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cadernos temáticos CRP SP

Psicologia e
Segurança Pública

São Paulo · 2016 · 1ª Edição


Conselho Regional de Psicologia SP - CRP 06
Caderno Temático nº16 - Psicologia e Segurança Pública

XIV Plenário (2013-2016)

Diretoria
Presidente | Elisa Zaneratto Rosa
Vice-presidente | Adriana Eiko Matsumoto
Secretário | José Agnaldo Gomes
Tesoureiro | Guilherme Luz Fenerich

Conselheiros
Alacir Villa Valle Cruces, Aristeu Bertelli da Silva, Bruno
Simões Gonçalves, Camila de Freitas Teodoro, Dario
Henrique Teófilo Schezzi, Gabriela Gramkow, Graça Maria
de Carvalho Camara, Gustavo de Lima Bernardes Sales,
Ilana Mountian, Janaína Leslão Garcia, Joari Aparecido
Soares de Carvalho, Livia Gonsalves Toledo, Luís Fernando
de Oliveira Saraiva, Luiz Eduardo Valiengo Berni, Maria das
Graças Mazarin de Araujo, Maria Ermínia Ciliberti, Marília
Capponi, Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso, Moacyr
Miniussi Bertolino Neto, Regiane Aparecida Piva, Sandra
Elena Spósito, Sergio Augusto Garcia Junior, Silvio Yasui

Organização do caderno
Adriana Eiko Matsumoto
Patrícia Gomes Ramalho de Oliveira
Maria Carolina Rissoni Andery
Odette Godoy Pinheiro

Revisão ortográfica
Ricardo Ondir

Projeto gráfico e editoração


Paulo Mota | Comunicação do CRP SP

___________________________________________________________________________
C755c Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Psicologia e Segurança Pública. Conselho Regional de
Psicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2016.
44p.; 21x28cm. (Cadernos Temáticos CRP SP)

ISBN: 978-85-60405-36-7

1. Psicologia –Segurança Pública. 2. Direitos Humanos. 3. Direito


Penal Atuarial. I. Título
CDD 150
___________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Marcos Toledo - CRB 8-8396
Cadernos Temáticos do CRP SP
Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo in-
clui, entre as ações permanentes da gestão, a publicação da série Ca-
dernos Temáticos do CRP SP, visando registrar e divulgar os debates
realizados no Conselho em diversos campos de atuação da Psicologia.
Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é
concretizar um dos princípios que orienta as ações do CRP SP, o de
produzir referências para o exercício profissional de psicólogas(os);
o segundo é o de identificar áreas que mereçam atenção prioritária,
em função de seu reconhecimento social ou da necessidade de sua
consolidação; o terceiro é o de, efetivamente, garantir voz à catego-
ria, para que apresente suas posições e questionamentos acerca da
atuação profissional, garantindo, assim, a construção coletiva de um
projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como ciên-
cia e como profissão.
Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de
maneira a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas
pelo CRP SP, que contaram com a experiência de pesquisadoras(es)
e especialistas da Psicologia, para debater sobre assuntos ou te-
máticas variados na área. Reafirmamos o debate permanente como
princípio fundamental do processo de democratização, seja para con-
solidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os caminhos a serem
trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presentes em nos-
sa realidade, sempre compreendendo a constituição da singularidade
humana como fenômeno complexo, multideterminado e historicamen-
te produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido,
um convite à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a
psicólogas(os), bem como aos diretamente envolvidos com cada te-
mática, criando uma oportunidade para a profícua discussão, em di-
ferentes lugares e de diversas maneiras, sobre a prática profissional
da Psicologia.
Este é o 16º Caderno da série. O seu tema é “Psicologia e Segu-
rança Pública”.
Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, tra-
zendo para o espaço coletivo, informações, críticas e proposições so-
bre temas relevantes para a Psicologia e para a sociedade.
A divulgação deste material nas versões impressa e digital pos-
sibilita a ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão
sobre o compromisso social de nossa profissão, reflexão para a qual
convidamos a todas(os).

XIV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo


Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:
1 – Psicologia e preconceito racial
2 – Profissionais frente a situações de tortura
3 – A Psicologia promovendo o ECA
4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar
5 – Cidadania ativa na prática
5 – Ciudadanía activa en la práctica
6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional
7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas
9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas
10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família
11 – Psicologia e Diversidade Sexual
12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas
13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade
14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia
15 – Centros de Convivência e Cooperativa
Sumário

07 Apresentação
Maria Carolina Rissoni Andery

Roda de Conversa: “Políticas de Segurança Pública:


Desafios ético-políticos para a Psicologia”

09 Coordenação
Adriana Eiko Matsumoto

10 Políticas Públicas e Segurança Pública e seus desafios


Orlando Zaccone D’Elia Filho

16 Contribuições da Psicologia para a construção da democracia


e garantia dos Direitos Humanos
Pedro Paulo Gastalho Bicalho

22 Políticas de Segurança a partir da lógica do Direito Penal


Atuarial
Maurício Stegemann Dieter

27 A atuação das(os) psicólogas(os) na Segurança Pública


Beatriz Borges Brambilla

33 Debates
Apresentação 7

Maria Carolina Rissoni Andery


Psicóloga representante do Conselho Regional de Psicologia

Psicologia e Segurança Pública


de São Paulo, Membro do Núcleo de Justiça do CRP SP

Debater as políticas de segurança no nos- categoria de todo o Brasil para deliberar


so país é falar da totalidade de ações do sobre a política a ser exercida pelo Siste-

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Estado com a sociedade, que tem sofrido ma Conselhos de Psicologia. Foi apresen-
com nosso modo de produção e reprodu- tada a necessidade de ampliar a discussão
ção da vida concreta. Compreender o pro- no Sistema Conselhos sobre a política de
cesso de avanços e retrocessos nessas segurança pública, fomentando a inserção
políticas é fundamental para entendermos da psicóloga e do psicólogo nesse contex-
uma face da nossa contemporaneidade. A to. Desse modo, devemos promover com a
Psicologia como ciência e profissão tem justiça e a segurança discussões a respei-
sido convocada a participar desses pro- to dos aspectos éticos da atuação da psi-
cessos, produzindo respostas diante da cóloga e do psicólogo no contexto da justi-
realidade e tem ocupado um lugar cada vez ça. Para dar conta dessas questões, o CRP
mais importante na formulação e execução de São Paulo tem em seu planejamento es-
de políticas públicas de segurança. Tem tratégico alguns eixos: como tornar-se re-
aumentado o número de psicólogas(os) ferência no cotidiano profissional das(os)
atuando na interface com a justiça, con- psicólogas(os), por meio da produção de
tudo, essa atuação também busca ser di- referências técnicas que respeitem à di-
versificada, não respondendo somente às versidade da Psicologia, para contribuir na
questões éticas e aos parâmetros técni- sociedade, tendo como foco as demandas
cos de atuação. É fundamental lembrar a postas pelas lutas sociais por igualdade e
importância da atuação em rede a partir da democracia; e marcar posicionamento in-
política pública intersetorial nas diversas transigente por políticas públicas de Esta-
áreas, como as da saúde, da assistência do que garantam direitos sociais e direitos
social, da educação, pois a realidade não humanos a partir do diálogo permanente
é dividida em segmentos e como profissão com a sociedade, movimentos populares,
temos que compreendê-la em sua totalida-
de. Desse modo, faz-se urgente a reflexão
sobre o papel que temos desempenhado
como categoria, perante as contradições “O que queremos de uma
da realidade social no contexto da segu-
rança pública. Nesse sentido temos algu-
política pública de segurança?”,
mas perguntas: “O que queremos de uma “Como queremos esse
política pública de segurança?”, “Como que-
remos esse debate?”, “Quais os desafios e
debate?”, “Quais os desafios
propostas para atuação da psicologia nesse e propostas para atuação da
campo?”, “Como faremos essa atuação?”. O
VIII Congresso Nacional de Psicologia, rea-
psicologia nesse campo?”,
lizado em 2013, reuniu representantes da “Como faremos essa atuação?”
8 movimentos sociais, com a categoria e as
entidades de Psicologia e afins. Portanto, Portanto, dialogar sobre as
dialogar sobre as políticas de seguran-
ça pública se torna ponto essencial para políticas de segurança pública
construção de um projeto de profissão, se torna ponto essencial para
que vise avançar nas garantias de direitos
e na superação de desigualdades, postas construção de um projeto de
nas relações sociais, em uma sociedade profissão, que vise avançar
com modo de produção capitalista. Diante
dessas questões e demais que aparece- nas garantias de direitos e na
rão no nosso evento, convidamos todos a superação de desigualdades,
dialogar conosco nessa roda de conversa,
com o objetivo de produzir um novo diálo- postas nas relações sociais, em
go, orientação e levantamento de desafios uma sociedade com modo de
e possibilidades da Psicologia no contexto
da política pública de segurança. produção capitalista.
Roda de Conversa: “Políticas 9

de Segurança Pública: Desafios


ético-políticos para a Psicologia”

Psicologia e Segurança Pública


Coordenação: Adriana Eiko Matsumoto
Conselheira Vice-Presidente do Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo - CRP06, Membro do Núcleo de Justiça do CRPSP

Em nome da gestão do Conselho Regional


de Psicologia de São Paulo, damos as bo- A nossa política, do ponto de

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as-vindas a todas e todos aqui presentes.
Agradeço especialmente aos palestrantes vista do Sistema Conselhos,
aqui presentes nesta roda de conversa, é trazer esse debate, esse
pois possibilitarão a construção de uma
reflexão a respeito das políticas de segu- diálogo diante da nossa
rança pública, para que, a partir daí, possa- realidade social, de modo que
mos discutir as contribuições, os desafios,
as atuações do campo da Psicologia nesse possamos, entre diferentes,
contexto. Sabemos o quão contraditória é conseguir construir algum
a nossa realidade, o quanto ela é eivada de
conflitos, de contradições sociais, e é exa- diálogo, alguns avanços e,
tamente este o terreno da nossa prática. A portanto, também construirmos
nossa política, do ponto de vista do Siste-
ma Conselhos, é trazer esse debate, esse eticamente a nossa profissão
diálogo diante da nossa realidade social, diante de todos esses desafios.
de modo que possamos, entre diferentes,
conseguir construir algum diálogo, alguns
avanços e, portanto, também construirmos
eticamente a nossa profissão diante de
todos esses desafios. Quero enfatizar a
importância de trazer a vocês esta discus-
são sobre Psicologia e Segurança Pública,
tendo em vista a contribuição da Psicolo-
gia para uma sociedade mais justa e igua-
litária, que é um eixo importante da ges-
tão do Conselho Regional de Psicologia de
São Paulo. Vou passar a palavra agora para
Orlando Zaccone D´Elia Filho, que trará
suas contribuições.
10
“Políticas Públicas e Segurança
Pública e seus desafios”
Orlando Zaccone D’Elia Filho
Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Candido
Mendes e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, com a tese: “Indignos de vida,
forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”

Quero agradecer o convite do Conselho Re- que ainda têm pena de morte legal (só não
gional de Psicologia de São Paulo e cumpri- possuía os dados da China), e verificou-se
mentar a todos da mesa. O tema da Seguran- que em 2011 foram executadas 646 pessoas.
ça Pública cada vez mais tem se aproximado Nesse mesmo ano somente nos estados do
do encontro com profissionais da área de Rio de Janeiro e São Paulo, as polícias mata-
saúde, principalmente no que diz respeito ram mais de 940 pessoas, totalizando um nú-
à questão das drogas, que é o recorte que mero 42% a mais de mortes do que em todos
eu quero fazer; segurança é um tema muito os países com pena de morte no mundo. Isso
mais amplo, evidentemente, mas eu queria é um problema político, porque nós temos
fazer esse recorte, porque é o grande “carro uma Constituição que proíbe a pena de morte
chefe” do processo de criminalização. Hoje no Brasil, só autorizando-a em caso de guer-
no Brasil temos 750.000 presos, é o tercei- ra declarada, sendo que a última guerra do
ro país do mundo que mais encarcera, e só qual o Brasil participou foi a Segunda Guer-
perdemos para os Estados Unidos e para a ra Mundial. Então teoricamente nós vivemos
China (acabamos de passar a Rússia). A ideia em um país que proíbe a pena de morte, mas
de que vivemos em um país da impunidade matamos 42% a mais do que todos os países
é um pouco problematizada pelos números, com pena de morte no mundo.
porque no campo internacional nós despon-
tamos como uma das nações que mais en-
carcera. Se for considerar a relação de preso Importante ressaltar que hoje
por 100.000 habitantes, nós ficamos entre os
seis maiores. E tem outro aspecto ao qual te- vivemos em um dos países que
nho me dedicado também, relacionado com mais encarcera no mundo e
a atividade policial, que é o da letalidade do
sistema de justiça criminal. Em meio às políti- em um dos países no qual as
cas proibicionistas e às políticas de seguran- polícias mais matam no mundo.
ça pública militarizadas efetivadas no Brasil,
nós temos índices elevadíssimos de morte Morrem também, mas matam.
de todos os lados, tanto da polícia, como
também mortes praticadas por policiais con-
tra cidadãos brasileiros. Importante ressaltar Delegado de Polícia é uma figura sui ge-
que hoje vivemos em um dos países que mais neris no mundo policial. Eu tenho conquista-
encarcera no mundo e em um dos países no do muitos inimigos na Polícia Civil do Rio de
qual as polícias mais matam no mundo. Mor- Janeiro, por conta da discussão da localiza-
rem também, mas matam. Vou trazer aqui um ção desse ser “esquisito” no mundo policial,
dado importante, que foi o problema do meu pois uma das funções do Delegado de Polícia
estudo no doutorado. A Anistia Internacional é fazer o controle dos atos da polícia. O pri-
fez uma pesquisa em 2011, com 20 países meiro a controlar os atos da polícia é o dele-
plar o arquivamento desses inquéritos, ou 11
No crime não é muito diferente, seja, policial quando mata alguém, mata em
legítima defesa, própria ou de terceiros. Le-
pois o crime é uma construção vado pela curiosidade, fui pesquisar como se
que se faz também por meio constrói a legítima defesa. Penso que essa é
uma grande aproximação que hoje temos fei-
da linguagem. to entre o saber criminológico e o saber psi.

Psicologia e Segurança Pública


Vocês sabem, melhor do que nós, que tudo
gado. Isso é estranho, pois se eu estou em nesse mundo se constrói por meio da lingua-
uma delegacia e um policial é acusado de ter gem. No crime não é muito diferente, pois o
matado alguém, sou eu que devo investigar crime é uma construção que se faz também
esse fato. Mais esquisito ainda quando a por meio da linguagem. Nós estudamos na
própria Constituição define o Delegado de faculdade de Direito uma série de elementos
Polícia como aquele que vai dirigir as polícias. doutrinários do mundo ideal, do mundo do
Então aquele que dirige é aquele que tem “dever ser”, elementos a serem contempla-
que fazer a primeira apuração dos desvios de dos para chegarmos à legítima defesa. Mas
função dos policiais. Caberia um estudo pro- quando vamos estudar a forma concreta, ju-
fundo sobre essa figura, que no meu ponto rídica da legítima defesa, vamos ver que essa
de vista tem dois vieses. Tem um viés extre-

