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a liberdade

ZYGMUNT BAUMAN

1989

EDITORIAL ESTAMPA LISBOA


FICHA TÉCNICA:

Título do original: Freedom


Tradutor: M. F. Gonçalves de Azevedo Capa: Carlos António de Oliveira e Sousa
Fotocomposição: Byblos-Fotocomposição, Lda. Impressão e Acabamento: Rolo e Filhos, Lda.
Editor. Editorial Estampa, Lda.
R. da Escola do Exército, 9 r/c. dt.2— 1100 Lisboa Copyrighe
Zygmunt Bauman, 1988
Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1989
para a língua portuguesa.
This edition is published by arrangement with Open University Press, Milton Keynes Depósito
legal n.226533/ 89
ISBN 972-33-0811-8

Introdução 9
I — O "Panopticon" ou a Liberdade como Relação
Social 21
II — Sobre a Sociogénese da Liberdade 49
III — Os Benefícios e os Custos da Liberdade 81
IV — A Liberdade, a Sociedade e o Sistema Social 115
V — O Futuro da Liberdade. Algumas Conclusões 143
Sugestões para Leituras Complementares 159
Índice Analítico 163
INTRODUÇÃO

"Podemos dizer o que quisermos. Estamos num país livre". Usamos e ouvimos esta expressão
com demasiada frequência para que possamos deter-nos e raciocinar sobre o seu significado;
tomamo-la como óbvia, explanatória em si mesma, não levantando problemas nem ao nosso entendi-
mento nem ao dos outros. Em certo sentido, a liberdade é como o ar que respiramos. Não
perguntamos o que é esse ar, não perdemos tempo a discuti-lo, a argumentar sobre ele, a pensar nele.
Isto é, a menos que estejamos numa sala apinhada e abafada, onde seja difícil respirar.
Este livro propõe-se demonstrar que aquilo que consideramos evidente e claro (se é que de qualquer
modo o consideramos) está longe de o ser; que a sua aparente familiaridade vem apenas do seu uso
frequente (e abuso, como veremos); que tem uma longa história, cheia de vicissitudes e raramente
recordada; que é muito mais ambíguo do que queremos admitir; que, em suma, a liberdade é muito
mais do que aquilo que parece.
Regressemos, por um momento, à expressão com que começámos. O que nos diz ela, se a
escutarmos atentamente?
Diz-nos, em primeiro lugar, que numa situação de liberdade podemos fazer o que numa situação
diferente seria impossível ou arriscado. Podemos fazer o que quisermos, sem receio de sermos
punidos, presos, torturados, persegui-

dos. Notemos, contudo, que a expressão nada nos diz quanto à eficácia da nossa actuação. "Um
país livre" não garante que aquilo que fazemos atingirá o seu objectivo, ou que o que dizemos
será aceite. Na verdade, o que essa expressão tacitamente admite é que a verdade ou a sensatez das
nossas afirmações não são condições para as fazermos; e que uma acção não tem de ser razoável
para ser permitida.
E, assim, a expressão diz-nos também que o facto de estarmos num país livre significa que tudo
o que fizermos é da nossa própria responsabilidade. Somos livres para buscar (e, com alguma
sorte, para atingir) os nossos objectivos, mas também somos livre para errar. O primeiro vem com
o segundo, em larga medida. Se somos livres, podemos ter a certeza de que ninguém impedirá a
acção que desejamos empreender. Mas não nos é dada a certeza de que aquilo que queremos fazer,
e fazemos, trará os benefícios que esperamos, ou mesmo qualquer benefício.
A nossa expressão sugere que a única coisa que importa para nos tornarmos e mantermo-nos
livres é o facto de a "sociedade livre", isto é uma sociedade de indivíduos livres, não nos
impedir de agirmos conforme os nossos desejos, e de nos limitar as possibilidades de sermos
punidos por essas acções. Aqui, porém, a mensagem torna-se enganadora. A ausência de
proibição ou de sanções punitivas é, de facto, condição necessária mas não suficiente para ac-
tuarmos de acordo com os nossos desejos. Podemos ser livres para sairmos do país se nos
apetecer, mas não termos dinheiro para o bilhete. Podemos ser livres para nos habilitarmos no
campo das nossas preferências, mas chegarmos à conclusão de que não há lugar para nós no sítio
onde queremos estudar. Podemos querer um emprego que nos interessa, mas verificarmos que
não existe nenhum disponível. Podemos dizer o que quisermos apenas para verificarmos que não
há processo de nos fazermos ouvir. Assim, a liberdade significa mais do que a ausência de
restrições. Para

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fazermos coisas, precisamos de recursos. A nossa expressão não nos promete tais recursos, mas
pretende — erradamente — que isso não tem importância.
A partir da nossa expressão e com algum esforço extra, podemos ainda ler uma outra mensagem.
Trata-se de uma afirmação que a expressão não defende nem nega, aberta ou tacitamente, mas
que simplesmente toma como dado adquirido, tal como uma pretensão que se adopta sem
discutir. Aquilo que a nossa expressão toma como dado adquirido é que, sendo-lhe dada
oportunidade, o indivíduo decerto "dirá o que lhe apetece" e "fará o que quer". Por outras
palavras, que o ser humano é — como que "por natureza" — a verdadeira fonte e o
verdadeiro dono das suas acções e pensamentos; que, entregue ao seu próprio critério, ele for-
mará e moldará os seus pensamentos e actos conforme quiser, segundo as suas intenções.
A imagem do indivíduo determinado pelas suas motivações, da acção individual como planeada
e intencional, uma acção "com um autor", pode ter sido tomada como dado adquirido, porque
tem estado firmemente implantada no senso comum do tipo de sociedade em que vivemos. Na
verdade, esta é a maneira como todos nós encaramos as pessoas e o seu procedimento.
Perguntamo-nos, "O que queria ele dizer?"; "O que buscava?"; "Para quê?" — admitindo assim
que as acções são efeitos das intenções e propósitos do agente e que, "para dar sentido" a uma acção,
não é necessário ir além dessas intenções e propósitos. Desde que acreditemos que as motivações
de cada um são as causas das respectivas acções, também admitimos que a responsabilidade total
e indivisível por essas acções pertence a quem as pratica (desde que a pessoa não tenha sido
"forçada" a fazer o que fez, isto é, que tenha sido livre).
Apoiadas no senso comum (isto é, nas opiniões de todos os outros) as nossas convicções
parecem-nos tão bem fundamentadas — realmente evidentes em si mesmas —

