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cadernos temáticos CRP SP


Conversando sobre as perspectivas
da educação inclusiva para pessoas
com Transtorno do Espectro Autista
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região - CRP 06

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cadernos temáticos CRP SP
Conversando sobre as perspectivas
da educação inclusiva para pessoas
com Transtorno do Espectro Autista

CRP 06 · São Paulo · 2019 · 1ª Edição


Caderno Temático n° 32 – Conversando sobre as perspectivas da educação inclusiva para pessoas com
Transtorno do Espectro Autista

XV Plenário (2016-2019)

Diretoria
Presidenta | Luciana Stoppa dos Santos
Vice-presidenta | Larissa Gomes Ornelas Pedott
Secretária | Suely Castaldi Ortiz da Silva
Tesoureiro | Guilherme Rodrigues Raggi Pereira

Conselheiras/os
Aristeu Bertelli da Silva (Afastado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Beatriz Borges Brambilla
Beatriz Marques de Mattos
Bruna Lavinas Jardim Falleiros (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Clarice Pimentel Paulon (Afastada desde 16/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Ed Otsuka
Edgar Rodrigues
Evelyn Sayeg (Licenciada desde 20/10/2018 - PL 2051ª de 20/10/18)
Ivana do Carmo Souza
Ivani Francisco de Oliveira
Magna Barboza Damasceno
Maria das Graças Mazarin de Araújo
Maria Mercedes Whitaker Kehl Vieira Bicudo Guarnieri
Maria Rozineti Gonçalves
Maurício Marinho Iwai (Licenciado desde 01/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)
Mary Ueta
Monalisa Muniz Nascimento
Regiane Aparecida Piva
Reginaldo Branco da Silva
Rodrigo Fernando Presotto
Rodrigo Toledo
Vinicius Cesca de Lima (Licenciado desde 07/03/2019 - PL 2068ª de 16/03/2019)

Organização do caderno
Valéria Campinas Braustein, Ione Aparecida Xavier, Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso e Maria Rozineti Gonçalves

Revisão ortográfica
Julie Anne Caldas

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Relações Externas CRP SP

___________________________________________________________________________
C755p Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência. Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2019.
52 p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP /nº 29)

ISBN: 978-85-60405-53-4

1. Psicologia e Pessoas com Deficiência. 2. Direitos das Pessoas com


Deficiência. 3. Direitos Humanos. 4. Rede de Atendimento às Pessoas com
Deficiência. 5. Direitos às Acessibilidades de Pessoas com Deficiência. I. Título

CDD 157.8
__________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo CRB8/8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, entre as
ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáticos do
CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em
diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar


um dos princípios que orientam as ações do CRP SP, o de produzir referências
para o exercício profissional de psicólogas/os; o segundo é o de identificar
áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento
social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente,
ser um espaço para que a categoria apresente suas posições e questiona-
mentos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção co-
letiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como
ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira


a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que
contaram com a experiência de pesquisadoras/es e especialistas da Psicolo-
gia para debater sobre assuntos ou temáticas variados na área. Reafirmamos
o debate permanente como princípio fundamental do processo de democrati-
zação, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os cami-
nhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes
em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como um fenômeno complexo, multideterminado e historicamente
produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite
à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas/os, bem
como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-
dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras,
sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 32º Caderno da série. Seu tema é: Conversando sobre as pers-


pectivas da educação inclusiva para pessoas com Transtorno do Espectro Autista.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo


para o espaço coletivo informações, críticas e proposições sobre temas rele-
vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita


ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-
misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todas/os.

XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial


2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
16 – Psicologia e Segurança Pública
17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social
18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional
19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão
20 – Psicologia Organizacional e do Trabalho
21 – Psicologia em emergências e desastres
22 – A quem interessa a “Reforma” da Previdência?: articulações entre a psicologia e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores
23 – Psicologia e o resgate da memória: diálogos em construção
24 – A potência da psicologia obstétrica na prática interdisciplinar: uma análise crítica da realidade brasileira
25 – Psicologia, laicidade do estado e o enfrentamento à intolerância religiosa
26 – Psicologia, exercício da maternidade e proteção social
27 – Nossa luta cria: enfrentar as desigualdades e defender a democracia é um dever ético para a Psicologia
28 – Psicologia e precarização do trabalho: subjetividade e resistência
29 – Psicologia, direitos humanos e pessoas com deficiência
30 – Álcool e outras drogas: subsídios para sustentação da política antimanicomial e de redução de danos
31 – Psicologia e justiça: interfaces
Sumário

07 Introdução
Valéria Campinas Braunstein

09 Conversando sobre as perspectivas da educação


inclusiva para pessoas com Transtorno do Espectro
Autista
Maria Rozineti Gonçalves

Lilian Suzuki

Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso

Valéria Braunstein

Paula Ayub

Andrea Souza Pontes Natal

Andrea dos Santos de Jesus


Introdução 7

Valéria Campinas Braunstein

Autista
Colaboradora do Núcleo Educação e Medicalização (NEM) e do Núcleo Psicologia

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
e Deficiência (NPD) do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP SP

do Espectro
Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) desafio reconhecer as necessidades desses estu-

em emergências
têm sido motivo de investigação nas áreas de saú- dantes e oferecer situações de aprendizagem que
de, educação e assistência social. Com incidência sejam com eles condizentes. No entanto, como as

com Transtorno
aproximada de 1:200 nascimentos, de etiologia ain- crianças têm características diversas dentro de um
da questionável, tal transtorno foi estudado por Leo espectro, há controvérsias sobre qual é o atendi-
Kanner (1943), Asperger (1968) e Wing (1981), que mento educacional mais adequado às especificida-

Psicologia
descreveram as pessoas com TEA como aquelas des das pessoas com TEA. Embora não tenhamos

CRP SP para pessoas


que apresentam geralmente um grau de prejuízos estudos e práticas conclusivos e uniformes em re-
no curso do desenvolvimento, dentro de um espec- lação às estratégias de ensino para esses estudan-
tro composto pela tríade de déficits simultâneos e tes na escola, profissionais da educação e da saúde
variáveis na interação, na ordem simbólica, social persistem buscando oferecer um atendimento de

educação inclusiva
e comunicacional, características essas frequen- qualidade. Os profissionais psicólogos são frequen-

Cadernos Temáticos CRP SP


temente acompanhadas de comportamentos re- temente chamados a participar dos processos de
petitivos e estereotipados, expressos em quadros inclusão educacional e social dessas pessoas, são

daTemáticos
clínicos, dos tênues aos mais graves. As condições convocados a trabalhar com as famílias, com os
de desenvolvimento na esfera comunicacional apre- professores, junto às escolas, e de modo individual
sentam um descompasso na linguagem expressiva, e grupal com as pessoas que manifestam TEA.

Cadernos
denotando por vezes falas mal compreendidas e/ou

Conversando sobre as perspectivas


descontextualizadas, e também é comum ocorrer a Políticas públicas têm sido criadas para aten-
ausência de fala. Já em relação à linguagem recep- der à diversidade. A Declaração de Salamanca (1994),
tiva, os prejuízos se evidenciam na função interpre- documento do qual o Brasil tornou-se signatário,
tativa, que poderá ser literal diante das expressões pode ser considerada como um marco legal que
de linguagem e das situações. Assim a área comu- contribuiu para disseminação do paradigma de edu-
nicacional interfere diretamente na aprendizagem cação inclusiva no mundo, uma vez que preconiza o
da cultura escrita e na interação social dessas pes- direito de acesso e permanência de todos e todas ao
soas, que no ambiente escolar demandam atenção ensino regular. Esse documento tem colaborado para
específica para que possam aprender e se desen- a criação e a homologação de leis, internacionais e
volver. Também estão presentes, em alguns casos, nacionais1, e de documentos orientadores e subsidi-
dificuldades para lidar com mudanças no ambiente, ários, ao apontar para a necessidade de serviços de
bem como a manifestação de pânico diante de sons suporte para que se concretize o paradigma inclusi-
e/ou ruídos fortes e a ausência do olhar para o rosto vo. Entre os profissionais de suporte, podemos citar Cadernos Temáticos CRP SP

do interlocutor e a auto e/ou heteroagressividade. os psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, mé-


dicos e pedagogos especializados, de modo que se
Na esfera simbólica, evidencia-se a fixação
forme uma rede de serviços em prol de uma educação
de interesses por determinados assuntos e/ou
de qualidade para todos e todas. Embora as pesso-
atividades. A diversidade intelectual também está
as com TEA tenham sido beneficiadas indiretamen-
presente e, portanto, as possibilidades cognitivas
te por tais documentos, ainda se fazia necessário a
são uma incógnita e diversas, como em qualquer
criação de leis específicas a essa população, e assim
outro ser humano. Essas especificidades de com-
a Lei 12.764 de 2012 instituiu a Política Nacional de
portamento e de relações afetivas e humanas ain-
Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do
da permanecem como justificativa para que essas
Espectro Autista, equiparando-a às pessoas com
crianças frequentem instituições especializadas de
modo substitutivo à modalidade de ensino comum.
Na esfera educacional, principalmente na educa- 1 LDB/1996; Convenção de Guatemala/1999; Plano Nacional
ção especial, os estudos e as práticas têm como de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusi-
va/2008.
deficiência e assegurando-lhe os mesmos direitos: acadêmico e social dos estudantes com deficiên-
8
“§ 2o A pessoa com transtorno do espectro autista cia, favorecendo o acesso, a permanência, a partici-
é considerada pessoa com deficiência, para todos os pação e a aprendizagem em instituições de ensino;
efeitos legais” (BRASIL, 2012). Cabe ressaltar alguns
VI - pesquisas voltadas para o desenvolvimento
parágrafos que têm relação direta com a inserção
de novos métodos e técnicas pedagógicas, de
dessas crianças no ensino regular:
materiais didáticos, de equipamentos e de recur-
Parágrafo único. Em casos de comprovada sos de tecnologia assistiva;
necessidade, a pessoa com transtorno do espec-
VII - planejamento de estudo de caso, de elabora-
tro autista incluída nas classes comuns de ensino
ção de plano de atendimento educacional especia-
regular, nos termos do inciso IV do art. 2o, terá di-
lizado, de organização de recursos e serviços de
reito a acompanhante especializado.
acessibilidade e de disponibilização e usabilidade
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, co- pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;
nhecido como a Lei da Inclusão, de julho de 2015,
VIII - participação dos estudantes com deficiên-
resguarda os direitos da pessoa com deficiência e
cia e de suas famílias nas diversas instâncias de
normatiza algumas situações que dizem respeito à
atuação da comunidade escolar;
sua escolarização. De acordo com o Estatuto, toda
criança com deficiência deverá frequentar ensino XV - acesso da pessoa com deficiência, em igual-
regular, tendo direito a apoios que deverão ser ofe- dade de condições, a jogos e a atividades recre-
recidos pela rede de serviços, conforme apregoa o ativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;
capítulo IV a saber:
XVII - oferta de profissionais de apoio escolar;

Do Direito à Educação XVIII - articulação intersetorial na implementação


de políticas públicas. (BRASIL, 2015, pp. 32-36)
Art. 27. A educação constitui direito da pessoa
com deficiência, assegurados sistema educacio- Sendo a psicologia uma profissão que tem,
nal inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao entre suas premissas, o respeito aos direitos huma-
longo de toda a vida, de forma a alcançar o má- nos, o respeito à diversidade e a preocupação em
ximo desenvolvimento possível de seus talentos subsidiar e acompanhar políticas públicas que ve-
e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e nham a colaborar com a qualidade de vida humana
sociais, segundo suas características, interesses em sociedade, as ações dos diversos núcleos de-
e necessidades de aprendizagem.[...] vem direcionar-se por tais princípios. Portanto, esse
evento se propôs a unir o Núcleo da Pessoa com De-
Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar,
ficiência (NPD) e o Núcleo de Educação e Medicaliza-
desenvolver, implementar, incentivar, acompa-
ção (NEM) e mediar uma roda de conversa sobre a
nhar e avaliar:
educação de pessoas com TEA e a interlocução dos
I - sistema educacional inclusivo em todos os ní- psicólogos junto à rede de serviços e às famílias.
veis e modalidades, bem como o aprendizado ao
Sem a intenção de oferecer exemplos práti-
longo de toda a vida;
cos padronizados, tampouco de reduzir a educa-
II - aprimoramento dos sistemas educacionais, vi- ção inclusiva à educação de pessoas com defici-
sando garantir condições de acesso, permanência, ência, e sem patologizar tal parcela da população,
participação e aprendizagem, por meio da oferta incentivando a medicalização e a judicialização,
de serviços e de recursos de acessibilidade que eli- esse encontro possibilitou tensionar e refletir so-
minem as barreiras e promovam a inclusão plena; bre o trabalho do psicólogo, dos educadores, e dos
profissionais da rede de serviços, partindo de pon-
III - projeto pedagógico que institucionalize o
tos de vista e demandas sociais. Assim, a mesa foi
atendimento educacional especializado, assim
composta por psicólogos, pedagogos, familiares
como os demais serviços e adaptações razoáveis,
e pôde dialogar com uma plateia de profissionais,
para atender às características dos estudantes
estudantes e familiares. Os objetivos foram alcan-
com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao
çados, e a discussão, ampliada e contextualizada,
currículo em condições de igualdade, promovendo
abrindo espaço para tornar visível novas alternati-
a conquista e o exercício de sua autonomia;
vas de intervenção viáveis, que melhorem a quali-
V - adoção de medidas individualizadas e coletivas dade da escolarização e da vida das pessoas com
em ambientes que maximizem o desenvolvimento TEA. Fica aqui o convite à leitura e à reflexão.
Conversando sobre as 9

perspectivas da educação
inclusiva para pessoas com

Autista
Psicologia em emergências e desastres

e desastres
do Espectro
Transtorno do Espectro Autista

Psicologia
CRP SP para pessoas em emergências
com Transtorno
Maria Rozineti Gonçalves: Bom dia a todas e to- funcionários que se dispuseram a organizar e
dos. Saúdo e agradeço, em nome da diretoria do mediar as conversas nos polos.
Conselho Regional de Psicologia, ao público, às
pessoas responsáveis pela coordenação e pela Para introduzir o assunto, eu proponho

educação inclusiva
Cadernos Temáticos CRP SP
organização do evento, aos funcionários e aos uma pergunta disparadora, que seria: Qual é
intérpretes de Libras. Este evento é composto a ética que rege o processo de nomeação da

daTemáticos
por dois núcleos temáticos: o Núcleo Educação pessoa com autismo, transtorno do espectro
e Medicalização, coordenado pela Psicóloga Li- autista, educação inclusiva? É relevante refletir
lian Suzuki, que também compõe nossa mesa, sobre tais nomeações a partir de marcadores

Cadernos
e o Núcleo Psicologia e Deficiência, coordena- sociais, econômicos, de etnia, de gênero, dando