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legítima defesa é construída por meio de ou-
mamente autoritário, que é dar forma jurídica tros elementos. Na criminologia vamos ver
aos atos de polícia, e essa é a função que os que a construção do crime e do criminoso é
Delegados de Polícia têm cumprido historica- feita pela linguagem. “Quem é traficante e
mente. E teria, no discurso, por isso eu brigo quem é usuário de drogas?”: um rapaz que
com eles, porque só gostam de usar esse acabou de ganhar um salário mínimo, que
viés discursivo na hora de tentar identificar o mora em uma favela no Rio, na Mangueira,
delegado como uma figura do mundo jurídico, ganhou o salário na sexta-feira, passou na
para contemplar salários próximos ao dos boca de fumo, comprou 10 “trouxinhas” de
Promotores, dos Juízes. Assim, no doutorado, maconha para fumar no fim de semana; aí
fui olhar para essa letalidade do sistema de tem uma blitz policial, e ele é flagrado no mo-
justiça criminal no Brasil e observei outro mento em que ele está com R$ 600,00 em um
dado interessante: quando um policial mata bolso e 10 “trouxinhas” de maconha no outro,
alguém em serviço no Brasil, é instaurado um em um lugar conhecido como “boca de fumo”;
procedimento que é chamado “auto de resis- ele é traficante ou é usuário? Já quando um
tência”. Aqui em São Paulo é instaurado in- helicóptero de propriedade de um Deputado,
quérito policial para apurar homicídio, mas com meia tonelada de cocaína é parado de-
em muitos estados do Brasil e no Rio de Ja- pois de ter sido abastecido em uma região de
neiro, também é instaurado um procedimen- Minas Gerais, ninguém foi preso; o helicópte-
to para apurar aquela morte, como já dito, o ro já foi devolvido à família, e nem o piloto
“auto de resistência”. Esses inquéritos são está preso. Então reparem que a construção
levados a conhecimento do poder jurídico, e do crime e do criminoso se dá por meio de
uma pesquisa da UERJ – Universidade do Es- uma série de construções que vão ser feitas
tado do Rio de Janeiro identificou que mais sob essas formas jurídicas. Quando fui estu-
de 95% desses inquéritos são arquivados em dar a forma jurídica da letalidade no sistema
menos de três anos. Isso significa que quan- de justiça criminal, identifiquei que a legítima
do o poder jurídico arquiva essa investiga- defesa não é construída pela forma como a
ção, está dizendo que essa morte foi con- ação é realizada pelo policial. Estudei inqué-
templada dentro da lei, e não fora dela. Nós
temos uma letalidade altíssima em nosso
sistema de justiça criminal, 42% a mais que
em todos os países com pena de morte no A dignidade enquanto atributo
mundo, mortes que são contempladas pela universal não existe: ninguém nasce
Justiça como legais. Como isso é possível?
Por meio da construção da “legítima defesa”, digno; nós somos construídos como
que é o fundamento jurídico que vai contem- dignos ou indignos.
12 ritos no qual consta que foram dados cinco, Batista, ao falar dessa “inconclusa novela de
seis tiros nas costas, tiros a “queima roupa”, terror” remete-se a dois períodos históricos:
na nuca, e o Promotor de Justiça afirma que a Inquisição e o Positivismo Criminológico,
houve legítima defesa. O que é “legítima de- nos quais há esse grande encontro, que é a
fesa” concretamente? Na verdade, uma das “pena como cura” e a “cura como pena”. A
conclusões do trabalho é que o que se discu- “pena como cura” é o momento em que se
te nesses autos de resistência é a condição “jogam as bruxas na fogueira” e se objetiva a
do morto, quem morreu, por isso que foi dado confissão segundos antes de serem queima-
ao trabalho o título: “Indignos de vida, a forma das, para que possam ser curadas por meio
jurídica da política de extermínio de inimigos da queima do próprio corpo, da sua própria
na cidade do Rio de Janeiro”. Os indignos e os morte. Isso tem a ver com o texto que vou ler,
dignos têm um capítulo separado em que e com o chamado auto de resistência, pois em
trato desse tema, que é um tema totalmente muitos autos de resistência pesquisados, o
voltado para a questão da linguagem, da familiar afirma que a melhor coisa para aque-
construção, dos signos, dos significados que la pessoa que morreu foi ter morrido, pois a
nós damos no mundo. A dignidade enquanto livrou de um infortúnio muito maior. O texto
atributo universal não existe: ninguém nasce que eu vou ler é de 1920 e traz a origem des-
digno; nós somos construídos como dignos se racismo, do qual falarei mais adiante. O
ou indignos. O estuprador, o traficante, al- texto “Autorização do aniquilamento da vida
guns criminosos são contemplados com ca- indigna de ser vivida” propõe incluir a eutaná-
tegorias, e quando essas categorias são sia no marco dos homicídios autorizados.
criadas, você constrói na linguagem a indig- Esse texto depois vai ser usado pela Alema-
nidade. Há uma parte da pesquisa intitulada nha nazista para contemplar o projeto de eu-
“Barbárie civilizatória da tanatopolítica”, em genia. Ao propor incluir a eutanásia no marco
que vou contemplar um texto escrito por um dos homicídios autorizados, os referidos au-
jurista, um especialista do Direito Penal: Karl tores consideram a existência de vida, e sem
Binding, e um médico, professor de medicina: valor de vida, a partir da ideia de que existem
Alfred Rush, intitulado “Autorização do aniqui- vidas humanas cujo caráter de bem jurídico
lamento da vida indigna de ser vivida”. O pro- foi tão reduzido, que sua manutenção perde
fessor de Direito Penal e Criminologia Nilo todo o valor para os seus titulares e para a
Batista mostra que existe um encontro entre sociedade. Eles estavam discutindo como
saberes jurídicos e médicos, de uma “incon- não criminalizar a eutanásia, para não punir
clusa novela de terror”. É aquele encontro por homicídio aqueles que desligassem uma
que se dá na “sala da injeção letal”; nela es- máquina. “A indignidade da vida ocorre no ins-
tão o operador do sistema de justiça criminal tante em que se define que a causa segura da
– o policial – e o médico para fazer uma coisa morte encontra-se previamente estabelecida
“bem limpa”, “bem indolor” e o professor Nilo e a decisão da morte na eutanásia não é mais
um ato de homicídio, em sentido jurídico, mas
tão somente uma variação da causa da morte,
instalada irremediavelmente e inevitável. A
“Existindo vidas humanas pelas quais biopolítica encontra no Direito a definição do
tenha desaparecido todo interesse valor da vida, no marco salvacionista...” (e é in-
teressante que “saúde” e “salvação” têm o
na sua conservação, o ordenamento mesmo radical: salute). Os autores conside-
jurídico terá que enfrentar uma ram a eutanásia um ato de pura cura, “pois
pergunta fatal, está chamado a fazer desaparecer um tormento é também par-
te da tarefa de curar”. Sempre que eu leio, eu
defender ativamente sua posterior me arrepio, eu penso na justiça terapêutica.
existência incluída mediante a E os autores continuam: “de modo algum é
completa aplicação da lei penal possível por em dúvida que existem seres hu-
manos viventes, cuja morte significaria para
ou seria melhor, em determinadas eles mesmos uma salvação e para a socieda-
condições, admitir a permissão para o de, especialmente, a liberação de uma ‘carga’,
seu aniquilamento?” de um ‘peso’, cuja manutenção não produz o
menor proveito, exceto unicamente uma ques- assumida de zelar pelo corpo biológico da na- 13
tão de altruísmo. Existindo vidas humanas pe- ção”. Ou seja, quando nós naturalizamos a
las quais tenha desaparecido todo interesse ideia de homem, é justamente quando nós
na sua conservação, o ordenamento jurídico afastamos o homem nas suas qualidades
terá que enfrentar uma pergunta fatal, está biológicas, ele é um “não humano”; o homem
chamado a defender ativamente sua posterior só se constrói como homem a partir, e aí tem
existência incluída mediante a completa apli- a Hannah Arendt e outros filósofos que já

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cação da lei penal ou seria melhor, em determi- trabalhavam, a partir da ação, da relação, da
nadas condições, admitir a permissão para o visibilidade, da construção que ele faz nesse
seu aniquilamento?”. Ou seja, o “valor da vida” mundo. Quando você despe o homem à sua
está sendo definido em um debate jurídico; é condição biológica, ele perde a qualidade de
o Direito que vai construir “o que é vida” e “o humano. Interessante que os nazistas inven-
que não é vida”, e o Direito faz isso até hoje, taram a câmara de gás, em um primeiro mo-
com a lei de remoção de órgãos. O Direito de- mento, para matar gente do seu próprio povo;
fine que o momento da vida é o momento da só depois essa tecnologia foi adaptada ao
parada da atividade encefálica, a partir dali extermínio de judeus ou outras minorias no
você pode doar órgãos, antes não. Então campo de concentração. O projeto de euge-
essa é a construção que vamos fazer da dig- nia era para fazer cessar a vida daquilo que

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nidade e da indignidade, no sentido das vidas foi construído politicamente, como vidas que
que são contempladas por uma tutela jurídi- não mereciam viver (por esse motivo esse ar-
ca e as que não são. Concluo no meu traba- tigo de 1920 foi fundamental na construção
lho que aqueles mortos dos autos de resis- do projeto de eugenia nazista). Foucault vai
tência que foram arquivados estão dentro chamar a atenção para a questão do racismo
desse contexto das vidas indignas. “Na bio- da seguinte forma, “mas como exercer esse
poder de morte em um sistema político centra-
do na valorização da vida?”; esse é o grande
É na luta por preservar a vida paradoxo, observado na questão da biopolí-
tica. Quando a política mais se foca na pre-
que praticamos os maiores servação da vida, no aumento da duração da
genocídios da história. vida, na ciência, é que ocorrem os grandes
genocídios. A tanatopolítica vai ocorrer jus-
tamente nesse paradoxo. Ficamos muito im-
política moderna, soberano é aquele que deci- pressionados com a questão do usuário de
de sobre o valor ou sobre o desvalor da vida drogas, que muitas vezes faz a opção de re-
enquanto tal. Do direito à vida, escrito na De- duzir o seu tempo de vida, por conta daquele
claração Universal dos Direitos Humanos, sur- prazer que busca nas drogas, mas nós não
ge soberana decisão sobre a vida que merece nos tocamos que há uma série de outras
e a que não merece viver.” Vejamos um trecho pessoas que também reduzem seu tempo de
de Giorgio Agamben, filósofo que trabalhou vida. Policiais têm prazer em estar no meio de
essa temática: “A vida indigna de ser vivida uma guerra portando um fuzil, um combaten-
não é, com toda evidência, um conceito ético te de guerra, essa pessoa também está per-
que concerne às expectativas e legítimos de- mutando a possibilidade de redução do seu
sejos do indivíduo. É, sobretudo, um conceito tempo de vida, por uma questão de prazer.
político no qual está em questão a extrema
metamorfose da vida matável e sacrificável do
‘homo sacer’ sobre o qual se baseia o poder
soberano. Se a eutanásia se presta a essa tro-
A morte do outro, ainda
ca, isto ocorre porque nela um homem encon- segundo Foucault, não é
tra-se na situação de dever separar em um
outro homem a ‘zoe’ do ‘bios’ e de isolar nele
simplesmente a garantia da
algo como uma vida nua, uma vida matável. minha segurança pessoal, mas
Mas na perspectiva da biopolítica moderna, ela
se coloca sobretudo na intersecção até deci-
aquilo que deixa a vida geral
são soberana, sobre a vida matável e a tarefa mais sadia e pura.
14 travado não mais na dualidade exterior, mas a
Porque é muito fácil dizer que a partir de uma raça considerada verdadeira e
única contra aqueles que constituem o perigo
polícia tem que matar, porque se ao seu patrimônio biológico. Já não se trata de
o resultado for asséptico, limpo, uma luta entre grupos sociais distintos, mas
tão somente de um instrumento de conserva-
palmas para a polícia e palmas dorismo social, presentes na ideologia da de-
para o poder político; agora se fesa social. A morte do outro, ainda segundo
Foucault, não é simplesmente a garantia da
der problema, o poder político vai minha segurança pessoal, mas aquilo que dei-
“jogar os policiais na lama”. xa a vida geral mais sadia e pura. Uma relação
biológica de poder, que assegura a função de
morte como um mecanismo para assunção da
Quando a questão são as drogas, ficamos vida pelo Estado. A morte de anormais e dege-
assustados, porque todo o discurso voltado nerados passa a ser um impulso para a vida da
para as drogas é para que façamos com que espécie, na qual o exercício de poder soberano
a vida se prorrogue, para que o tempo de na forma do racismo de Estado configura uma
vida perdure. Então é justamente essa a tecnologia de poder.”. Esse racismo está pre-
questão que Foucault vai trazer. É no marco sente hoje, esse da biopolítica e da tanato-
da biopolítica que a tanatopolítica surge. Os política, nas nossas políticas de Segurança
grandes genocídios ocorrem justamente no Pública. Nós identificamos determinados cri-
marco da preservação da vida. É na luta por minosos como inimigos da sociedade, não na
preservar a vida que praticamos os maiores forma de inimigos do Estado, porque inimigo
genocídios da história. Foucault pergunta: do Estado “ainda tem conversa”, mas como
“como o poder político na modernidade conse- inimigos ônticos, inimigos por natureza,
gue reunir esforços para prolongar a duração aqueles que são “ervas daninhas” a infestar
da vida, multiplicar as suas possibilidades e o jardim civilizatório, que devem ser extirpa-
até compensar as suas deficiências expondo e dos e eliminados. Com esse pensamento que
executando a morte não só aos seus inimigos, as polícias, nós policiais, somos chamados a
como seus próprios cidadãos?”. O racismo de defender a sociedade. Ligamos a televisão
Estado seria para Foucault um mecanismo todos os dias e vamos ouvir de Datena ou de
fundamental para o poder biopolítico. Com Wagner Montes: “para cima deles”, e na rua:
efeito, “o que é racismo?”. Foucault pergunta “bandido bom é bandido morto”. Eu participo
e responde: “é primeiro o meio de introduzir, do Conselho de Segurança no Rio de Janeiro
afinal, esse domínio da vida de que o poder se e aparecem senhoras falando: “doutor, é isso
incumbiu, um corte: o corte entre o que deve mesmo, a polícia tem que matar”, e eu sou
viver e o que deve morrer. No contínuo biológi- obrigado a falar para a “velhinha”: “não, se-
co da espécie humana, o aparecimento das ra- nhora, a senhora é quem vai matar, eu vou
ças, a hierarquia das raças, a qualificação de arrumar uma arma para a senhora matar, eu
certas raças como boas e de outras, ao con- não vou matar ninguém não”. Porque é muito
trário, como inferiores, tudo isso vai ser uma fácil dizer que a polícia tem que matar, por-
maneira de fragmentar esse campo do biológi- que se o resultado for asséptico, limpo, pal-
co de que o poder se incumbiu; uma maneira mas para a polícia e palmas para o poder po-
de defasar no interior da população, uns gru- lítico; agora se der problema, o poder político
pos em relação aos outros. Ocorre que, ao lado vai “jogar os policiais na lama”. Isso aconte-
da tradição francamente biológica, surge no ceu em um caso do qual participei diretamen-
século XIX um racismo biológico social, em que te, que foi o caso do Amarildo, no Rio de Ja-
a polaridade como fratura binária da socieda- neiro. Todo debate se dava com a seguinte
de não se dá entre grupos raciais exteriores pergunta: “Amarildo era traficante de dro-
[os bárbaros e nós, os civilizados – vai ser gas?”. Estranho, pois aparecem imagens de
contemplado dentro do próprio grupo, e não Amarildo sendo conduzido algemado para
de fora para dentro]. Temos então o desdo- dentro de uma viatura da polícia e ele desa-
bramento de uma mesma raça em uma super- parece. O que a pergunta “se Amarildo é tra-
raça e uma subraça. O discurso do poder será ficante” tem a ver com isso tudo? A princípio,
nada. Mas tem tudo a ver, porque construída 15
na linguagem, a figura do Amarildo como tra- Porque o Delegado vai dizer
ficante, aquela morte passa a não ter valor
nenhum, seu desaparecimento não tem valor que ele é jurista, mas nós,
nenhum, porque ele passa a perder toda a policiais, somos chamados a
dignidade, ele é um indigno. Era isso que es-
tava sendo contemplado naquela situação. O cumprir esse serviço “sujo”

Psicologia e Segurança Pública


que acontece? O poder político criou um pro- para o poder político que leva
jeto de Unidade de Polícias Pacificadoras, co-
locou a polícia dentro da favela para tentar todos os “louros”, caso dê
resolver uma questão, que não tem solução certo, e no caso de problema,
sem uma profunda intervenção política, que
é a questão do tráfico de drogas. Não se de- quem “vai em cana” somos nós.
saparece com o mercado, pessoas querem
usar porque já conhecem, já experimentaram comércio e do consumo de todas as drogas.
durante anos maconha, cocaína e elas que- Foi em cima do discurso “dos bons” que
rem usar essas substâncias. E o mercado construímos toda essa história de genocí-
não desaparece simplesmente com a proibi- dios, que de acordo com o professor Eugenio
Raul Zaffaroni, Ministro da Suprema Corte da

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ção. Tanto é que, depois de anos de proibi-
cionismo, o mercado continua. Jogam-se po- Argentina, no século XX, as agências poli-
liciais dentro dessas comunidades onde o ciais mataram muito mais do que as guerras.
transporte não está regulamentado, em que Então, criamos Estados nacionais, que te-
as relações naquela comunidade são todas riam por proposta proteger, nos proteger do
informais, e se “entrega a chave” para o Co- perigo mais grave, que é o perigo da morte
mandante da Polícia Militar, dizendo: “gover- violenta, segundo Hobbes, e esses Estados
na”. Se tudo der certo, o poder político vai nacionais são aqueles que operam essa má-
aparecer promovendo a “grande corrida da quina de letalidade, só que operam de uma
pacificação”. Mas se não der, como no caso forma cruel, colocam policiais em situação
Amarildo, “vai todo mundo em cana”: os poli- de vulnerabilidade extrema, porque não têm
ciais vão presos, o poder político vai dizer treinamento, não têm salário, não têm direito
que o projeto não era esse, que era outro, e de associação, nós não temos nada e estou
esse é um desvio de função. Os policiais vi- falando enquanto policial. Porque o Delega-
vem aparecendo nessa letalidade do siste- do vai dizer que ele é jurista, mas nós, poli-
ma de justiça criminal como desviantes, ciais, somos chamados a cumprir esse servi-
como “anormais”, quando na verdade existe ço “sujo” para o poder político que leva todos
uma política que contempla essa letalidade os “louros”, caso dê certo, e no caso de pro-
e que não é formulada dentro dos quartéis blema, quem “vai em cana” somos nós. Te-
da PM, dentro das delegacias, mas é formu- mos que parar e repensar as funções da po-
lada dentro dos gabinetes dos promotores lícia, e não os desvios de função. Essa
de justiça, dos juízes criminais e, muitas ve- letalidade não é vista pelo sistema de justiça
zes, com aplauso da sociedade, seja por criminal como desvio, porque se fosse visto
meio dos veículos de comunicação, seja por como desvio, as ocorrências de todas essas
meio daquela “doce senhora” do Conselho mortes não eram arquivadas como legítima
de Segurança. Então eu acho que a nossa defesa. Então, nós temos que nos atentar
missão, a minha missão, falo por mim como muito mais para as funções, e nós policiais
policial hoje, é tentar trazer essas informa- temos que fazer a crítica dessas funções,
ções para a sociedade e principalmente para porque essas funções nos colocam em uma
a polícia, para os policiais, porque eu faço posição tão vulnerável quanto aqueles que
parte de uma associação chamada LEAP estão lá. Nós somos tão “vida indigna”, tão
Brasil (Associação dos Agentes da Lei con- matáveis como os traficantes de drogas. En-
tra a proibição das drogas), onde se defende tão essa que é a proposta política da LEAP:
como um marco de racionalidade a redução trazer ao debate a necessidade de regula-
da violência praticada por policiais e contra mentação do comércio, do consumo e da
policiais, a regulamentação da produção, do promoção das drogas.
16
“Contribuições da Psicologia para
a construção da democracia e
garantia dos Direitos Humanos”
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Psicólogo especialista em Psicologia Jurídica, Mestre e Doutor em Psicologia, professor do Instituto de
Psicologia e Coordenador do programa de pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Entre 2011 e 2013, foi conselheiro eleito do Conselho Nacional de Segurança Pública do Ministério da
Justiça, além de coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia