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que, de um modo geral, abstemo-nos de fazer perguntas minuciosas acerca da sua validade. Não
perguntamos de onde nos vieram originariamente tais convicções, e qual a experiência que dá
força à sua credibilidade. Assim, podemos não notar a ligação entre as nossas convicções e as
características muito peculiares da nossa própria sociedade —ocidental, moderna, capitalista
—. Podemos ficar — e ficamos realmente — alheios ao facto de a experiência que fornece
novas provas a favor das nossas convicções provir da estrutura legal que esta determinada
sociedade estabelece para a vivência humana. É esta lei específica que proclama o ser humano
individual como detentor de direitos, obrigações e responsabilidades; que torna o indivíduo, e
apenas o indivíduo, responsável pelas suas próprias acções; que define a acção como um género
de comportamento que tem a intenção do agente como sua causa e explicação últimas. É esta
lei específica que explica o que aconteceu aos desígnios que o agente estabeleceu para si
próprio. O que cria a experiência que continua a corroborar as nossas convicções não é,
evidentemente, a teoria legal (a maioria de nós nunca ouviu falar dela) mas a prática que se
lhe segue — os indivíduos assinando contratos em seu próprio nome, aceitando obrigações,
tomando responsabilidades pelos seus actos. Vemos que isto acontece constantemente à nossa
volta; e, por isso, não temos oportunidade de notar a sua peculiaridade. Vemo-lo mais como
algo que manifesta "a natureza das coisas", a "essência" universal e imutável do ser humano.
Através da maior parte da sua história, a sociologia não tem sido mais universal do que as nossas
convicções baseadas no senso comum ou as realidades sociais criadas pelo homem, que as
apoiam. A sociologia nasceu originariamente da experiência da sociedade ocidental, moderna e
capitalista, e dos problemas que esta experiência trouxe à discussão. A experiência surgiu, por
assim dizer, pré-acumulada,

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pré-interpretada; digamos que de acordo com as convicções baseadas no senso comum que já a
tinham tomado inteligível à sua maneira peculiar mas firmemente enraizada. É por isto que, quando
tentam avaliar o funcionamento da sua sociedade de uma maneira ordenada e sistemática, os sociólogos
têm tendência para seguir o senso comum, tomando como axioma que os indivíduos são
"normalmente" as fontes das suas próprias acções; que estas são enformadas pelos propósitos e
intenções dos agentes; que as motivações do agente fornecem as explicações últimas do rumo
que a acção tomou. A livre vontade e a singularidade de cada e qualquer indivíduo eram consideradas
"factos irracionais", um produto da natureza mais do que de disposições sociais específicas.
É, em parte, devido a este pressuposto, que a atenção dos sociólogos se voltou para a "não-
liberdade" mais do que para a liberdade; se esta última foi um facto da natureza, aquela deve ter
sido uma criação artificial, um produto de certos arranjos sociais, e daí sociologicamente mais inte-
ressante. No magnífico legado que osfundadores da sociologia nos deixaram, a "liberdade" aparece
relativamente pouco. No essencial da teoria social, as considerações quanto ao "condicionamento
social" da liberdade são poucas, espaçadas e marginais. Por outro lado, existe muito interesse e
observações profundas sobre as "coacções sociais", as pressões, as influências, a força, a coerção e
todos os outros factores criados pelo homem, que foram culpados de impedirem a liberdade —
esse dom natural de cada ser humano — de se manifestar.
O facto de a liberdade deixar de estar no centro das atenções, para o passarem a estar as suas
limitações, não deve surpreender-nos. A assunção da livre vontade tomou a ordem social um quebra-
cabeças. Olhando à sua volta, os sociólogos não podiam deixar de notar, tal como o notam as pessoas
vulgares que, de certo modo, a conduta humana é

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regular, segue determinados padrões, é, em larga medida, previsível; existe alguma regularidade
na sociedade como um todo — alguns acontecimentos têm muito mais probabilidades de se produzir
do que outros. De onde vem então essa regularidade, se o indivíduo dentro da sociedade é ímpar e
se cada um busca os seus próprios objectivos, exercendo a livre vontade? O facto de a acção
humana, suposta voluntária, não ser evidentemente casual, parecia um mistério. Assim como a
consideração de ordem mais prática que veio acrescentar-se à energia com que os sociólogos se
entregaram à exploração das "fronteiras da liberdade". Tal como outros pensadores da era do
Iluminismo, os sociólogos quiseram não só explorar o mundo mas também fazer dele um lugar
melhor para os homens viverem. Nesta perspectiva, a livre vontade do indivíduo parecia uma
bênção confusa. Com todos os homens buscando apenas os seus próprios interesses, os
interesses comuns poderiam ser mal servidos. Com indivíduos livres, como inevitavelmente são,
a própria manutenção da ordem na sociedade como um todo teria de ser objecto de um esforço
especial e, por isso, também de estudo aplicado. Mais uma vez, o que é preciso estudar é a
maneira como, pelo menos, algumas intenções individuais (socialmente perniciosas) podem ser
moderadas, atenuadas, ou pura e simplesmente suprimidas. Assim, o grande interesse pelas limitações
da liberdade tinha justificações tanto cognitivas como normativas.
Foi por estas razões que a sociologia se desenvolveu principalmente como uma "ciência da não-
liberdade". A principal preocupação de quase todos os projectos sociológicos, como programa
separado de investigação científica, era descobrir porque os indivíduos humanos, sendo livres,
actuam contudo de uma maneira quase regular e mais ou menos constante. Ou, se considerarmos a
mesma questão de um ponto de vista normativo, quais as condições que devem