Conversando sobre as perspectivas


do pela Mirnamar, também aqui presente e a destaque às questões que as permeiam, como:
quem eu agradeço por me dar a honra de parti- desigualdade, estigma, preconceito, padroniza-
lhar esta ação, motivada pela comemoração ao ção e exclusão. É disso que estamos falando.
Dia Nacional de Luta pela Educação Inclusiva. Também devemos nos perguntar, psicólogos
Inclusive, neste mês, produzimos uma nota que e educadores e todos os presentes aqui, se
apresenta questões relacionadas à educação oportunizamos às pessoas com autismo verda-
inclusiva, reafirmando a importância de que deiras experiências de participação na vida co-
o Conselho esteja presente no campo de luta tidiana e nas escolas, considerando-as nos pro-
que compõe esse cenário. Produzimos alguns cessos decisórios, inclusive, sobre si mesmas,
pequenos vídeos, que foram disponibilizados ou se nossas premissas estão alicerçadas na
na página do Facebook do Conselho Regional lógica da tutela, da ortopedia e do adaptacio-
de Psicologia de São Paulo, trazendo algumas nismo. Acho que já superamos alguns marcos
experiências de atuação nesse contexto, e hoje para novos paradigmas, mas a gente percebe Cadernos Temáticos CRP SP
finalizaremos o tema com este evento. Embora que em muitos momentos escorrega para eles
a perspectiva com que o Conselho atua e tra- também. Os marcadores normativos legais e
balha na educação inclusiva seja mais ampla, políticos, a Lei Brasileira de Inclusão, convocam
hoje optamos por abordar as questões relacio- os profissionais da educação, da psicologia, a
nadas às pessoas com autismo. Aproveito para promoverem um giro linguístico, colocar a diver-
agradecer e saudar as pessoas que estão nos sidade na interação, na comunicação e na cog-
assistindo online e reforçar que estamos com o nição, em uma perspectiva discursiva e dialógi-
canal do CRP, webtv@crpsp.org.br, com a trans- ca que nos possibilite passar a olhar o lugar do
missão ao vivo, pelo www.crpsp.org.br/aovivo, sujeito e a subjetividade que se constitui nes-
e que quem nos assiste pode enviar seus co- sas interações. Recentemente, o MEC fez uma
mentários e suas contribuições pelo formulário reunião convocando alguns grupos para redis-
do site, garantindo assim a participação a dis- cutir o Plano Nacional de Educação Especial, e
tância. Há também polos de transmissão nas houve algumas propostas que representam um
subsedes e, portanto, agradeço aos colegas e retrocesso à educação inclusiva em nosso país.
Reafirmo, portanto, que o caminho que defen- sentante do Núcleo Psicologia e Deficiência,
10
demos na psicologia, enquanto ciência e profis- estou aqui participando desta abertura, partici-
são, é o da dignidade intrínseca a que todas as pando do evento nesta ação internúcleos, por-
pessoas têm direito. Acredito que esse debate que efetivamente entendemos que a educação
de hoje, além de apontar barreiras, desafios da inclusiva, especialmente da pessoa com Trans-
educação inclusiva, sobretudo apontará cami- torno do Espectro Autista, está muito longe de
nhos para a máxima expressão da vida digna ser, de fato, concretizada. Há muitas lutas a se-
em contexto inclusivo da pessoa com autismo. rem feitas, e o Núcleo Psicologia e Deficiência
Passo a palavra para a psicóloga Lilian Suzuki. tem trabalhado com a educação nessa questão
e em outras questões também. A nossa abran-
Lilian Suzuki: Boa noite a todos que estão
gência, enquanto núcleo, é mais ampla, não se
aqui presentes e também online nos vendo pelo
limita à deficiência intelectual, à pessoa autista,
CRP, webtv@crpsp.org.br, muito obrigado pela
mas também chega a outras deficiências. E o
participação. Essa é uma das ações que fazem
que temos visto é que a gente precisa refletir
parte de um dos objetivos da gestão atual do
muito sobre este momento que estamos vi-
CRP, e se trata da ampliação da inserção social
vendo, um momento de muita indignação com
da psicologia. É uma ação internúcleos, pois
tudo o que está acontecendo neste País, com
trata da educação e da pessoa com deficiência,
o risco de termos retrocessos de conquistas na
e tem como marca principal a atuação interse-
área da deficiência, sobretudo por não estar-
tores. Recentemente, pelo Núcleo de Educação,
mos devidamente estruturados pra fazer esses
organizamos um evento falando sobre o risco
enfrentamentos. Então, o Conselho Regional
psíquico na infância e, entre nossas ações, es-
de Psicologia, esta gestão tem essa preocupa-
tamos planejando nossa participação, no final
ção, de dar sua contribuição em tudo o que for
de maio, na Conape, que é a Conferência Na-
possível para que os direitos das pessoas com
cional Popular de Educação. Depois, em junho,
deficiência, conforme preconizam a Conferência
participaremos na Conae, Conferência Nacional
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiên-
de Educação, à qual vamos levar discussões
cia, a Lei Brasileira de Inclusão e particularmen-
acerca da escola que queremos e da educação
te o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com
como um direito humano. O material que esta-
Transtorno do Espectro Autista, sejam, de fato,
mos produzindo a partir de nossas ações será
instituídos. Temos muito a avançar. Ontem nós
apresentado no Congresso Nacional de Psico-
tivemos, inclusive, uma reunião aqui da comis-
logia, totalizando quatro trabalhos. Falaremos
são de fiscalização e ficamos impressionados
sobre as demandas escolares na rede de as-
quando vimos algumas coisas que estão acon-
sistência social e de saúde, que é um traba-
tecendo neste país que demonstram que pre-
lho que vimos fazendo no formato de rodas de
cisamos caminhar mais em fiscalizações que
conversa em várias cidades. Vamos apresentar
fazemos. A gente observa que a pessoa com
um trabalho sobre o Escola Sem Partido, vamos
deficiência continua sendo tratada enclausu-
abordar a medicalização da vida e as implica-
radamente, sem nenhuma assistência, não a
ções da psicologia escolar com tal tema e fala-
assistência social, mas sem os recursos para
remos também sobre educação inclusiva. Res-
os quais ela tem direito, né? Com serviços, com
salto que, nas avaliações de reconhecimento
atenção integral. São pessoas que estão em
de cursos e de autorizações de funcionamento
muitas instituições por este Brasil afora, sendo
de cursos, feitas pelo MEC, não tem nenhuma
colocadas, despejadas, isoladas, abandonadas.
outra normativa que dê atenção específica a
Então é isso que a gente tem que ver. A edu-
uma inclusão, mas lá tem uma normativa à qual
cação é um passo importante para mudar essa
a gente precisa atender para o reconhecimento
realidade. Importantíssimo. Tanto para nós, en-
de cursos: a que versa sobre o Transtorno do
quanto profissionais, quanto para as famílias
Espectro do Autismo.
e, principalmente, para aquelas pessoas que
Rozi: Obrigada, Lilian, passo então a pala- têm deficiência, que estão ali e muitas vezes
vra para a psicóloga Mirna. não têm autonomia para poder dizer, falar so-
bre si. Então, é muito bom que a gente possa,
Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso: neste momento, estar junto para discutir, para
Bom dia a todas e a todos aqui presentes. É falar, para tirar dúvidas, e o Conselho Regional
com muita satisfação que eu, enquanto repre- de Psicologia, que é um órgão que representa
a psicologia, que se preocupa com a qualifica- ção, mas quem evitava contato com os mesmos
11
ção desses profissionais, tem esse compromis- eram geralmente as pessoas sem deficiência,
so. A gente tem, sim, que fazer essa discussão, aliás, isso ainda ocorre. Mas é perceptível que,
para que possamos fazer encaminhamentos e a partir do momento em que essas pessoas
propostas que possam contribuir efetivamen- começaram a circular nas ruas e nas escolas,
te. Então, eu convido a todos para o debate. Eu a população não autista começou a enxergá-

Autista
gostaria de perguntar, primeiro, quem são os las, e, como a escola é um direito humano, con-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
psicólogos, as psicólogas que estão aqui pre- forme as pessoas com autismo começaram a
sentes? Por favor, levantem a mão, só para a frequentá-la, passaram também a serem vistas

do Espectro
gente ter uma ideia. Tá bom. Estudantes? Que como humanos. Pode ser rude essa afirmação,

em emergências
bom, muitos estudantes. Isso é ótimo, né? Isso mas antes disso elas não eram reconhecidas
é muito bom. Eu acho que temos aqui, nesta ma- como tal, então vale a reflexão: como pode uma

com Transtorno
nhã, muito o que discutir, conversar, para, quem sociedade como a nossa excluir do convívio co-
sabe, também transformar um pouco este país. tidiano pessoas que se comunicam de um jeito
Tá bom? Muito obrigada e qualquer coisa o Nú- diferente do que a maioria acha que é certo, do

Psicologia
cleo Psicologia e Deficiência está à disposição que é habitual?
para quem quiser conhecer melhor o trabalho,

CRP SP para pessoas


Quando afirmamos que “autista não vincu-
para quem quiser contribuir, participar, porque
la”, devemos também pensar e observar como
nós estamos precisando, sim, de muitas mãos
nós nos vinculamos a eles e se permitimos esse
e muitas pernas pra podermos avançar juntos.
vínculo. Persevera o diagnóstico baseado na

educação inclusiva
Rozi: Obrigada, Mirna. Eu finalizo esta tríade comunicação, interação e sociabilidade,

Cadernos Temáticos CRP SP


mesa dizendo que realmente é um prazer ter sem incluir o outro nesse modo de relação, sem
nossa casa cheia, e aproveito para convidá-los considerar que um problema de comunicação

daTemáticos
para a assembleia do dia 11, que fará prestação ocorre minimamente entre duas pessoas. Idem
de contas aos psicólogos sobre todo o traba- para a interação, ou seja, se alguém tem dificul-
lho político e financeiro da atual gestão. Estão dades de interação, também quem está intera-

Cadernos
todos convidados também para acompanhar a gindo com ele o tem, porque não está interagin-

Conversando sobre as perspectivas


programação de nossa agenda. Vamos agora do com ele de um modo agradável ao ponto de
desfazer esta mesa e eu vou convidar a psicó- vincular e de que ele se sinta acolhido e respei-
loga Valéria Braunstein, que está responsável tado. Se a questão é a sociabilidade, vale refle-
por fazer a mediação da próxima mesa. tir se a nossa sociedade está oferecendo opor-
tunidades de relações potentes e iguais pra
Valéria: Bom dia, todos e todas. Estou
todos, inclusive para os autistas. Pretendemos
muito feliz de estar aqui e em ver esse auditório
responder às indagações propostas pela Rozi
lotado, denotando importância e interesse so-
e refletir sobre a nomeação e o diagnóstico e
bre esse assunto tão caro à psicologia e aos
também sobre a escolarização dessas pessoas.
profissionais que, como eu, têm uma vivência
com pessoas com sofrimento psíquico intenso. Os diagnósticos de Transtorno do Espec-
No meu caso, por exemplo, eu tenho tido a hon- tro Autista têm aumentado absurdamente, por-
ra de trabalhar com essas pessoas e seus fa- tanto lanço mais algumas questões para a dis- Cadernos Temáticos CRP SP
miliares, como psicóloga, e com os educadores cussão aqui: será que os educadores precisam
envolvidos em seu processo de escolarização perguntar para os médicos como fazer para en-
desde 1984, portanto há aproximadamente trin- sinar seu aluno autista a ler e escrever?
ta e poucos anos. Quando eu comecei a traba-
lhar com essa população, essas crianças eram Alguns docentes argumentam não estarem
invisíveis, e encontravam-se enclausuradas em preparados, mas, pensando bem, ninguém está
instituições fechadas onde ninguém conse- preparado para ter filho, ninguém está prepara-
guia ter contato com elas, ninguém conversa- do para ter sobrinho, neto, na realidade, ninguém
va com elas, algumas fechadas em suas casas está preparado para começar uma nova relação,
sem pode passear, porque as pessoas na rua porque as novas relações incluem minimamen-
ficavam olhando de um modo muito diferente e te você e o outro, então é sempre uma relação
assustador. No entanto, ainda convivemos com com o desconhecido. Acredito que precisamos
afirmações de que os autistas é que têm dificul- aprender a nos relacionarmos com a diversida-
dades de relacionamento, interação e socializa- de, e afirmo isso porque, nesses trinta e poucos
anos de trabalho, eu nunca conheci um autis- o lápis, e também aplicou um outro instrumento
12
ta igual ao outro, todo autista para mim é uma que é para até oito anos de idade. Eu só posso
nova descoberta, aliás, toda pessoa para mim é pensar que a profissional estava com um pre-
uma nova descoberta. Então, convido à mesa a conceito... com pré-conceito, pois usou um tem-
psicóloga Paula Ayub, que é terapeuta familiar po precioso aplicando um teste abaixo da faixa
pela PUC, diretora do Centro de Convivência Mo- etária do paciente, porque provavelmente acre-
vimento, que é um local voltado para o atendi- ditava, antes de testar, que ela não consegui-
mento de pessoas com autismo, e é assessora ria, portanto tinha uma ideia pré-formada sobre
escolar. Convido também Andrea dos Santos de aquela pessoa. E se eu, psicóloga, dou um teste
Jesus, que é graduada em pedagogia pela Facul- gráfico pra uma pessoa que tem um problema
dade de Educação da Unicamp, professora das motor e não pega no lápis, eu também estou su-
séries iniciais; atua com as questões de educa- pondo que ela é incapaz. A provocação é: é isso
ção inclusiva há mais de 20 anos, na formação que nós vamos continuar fazendo? Penso então
de professores, realizando coordenação de pro- que temos dois caminhos: o da ética e o de ficar
cessos formativos para professores das redes rico. Vamos pensar direitinho.
públicas no ensino fundamental, discutindo e
propondo práticas pedagógicas inclusivas e fa- Atualmente vejo um abandono, abando-
zendo formação de professores do Atendimento nados no recreio, abandonados nas bibliotecas,
Educacional Especializado; atualmente está na abandonados nas salas de aula. A comunicação
Prefeitura Municipal de Franco da Rocha, como da pessoa com autismo é uma questão a ser
assessora técnica, sendo responsável pela im- olhada de um outro lugar, do nosso, ou seja, o
plementação dos projetos educativos Mais Edu- que ele está me comunicando que eu não es-
cação, Atendimento Educacional Especializado tou entendendo? Asperger discordava que as
e Foco. Temos também a Andrea Souza Pontes crianças que descreveu fossem as mesmas que
Natal, que é formada em comunicação social Kanner descreveu, então, quando colocamos
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com em um espectro, será que estamos falando das
pós-graduação em marketing e em educação a mesmas pessoas? Como disse a Valéria, duran-
distância, tem experiência de mais de 20 anos te esses anos todos de atendimento clínico –
na área de comunicação empresarial e é mãe de o meu é clínico especificamente –, eu nunca vi
um menino autista, e ela veio nos contar sobre a dois autistas iguais.
prática, sobre a vida dela.
No meu trabalho eu vou muito às escolas
Paula Ayub: Bom dia. Primeiramente, ob- e trabalho nos contextos, pois acho que para eu
viamente, quero agradecer ao CRP pelo espaço, entender o que que aquela pessoa está dizen-
pela possibilidade de discutir um assunto tão do, se eu não entendo o tipo de linguagem que
importante, tão rico. Ao CRP, meu eterno agra- ela tem, eu preciso conhecer mais, então vou
decimento ao longo desses trinta e tantos anos dentro dos contextos dela, na casa, na esco-
em que a gente, quando esbarra em questões la, se possível, nas terapias, onde eu puder, eu
éticas e precisa de um colo, tem aqui. O CRP nos vou para conhecer. Tenho tido resultado quando
ajuda a pensar e repensar, é imediato o atendi- contextualizo e significo o repertório das pesso-
mento e é maravilhoso. Então sempre sou muito as com autismo. Se ele vive num mundo restrito,
grata a essa casa. Quero agradecer aos tradu- se ele vive num mundo de repetição e se fico
tores. É sempre emocionante ter acessibilidade garantindo essa repetição com a justificativa
até a sua última instância, agradeço muito pois de que ele ficará bem, eu só estou oferecendo
sinto-me honrada em ter minhas palavras tradu- mais do mesmo e subliminarmente afirmando
zidas. Muito obrigada. Trouxe alguns disparado- que ele não pode conhecer outras coisas. Então
res para o início da nossa conversa, mas antes tem que ofertar um repertório, tem que fracio-
de entrar propriamente naquilo que eu preparei, nar a informação, eu tenho que contextualizar e
eu queria falar sobre essa nomeação. Acredito eu tenho que significar. Eu parto do princípio de
que nós, psicólogos, precisamos evoluir, sair do que é impossível não se comunicar e parto do
lugar; por exemplo, na semana passada, uma princípio de que, às vezes, eu preciso dizer: “Não
mãe me trouxe um diagnóstico, neuropsicodiag- estou entendendo o que você está dizendo”.
nóstico feito por uma psicóloga que aplicou o Não é porque eu sou falante que eu sou “dona”
HTP em uma criança de 12 anos que não pega da comunicação, que só eu sei me comunicar.
Por exemplo: em uma aula de história, um recadinho, aquele, de que não é porque um
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estudamos que o Cabral encontra e descobre aluno autista não precisa de apoio que significa
o Brasil. Podemos então pensar: Como contar que ele poderá traçar seu próprio caminho, que
isso para uma pessoa que não sabe o que é ele fique lá: “Ah, mas ele não gosta de conversar,
Brasil, que não sabe o que é descobrir, que não então deixa, ele tá bem”; “Ah, mas ele prefere
sabe sequer quem é Cabral? ficar na biblioteca”; “Ah, então tá”; “Vamos res-