Gostaria de agradecer o convite do CRP de


São Paulo. Fui capitão psicólogo da Polícia Os psicólogos entram na polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro, hoje
como psicólogos, mas ao compor
sou professor de Criminologia dos cursos
de graduação, mestrado e doutorado da o quadro da polícia, tornam-se
Universidade Federal do Rio de Janeiro e oficiais da polícia fardados, armados
sou também da comissão de frente da Por-
e chamados primeiramente de
tela, e tenho muito orgulho disso. Gostaria
de contar um pouco a história do que foi a tenentes, depois capitães, majores e
entrada dos psicólogos na Polícia Militar hoje já somos tenentes coronéis (eu
do Rio de Janeiro. Os psicólogos entram na
saí enquanto era capitão).
polícia como psicólogos, mas ao compor o
quadro da polícia, tornam-se oficiais da
polícia fardados, armados e chamados pri- que foi uma experiência um tanto quanto
meiramente de tenentes, depois capitães, inovadora, tendo em vista que os psicólo-
majores e hoje já somos tenentes coronéis gos oficiais do Brasil, nas Polícias Militares,
(eu saí enquanto era capitão). Mas o que são todos oficiais de saúde, andando com
gerou o concurso foi um acontecimento um farda branca e trabalhando em hospitais. A
tanto quanto midiático no Rio de Janeiro, nossa entrada dessa forma gera uma série
do “Ônibus 174”, ocorrido em 2000. A aber- de questões. A primeira delas era o fato de
tura do quadro de psicólogos ocorreu em que nós, psicólogos, não sabíamos o que
2001, alguns meses após o episódio. A po- era ser policial, não fomos formados para
lícia do Rio de Janeiro entendeu que era ne- isso, nem os policiais sabiam para que ser-
cessário um profissional capaz de enten- via um psicólogo na área operacional. Esse
der e pensar a subjetividade humana e “não saber” foi extremamente interessan-
transformá-lo em um policial. Diferente de te, porque nos possibilitou construir uma
todas as outras áreas de saúde da polícia, intervenção até então inexistente no Bra-
os psicólogos não entraram na Corporação sil. Fez com que nos deparássemos com
para trabalhar em hospitais ou em policlíni- algumas questões interessantes e eu acho
cas, os psicólogos entraram para trabalhar que a principal delas é a questão dos “di-
em Batalhões, com policiais operacionais. reitos humanos”. Quando nós entramos na
No meu caso, fui trabalhar no grupamento polícia já estava em vigor, desde o Segun-
aéreo da polícia e meu trabalho era fazer do Plano Nacional de Direitos Humanos, a
negociação com pessoas que estavam em obrigatoriedade da disciplina “direitos hu-
vias de suicídio. Mas todos os outros psi- manos” dentro das forças policiais. A Polí-
cólogos foram trabalhar na área operacio- cia Militar do Rio de Janeiro, portanto, em
nal e desenvolver atividades de policiais, o todas as suas formações, tinha a disciplina
la realidade. O que fizemos então foi, em 17
Segundo os policiais, não tinha primeiro lugar, afirmar a ideia de que traba-
lhar direitos humanos no campo das polí-
absolutamente nenhum sentido cias é muito menos ensinar quais sãos os
estudar direitos humanos na direitos humanos e muito mais problemati-
zar de que “humanos” nós estamos falan-
formação do policial. E, cá para do, quando estamos afirmando direitos.

Psicologia e Segurança Pública


nós, da maneira como era Fazer essa torção, não pensar direitos hu-
manos pela via “dos direitos”, mas pela via
ensinada, realmente ela era de “quem são esses humanos”, para nós
uma disciplina bisonha. fez toda a diferença. A princípio parece que
o que interessa de fato nessa discussão é
pensar em que sentido a produção desse
Direitos Humanos, disciplina essa entendi- “não humano” fazia existir uma determina-
da pelos policiais como “bisonha”, ou seja, da política de segurança pública, que pro-
uma disciplina “nada a ver”. Segundo os duz, entre outras coisas, todos esses da-
policiais, não tinha absolutamente nenhum dos que o Zaccone já trouxe. Ou seja, me
sentido estudar direitos humanos na for- parece que trabalhar direitos humanos

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mação do policial. E, cá para nós, da manei- dentro de uma discussão na polícia é pen-
ra como era ensinada, realmente ela era sar que “humanos” são esses, que práticas
uma disciplina bisonha. A prática de ensi- são essas, em que nós produzimos “não
nar direitos humanos para as forças poli- humanos”, entre os que nós chamamos de
ciais, contemplando o que previa o Segun- humanos e de que maneira a produção
do Plano Nacional de Direitos Humanos desse não humano legitima uma série de
naquela época, era fazer com que os poli- práticas discutíveis por todos nós. Com
ciais decorassem os 30 dos 48 itens da de- isso e toda a discussão que gerou, não tem
claração. Em algum momento era feita uma como você entrar na polícia e não fazer
prova e o conteúdo da prova era, por exem- disso o seu objeto de pesquisa. Na verda-
plo, ”o que diz o artigo sétimo?”; se ao invés de, elegi um local para se pensar direitos
de dizer o que era o sétimo, era dito o que humanos, discutindo sobre como se faz a
dizia o nono, estava errado e havia repro- abordagem policial. Como eu era oficial,
vação na disciplina. Então, na verdade, era passei a acompanhar todas as “ações re-
uma prática de fazer com que os policiais pressivas 3” (AREP3), mais conhecidas por
decorassem itens da declaração, numa ati- todos nós como blitz. Eu acompanhava as
tude completamente descontextualizada blitz policiais e ficava investigando, com os
com a prática policial, ou seja, de fato nós policiais, como eles construíam subjetiva-
executávamos uma disciplina bisonha. Na- mente, quem era o suspeito que devia “ser
quela época eu era policial e doutorando parado”, e com isso transformar essa dis-
da UFRJ. Na polícia era “esquisito” porque cussão em uma discussão do que seriam
eu era um aluno doutorando, e no doutora- “direitos humanos”. Primeira questão: os
do era mais esquisito ainda, porque eu era policiais constroem lombrosianamente a
um policial. E, às vezes, por conta das mi- ideia de suspeito. Outra consideração: sim,
nhas escalas de serviço, eu precisava che-
gar à universidade fardado e na viatura, o
que tornava ainda mais esquisita ainda a O que fizemos então foi, em primeiro
minha chegada. Mas, esquisitices à parte, lugar, afirmar a ideia de que trabalhar
uma das atuações dos psicólogos, ao se
deparar com o modo pela qual se ensinava direitos humanos no campo das
direitos humanos, era de que modo fazer polícias é muito menos ensinar quais
essa disciplina ser menos bisonha e, por- sãos os direitos humanos e muito mais
tanto, mais voltada a uma discussão crítica
do que é atividade policial e de que modo o problematizar de que “humanos” nós
estudo da atividade policial, pela via dos estamos falando, quando estamos
direitos humanos, fazia sentido para aque- afirmando direitos.
18 os não suspeitos constroem lombrosiana- somos entendidos como sujeitos bisonhos,
mente a ideia de suspeito. Terceiro: sim, os porque os policiais achavam que nós éra-
suspeitos constroem lombrosianamente mos policiais “de mentira”. De certa forma
quem são os suspeitos, não suspeitos e os eles tinham total razão. Quando nós íamos
policiais. Resultado da discussão: Lombro- para as blitz policiais, eles sempre acredi-
so está muito vivo e ele não está vivo ape- tavam que nós daríamos mais trabalho do
nas na construção do policial no momento que ajudaríamos porque, em um momento
de saber quem é o suspeito, Lombroso de confronto, de uma intervenção, não sa-
está muito vivo na produção do nosso beríamos muito bem o que fazer com a
modo de entender o mundo e na produção arma. Mais uma vez, eles tinham toda ra-
dos nossos medos. Acho que a grande zão. Como eu estava muito interessado em
questão, para pensarmos com Mia Couto: saber como eles construíam a ideia de sus-
peitos, eles me deram uma pista muito in-
teressante para a minha pesquisa, que é
“Há quem tenha medo que o como eles construíam a ideia do “suspeito
de jeito nenhum”. E como eu percebia quem
medo acabe” não era o “suspeito de jeito nenhum”? Eram
aqueles que eles falavam para eu abordar.
Eles falavam assim: “tenente, um suspei-
é de que modo o medo sai do lugar de um to”. Você pode acreditar que era aquele
sentimento, de uma emoção, de algo que que ele entendia que “não era suspeito de
eu sinto, para se pensar quais são os efei- jeito nenhum”, e aí eu abordava o “não sus-
tos políticos desse medo que é produzido peito”. E ao abordar o “não suspeito”, qual
para eu sentir. E eu acho que sem essa dis- era a primeira pergunta que o não suspeito
cussão não dá para pensar de que modo me fazia? “Você está me parando por quê?
Segurança Pública é construída no país Eu não tenho cara de suspeito”. E aí, claro,
hoje. Ou seja, acredito que para pensarmos como sou psicólogo, apesar de fardado, eu
Segurança Pública e Psicologia, a primeira devolvia a pergunta, “Mas como é a cara de
discussão é entender que o nosso lugar suspeito?”. E a “velhinha do Zaccone”, que
nessa discussão é um lugar de problemati- se encontrava comigo no momento das mi-
zar quem é humano. Em segundo lugar, nhas blitz, sempre me perguntava: “Mas o
problematizar que medo é esse que senti- policial aqui não sou eu, é o senhor, é o se-
mos, de que modo é produzido e qual é o nhor que tem que saber qual é a cara de
sentido da produção desse medo. Sair do suspeito”... “Mas a senhora já está dizendo
lugar de que o medo é algo individual, é que a senhora não é”. Ou seja, a construção
algo que eu sinto, mas pensar que o medo do suspeito passa pelo medo como opera-
é, antes de mais nada, um forte operador dor político, porque enquanto nós todos
político. E ele é operador político porque o nos indignamos com o policial que elege
medo justifica as ações e as políticas de determinadas “caras” para parar, são as
segurança pública, que são cotidianamen- mesmas “caras” que nos fazem levantar do
te construídas para produzir os “matáveis”, ônibus quando achamos que vamos ser
os indignos e todos esses “não humanos” assaltados. Qual é a diferença entre o poli-
que são constantemente produzidos e so- cial que nos para e eu que, por medo, saio
bre os quais nós devemos fazer uma inter-
venção para defender a sociedade. Em
nome da defesa da sociedade é preciso
que perguntemos que “não humanos” são Em nome da defesa da
esses que são produzidos e em nome de sociedade é preciso que
que medo são produzidas as ações. Por-
que a “velhinha do Zaccone”, eu também perguntemos que “não
encontrava no momento das minhas blitz, humanos” são esses que são
porque alguma coisa muito curiosa acon-
tecia lá e eu quero contar para vocês. Nós, produzidos e em nome de que
psicólogos, quando entramos na polícia, medo são produzidas as ações.
Eu teria vários casos engraçadíssi- 19
a Psicologia precisa desempenhar mos para contar do meu período de poli-
cial, mas há alguns que são interessantes.
no campo da Segurança Pública,
Por exemplo, nós entramos na polícia como
além de se perguntar que oficiais, e como éramos oficiais, o nosso
“humanos” são esses, é pensar curso de formação foi de três meses, ou
seja, como nós já éramos psicólogos, não

Psicologia e Segurança Pública


para que serve esse medo que é
precisávamos passar pela academia três
construído e que faz executar essa anos, como a grande maioria dos policiais.
política de Segurança Pública, que é Em três meses, nós viramos policiais, colo-
camos farda e fomos para dentro dos
a política vigente entre nós
quartéis. Assim, a nossa formação na épo-
ca foi chamada de “formação miojo”. Isso
do ônibus? Na verdade, o que eu queria teve tudo a ver com a época política em
problematizar aqui é que esse “Lombroso” que vivíamos. O governador do Rio de Ja-
que vive em nós, ele vive em nós todos. Ele neiro, na época, era o Garotinho, que esta-
vive sim em um policial, o policial quando va se candidatando à Presidência da Repú-
para alguém, ele para a partir do que para blica e queria ser o “padrinho dos

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ele é o suspeito lombrosianamente cons- psicólogos”, da entrada dos psicólogos na
truído como suspeito. Essa ideia –de que polícia, porque tinha, afinal de contas, um
há atitude suspeita– não se confirmou nas grande ganho midiático nessa história.
424 abordagens policiais que eu frequen- Todo mundo estava discutindo o “Ônibus
tei. A mesma construção lombrosiana que 174”, e ele falava: “agora temos 50 policiais
produz em nós esse medo do outro. Então, que são também psicólogos para dar um jei-
na verdade, a discussão não é exatamente to na polícia”, e toda aquela história que já
“quem é humano” ou quem “não é humano” conhecemos. Como não entendíamos ab-
para o policial, mas “quem é humano” e solutamente nada de polícia, nos sentía-
quem “não é humano” para todos nós. Por- mos totalmente à vontade para fazer per-
que as políticas de medo não produzem guntas nas reuniões de oficiais, porque
apenas as políticas de Segurança Pública como nós fomos trabalhar em batalhões,
executadas pelos policiais, elas produzem nós éramos oficiais como todos os outros.
as políticas de Segurança Pública que nós Para vocês terem uma ideia, era um bata-
pedimos para os policiais executarem. E aí lhão de 1.200 pessoas, 10 são oficiais (os
pensar Segurança Pública é um problema outros são praças) e esses 10 oficiais par-
para nós todos. Não é um problema só de ticipavam diariamente de uma reunião todo
polícia, não é um problema só para as for- dia pela manhã para discutir as políticas de
ças repressoras de segurança, etc. Na ver- Segurança Pública. No primeiro momento
dade precisamos pensar de que modo es- nos perguntaram: “mas vocês, psicólogos,
sas questões vão agindo em nós, de que participam ou não participam?”, porque nin-
modo essas questões vão nos construindo guém sabia direito que tipo de oficial nós
enquanto sujeitos e de que modo essa éramos. E alguns de nós: “não, não quero
construção nos faz operar um certo modo participar”. Outros de nós, com eu, falavam:
de viver, de estar e de sentir este mundo. “eu quero participar”. E o que significa o
Isso tem tudo a ver com Psicologia, e esse psicólogo poder participar dessas reuni-
é um papel que a Psicologia precisa de- ões? Significa que ele está ali como oficial
sempenhar no campo da Segurança Públi- “café com leite”, aquele que pode pergun-
ca, além de se perguntar que “humanos” tar qualquer coisa, porque ele não sabe
são esses, é pensar para que serve esse mesmo, então, pode perguntar e fazer per-
medo que é construído e que faz executar guntas esquisitas e absurdas. Então, eu na
essa política de Segurança Pública, que é a verdade tinha uma prática de problemati-
política vigente entre nós. Sem essas duas zação e não era “levado a mal”, pois afinal
perguntas não tem sentido pensar a cons- de contas era porque eu não sabia. O que
trução de um saber psicológico dentro das acabou acontecendo? As reuniões come-
políticas de segurança. çavam às 8 horas da manhã e os outros
20 oficiais, menos o comandante e o subco-
mandante, começaram a querer que eu O meu trabalho foi, muitas vezes,
chegasse mais cedo para conversar um
produzir o empoderamento para fazer
pouco antes, e isso acontecia todo dia. E
na verdade o que eles queriam? Eles que- com que eles também pudessem
riam que eu perguntasse aquilo que eles perguntar, problematizar, enfim.
não podiam perguntar. E a minha grande
questão era por que eu posso perguntar e
vocês não podem? E eu comecei com uma esse assunto incomodou e fez com que
estratégia de empoderamento e falava: meu comandante dissesse que eu estava
“Vocês também podem questionar, vocês preso, porque não tinha pedido autoriza-
também podem perguntar, eu não preciso ção para falar na televisão. Eu já tinha fala-
ser o perguntador, o oficial perguntador”, e do milhões de outras vezes, todo mundo
eram perguntas interessantíssimas que via, me dava parabéns, mas naquele dia eu
eles não colocavam, mas que eles pensa- fui preso. E isso diz respeito a certo funcio-
vam, perguntas tipo: “Mas por que vamos namento do que é a disciplina gerada na
agora de manhã fazer uma incursão em tal polícia, ou seja, falar na televisão pode,
lugar, se na verdade nesse lugar não tem mas não pode falar de qualquer assunto,
uma estatística criminal que demande esse mas isso não é explícito. Sabe aquela ideia
lugar, por que esse lugar e não outro?”. São de que você fez alguma coisa que incomo-
perguntas interessantíssimas do ponto de da, mas isso que incomoda não está no có-
vista da política de segurança, mas que os digo disciplinar, então se é punido por es-
outros policiais não podiam fazer, porque tar com coturno sujo; mas você sabe que
do lugar que eles ocupavam não era possí- não é porque o coturno esteja sujo, mas é
vel. O meu trabalho foi, muitas vezes, pro- como eu posso lhe punir. Outro caso, que a
duzir o empoderamento para fazer com meu ver, é o melhor de todos: eu era o “zero
que eles também pudessem perguntar, um” da minha turma, ou seja, havia tirado o
problematizar, enfim. Outro caso que eu primeiro lugar do concurso e acabei sendo
achei também muito curioso e engraçado o mais antigo. Na época nós éramos todos
foi o fato de ter passado três dias preso, “primeiro tenentes”, hoje eu seria um Te-
pelo simples fato de que à época eu era o nente Coronel se tivesse continuado, por
vice-presidente do CRP do Rio de Janeiro, ser o mais antigo. E o mais antigo, em al-
doutorando e policial, e comissão de frente gum momento, é chamado para discutir a
da Portela (há 18 anos). Uma vez, como vi- bibliografia de um curso da polícia, chama-
ce-presidente do CRP, fui falar na televisão do CAO, que é o Curso de Aperfeiçoamento
sobre a “avó” do Marco Feliciano e do Ma- de Oficiais, feito para se tornar major.
lafaia, uma pessoa chamada Rosangela Como psicólogos passaram a ser oficiais,
Justino, pioneira na história de “cura gay” e precisou ser incluída na bibliografia alguma
ela criou um projeto de lei na Assembleia literatura de psicologia e eu fui chamado
Legislativa do Rio de Janeiro a respeito, e para propor essa bibliografia. Eu estava
nós, como CRP, fomos totalmente contrá- em uma reunião, com todo o Comando,
rios àquela proposta de lei para destituir a para decidir sobre isso e eles falaram, “Mas
Resolução CFP 001/1999 1 (na verdade o capitão, qual é a bibliografia de Psicologia
Feliciano copiou dela, por isso eu falo que que o senhor sugere para se incluir na pro-
ela é a avó dele). Na época eu discutia mais va?”. O livro que eu sugerisse seria estuda-
as questões de gênero e transexualidade, do pelos majores, inclusive os policiais
e o presidente falou: “Pedro, vai falar na te- combatentes, que nada tinham a ver com
levisão sobre isso”. Falei, e passou no Jor- Psicologia. Sugeri o livro Vigiar e Punir
nal Nacional. Eu já tinha falado várias ve- [Foucault]. Na reunião seguinte o coman-
zes, sobre vários outros assuntos, mas dante me chamou e falou: “Capitão, eu gos-
tei muito da sua sugestão, só que vai ter um
problema, o pessoal dos direitos humanos
1 Resolução CFP 001/1999 – Estabelece normas de atuação
para as(os) psicólogas(os) em relação à questão da Orienta-
vai cair em cima de nós. Acho que é interes-
ção Sexual. santíssimo um livro que ensine a vigiar e pu-
nir, agora, esse pessoal dos direitos huma- 21
nos...”. E na mesma hora eu falei: “O senhor Ser psicólogo na polícia, ou ser
está certo, mas então eu vou dar outra su-
gestão, do mesmo autor: A verdade e as psicólogo em qualquer outro
formas jurídicas...”. Até hoje A verdade e lugar, significa muitas vezes
as formas jurídicas é bibliografia para ser
major na Polícia Militar do Rio de Janeiro. O “dar nó em pingo d’água”,