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ser reunidas para conduzir as acções de indivíduos livres numa direcção específica?
E assim, conceitos como classe, poder, domínio, autoridade, socialização, ideologia, cultura e
educação constituiram o mapa sociológico do mundo dos homens. O que todos estes conceitos
e outros semelhantes tinham em comum era a ideia de uma pressão externa que estabelece os
limites à vontade individual ou interfere na acção real (como distinta da intencional). A
qualidade comum aos fenómenos que tais conceitos postulavam era o facto de alterarem a
direcção das acções individuais em relação ao rumo que elas mesmas tomariam se não tivessem
existido pressões externas. Além disto, os conceitos em questão pretendiam explicar a
previsibilidade relativa, a regularidade de conduta de indivíduos confessadamente actuando
para si mesmos, as motivações e os interesses particulares. Recordemos que esta última asserção
não era objecto de estudo ou de explicação; entrava no discurso sociológico como uma assunção
axiomática, evidente em si mesma.
Podemos dividir os conceitos relacionados com as pressões externas, extra-individuais, em
duas grandes categorias. O primeiro grupo de conceitos forma uma série de "coacções externas"
— muito semelhantes à resistência quase física, tangível, que um bloco de mármore opõe à
fantasia do escultor. As coacções externas são aqueles elementos da realidade exterior que
classificam as intenções individuais em praticáveis e irrealistas, e as situações que o sujeito
deseja atingir através da sua acção em altamente prováveis e muito pouco possíveis. O sujeito
continua a perseguir objectivos livremente escolhidos, e no entanto os seus esforços bem
intencionados desmoronam-se quando colidem com o sólido rochedo ou muro impenetrável do
poder, com o aparelho de classe ou coercivo. O segundo grupo de conceitos relaciona-se com
aquelas forças reguladoras que tendem a ser "interiorizadas" pelos indivíduos.

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Através de treino, exercício, instrução, ou simplesmente através do exemplo dos que nos
rodeiam, as próprias motivações, expectativas, ambições e esperanças do indivíduo são moldadas
de forma peculiar, de modo que o seu rumo não é inteiramente de acaso, desde o início. Esta
"descasualização" é postulada por conceitos tais como "cultura", "tradição" ou "ideologia".
Todos estes conceitos enfrentam uma hierarquia na produção social de convicções e de
motivações. Todas as vontades são livres, mas algumas são mais livres do que outras: algumas
pessoas que, consciente ou inconscientemente, desempenham a função de educadores, instilam
(ou modificam) as predisposições cognitivas, os valores morais e as preferências estéticas das
outras, e introduzem assim certos elementos comuns nas intenções e resultantes acções dessas
outras pessoas.
Assim, as acções humanas são regularizadas por forças supra-individuais que vêm abertamente do
exterior (como coacções), ou ostensivamente de dentro (como projecto de vida ou consciência).
Tais forças são inteiramente responsáveis pela não-casualidade da conduta dos homens, e por
isso não temos necessidade de rever as nossas assunções originais, ou seja a nossa visão dos
seres humanos como indivíduos equipados com uma vontade livre, determinando os seus actos
por meio das suas próprias motivações, objectivos e interesses.
A sociologia, recordemo-lo, surgiu como uma reflexão sobre um determinado género de
sociedade: aquela que se estabeleceu no ocidente durante a era moderna, em conjunção com o
desenvolvimento do capitalismo. A suposição de que a constituição dos seres humanos como
indivíduos livres tem qualquer coisa a ver com as características especiais deste tipo de
sociedade (em vez de ser um atributo universal da espécie humana) não pode ser rejeitada
imediatamente. Se a suposição é verdadeira, então o indivíduo livre surgirá como uma criação
histórica, muito semelhante

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à sociedade a que pertence. E as ligações entre esse indivíduo livre e a sociedade de que é
membro serão muito mais fortes e mais essenciais do que muitos sociólogos admitem. A
relevância da sociedade não estará confinada a erguer barreiras às aspirações individuais e à
"regulação cultural" ou à "direcção ideológica" das motivações individuais. Fará parte da própria
existência dos seres humanos como indivíduos livres. Não apenas a maneira como o indivíduo
livre actua, mas a própria identidade de homens e mulheres como indivíduos livres serão
reconhecidas como obra da sociedade.
A incidência limitada na história e no espaço da individualidade livre foi difícil de descobrir e de
compreender a partir de um discurso confinado a uma experiência igualmente limitada. O leitor e
eu estamos em boa posição para avaliar o quanto foi difícil. Um ser humano "não-individual",
uma pessoa que não tenha opções livres, preocupada com o estabelecimento da sua própria
identidade, com o seu próprio bem estar e satisfação, é algo que não podemos verdadeiramente
imaginar. Não encontra ressonância na nossa própria experiência de vida. E um monstro, uma
incongruência.
No entanto, histórica e antropologicamente, as investigações continuam a fornecer provas de que
este nosso indivíduo livre "natural" é uma espécie bastante rara e um fenónemo local. Foi
necessário um encadeamento de circunstâncias muito especial pàra o criar; e é somente enquanto
essas circunstâncias persistirem que ele pode sobreviver. O indivíduo livre, longe de ser uma
condição universal da humanidade, é uma criação histórica e social.
Esta última frase pode ser tomada como o tópico essencial deste livro. A intenção que está por
trás dele é, por assim dizer, tornar "o familiar" estranho; ver a liberdade do indivíduo (algo que
normalmente tomamos como dado adquirido, como uma qualidade que pode ser pervertida ou