Autista
peitar”. A gente tem crimes com a desculpa do

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Valéria: Autista ou não autista.
“vamos respeitar”. E os crimes acontecem. Em
Paula: Autista ou não autista, né? Como é relação à adaptação curricular, esta tem que ser

do Espectro
que se conta essas coisas? O que são caravelas. personalizada, não adianta copiar da internet o

em emergências
Então, pressuponho que eu, profissional, tenho modelinho da primeira série, da segunda série
que começar antes, eu peço o material e o pla- e colocar para o aluno de quinta série e dizer

com Transtorno
nejamento em janeiro para as escolas, eu peço que eu estou fazendo adaptação curricular. Não
o anual para ter uma ideia daquilo que a gente funciona dessa forma. Como é que eu faço ele
vai precisar; para trabalhar e construir um reper- aprender esse conteúdo da forma que é possí-

Psicologia
tório tem que dar significado para tudo aquilo vel para ele aprender? Esse é o grande desafio.
para que depois possa contextualizar. Nessa si- Então, eu tenho que cuidar da linguagem, eu te-

CRP SP para pessoas


tuação: o que são caravelas, quem é o Cabral, nho que cuidar dos registros e eu tenho que cui-
onde fica Portugal, o que é Portugal e quando dar do conteúdo, certo? Quero contar uma coisi-
isso aconteceu. Usando símbolos, em cartelas, nha super-rápida, da questão dos registros em
Portugal é a bandeira de Portugal, o Brasil é a sala de aula. Essa menina mesmo, que foi fazer

educação inclusiva
Cadernos Temáticos CRP SP
bandeira do Brasil e aí você vai repetindo. Isso o HTP, ela obviamente não segura o lápis, não
é só um exemplo de uma das formas, uma das escreve, mas ela lê. É possível, por exemplo usar

daTemáticos
possibilidades de a gente fazer esse trabalho. um rotulador, pois ele imprime imediatamente,
Na escolarização, você tem as pessoas que não então você escreve e põe pra imprimir, então sai
precisam de apoio e você tem as pessoas que uma tira com a palavra que você escreveu. Isso
precisam de apoio. As pessoas que não preci- para a sala de aula é fantástico, porque você

Cadernos
Conversando sobre as perspectivas
sam de apoio talvez precisem de adaptação cur- pode escrever uma frase inteira ali nesse rotu-
ricular. Esse processo é construído em conver- lador, imprime e cola naquele registro. É pos-
sas cotidianas e planejadas com professoras, sível dar conta de algumas trocas, de algumas
coordenadoras. “Bom, esse ano vai ter tal coisa, omissões etc. Quem poderia imaginar que um
tal coisa. Será que vai precisar fazer uma adap- rotulador resolveria tantas questões? Então a
tação curricular? Não sei, vamos olhar, vamos cabeça da gente tem que estar o tempo todo
esperar, vamos ver como vai.” Às vezes basta funcionando no “o que serve pra essa pessoa?”,
o professor mudar a dinâmica da sala de aula, “o que vai ajudar essa pessoa?”
oferecendo essas contextualizações. Eu fico di-
zendo que a entrada da pessoa com autismo na Eu comecei com a Rede Solidária, que é
escola vai fazer a escola mudar, acho que é o contar com os alunos em sala de aula que são
nosso gancho de fazer uma escola de qualidade um pouco mais velhos, é contar com os alunos
agora. Porque, embora eu esteja lá para defen- do ensino médio, é contar com a própria esco- Cadernos Temáticos CRP SP
der e falar da pessoa com autismo, eu falo da la, e dividir: como é que a gente conversa sobre
educação de um modo geral, a gente precisa ir isso, como é que a gente faz? Um dos trabalhos
em frente. E para aquele que está sem apoio, é identificar o potencial de cada um deles den-
que fica lá no canto sozinho, não sai pro recreio, tro de sala de aula. Eu fiz isso em quatro colé-
ou se sai pro recreio fica andando e se balan- gios, eu tinha de 10 a 15 minutos por semana
çando e todo mundo passa e as coisas aconte- nas aulas lá de OE, de Orientação Educacional,
cem, eu faço um Apoio Social que é a construção então eu falava de inclusão. A assessora de lín-
de uma rede dentro da escola, de jovens que vão gua portuguesa chegou e falou assim: “O que
oferecer suporte para essas pessoas. acontece na unidade tal e na unidade tal, que
esses alunos atingiram a metalinguagem? Eles
A gente também tem que cuidar do cuida- estão com uma interpretação maravilhosa, eles
dor, do educador e dos alunos. Aí é que eu entro estão com um rendimento fantástico, a escrita
com a questão do início da formação da rede so- deles melhorou e a unidade tal...”; então, o que
lidária. A gente precisa fazer esse trabalho e dar é bom para a inclusão é bom para todo mun-
do. Isso precisa ficar muito claro, todo mundo tos repetitivos”. E os pediatras, por mais boa
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cresce, todo mundo ganha. Eu tinha milhões de vontade que eles tenham, também não têm uma
coisas mais para falar para vocês, mas é um re- formação específica, e dizem: “Ah, mas está na
corte, é um pouquinho. Eu vou deixar os meus curva, uns falam cedo, outros falam tarde e tal”.
contatos, estou à disposição para escrever, E aí você começa um grande caminho de diag-
para tirar dúvidas, para contar mais histórias. nóstico. E se você for fazer um recorte para o
Muito obrigada. Brasil, eu me considero privilegiada, porque eu
estou em São Paulo – apesar de ter nascido no
Valéria Braunstein: Muito obrigada, Paula.
Rio –, eu estou em São Paulo, eu convivo com
Sei que você teria muito mais para dizer tam-
outras mães, a gente troca ideias por grupos.
bém. Essa possibilidade de intervenção na es-
cola, eu acho que é fundamental que a gente Gente, vocês não têm noção do que é a fal-
possa ter. Também desenvolvo, lá no Núcleo ta de informação, do que é a falta de profissio-
Mosaicos, um trabalho na escola, em que faze- nal, do quanto é confuso para uma mãe e para
mos observação na sala de aula reconhecendo um pai. E em São Paulo também, gente, porque
e entendendo a rotina dessas crianças e do pro- assim, são N correntes, são N profissionais
fessor, e isso ajuda demais. Isso é feito algumas e são N bolsos, entenderam? Porque não tem
vezes por semana, dependendo da época, não é uma política definida. Então, uma pediatra teve
constante, dependendo da demanda da família sensibilidade e nos indicou para uma fonoaudi-
e da demanda da escola. O objetivo é observar óloga, o nome dela é Cida Bessa. E ela teve uma
a metodologia, a relação com a criança e entre delicadeza, porque ela tinha uma experiência de
as crianças, e depois nos encontramos com anos, ela, com certeza, bateu o olho e percebeu,
pais – e com a escola – para poder repensar o mas não disse nada efetivamente, no entanto
trabalho com essa criança, porque, de fato, ele ela foi nos guiando: “Olha, não vamos rotular de
é um trabalho individualizado. E aí nós trouxe- nada, ele está com dificuldade de fala, deixa eu
mos a Andrea, que vai falar um pouquinho da observar”. Aí, depois de algumas sessões, ela
vida dela, do Gigi e do Renato, enfim, de como falou assim: “Olha, acho que você devia procu-
tem sido essa questão. rar um neuropediatra”, falei “Tá bom”. E aí você
fica completamente no escuro, porque você não
Andrea Souza Pontes Natal: Bom dia, gente. sabe o que o seu filho tem. Você só sabe que
Eu não fiz apresentação, porque eu vou dar um de- ele está agitado, que ele corre para lá e para
poimento. Assim, eu não tenho a menor pretensão, cá, que ele não ouve o que você está falando, e
e não tenho nada da capacidade técnica delas, en- não tem isso no livro, não tem isso no manual.
tão vocês vão ouvir uma mãe, tá? Hoje, eu não vim Então, aí a gente levou para o neuropediatra, e
como profissional, vim como mãe. E também uma aí começam os maus exemplos.
coisa, eu até falei pra Valéria: os exemplos positi-
Gente, não é que todo profissional reno-
vos, eu vou fazer questão de dar nome, mas dos
mado foi ruim na minha vida, mas todos foram,
negativos, eu não vou dizer, mesmo que depois vo-
viu? Então, os renomados e tal, “olha, esse cara
cês venham me procurar, porque eu acho que não
aqui é fera, famoso, ‘nanana’” vai lá. Eu entrei
vale a pena a gente propagar o que não é legal. Eu
com o Giovani, ele tinha uns dois aninhos, eu
dividi em três partes o meu depoimento. O primeiro
entrei no consultório dele, e eu juro para vocês,
é a fase do diagnóstico.
gente, ele nem me olhou, ele falou assim: “Ele é
A gente nunca imagina que pode ter um autista mesmo, eu só preciso dos exames dele
filho autista. Primeiro porque isso não aparece, pra saber que grau ele tem”. Foi assim que eu
isso não aparece na gestação, isso não aparece descobri que o meu filho podia ser autista. E aí,
no ultrassom, isso não aparece em nada. E aí gente... Eu amo meu filho, gente, porque olha,
seu bebê nasce saudável, bonitinho, com todos de repente, ele estava falando isso para mim e
os dedinhos e tal; e aí ele começa a ir para a voou um brinquedo ((risos)). Depois que eu fui
creche, você vai trabalhar e aí de repente: “Nos- entender, eu falei “valeu, Giovani” ((risos)). E aí
sa, ele é agitado”; “Nossa, ele tem uma coorde- eu saí e fui procurar o que ele me recomendou.
nação motora incrível”; “Nossa, nossa”. Aí você: “Então, você vai fazer um exame no cérebro,
“Nossa!”. Aí daqui a pouco... “Nossa, a gente você vai fazer um teste para saber se ele é sur-
chama o Giovani e ele não atende”; “Nossa, o do, e você vai fazer uma avaliação neuropsico-
Giovani fica num canto fazendo uns movimen- lógica.” Lá fomos nós. Isso porque antes, meu
pai era vivo ainda, ele falou assim: “Esse menino gente?”. E aí você começa a procurar quais são
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tem alguma coisa especial, porque ele sobe em as referências, eu comecei a ler livros e tal.
tudo, porque ele pega na mamadeira sozinho,
Aí vamos para as escolas renomadas. Eu
não sei o quê”, e resolveu levar ele num neuro-
fui visitar uma escola que era para crianças es-
pediatra famosíssimo lá no Rio de Janeiro. E aí
peciais, e eu lembro que eu fui com meus pais.
ele disse assim: “Eu não sei se seu filho é autis-
Eu olhei aquilo, e aí a minha mãe falou assim:

Autista
ta ou não, não sei definir. Então vamos fazer por

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
“Isso aqui não é lugar pro Giovani”; e eu falei
descarte”. E aí eu aprendi, pelo menos foi assim
“Não, não é”. Vamos procurar mais. E nisso ele lá
comigo, que foi um diagnóstico por descarte.

do Espectro
na creche, e a creche perdida; “ah, mas ele é tão
Aí você leva o seu filho no hospital, vê ele bonzinho”, “ah, mas fica no cantinho”. E aí você

em emergências
ser sedado, é tão bonito, aí os médicos falam pensa, “meu Deus, o que eu vou fazer, o que que
assim: “Agora pode sair”; seu filho sedado, aí eu vou fazer, o que que eu vou fazer?”. E ele fa-

com Transtorno
você chora, né? “Ah, não é surdo.” Aí você co- zendo fonoaudiologia. Aí liguei para as escolas
meça a torcer, não sei se eu quero torcer para renomadas: “Ai, mãe, sabe o que é? A gente não
ele ser surdo, eu não sei se eu quero torcer para está preparado para receber o seu filho”. Você

Psicologia
descobrir o que ele tem. Aí depois ele foi para sabe que é contra lei a pessoa falar isso para

CRP SP para pessoas


uma avaliação para um teste cerebral, falaram você, mas você como pai pensa “ok, eu vou lá,
assim: “Olha, tudo o que a gente pode dizer é vou processar o cara, ele vai ser obrigado a es-
que os neurônios... tem uma nuvem aqui, então colher meu filho, aí depois ele vai ficar com um X
isso quer dizer que é por isso que ele não fala”. nas costas, ‘tá vendo, aquela é a criança que a

educação inclusiva
Tá bom. Aí nós fomos para a avaliação neurop- mãe, aquela barraqueira, processou a escola...’”.

