara Munici- doutrina, gerando uma perspectiva totalitária de
pal. Fui atacado de tudo quanto foi jeito. Em uma mundo e, por fim, gerando o que alguns autores
audiência pública, uma senhora que me viu crescer chamam de epistemicídio. Porque outras manei-
na Igreja Batista e me viu pregar – quando adoles- ras de conhecer o mundo, de acessá-lo, outras
cente, eu pregava em um culto para as senhoras manifestações culturais e religiosas são absoluta-
da igreja às seis horas da manhã – veio me pro- mente inferiorizadas, animalizadas, folclorizadas,
curar no final da audiência pública. Ela estava tre- exotizadas, demonizadas, ou seja, gera-se não só
mendo, a mão dela estava suando, os olhos dela um padrão de comportamento, mas também uma
estavam marejados. Ela não conseguia olhar para perspectiva prévia de conhecimento da realidade.
mim, virava o rosto toda hora, caminhava um pou- Assim, outras epistemologias, outras formas de
co de um lado para o outro. Então, ela perguntou saber também são anuladas, e, consequentemen-
com a voz trêmula: “O que aconteceu com você, te, a insuportabilidade das diferenças, daí a intole-
meu filho?”. Não sei se estou me fazendo entender rância como efeito quase que automático da con-
sobre a potência disso, na subjetividade. cepção e da subjetividade fundamentalista.

Não precisa explicar muito. Estamos em um O outro incomoda por ser quem é. A pura exis-
ambiente que formula e trabalha em cima disso, é tência já gera um conflito, é lida como um ataque.
algo muito profundo. Não está só aqui no meu dis- Não precisa nem do conflito real, do convívio geran-
curso. O fundamentalismo forja e forma emoções. do alguma diferença. Algumas diferenças, só pelo
Então, fiz outra pergunta a ela: “O que mobiliza fato de existirem, já geram um incômodo profun-
mais você, o que escandaliza mais você, o que te do, porque é uma visão que tenta englobar todas
provoca mais choque? Um beijo entre dois homens as relações da sociedade, família, escola, Estado,
ou um homossexual sendo assassinado por ser empresa, dimensão pública da vida, tudo totaliza-
homossexual?”. Ela olhou para mim com certo es- do por essa perspectiva. Então, a insuportabilidade
panto, percebi que a pergunta gerou um incômodo. das diferenças e a intolerância são sintomas.
No Brasil colonizado, o modelo econômico
16
“O fundamentalismo seria hegemônico foi o plantation, caracterizado pelo
latifúndio monocultor exportador que se utilizava
essa concepção que de trabalho escravo. Um genocídio histórico data-
influencia comportamentos do de séculos sobre um povo virou característica
cotidianamente; já o extremismo de um modelo econômico dentro do Brasil colônia.
Isso é grave, é perverso, é letal. Portanto, não é à
seria a materialização dessa toa, não é coincidência, não é por acaso que as
concepção em ações diretas de religiões de matriz africana são historicamente e
violência, se traduzindo também atualmente as mais perseguidas.

em um projeto de poder” A intolerância ajuda a entender, mas o racis-


mo fecha a questão, porque tem uma seletivida-
Alguns pesquisadores, especialmente na de que escolhe aquilo que tem relação direta ou
Universidade Federal Fluminense (UFF), fazem indireta com a ancestralidade negra, como algo
uma distinção entre fundamentalismo e extremis- primitivo ou selvagem, pré-racional, ou demonía-
mo. O fundamentalismo seria essa concepção que co, diabólico, perverso, do mal. Então, acredito que
influencia comportamentos cotidianamente; já o falar em laicidade no Brasil é chamar a atenção
extremismo seria a materialização dessa concep- para a dimensão racista estrutural da intolerân-
ção em ações diretas de violência, se traduzindo cia religiosa. E, no caso do cristianismo, o racismo
também em um projeto de poder. Então, muitos alterou profundamente a própria epistemologia
autores, como a Christiana Vital da Cunha1, tra- cristã, porque a Bíblia tem tradições africanas,
balham com esse conceito. O fundamentalismo tem toda uma dimensão racial profunda e diver-
influencia o comportamento do indivíduo, mas sos dispositivos emancipadores e libertários do
não necessariamente ele vai projetar o seguinte: ponto de vista da ancestralidade negra. Contudo,
“Vamos disputar o Estado, vamos disputar as po- a leitura colonizadora, civilizatória, branca, hetero-
líticas públicas, vamos disputar as legislações”. O normativa e patriarcal da Bíblia faz com que ela se
extremismo já seria a materialização e a radicali- torne – como se tornou ao longo da história – um
zação dessa concepção em um projeto de poder instrumento de morte: mulheres queimadas nas
e em violências mais diretas e objetivas contra fogueiras, indígenas dizimados, negros escravi-
esses corpos perseguidos, contra essas manifes- zados, LGBTs asfixiados. Mas eu quero chamar a
tações criminalizadas. atenção para o fato de que o racismo alterou a
própria epistemologia cristã.
Evidentemente, a tese é de que o fundamen-
talismo é um obstáculo para a laicidade do Estado,
para a democracia, por conta dessa concepção
“Que o racismo alterou a própria
fechada de verdade, dessa vocação totalitária,
dessa insuportabilidade das diferenças e dessa epistemologia cristã“
intolerância crônica. Mas, no caso brasileiro, não
basta falar em intolerância religiosa; acredito que
é preciso falar em racismo. O racismo é o chão da Para concluir, no caso brasileiro, o fundamen-
história do Brasil. O racismo está para além do talismo e o extremismo, atravessados pelo racis-
comportamento, da índole ou do caráter. O racis- mo estrutural, têm seu crescimento relacionado
mo é estruturante das nossas relações sociais. O com o neoliberalismo contemporâneo, partindo da
racismo é a construção do corpo animalizado, do referência do Boaventura de Sousa Santos2. Des-
corpo bestializado, do corpo folclorizado, do corpo de a regulamentação do mercado financeiro, a fle-
exotizado, do corpo matável. xibilização das leis trabalhistas, a perspectiva me-
ritocrática de mundo, uma cidadania reservada à