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contrariada mas que está "sempre lá") como um enigma, como um fenómeno que tem de ser
levado em conta e 'explicado para ser compreendido. A mensagem do livro é que a liberdade
individual não pode e não deve ser encarada como dado adquirido, uma vez que aparece (e
desaparece, talvez,) em conjunto com um determinado tipo de sociedade.
Veremos que a liberdade existe apenas como relação social; que, em vez de ser propriedade,
fruição do indivíduo em si, é uma qualidade que faz parte de uma certa diferença entre os
indivíduos; 'que só tem sentido como oposição a algum outro condicionalismo, passado ou
presente. Veremos que a existência de indivíduos livres assinala uma diferença de condição
social dentro de uma determinada sociedade e que, além disso, desempenha um papel crucial na
estabilização e renovação dessa diferença.
Veremos que a liberdade, suficientemente disseminada para parecer uma condição humana
universal, é uma relativa novidade na história da espécie humana, uma novidade intimamente
relacionada com o advento da modernidade e do capitalismo. Veremos também que a
liberdade só pode ter pretensões a essa universalidade quando tiver adquirido o significado
especial indissoluvelmente ligado às condições de vida na sociedade capitalista, e que a sua
conotação particularmente moderna com "a capacidade para dominar o próprio destino" estava
relacionada muito de perto, quando surgiu, com aquelas preocupações com o artificialismo da
ordem social, que eram as características mais específicas dos tempos modernos.
Veremos que, na nossa sociedade, a liberdade é simultaneamente uma condição indispensável
à integração social e à reprodução sistemática, e uma condição continuamente recriada pela
maneira como a sociedade está integrada e o sistema "funciona". Esta centralidade da liberdade
individual como um elo que mantém unidos o mundo da vida

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individual, a sociedade e o sistema social foi atingida com o recente deslocamento da liberdade
para fora da área da produção e do poder e para dentro da área do consumo. Na nossa sociedade, a
liberdade individual é constituída fundamentalmente como liberdade do consumidor; depende da
presença de um mercado eficaz e, por sua vez, assegura as condições dessa presença.
Exploraremos por fim as consequências desta forma de liberdade para outras dimensões da
realidade social, e acima de tudo para o carácter da política contemporânea e para o papel do
Estado. Exploraremos a possibilidade de, com a liberdade individual firmemente estabelecida na
sua forma de consumismo, o Estado ter tendência para se distanciar das suas preocupações
tradicionais com. o "reajustamento" do capital e do trabalho e com a legitimização da estrutura
do domínio — tornando-se o primeiro menos relevante para a renovação do sistema, e ficando a
segunda convertida numa forma não-política, através do mercado de consumo. A possibilidade
que exploraremos a seguir será a conexão causal entre a diminuição das funções estatais
tradicionais e a crescente independência do Estado em relação ao controlo social e democrático.
Tentaremos entender o arranjo social emergente como um sistema de direito próprio, em vez de
o considerarmos urna forma doentia, desorganizada ou, de qualquer modo, terminalmente
enferma da primeira sociedade capitalista moderna. Também lançaremos um olhar breve sobre a
lógica interna da forma comunista da sociedade moderna, e sobre as consequências da ausência da
liberdade do consumidor para a condição do homem.

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I — O "PANOPTICON" OU A LIBERDADE COMO RELAÇÃO SOCIAL

A liberdade nasceu cprno um privilégio e assim se tem mantido desde então. A liberdade divide e
separa. Coloca os melhores aparte dos restantes. Vai buscar o seu atractivo à diferença; a sua
presença ou ausência marca e fundamenta o contraste entre o alto e o baixo, o bom e o mau, o
cobiçado e o repugnante.
Originariamente e de aí em diante, a liberdade representa a coexistência de duas condições sociais
nitidamente distintas; conseguir a liberdade, ser livre, significava ser guindado de uma condição
social inferior a outra condição superior. As duas condições diferiam em muitos pontos, mas um
aspecto da sua oposição — o que é captado pela qualidade da liberdade — elevava-se acima dos
restantes: a diferença entre a acção dependente da vontade dos outros e a acção dependente da vontade
própria.
Para uma pessoa ser livre tem de haver pelo menos duas. A liberdade pressupõe uma relação
social, uma assimetria de condições sociais; essencialmente implica diferença social — presume e
implica a presença de divisão social. Alguns podem ser livres somente na medida em que exista
uma forma de dependência a que possam esperar fugir. Se ser livre significa poder ir seja para onde
for (o: OED (*) faz remontar este costume a 1483), significa tam-

(*) Oxford English Dictionary (N.T.)

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bém que há pessoas que estão presas à sia casa e a quem é negado o direito de se deslocarem
livremente. Se ser livre significa soltarmo-nos das amarras e das obrigações (OED, 1596) ou do
trabalho e dos deveres morais (OED, 1697), isto só faz sentido graças aos outros que estão
amarrados, que suportam obrigações, que trabalham e têm deveres. Se ser livre significa agir sem
restrições (OED, 1578), isso implica que as acções de alguns outros são coagidas. No inglês
antigo e da Idade Média, liberdade significava sempre uma isenção — de impostos, de portagem,
de obrigações, de jurisdição devidos a um senhor. A isenção, por sua vez, significava privilégio:
ser livre queria dizer ter acesso a direitos exclusivos — de uma corporação, de uma cidade, de
um estado. Os que eram assim isentos e privilegiados entravam nas fileiras dos nobres e dos
ilustres. Até ao fim do século XVI "liberdade" era sinónimo de bem nascido e bem criado, de
nobreza, de generosidade, de magnanimidade — de todas as características que os poderosos e
os fortes reivindicavam como indício e razão da sua exclusividade e superioridade. Mais tarde
perdeu a sua conotação com o ser bem nascido. Mas conservou o seu significado de privilégio. O
discurso da liberdade incidia agora na questão de quem tinha o direito de ser livre dentro de uma
condição humana essencialmente não-livre.
A sociedade moderna difere das suas predecessoras pela sua atitude para consigo própria, mais
individualista do que colectivista. Vê a manutenção da ordem social (isto é, a contenção da
conduta humana dentro de certos parâmetros, e a previsibilidade do comportamento humano
dentro desses parâmetros) como um "fim": algo a ser mantido na ordem do dia, a ser
considerado, discutido, cuidado, tratado, resolvido. A sociedade moderna não acredita que possa
estar em segurança sem, consciente ou inconscientemente, tomar medidas para salvaguardar
essa segurança. Estas medidas significam, antes de mais, a orientação e a vigilân-