Cadernos Temáticos CRP SP


sicológica, que foi com a doutora Rosa, ela fica Você não vai, você não compra a briga. Esco-
ali na Alameda Franca. Ela fez uma entrevista las renomadas, gente! Eu não estou falando de

daTemáticos
comigo e com o meu marido, depois observou o escolinha sem nome não, e sim de escolas bem
Giovani, depois ela foi na escola. E aí ela voltou renomadas. E aí você volta pro “e agora, o que
para a gente e falou assim: “Olha, eu não posso é que eu vou fazer, o que que eu vou fazer?”. A

Cadernos
dar o diagnóstico”, mas ela desenhou tudo, né? gente se sente muito perdido, porque a gente

Conversando sobre as perspectivas


E ali foi o meu luto, eu saí aos prantos dali. Mas não é formado, não tem técnica, a gente só é
ela me falou duas coisas... ela me falou uma coi- pai. Mas aí você começa a ver o que é bom para
sa que me marcou muito. Ela falou assim: “Eu sei ele. Instintivamente, não tecnicamente.
que é muito difícil, os pais de autistas às vezes
não sabem para onde os seus filhos vão, assim E aí, um dia, uma amiga do trabalho falou
como os pais dos não autistas. Mas uma coisa assim: “Olha, eu estou levando uma filha num
você pode ter certeza, que os outros pais não núcleo, que ela está fazendo uma terapia, e eu
têm certeza, mas você vai poder ter: o seu filho vi lá que eles trabalham com autistas”; eu falei:
não veio para fazer mal para ninguém”. Aí você “É perto da minha casa, eu vou lá”. E foi aí que
sai aos prantos. eu conheci a Valéria, foi assim, tiro no escuro
total. Ela falou: “Não, pode deixar, eu vou fazer
Eu passei uns três meses em luto, eu tinha
uma sessão”. Aí depois ela indicou a gente para
até a minha hora de chorar, que era a hora que
o Instituto de Psicologia. Aí o Instituto de Psi-
Cadernos Temáticos CRP SP
eu saía para trabalhar, eu chorava até o ponto
cologia falou: “Olha, vocês fizeram tudo o que
de ônibus; aí, pronto, eu ia trabalhar. E a gente
vocês tinham que fazer, vocês tão no caminho
continuou fazendo o trabalho de fonoaudiologia.
certo, mas agora não tem mais o que fazer...”.
E aí você entra em um universo em que se sente
assim, “para que caminho eu vou?”. Então você Nesse meio tempo, a gente também foi no
começa a procurar na internet, você começa a neuropediatra, não naquele primeiro, mas fo-
participar de grupos, você ouve um monte de mos em uma outra, e aí ela falou: “Olha, ele é
coisas, você não tem a menor ideia do que você autista, ele é o típico, então você volta aqui da-
vai fazer. “Ah, faz equoterapia”; “Ah, mas a equo- qui a uns três meses, que aí se ele ficar agres-
terapia você tem que doar um rim, não vai dar sivo a gente medica”. Eu virei para meu marido
para matricular”; “Ah, não dá glúten porque cura, e falei: “Bom, já sabe que a gente não vai voltar
o autismo cura se você não der glúten”; “Ah, não aqui, né?”, por que o que vai me adiantar? Nada.
dá vacina, não dá vacina, porque...”. Aí você pen- Então, assim, eu nunca tive boas experiências
sa, “meu Deus do céu, que caminho eu vou fazer, com neuropediatra, nada contra, mas sempre
para mim foram exemplos de zero humanização. mas síndrome de Down, tudo, e a gente come-
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Eu recebi o diagnóstico assim: “Ah, ele é autis- çou a fazer um trabalho. A Juliana às vezes vai
ta mesmo, agora...”. Você toma aquele chute no lá, às vezes eu vou lá, participo de reunião e
fígado e fica assim, sem chão, sabe? A minha tudo mais. E o que a gente avalia? Que a gente
experiência nunca foi boa, deve ter ótimas, mas não pode apedrejar. “Ai, o professor, ai, o médi-
as que eu tive não foram boas. co”. Gente, está todo mundo no mesmo barco.
Tem profissional ruim? Tem, mas está todo mun-
E aí eu fui para o Núcleo Mosaicos. E aí foi
do no mesmo barco, então não é criticando o
um papo de louco, porque o Giovani tinha dois
outro que você vai conseguir resolver. Pelo con-
anos e meio, e ele só corria! Levar ao shopping,
trário. Ter boa vontade, para mim, é o que basta,
jamais, porque a gente ficava com medo de per-
de verdade. “Olha, eu não sei, mas eu tenho boa
der a criança. Aí a Valéria chegou, e ele corria,
vontade”, para mim, já me conquistou. Então a
corria, corria, e eu falei: “Tá, Valéria, então, o que
gente foi dando estrutura.
a gente vai começar a fazer?”; e ela respondeu:
“A gente vai deixá-lo correr”. Aí eu olhei pra ela, E tem professor que não sabe lidar, mas
que falou: “Porque, olha, essa é a forma como ele vamos combinar, não tem isso na formação de-
está descobrindo o mundo, então nós vamos dei- les. Então, como é que eu vou sair apedrejan-
xar ele correr”. Eu falei: “Então tá bom, então ele do o professor? Eu sei, porque eu faço parte de
vai vir pra cá para correr, tá bom”. Porque aí ele ia grupo de mães, que tem umas mães mais xiitas:
parar de correr, pensei. O pessoal perdia bastan- “Ah, porque o professor tal... porque eu fiz um
te peso com ele, quando ele vinha, correndo atrás barraco na escola”. Mas não é assim. Acho que
dele. Eu falei: “Vamos lá, quero ver até onde isso eu fiz uns três barracos na vida, de verdade, por
vai dar”. E aí começou um trabalho. causa do Giovani. Mas eu tento muito entender
o outro lado. É difícil, o cara está com uma tur-
Então, foi muito uma relação de boa vonta-
ma, ele tem meta, ele tem uma metodologia e
de e confiança, sabe? E aí foi feito o trabalho com
tem uma criança autista no meio da turma. Não
a creche, aí veio a coisa de matricular ele numa
é fácil. E aí, com essa boa vontade, alguns pro-
escola, porque a gente viu que ele tinha que ir pra
fessores foram mais resistentes, outros eu via
uma escola regular. Mas todo autista tem que ir
que tinham medo mesmo, é medo do desafio. E
para uma escola regular? Não necessariamente,
é um desafio, você tem uma expectativa da fa-
cada caso é um caso. Aí fomos procurar uma es-
mília, uma expectativa da escola, então a gente
cola. Aí fui bater em uma escola renomada perto
tem que entender esse profissional.
de casa e a escola: “Não, olha, aqui a gente tem
auxiliar, aqui a gente tem dois especiais por tur- Por outro lado, tinha umas também, que o
ma”, e eu pensei “sensacional!”. Eu falei até para Giovani, que não é bobo, nem nada, manipulava
a Valéria que era sensacional. Aí, quando eu fui legal. Então era: “Não, tadinho, eu abro para ele
matricular... “Sabe o que é, mãe, é que estourou a a merenda”; e eu: “Não, não é para abrir, por-
cota da turma dele, a gente não vai poder aceitá- que ele já sabe abrir”. “Ah, mas ele é tão fofinho,
lo.” E faltava uma semana para começar o ano tão...”; e eu: “Ele está te manipulando, deixa o
letivo. Aí eu virei para a escola e falei: “Sabe qual moleque abrir a merenda!”. Então às vezes tem
é o problema? Eu podia processar vocês, mas eu o excesso de carinho também, entendeu? Você
é que não quero o meu filho estudando aqui, des- tem que saber lidar. E foi assim, com erros e
culpa”. Aí eu atravessei a rua, fui para o colégio acertos, teve anos que foram mais difíceis, ou-
Superativo, lá no Campo Limpo, que foi o colégio tros anos que foram mais fáceis, e a gente ain-
que quando a gente bateu, eles falaram: “Olha, a da vai ter novos desafios.
gente inclui, numa boa, mas assim, a gente não
tem experiência com autista”. Aí eu voltei lá e fa- Meu filho está com 10 anos, vai entrar na
lei: “Olha, eu sei que vocês não têm experiência adolescência e eu não tenho a menor ideia, será
com autista, mas se a gente trouxer a estrutura um tiro no escuro. Vai ter que mudar de esco-
pra cá, vocês topam?”; “A gente topa”. E foi aí que la, vai ser outro desafio. Mas se eu tenho uma
o Giovani começou no Superativo. Não tinha téc- coisa para dizer é sobre o que eu aprendi: que
nica, mas tinha boa vontade. nem todo profissional de renome é o caminho,
os caminhos são múltiplos. E não adianta, eu
Aí a Valéria foi lá, deu uma palestra para decidi não pirar, então eu leio, vejo, mas avalio:
eles, tirando dúvidas, não só sobre autismo, é bom para o Giovani? Se não é... ah, foi legal
conhecer. Se não eu vou pirar, porque são 55 as crianças... Eu acho que nessa questão da no-
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mil correntes, 450 mil teses... não dá, é muito meação existe um marco, que é a alfabetização
para o pai. E aí o que eu queria dividir com vo- e não alfabetização na escola, para todas as
cês também é que eu sou 1% desses pais que crianças, se está alfabetizada ou não. Então, em
têm, graças a Deus, possibilidade, a gente se caso negativo, será que é disléxica? Será que é
mata, se esfalfa, não tem dinheiro, mas a gente TDA? Será que é isso, aquilo, que é deficiente?

Autista
se dana para poder oferecer o melhor pra ele,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
Quando uma pessoa se alfabetiza, ela tem
mas tem muitos pais que não têm. Então eu
um outro selo, ela passa a ocupar um lugar so-
faço alguns trabalhos voluntários e um dia eu

do Espectro
cial diferente. Mas eu acho que um grande mar-
fui num abrigo e tinha um menino com Down e
co pro Gigi, além de correr muito – hoje em dia

em emergências
autismo. E antes de eu apedrejar a mãe, eu fi-
ele não corre mais tanto ((risos)) –, foi quando
quei pensando: “Imagina uma mãe, em uma linha
ele percebeu que as pessoas estavam correndo

com Transtorno
de pobreza, sem informação, sem acesso, o que
atrás dele, porque ele parava e olhava para trás
ela faz com uma criança com autismo e Down?”.
esperando. Então a brincadeira começou a ser
E aí, durante os anos, a gente foi vendo que o
compartilhada e a interação passou a acontecer

Psicologia
abrigo acolheu ele. Também, de novo, não tinha
de fato. O segundo grande marco foi quando ele
técnica, mas tinha boa vontade. Acolchoaram o

CRP SP para pessoas


iniciou sua alfabetização, discutir as ações em
quarto do menino, foram atrás de parceria, ele
conjunto, mãe, professor, psicólogo – “Olha, já
nadava, fazia equoterapia, tudo pela Prefeitura.
está na hora”; “Mas será que ele vai?”; “Vai, nós
E aí cortou muito o coração quando ele fez 18
vamos todos juntos”. E aí, um pouquinho depois,
anos, porque a gente sabia que ele ia para uma

educação inclusiva
ele já estava lendo, isso é muito bacana e ele

Cadernos Temáticos CRP SP


clínica, porque não tinha para onde ir. E tem mui-
passou a ter um outro lugar, ocupar um outro lu-
to caso assim.
gar na escola e no mundo, ele passou de fato

daTemáticos
Então, o que eu penso é eu fiquei perdida e a ocupar um lugar de estudante, e as pessoas
eu fui buscar, mas imagina o monte de mãe que passaram a enxergá-lo também de um outro
já tem que conviver com uma série de coisas, de modo. Isso é muito bom. Muito obrigada, Andrea.

Cadernos
pobreza, falta de emprego, falta de uma série de

Conversando sobre as perspectivas


Estão chegando algumas questões e, de-
coisas, não tem informação e fica perdida. Fica
pois da fala da Andrea, vamos lê-las.
perdida nos centros de atendimento, fica perdi-
da nos hospitais, fica perdida nas escolas, fica
Andrea dos Santos de Jesus: Bom dia a
sem voz para brigar. Então eu acho que a gen-
todos e todas. Fiquei aqui muito emocionada,
te tem um caminho enorme, enorme. O Giovani
e quero, então, falar desse lugar de professora
é uma gota no oceano, ele tem muito caminho
e, antes de mais nada, convocar aqui, os meus
pela frente, não sei dizer o quanto vai evoluir, o
amigos professores – tem um bom número aqui
quanto não vai evoluir, a gente não sabe... Como
– para falar da importância do nosso papel e da
a Valéria fala, “diagnóstico se escreve a lápis”.
importância do nosso papel neste momento his-
Mas, assim, tem um caminho enorme neste Bra-
tórico em que nós vivemos. Eu brinco que desde
sil. E tem muita gente precisando. E quando sai
pequena eu simulo a docência, desde pequena
do eixo Rio-São Paulo então, o negócio é triste.
eu brinco de ser professora, porque sou filha de
Triste. Não tem terapeuta ocupacional, não tem
Cadernos Temáticos CRP SP
uma mãe que era professora leiga, e foi com a
profissional, não tem formação, não tem política
minha mãe que eu aprendi, de certa forma, quem
de escola, não tem nada. Então esta é a minha
sabe um tanto daquilo que eu tento fazer hoje. Eu
mensagem: tem muito para se fazer e eu acho
vou começar esta apresentação – e por isso eu
que a palavra é boa vontade. Tem boa vontade,
vou precisar de ajuda no tempo – lendo um livro
tem caminho.
aqui de literatura infantil, fazendo alguns apon-
Valéria: Muito obrigada, Andrea, muito tamentos a partir da história de uma criança com
obrigada. É bom poder ouvir você sempre. Essa sofrimento psíquico – eu gosto do termo, que me
frase dos “diagnósticos se escreve a lápis”, já constituiu de uma forma muito importante, espe-
fazendo a propaganda, é de um livro da Gisela. cialmente no início dos anos 2000, quando eu tra-
É o título do livro, muito sugestivo, não? Quan- balhava na Prefeitura de São Bernardo, no Cen-
do eu vi, liguei para a Andrea e falei: “Olha que tro de Apoio, que foi onde eu tive o meu contato
legal isso, diagnóstico de criança se escreve a mais próximo com as crianças com deficiência – e
lápis”. Gente, por favor, nada de ficar rotulando ali eu fiquei durante sete anos.
Então, eu vou contar para vocês A Histó- tura de São Bernardo”. Eu falei: “Ah, para o en-
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ria do Ernesto, que é um livro da Companhia das sino fundamental?”; e ela respondeu: “Não, não,
Letrinhas, da Blandina Franco e do José Carlos é pra educação especial”. E eu: “Para a educa-
Lollo. “Dizem que Ernesto é muito calado, que ção especial eu não quero ir, eu quero ir para
ele tem a língua enrolada e não sabe falar direi- o ensino fundamental”. Aí ela me disse: “Você
to com as pessoas. Dizem que Ernesto é feio, está procurando emprego ou você tem outros
que ele tem a cara torta e dá medo nas pesso- planos?”; e eu respondi: “Não, eu estou sim pro-
as. Dizem que Ernesto é diferente, que ele usa curando emprego”. E ela falou: “Então, acho que
roupas muito mais velhas do que as outras pes- é melhor você prestar o concurso” ((risos)). E eu
soas. Dizem que Ernesto é burro, que ele não fui uma pessoa obediente, prestei o concurso,
entende o que pensam as outras pessoas. Di- passei e comecei.
zem que Ernesto é bobo, que ele não sabe como
Bom, e foi aí nesse lugar que eu encontrei
agradar as outras pessoas. Dizem que Ernes-
um menino. Eu vou contar só três trechos desse
to é esquisito, que ele não se encaixa entre as
meu encontro, para a gente entender um pou-
outras pessoas. Dizem que Ernesto é egoísta,
co como é que a gente vai se constituindo pro-
que ele não liga para as outras pessoas. Todo
fessora nessas relações e nas relações com as
mundo diz alguma coisa sobre o Ernesto e ele
pessoas. Quando esse menino chegou no Cen-
vive muito, muito sozinho e muito, muito, muito
tro de Apoio, tinha uma equipe técnica – e eu
triste. Fim. Não gostou do final da história? Mas,
também tenho que dizer isso, que no meu per-
algumas vezes, é assim que as histórias aca-
curso, eu também tive, quem sabe, o privilégio
bam. Tem gente que pensa que, quando acaba
de trabalhar com muita gente bacana, pessoas
assim, não é culpa de ninguém. Tem gente que
que em um determinado momento estão dispos-
prefere nem ficar sabendo deste final, porque é
tos a pôr em xeque o que está instituído. Então,
muito triste. Tem gente que nem perceber que
as pessoas que trabalhavam comigo, estavam
a tristeza não está no final da história, mas na
muito incomodadas com a forma como as crian-
história inteira do Ernesto. E você? Você tem al-
ças eram avaliadas, com os instrumentos utili-
guma coisa a dizer para o Ernesto?”
zados para tal, e então caminhávamos buscan-
Bom, vou contar a história de um Ernesto. do outras formas. Num desses momentos, eu
Quando eu comecei a trabalhar, apesar de ser encontrei esse menino e comecei os encontros
formada pela Universidade Estadual de Cam- com ele, uma vez por semana, porque ele não ia
pinas e ser professora habilitada na época em à unidade escolar. E no Centro de Apoio, nessa
deficiência mental, uma coisa que nem existe época, as crianças não eram matriculadas dire-
mais, eu corria das pessoas com deficiência. Eu, tamente na escola, elas eram matriculadas no
na verdade, fui por esse caminho porque eu ti- Centro de Apoio e era o Centro de Apoio que
nha um interesse pelas questões que envolvem decidia se as crianças poderiam ou não usufruir
a diferença e desse lugar que eu sempre ocupei do ensino fundamental. Vejam bem, isso foi em
também na universidade pública – isso no início, 2000, nós estamos em 2018. Mesmo com todas
na década de 1990, quando quem sabe eu era as dificuldades, nós avançávamos nas escolas
uma das poucas alunas pretas do curso vesper- públicas, porque é nesse lugar, com todas as
tino de pedagogia da Unicamp. Então, a minha peculiaridades e dificuldades desse processo,
procura pela diferença, quem sabe venha pelo que essas crianças puderam entrar. Eu, como
lugar que eu ocupava naquele momento, que professora, me fiz na escola pública e hoje tra-
também parecia não me caber bem. E como é balho em uma prefeitura, e afirmo que nós pre-
que a gente vai tentando construir esse lugar cisamos ocupar com veemência esse lugar, nós
dentro da gente? Porque não necessariamente não podemos deixar que as pessoas falem dos
nós chegamos a um determinado lugar sabendo nossos trabalhos de uma maneira, às vezes, tão
como é que a gente se comporta, como é que a leviana. Isso não quer dizer que não tenhamos
gente estuda, como é que a gente se organiza. problemas, mas eu acho que nós também com-
pramos o que vendem de nós e nós precisamos
Eu fiquei em Campinas quase 10 anos,
ter uma maior criticidade em relação a isso.
e quando eu queria voltar para São Paulo, era
efetiva lá na Prefeitura de Campinas, de Paulí- Bom, quando eu tive os meus primeiros
nia, e eu precisava de um emprego, então uma encontros com aquele menino, ele também cor-
amiga falou assim: “Vai ter concurso na Prefei- ria sem parar, e eu não sabia o que fazer, corria
atrás dele, ficava correndo. E um dia, tinha uma que quem sabe tenha ajudado a todos nós. Em
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caixa lá cheia de carrinhos muito interessantes, um determinado momento, ela gritou, disse, no
carrinhos de fricção e a gente ficava um tem- tom dela... tinha uma escada enorme, ela falou:
pão lá no chão e eu aprendi a brincar com essas “Fecha essa torneira e sobe”; e eu lá em cima
crianças. Isso foi uma das coisas mais importan- pensando “ah, meu Deus, coitado do menino”.
tes para a minha formação, porque uma coisa Imagina? O menino automaticamente fechou a