1 Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia


(PPGS) e do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territo- 2 Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da
rialidades (PPCULT) da Universidade Federal Fluminense e do Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Facul-
Departamento de Sociologia da mesma universidade. Autora do dade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global
livro Oração de traficante: uma etnografia (2015) e coautora dos Legal Scholar da Universidade de Warwick. Também é Diretor do
livros Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coor-
eleições 2014 (2017), Religião e conflito (2016) e Religião e política: denador Científico do Observatório Permanente da Justiça. Tem
uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o trabalhos publicados sobre globalização, Sociologia do Direito,
direito de mulheres e de LGBTs no Brasil (2012). epistemologia, democracia e direitos humanos.
dimensão do mercado do consumo, o esvaziamen- como base, como algo que traz uma certa solidez
17
to do sentido público e comunitário da vida, uma para tanta areia movediça existencial.
sociabilidade muito mais baseada na suspeita do
que na possibilidade de uma comunhão, o globali-
tarismo vai diluindo as territorialidades e desres- “O campo evangélico é diverso
peitando as especificidades culturais dos espaços
e absolutamente heterogêneo.

religiosa
do mundo. Ou seja, cria-se um vazio crítico perfeito
Existe um segmento que tem

e desastres
para que uma narrativa fundamentalista dê chão
para a crise humana civilizatória do capitalismo poder econômico, midiático,

à intolerância
neoliberal contemporâneo. O fundamentalismo
televisivo, político e institucional”

em emergências
cresce na areia movediça dessa diluição de senti-
do, uma vida cada vez mais tensa e paranoica.

e o enfrentamento
Eu me lembro de uma ocasião, quando ain- Concluo dizendo o seguinte: concordo com a
da eu era parlamentar, em que o medo e o pânico professora Bruna, e apenas acentuo algo que ela
moral ativaram muita coisa. Me lembro de alguns também já colocou aqui muito bem, que o campo

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moradores de um bairro elitizado de Niterói que evangélico é diverso e absolutamente heterogê-
disseram para mim, com toda a serenidade: “Olha, neo. Existe um segmento que tem poder econômi-
nós temos uma ideia brilhante para proteger nossa co, midiático, televisivo, político e institucional. Esse
rua. Colocamos câmeras nas casas voltadas para grupo tem projeto de poder, embora também haja
a rua e distribuímos apitos entre os moradores. Se diferenças dentro dele, como ela descreveu muito
dentro de casa nós percebermos que um elemento bem. Mas existe essa faceta. É feroz, é totalitário, é

laicidade
estranho está passando pela rua, nem precisamos autoritário, é antidemocrático, é machista, misógi-
ir sair na varanda das nossas casas, porque isso no, é LGBTfóbico, racista. Cresce, interfere, influen-

Temáticos
Psicologia,
seria um certo risco; basta ir até a janela e apitar. cia o fascismo brasileiro na versão religiosa. Dito
Quando você ouve um apito, o outro apita tam- isso com toda a seriedade, contundência e aperto
bém, todo mundo começa a apitar e o elemento no coração, cabe dizer e enfatizar: não podemos

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estranho tende a ser constrangido”. totalizar a experiência evangélica protestante nem
no passado, nem no presente. É muito importante
Isso é vida? Entendem? O medo, o controle
dizer isso, porque arrisco o seguinte: se criarmos
do espaço, a vigilância. E mais, quem seria o ele-
um imaginário de evangélicos versus democracia,
mento estranho? Qualquer pessoa que não mora
evangélicos versus direitos humanos, evangélicos
na rua? Acho que é mais do que isso. Tem algum
versus mulheres, evangélicos versus LGBTs, nós
aspecto racial aí para perceber o elemento estra-
estaremos preparando uma derrota trágica para
nho? É uma sociabilidade da suspeita.
a democracia brasileira, porque é o segmento reli-
Talvez por isso os shoppings centers estejam gioso que mais cresce no Brasil, em porcentagens
cheios e as praças públicas, vazias. Porque se rela- impressionantes. Cresce nas periferias, cresce nas
cionar é tão insuportável que nós só conseguimos favelas, cresce na população negra.
conviver mediados por muitas luzes, produtos e
Uma coisa é uma crítica fundamentada,
entretenimento; uma conversa real é uma raridade
pesquisada, que é o que eu vi aqui hoje. Mas que-
profunda. Nós temos monólogos entre pessoas.
ro ser sincero, colocando aqui algum grau, talvez,
O silêncio, a paciência, a escuta verdadeira da di-
de polêmica: existem críticas ao povo evangélico
mensão do outro… isso é muito raro. E, na minha
que são elitistas, que são assim: “Ah, porque todo
concepção, isso tem a ver com esse modelo de
evangélico é um careta conservador, não há pro-
sociedade, que gera individualidades paranoicas,
dução intelectual acadêmica dentro do campo
o medo patológico. E, dentro desse modelo civili-
evangélico”. Tem movimento negro evangélico,
zacional, o fundamentalismo entra como resposta,
tem frente evangélica pela legalização do aborto,
tem frente de evangélicos pelo estado de direito.
Silas Malafaia é evangélico e Martin Luther King Jr.,
“Tem a ver com esse modelo também. Acho um erro monstrificar, considerar que
o problema do Brasil é o segmento evangélico. E
de sociedade, que gera diria mais: o conservadorismo evangélico não é tão
individualidades paranoicas, o diferente do conservadorismo médio do restante
medo patológico” da sociedade brasileira. O fundamentalismo não é
um monopólio dos evangélicos. Uma pesquisa rea-
18
lizada no Rio de Janeiro, por exemplo, concluiu que
o segmento religioso no estado que mais rejeitou
“Existe um segmento evangélico
a afirmação “Bandido bom é bandido morto” foi o poderoso que influencia muito,
segmento evangélico. que é um risco total para a
democracia, mas também tem
“O fundamentalismo não é um muita gente pobre, trabalhadora,
monopólio dos evangélicos” que encontra na sua igreja o
único espaço de sociabilidade,
que usa a fé em Jesus para
A pesquisadora Esther Solano, aqui de São
Paulo, fez uma pesquisa sobre a Marcha para Je- sobreviver e dar sentido à vida e
sus3 – pesquisa bastante completa, na minha con- que não tem nada a ver com isso”
cepção – na qual demonstrou que as principais
referências parlamentares não são a grande ins-
cracia, mas também tem muita gente pobre, traba-
piração da base evangélica e, no que diz respeito
lhadora, que encontra na sua igreja o único espaço
aos direitos sociais, há uma grande distância entre
de sociabilidade, que usa a fé em Jesus para so-
o que pensam alguns protagonistas dessa banca-
breviver e dar sentido à vida e que não tem nada
da e os da base evangélica.
a ver com isso. Portanto, a tarefa para a defesa
Ela fez uma coisa muito curiosa: tirar a pa- da democracia do Estado laico, na minha concep-
lavra feminismo e fazer perguntas feministas. O ção, não pode ser criminalizar o campo evangélico
grau de adesão aumentou significativamente, en- como um todo. Isso não me parece correto e, tati-
tão existem questões aí. Como evangélico eu digo: camente, é se preparar para a derrota, porque é o
existe um segmento evangélico poderoso que in- que mais cresce no Brasil, inclusive entre os traba-
fluencia muito, que é um risco total para a demo- lhadores do nosso povo.