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cia da conduta humana: significam controlo social. Este, por sua vez, pode ser exercido de duas
maneiras. Podemos colocar as pessoas numa situação que as impeça de fazer coisas que não
queremos que façam; ou colocá-las numa situação que as encoraje a fazer coisas que queremos
que façam. Não queremos que certas coisas sejam feitas por serem julgadas prejudiciais à ordem
social. Desejamos que outras coisas sejam feitas porque julgamos que irão perpetuar e revigorar
a ordem social. Quer queiramos evitar a conduta indesejável quer queiramos incentivar a acção
desejável — proporcionar as condições apropriadas é a tarefa crucial. Mas esta tarefa divide-se em
duas: a prevenção e o incentivo. A prevenção é o objectivo da administração, se existe razão para
se crer que, deixadas ao seu critério, as pessoas se comportarão de maneira contrária à conduta
que a manutenção da ordem social exige. O incentivo é o indicado, se acreditamos que outras
pessoas, se lhes for dada oportunidade, optarão por acções que julgamos irem reforçar a devida
ordem das coisas. É a isto que diz respeito a oposição entre heteronomia e autonomia, controlo e
auto--controlo, arregimentação e liberdade.
A hábil interpretação de Michel Foucault revelou o significado da obra de Jeremy Bentham, o
Panopticon (título completo: O Panopticon; ou, a Casa de Fiscalização, contendo a ideia de
um novo princípio de construção aplicável a todas as espécies de estabelecimentos de
qualquer tipo, onde todas as pessoas têm de estar sob vigilância e em especial às penitenciárias,
às prisões, oficinas industriais, casas de correcção, asilos, fábricas, hospícios, instalações
para quarentena, hospitais e escolas: com um plano de administração adaptado ao princípio
(1)), como um vislumbre da natureza disciplinadora do poder moderno, o trata-

The Works of Jeremy Bentham, vol. 4, William Tait, Edinburgh, 1843.

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mento das pessoas como seu objectivo principal e a vigilância como sua técnica fundamental.
Porém, o que esta interpretação deixou de fora foi que, a juntar a tudo isto — uma proeza notável só
por si — o Panopticon foi uma visão da oposição entre liberdade e não-liberdade, entre acção
autónoma e acção comandada; que esta posição foi revelada não para ser apenas uma diferença
lógica entre dois tipos idealizados, mas também um relacionamento social entre posições
mutuamente determinadas dentro de uma estrutura social; e que ambas as partes desta oposição,
no seu relacionamento íntimo e complexo, eram apresentadas.como pro duto do tratamento
científico das classes, de urna administração intencional das condições sociais, concebido e con-
trolado por peritos munidos de conhecimentos especializados e de poder para actuar.
Os reclusos do "panopticon" (essa "máquina de controlo" universal) são definidos apenas pela
intenção que a sua reclusão deve servir — a intenção, está claro, daqueles que lá os puseram. Os
reclusos são objectos de "protecção segura, de reclusão, de solidão, de trabalho forçado e de
instrução"; a intenção que está por trás da sua condição é transformá-los em algo que eles não são
e que eles próprios não têm a intenção de vir a ser. Foi principalmente por causa desta ausência de
vontade que fizeram deles prisioneiros. As condições em que são colocados, durante a
reclusão, devem ser cuidadosamente calculadas, de modo a servirem o melhor possível os
propósitos de quem os aprisionou — propósitos como "castigar os incorrigíveis, vigiar os
loucos, modificar os maus, deter os suspeitos, empregar os ociosos, sustentar os desprotegidos,
tratar os doentes, ensinar aos mais aptos qualquer ramo de actividade ou treinar a geração que
surge nos caminhos da educação" (2); dependendo do seu objectivo, a reclusão varia a sua
identidade social. Pode

Ibid, p. 40.
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tornar-se "prisão perpétua na cela da morte, ou prisão preventiva antes do julgamento, ou


penitenciária, ou casa de correcção, ou casa de trabalho, ou fábrica, ou hospício, ou hospital, ou
escola". Contudo, as condições dos reclusos não variam com a identidade social da reclusão.
O que se segue é que as condições sociais adequadas às várias categorias de reclusos não são
avaliadas pelas qualidades intrínsecas destes (por exemplo, se são velhos ou jovens, saudáveis
ou doentes, culpados ou não de um crime, moralmente desprezíveis ou inocentes, corruptos para
além da regeneração ou necessitados de correcção, merecendo castigo ou cuidados), mas pela
coordenação (ou antes, pela sua ausência) entre as acções prováveis dos reclusos quando
deixados aos seus próprios estratagemas e a conduta requerida pelos objectivos da sua
reclusão. Não interessa se a suspeitada discrepância entre esta e aquelas deveria ser atribuída à
má vontade dos reclusos ou à sua enfermidade física ou mental, ou à sua imaturidade ou
imperfeição psicológicas. A única coisa que realmente interessa é que a conduta desejada possa
ser provocada apenas pela vontade dos outros — estando a vontade dos reclusos ausente ou de-
liberadamente "abafada" ou suprimida.
O que une os internados do "panopticon" (seja o papel deste eventual ou funcional) é a
intenção do director de substituir a vontade inexistente ou insegura dos internados pela vontade
dos inspectores. É a vontade dos inspectores (guardas de prisão, capatazes, médicos,
professores) que deve definir, orientar e controlar a conduta dos reclusos. Note-se que não
importa o que os reclusos sentem acerca das coisas que lhes mandam fazer; também não importa
se eles consideram as ordens legítimas ou se "interiorizam" e tornam suas as intenções dos seus
inspectores. O "Panopticon" não se preocupa com o que os internados pensam —apenas com o
que fazem. O domínio ideológico, a hegemonia cultural, a doutrinação, ou seja qual for o
nome do