Autista
era estudar o brincar, outra coisa era verdadei- torneira, subiu, entrou na sala. Eu não faria des-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
ramente brincar – e foi com aquele menino que se jeito, tá certo? Mas ela o fez, e foram os ca-
eu aprendi a brincar. Mas tinha uma questão: no minhos que ela encontrou.

do Espectro
final dos encontros, ele queria levar todos os
A segunda professora, falou: “Esse meni-

em emergências
carrinhos para casa, principalmente o carrinho
no vai registrar, porque com essa capacidade
de fricção que era um Fusca verde – olha como
motora...”; e eu: “como assim?” – ele andava

com Transtorno
eu não me esqueci! – que abria as duas porti-
de perna de pau na escola, eles brincavam, ela
nhas. E eu pensava: “Ele não pode levar esse
desconfiava. Mas eu falei: “Você tem razão, eu
Fusca. Isso não! Não é assim que se faz os com-
também acho”; e ela falou: “Então, vamos fazer

Psicologia
binados?”. Mas, eu temia dizer não, porque me
o seguinte, Andrea, um dia eu vou no ateliê, por-
disseram que, se dissesse não, ele caía no chão.

CRP SP para pessoas


que eu vou com as crianças no ateliê, a gente
E aí, quando faltava 15, 20 minutos para o final
pinta...”. Resumindo, ela ia lá com as crianças e
do encontro, eu ficava bem de olho no relógio
falou que de vez em quando ele fazia umas pin-
e ele pegava o carrinho, e eu pensava: “Não é
celadas lá no papel, “mas normalmente quan-
possível, 15, 20 minutos antes ele pega o carri-

educação inclusiva
do termina a atividade, eu peço a algumas das

Cadernos Temáticos CRP SP


nho e segura”. E eu naquela tensão, “vou pegar
crianças que me digam o que fizeram, o que
o carrinho, não vou pegar o carrinho, ele vai dar
elas quiseram fazer ali quando fizeram aquela

daTemáticos
o carrinho, ele vai se jogar no chão, a mãe está lá
atividade”. E ela continuou: “Eu me dei conta de
fora, eu não quero que a mãe veja isso...”. Bom,
que eu nunca pedi para o menino. Então, vamos
era um inferno, em síntese, era um inferno.
combinar, o dia que você vier aqui, eu vou fa-

Cadernos
zer uma atividade no ateliê e aí gente pede pro

Conversando sobre as perspectivas


Até que, um dia, não sei por que – porque
menino contar”. Eu disse para ela: “Olha, pode
quando nos relacionamos com alguém, a gente
até ser no dia que eu não vier aqui, mas acho
se pergunta – eu estava naquela tensão e vi ele
fundamental que você faça isso na hora que
pegar o carrinho e vir meio para afrontar. Tipo,
você olhar para o desenho do menino e achar
“vou sair aqui, ela não vai dizer nada”, sem dizer
que ele tem alguma coisa para contar, porque
uma palavra. Eu cheguei e disse: “Me dá esse
parece que às vezes não há nada pra contar, e
carrinho”; e ele põe o carrinho aqui na minha
quem sabe disso é você, a professora, não sou
mão. Poxa! Eu pensei, “não, não é possível que
eu”. E dito e feito. Passados mais 15 dias, num
eu tenha feito isso, eu estou aqui há dois meses
determinado momento no ateliê, ela perguntou
sofrendo com esse carrinho, olhando para o re-
ao menino. Eu cheguei e uma criança veio cor-
lógio”. Bem, eu fiz isso, é importante que a gen-
rendo e falou para mim: “Você não sabe, Andrea,
te saiba as coisas que a gente faz, e então de
o menino curou, curou”; aí eu falei: “Nossa! Me
fato soube que o menino me ouvia, não é? Por-
conta o que aconteceu”; ela disse: “Ele pegou
Cadernos Temáticos CRP SP
que essa dúvida é uma dúvida insana nessas
o desenho dele e falou ‘hããã’” ((sonoplastia)).
histórias. Quando o menino foi para a escola,
Naquele momento, ele ganhou para as crianças
para a escola de educação infantil – e eu estou
o status de criança, e isso a escola pode fazer
dizendo isso porque nós, professoras, temos
como ninguém.
que entender que nem todo mundo faz tudo
por todo mundo, então paremos com essa ne- Passou esse tempo, a outra professora
cessidade dessa eficácia exagerada pois falta falou: “Ah, eu vou alfabetizar”. Gente, quando
disso não quer dizer descomprometimento, mas as pessoas me dizem, quem sou eu para duvi-
é fazer escolhas, certo? A primeira professora dar, eu só falo: “Ah, sim”. Uma professora que
do menino teve que ser capaz de suportar um também era muito mais tradicional. Se eu olhas-
menino que entrava e saía dos vários espaços e se de dentro da minha perspectiva, ela poderia
que muitas vezes não encontrava sentido ali e conduzir o processo de outra maneira? Pode-
o nosso caminho era encontrar alguns sentidos. ria. Mas ela não desconfiava dele, essa é uma
Mas essa professora fez algo muito importante, questão, ela via ali uma possibilidade. Um dia eu
estou lá, ela pede para ele distribuir umas par- dar um jeito nessa questão de educação inclusi-
20
lendas, e quando ela entrega na mão dele, sem va”; eu falei: “Eu não tenho nada a ver com isso,
perceber, de ponta a cabeça – e eu lá vendo – e, eu não vim para cá para cuidar dessas ques-
ao receber, automaticamente, ele vira. Quando tões”; ele falou: “Vamos só começar o processo
ele vira, eu falo para ela: “Ó, mais atento do que e depois a gente toca” – e aí fiquei.
a gente está imaginando”, certo? Ela me disse:
Bom, a cidade tinha um Centro de Apoio
“Ah, então ele que me aguarde”. Bem, as primei-
centralizado que misturava tudo: Atendimento
ras palavras que eu ouvi do menino, foram a imi-
Educacional Especializado – vou falar isso com
tação da ação que essa professora fazia todos
cuidado –, um pseudo atendimento clínico por
os dias ao entrar na sala de aula, ela cantava o
fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. O
alfabeto, A, B, C, D, E... As primeiras palavras, os
primeiro trabalho que a gente fez foi tentar des-
primeiros sons que eu ouvi, foram A, B, C. Certo?
montar esse serviço e tentar criar os polos de
Esse menino, aos oito anos, teve um pro- atendimento educacional centralizados, que é o
cesso... Eu acompanhei-o até os seis anos, mas mínimo que uma política pública naquele momen-
foi ele também que me ensinou a hora de entrar to teria que fazer. Começamos a apostar nesse
e sair das histórias, enquanto professora itine- trabalho da formação em serviço das professo-
rante que eu era na época. Um dia, na sala dele ras não especializadas. E isso não quer dizer que
– era uma sala que tinha uma janelinha baixinha não há um conhecimento, por exemplo a comuni-
que dava para pular do lado de fora –, eu entrei cação alternativa é algo que de fato tem que ser
por uma porta, toda alegre, as crianças conver- aprendido. Mas tem um conjunto de escopo, que
sando comigo, e quando eu entrei e ele pulou é da educação, que diz respeito à observação, ao
pela janela. E foi ali que eu aprendi que estava registro, que são conhecimentos que eu acredito
na hora de ir, que eu poderia conversar sobre o que, quando qualquer professor usa de uma ma-
menino, mas não necessariamente estar ali na- neira mais adequada, se torna é a nossa grande
quele lugar, porque aquele lugar era dele. ferramenta de trabalho para mudar as relações
estabelecidas no âmbito da escola. Então, a gen-
Andrea dos Santos: Bem, eu vou contar
te começou a fazer um trabalho e receber, para o
agora um pouco para vocês da minha trajetória
Atendimento Educacional Especializado, profes-
em Franco da Rocha, certo? Eu cheguei a Franco
soras que não são especialistas.
da Rocha mais ou menos há seis anos, numa ges-
tão petista. Eu fui convidada por duas pessoas Mas eu tinha um outro problema: eu não
muito queridas, uma delas é o Rodney Pereira, tinha um quadro fixo, que só se constituiu três
que estava lá para ser diretor de ensino; depois anos depois com professores efetivos, o que é
de São Bernardo, eu estive no terceiro setor, fi- muito importante, porque a minha passagem é
quei sete, oito anos discutindo sobre educação transitória, eu preciso deixar naquele lugar pes-
inclusiva, e então pensei, “eu quero uma pausa soas que possam tocar o trabalho e para isso
um pouco dessas discussões, eu preciso de um precisam ser pessoas do quadro efetivo da se-
respiro disso”. E eu já estava muito imersa na cretaria. E no ano passado a gente conseguiu
interface entre educação, cultura e arte, e aí ele fazer o primeiro concurso para técnico em Brai-
falou: “A gente tem lá o Mais Educação”; e eu fa- le e Libras. Eu tenho hoje intérprete de Libras e
lei: “Deixa eu coordenar isso?”. E aí fui para fazer Braile, porque muitas das crianças surdas não
a coordenação desse projeto, do qual eu gosto permaneceram em Franco da Rocha, elas vêm
muito, gosto do que a gente fez e faz dele, na para São Paulo. E eu tenho um outro dado: eu
perspectiva de construir a escola que a gente hoje atendo, no Atendimento Educacional Espe-
deseja para as nossas crianças. Mas, chegan- cializado, 102 crianças. Vejam, de uma população
do lá, em muitos momentos eu estava na sala de 147 mil, segundo o último Censo... Portanto,
e sempre aparecia uma mãe ou para pedir vaga atendemos no Atendimento Educacional Espe-
para o seu filho ou para fazer alguma reclama- cializado um número muito pequeno, porque há
ção. E durante um tempo eu quis fingir que não crianças que ainda precisam e famílias que ain-
tinha nada a ver com aquilo, sabe? Quando a da não mandam as crianças para a escola.
gente ouve e fala: “Alguém vai resolver aí, por-
que isso aí não sou eu que vou resolver”. Bem, Andrea dos Santos: Temos trabalhado
até que um dia, o Alex, que na época respondia com a formação dos professores do ensino re-
como secretário-adjunto, me disse: “Precisamos gular no contraturno, no horário de HTPC; uma
vez por mês, temos trabalhado com formação Andrea dos Santos: 39 anos é muito tem-
21
para os cuidadores que vão para as unidades po, gente. Isso tem que servir de arsenal para
escolares, porque se a gente também não fi- nós nessa relação que a gente tem estabeleci-
car atento, eles viram os professores particu- do com as crianças. Não é possível que a gente
lares das crianças, nesses ambientes em que não consiga minimamente estabelecer esse có-
as crianças também são abandonadas. Temos digo ético. Então, sempre que a situação aper-

Autista
feito formação com gestores, eu cuido direta- ta, eu conto no dedo, até para ajudar; conta no

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
mente da formação semanal dos professores dedo, se lembra de quantos anos te separam
do Atendimento Educacional Especializado, e daquele sujeito. E de ontem, uma das frases

do Espectro
vou trazendo outras pessoas especialistas em mais bonitas que eu ouvi, foi: “Nos dois momen-

em emergências
outras coisas para discutir essa questão. tos intensos de crises do aluno, ele agrediu os
adultos, quebrou objetos, porque não gosta de
Ontem, iniciamos em Franco as rodas de

com Transtorno
ser contrariado. Porém, após as crises, ele se
conversa em que trago uma psicóloga, psica-
deitou no chão e abraçou o adulto que estava
nalista que tem experiência no trabalho com
próximo”. Se algo desse porte não serve para
as crianças autistas, para compor junto comi-

Psicologia
nos sensibilizar, eu fico me perguntando que
go, e assim as histórias vão se tornando mais
mundo é esse que nós estamos clamando?