3 A síntese desta pesquisa pode ser encontrada em: SOLANO,


Esther; ORTELLADO, Pablo; MORETTO, Marcio. Percepções
evangélicas sobre política e sociedade brasileiras. Disponível
em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/13733.
pdf>. Acesso em: 30 abr. 2019.
Racismo e Intolerância 19

Religiosa: expressões subjetivas

religiosa
e desastres
Veridiana Machado

à intolerância
Psicóloga. Mestra em Psicologia na Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Especialista
em Psicoterapia Junguiana pelo Instituto Junguiano da Bahia (IJBA). Coordenadora da

em emergências
Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) de Relações Raciais
e Subjetividades – ANPSINEP. Pesquisadora do Laboratório de Etnopsicologia – FFCLRP/
USP. Dedica-se aos estudos sobre Psicologia e Cultura; Etnopsicologia; Psicologia e

e o enfrentamento
Religiosidade afrobrasileira; Relações Étnico-Raciais; Comunidades e Povos Tradicionais.

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Gosto de pensar sobre a laicidade e a intolerân-
cia retomando os conceitos de intolerância e de “Promoveu na modernidade a
tolerância e contextualizando esses conceitos no
Brasil, que sofreu essa colonização genocida e
destruição do outro, a inviabilização
etnocida, como já foi falado aqui. Então, começo do outro, sendo que esse outro

laicidade
pensando nas características dessa modernidade, é o diferente: diferente de quem
na nossa ciência pautada nessa verdade, centrali-
não era europeu, de quem não era

Temáticos
zada na objetividade e na razão, e nesse cientifi-

Psicologia,
cismo que promoveu na modernidade a destruição branco naquele momento”
do outro, a inviabilização do outro, sendo que esse