Psicologia e Segurança Pública


que eu quero dizer com isso? Ser psicólogo significa, muitas vezes, produzir
na polícia, ou ser psicólogo em qualquer
outro lugar, significa muitas vezes “dar nó um tipo de intervenção que não
em pingo d’água”, significa, muitas vezes, é exatamente uma intervenção
produzir um tipo de intervenção que não é
exatamente uma intervenção da maneira da maneira como entendemos
como entendemos uma intervenção. Mas é uma intervenção.
preciso intervir aos poucos, é preciso inter-
vir por meio das brechas, é preciso criar
potência em um lugar aparentemente sem
potência. E talvez essa seja a grande graça

Cadernos Temáticos CRP SP


de pensar a construção da Psicologia nes-
ses espaços. Há mais de dez anos eu saí
da polícia, mas a polícia nunca saiu de mim,
eu sou professor de Criminologia, fui con-
selheiro do Conselho Nacional de Seguran-
ça Pública. Hoje sou professor convidado
da polícia para lecionar para os oficiais e é
uma experiência interessantíssima. Penso
que se queremos discutir a produção de
“não humanos”, não é produzindo o policial
como esse “não humano” que vamos pro-
duzir algum efeito. Precisamos entender
que a produção desse “não humano” crimi-
noso está no mesmo campo de imanência
de produção do policial como “não huma-
no” e precisamos fugir dessa lógica. Assim
como o “criminoso”, o “traficante” e o “usu-
ário” é produzido enquanto “criminoso”,
“traficante” e “usuário”, o policial também
é produzido por essa “figura de policial” e
nós precisamos entender que construir la-
dos onde existe o “humano” e o “não hu-
mano” não é a melhor saída para se discu-
tir direitos humanos, seja o “não humano”
criminoso, seja o “não humano” traficante,
seja o “não humano” policial. Precisamos
entender que construções históricas de
não humanidades são essas, para fazer
então com que a nossa intervenção seja
uma intervenção de fato potente. Quero fi-
nalizar dizendo que assim como se proble-
matizou qual é a “função do medo”, talvez
se livrar desse medo não seja possível,
mas, enfim, se problematizarmos que medo
é esse e para que ele serve, talvez... “Vai. E
se der medo, vai com medo mesmo”.
22
“Políticas de Segurança a partir da
lógica do Direito Penal Atuarial”
Maurício Stegemann Dieter
Professor doutor de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-doutor pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, doutor pela Universidade Federal do Paraná com estágio de
pesquisa doutoral na Universidade de Hamburgo, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná,
mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná, pesquisador do Instituto Max Planck,
especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal

O Conselho Regional de Psicologia de São crítica não é exatamente o lugar onde isso
Paulo já é um dos grandes aliados da Facul- vai florescer com mais facilidade, é um lugar
dade de Direito do Largo São Francisco, na bastante conservador. Há muita boa vonta-
construção do campo criminológico crítico e de, estudantes extraordinários, com muito
isso muito se deve ao trabalho da Professora interesse, com muita vontade de trabalhar,
Adriana Eiko Matsumoto, que comparece às mas também há resistências, porque está na
nossas reuniões e tem me dado, desde o pri- Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
meiro momento em que cheguei a São Paulo, em um lugar onde a elite forma seus quadros,
esse apoio extraordinário. Eu trouxe alguns onde se abastece a burocracia nos seus mais
dos membros do nosso Centro de Pesquisa altos escalões. E eles não têm muita afinida-
e Extensão em Ciências Criminais, o CPECC, de com o campo criminológico crítico, por isso
que recém-fundamos na USP, para fazer às vezes enfrentamos certas resistências,
Criminologia crítica, para assistir ao Orlan- mas que nos encorajam ainda mais. Primei-
do Zaccone, mas agora fico ainda mais feliz, ramente faço um convite a todas(os) as(os)
porque eles puderam ouvir o Pedro Bicalho, psicólogas(os) aqui presentes, especialmen-
que é “nota 10”. A construção do campo cri- te as(os) psicólo­gas(os) que trabalham com
minológico crítico em São Paulo tem sido uma Segurança Pública, as(os) psicólogas(os) que
jornada áspera, árdua, dura, porque o lugar trabalham “na polícia” e não “da polícia”, que
onde nós entramos para fazer criminologia são psicólo­gas(os) que não são “da peni-
tenciária”, que são psicólogas(os) “na peni-
tenciária”, psicólo­gas(os) “no Fórum” e não
passamos por todo Lombroso, psicólogas(os) “do Fórum”, psicólogas(os) que
porque percebemos a permanência possam levar a técnica e a ética, dessa pro-
fissão extraordinária, para dentro desses es-
do estudo lombrosiano, não só paços que normalmente têm freios antiéticos
na produção desses suspeitos, muito fortes. Isso implica saber ocupar es-
nesses estigmas sociais, que ses espaços com essa dignidade, com essa
coragem que vocês acabaram de ver. Quero
determinam metarregras punitivas, convidar as(os) psicólo­gas(os) que trabalham
mas também porque as pessoas no sistema de justiça criminal para assis-
que saem da nossa faculdade e tir às nossas reuniões. Estamos estudando
Lombroso, na raiz mesmo, lendo página por
de todas as faculdades de Direito, página, capítulo por capítulo: o homem delin-
os Promotores, os Delegados, os quente, o homem criminoso, a trajetória lom-
Juízes, reproduzem essa mesma brosiana, até os devaneios hipnóticos e es-
piritistas que ele teve no final da vida, enfim,
lógica e o suspeito de lá vai virar o passamos por todo Lombroso, porque per-
condenado daqui. cebemos a permanência do estudo lombro-
ia atrás das determinações sócio-históricas 23
A Criminologia que temos construído concretas, não relacionava as formas de pu-
nição concretamente com a crítica econômica
diz respeito ou dialoga com a
e a política. A nossa criminologia crítica, por-
posição das(os) psicólogas(os) no tanto, está muito próxima da crítica à econo-
sistema de justiça criminal, porque mia política, muito próxima da Sociologia e
hoje pretende abrir campos de estudo muito

Psicologia e Segurança Pública


ela é uma criminologia crítica de
mais interessantes do que essa ultrapassada
vertente radical. etiologia individual, que se dedica a descobrir
as motivações do comportamento crimino-
siano, não só na produção desses suspeitos, so. Não que isso não tenha o seu valor, mas
nesses estigmas sociais, que determinam nós entendemos que isso, quando se trata de
metarregras punitivas, mas também porque Segurança Pública, é uma microcriminologia.
as pessoas que saem da nossa faculdade e Não se podem definir políticas de Segurança
de todas as faculdades de Direito, os Promo- Pública a partir de estereótipos “mais ou me-
tores, os Delegados, os Juízes, reproduzem nos” coincidentes com a realidade em relação
essa mesma lógica e o suspeito de lá vai virar às motivações do comportamento crimino-
o condenado daqui. A diferença é que, da es- so, tanto que a própria parte da Criminologia

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tatura moral em que eles se põem, eles não crítica, que quis se separar do Direito e fazer
conseguem ver isso, talvez, com a dinâmica apenas o estudo da violência, da agressivida-
que o policial consegue colocar, isso pela pró- de, da morte, fora do campo jurídico, acabou
pria natureza da atividade. Então gostaria de encontrando muito mais morte e violência
convidá-los a participar do CPECC. O CPECC fora do ser humano nas instituições do que
precisa se oxigenar, como qualquer lugar for- na pesquisa individual. Então, o nosso campo
mado por juristas, precisa ter gente de fora, é macrocriminológico, crítico, radical, tem um
senão a coisa fica “empinguinizada”, todo compromisso político, é um campo heterogê-
mundo vai para lá como um “pinguim”, com neo e se agrega na pauta política. Queremos
discussões legalistas, pequenas, jurídicas e descriminalização, ou seja, queremos menos
não é isso que queremos fazer. Embora eu Polícia, menos Promotor, menos Juiz, menos
tenha substituído um psicólogo na carreira Delegado, menos crime, porque o crime é o
de criminologia na USP, que era o Professor resultado da criminalização. Entendo que eu,
Alvino, isso não significa que eu estou dispu- Advogado, Professor de Direito Penal, sou
tando campo, pelo contrário, eu acho que cri- parte do problema, não sou parte da solu-
minologia não tem localização departamental ção, a Polícia é parte do problema, não é par-
certa nas universidades brasileiras, criminolo- te da solução, o Ministério Público é parte do
gia está na Psicologia, está na Antropologia, problema e os Juízes criminais são parte do
está na Sociologia, está no Direito, porque os problema, porque o fato não tem solução por
processos de criminalização afetam a todos meio de Advogados, Policiais, Juízes e Promo-
nós, de diferentes maneiras e todos nós so- tores. Isso não significa que o trabalho – meu
mos atores desse processo. A Criminologia e o deles – não tenha dignidade, não tenha
que temos construído diz respeito ou dialo- objetivo, mas é perceber que apostar nesse
ga com a posição das(os) psicólogas(os) no sistema para diminuir o chamado “registro
sistema de justiça criminal, porque ela é uma da criminalidade” é dar um “tiro no pé”, por-
criminologia crítica de vertente radical. Exis- que nós estamos produzindo, em uma lógica
tem várias criminologias e também existem perversa e tautológica, mais criminalização,
várias criminologias críticas; a nossa crimi- com mais instrumentos para a criminalidade.
nologia é crítica e radical no sentido de que Nesse ponto é que as pessoas resistem di-
ela está preocupada com as determinações zendo que isso é utópico e que a nossa pauta
socio-históricas concretas dos processos de abolicionista é idealista. Idealista e utópico é
criminalização. Houve um tempo em que se quem acha que o sistema vai se resolver den-
discutia o labeling approach como um proces- tro das suas próprias contradições. Citando
so de rotulação que parecia uma coisa “mais Foucault, trata-se de isomorfismo reformista:
ou menos” consensual, uma criminologia da você reforma, reforma, reforma e as coisas
reação social que era crítica, mas que não continuam exatamente iguais. Se tivermos
24 uma polícia melhor, uma penitenciária melhor,
Juízes melhores, podem-se atenuar sofrimen-
tos concretos, mas não vão resolver o que o
Se tivermos uma polícia
próprio sistema fabrica. Como vocês viram
na exposição do Professor Orlando Zacco-
melhor, uma penitenciária
ne, é tão óbvio quanto à política de drogas. A
política de drogas consegue transformar um
melhor, Juízes melhores,
problema grave, importante, que é o problema
do abuso de certas drogas ou drogas e subs-
podem-se atenuar
tituir isso por um problema ainda pior, que é
o problema da proibição de drogas, quer di-
sofrimentos concretos, mas
zer, ele substitui um problema que merece
cuidado, merece nossa preocupação e nossa
não vão resolver o que o
atenção, por um problema muito pior que vem
da criminalização. Então do ponto de vista
próprio sistema fabrica.
da criminologia crítica radical, qual é o papel
da Psicologia? O que os psicólogos estariam conhecem como desiguais. E fui expor esse
convidados a fazer dentro dessa perspectiva tema na Escola da Magistratura do Estado do
específica da Criminologia crítica? Seria colo- Rio de Janeiro, a convite do Desembargador
car os agentes da criminalização em questão. Sérgio Verani, do Rubens Casara, e foi “hor-
rível”, porque era um grupo de Juízes recém-
Em função do meu estudo no pós-dou- aprovados no concurso, e Juiz que recém
torado, eu fui estudar, dentro da Criminologia passou em concurso é mais Juiz que o Juiz,
crítica norte-americana, processos em que ele está no topo da meritocracia, recebeu os
pessoas inocentes tinham sido condenadas parabéns de todo mundo, financiou um car-
por crimes graves, pessoas condenadas por ro em 280 vezes, pendurou no holerite todos
estupro ou estupro seguido de homicídio, os seus sonhos de consumo e aí vai para o
pessoas que passaram em média 13 anos na cursinho obrigatório de formação. A primeira
prisão por crimes que não cometeram, saber coisa que eu falei foi “Bom, vocês vão atuar
o que tinha dado de errado nesses proces- na área criminal. E o que vocês pretendem fa-
sos, já que o processo penal é a garantia do zer na área criminal?”... “Pretendo aplicar a lei,
sujeito contra o Estado. Onde esse sistema pretendo fazer justiça”. Falei, “Esqueçam isso,
de proteção individual falhou em relação a es- vocês não vão fazer nada disso, vocês vão pas-
sas pessoas? Assumimos que o processo é sar o resto da vida condenando gente pobre,
garantia do sujeito, mas não é. Descobrimos, negra e parda por crimes patrimoniais. Isso é
por exemplo, que em 68% dos casos, quase o que vocês vão fazer, querendo ou não. Não é
70% dos casos, a vítima (se sobreviveu ao uma opção sua, porque é só isso que vai apare-
estupro) ou as testemunhas oculares, apon- cer na tua mesa ou é quase só isso”. Por quê?
taram para o sujeito e disseram: “Foi ele”, e Porque a nossa pesquisa também envolveu
não era. Eu fiquei pensando: imagina o que 3.000 Sentenças do Brasil inteiro, das prin-
significa isso em uma tradição jurisprudencial cipais cidades, e mostrou que em 72% dos
brasileira, por exemplo, que diz que a palavra casos, o índice varia um pouco conforme a
da vítima tem especial relevo, especial valor... região, mas generalizando, 72% dos casos
Como você vai dizer isso se, em um crime de terminam em condenação, quando há análise
estupro, há um tamanho índice de erro, se- de mérito. Eu brinco dizendo: “Se vocês forem
gundo a pesquisa criminológica norte-ame- acusados de um crime, o que vocês preferem,
ricana? E outras questões que eu fui proble- um Juiz ou uma moeda?”. Porque a moeda te
matizando e que davam conta dessa relação dá 50% de chance de absolvição e o Juiz te
entre o magistrado e o réu, que não ouvem dá 28%; então melhor a moeda. Jurista é uma
a mesma música, que não moram no mesmo porcaria, construímos um sistema de garantia
bairro, que não passam pelo mesmo processo pior que uma moeda, esse é o nível de garan-
de construção de subjetividade, são pesso- tia que vocês têm. E aí eles ficaram profun-
as que não se reconhecem como iguais, para damente ofendidos com isso. Eles disseram:
que a diferença possa aparecer, elas se re- “Não, você não pode dizer que eu vou fazer
isso, porque eu vou aplicar a lei”... “Não, mas é a características. Então se tem alguém matan- 25
lei que você vai aplicar”... “Não, mas a lei é para do, é porque tem alguém aplaudindo, e por-
qualquer pessoa”. Aí demonstrei para eles que tem alguém “canetando”, dizendo, “é isso
estatisticamente o que o judiciário brasileiro aí”, tem forma jurídica, está legitimado. Então
faz, ele condena por cinco crimes: por tráfico o que eu fui buscar: Stanley Milgram, Philip
de drogas, por roubo, por furto, que daí é pra- Zimbardo e os discursos sobre papel social,
ticado por reincidente, por apreensão de ar- quando o sujeito perde toda a sua capacida-