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esforço para conseguir a subordinação espiritual, pareceriam, dentro do contexto do


"Panopticon", uma excentricidade irrelevante e injustificável. Ninguém perguntará se os reclusos
farão por fim, de boa vontade, o que quer que tenham de fazer — partindo do princípio de
que o fazem.
Reduzir a questão da reforma moral ao esqueleto da heteronomia do comportamento era
provavelmente arriscar a acusação de cinismo. Fluía com demasiada evidência perante as
pretensões liberais, destoava com excessiva estridência da retórica do indivíduo moralmente
soberano. Bentham antecipara-se à acusação e decidira enfrentá-la sem rodeios. Para se
adiantar à cólera dos críticos liberais articulou, em vez deles, as respectivas dúvidas: "o espírito
liberal e a energia de um cidadão livre não seriam substituídos pela disciplina mecânica de um
soldado, ou a austeridade de um monge? — e o resultado deste plano altamente elaborado não
viria a ser a criação de um conjunto de máquinas à semelhança de homens?" E indicava aquilo que
via como prova definitiva de que as dúvidas eram infundadas e os receios mal orientados:
Para dar uma resposta satisfatória a todas estas interrogações, que são subtis, mas que,
nenhuma delas, se refere ao essencial, seria preciso reportarmo-nos imediatamente ao objectivo
da educação. Teria a felicidade mais hipóteses de ser aumentada ou diminuída, por meio desta
disciplina? — Chamemos-lhes soldados, chamemos-lhes Monges, chamemos-lhes máquinas;
talvez fossem, mas eram felizes, por isso não me importo. As guerras e as tempestades são
melhores para serem lidas, mas a paz e a calma são melhores para desfrutar. (3)
"O espírito liberal de um cidadão livre" não seria, segundo todas as probabilidades, cultivado
pelo "panopticon". Mas a paz e a calma estariam garantidas, e com elas

(3) Ibid, p. 64.


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a felicidade dos reclusos. O que a paz e a calma ao estilo do "panopticon" significam, não é difícil
concluir a partir da totalidade da argumentação de Bentham, notável na sua unidade e na
coerência dos seus raciocínios. A condição de "paz e calma" tem duas faces. Objectivamente é
caracterizada pela regularidade, constância e previsibilidade do contexto externo da acção dos
internados. Nada é deixado ao acaso e não existem alternativas realistas que sobrecarreguem os
reclusos com a necessidade de escolha. Não existe nada em que ter esperança, mas também não
existe nada a recear. Subjectivamente a condição de "paz e calma" significa que aos internados
é dada a certeza de que a sua conduta não está em desacordo com as exigências dos seus
inspectores, e por isso não é provável que incorra na ira que, juntamente com o castigo, os
inspectores esbanjariam com os insubordinados. Uma vez que os superiores não exigem mais do
que conformidade de comportamento, a arte de tornar firme o fluxo de recompensa é fácil de
aprender e não arrasta quem aprende para qualquer conflito, porque não envolve contradição ou
ambiguidade moral. Entre si, as duas faces da "paz e calma" fornecem os ingredientes ne-
cessários e suficientes para a felicidade. A "soberania do indivíduo", a liberdade de escolha não
aparecem entre eles.
Porém, o recluso de Bentham não é um boneco com pernas e braços, movido apenas por
cordelinhos exteriores. Crê-se que são seres pensantes, capazes de raciocínio; fazem opções, e a
sua conduta é sempre consequência de uma. Também lutam pela felicidade, como todos nós.
E podemos ter a certeza de uma coisa: em larga escala, terão tendência para tomar decisões que
lhes trarão mais, e não menos, felicidade. No entanto, fazer opções é um meio para buscar a
felicidade e não a felicidade em si. Por esta" razão, quem faz opções deverá preferir a "paz e a
calma" que, uma vez atingidas, não deixarão espaço nem oportunidade de escolha.

27

O inventor do "panopticon" pode garantir facilmente a regularidade dessa preferência tomando


as vantagens da "paz e da calma" ainda mais evidentes — permitindo apenas a alternativa
menos atraente. Assegura ao futuro director do "panopticon" (preocupado com a hipótese de
este querer extrair trabalho útil e proveitoso dos seus pupilos) que nenhum esforço extra será
necessário para suprir as pressões já existentes nas condições austeras dos interna dos. O futuro
director, nas palavras de Bentham,
não achará necessário perguntar-me como deve agir para persuadir os seus pensionistas a
trabalhar. ---- Mantendo-os sob este regime, não posso imaginar que melhor certeza pode
desejar do trabalho deles, e dando eles o seu máximo. De qualquer maneira, muito melhores
certezas do que pode ter em relação à aplicação e ao esforço de qualquer trabalhador vulgar, de
um modo geral, que seja pago ao dia e não à peça. Se um homem não quiser trabalhar, não terá
mais para fazer, de manhã à noite, do que comer o seu pão duro e beber a sua água, sem
ninguém com quem falar... Este incentivo é necessário para que ele faça o mais que puder:
mas mais do que isto é desnecessário. (4)
Comparada com o pão duro, a água e a solidão dentro de uma cela, qualquer mudança
incluindo o trabalho violento e o máximo da fadiga — pareceria uma recompensa. A escolha é,
na verdade simples, e até das pessoas destituídas de capacidade para um comportamento correcto e
útil se pode ter a certeza de que mostrarão a preferência certa. Essa certeza fundamenta-se na
própria simplicidade da escolha e não nas virtudes putativas de quem escolhe. É tarefa do
"regime", que dá pelo nome de "panopticon", preservar esta simplicidade de escolha. Tal tarefa é
cumprida se, e apenas se, os regulamentos têm o objectivo de proibir e eliminar toda a conduta
que não declaram obrigatória — e se são

(4) Ibid, p. 54.