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outro é o diferente: diferente de quem não era eu-
ao inferior. O verbo tolerar significa “suportar ou
ropeu, de quem não era branco naquele momento.
aceitar com indulgência”. Indulgência seria sinô-
E aí constrói-se esse conceito de identidade como
nimo de piedade, de misericórdia. Então, nessas
algo universal, negando essa pluralidade, relegan-
duas significações, a gente observa o discurso, a
do ao diferente o lugar do sinistro, do anormal, do
presença do discurso discriminatório e superior
estranho e do elegantemente exótico.
de quem tolera, de quem é o tolerante nesse sen-
Se a gente analisar alguns discursos, algu- tido. O intolerante, nessa condição, era o colono,
mas declarações, como a Declaração de Indepen- que tolerava os colonizados. E essa tolerância
dência dos Estados Unidos e a Declaração dos não significa reconhecer a alteridade do outro.
Direitos do Homem e do Cidadão, da época da Não é porque eu estou falando do outro que es-
Revolução Francesa, veremos que falam de igual- tou reconhecendo essa alteridade, essa digni-
dade, mas de igualdade entre os semelhantes. A dade do outro; pelo contrário, essa tolerância é
Declaração de Independência dos Estados Unidos, simplesmente a capacidade que o colono tinha
por exemplo, fala da liberdade, da busca da felici- de suportar esse outro para preservar a suposta
dade, da importância da valorização, mas o veto ordem universal.
ao voto feminino permaneceu. Então, para quem é
Aqui no Brasil e em outros países, a conver-
essa liberdade, para quem é essa busca da felici-
são ao cristianismo fazia parte dessa tolerância,
dade? É a partir daí que eu começo a pensar no
ou seja, você tolerava, suportava o sujeito não
conceito de tolerância, isto é, a partir dessa iden-
civilizado, selvagem, desde que ele se convertes-
tidade do europeu que nega o outro, que nega o
se aos seus princípios. Isso negava também uma
diferente, a partir de uma ideologia da universali-
dimensão que não era de religião, mas de espiri-
dade e homogeneidade da cultura europeia pela
tualidade desses povos, que eu posso chamar de
dominação das outras culturas.
indígenas de modo geral. Então, nesse cenário, o
Tolerância é uma palavra que vem do latim colono aparece como indulgente, como misericor-
e significa “constância em suportar, em permitir, dioso, como alguém que, por piedosa tolerância,
condescender”. Compõe uma relação humana en- vai inserir os indígenas e os negros, os indígenas
tre desiguais, em que o superior faz concessões brasileiros na civilização para salvar suas almas
em troca da submissão de seus corpos ao traba- violência estrutural presente na dicotomia que foi
20
lho escravo. Completa-se uma das justificativas criada entre colônia e colonizado. Então, o racismo
da dominação e da mais perversa e violenta orga- fundamenta a operacionalização dessa tolerância
nização que já tivemos. de modo muito peculiar com as religiosidades de
matriz africana. Haja vista que até hoje, diante da
pluralidade religiosa, da diversidade religiosa, dian-
“Que alguns segmentos da te da discriminação de diversos outros segmentos
e da laicidade do Estado, ainda são as religiosida-
religião no Brasil não sofrem
des de matriz africana as mais atingidas por essa
apenas de intolerância, mas intolerância, por esse racismo religioso.
também de racismo religioso” Não por acaso, o dia 21 de janeiro, data
homologada como de Dia Nacional de Combate
à Intolerância Religiosa, foi escolhido devido ao
No Brasil, indígenas e negros foram trata- falecimento de Mãe Gilda, em 1999. Ela teve sua
dos como criaturas que precisavam ser controla- fotografia exposta no jornal da Igreja Universal,
das, desbravadas, exploradas. Indígenas e negros na matéria “Macumbeiros charlatões lesam a bol-
foram ora eliminados, ora escravizados, tolerados sa e a vida dos clientes – o mercado da engana-
pelos colonizadores como forças selvagens indo- ção cresce no Brasil, mas o Procon está de olho”.
máveis, tolerados piedosamente, misericordio- Em seguida, o terreiro de Mãe Gilda, localizado no
samente como animais domésticos. Esse mes- bairro de Itapuã – bairro negro e populoso de Sal-
mo conceito de tolerância é que vai estruturar e vador, na Bahia –, foi invadido e seu esposo foi
incitar a atitude de intolerância. Então, temos aí agredido. Mãe Gilda enfartou e faleceu no dia 21
uma contradição em que é interessante a gente de janeiro de 2000. Então, atualmente, as religi-
pensar: na ideia de tolerância, de suportar o outro, ões de matriz africana ainda se veem ameaçadas
já está presente a intolerância. Compreendendo o tempo inteiro por uma reatualização dessa into-
essa operacionalização da tolerância nesse pro- lerância e desse racismo.
cesso de colonização, assim como o Henrique, eu
Hoje, a contestação é com relação à utili-
afirmo que alguns segmentos da religião no Brasil
zação de animais para fins religiosos e para fins
não sofrem apenas de intolerância, mas também
alimentícios, um debate que tem ocorrido bastan-
de racismo religioso.
te. É interessante, porque ninguém questiona o
agronegócio, ninguém questiona o fato de no Bra-
sil termos o maior rebanho de boi. Deve ser para
“Por que interseccionar esse a gente ficar observando, achando bonito. Deve
discurso, ou melhor, esses ser por isso. Nem a Índia tem um rebanho de boi
conceitos de tolerância e tão grande. Ninguém questiona nossas bolsas,
nossos sapatos; não se questiona a utilização
de intolerância e de racismo desses animais em outros ritos, em outros seg-
religioso?“ mentos religiosos. E, já que é para questionar a
vida, não existe nenhuma mobilização social, por
exemplo, para pensar nas vidas que são tiradas
É importante dizer isso aqui – eu, como cotidianamente no Brasil; ou que, não por acaso
mulher negra e adepta de uma religião de matriz também, a maioria dos detidos no sistema car-
africana – que não tenho como não falar também cerário brasileiro é de homens negros; ou que em
desse lugar de quem sofre esse racismo. Preciso nosso país as mulheres mais violentadas são as
despertar, como professora de Psicologia, essa negras; ou que os jovens que mais morrem são os
escuta refinada e esse olhar para uma atuação negros. Não existe mobilização para pensar nes-
profissional que enfrente essa discriminação, esse sas vidas, mas existe uma preocupação contra-
racismo religioso. Então, por que interseccionar ditória, ou esquizofrênica, com a vida da galinha
esse discurso, ou melhor, esses conceitos de to- que é utilizada no ritual. Então, é muito interes-
lerância e de intolerância e de racismo religioso? sante a gente pensar nisso, porque esse funda-
Porque, assim como já foi dito, o racismo é esse mentalismo – com todo o respeito à questão da
sistema complexo que atua por meio de uma vio- subjetividade – promove preconceito e racismo e
lência estrutural já presente, que fundamenta essa não permite que a gente reflita.
tais, no momento da redemocratização do Brasil,
21
“Esse fundamentalismo – com quando esses pentecostais ingressaram na TV,
ingressaram na política partidária etc. Registra-
todo o respeito à questão se que foi a Igreja Católica que fez o primeiro pro-
da subjetividade – promove grama de televisão.
preconceito e racismo e não A Igreja Católica já tinha alianças partidá-

religiosa
permite que a gente reflita”

e desastres
rias, e isso fez com que o pentecostalismo tam-
bém construísse essa força para disputar tais

à intolerância
A partir disso é que eu vou pensar, assim privilégios. É nessa disputa, de certo modo, que
como a professora Bruna já falou, sobre a “lai- culmina o que se configura hoje como um poder

em emergências
cidade brasileira”. De fato, existe uma especifi- político-partidário, esse fundamentalismo religio-
cidade nessa laicidade. Aqui no Brasil, não con- so que a gente está discutindo aqui. Então, hoje

e o enfrentamento
seguiram, desde a República, privatizar a religião; nós temos essa representação política formada
muito pelo contrário, a religião católica manteve por fundamentalistas, que, no que tange a psico-
seus privilégios e os mantém até hoje. Os maio- logia, se utiliza de princípios bíblicos e não preza