Psicologia e Segurança Pública


mas de fogo e homicídio. Esses cinco crimes de de controle e se traveste no papel de Juiz.
correspondem a 86% da população peniten-
ciária e são resultados dessa condenação. Aí
eu perguntaria para as pessoas com informa-
ção jurídica que estão aqui, se fazem ideia de
É que você não percebe
quantos crimes existem no Brasil. A Fundação
Getúlio Vargas e o Ministério da Justiça es-
que pode ser tão nazista
tão tentando fazer essa conta já há quase 10
anos e temos notícia de que no Brasil existem
quanto o nazista, se não
aproximadamente 1.684 crimes. Eu poderia
citar crimes como molestamento de cetáceo,
perguntar as consequências

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danificar planta ornamental que é crime no
Brasil, etc., mas esses crimes não prendem,
sociais da sua ação.
os que prendem são esses cinco crimes. E se
você pegar o estigma das pessoas que pra- Acabou de sair um documentário fan-
ticam esses crimes, são as mesmas pesso- tástico “Os Sem Pena” em que um compa-
as, pessoas indignas de vida, merecedoras nheiro nosso, o Bruno Schmidt, tem uma
de prisão. E aí para tentar entender como o participação. Nesse documentário, você vê
processo penal não só favorece, mas catalisa precisamente isso no Juiz ao final do filme.
esses processos, começamos a estabelecer Como o sujeito se esquece de qualquer al-
alternativas de estudo no campo criminológi- teridade, de qualquer padrão e vira o papel
co crítico, que envolve muito a atividade dos social que encarna essa raiva social. Eu gos-
psicólogos. Fiz um recorte psicológico que é taria de então propor as(aos) psicólogas(os)
extremamente problemático, criticável em to- aqui presentes para estudarmos juntos, co-
dos os pontos, que é behaviorista funcional, locar agora não mais os sujeitos, porque
mas ele foi muito útil na época para proble- a tradição da Psicologia no sistema era “o
matizar a posição do Juiz, comparando a ati- criminalizado”, vulgo criminoso, que era o
vidade dos Juízes com a atividade dos nazis- objeto das atenções das(os) psicólo­gas(os).
tas no campo de concentração. Nessa parte Acho que temos que estudar os Juízes que
o encontro acabou, ia ter um almoço depois, são perversos, Promotores sanguinários, que
foi cancelado, porque os Juízes falaram: “Você entendem a ideologia da defesa social como
está comparando o Tribunal de Justiça com a nossa pauta de Segurança Pública. Porque
SS?”. Eu falei: “É exatamente isso que eu estou eu até consigo entender a produção de sub-
fazendo”. Por quê? Porque qual é a semelhan- jetividades, enfim, violentas, na violência,
ça? É que você não percebe que pode ser tão mas esses caras aqui tomaram “leite Ninho”
nazista quanto o nazista, se não perguntar desde os três anos de idade, são das melho-
as consequências sociais da sua ação. Se as res famílias, vêm dos melhores “estratos”,
pessoas pobres, negras, pardas, homens, jo- passam pelas melhores faculdades, mas
vens, desempregados e eventualmente usuá- são capazes de desumanidades que me fa-
rios de droga estão presos, não foi só porque zem suspeitar de um quadro clínico naquele
a polícia prendeu, foi também porque o Minis- momento. Então penso que é o momento de
tério Público acusou e o Juiz condenou. Você tomarmos o poder e colocar esse poder sob
participa de um processo que resultou em um análise, porque já chega de vitimizar. A união
encarceramento em massa, que legitima o da Medicina, das ciências Psi no exame cri-
genocídio. E por que é genocídio? Porque é o minológico, em que se cumprem papéis, são
extermínio de uma população específica, pre- no mínimo questionáveis. Como é possível
cisamente porque essa população tem certas você pegar um paciente que precisa de ajuda
26 durante dois ou três dias em um workshop vai
Eu gostaria de então propor poder aplicar o questionário em qualquer um,
mesmo em si mesmo. E os Juízes dos Esta-
as(aos) psicólogas(os) aqui dos Unidos estão aplaudindo isso, mas eles
presentes para estudarmos não sabem que daqui a pouco vão ensinar
alguém a ser Juiz para igualmente apertar o
juntos, colocar agora não mais botão da sentença. Então isso seria algo que
os sujeitos, porque a tradição eu gostaria de comentar aqui, porque está no
meu horizonte de estudo, que é essa lógica
da Psicologia no sistema era “o de você “atuarializar ”, “securitizar”, usar es-
criminalizado”, vulgo criminoso, tatísticas de risco vinculadas a grupos sociais
perigosos, como forma de substituir os diag-
que era o objeto das atenções nósticos clínicos por prognósticos atuariais,
das(os) psicólo­gas(os). Acho e aí se esquece de uso referente do sujeito
para se falar de “periculosidade de volta”, res-
que temos que estudar os taurando a defesa social no seu centro. Isso
Juízes que são perversos, já está em curso nos Estados Unidos desde
a década de 1980 e, vocês sabem, que o que
Promotores sanguinários, vai se gestar no centro do poder econômico
que entendem a ideologia virá para nós mais cedo ou mais tarde. Então,
essas eram as minhas provocações, a minha
da defesa social como nossa curta exposição. Fico muito feliz de verdade
pauta de Segurança Pública. que os nossos estudantes e meus parceiros
lá no Centro de Pesquisa e Extensão em Ci-
ências Criminais da USP tenham tido o pra-
para “sacar” qual é a do cara, para ver se ele zer de ter ouvido vocês e espero que vocês
vai progredir de regime. É muito complicado, também possam nos dar o prazer de ir até a
tem que ser problematizado, tem questões sala Miguel Reali às 19 horas, quintas-feiras,
éticas aqui. Eu vi as resoluções que foram re- quinzenalmente, para estudar os clássicos da
vogadas pelo Ministério Público. O Ministério Criminologia, até chegar à Criminologia crítica
Público que vá estudar antes de dizer para pós-tradicional radical, que é a que estamos
as(os) psicólogas(os) como eles têm que fa- tentando construir.
zer a avaliação psicológica. Enfim, o primeiro
desafio é esse, vamos tornar os agentes da
criminalização alvo do nosso saber Psi. Como Enfim, o primeiro desafio
você mantém uma máquina que encarcera em
massa e que legitima o genocídio? É hora de é esse, vamos tornar os
começar a questionar. E uma segunda coisa
que vou apenas comentar, pois eu gostaria agentes da criminalização
de ouvi-los no futuro e discutir... Na época em
que eu fazia o meu doutorado, percebi uma alvo do nosso saber Psi.
tendência problemática nos Estados Unidos,
principalmente, de substituir a Psicologia por
uma Psicologia de formulários, e essa Psico-
logia de formulários de base estatística tende
a atender a um apelo eficientista, próprio da
reestruturação do modo de produção capi-
talista pós-fordista, em que se exige rapidez
da colaboração da(o) psicóloga(o) no sistema.
Não basta mais dar um laudo, tem que dar um
laudo para ontem, você faz no “esqueminha”,
usa o software e está legitimado. Isso é o fim
da profissão, porque aí eles vão aprender, em
pouco tempo, que qualquer pessoa treinada
“A atuação das(os) psicólogas(os) 27

na Segurança Pública”

Psicologia e Segurança Pública


Beatriz Borges Brambilla
Psicóloga, Mestre em Psicologia e Doutoranda em Psicologia da Educação, Assistente de Diretoria da
Secretaria de Segurança Urbana de São Bernardo do Campo, Membro do Núcleo de Justiça do CRP SP

Em primeiro lugar, quero agradecer ao Conselho, qual, nos últimos tempos, estou umbilicalmente
cumprimentar o Pedro Paulo Bicalho, de quem ligada, durmo e acordo com a Segurança Pú-

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sou grande admiradora, por ser um companheiro blica, respiro essa temática. Nesse trabalho,
do campo da Psicologia, cumprimentar o Orlando, temos pensado muitas propostas, desafios e
o Maurício e a Adriana. Não sou uma pesquisa- intervenções que vão se dando a partir de uma
dora do campo da Segurança, inclusive sou uma concepção muito específica de segurança, que
“intrometida”. Fiz o Mestrado e no encontro com já está superada, ou pelo menos uma parte dela
os adolescentes em conflito com a lei fui apren- superada, sob o viés da repressão. Hoje, na Se-
dendo algumas coisas, fui ouvindo algumas cretaria de Segurança Urbana, o Secretário é o
coisas e imagino que devam ter psicólogas(os) Benedito Mariano, um marco no campo da Se-
aqui hoje que trabalham nas medidas socioedu- gurança Pública e dos Direitos Humanos e que
cativas, que é onde normalmente encontramos traz para esse lugar em que estamos uma con-
campo de trabalho para a(o) psicóloga(o), tam- cepção de Segurança atrelada a uma política de
bém. E nesse meio tempo eu conheci a Lígia, seguridade social, de dignidade humana e de di-
Diretora do Departamento de Políticas Preven- reitos humanos de uma maneira geral. E ele vai
tivas da Secretaria de Segurança Urbana de São dizer certamente de um novo modelo de polícia
Bernardo, onde trabalho, que me levou para essa no Brasil. Entendo que não cabe a mim, diante
empreitada de pensar o papel da(o) psicóloga(o), desses companheiros da mesa, discorrer sobre
como a Psicologia pode contribuir para a cons- a história da segurança pública no Brasil, mas
trução de uma política pública de segurança que considero de fundamental importância marcar-
foge, que rompe com essa ideia de um modelo mos o atual sistema de justiça criminal de que
repressivo punitivo. Embora eu concorde com o estamos falando como intrinsecamente extraí-
companheiro Maurício que temos relações muito do de uma doutrina de segurança nacional que
concretas de um sistema capitalista perverso e norteia essas práticas repressivas e calcadas
que não romperemos com medidas reformistas, em um discurso de regulação e ordem.
mas que ainda assim, nesse sistema, nas medi-
das reformistas, estamos construindo uma ideia
de uma superação de um paradigma repressivo Professora Vanda Junqueira
punitivo, a partir de uma proposta de segurança
cidadã. Então começo a minha fala, situando a falou a seguinte frase:
todos e todas o lugar de onde eu vejo esse fe-
nômeno. Ontem, eu estava na aula, pois estou “não sei se o peixe é o
fazendo doutorado na PUCSP, e a Professora
Vanda Junqueira falou a seguinte frase: “não sei melhor sujeito para falar do
se o peixe é o melhor sujeito para falar do oceano,
pois ele não tira a cabeça para fora da água”. E oceano, pois ele não tira a
eu fico me sentindo um pouco esse peixe, olhan-
do para o oceano de um determinado lugar, ao cabeça para fora da água”
28 Mas e quando falamos de Segurança Pú-
blica, do que estamos falando? Que segurança Afinal, o que seria essa
é essa? Quando fecho os olhos e penso em Se-
gurança Púbica, me vem a imagem de um agen- Segurança Pública. Penso que
te público de segurança, um policial, um guarda seria a ideia do afastamento
e todo o aparato repressivo punitivo do Estado
com as suas máquinas de guerra. Mas quando de todo perigo ou mal capaz
penso em segurança, com uma imaginação mui- de afetar a ordem pública em
to criativa, penso em “Segurança e Psicologia”,
e me lembro daquelas aulas de Psicologia do prejuízo da vida, da liberdade
Desenvolvimento e o que Bowlby e Winnicott e dos direitos de propriedade
diziam sobre segurança e vínculo. Afinal, o que
seria essa Segurança Pública. Penso que seria dos cidadãos, muito como os
a ideia do afastamento de todo perigo ou mal companheiros já colocaram.
capaz de afetar a ordem pública em prejuízo da
vida, da liberdade e dos direitos de propriedade
dos cidadãos, muito como os companheiros já história da polícia no Brasil, desde o Brasil Colô-
colocaram. Então, sem dicotomizar essa ideia, nia, Império, República, até a própria Constitui-
há uma dimensão subjetiva nessa concepção ção, mostra a dualidade da atividade policial e
de Segurança Pública, senão ficaremos pura- que temos a tradição das “meias polícias”. En-
mente na aparência, reproduzindo aquela ideia quanto todos os países do mundo, que já estão
clássica das crianças: “A sua liberdade vai até em outro nível de compreensão das polícias,
onde termina a minha”, depois disso, que venham têm essas instituições unificadas, temos desde
as forças repressivas e me livrem de todo mal. o Império uma polícia para o policiamento os-
Sabemos que o Estado Democrático de Direito tensivo com enfoque na repressão e outra po-
concebe Segurança Pública como um bem co- lícia para o policiamento investigativo. É nessa
munitário, de um direito social ansiado por uma discussão que eu acho que está superada aqui
sociedade segura, e já sabemos que segurança entre todos nós, a emergência pela desmilitari-
que essa sociedade está pedindo. E quem na zação das polícias, pela superação dessa ideia
democracia deve promover essa segurança? de uma polícia judicial e por uma reconstrução,
As forças do Estado responsáveis pela ordem uma descristalização do papel do Estado no
interna e externa, detentoras de um poder de provimento da segurança. Então, acho que nes-
intervenção e do controle social e de forma mo- se sentido o Zaccone trouxe muitos dados.
nopolizada? A polícia? Então, lembremos o nos- Lígia e o Secretário Mariano (que foi ombu-
so Secretário Mariano que publicou um texto dsman da Polícia Militar, Ouvidor) fizeram um le-
sobre os aspectos históricos do sistema de Se- vantamento estatístico, mostrando que em dez
gurança Pública no Brasil e sua organização na anos a polícia de São Paulo matou mais de 7.000
atualidade, no caderno temático de segurança pessoas, e nesse mesmo período 153 PMs fo-
pública e construções de subjetividades, no qual ram mortos em serviço. A partir disso, podemos
ele afirma que as polícias nasceram no Brasil discutir os autos de resistência, de uma relação
para o controle social dos pobres, como já é de histórica de um distanciamento e de um medo
conhecimento de todos. E em um país que con- da população, das agências e dos agentes de
viveu por mais de 300 anos com a escravidão, segurança pública. Não estou dizendo em hi-
com a questão do negro e do pardo, podemos pótese alguma que não existe policial bom, ou
entender que controle social é esse. O Zaccone essa ideia dicotomizada entre o bem e o mal...
traz a “novela do terror” e como, no campo da Tenho absoluta certeza de que existem policiais
Psicologia, precisamos romper com a reprodu- que constroem cotidianamente uma atividade
ção dessa “novela do terror”, porque o discurso comprometida e respeitosa. Mas as estruturas
higienista de extermínio está eminentemente policiais arcaicas, autoritárias, conservadoras,
produzido no campo da Psicologia e não é disso que ainda estão presentes no nosso sistema
que estamos falando. Só que não dá para falar de segurança pública, contribuem direta ou in-
da nossa atuação enquanto psicólogas(os) sem diretamente para essa noção ou para a ideia
discutir e sem cair em uma leitura institucional dos desvios ou excessos da atividade policial.
única. Mas que instituição é essa? Penso que a Então construir uma política para a democracia,
enquanto gestora pública, tem se mostrado um de Janeiro e na Bahia, temos que voltar para o 29
desafio no campo da garantia dos direitos da que estávamos falando e produzindo enquanto
proteção social. O trabalho que estou desenvol- organização científica na área da saúde, para o
vendo com os colegas traz uma mudança pa- campo profissional da(o)psicólogo(a): dizer que
radigmática, a partir da ideia do Programa Na- sermos profissionais da saúde é muito bom e
cional de Segurança Pública com Cidadania, em tem aberto muitas portas, mas nos colocarmos
que os municípios foram inseridos na agenda e nesse lugar higienista, de um pensamento jurí-

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na construção dessas políticas de segurança, dico/médico, nos coloca também atados e faz
ampliando a uma determinada concepção, em desse compromisso ético político, na verdade,
que segurança é entendida como uma políti- uma mentira cotidiana. Na Bahia, em 1833, tí-
ca pública de prevenção e ação comunitária. E nhamos uma Psicologia que estava pensan-
digo isso para pensar “onde eu estou” e “quem do nos problemas sociais, na ideia de higiene
eu estou” neste momento. Poderia estar aqui mental e da psiquiatria forense, enquanto na
compartilhando essa reflexão sobre a psicólo- Faculdade de Medicina do Rio, a Psicologia es-
ga e o psicólogo na Segurança Pública, com a tava totalmente atrelada à neuropsiquiatria e
Ligia Daier, diretora do departamento, ou a Ju- à neurologia. Tínhamos um saber psicológico
liana Martins, que é psicóloga também douto- utilizado nessa época, caracterizado essen-
randa em Educação, em Psicologia, discutindo cialmente por uma ideia, não muito diferente do