28

apoiados por recursos próprios para tornarem tal intenção realista.


A essência do Panopticon é oferecer estes recursos, que são seguros e baratos; que tornam a
tarefa fácil de desempenhar, reduzindo-a a acções de rotina. Esses recursos, diz Bentham, são
gerados por uma certa organização do espaço, na qual se contêm tanto os internados como os
directores; e em especial por um plano específico do edifício destinado a vários fins. Mas, por
trás deste artifício arquitectónico, está um princípio muito mais vasto do que a sua aplicação
específica, limitada pelos horizontes tecnológicos da sua época.
Nas próprias palavras de Bentham, a essência do "panopticon" consiste na "centralidade da
posição do director, juntamente com as invenções bem conhecidas e muito eficazes para ver
sem ser visto". Quer dizer, a essência é a assimetria do conhecimento: o inspector sabe tudo a
respeito dos reclusos, enquanto os reclusos nada sabem a respeito do inspector. A colocação e as
acções do inspector estão envoltas em mistério, invisíveis e, portanto, imprevisíveis, enquanto tudo
o que o recluso faz está sob constante observação, permanentemente aberto à avaliação e à
contra--acção correctiva. Ou, pelo menos, assim deve parecer aos internados. A observação
contínúa efectiva seria uma boa coisa, mas muito dispendiosa — se é que seria possível. Assim,
"o que se deve desejar a seguir", sugere Bentham, é que o recluso "a cada momento, vendo
razões para assim crer, e não sendo capaz de se convencer do contrário, se imagine a si próprio
"sob inspecção" ". (5) A vulnerabilidade da privacidade do recluso ao olhar dos estranhos deve ser
constantemente uma suposição plausível. Verdadeiramente importante é a "omnipresença
aparente" (a ênfase é do original) do inspector. Convencidos de que os olhos dos

(5) Ibid, pp. 40, 44.


29
superiores estão sempre sobre si, os internados nunca se comportarão como o fariam se os
deixassem entregues às suas próprias tendências; não terão oportunidade para exercer a sua
própria vontade, e assim a sua vontade enfranquecerá e estiolar-se-á por falta de uso. A
permanência e a ubiquidade de controlo não se limitará a privar os reclusos da sua liberdade: se
for eficaz, tornará os reclusos incapazes de ser livres, de escolher e dirigir a sua própria actuação,
de estruturar e administrar a sua própria vida. Precisarão então do inspector para organizar, em
vez deles, as suas vidas; o seu tipo especial de felicidade, a sua "paz e calma", precisarão agora
da não-liberdade, da heteronomia, para serem por fim atingidas. Toda esta milagrosa reforma
será realizada sem sermões morais, sem pregar ideais ou comprometer a alma e o espírito dos
internados de qualquer outra maneira. O que é necessário é meramente um controlo externo do
comportamento; e isso depende apenas da organização adequada da rede de dependências
externas, com a assimetria de acesso à informação como seu princípio supremo.
"Ver sem ser visto" torna o inspector livre em relação aos internados que vigia. A liberdade dos
inspectores consiste, neste caso, na independência da sua acção relativamente ao que os
internados fazem ou desejam, e na sua capacidade para tratar os internados como objectos da
sua própria vontade — na habilidade para influenciar e modificar a acção dos internados, para
substituir a vontade destes pela sua, corno detonador e determinante da conduta desses mesmos
internados. A combinação da independência de com o domínio sobre, constitui a liberdade dos
inspectores em relação aos internados. A liberdade é uma face do relacionamento, que tem como
outra face a heteronomia e a ausência de vontade. Os inspectores são livres em relação aos
reclusos na medida em que a liberdade de acção continua eliminada da condição dos reclusos.
Sendo relativa, a liberdade dos inspectores aponta

30

numa única direcção. Existem domínios em que os todo-poderosos e omnipresentes


inspectores não são livres, tal como os reclusos em relação a eles. Os inspectores, afinal, foram
colocados no "panopticon" para desempenharem uma tarefa específica que não foi da sua
escolha: vigiar e mandar. Tal tarefa não é necessariamente gratificante, sendo, quando muito,
uma maneira satisfatória de ter uma vida decente — e por isso não se pode confiar em que os
inspectores se abstenham de fazer bastante menos do que a tarefa exige — sempre que sintam
que podem escapar. Por isso, deve fazer-se ao pessoal do "panopticon", como a qualquer pessoa
que controle o comportamento de outras, uma das mais embaraçosas perguntas de cariz
político, "Quis custodiet ipsos custodes?". Porém, o plano do "panopticon" leva em conta este
problema — e assim, afirma-nos Bentham, resolve-o de modo muitíssimo eficaz. Nele, "os
guardas de segunda ou sub-inspectores, os funcionários e subordinados de todos os géneros,
estarão sob o mesmo irresistível controlo em relação ao chefe dos guardas ou inspectores tal
como os prisioneiros ou outras pessoas subjugadas em relação a eles". (6) 0 controlo irresistível dos
inspectores é assegurado pela aplicação do mesmo princípio que se aplica para assegurar o
controlo irresistível dos reclusos: através da àssimetria do conhecimento. O interior da cabina
central ocupada pelo inspector é opaco e invisível para os internados: mas é completamente
transparente para o olhar do chefe dos guardas. Os inspectores não devem saber quando

o seu supervisor decide observá-los a trabalhar; é livre de o fazer sempre que queira sem ele
próprio ser visto. Para os inspectores ele é "aparentemente omnipresente", tal como os
inspectores para os reclusos: esta liberdade do chefe dos guardas em relação aos inspectores
impõe limites à liberdade relativa destes em relação aos reclusos: incluírem no ) Ibid, p. 45.
(6