CRP SPdo estado Psicologia


res privilégios ainda são da Igreja Católica. E, de pelo bem comum. Como Bruna bem explicou, em
modo geral, como não conseguiram promover alguns momentos fala-se de liberdade, em ou-
essa separação e os privilégios da Igreja Cató- tros, não; em alguns momentos se respeita a lai-
lica foram mantidos, todas as perseguições reli- cidade, em outros, não; fala-se de laicidade, mas
giosas passaram a acontecer no Brasil, como os ao mesmo tempo eu compreendo que se propõe
espíritas que foram acusados, por exemplo, de ali uma governabilidade religiosa.

laicidade
exercício ilegal da medicina. Alguns autores afir-
mam que não havia nenhuma pretensão de que

Temáticos
“É nessa disputa, de certo modo,

Psicologia,
o espiritismo se configurasse como religião, mas,
diante da pressão de outrora, ele precisou fazer que culmina o que se configura
isso para se defender. Os próprios protestan-
hoje como um poder político-

Cadernos Temáticos CRP SP Cadernos


tes, no início, também foram muito perseguidos
por isso, as religiosidades afro-brasileiras foram partidário, esse fundamentalismo
demonizadas, patologizadas. A polícia queria in- religioso que a gente está
vadir os terreiros, quebravam os instrumentos
dos ritos, das práticas. Até mais ou menos 1940,
discutindo aqui.“
enquadravam os ritos como feitiçaria e charlata-
nismo. E essas lideranças também foram obriga- Eu, como professora, vejo também uma
das a reconhecer, a registrar seus terreiros como grande dificuldade na sala de aula entre alunos
religião, embora não registrassem como terreiro, evangélicos e alunos que não são evangélicos,
mas como centro espírita, como tenda espírita. mas construíram sua subjetividade por meio de
Registravam com nome de santo católico, porque uma moral evangélica, de uma moral cristã. De
era o modo de negociar e de se tornar mais pala- modo geral, esses alunos têm dificuldade de pen-
tável para a sociedade brasileira. sar sobre sua atuação profissional, sobre o papel
Então, no percurso dessa laicidade brasilei- da Psicologia no exercício da laicidade. E aí eu fico
ra, eu compreendo que existia um pertencimento muito triste, é uma luta cotidiana. Não tem um dia
religioso e, junto desse pertencimento religioso, sequer em que não tenha um aluno – quando eu
dessa diversidade, uma aceitação da hegemonia trato de algum tema ou quando um colega pro-
católica. Em seguida, foi ocorrendo uma destra- põe algum tema que tenha relação com o enfren-
dicionalização religiosa justamente por conta tamento à discriminação, que seja uma crítica aos
desse pluralismo. Por quê? Porque você poderia retrocessos da política fundamentalista – que
– como acontece até hoje – ter dupla filiação re- não saia da sala ou que não tenha uma discussão
ligiosa. Existe um trânsito religioso muito grande na sala de aula por conta disso. Então, é tenso e
aqui no Brasil, exceto no caso dos pentecostais, triste ao mesmo tempo, mas aos poucos a gen-
que exigem exclusividade para seu segmento te vai dialogando com isso e utilizando o poder
religioso. Nesse mote, de fato percebo que o re- do lugar de professor para mediar esse diálogo,
conhecimento desse pluralismo e o questiona- mas não é fácil. Por que não é fácil? Porque tem a
mento dessa hegemonia se dão pelos pentecos- ver com a subjetividade. Então, às vezes é difícil,
porque não adianta você tentar mostrar as rela- Então, o que a Psicologia tem a ver com
22
ções da Psicologia com os Direitos Humanos; é tudo isso? É importante frisar que a Psicologia,
difícil porque está mexendo com a subjetividade além de seu status como ciência e como profis-
daquele aluno, então você também desestrutura são, é um ator social. Ela abarca um sistema que
aquele sujeito. Eu sinto que eles também sofrem, integra conselhos de classe e de profissão. E, en-
de certo modo, quando alguém mexe nessa estru- quanto ator social, é reconhecível, é localizável no
tura e naquilo em que eles acreditavam. debate público e em qualquer pleito, se posicio-