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Educação em Direitos Humanos com o profes- que os companheiros estão dizendo aqui hoje,
sor Paulo Endo, atual gerente de formação em da mensuração e da classificação dos compor-
Segurança Urbana do Centro de Formação em tamentos. Por meio dele, a Psicologia procurava
Segurança Urbana. Digo isso para falar onde ganhar status de disciplina autônoma, de uma
as psicólogas e os psicólogos que compõem Psicologia totalmente atrelada a uma ideia, a
o campo estão na Segurança Urbana, em São uma concepção de ciência natural calcada no
Bernardo do Campo. Estou falando isso porque, advento do positivismo, que influenciou o sur-
em geral, vemos as(os) psicólogas(os) desenvol- gimento de uma chamada Psicologia científica,
vendo outras atividades que não essas. “limpa, branca e clara, como cândida”. Segundo
os autores, estou me referindo principalmente
Na Secretaria de Segurança Urbana, hoje a Pereira e Pereira Neto, essa ideia que durante
em São Bernardo, temos dois departamentos, muito tempo foi muito forte, mas agora já está
o Departamento da Guarda Civil Municipal e o superada, de desvios e de erros individuais, co-
Departamento de Políticas Preventivas, além da meçou a ser a grande atração das pesquisas
Corregedoria como órgão independente. Essa daquele momento. Então essa tendência de
configuração por si só já exprime um novo para- pensar em como definir esse sujeito passa a
digma de Segurança Pública, de uma política de
segurança construída com participação popular.
E aí eu penso: onde, quem e como, enfim, qual
seria a atuação dessa psicóloga e do psicólogo O trabalho que estou desenvolvendo
na Segurança Pública? E aí lembro novamente com os colegas traz uma mudança
que eu falo de um olhar específico que em mui-
tos momentos já superou algumas dicotomias paradigmática, a partir da ideia do
e contradições do campo. Então, hegemonica- Programa Nacional de Segurança
mente, quando pensamos na história da Psico-
logia como ciência e profissão, estamos falando Pública com Cidadania, em que
de uma Psicologia que, como bem disse o Zac- os municípios foram inseridos na
cone, é a “novela do terror”, de uma Psicologia
para o controle social, não muito diferente da agenda e na construção dessas
Segurança Pública ou do agente público de se- políticas de segurança, ampliando
gurança. Estou dizendo que falar de Segurança
Pública e falar de Psicologia, em um determina- a uma determinada concepção, em
do sistema datado historicamente, socialmen- que segurança é entendida como
te, estamos falando exatamente da mesma coi-
sa. Reportando para o início do século XIX, no uma política pública de prevenção e
surgimento das universidades no Brasil, no Rio ação comunitária.
30 Hoje existem milhares de psicólogas(os)
Estou dizendo que falar de credenciados para a chamada “avaliação psi-
cológica para o porte de arma”. E o que seria
Segurança Pública e falar de essa avaliação psicológica? Dois ou três anos
Psicologia, em um determinado atrás, o Conselho Regional de Psicologia elegeu
como ano temático “a avaliação psicológica” e
sistema datado historicamente, começamos a pensar que avaliação psicológica
socialmente, estamos falando seria essa. Qual o sentido de submeter aquele
sujeito, que tem uma realidade, que está sob
exatamente da mesma coisa. pressões a um determinado teste a cada dois
anos, um sujeito que está ali também imbrica-
aparecer fortemente com a ideia dos testes de do à sua condição de trabalho, à sua condição
inteligência, utilizados nos soldados, nas pesso- enquanto sujeito, em um estado total e ge-
as no tempo da guerra, como esses “não huma- neralizado de estresse na hora da avaliação
nos” também que deveriam ir para frente, para da(o) psicóloga(o). Sabemos que muitas(os)
as infantarias e para morrer nas guerras, os psicólogas(os) não fazem o que o Conselho pre-
menos qualificados e os que tivessem menos coniza, as entrevistas devolutivas muito menos
condição para suportar essa determinada si- são realizadas, muitas ações são realizadas em
tuação, fazendo realmente uma Psicologia que grupo, sem considerar o processo específico de
contribui para esse controle social, para essa avaliação psicológica. O que mais está fazendo
manutenção e para uma ação um tanto quanto a(o) psicóloga(o) na Segurança Pública? Porque
reprodutora dos interesses da elite. eu não estou fazendo avaliação psicológica,
mas sabemos que hoje a Polícia Federal tem
Fico pensando que hoje, ainda em muitas muitas(os) psicólogas(os) credencia­das(os) e
práticas existe a ideia de uma Psicologia para que fazem da ideia de mensuração a atividade
classificação, seleção e o recrutamento de pes- profissional da(o) psicóloga(o) no campo da Se-
soal, porque se faz necessário um ajustamento gurança. Reconheço o esforço dos agentes pú-
dos funcionários para o desempenho perfeito blicos de segurança criando o serviço de saúde
das tarefas. Estamos falando de uma Psicolo- mental, mas o que significa um serviço de saúde
gia elitista, focada na indústria, focada na re- mental implantado em uma Academia de Polícia,
produção, que tem seus interesses claramente em uma instituição, em uma Corporação como
calculados, em como eu vou descobrir, como a Polícia Militar de São Paulo ou a Polícia Civil
eu vou mapear essa pessoa, esquecer que ela ou mesmo a Guarda Civil Municipal, na qual nós
é um sujeito e fazer dela realmente um produ- estamos trabalhando? Eu acho que devemos
to dessa obra. E pensamos que isso se define pensar qual é o sujeito que se está produzindo.
muito por uma ideia de controle, categorização Estamos produzindo Psicologia, produzindo ser-
e diferenciação, em uma concepção de Psicolo- viço de Psicologia, atendimento em Psicologia, e
gia calcada nessas ideias universalizantes, ge-
neralizantes e naturalizantes da subjetividade,
sem serem compreendidas a partir da realidade
e da demanda brasileira. A minha orientadora, Qual o sentido de submeter aquele
a professora Ana Bock, afirma que a Psicologia sujeito, que tem uma realidade,
brasileira precisa se voltar para a sociedade,
precisa se perceber como uma intervenção po- que está sob pressões a um
lítica na sociedade. A história da nossa ciência e determinado teste a cada dois anos,
de nossa profissão mostra que sempre estive-
mos comprometidos com os interesses sociais, um sujeito que está ali também
sempre fizemos de nossa ciência e de nossa imbricado à sua condição de
profissão um instrumento político. No entanto,
a revisão histórica mostra que estivemos com- trabalho, à sua condição enquanto
prometidos com os interesses das elites brasi- sujeito, em um estado total e
leiras. Estou falando tudo isso para pensarmos
que papel seria esse da(o) psicóloga(o) no cam- generalizado de estresse na hora da
po da Segurança Pública. avaliação da(o) psicóloga(o).
reproduzindo o interesse de um Estado burguês, ca às avessas, me encontrar com as pessoas, ir 31
de um Estado que mata, de um Estado que não para o campo, sair da Secretaria de Segurança
está preocupado com esse indivíduo, mas está, Urbana, estar nos territórios, que não são quais-
sim, preocupado em quem é essa pessoa que quer territórios, são territórios com situações e
está na rua. Então eu fico muito incomodada, mapas de bolsão de exclusão e onde me encon-
com essa(e) psicóloga(o) que está por trás des- tro tanto com a “avó do Feliciano”, quanto com
sas instituições, desenvolvendo um trabalho a “velhinha do Orlando” e lá nós vamos pen-

Psicologia e Segurança Pública


sem questionar o que está fazendo. Acho que sando em um trabalho de escuta. Não se trata
há questões muito sérias e é isso que é discutir de uma escuta clínica, que é imparcial, neutra,
o nosso compromisso ético político enquanto passiva como um grande instrumento de traba-
psicóloga(o). Não dá para nos enganarmos de lho. Fazemos uma política de prevenção social
que está tudo muito bem e que estamos fazen- pautada no diálogo, na superação do fatalismo,
do Psicologia, estamos ajudando as pessoas, a na emancipação pessoal e comunitária dos gru-
Psicologia está atendendo a outros públicos. pos específicos e comunidades que estiveram
e ainda estão excluídos da agenda política da
E para completar, eu queria dizer o que es- segurança. Promovendo segurança e sensação
tamos fazendo em São Bernardo do Campo. Pri- de segurança a partir da participação popular,
meiro, o CREPOP desenvolveu uma consulta pú- construindo novas configurações no campo do

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blica do que estão fazendo as(os) psicólogas(os) desenvolvimento comunitário.
na Segurança Pública. Com todo respeito, achei
“bizarra” a consulta pública. Não colaborei com Concluo dizendo o que fundamenta a mi-
a proposta porque acho que coloca as pessoas nha práxis, citando Martin Baró, psicólogo salva-
em “caixas” que não são mais o que estamos dorenho, também padre e assassinado durante
fazendo, acho que estamos fazendo muito mais. a ditadura salvadorenha. Martin Baró afirma que
E aí queria trazer especialmente qual é esse lu- não está nas mãos da(o) psicóloga(o) mudar
gar da Psicologia na construção de uma política as injustas estruturas socioeconômicas, mas é
pública de Segurança Pública. Hoje na Guarda ela(e) quem deve intervir nos processos subje-
Civil Municipal de São Bernardo do Campo, na tivos que sustentam e viabilizam as estruturas
Secretaria de Segurança Urbana, no Departa- injustas. Se também não lhe cabe conciliar as
mento de Políticas Preven­tivas, tem o trabalho forças e interesses sociais, compete a ela(e) aju-
de atendimento em saúde mental, que é feito dar a encontrar caminhos para substituir hábitos
em parceria com a Universidade de Medicina do violentos por hábitos mais humanos. E ainda que
ABC. Mas temos as(os) psicólogas(os) que falam a definição de um projeto nacional autônomo
que fazemos o “trabalho do absurdo”. Temos não esteja em seu campo de competência, a(o)
no campo das guardas a ideia de uma guarda psicóloga(o) pode contribuir para a formação de
com comando próprio. Como durante mais de uma identidade pessoal e coletiva que respon-
dez anos, quatorze anos, tivemos guardas sem da às exigências mais autênticas da população.
uma diferenciação hierárquica, de repente te- Então, digo isso pensando seriamente em como
mos um Comando próprio? O que fazemos para podemos fazer críticas e trabalhar com interven-
trabalhar, para contribuir para que esses guar- ções e com ações para essa superação. Como
das façam gestão dessa política de segurança?
Estou dizendo que hoje a(o) psicóloga(o) em São
Bernardo está pensando nisso também, o que
significa ser gestor de Segurança Pública, fazer Estou dizendo que hoje a(o)
a gestão de outros Guardas enquanto Guarda? psicóloga(o) em São Bernardo
De se reconhecer enquanto gente? Tem outros
trabalhos, os trabalhos de aconselhamento psi- está pensando nisso também,
cológico, mas para além disso, essa superação o que significa ser gestor de
da ideia de uma política repressiva punitiva fala
um pouco do trabalho que desenvolvemos. O Segurança Pública, fazer a
departamento de políticas preventivas é um gestão de outros Guardas
departamento que é esquecido, menosprezado
e pouco valorizado por muitos, mas é nele que enquanto Guarda? De se
tenho o imenso prazer de construir uma políti- reconhecer enquanto gente?
32 eu digo sempre para os grupos com os quais
trabalhamos, a grande bandeira que levantamos
é a ideia de que “eu mudo para mudar”, e quan-
“Muda, que quando a
do dizemos isso estamos construindo novos
caminhos criativos e ativos com essas popula-
gente muda, o mundo
ções. Penso no Gabriel, O Pensador, quando diz
“Muda, que quando a gente muda, o mundo muda
muda com a gente. Na
com a gente. Na mudança da atitude, na mudança
da mente”. Então precisamos nos perguntar que
mudança da atitude, na
tipo de Psicologia temos produzido, que tipo de
Psicologia continuaremos produzindo, que tipo
mudança da mente”.
de críticas e silêncios faremos diante disso.
Debates 33

Psicologia e Segurança Pública


Helena (plateia): Sou psicóloga na Funda- alguns meses para cá começaram a acon-
ção Casa e eu gostaria de cumprimentar o tecer muitos roubos à residência. Quem

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CRP por essa roda de conversa, porque des- mora por aqui sabe que tivemos uma crise
de 2005 venho participando ativamente das muito grande e eu sei os números de cor,
palestras do CRP e nunca me senti incluída, porque participei de uma reunião hoje de
porque parecia que estava uma faixa escri- manhã sobre isso. Então, em maio tivemos
ta na minha testa, “faço parte do problema, quatro ou cinco roubos à residência e foi
então não tenho espaço no CRP”. Gostaria aumentando até agosto, quando tivemos
de cumprimentá-los, porque eu acho que treze roubos à residência na região, o que
nesses anos todos é a primeira vez que eu dá mais de 300% a mais do mesmo período
me sinto muito contemplada com a fala dos do ano passado. Isso detonou uma reunião
palestrantes e agradecida por ter tido a no Batalhão, o Vereador Eliseu Gabriel, que
oportunidade de estar aqui. E a minha per- mora em Pinheiros, levou onze moradores
gunta direcionada a todos é algo que eu já que foram assaltados ou tiveram parentes
venho me questionando bastante. Quando assaltados na região. Diante disso eu dire-
eu penso em Segurança Pública eu penso cionei o policiamento para atender a essa
em igualdade. E quando eu penso nessas demanda, creio que roubo à residência é um
duas questões eu acho que elas são anta- dos crimes piores para o cidadão, ele tem
gônicas. E como resolvemos isso? a sua intimidade invadida, a sua residência,
sofre uma violência muito grande, nós nos
Robert (plateia): Também queria parabe- preocupamos muito com isso e direciona-
nizar esse encontro, que para mim foi ma- mos a atividade policial para esse crime.
ravilhoso e eu acho que tem muito tempo Felizmente entre setembro e outubro nós
ainda para digerir, estudar e refletir o que foi conseguimos prender duas quadrilhas em
apresentado hoje. Mas eu queria pedir para flagrante. Em setembro, os roubos caíram
a mesa pensar um pouco melhor a questão para o número de cinco ocorrências e em
da articulação Segurança Pública e dro- outubro ocorreram apenas três ocorrências
gas, pensando em encarceramento, gosta- de roubo à residência. A polícia foi repres-
ria que avançassem um pouco nisso. sora, sim, em benefício das pessoas que
moram, trabalham e vivem por aqui. Agora,
Tenente Coronel Eduardo (plateia): Eu como resolver esse problema, eu não sei.
gostaria só de ter a chance da réplica, por- De que outra forma se resolveria isso? Ago-
que a minha instituição, a Polícia Militar, foi ra uma outra questão: nas duas ocorrên-
muito atacada nesse momento, por quase cias em que tivemos sucesso, prendemos
todos os palestrantes. Eu queria colocar ladrões em flagrante e na hora em que os
uma situação que aconteceu recentemen- policiais chegaram eles se renderam. Ótimo.
te aqui na região. Eu comando o batalhão E se o bandido pegasse a sua arma, apon-
aqui da área já há um ano e três meses e de tasse para o policial e atirasse? E se o po-
34 licial pensasse: “Não, eu não posso reagir, com as instituições clássicas e isoladas e
eu não vou matar o bandido, senão eu vou penso que talvez as “chaves”estejam mais
aumentar a letalidade policial imensamente”. fora do que dentro desse sistema. Já can-
Mas o policial tem o direito de legítima de- samos de apontar os problemas dessas
fesa, ele pode e deve se defender, então ele instituições do sistema de justiça criminal.
reage e mata o bandido. Nessa hora ou é o Quando vamos parar de apontar os efeitos
policial ou é o bandido. Eu queria saber das deletérios do sistema prisional e começar a
estatísticas internacionais, qual o número discutir justiça restaurativa? Quando vamos
de confrontos armados que existem entre parar de discutir a violência policial, que é
policiais e bandidos. Eu sei que aqui em inegável, e tem um histórico que ajuda a ex-
São Paulo é imenso, uma quantidade imen- plicar e é um histórico que não é uma “ilha
sa de bandido armado que não tem medo no mundo”, que está dentro deste mundo?
de reagir à abordagem policial e ele atira E aí a pergunta é: quando vamos começar a
mesmo. Assim como vocês veem na mídia, reimplicar as pessoas na produção dessa
muitas pessoas, muitos cidadãos que são segurança sem tornar sinônimos “Segu-
assaltados e, se reagem ou não entregam rança Pública e política criminal?”
rapidamente seus bens, podem ser mortos,
e muitos são mortos pelos bandidos. É com Alfonso (plateia): Querida, a resposta es-
essa realidade que o policial aqui se depa- teve aqui agora. Mesmo com medo, vá em
ra. Felizmente aqui na região de Pinheiros frente, isso foi colocado pelo colega. (...) Na
e Itaim Bibi, na área do Batalhão, o último Conferência Municipal de Segurança Públi-
confronto armado que aconteceu foi em ca, eu disse que: “eu, diferente da população
agosto do ano passado, em que o policial que grita por segurança, eu grito por liberda-
veio a falecer. Estamos há um ano e dois de”. Liberdade de sair a hora que eu quiser,
meses sem confronto armado aqui, mas se conversar com quem eu quiser sem medo e
acontecer, o policial que é assassino, que é sem ser acompanhado por câmeras de TV,
bandido, que mata o bandido, que matou, porque eu não sei quem está do outro lado.
que é repressor? Eu não entendo isso. Eu A partir daí, mudar sua concepção não de
entendo que nós estamos fazendo o nos- segurança, mas sim de ser vivente. Acima
so trabalho de proteger o cidadão. Então eu de tudo desconstruir o que se faz dentro de
trouxe só um exemplo de várias coisas que um presídio, que é o que eu faço. Ninguém é
acontecem na região. O bandido vai lá e as- preso, ninguém é traficante, está. Ninguém
salta, está armado, o policial chega, prende é viciado, está. E a partir daí, trabalhar no-
em flagrante ou tenta prender em flagrante, vamente, “Não, eu sou traficante porque eu
se há a reação do “marginal”, o que ele pode estou na quadrilha”... “Bom, você saiu da qua-
fazer? Essa é uma questão. Então eu senti drilha, o que você é?”. “Ahm... ahm”. Preso a
nesta noite a Polícia Militar sendo atacada um passado; ora, o passado passou. É isso
veementemente. E nós estamos aqui para que nós não trabalhamos. É o daqui para
proteger o cidadão, para proteger a socie- frente, constrói daqui para frente. Eu tenho
dade. Então eu não consigo entender isso. um livro, Pequenos Estudos de Psicologia
Científica, escrito por Oliveira Viana, e ele
Lígia (plateia): Quero parabenizar a mesa, também escreveu sobre Da Ciência Peni-
foram falas apaixonadas, com muita pro- tenciária, em que coloca a doutrina peni-
priedade e que deixam claro o fato de não tenciarista. E a doutrina penitenciarista,
estarmos procurando culpados neste mo- para o humano que vai para a cadeia, é a
mento. Ficou muito claro o processo que seguinte: contenção, ou seja, vai preso, cas-
marca uma sociedade cuja demanda é puni- tigo e talvez ressocialização. É um cemitério
tiva, cujo marco é repressivo punitivo. Cos- que ainda hoje é adotado pelo sistema de
tumamos dizer que compartilhamos uto- justiça, principalmente de São Paulo, que é
pias, e fico um pouco preocupada porque o que eu mais conheço.
falamos muito dessa mudança do marco, do
paradigma da segurança, mas em todas as Andreia (plateia): Pensando nessa lógica
discussões, ficamos no campo do sistema das(os) psicólogas(os) dentro desse siste-
de justiça criminal, polícia, justiça e prisão, ma, acho que é uma empreitada bem com-
plicada, que peso e que medida temos quan- ser conhecida. Trabalho, atuo com drogas e 35
do a cada jovem branco morto assassinado traumas e tenho visto progressos enormes
na sociedade, temos três jovens negros. E na Polícia Militar de São Paulo, na formação
essa estatística vem aumentando a cada dos seus componentes e sempre que pre-
ano. Qual é a prioridade desse sistema? cisei fui prontamente atendido, que é muito
Que lógica tem isso? Como trabalhar essa comum eu ir buscar paciente em “biqueira”.
lógica e pensar essa lógica? Como pensar Pedimos apoio às vezes na residência, quan-

Psicologia e Segurança Pública


esse extermínio da nossa juventude den- do o paciente está muito violento, está em
tro desse sistema? surto, e somos prontamente atendidos. E
observo sempre o operacional deles na rua
H (plateia): Trago de certa forma uma pro- e tenho visto progressos. Muito conheci-
vocação ou mesmo uma sugestão de pes- mento, muito aperfeiçoamento, muito trei-
quisa. Existem similaridades, mas diferenças namento. Mas uma pergunta diretamente ao
no contexto estrutural e operacional das po- Dr. Maurício sobre a questão lombrosiana,
lícias de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa é “Se Lombroso ainda está vivo e precisa ser
uma questão que eu estou levantando para transcendido e melhor entendido”.