CRP SP para pessoas


emergentes de serem discutidas. Então, ontem,
eu tinha o diretor da unidade escolar, a coor- Valéria: Muito obrigada, Andrea. Muito ba-
denadora pedagógica, o cuidador e todos os cana ouvir uma fala em que a equipe gestora
professores do Atendimento Educacional Espe- aparece. Eu acho que isso é uma coisa impor-

educação inclusiva
cializado reunidos para a discussão da história tante para a gente pensar na escola, porque

Cadernos Temáticos CRP SP


de um sujeito, para, a partir dela, a gente tentar fica esse ping-pong, “o professor” é que é o
efetivamente construir uma rede, e também as- problema, mas tem uma equipe, tem uma rede.

daTemáticos
sumir que nós temos certos assombros, que só Tem uma prefeitura por conta disso, tem uma
vamos resolver se nós nos unirmos. rede de apoio nessa prefeitura, e o depoimento
da Andrea ressalta a necessidade dessa rede
E eu vou terminar aqui, mas há um livro

Cadernos
de apoio, porque os professores, eles... as es-

Conversando sobre as perspectivas


que chama Práticas Inclusivas em Escolas Trans-
colas não são um pêndulo, elas estão dentro de
formadoras, que destaca alguns princípios. Eu
um território, elas estão dentro de um contex-
vou ler alguns dos quais a gente tenta se for-
to, e esse contexto também alimenta a escola,
talecer: “A inclusão é para todos e não para um;
mas também tira da escola, às vezes, possibi-
o sucesso da inclusão depende da adaptação
lidades de um bom trabalho. Ainda mais em se
da escola à criança e não apenas da adaptação
tratando das escolas públicas, que são man-
da criança à escola; a inclusão de uma criança
tidas pelo Estado, pelo governo, enfim. Então,
garante a inclusão de todos, inclusive e funda-
acho muito importante também, além de tudo
mentalmente, de nós professores; o trabalho de
que você trouxe, o quanto você ressalta a par-
inclusão se faz no laço que se estabelece entre
ticipação da equipe gestora, a sua participação,
o professor e o aluno; o aluno é da escola, e não
o seu desejo e também a possibilidade de, de
apenas do professor; a escola proporciona uma
fato, fazer algo. Nós precisamos trabalhar com
referência simbólica para todas as crianças”. E
potência, porque caso contrário nos sentimos
Cadernos Temáticos CRP SP
eu tenho percebido que é nesse eixo que nós
também impotentes. Bom, eu queria abrir para
estamos deixando a desejar. A escola é um lu-
uma discussão, para o debate, para vocês po-
gar social da criança; o educador tem o seu sa-
derem se colocar. Antes de mais nada, quero
ber sobre o seu aluno. Isso nós construímos no
reforçar que estamos com transmissão online,
processo em que se estabelece uma relação de
agradecer aos polos Campinas, Sorocaba, Vale
verdade com as crianças. Eu gosto sempre de
do Paraíba e Litoral Norte que estão conosco
dizer que, quando vivemos uma situação muito
aqui presentes de algum modo. Essa possibili-
difícil com as crianças, devemos olhar para as
dade da acessibilidade via online é importante.
mesmas e contar quantos anos nos separam
Vou ler algumas questões:
daquele sujeito. Então, ontem, esse menino que
eu discutia, chamado Alex, ele tem oito anos, “Nós da subsede de Sorocaba estamos fe-
eu tenho 47. Dos oito aos 47, quantos anos me lizes pelo marco deste evento no CRP, que dá vi-
separam do Alex? Quantos anos? Quanto? Não sibilidade para a pessoa com deficiência. Pergun-
ouvi bem, vocês falaram baixinho. ta a todas, Valéria, Mirna, Paula: podemos dizer
que a psicologia brasileira assume, a partir dessa Lidiane: Bom dia, meu nome é Lidiane. Eu
22
importante discussão, o levante da bandeira na queria parabenizar todas vocês pela oportuni-
militância para garantir o direito pleno da pessoa dade de estarmos aqui ouvindo questões tão
com deficiência para ter voz na sociedade?” ricas, a professora também. Fiquei pensando
um pouco na fala dela, e eu acho que a minha
Valéria: Sim, acho que sem dúvida, com
pode ser que seja um alento um pouquinho para
toda a certeza. Eu não sei se é um marco, mas
o trabalho que vocês desenvolvem de base,
sem dúvida é uma mobilização muito forte nes-
porque eu estou em uma universidade, e a gen-
se sentido, ok? Porque a garantia de direito é
te já recebe o produto positivo do investimento
para todos, e para pessoa com deficiência sem-
de vocês nessas crianças, porque eles tão che-
pre haverá espaço para essa discussão aqui no
gando à universidade, então de certo modo, eu
Conselho. Vocês querem colocar alguma coisa?
fico um pouco otimista de dizer que, de alguma
Maria Josefa: O meu caso acho que é o maneira, esse sofrimento inicial de não saber o
caso dela. Eu estou muito emocionada porque eu que fazer, depois vai alcançar o seu resultado
me vi na Andrea. Eu sou professora de uma cre- no futuro. Que também é desafiante pra caram-
che, e aí ganhei o Davi. Davi entrou na minha sala ba, era isso que eu ia falar. Então, quando eles
e disseram: “Ah, a gente acha que ele é autista, chegam à universidade, eu que sou psicóloga
tá?”; eu: “Oi?”; “É, a gente acha que ele é autista”. olho com bons olhos essa questão da inclusão,
Me aproximei da mãe. Hoje, nós estamos com porque também atendia na AACD jovens com
quatro meses de convivência, a mãe acabou se outros tipos de deficiência, que começavam a
tornando uma amiga. Converso com o pai, o pai chegar ao ambiente universitário. Mas nesta
é muito afoito, o pai não aceita. E, assim, eu me semana eu acolhi o depoimento de uma profes-
vi na Andrea, eu me vi na mãe, eu me vi em você, sora da enfermagem – porque eu sou psicóloga
Andrea, conheço um pouco daquela região onde e sou docente. E na enfermagem a professora
você trabalha. E eu vim aqui hoje pedir socorro. veio falar comigo que... “Olha, como inclusão,
O que eu faço com uma criança de três anos? aceitação social, isso eu trabalho com todo
Somos eu, o Davi e mais 24, o que eu faço? Ele mundo. Porque no meio universitário, você vai
está no processo de diagnóstico, então oscila. receber jovens com depressão, ideação suici-
“Ah, ele está tão bonitinho hoje, né? Ele sentou da, vários outros tipos de dificuldade ao apren-
na mesa”. E no outro dia: “Ah, ele está vomitan- dizado e também o autista”. Ela falou: “Então,
do”, e aí todo mundo vem pra cima da professora inclusão eu trabalho bem”. Eu acho que isso
porque o Davi está vomitando. O Davi não está faz parte da formação do enfermeiro, ele saber
vomitando, o Davi não está na creche, o Davi manejar a diferença e a inclusão e tal. Mas, di-
está no CEI. Então, eu vim pedir socorro. A minha daticamente, como que eu vou ensiná-lo a ter
creche é uma creche direta da Prefeitura de São gerenciamento de emergência, empatia com o
Paulo, a gente tem lá um grupo que é o CEFAI, paciente? Ele outro dia caiu e se machucou, ele
mas até ontem eles não apareceram. Aí ele vem veio pedir minha ajuda como se ele fosse uma
com umas cartilhas, aí eu leio, leio, leio, fico louca. criança, apesar dele já ser um jovem, que se
Dá uma bala para o Davi, Davi não liga para bala. desenvolveu, que passou por todo o vestibular
Eu falo: “Gente, ele não é autista”. “Ah, dá um ba- e tal, ele veio com a mão machucada me pedir
lanço para o Davi, Davi adora balançar”. Quando pra eu ajudá-lo, e ele tá se formando enfermei-
ele quer, quando ele não quer, ele não balança. E ro, né? Como que eu seguro essa questão da
o que eu faço? Eu estou assim, a ponto de desis- competência comportamental junto com o de-
tir, penso, “ah, eu vou no médico, vou tirar uma senvolvimento intelectual dele? Acho um baita
licença médica”. Mas aí eu repenso: “e o Davi, vai desafio, queria compartilhar com vocês, porque
ficar como?”. Então, eu estou aqui para pedir so- agora eu vou ter que começar a estudar esse
corro, tá? As escolas públicas são isso, às vezes assunto. Então, se alguém tiver dicas e se a
o pessoal fala que a gente faz um mau trabalho gente puder se apoiar em uma rede, também
ou que a gente não trabalha, mas, às vezes, a pensando que essa criança vai crescer e a gen-
gente não tem o apoio... te vai continuar tendo que se adaptar e ofere-
cer oportunidades... As pedagogas ensinam
Valéria: Eu vou juntar com mais uma ques- muito para nós que somos técnicos de outras
tão de uma pessoa falando lá atrás, aí a gente áreas, então, estou à disposição para conver-
tenta responder a ambas. sar também com vocês.
Valéria: Bom, vamos tentar juntar as duas tando para si mesma que ela tem um filho autis-
23
aqui. Eu vou passar aqui para a Paula, para a ta. E é muito difícil, gente, porque você não sabe
Andrea e para a Andrea. Às vezes, eu acho que o que vai acontecer, literalmente. Não é uma
é falha mesmo, ou um ato falho, não sei, a gente coisa assim, “ah, ele tem isso, então vai acon-
acaba dizendo em alguns momentos “criança”, tecer isso, vai acontecer isso”. Com autismo,
mas eu acho que o evento se refere à pessoa, você não sabe. Então, ela vai ter que aprender

Autista
em alguns momentos a gente diz pessoa, pes- a vibrar não pelo que ele deveria estar fazendo,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
soa com transtorno com sofrimento psíquico mas pelo o que ele conseguir fazer. E sempre
intenso ou com Transtorno do Espectro Autista. tem muito isso, é o luto, é a negação. Isso vai

do Espectro
Eu acho que o trabalho desenvolvido, embora acontecer. O que eu aconselharia – como mãe,

em emergências
haja falas mais específicas quando tem um tra- porque eu não vou poder aconselhar como pro-
balho direcionado à educação infantil, Fund. 1 fissional – é ela procurar outras mães, porque

com Transtorno
etc., a gente está falando de qualquer pessoa, isso dá muito acolhimento para a gente. Porque
em qualquer nível de ensino. Até porque, vem primeiro você começa a desmistificar coisas
uma outra questão aqui, que eu só vou ler para como... “Ele vomitou” – tá, e aí? Podia ser au-

Psicologia
juntar e a gente responde, que é a seguinte, tista, não autista, ele ia vomitar também. “Ah,
vinda por rede: “Bom dia a todos, meu nome é ele está fazendo birra”. E? “Ah, mas ele se joga

CRP SP para pessoas


William, tenho 24 anos, sou autista e acompa- no chão e bate com a cabeça.” E? É o jeito dele
nho as intervenções feitas durante esse even- fazer... Então, você vai ignorar como mãe. “Ai,
to. Senti falta um pouco da discussão sobre a mas tadinho...”, porque aí, a gente como mãe
educação inclusiva para adultos e adultas” – começa a... Antes de tudo, ele é uma criança,

educação inclusiva
Cadernos Temáticos CRP SP
para mim é a mesma coisa – “que estão no es- então você tem que ter uma decisão. E é uma
pectro. Gostaria de saber das expositoras o que decisão muito dura. Porque isso está dentro de

daTemáticos
elas têm a dizer sobre isso e que alternativas mim sempre. Você vai ter que fazer a escolha de
podem ser propostas para autistas adultos que ou eu jogo ele para o mundo e aí é um mundo
não tiveram este modelo de educação?”. que tem preconceito, que tem bullying, que você
vai ver seu filho chorar, você vai ver seu filho