nando de modo contrário a esse fundamentalis-
Já foram citadas aqui algumas das propostas
mo religioso, o que vai impactar na agenda dos
que representam esse retrocesso, como a ques-
Direitos Humanos, no que se refere aos direitos
tão das drogas, dos direitos reprodutivos, o modo
sociais, à educação, à saúde e etc. A Psicologia
pejorativo como foi tratado o “kit gay”, uma cam-
já vem denunciando: quando denuncia as institui-
panha sobre HIV que foi vetada utilizando a justi-
ções privadas de tratamento ao uso de drogas,
ficativa da família. Ou seja, todos esses argumen-
denuncia que essas instituições recebem finan-
tos e propostas ferem os princípios do exercício da
ciamento público e, muitas vezes, promovem ali
laicidade dentro da Psicologia. Então, eu acho que
dentro a reversão sexual e, na maioria dos casos,
é isso que é importante falar, instalar aqui nessa
não atuam na lógica da reforma psiquiátrica. Se
casa. É o que eu falo todos os dias na sala de aula,
a Psicologia, no passado, foi conivente com algu-
é o que eu falo todos os dias nos momentos de
mas dessas propostas, hoje, se posiciona a partir
lazer. Já virou um mantra tocar nesse assunto, falar
dos Direitos Humanos e é contra suas violações.
dessa atuação profissional compromissada e que
é importante de fato estarmos atentas/os, porque, A gente precisa tomar isso como o nosso
muitas vezes, os discursos fundamentalistas que lema e emblema político, não só agora, por conta
representam esse retrocesso são sutis. das eleições, mas na nossa atuação profissional
de modo geral. Então, com relação aos segmen-
tos de matriz africana, há muitas coisas que eu
“Falar dessa atuação profissional posso compartilhar depois. Hoje à tarde, assim
que eu cheguei a São Paulo, recebi um vídeo de
compromissada e que é uns policiais que invadiram um terreiro em Minas
importante de fato estarmos Gerais e confiscaram os atabaques – algo que
atentas/os, porque, muitas vezes, acontecia entre as décadas de 1930 e 1950. De
fato, é um retrocesso. Eu participei do processo
os discursos fundamentalistas de tombamento de um terreiro em Salvador. Fi-
que representam esse quei refletindo sobre o quanto foi difícil realizar
retrocesso são sutis.“ esse tombamento: a exigência dos órgãos pú-
blicos, a construção de um lado antropológico,
as fotografias das atividades, a necessidade de
comprovar a existência daquele terreiro, que já vai
Eu tenho alunos que, no início da aula, fi-
fazer 100 anos. Pensei no quanto foi difícil. Foram
zeram uma reunião ou café da manhã para fazer
10 anos tentando tombar aquele terreiro. Existem
culto dentro da faculdade. E aí houve uma certa
outros terreiros tombados, mas existem aliados
tensão, porque outros alunos disseram: “Olha, a
políticos. Quando não se tem esses aliados, você
gente está a fim de conversar aqui, de bater papo,
precisa ficar o tempo inteiro tentando provar na
de falar besteira, de rir. Façam em outra sala”.
lógica de uma religião colonial que aquilo ali – o
Eles levaram o caso para a Coordenação e con-
terreiro – é uma religião. Foi muito confuso, foi
seguiram uma sala na faculdade para esse culto.
muito sofrido esse processo.
Outro grupo da faculdade se reúne nos intervalos
das aulas – acho que eles se chamam UFC (Uni-
dos pela Fé Universitária) ou algo do tipo, e fazem
uma espécie de reunião que também incomoda. É
difícil, inclusive, dar aula nas salas mais próximas.
Essa é uma forma de demonstrar os privilégios
que eles vêm ganhando aos poucos, uma forma
de reprimir as outras expressões religiosas den-
tro do espaço institucional.
Franklin Felix de Lima 23
Psicólogo e mestre em Psicologia da Educação pela PUC-SP. Coordenador
político estratégico da FICAS. Membro da coordenação colegiada da
ABONG/SP. Membro do GT de Laicidade e Religiosidade do CRP SP.
Apresentador do Programa Mutirão (Rede Boa Nova de Rádio). Colunista
da revista Carta Capital. Membro fraterno da KOINONIA.