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36
Resposta dos palestrantes

Beatriz Brambilla: Queria dizer que estar pretendo deixar claro que enquanto fala-
na Segurança Pública me fez ver que Se- mos de Segurança Pública como lacuna das
gurança Pública é a lacuna da ausência do políticas de Estado, a continuaremos nessa
Estado. E quando a Lígia coloca ou mesmo lógica. Então quero agradecer ao Conselho
quando o Tenente Coronel pergunta como e a todos vocês que estão aqui hoje e espe-
resolvemos essa questão, para não atuar ro que possamos pensar juntos nessa atu-
de forma repressiva e a companheira fez ação da(o) psicóloga(o), que historicamente
uma posição da ideia de igualdade, fico vem sendo marcada para a reprodução dos
pensando mesmo no contato com os agen- interesses das elites e da classe dominan-
tes públicos de segurança e ouvir a rotina te e estamos dizendo que a Psicologia não
do agente público de segurança me traz está aqui para isso, que a Psicologia está
muito essa ideia de que não estamos falan- em todo lugar, todos os dias para uma so-
do dos policiais, mas sim de uma instituição ciedade mais democrática e igualitária.
e de como ela está se dando sem, claro,
dicotomizar. Mas entendo que quando falo Maurício Dieter: Eu não vou conseguir me
dessa lacuna, quando nada mais deu certo, endereçar a todas as questões e vou co-
que é o que o Tenente Coronel está trazen- mentar apenas aquelas para as quais acho
do, quem é chamado para dar conta de uma que eu tenho alguma contribuição. Primeiro
demanda da sociedade? É a polícia, são as em relação à justiça restaurativa, acho que
forças do Estado. E aí entendo que quando é precisamente isso que criminologia crítica
fazemos este debate sobre Segurança Pú- discute hoje. O legal da justiça restaurativa
blica, enquanto continuarmos falando sobre é que ela não foi feita para os casos que
sistema de justiça criminal, não avançamos. acabam no juizado especial, porque esse
Hoje, eu diria que sou uma psicóloga que tem sido um problema grave da justiça res-
faço todos os “xizinhos” para preencher taurativa no Brasil, a discussão parece ser
qual é a minha atuação no questionário do as composições dos pequenos delitos pa-
CREPOP no campo da Segurança Pública, trimoniais. Nós queremos justiça restaura-
porque dialogamos necessariamente com tiva para as coisas mais graves. É precisa-
os profissionais de outras áreas, inclusive mente ali que o discurso, o famoso discurso
com os agentes públicos de segurança, mas da vitimização, tem que se ressignificar em
fazemos uma política que entende que só forma de emancipação e não contribuir para
será adequada e só será possível, em outro opressão. Tem um trabalho excelente, de
modelo. Enquanto não tivermos assistência um colega meu da Universidade Federal do
social adequada, saúde, uma política urba- Paraná, que defendeu a tese de doutorado
na, políticas públicas integradas que avan- em justiça restaurativa e ele partiu de um
çam para outra dimensão de organização da trabalho de psi­cólogas(os) no júri do Para-
sociedade civil, certamente continuaremos ná, que partiu de uma frase comum dos fa-
contando vítimas, contando mortos. Então miliares da pessoa que tinha sido morta, e
que diziam sempre, “Eu quero que a justiça tenho pessoas que participaram do exérci- 37
seja feita”. E eles pesquisaram: “Mas o que é to, foram militarizadas e são exemplos de
essa justiça que você quer?”. E eles desco- emancipação humana. Não acho que o mili-
briram que se você problematizasse o fato, tarismo por si só seja um problema, porque
dificilmente essa justiça era a morte do ou- quando você vai ter porte de arma e tiver a
tro, a negação do sujeito, eles queriam en- possibilidade da letalidade no coldre, quero
tender o que tinha acontecido. E veja, o sis- que você tenha hierarquia, controle, acho

Psicologia e Segurança Pública


tema de justiça criminal é tão ruim que isso fundamental. É uma discussão que pre-
impede a reconstrução da própria vítima ou cisamos ter, porque o problema talvez seja
dos familiares, porque ele nega a essa pes- a militarização da prática, de entrar nessa
soa sua participação. Eu não quero que a lógica da guerra. E aí eu percebo pelo seu
vítima tenha participação no processo por discurso como isso é forte. E eu entendo
uma atitude revanchista, vingativa, reivindi- perfeitamente, quero dizer que eu tenho
catória, isso é um problema, mas se ela pu- toda simpatia por esse apelo da corporação
der usar aquilo para poder tentar recons- em dizer: “Olha, eu preciso falar aqui em
truir, a partir do seu sofrimento, acho que é nome da polícia”. Sim, porque a polícia tam-
extremamente válido. E, hoje, assim, pelo bém é vítima desse sistema, não é só algoz
menos no grupo europeu de criminologia dele. Ou seja, a classe política impõe obri-

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crítica, que é, digamos, nosso parceiro na gações a vocês, que vocês não podem cum-
Europa, tem pelo menos dois módulos só prir e quando alguém está sofrendo um rou-
para discutir iniciativas dessa natureza, bo dentro da sua residência, tudo o que ele
muitas das quais foram desenvolvidas nes- pode fazer é gritar “polícia”. Só que a polícia
se período de justiça de transição de perío- que está vindo para lá é uma polícia que ele
dos de ditadura militar, onde você podia ajudou a estigmatizar, a marginalizar. Os
confrontar as pessoas para saber, “Bom, estudos sobre a polícia nos Estados Unidos
onde você colocou meu irmão, meu pai...”. E é desde a década de 1950 mostram que ser
um processo traumático, terrível, mas ao policial é viver na permanente legalidade e
mesmo tempo permite que as pessoas pos- ilegalidade. Porque não tem uma carcera-
sam se reconstruir a partir daí. Concordo in- gem que cumpra os requisitos que pode-
teiramente, porque, enfim, não é assim, riam ser logicamente aplicados pela lei de
“acabou o sistema, e agora?”. Nós temos o execução penal, porque é difícil investigar
compromisso de achar uma resposta, nós um crime sem fraturar a fronteira da legali-
temos que ajudar a construir isso. E só para dade, é muito difícil fazer isso. E como você
responder ao Tenente Coronel Eduardo, eu vai enfrentar a violação da lei, obedecendo
gostaria muito que a Polícia Militar estives- estritamente à ordem legal? Esse é um con-
se em um grupo de estudo junto conosco, flito necessário na polícia? Mas quem vai
porque eu não quero ser porta-voz das an- controlar isso se a atividade de vocês fre-
gústias da polícia, eu quero que a polícia quentemente está no limite? E quanto ao
diga lá qual é o problema. Eu não quero que direito de legítima defesa, claro que existe o
vocês morram, também não quero que vo- direito de legítima defesa. O que acho que a
cês matem, e acho que existem mecanis- pesquisa do Orlando mostra é que legítima
mos políticocriminais concretos muito mais defesa é uma coisa do ponto de vista jurídi-
acessíveis do que nós dois mesmos supo- co e outra coisa do ponto de vista da sua
mos e que vão diminuir a morte de vocês e a justificação empírica, porque quando um
morte que vocês produzem como policiais, Promotor aceita como legítima defesa o
para não falar da instituição. Pessoas que fato de o traficante estar armado e não o
vocês matam ou pessoas que querem ma- fato de ele provar que o sujeito produziu
tá-los pelo simples fato de usar uma farda. agressão injusta, atual e iminente do direito
A discussão sobre a militarização eu acho próprio ou alheio, o que autoriza o uso mo-
que é supercomplexa. Eu entendo que os derado. E é isso que é interessante, Tenente
melhores quadros humanos, que eu tenho Coronel, nós temos que cobrar mais, sim, da
como referentes de seres humanos, saíram polícia, porque vocês têm que ser o nosso
de academias militares, Marighela saiu do referente de legalidade, porque hoje eu me
exército, o Luiz Carlos Prestes também, eu sinto desconfortável em pedir para um poli-
38 cial, especialmente em São Paulo (no Para- meiro buraco, porque elas já são estigmati-
ná eu ainda consigo) uma informação de zadas dentro da própria população pobre.
rua, pois quando o fiz, os policiais me ofen- Nos Estados Unidos eles fazem a diferença
deram, respondendo: ”Eu não estou aqui clara entre o black e o niger que é uma pala-
para isso”. Essa polícia que deveria servir e vra problemática nos Estados Unidos, por-
proteger o cidadão, nem nos serviços mais que um branco falar niger para um negro
básicos de cidadania conseguiu. Minha res- nos Estados Unidos é uma ofensa de morte,
posta acadêmica é de alguém que fez um porque é uma palavra pejorativa que desig-
percurso acadêmico super-rápido, chegou à nava o negro durante a escravidão. Mas en-
condição de professor no Largo São Fran- tre os negros eles fazem essa distinção.
cisco, e eu gostaria de ter a polícia lá den- Então tem o black que é o sujeito que tenta
tro. E se eu o encontrar lá, quero que nos se ajustar, cujo ideal é o Bill Cosby, que na-
diga quais são as pautas que nós podemos quela série era um médico integrado, e o ni-
tentar lhe ajudar. Gostaria muito que a Polí- ger que era o sujeito que é, do ponto de vis-
cia Militar de São Paulo pudesse estar nos ta masculino, o homem, jovem, pobre,
nossos debates. E só para encerrar, meus usuário de drogas, e do ponto de vista femi-
alunos da faculdade de Direito dizem: “Pro- nino, as mulheres obesas que usam os
fessor, cinco anos de faculdade e eu não es- “cupons” (social safety net) e que têm filhos,
tou preparado para o mercado de trabalho”. mas são solteiras. Esses dois estigmas,
Eu fico pensando um policial que tem um masculino e feminino, constituem as pesso-
treinamento exíguo e sai armado. “Você está as indesejadas e estigmatizadas dentro da
preparado para disparar em alguém? Você própria pobreza e, portanto, são as vítimas
está preparado? Em que situação nós esta- preferenciais de todas as políticas atenta-
mos deixando a polícia?” Então “mea-culpa” tórias aos direitos fundamentais que são
da Academia. E, para encerrar, porque a viabilizadas no sistema de justiça criminal.
questão foi direta, sobre permanências
lombrosianas, esse nosso Lombroso revisi- Pedro Paulo Bicalho: Penso que o grande
tado mostrou a atualidade dele, em uma risco de se discutir a Segurança Pública é,
distinção que é fundante do problema da por ser o tema tão complexo, qualquer dis-
ideologia da defesa social hoje em curso, cussão vai parecer rasa. E esse é sempre o
porque Lombroso conclui os trabalhos di- perigo que corremos. Mas a primeira colo-
zendo que existem três tipos de criminosos: cação foi sobre a relação igualdade e Segu-
o criminoso eventual, que tem que ser cas- rança Pública e eu acho que essa é uma boa
tigado, o criminoso louco, que tem que ser questão para começarmos a falar, porque
tratado, e o criminoso nato, que é perigoso me parece que a grande questão que torna
e precisa ser neutralizado, no limite exter- o tema Segurança Pública um tema comple-
minado. Então essa crença de que existem xo é porque a sociedade é fundada em um
esses três tipos de criminosos constitui o paradigma estranho, que é o fato de que to-
imaginário popular no que significa repres- dos nós concordamos que vivemos em uma
são à criminalidade, tratamento para os tra- sociedade desigual, mas ao mesmo tempo
táveis, repressão para os que possam se pedimos políticas para tornar isso que é de-
arrepender e neutralização da classe peri- sigual, não desigual do ponto de vista dos
gosa. E por que a classe perigosa voltou? meus direitos. É como se eu tivesse o direi-
Porque produzimos um contingente enorme to de não me deparar com a desigualdade,
de pessoas inúteis no modo de produção que eu mesmo entendo que me constitui.
capitalista, pessoas que não falam inglês, Percebam como é complexo? E a complexi-
não sabem ligar um computador e, portan- dade está aí, nós, apesar de reconhecermos
to, não podem nem ser exploradas pelo ca- a desigualdade, queremos que a desigual-
pital. E essas pessoas que são inúteis cons- dade seja igual. E aí não vai dar certo. E aí
tituem a underclass, a ralé, que podem ser acaba sobrando uma determinada política,
sistematicamente exterminadas e nós cola- baseada em uma lógica de guerra, que insti-
boramos construindo essas pessoas indig- tui determinadas práticas, e considero peri-
nas de vida, porque elas não têm utilidade, goso quando tornamos essas práticas, prá-
porque elas podem ser “desovadas” no pri- ticas nomináveis. Dizendo de outra forma,
eu acho que é muito perigoso afirmarmos Acho que a questão é exatamente essa, é 39
que existem lados e que existe uma polí- tornar essa discussão de quem “é humano”
cia de um jeito, existe um cidadão de outro e de quem “não é humano”, problematizar a
jeito, porque na verdade a polícia está no tal ponto, de modo que essa “não humani-
mesmo campo de imanência de nós todos, dade” não “caia no colo” de ninguém, muito
os policiais não vieram de “Marte”, como os menos “no colo” do policial. E acho que essa
próprios policiais falam. E se não se veio de é a questão que foi debatida aqui o tempo

Psicologia e Segurança Pública


“Marte” é porque essa desigualdade e esse todo. Acho que a grande problematização
paradoxo de acabar com a desigualdade é das políticas de guerra travestidas como
que constituímos, ela também é uma tarefa políticas de segurança. Penso que é isso
que “cai no colo” da polícia. E digo mais, a que precisamos atacar e não é exatamen-
atividade policial é muito mais complexa do te instituição “A” ou o profissional “B”, mas
que as chamadas para resolver as questões que lógicas são essas que instituem o Es-
criminais. Existem várias estatísticas que tado penal, que é o Estado que vai resolver
nos apontam que mais de 70% das chama- todos os nossos problemas, todas as nos-
das de “190” não são para questões liga- sas angústias, todas as desigualdades que,
das a transgressões à lei penal. Portanto, o aparentemente, nós temos o direito de não
Estado que está ausente para a população nos depararmos com ela. Higienismo nada