Cadernos
Valéria: Eu acredito que o modelo de edu-

Conversando sobre as perspectivas


não ser convidado para as festas de aniversá-
cação inclusiva ainda está em implantação. A
rio, você vai ver você estar no ambiente e as
gente está implantando, embora já tenham se
pessoas falando: “Ele é autista”. Você vai ouvir:
passado muitos anos de Salamanca, a gente
“Ele está fazendo birra né?”. E aí você vai ter
ainda está implantando e descobrindo coisas.
que literalmente apertar a tecla F, porque senão
A chegada ao ensino superior é uma novidade,
você não vai ajudar em nada o seu filho. Vai cor-
e a gente também vai discutir e aprender fa-
tar o coração muitas vezes, muitas vezes você
zendo, estando perto. Não existe como ter uma
vai ver o seu filho sofrendo preconceito, muitas
dica específica, ou um trabalho específico para
vezes você vai ver o seu filho sendo rejeitado.
o autista, porque aí – no meu caso, eu estou
Vai. Soluçando porque uma criança falou “você
colocando a minha posição – eu vou me con-
não vai brincar”, e ele não sabe como lidar com
trapor àquilo que eu acredito. Eu não vou pôr o
isso. Vai. Mas o ganho é que você está prepa-
autismo na frente da pessoa, eu estou falando
rando-o para o mundo, né? E tudo isso passa...
de pessoas que têm como característica um so-
Cadernos Temáticos CRP SP
Assim, eu vou te contar o que eu acho que está
frimento psíquico intenso que também varia de
passando pela cabeça dela. O filho idealizado
momento a momento. Não tem como ter uma
não existe mais, eu nem sabia o que é isso, eu
resposta específica para isso, mas eu englobo
vou ter que aprender o que é isso agora, eu não
todas. Agora eu vou passar para vocês fazerem
sei onde é que isso vai dar, não sei se vai evo-
os comentários aqui. Andrea.
luir, regredir, o que vai acontecer, eu não estou
Andrea Souza: Olha, primeiro, assim, eu preparada, eu não sou eterna, o que vai ser do
acho que você tem uma super boa vontade, meu filho quando eu morrer. Isso é um medo que
você tem um carinho, e eu acho que isso já diz o meu marido tem, por exemplo. Eu já acredito
mais do que você está imaginando. Mas o que que, assim, se veio, nada é por acaso, então, as-
eu posso dizer, assim, se você quiser, é que de- sim, o caminho vai ser feito de algum jeito. En-
pois eu passo o meu contato para a gente falar tão, é acolhimento, você precisa de acolhimento
com essa mãe. Porque é o que mais ajuda... Ela e ela precisa de acolhimento. Então, eu indica-
está num processo de luto, então, ela está con- ria para ela procurar grupos. Tem N grupos, tá?
Mas, assim, é muito importante para a gente ele está chorando, porque ele tem um jeito de
24
se ver em outra, ouvir uma mãe falar: “Gente, ver o mundo um pouco diferente da gente, por-
eu também passo por isso”; “Gente isso é mais que ele tem autismo, alguém pode ficar aqui do
normal do que você imagina”; “Gente, isso não meu lado ajudando a segurar a mãozinha dele,
é coisa de autismo, isso é criança”. Porque tem enquanto ele se acalma?”. A gente pode falar a
isso, tem esse negócio de, “ah, ele está fazen- verdade, – aliás, a gente tem que falar a verda-
do isso porque é autista”, não, ele está fazendo de, desde a mais tenra idade. Óbvio que a gen-
isso porque ele é criança. E aí você, como pai, te não vai chegar para uma sala de três anos
vai ter que ser forte. Isso aconteceu, o Giova- de idade e falar: “Olha, gente, ele tem autismo”;
ni, quando contrariado, ele se jogava no chão mas a gente vai dizer como é que dá para aque-
e batia com a cabeça, e eu tive que aprender a las crianças olharem, e eles vão ser aqueles que
ignorar. Até o dia em que ele estava vendo que vão te ajudar.
não estava dando jeito e falou assim para mim:
Paula: É isso. Mas eles precisam saber
“Bateu cabeça”. E eu: “É? Por quê? Porque você
como, eles precisam saber de que jeito. Eu cos-
está batendo com a cabeça! Se você parar não
tumo falar para os professores, quando a gente
vai doer”. E aí ele começou a parar... Mas se eu
está em roda de conversa, alguma coisa, que,
não tivesse feito isso, ele ia estar batendo com
se necessário, eu contenho a criança pondo a
a cabeça até hoje. Então, é uma decisão. Ela vai
mesma nas minhas pernas, eu travo as minhas
sair desse luto, ela vai sair, e quando ela sair, vai
pernas, e eu ponho os meus braços em cima de
dizer assim: “Tá, e agora o que eu faço?”. Então,
um jeito que eu impeço aquela criança de, por
se ela quiser... eu acho que outras mães falando
ventura, se bater, chutar, me machucar. Então
acolhe muito. Porque, poxa, não é alguém que
você protege. E tem algumas teorias que dizem
não sabe o que é que está acontecendo, é al-
que quanto mais aquela criança contradiz o seu
guém que sabe o que é, que também está pas-
próprio diagnóstico, mais vivência de potência
sando por isso, entendeu?
ela tem. Então, se é uma criança que tem auto
Valéria: Às vezes a angústia desse pai que ou heteroagressão e eu a contenho amorosa-
você relata, ela é só angústia, só preocupação, mente, estou evitando aquilo, eu estou sinali-
né? Não é porque ele não fala sobre, ou que não zando para aquela criança que ela consegue,
aparece porque ele está rejeitando. Isso tam- os coleguinhas estão vendo que ela consegue.
bém é uma ideia de senso comum antiga, que os Depois eu posso dizer: “Vou tirar o braço ago-
pais rejeitam os filhos porque eles têm deficiên- ra, você segura na mãozinha?”. Então, é assim
cia, seja ela qual for, e às vezes a gente compra o tempo todo, e essas crianças vão... Tem pro-
essa ideia e não para pra ouvi-los também. Os fessores que dizem: “Mas os outros também
pais precisam ser muito, muito, muito, ouvidos, querem, os outros têm ciúme”. Claro, é natural
porque eles nos... Nossa, ninguém sabe melhor e vai ter em todas as idades. Tá bom. Então diz:
do seu filho do que os próprios pai e mãe, não é? “Você segura a mãozinha dele, segura o outro, e
Então, se a gente não pode ouvi-los, eles tam- agora vem você”. Poder fazer troca. Essa crian-
bém têm um mundo hostil que exclui, a gente ça não vai estar o tempo todo em crise... ainda
não pode fazer parte disso, senão a gente vai mais se tiver essa contenção afetiva, amorosa,
repetir a questão do Ernesto aqui, como é que sincera, ela vai ter mais possibilidades.
a gente fica? Em que posição a gente está? Vou
Já para o jovem adulto, a mesma coisa,
passar aqui pra Paula.
vamos tentar formar uma rede com os colegas.
Paula: Como é que você se chama? Eu tenho hoje uma rede que se chama Jovens
Solidários e eles dizem assim: “Ô, velho, olha pra
Maria Josefa: Maria Josefa.
mim quando eu estou falando com você”. O que
Paula: Maria Josefa, fiquei pensando aqui não combina nos meus mais de 40 anos de ida-
no momento em que você começou a falar, eu de... Essa distância de idade, seja para o ado-
pensei, “eu quero falar com ela”, falei para a lescente ou criança, nos afasta, pois, depen-
Valéria. E acho que serve aqui também para o dendo da idade, eles não querem mais te ouvir.
rapaz que está na universidade. Hoje em dia, na Então, a partir dos 17 anos para cima, você vi-
minha cabeça, quem tem os tentáculos são os rou o tiozão, o paizão que não conta. É o colega,
alunos. Se eu não conto: “Gente, eu vou ter que é o par que conta. E essa rede precisa existir
ficar com ele no meu colo um pouquinho, porque para quê? Para ele poder dizer: “Meu, tem que
dar uma olhada, cresce aí, vamos lá”. Com todo Valéria: Por favor, Andrea, você quer fazer
25
o carinho, todo afeto, orientado, e a gente fica alguma consideração?
por trás, não é? Eu, quando eu vivo isso, eu vivo
Andrea dos Santos: Acho que tem uma
numa sala onde eu tenho um interfone e eu as-
coisa importante numa rede como São Paulo,
sisto o que está acontecendo na mesma hora,
que é ter um local interessante como é o CEFAI.
porque qualquer coisa a gente faz uma inter-
Eu acho que a gente tem que reafirmar a rede,

Autista
venção, a gente faz uma proteção. Tudo o que

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
a gente tem que solicitar de novo. Porque há
é diferente é odiado, é detestado, é execrado;
pessoas muito comprometidas com esse traba-
nós podemos então oferecer uma rede de afeto

do Espectro
lho, e eu acho que, se a gente não se unir, as
e de compreensão pela diferença nas salas de
coisas ficam muito difíceis. E existe um serviço

em emergências
aula, estamos falando de empatia mesmo, de se
organizado, então a gente precisa acionar. Se
colocar no lugar do outro e poder dizer. Então, o
chamou e não veio, a gente vai chamar de novo,

com Transtorno
que vocês duas puderem usar da rede solidária
a gente vai até lá. Não sei como é que a gente
e oferecer, frases como: “Gente, não precisa ter
se organiza dentro dos espaços. Mas eu acho
dó, não”, é válido, né? “Veio até aqui, consegue,
que é importante dizer: tem um serviço organi-

Psicologia
vai mais para frente, se chorar um pouquinho, a
zado e esse serviço precisa ser chamado. Claro
gente consola.” A gente não escuta um monte

CRP SP para pessoas


que eu também vou entender que, em uma ci-
de coisa que, às vezes, não é legal para a gente,
dade como essa, como São Paulo, emergências
dói, mas depois a gente fala: “Nossa, como foi
devem pipocar a cada instante, e que elencar
bom!”? É a mesma coisa. Então, sempre, hones-
prioridades em um determinado momento tam-
tidade, falar a verdade e lembrar que o dizer que

educação inclusiva
bém é difícil. Mas eu acho que tudo já foi dito e

Cadernos Temáticos CRP SP


é do par, aquele que é igual, vem de uma outra
penso que seja fundamental acreditar um pou-
forma, vem de uma outra forma.
co mais em si e recuperar um pouco do trabalho

daTemáticos
que já foi feito, sabe? Por isso é que eu acredito
Andrea Souza: Eu ia até falar isso, porque,
tão fortemente no papel do registro, de fazer
de novo, eu tive muita sorte, mas já tive tam-
uma linha do tempo com as coisas que foram
bém criança que quando eu falava “Você não vai

Cadernos
acontecendo. Tem coisas que não foram en-

Conversando sobre as perspectivas


brincar”, o garoto soluçava ou agredia. E aí você
caminhadas da forma como eu desejava, mas
vê também – que era uma coisa que a gente
eu também passei à frente, porque às vezes a
até estava falando no carro – que tem aqueles
gente toma tudo para nós. Então, a gente tam-
rótulos, né? “Autista não tem sensibilidade.” O
bém precisa acionar as pessoas, porque, se
Giovani é supersensível, então se um colegui-
não acionar, a tendência é que cada um fique
nha não quer brincar com ele ou, sei lá, destrata,
no seu pedacinho e todo mundo precisando de
que é coisa de criança, ele fica mortificado por
ajuda. Enquanto professores, eu acho que isso
dias. Só que, pelo menos até agora, na maioria
é muito importante. Nós vivemos muito solita-
das vezes, ele teve um acolhimento na turma, a
riamente os nossos problemas e parece que é
turma entendeu de um jeito que a gente até tem
fraqueza dizer que está difícil, mas não é fra-
que maneirar, porque, assim, as meninas, por
queza, isso é fortaleza. Eu preciso dizer. Melhor
exemplo, só querem ficar com ele, beijam ele,
eu conseguir dizer dos meus assombros do que
querem tomar conta dele, e ele, imagina, nem
esses assombros assombrarem as relações
Cadernos Temáticos CRP SP
gosta, nem se aproveita, né? Mas, enfim, é o cui-
construídas. Então, eu acho que nós estamos
dar, “Não, eu vou ajudar ele, tia”. Então assim,
em um momento importante, a gente já cons-
não precisa dizer o que é autismo nem nada,
truiu conhecimentos importantes, os quais nós
eles sabem e vão reagir e vão ser ótimos cola-
ainda não validamos porque ainda não estabe-
boradores. E outra coisa são os pais. Eu sei que
lecemos dentro das unidades escolares essas
tem pai e mãe que passa por perrengues com
relações de reciprocidade.
outros pais, já teve escritora renomada que es-
creveu na Veja que “criança assim atrapalha as Valéria: Ok, obrigada. Você tem uma ques-
outras”. Mas eu tenho uma felicidade, porque os tão, né? Aqui (aponta para pessoa do auditório).
pais falam: “Olha, o meu filho fala que o sonho E aí tem mais uma aqui escrita. Alguém mais? Ali
dele era ter o Giovani como irmão”. Entendeu? mais uma. Ali atrás mais uma.
Então, tem um acolhimento. Então são seus
principais parceiros: os pais do Davi, os colegas Luiza: Eu me chamo Luiza. Eu sou coorde-
do Davi e os outros pais. É um time. Entendeu? nadora de um projeto social na região do Morumbi
que tem diversos tipos de serviços e um deles é cias com essas crianças, é impressionante como,
26
a assistência psicológica. Há um mês, a gente re- às vezes, eu adapto a minha aula, a partir do modo
cebeu um menino que se chama Moisés, ele tem como as crianças que não têm, e elas transmitem
quatro anos e ele foi diagnosticado com autismo. para os pares, porque a gente faz muitos trabalhos
E a situação é um mix de uma mãe desesperada, entre pares. Então, a criança que tem o espectro e
que está com o pensamento de “agora eu tenho o que é alfabetizada ajuda a que ainda está nesse
estigma de um diagnóstico e agora eu preciso dar processo de alfabetização. Eu sou professora al-
o próximo passo”, e uma escola que se ausenta de fabetizadora. Então, essa criança autista está no
atender. E isso causa uma indignação minha, como lugar de ser o detentor do letramento, da alfabe-
pessoa, porque chegou ao ponto de a educadora tização para auxiliar a criança que não é. Acredito
colocar essa criança de quatro anos em um canto muito nisso. Só que, ao longo desses anos, eu ve-
de uma sala e falar: “Ó, eu não vou olhar”. E aí eu nho numa tratativa de igual, então, eles são iguais
comecei a me questionar sobre o que eu posso fa- e eu os vejo como iguais. E, recentemente, neste
zer com essa educadora. Porque, assim, é um caso ano, eu tenho uma criança autista – e aí é eu fi-
de autismo, mas podia ser um gordinho que eu tiro quei muito na dúvida, e essa é a minha pergunta
da aula de educação física, uma criança negra que –e em rodas de conversa, em assembleias, eu no-
eu tiro de um meio social. E a minha preocupação, tei que as crianças, nessa tratativa igual, começa-
de quem está à frente, é no sentido de que, quan- ram a dizer “gosto, não gosto” para essa criança
do se põe o título de educadora, qual é a sua fun- normalmente. Então, por exemplo: “Eu não gosto
ção como pessoa? Entender que essas crianças que você me bate”; e aí o menino olhava para mim
têm uma subjetividade antes do tema autismo, e eu ficava com essa angústia. Então queria ouvir
que agora a gente precisa aplicar. Eu sinto uma de vocês. Porque, assim, tem sido efetivo, mas eu
necessidade de levar para essa escola a informa- não sei o quanto é bacana seguir com isso, porque
ção de “eu tenho um aluno autista”, e que precisa está funcionando... Mais do que o discurso do adul-
ser entendido. Essa e quantas outras deficiências to de dizer “Não bate no seu amigo”, levar para o
que recebemos de educação, de crianças que tal- outro: “Olha, seu amigo quer te dizer uma coisa”; e
vez tenham outras dificuldades de aprendizagem, aí a criança diz “Eu não gostei que você me bateu”.
e a sociedade precisa começar a entender que é E aí eu queria ouvir um pouquinho.
um estereótipo, é um diagnóstico, sim, mas quan-
Miriam: Eu me chamo Miriam. A minha per-
tas outras crianças também têm. Essa é a nossa
gunta é: como psicóloga e como pedagoga, até
responsabilidade como ser humano na sociedade,
que ponto vai a nossa empatia com o outro? As-
olhar isso como... é um ponto sim, mas aprender
sim, até que ponto vai a nossa empatia com a mãe
como lidar, e não ver como algo que está lá longe.
e com a criança? Porque quando a gente se coloca
Ele (o autista) existe, tem potenciais, como cada
muito no lugar da mãe ou da criança, a gente pode
criança tem. E o que me preocupa é: como eu pos-
colocar os nossos sentimentos pessoais, talvez
so levar para essa escola e para essa educadora,
até dificultando a nossa ajuda para essas crianças
que eu acho que já deveria ter essa sensibilidade,
e para essas mães. Então, até que ponto vai a nos-
o ensinamento de como se portar com a criança
sa empatia com o outro? Essa é a minha pergunta.
que eu recebi agora?
Valéria: Tem mais uma aqui.
Valéria: Tem mais duas ali. Eu acho que eu
quero ouvir as questões, por conta do tempo, aí a
Maria Vitória: Oi, meu nome é Maria Vitória.
gente tenta responder as três. Tem mais uma aqui,
Eu queria saber como a escola deveria se reportar
cadê? E uma ali no fundo.
aos pais que não entendem isso? Meus filhos, eu
Oradora não identificada: Oi, bom dia. Eu não tenho nenhum filho autista, nenhum com qual-
também sou professora e já tive alguns alunos quer outro problema, mas eu fico chateada de ver
com esse diagnóstico. E eu tenho uma angústia os pais que passam por isso com outros pais que
particular, porque, por aprender com eles, eu acre- não conhecem, não sabem como lidar. O caso de
dito muito nesse trabalho entre pares, tanto que eu uma criança que bate em outra e a mãe já fica ator-
fiz a minha dissertação do mestrado sobre isso. É mentada e a escola não passa para essa mãe que
impressionante como as crianças, elas entre elas, o menino tem um problema, que a escola está dan-
se autorregulam, seja com o espectro ou não. E aí do acompanhamento, que os pais estão fazendo
a gente também falou sobre uma questão de apre- esse acompanhamento, mostrar isso antes. Não
ensão do conhecimento. Nessas minhas experiên- precisa expor a criança, mas é só a escola dar uma
palestra sobre inclusão, mostrar como eles tratam vezes deu certo com um, mas isso não deu cer-
27
dentro da escola, senão as próprias mães acabam to com outro e por isso eu sempre brinco, “tu é
fazendo com que as suas crianças excluam essa ‘diqueira’, hein?”. Não tem como, a gente não vai
criança. Elas ali se tratam como igual, como ela fa- descobrir, tem cada jeito e cada ritmo. E isso não
lou, os professores fazem isso – pelo menos nas é em relação às crianças com autismo, gente. To-
escolas que eu conheço –, mas as mães tratam dos os alunos, todos os estudantes têm o seu jei-

Autista
diferente... Principalmente nesse negócio de grupo to específico de aprender, e a gente vai ter que,

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
de WhatsApp, às vezes você pega o que elas falam de fato, como docente – eu também sou docente
ali e, gente, não tem cabimento. Então elas preci- –, tentar estar mais presente. O problema maior –

do Espectro
sam ser educadas sobre isso, para não fazer com penso eu –, que está por trás de toda essa ques-

em emergências
que as crianças tenham um preconceito que elas tão educacional, é um sistema político que nós
não têm, não existe. temos extremamente excludente, que trabalha

com Transtorno
tentando capacitar o outro para isso ou aquilo,
Andrea Souza: Olha, não é só mãe de crian-
como se nós fossemos objetos que se treina, né?
ça não autista, as mães de autistas também têm
Que a gente treina para ser isso, treina para ser
isso. Eu, às vezes, me sinto até excluída do grupo,

Psicologia
aquilo, tem que adquirir conteúdos, esses, esses,
porque as discussões são do tipo: “faz ABA, não
aqueles outros. E eu brinco com meus alunos de

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faz ABA”, “toma Melatonina, não toma Melatoni-
psicologia: “Aqui ninguém sabe matemática direi-
na” – gente, o Giovani não faz nada disso. Aí eu
to. Será que então vocês não podem ser psicó-
procuro dizer: “Cada caso é um caso e tal”. O que
logos?”. Também brinco com eles, dizendo assim:
eu acho é o seguinte: tem mães e mães, assim
“Bom, podemos ser analfabetos e psicólogos”;

educação inclusiva
como têm profissionais e profissionais. Você vai

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“Imagina, Valéria, não dá para ser analfabeto psi-
ter isso. Mas eu acho que eu aprendi a não ser
cólogo”, eles respondem. E eu respondo: “Lógico
xiita, extremos nunca ajudam você em lugar ne-

daTemáticos
que dá! Vocês leram o texto de hoje?”; “Não, não
nhum. E o que eu também aprendi, tanto com as
lemos”; “Vocês fizeram o relatório que precisava
terapias quanto na escola, é assim: trata normal
fazer?”; “Não, não fizemos”; Então não precisa ser
a criança; fez besteira, fez besteira, fala: “Olha,
alfabetizado para ser psicólogo!”. Ok?