em emergências
e o enfrentamento
CRP SPdo estado Psicologia religiosa
e desastres
à intolerância
Acho que, para ficar mais representativo e plural, religiões neopentecostais – inclusive, as nossas
nós precisávamos ter a presença de uma trans estão lá, como a Igreja Universal Mundial do Rei-
ou um trans – aí nossa mesa estaria completa. no de Deus, e também estão fazendo algo muito
Até porque, como estamos falando sobre laici- parecido com o que fazem aqui no Brasil.
dade e religiosidade, essa é uma das populações

laicidade
Na história do Brasil, durante o período da
que mais sofrem e são expulsas dos espaços sa-
colonização, buscou-se restringir a liberdade re-
grados: a população LGBT como um todo. A po-

Temáticos
ligiosa, professando a religião cristã como única
pulação de travestis, de mulheres e homens tran-

Psicologia,
e dizimando as outras religiões. Algo que eu per-
sexuais é a mais excluída na comunidade LGBT.
cebi em Angola, e que é muito legal destacar, é
Outra questão importante para a gente pensar
que as línguas nacionais perduraram, então exis-

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é que essa onda conservadora e reacionária não
tem cinco línguas nacionais, além do idioma por-
é só advinda das religiões neopentecostais, en-
tuguês, que foi imposto pelos invasores – nesse
tão eu vou falar um pouquinho disso, do lugar de
caso, por Portugal, que invadiu Angola e o Brasil,
onde eu venho.
e ali impôs sua crença, sua religião. Em Angola, os
Eu falo da comunidade espírita e tenho per- portugueses não conseguiram dizimar a língua
cebido um crescente movimento de intolerantes, nacional, mas no Brasil isso aconteceu. A gente
reacionários e conservadores nessa comunida- fala a Língua Portuguesa, mas, nas religiões in-
de. As pessoas acham que são modernas, que dígenas, por exemplo, há apenas alguns grupos
apoiam o diferente, mas não é bem assim. Eu acho isolados que falam.
sempre importante nós destacarmos de onde a
Pensando também na Igreja Católica, po-
gente fala, então eu sou psicólogo religioso, atuo
demos afirmar que é uma igreja tida como oficial,
na questão do ecumenismo, da tolerância religio-
largamente aceita e disseminada – até bem pou-
sa, do diálogo inter-religioso.
co tempo era a igreja oficial do Brasil. Foi com a
Dentro dos nossos espaços de fé, a gente Proclamação da República, em 1889, que o Esta-
tem uma disputa narrativa, então fazem de tudo do se tornou laico e passou a garantir o direito
para nos expulsar e a gente resiste. Seria muito à liberdade religiosa. Além da garantia constitu-
mais fácil – e eu afirmo isso categoricamente – a cional, outras leis se fizeram necessárias para
gente se afastar, porque assim a gente não so- que o direito pudesse ser usado de maneira am-
freria tanto. Eles nos causam tanto sofrimento pla e irrestrita na forma da lei, evitando qualquer
que, às vezes, a gente prefere se afastar a ficar tipo de intolerância, imposição e discriminação
no embate, mas a disputa de narrativa na mídia religiosa. Porém, não é bem assim. Meus pares
é importante, seja por meio das revistas ou das aqui já falaram brilhantemente do tema, mas eu
rádios. Recentemente, passei um tempo moran- quero chegar à Constituição Federal de 88: “Nós,
do em Angola. Ali, a gente percebe como a onda representantes do povo brasileiro, reunidos em
conservadora tem atingido o país, com uma popu- Assembleia Nacional Constituinte para instituir
lação estimada (parecida com o Brasil) de 80% de um Estado democrático, destinado a assegu-
cristãs e cristãos, onde tem-se a mesma onda de rar o exercício dos direitos sociais e individuais,
não, eles rezam em todos e a gente acaba comen-
24
“Foi com a Proclamação da do o frango que foi pensado para outras religiões.
Isso é só para a gente pensar como o problema é
República, em 1889, que o de racismo religioso, e não simplesmente de reli-
Estado se tornou laico e passou giosidade; isso é muito maior e está no imaginário
a garantir o direito à liberdade popular, inclusive quando a gente percebe insultos
relacionados às religiões não cristãs.
religiosa. Além da garantia
Existem algumas resoluções e normas téc-
constitucional, outras leis se
nicas para nós, enquanto psicólogas e psicólogos,
fizeram necessárias para que nos organizarmos em relação às questões da es-
o direito pudesse ser usado de piritualidade e da religiosidade. Temos lidado com
algumas questões, inclusive, de falta ética em
maneira ampla e irrestrita na
que profissionais religiosos querem impor sua fé
forma da lei, evitando qualquer no setting terapêutico ou nos espaços onde atu-
tipo de intolerância, imposição e am enquanto psicólogas e psicólogos.
discriminação religiosa“ Até pensando também como é que a gen-
te vai para a Resolução 01/1999, que estabelece
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desen- normas de atuação para as psicólogas e os psi-
volvimento, a igualdade e a justiça como valores cólogos em relação à questão da orientação se-
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e xual, e, mais recentemente, a Resolução 01/2018,
sem preconceitos, fundada na harmonia social e que estabelece normas de atuação para as psi-
comprometida, na ordem interna e internacional, cólogas e os psicólogos em relação às pessoas
com a solução pacífica das controvérsias, promul- transexuais e travestis. Outra resolução impor-
gamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Cons- tante é a 018/2002, que estabelece a forma de
tituição da República Federativa do Brasil”. É laico, atuação da psicóloga ou do psicólogo em relação
mas não é tão laico assim. É mantida a presença
de Deus na Constituição, e aí alguns vão utilizar
esse trecho para dizer que o Brasil não é um Es-
tado laico. Quando a gente fala sobre a laicidade
“Quando a gente fala sobre a
do Estado, em especial quando a gente está fa- laicidade do Estado, em especial
lando dos nossos pares, não está falando que é quando a gente está falando dos
um Estado ateu, embora os ateus, os agnósticos,
tenham o mesmo respeito dado a quem professa
nossos pares, não está falando
fé. A gente está dizendo que é um Estado laico, que é um Estado ateu, embora
em que deve ser garantido o direito de crença e os ateus, os agnósticos, tenham
de não crença a todo o povo. Então, o Estado não
pode, em detrimento de outras pessoas, apoiar
o mesmo respeito dado a quem
uma religião ou não e também não pode perse- professa fé. A gente está dizendo
guir determinadas religiões ou simplesmente fe- que é um Estado laico, em que
char os olhos, como acontece com as religiões de
matriz africana. No artigo 5o, item VI, está escrito:
deve ser garantido o direito de
“é inviolável a liberdade de consciência e de cren- crença e de não crença a todo
ça, sendo assegurado o livre exercício dos cultos o povo. Então, o Estado não
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias”.
pode, em detrimento de outras
pessoas, apoiar uma religião
Um exemplo interessante que poucos de
nós sabem é que o frango que a gente consome é ou não e também não pode
chamado de halal, que é um frango rezado por mu- perseguir determinadas religiões
çulmanos, é um frango para exportação. Não se
ou simplesmente fechar os olhos,
vê toda uma mobilização com o frango que a gen-
te consome. Para não rezar metade sim e metade como acontece com as religiões
não e se perder quanto ao que foi rezado e qual de matriz africana“
ao preconceito e à discriminação racial. Em rela- latório sobre a liberdade religiosa, pode-se con-
25
ção a tudo isso, a gente deve recorrer ao código siderar que a relação amigável entre as religiões
de ética profissional, que deve balizar a atuação contribui para a liberdade religiosa no Brasil. Nos-
de todas/os nós, profissionais. Então, de novo, eu, so país é religiosamente diverso, com tendência a
enquanto psicólogo e enquanto religioso, afirmo mobilidade entre as religiões. Mas eu queria dizer
que a gente deve garantir que no atendimento que, de 2005 para cá, há controvérsias, por causa

religiosa
às pessoas que nos procuram haja respeito a do surgimento dessa onda reacionária como uma

e desastres
sua crença ou a sua não crença, que a gente não tendência de segmentos que estão se sentindo
pode impor nossos valores, nossas crenças. Eu, ameaçados.