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como um todo, ele se presentifica por meio mais é do que isso, higienismo é o supos-
do “1”, do “9” e do “0”. Quando a população to direito de não me deparar, de os meus
pede o Estado, os únicos números que ela olhos, narizes e ouvidos não se depararem
sabe pedir são “190” e é a polícia que aca- com a desigualdade que me incomoda. So-
ba tendo que muitas vezes se deparar com mos todos higienistas e por sermos higie-
uma série de questões que não têm absolu- nistas, nós pedimos o Estado penal para
tamente nada a ver, a princípio, com a ques- dar conta da desigualdade, e eu acho que o
tão da Segurança Pública e esta passa a ser “nó” é exatamente esse e é nesse “nó” que
assistência, passa a ser saúde, passa a ser precisamos investir.
habitação, passa a ser emprego, ela passa
a ser uma série de outras políticas, que aca- Orlando Zaccone: Primeiro, vou começar,
ba virando e sobrando para ela, porque ela pedindo desculpas ao Tenente Coronel Edu-
acaba sendo a única coisa acessível. Agora, ardo, se passou a ideia de que meu trabalho
a pergunta é: “Por qual razão o Estado penal é uma crítica à polícia. E por que eu estou
é o Estado acessível? E por qual razão nós pendido desculpas? Porque meu trabalho
queremos transformar esse profissional, no não é uma crítica à polícia. Não é uma crítica
profissional que vai dar conta daquelas desi- à polícia no seguinte sentido. A partir do tí-
gualdades que nos constituem, o que quere- tulo eu coloco, “Indignos de vida, a forma ju-
mos que elas não nos constituam?”. Esse é o rídica da política de extermínio de inimigos no
grande paradoxo. Eu acho que precisamos estado do Rio de Janeiro”. Essa política é
fugir e fugir, de verdade, das dicotomias que contemplada a partir de operadores jurídi-
colocam o policial no lugar do mal, o cida- cos, eu chamei a mídia, eu chamei até a “ve-
dão no lugar do bem ou o contrário. Acho lhinha” do Conselho de Segurança para o
que essa é uma falsa questão, eu acho que problema. E por que eu acho importante
o que precisamos atacar não é uma institui- chamar todos esses operadores dessa polí-
ção e nem ao profissional, mas uma lógica tica de extermínio para o problema? Para
de guerra, que institui as demandas que nós tirar um peso das costas dos policiais de
próprios produzimos. Nós que temos toda que eles é que operam essa política. Porque
essa discussão crítica, no momento em que o poder político quer exatamente isso. Eu
precisarmos do Estado penal, é para “190” vou dar dois exemplos do Rio de Janeiro. Um
que cada um de nós vai ligar, porque, na exemplo: o Governador do Rio de Janeiro,
verdade, nós vivemos também nesse mun- Sérgio Cabral, chamou policiais de “débeis
do que institui o Estado penal como Estado mentais”, não sei se o senhor lembra-se
possível. E eu acho que é muito perigoso disso. Na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro, um
quando o resultado de tudo isso ou o efeito carro que foi identificado como sendo carro
de tudo isso “cai no colo” de uma categoria. de criminosos em fuga passou por policiais
40 que, com comunicado de que havia crimino- tratam os policiais quando eles estão em
sos dentro do veículo em fuga, passaram a uma situação que o Direito penal poderia
atirar para o veículo parar, porque o veículo contemplar como um erro de percepção. Po-
não parou ao sinal que os policiais deram licial não pode errar. Então policial tem que
para ele parar. Dentro do carro estava uma acertar. Acertar onde? No alvo. E o alvo tem
família, inclusive um menor, o João. O garoto um destino, porque quando eu estudo os
morreu e quando isso vai à tona, porque os autos de resistência, um dos fundamentos
policiais erraram no procedimento, porque o que os Promotores colocam para legitimar a
medo talvez fizesse com que esses poli- morte é que o fato ocorreu em comunidade
ciais, por conta até de não terem um treina- favelada, onde constantemente tem tiros
mento apropriado, se antecipassem em entre policiais e bandidos. Então, respon-
uma possível legítima defesa, atirando em dendo também já a pergunta, que se refere
um carro que estava em fuga, sem ter a cer- a essa letalidade em um determinado am-
teza, mas com a informação de que ali havia biente da cidade, porque a polícia no Rio de
criminosos. O Governador vai a público e diz Janeiro mata muito, mas mata muito na fa-
que os policiais militares são “débeis men- vela. A conclusão do meu trabalho não pede
tais”. Vou fazer a seguinte pergunta para o a responsabilização dos policiais, eu não
senhor: “Se naquele carro em fuga estives- vejo que é prendendo policiais que foram
sem criminosos com mandado de prisão pen- identificados, que nós vamos resolver o
dentes e se aparecesse uma arma, o que ia problema, minha proposta é outra. Mas
acontecer com os policiais? Eles iam ser cha- quando você fala, “Ah, mas aqui no Brasil
mados de débeis mentais?”. Não, eles iam existem muitos confrontos, eu queria saber
ganhar uma medalha. Então, o fato de um os números de confrontos em outros países”.
policial ser reconhecido como um herói ou Eu vou te trazer número de guerra, porque
ser considerado por esse poder político não existe um lugar onde se tenha um nú-
como um “débil mental” é o resultado, é mero de letalidade comparável a uma guer-
quem foi atingido. Isso aconteceu no Rio de ra. A última guerra no continente, na Améri-
Janeiro com policiais civis também, porque ca do Sul, foi a Guerra das Malvinas. Tudo
meu trabalho não faz distinção entre poli- bem que tem variações de números, mas o
ciais militares, policiais civis. Estudei os au- número que eu peguei não é muito confiá-
tos de resistência, com o resultado morte, vel, é Wikipédia, mas eu também cheguei a
produzido tanto por policiais militares, como alguns outros números que não ultrapas-
civis. Policiais civis, que não são treinados sam 1.000: 649 argentinos mortos e 258 in-
para fazer blitz, não são, foram levados, gleses. Considerando que os ingleses são
acho que muito roubo de veículo na rua, os “dignos” e os argentinos são os “indig-
“Não, a Polícia Civil tem que fazer operação”, nos” na lógica do matável e do não matável,
aí vai, monta uma blitz sem ninguém conhe- até que foi equilibrado. Não dá 1.000. Sabe
cer como se faz uma blitz. No meio da blitz, quantas pessoas, eu não falo que a polícia
um Juiz trabalhista com a família, ao ver matou não, porque como eu falo que existe
tudo parado, pensa que é uma blitz de ban- uma política, prefiro dizer “mortes produzi-
dido (porque no Rio de Janeiro, de vez em das a partir de ações policiais”, porque es-
quando, os bandidos fazem blitz também), sas mortes não são produzidas pela polícia,
dá uma ré para dar fuga. Um policial vendo são produzidas pela política: 1.330. Na polí-
um carro dando ré na blitz, dá um tiro de cia do Rio de Janeiro, Civil e Militar, nós tive-
alerta para o morro. Não se dá tiro de alerta mos 1.330 mortes resultado de autos de
em blitz. Por quê? Porque os policiais estão resistência. Isso é um número superior ao
todos espalhados e ninguém sabe de onde número de uma guerra. E quem diz que a po-
está vindo tiro. De repente um carro dando lícia mata muito não sou eu, são esses nú-
ré, um tiro de alerta, “chapecou o carro do meros. O que eu fiz foi estudar qual é a lógi-
Juiz”, sorte é que não morreu ninguém, mas ca em que opera essa letalidade. Tive
todo mundo foi ferido. Todos os policiais ci- algumas surpresas, por exemplo, quando
vis que participaram daquela operação fo- falamos de confronto, de trezentos proces-
ram sumariamente demitidos e presos, ime- sos que analisei, eu só encontrei um onde
diatamente presos, porque é assim que eles havia prova efetiva de uma agressão em re-
lação aos policiais, com viatura com tiro, ex- Mas isso não interessa se é legítima defe- 41
plosão de granada. Achei várias granadas sa, se é execução, me interessa o seguinte,
apreendidas na mão do morto que nem o como se constrói a legitimidade dessa leta-
pino foi acionado. Cenas em que o policial lidade? Com a palavra o Promotor de Justi-
descreve que uma pessoa ia jogar uma gra- ça: “Quando Marcos Antônio recebeu voz de
nada e ele atirou, era um garoto de quator- assalto emitida pelos agentes, saiu do carro
ze anos, e quando chegou perto do corpo em que estava, deu ordem de parada aos as-

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encontrou uma granada sem o pino, várias saltantes e recebeu tiros. Mas em revide,
granadas apreendidas sem o pino acionado, contra eles atirou matando, infelizmente, so-
quer dizer, é um “bando de débil mental” que mente Antônio. O agente, portanto, matou um
está do outro lado, porque ataca granada fauno que objetivava cometer um assalto
como se fosse pedra. Ou será que essas contra ele, agindo absolutamente dentro da
granadas surgem na cena do crime? É disso lei. Ressalto que, para desgosto dos defenso-
que nós estamos falando. Então você não res dos direitos humanos de plantão, não há
tem provas concretas de que o policial está dúvidas da tipificação da causa de exclusão
sendo agredido. Agora, eu entendo e aí eu da licitude em comento. Bandido que dá tiro
falo para vocês de coração aberto para po- para matar tem que tomar tiro para morrer.
liciais e para a plateia, policial está trocan- Lamento, todavia, que tenha sido apenas um

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do tiro no morro, de repente os caras viram dos rapinantes enviados para o inferno. Fica
as costas e saem correndo em fuga, o poli- aqui o conselho para Marco Antônio, melhore
cial atira, aquilo ali é o “sangue quente”, é o sua mira. Com efeito, a dinâmica dos fatos
cara que estava querendo fazer a nossa aqui estudados leva à conclusão que o pre-
mãe chorar. Eu acho que até dá para você sente caderno investigatório somente foi dis-
contemplar, não em termos jurídicos, mas tribuído para esse tribunal do júri em razão
pelo menos em termos morais, o “sangue de ter Antônio Rogério da Silva Pena, para
quente”, a “paixão”. O que eu estou critican- fortuna da sociedade, sido morto”. Esse dis-
do aqui, Tenente Coronel, é o cara no gabi- curso contempla o seguinte, o policial ma-
nete com ar-condicionado a dezoito graus, tou para se defender, mas o prazer e a
com aquele bom perfume, com aquele salá- construção que se faz dessa morte como
rio que contempla auxílio moradia, auxílio um destino para um assaltante, é disso que
educação para os filhos, dar o seguinte eu estou tratando. Então eu estou trazendo
despacho quando existe, confirmada, a legí- o problema, problematizando uma coisa
tima defesa. Então repare, a minha crítica muito maior, que eu espero um dia, vai ser
não é se existe a legítima defesa ou se não publicado, talvez chegue ao conhecimento,
existe a legítima defesa, é qual é a lingua- porque na conclusão eu digo o seguinte:
gem, a construção que se faz daquela mor- não vai ser criminalizando, punindo policiais
te. O único exemplo de um Promotor de São na lógica que leva a essa política de exter-
Paulo: “24 de março de 2011. No seu gabine- mínio, porque a lógica da política de exter-
te o primeiro promotor de justiça do quinto mínio é uma lógica criminalizadora punitiva,
tribunal do júri de São Paulo, Rogério Leão que contempla até uma pena que nem está
Zagallo, redigiu seu pedido de arquivamento na Constituição, mas que nós, por meio da
do inquérito policial número 887/2010, relati- exceção, conseguimos contemplar dentro
vo aos fatos envolvendo uma tentativa de do marco legal. Eu não acredito que seja pu-
roubo em 16/09/2010 a um policial civil, Mar- nindo policiais que nós vamos resolver isso.
cos Antônio Teixeira Martins, que resultou na A minha proposta é a seguinte, vamos re-
morte de um dos assaltantes, Antônio Rogé- solver isso do ponto de vista político. Como
rio da Silva Pena, e a fuga do comparsa. Com resolveu a lei seca nos Estados Unidos
a palavra, o operador do direito”. Um policial quando tinha as gangues do Al Capone? Le-
civil foi assaltado por dois assaltantes, ele galizou. Se legalizar as drogas, Tenente Co-
mata um e o outro foge, essa é a cena e tem ronel, da mesma forma que se entrar ali
testemunhas que viram o assalto, está tudo agora o presidente da Ambev, o senhor co-
certinho, legítima defesa, na forma que o nhece a Ambev? A maior empresa do Brasil,
senhor falou aí, mas o policial não deu chan- maior que a Petrobrás. Sabe o que a Ambev
ce, lógico, ele tem que defender a vida dele. vende? Droga. O Presidente da Ambev ven-
42 de droga, mas ele é tratado com uma digni- biente social e essa violência praticada
dade em um ambiente social como o maior pelo adolescente não pode ficar impune.
empresário do Brasil, o que não acontece Isso é uma inversão da pauta. O que nós
com o “neguinho” que está com um pouqui- deveríamos estar discutindo hoje no Brasil
nho de maconha na mão. Por quê? Porque é a violência praticada contra o adolescen-
que ao comerciante de drogas ilícitas se te, porque nessa violência praticada contra
imputa todo o sofrimento das pessoas que a criança e o adolescente, o Brasil se en-
têm problema relacional com a droga e, em contra entre os piores países do mundo.
relação ao álcool, nós não imputamos as Mas ninguém fala nada. No programa do
mortes por cirrose, os acidentes de trânsito Datena, no programa do Wagner Montes,
e nem o alcoolismo ao Presidente da Am- no RJTV, no SPTV, no Jornal Nacional, nin-
bev? Por um único fato, porque o álcool é guém traz como escândalo a violência pra-
uma droga legal. No filme Cidade de Deus ticada contra a criança e o adolescente,
tem uma fala do locutor que diz o seguinte, principalmente se for negra e pobre da fa-
“Se as drogas fossem legalizadas, o Zé Pe- vela, aí que ninguém vai falar mesmo. Se
queno ia ganhar o prêmio de empresário do morrer na Zona Sul, nos Jardins, um loirinho
ano”. Então o que distingue um empresário bonitinho e tal, aí vai ter um escândalo, mas
digno, de um traficante indigno, é o marco se for um garoto negro e pobre... Vi nos au-
regulatório da legalização. E isso o proibi- tos de resistência garoto de quatorze anos,
cionismo fez de uma forma que temos que doze anos até, sendo morto. Então é disso
começar a trabalhar para desconstruir, que que nós estamos falando, estamos falando
é o princípio do bem e do mal, que está in- de um problema social onde a polícia é joga-
cluído em toda essa questão da letalidade da, Tenente Coronel, para segurar um proble-
que nós estamos falando. Eu me lembro de ma que ela não tem condição. E ela é jogada
uma frase do Eduardo Galeano, em que ele em uma situação de vulnerabilidade igual à
fala o seguinte: “Na luta do bem contra o do povo, porque a polícia é povo. Agora, nós
mal, é o povo que entra com os cadáveres”. E precisamos da polícia, porque não existe ci-
entra com farda e sem farda, porque os de dade, não existe comunidade, sem a ideia da
farda “são povo” também, Tenente Coronel. polícia. Existe hoje Estado Nação sem exérci-
“São povo”, porque são oriundos dos mes- to, mas não existe um Estado Nação sem po-
mos estratos daqueles que estão sendo lícia, porque a existência da cidade é correlata
matáveis. E são tão matáveis quanto eles, à própria criação da polícia. Mas nós precisa-
porque no jornal não sai uma linha quando mos, e eu acho que nós policiais temos essa
morre um traficante e também não sai uma missão, de fazer uma polícia mais próxima da
linha quando morre um policial. A vida de comunidade. O Rafucko, humorista, fez uma
um policial tem o mesmo valor que a vida entrevista comigo e me perguntou assim,
de um traficante. E quem lucra com essa com aquele seu jeito debochado, o que seria
proibição são os políticos, cada vez mais uma boa polícia. Eu falei, “Uma boa polícia é
com seus discursos punitivos, um grande uma polícia que se vê como comunidade e que
negócio da privatização dos presídios, da a comunidade vê a polícia como pertencente a
redução da maioridade penal, e isso tudo a essa comunidade. E isso não pode acontecer
criminologia radical tem que mostrar o as- no marco de uma guerra”. Porque nós vamos
pecto econômico da situação. Porque, re- definir, no ambiente social, pessoas que es-
pare: hoje o adolescente infrator vai ser tão de um lado e nós vamos estar do outro.
preso, porque ele é preso também, chama- De que lado nós estamos, Tenente? Produzin-
mos de internação, mas isso tudo é lingua- do essa letalidade toda? Nós estamos traba-
gem, figura de linguagem. Ele é preso, só lhando essa letalidade para quem, para quais
que ele fica preso só três anos. O projeto interesses políticos e econômicos? Aí vem a
hoje de reduzir a maioridade penal é fazer resposta, redução da maioridade penal, priva-
com que esse rapaz fique preso de cinco a tização do sistema prisional. Nos Estados
dez, quinze, que são as penas, por exemplo, Unidos, que é o grande exemplo da privatiza-
do tráfico. Qual é o discurso? O discurso da ção do sistema, são empresas de capital
redução da maioridade penal é que o ado- aberto, empresas S/A que administram o sis-
lescente está praticando violência no am- tema prisional. Os homens dos negócios, do
lucro, estão doidos para que a droga continue Adriana Eiko: Quero agradecer a todos e to- 43
proibida, porque vai gerar um encarceramen- das que estiveram aqui presentes, aos mem-
to em massa. Por que não legaliza? Porque dá bros dessa roda de conversa, dizer que esta-
mais dinheiro, ainda mais agora, privatizando mos abertos à continuidade desse diálogo.
o sistema. Então produzimos um dano muito Este foi um momento em que pudemos trazer
maior do que as drogas. Mais pessoas mor- a questão da política de Segurança à tona
rem nessa luta, pessoas que não usam nem e vários outros momentos serão também

Psicologia e Segurança Pública


drogas, crianças, senhoras que não têm nem colocados aqui para podermos aprofundar,
contato com droga, às vezes, e que morrem, debater. O Sistema Conselhos de Psicologia
ou seja, nós temos uma guerra que mata mui- já há algum tempo vem produzindo espaços
to mais que o consumo das drogas. Mas isso para podermos aprofundar o tema da política
não sensibiliza ninguém. Por quê? Porque de Segurança Pública e este, sendo mais um
nessa batalha, nessa guerra, só morre indig- desses espaços, já nos coloca a urgência de
no. Os dignos estão todos protegidos, nos construirmos outro, logo na sequência, para
seus negócios legais, lavando dinheiro da discutir não só os desafios, mas as proposi-
droga, os bancos lavando dinheiro das drogas ções, as políticas, a abordagem intersetorial
e nós aqui fazendo essa carnificina, no meio no campo da segurança, o quanto conse-
do povo, na luta do bem contra o mal, que é guimos avançar saindo da ótica apenas da

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aquilo que o Eduardo Galeano colocou. Então justiça criminal, dialogando com as Políticas
eu peço desculpa a todos os policiais que es- Públicas, enfim. Temos aí vários elementos já
tão presentes, pois o meu estudo pretende, colhidos e trazidos aqui por vocês nos deba-
não sei se vai conseguir, mas pretende tirar tes, nas perguntas, nas colocações que nos
um pouco do estigma de que a violência que apontam para emergência de dar continuida-
existe no ambiente social é oriunda de um de a essa conversa e com outros elementos
desvio de personalidade dos policiais. daqui para frente.

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