Cadernos
você não pode bater no seu amigo mesmo, é feio”,

Conversando sobre as perspectivas


porque ele vai entender. O Giovani entendeu. Ele Então, a gente vai precisar repensar a edu-
vai entender um jeito ou de outro. O Giovani, até cação de um modo geral nos tempos em que es-
quando ele está na fantasia dele, ele fala “Que tamos vivendo, com pré-requisitos que sequer
feio!”, porque ele já sabe o que é feio. Então, ele serão utilizados na vida profissional e/ou adulta.
sabe mais do que você imagina. Então é tratar Aliás, tempos sombrios estes, que estão nos tra-
normal. Eu mesma, como mãe – e aí é um recado zendo armadilhas o tempo todo para que a gen-
também para como você avaliar a mãe –, não só o te caia nessa história de que somos todos iguais.
profissional, mas às vezes a gente tem essa coi- De fato, somos iguais em direito, mas não somos
sa de pensar “ai, mas será que eu estou exigindo iguais subjetivamente, não somos iguais no modo
demais se ele é autista?”. Não. Trata normal. Trata de pensar, no modo de se relacionar, nos modos de
normal. É irônico esse “normal”, mas trate normal, viver, como diria Cida Moisés, né? Então, temos que
e aí ele vai te responder até onde ele pode ir. nos respeitar, nós vamos ter que aprender a convi-
ver. Não dá para continuar tendo uma sala de aula
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Valéria: Bom, tem mais uma questão aqui,
enfileirada e fazer uma assembleia. Não tem como.
eu vou juntar essa última e acho que dá mais dois
Isso, não sei como funciona na sua escola, não é
minutos, três minutos de fala para cada uma, e aí
uma crítica direta, mas na verdade, a gente escuta
a gente vai ter que encerrar. A outra questão foi
muita gente dizendo hoje em dia – e você deve ter
assim: “Para quem não tem acesso às escolas que
percebido isso, vocês todos – “Ah, nós somos de-
tenham boa vontade e estrutura, qual seria a so-
mocráticos”, mas o aluno não tem fala, o aluno não
lução? Vocês acham que as instituições de educa-
tem voto, na hora que ele passa a perturbar, ele
ção apenas para autistas, como a AMA, são uma
não serve. E que democracia que é essa?
boa opção?” – Marina. Aí eu vou fazer a minha fala,
e depois vou passar para as colegas. A situação não é só dos autistas; nós te-
mos negros excluídos, nós temos indígenas ex-
Bom, eu acho que “como lidar com autistas cluídos, nós temos venezuelanos excluídos, nós
na escola”, isso é um mistério. Eu não sou “diquei- não aceitamos outras culturas, a gente continua
ra”, não tem como, né? Então, eu brinco assim, às ensinando que o Cabral veio aqui e descobriu o
Brasil, sem se perguntar sobre qual é a importân- você sabe que a gente fica com vontade de falar,
28
cia do Dom Pedro II para as crianças de oito anos falar, falar; mas maravilhoso! Obrigada, William.
que estão na segunda série? Gente, Dom Pedro São só poucas palavras pegando um pouquinho
II, agora? Por quê? Por que ele é importante? E o do que cada uma trouxe. Eu penso que quem re-
Tiradentes? E Zumbi dos Palmares? Ninguém vai jeita está com medo. Seja o pai que rejeita, seja a
falar sobre isso? É essa também uma questão. professora que pensa “eu não sei o que eu faço
Sobre instituições especializadas para autistas com isso”. Eu me lembro quando a minha filha
ou para qualquer outra deficiência, eu não con- nasceu, a minha filha nasceu saudável, ela tinha
cordo. Eu – Valéria, psicóloga – me coloco nega- um soluço, eram duas horas da manhã, eu liguei
tivamente a isso, no entanto quero marcar que para maternidade, falei: “Pega de volta, porque o
não é a posição do Núcleo de Educação do qual que é que eu faço?”. Então, assim, a gente tem
eu faço parte, do Núcleo de Deficiência de que medo, medo do que a gente não conhece. Como
faço aqui a representação. Eu como Valéria, psi- é que eu vou descobrir? O que eu faço com um
cóloga, trabalhando com pessoas autistas, não bebê que soluça? Já fiz tudo o que manda lá no
acredito em instituições fechadas, instituições caderninho. Então, eu acho que afeta a gente.
onde essas pessoas podem sim aprender mui-
tas coisas, estar bem em centros especializados, Paula: Vermelho, linha vermelha dá certo
mas elas precisam frequentar escolas, do ensino para quem não sabe. Tive vários pais assim e as
infantil ao ensino superior, como elas quiserem; coordenadoras diziam: “Marquei três pais para
elas são sujeitos das suas vidas, e a gente preci- conversar com você hoje, de aluno da sala que
sa resgatar isso. Não sou contra um trabalho no você está atendendo, porque tão bravos”. Eu:
contraturno, uma continuidade, uma ajuda, mas “Como você não me avisou?”; e ela: “Eu não, você
exclusivo, eu sou completamente contra. veio aqui, você fala”. Então, assim, é só por muito
afeto, porque dá muito medo, né? A desinforma-
Antes de eu passar para a Paula e para as
ção é muito grande. Os pais pensam “e se bater
Andreas, eu vou ler o que o William respondeu
no meu filho, e se não sei o que lá”, um monte de
aqui, que é aquele rapaz autista que já tinha escri-
coisa. E a professora também: “O que eu faço?”.
to, porque, “sobre o conceito de filho idealizado”,
Então, para mim, a solução é acolher. É acolher, é
ele continuou, “o que direi é duro, mas é verdade,
pesquisar junto, é oferecer possibilidades: “Você
e ela deve ser dita doa a quem doer. Vamos parar
quer que eu fique aqui um pouco? O que eu posso
de ficar presos a padrões. Quando se descobre
fazer?”. Então, eu sou daquelas que, com essas
que o filho é autista – seja ele oralizado ou não –,
reações mais veementes assim, eu acho que a
parece que aquela noção de filho perfeito ruiu e o
gente precisa trazer para perto, e acolher, e ofe-
mundo acabou. Tudo isso se deve por conta dos
recer informação. Sobre a empatia, eu acho que
padrões e rótulos absurdos e excludentes que fo-
não dá para ter limite com a empatia. A gente
ram construídos ao longo da história. Esses de-
não pode levar pra casa e a gente tem que saber
vem ser impiedosamente, duramente combatidos
que eu sou eu, você é você, o seu problema é o
e devemos combater com igual rigor o capacitis-
seu problema, os meus problemas são os meus
mo cometido contra as pessoas...” – contra, né?
problemas. Mas ficar no lugar do outro enquan-
Ele coloca bem claro isso... – “... contra as pessoas
to está com o outro e buscar alternativas, buscar
autistas. Enquanto não rebatermos essa noção
saídas, eu acho que é dever de todo ser humano,
de filho perfeito, não combateremos a rotulação
não é só do psicólogo, acho que é dever de todo
feita pela mídia, pela indústria farmacêutica, pe-
mundo. Ser empático e colaborar no que for pos-
los manicômios e por algumas ONGs – não são
sível. Eu sou cheia de achismo e “diquismo”, tá? Eu
todas, é claro, evito generalizar – interessadas
adoro. Eu sou, eu falo, eu divido minhas histórias,
somente em nos usar como vitrine pra arrancar
eu conto minhas histórias, porque eu acho que
dinheiro do Estado e encher as burras de alguns
elas podem servir de leque, alguém pode escutar
oportunistas de plantão. A noção sobre o que é
e dizer: “Nossa, isso aí pode ser legal pra mim”.
ser autista precisa ser rediscutida e quem tem
A quantidade de pessoas que já passaram pela
que dizer isso, de fato, somos nós, os autistas
minha vida enquanto eu estava ali, oferecendo
propriamente ditos”. Vou passar aqui.
suporte, apoio... uma delas pode servir pra vocês,
Paula: Show, William. Show! Obrigada pela pode ser legal. “Olha, isso bateu aqui, acho que
excelente colaboração. A gente podia acabar faz sentido.” Então, eu sou uma Forrest Gump, eu
com isso que você falou, que foi maravilhoso, mas conto histórias. Adoro, adoro. No teu caso, Joana,
eu acho que é isso, está perfeito. E, de novo, o esse estigma de que está fazendo isso porque
29
apoio. É chato, né? Mas a gente... “Você precisa é autista – ou está fazendo isso por que é uma
de ajuda, então, para deixar de fazer isso que o criança? Qualquer criança faria isso, né? Então,
seu colega não gosta. O que a gente pode aju- acho que a gente tem que dar esse passo para
dar, então?”. Isso a gente fazia muito, tratos as- trás, porque a gente tem uma tendência, inclusive
sim. “Tá, você não quer que puxe o cabelo, então nós, pais, tá? A gente acaba estereotipando, “ah,

Autista
o que que a gente pode fazer para ajudá-la a não porque ele é autista”. Não. Pode ser simplesmen-

Psicologia em emergências e desastres

e desastres
puxar o cabelo?” E aí você toma a rede toda para te porque é uma criança. E aí eu gostei muito da
pensar junto, porque era uma menina não verbal, fala do William, porque é isso, eu acho que, se eu

do Espectro
puxava direto... Uma delas disse assim: “Eu acho posso deixar um recado, é isso: a gente precisa

em emergências
que ela quer que eu olhe pra ela”; “E o que você se unir para fazer a informação circular, porque
acha que você pode fazer?”; “Quando eu chegar, todo mundo está no mesmo barco. Eu sei que tem

com Transtorno
eu posso virar e falar ‘bom dia’ e perguntar se ela opiniões mais radicais, outras menos, até entre
quer conversar”. Então, é isso. E é sempre com os próprios pais, mas eu acho que o que falta é
todo mundo, né? Enfim. Sobre as escolas, eu acho informação. Estou falando do meu capítulo, como

Psicologia
que cada pai escolhe o caminho. A gente, como mãe, falta muita informação. Então, eu acho que
profissional, pode indicar este, aquele... Bom, de- se a gente se unir, fizer a informação circular, mui-

CRP SP para pessoas


pois que plano de saúde só aceita pagar terapia ta coisa vai ser otimizada.
cognitiva – “CRP sabe disso?”. Eu tomei um susto,
como assim, o plano de saúde escolhe? Então, eu Andrea dos Santos: Eu acho que foi dito
acho que a gente pode abrir o leque e cada pai tudo. Mas eu vou voltar, quem sabe em um dos

educação inclusiva
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escolhe o seu caminho. Para mim não tem receita. princípios que eu mais gosto, e que eu acho que
Eu acho que se é bom para você esse, que bom, a gente precisa aprender a navegar, que a igual-

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que tudo dê certo, e tem coisas que dá certo sim dade e o direito à diferença. E eu vou lembrar da
pra esse, para aquele, para aquele, para aquele, e minha filha... Ela falou que não era para eu con-
a gente precisa aprender a respeitar, e aí eu me tar a história dela, mas como ela não está aqui,
recolho como profissional, entende? Eu posso ser eu vou contar. Vocês não contem para ela que eu

Cadernos
Conversando sobre as perspectivas
empática, eu posso oferecer isso e isso, “mas a contei, tá? Uma vez, ela estava em casa e ela fi-
escolha é sua e eu me recolho como profissional”. cava falando assim: “Fulano é louco, ciclano é lou-
co, fulano é louco, ciclano é louco”; e eu, no lugar
Andrea Souza: Bom, gente, eu queria agra- às vezes da mãe e às vezes da pedagoga chata,
decer, eu acho que eu aprendi mais do dividi hoje. falava: “Marina, que história é essa, ficar chaman-
Mas eu esqueci de comentar quanto ao papel da do as pessoas de louco, louco, louco?”. Ela virou
escola. Logo que o Giovani começou na Supera- e disse: “Ué, mãe, louco é quando a cabeça da
tivo, o meu marido, que foi na primeira reunião, gente não se comporta direito”. Então, eu acho
ficou até assustado, porque a diretora passou de que em determinados momentos é isso para todo
sala em sala, nas reuniões de pais, para contar mundo, não é? A questão é que a gente precisa
uma história que tinha um aluno com síndrome de entender um pouco mais do nosso próprio funcio-
Down e o outro coleguinha virou para ele e falou namento também, para se aproximar um pouco
assim: “Meu pai falou que eu não posso brincar dos funcionamentos do outro, que não são iguais Cadernos Temáticos CRP SP
com você, porque você é tan-tan”. A diretora fez ao nosso. E esse é um compromisso dessa escola
questão de passar de sala em sala de pais falan- contemporânea, do qual nós ainda estamos mui-
do assim: “Nós não vamos admitir esse tipo de to distantes. Então, eu acho que nós precisamos
postura aqui”. Então a escola acabou tomando caminhar. E é bonito ver inovações, né? Que são
uma posição. Meu marido chegou bem assustado pequenas inovações, viu, gente? São pequenas,
em casa, mas ao mesmo tempo eu falei: “Poxa, mas se nós formos construindo essas pequenas
que bom que a escola assumiu essa posição, en- inovações, nós vamos garantir que a igualdade é
tão ela realmente quer ser inclusiva”. Não estou o direito à diferença. Muito obrigada.
dizendo que é porque é síndrome de Down, ou
que é autista. O que seja! Outro dia o meu filho Valéria: Muito obrigada pela manhã pro-
chegou e chegou a informação para mim, por- dutiva, agradeço pela presença de todos, virtu-
que o Giovani chutou a colega. Vamos entender, almente e presencialmente. E que a gente pos-
chutou por quê? “Ah, porque ela queria tirar o ne- sa continuar colaborando uns com os outros,
gócio dele, não sei o quê.” Então, é preciso tirar obrigada e até logo.
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