à intolerância
enquanto espírita, mais ainda, porque as pesso-

em emergências
as acreditam que seus problemas são de vidas
passadas; nunca o sujeito tem culpa, é sempre de “Nosso país é religiosamente
algo anterior àquela existência. Tudo isso infere
diverso, com tendência a

e o enfrentamento
na nossa atuação profissional.
mobilidade entre as religiões“
Cada um tem o Silas Malafaia que merece,

CRP SPdo estado Psicologia


e a gente também tem um Malafaia para nossa
religião, que se chama Divaldo Franco. Ele tem Então, quando a população LGBT vai para
tido falas tão absurdas que nos leva a acreditar as ruas exigir seus direitos, é porque a cada 28
que está flertando com religiões conservadoras horas alguém da comunidade LGBT é assassina-
e intolerantes. Em uma de suas falas, por exem- do no Brasil. A média de idade das travestis é de
plo, ele se posicionou sobre a identidade de gê- 28 a 32 anos. Muitas vezes, um religioso ou uma

laicidade
nero, que é algo que ele não domina, e agora, religiosa não vai lá e mata, mas empodera outras
mais recentemente, teve uma fala associando a pessoas para fazer, seus discursos empoderam

Temáticos
Psicologia,
bissexualidade ao heavy metal. Ele faz um terror essas pessoas. E é pensando na história da Mãe
e confunde, porque tem milhares de seguidores. Gilda – já contada pela Veridiana –, que foi perse-
É isso: quando uma liderança religiosa se posi- guida até chegar a óbito, que a gente pensa na di-

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ciona dessa maneira, isso confunde as pessoas mensão subjetiva, em como a dimensão subjetiva
que estão ao seu redor. E aí as pessoas imaginam pode enfraquecer as relações humanas, algo que
que a doutrina espírita é uma religião elitista, uma tem estado muito presente nessas eleições pre-
religião branca, e, portanto, acredita-se que es- sidenciais de 2018. Eu acho que o caldo entornou
sas pessoas são mais intelectualizadas, mas, em em meados de 2010, quando a pauta moral apa-
tese, não o são. As mesmas coisas que a gente receu muito forte, a questão do aborto apareceu
encontra dentro de outras religiões também en- muito forte no debate eleitoral. De lá para cá, es-
contra dentro da comunidade espírita. sas pautas conservadoras têm ganhado terreno,
então é impossível pensar em um pleito eleitoral
sem dialogar com os religiosos e as religiosas.
“Quando uma liderança religiosa É muito fácil a gente dizer que “O Estado é
se posiciona dessa maneira, isso laico”. É como se a gente se colocasse na pare-
confunde as pessoas que estão de e dissesse: “O Estado é laico e eu não quero
saber, a gente vai ter que respeitar a laicidade”.
ao seu redor” O que a gente tem que pensar é que precisa dia-
logar com todas as camadas sociais, inclusive as
religiosas, que constituem a grande maioria do
E aí, para pensarmos no que estamos falan- povo brasileiro. Outra questão reflexiva é: qual o
do, a quantidade de pessoas no Brasil que têm papel da Psicologia no enfretamento das intole-
uma crença ou que acreditam em alguma coisa é râncias e no fortalecimento da laicidade do Esta-
de cerca de 80%. Também tem a dupla pertença, do? E no diálogo religioso? É um papel importante
que é algo interessante. Existem pessoas, por justamente porque a gente vai se debruçar em
exemplo, que são evangélicas, mas acreditam na pensar como é que a Psicologia pode minimizar
reencarnação; que são evangélicas, mas respei- o sofrimento das pessoas, justamente porque al-
tam Maria. Essas crenças podem tranquilamente guns sofrimentos são oriundos de religiosas e de
se complementar dentro da pluralidade religiosa religiosos que interpretam à sua maneira os livros
que marca o povo brasileiro. Com base em um re- sagrados. Quando eu falo que eles querem nos
expulsar das comunidades de fé, além de que- da Psicologia e para a construção de ações que
26
rer nos expulsar, eles querem nos tirar o acesso vão primar pelo fortalecimento da laicidade do
ao sagrado, como se fosse algo que só um gru- Estado. Tudo isso pensando que, diante do que
po pudesse ter. Então, por exemplo, nós, LGBTs, a gente tem vivido, diante dessa onda reacioná-
eles querem nos expulsar das comunidades de fé, ria e conservadora, nós também precisamos nos
como se a gente fosse demonizado. Inclusive, de- posicionar com vigor, precisamos nos posicionar
monizam nossos desejos e nossos corpos como com fraternidade, não permitindo que as pessoas
uma forma de nos tornar menos humanos. ajam com truculência.

“Nós, LGBTs, eles querem nos “Precisamos nos posicionar com


expulsar das comunidades vigor, precisamos nos posicionar
de fé, como se a gente fosse com fraternidade, não permitindo
demonizado. Inclusive, demonizam que as pessoas ajam com
nossos desejos e nossos corpos truculência“
como uma forma de nos tornar
menos humanos“

Por fim, vamos pensar em recomendações e


sugestões sobre o papel da Psicologia nessa su-
peração das intolerâncias. Acredito que primeiro a
gente deve travar um amplo debate com a socie-
dade civil para pensarmos em como podemos de-
fender os Direitos Humanos, a partir de algumas
questões que são muito caras para a Psicologia.
Podemos criar grupos de trabalho dentro dos con-
selhos, por exemplo, mas não dá para ficarmos
apenas no discurso, que é muito academicista.
Concordo com meu amigo Henrique, que a gente
não pode falar “Neopentecostal é tudo reacioná-
rio, não tem conhecimento acadêmico”. A gente
também está dentro de uma supremacia branca e
academicista e não dialoga com as camadas mais
populares. É preciso criar normas técnicas e reso-
luções, assim como o Conselho já vem fazendo,
mas também dialogar com os anseios e as neces-
sidades da população brasileira, ampliar o debate
com o campo religioso, com outras áreas, como a
Antropologia e a Ciência da Religião, e pensar em
como essas áreas podem contribuir para o fazer

“Travar um amplo debate com a


sociedade civil para pensarmos
em como podemos defender os
Direitos Humanos, a partir de
algumas questões que são muito
caras para a Psicologia“
Realização:

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