31

seu leque de opções não exercerem controlo sobre os seus pupil9s é algo que lhes é interdito; os
inspectores não são livres para admitirem a liberdade dos internados. Pelo menos, a sua
liberdade não é completa. Não se pode permitir que seja completa porque a lógica da situação em
que os inspectores estão inseridos (como empregados com direito a um salário invariante pelas
suas horas de trabalho, que encaram as suas tarefas mais como um trabalho que tem de ser feito
pela consequente remuneração do que pelos seus atractivos) não garante que a sua conduta
estará normalmente em concordância com os fins a que se destina o estabelecimento em que
trabalham. Um comportamento indesejável e prejudicial é uma possibilidade que não se pode
excluir. Tal comportamento deve, pois, ser evitado artificialmente, por meio de precauções
adequadas. Daí a necessidade de um esquema que determine a heteronomia dos inspectores
num aspecto crucial da sua actuação.
O quadro muda completamente quando damos um passo para cima, para aquele "quis" que
"custodiet", para o próprio chefe dos guardas. O "panopticon" será entregue por contrato pelos
seus projectistas a um empresário livre, a um licitante que estará atento à melhor oportunidade
para transformar as mãos dos internados num produto de mercado, e, em consequência, o
próprio "panopticon" numa empresa lucrativa. O chefe dos guardas adjudicador teria então os
seus próprios interesses a defender; e estes aconselhá-lo-iam a tratar de manter os internados
saudáveis e fortes, a cuidar que não se esquivem ao trabalho, a fazer com que adquiram
hábitos de trabalho e assim se vão gradualmente corrigindo, se essa era a razão do seu interna-
mento. Logo que estes interesses estejam a funcionar, pouco ou nenhum controlo será
necessário. Pode ter-se a certeza de que o adjudicador usará o "panopticon" para os fins para
que foi projectado. Pode estar-se seguro de que o seu desejo de lucro e o seu receio de prejuízo o
motivarão para

32

o tipo de actuação adequado — isto é, o tipo de actuação necessário para manter o


"panopticon" em movimento, e num movimento na direcção certa. Este guarda de alto.nível será
seguramente guardado pela sua própria cautela. A razão ensinar-lhe-á que o seu interesse
pessoal exige que o objectivo do "panopticon" seja completa e constantemente realizado.
A decisão de como o "panopticon" deve ser usado para que o seu objectivo seja realizado, com
maior eficiência e segurança, pode também ser deixada confiadamente ao interesse adjudicador.
À pergunta deste "Em que trabalhos posso aplicar os meus homens?" Bentham sugere uma res-
posta clara e concisa: "Em todos aqueles que consiga convencê-los a empreender". (7) E assim com
todas as outras perguntas que o adjudicador ache necessário fazer. Tendo projectado o
"panopticon" e assegurado assim as condições gerais para um trabalho a ser feito com sucesso
— tanto com eficiência como com pragmatismo — os projectistas passam agora as
responsabilidades para o adjudicador. Os projectistas têm pressa de se retirar da cena
completamente e evitam todas as tentações para se intrometerem mais no trabalho diário que
criaram. Dizer ao adjudicador o que deve fazer, não acrescenta nada de útil à combinação da
lógica arquitectónica do "panopticon" com os cálculos orientados para o lucro do adjudicador;
só pode erguer uma barreira entre os dois, e assim diminuir o potencial intrínseco da combinação.
Toda a lei que se destine a "impedir os homens de seguir as profissões de que possam tirar mais
vantagens" é prejudicial e deve ser evitada em todas as circunstâncias. "Imploraria que essa
lei fosse banida de dentro dos meus muros", diz Bentham em nome do futuro adjudicador. E di-
lo não apenas por causa do lucro particular do adjudicador, mas também (e os dois são
insepará-

7
) Ibid, p. 49.

33

veis) por causa do êxito do "panopticon" como fábrica de ordem social. É isto exactamente
que faz a liberdade do adjudicador tão especialmente desejável, tão infinitamente mais útil
socialmente do que a administração por parte de funcionários dependentes e vinculados à lei:
Adoptai o plano do contrato — as normas nesta perspectiva são um, incómodo: por poucas que
sejam, serão demais. Rejeitai-o — por muitas que sejam, serão poucas. (8)
O poder e a propensão geram acção: juntai-os — o fim será atingido, o trabalho feito. (9)
No seu estudo da lei criminal em Inglaterra e da sua prática no limiar da Revolução Industrial,
admiravelmente inteligente e profundo, Michael Ignatieff falou acerca das "duas pessoas" de
Bentham — o defensor da reforma parlamentar e o publicista do "panopticon" — como sendo "não
contraditórias, mas complementares".
A extensão dos direitos dentro da sociedade civil tinha de ser contrabalançada pela extinção das
liberdades tácitas de que gozavam os prisioneiros e os criminosos sob o ancien régime. Numa
sociedade desigual e cada vez mais dividida, esta era a única maneira de ampliar a liberdade e
fortalecer a harmonia sem comprometer a segurança. (10)
A contradição entre a existência dos internados, totalmente heterónoma e maquinal, por um lado,
e a condição do chefe dos guardas-adjudicador-empresário, totalmente livre e autónoma, por
outro, com os inspectores (na sua dupla identidade como funcionários servidores do chefe dos
guardas e como chefes dos internados) de permeio, não podia

(g) Ibid, p. 125.


(9) Ibid, p. 126.
A Just Measure of Pain. The Penitentiary in the
Michael Ignatieff, Industrial Revolution 1750-1850,
Macmillan, Londres, 1978, p. 212.
34

ser mais profunda. No entanto esta contradição não era de modo algum uma consequência
desastrada de um conjunto de princípios intrinsecamente inconsistentes; nem era uma tolice lógica.
Ao contrário de muitos filósofos da liberdade, dos direitos humanos ou da condição humana em
geral, ao tentarem explicar (ou legislar sobre) a sociedade em termos de uma "essência" universal
da espécie humana como um todo ou de cada sujeito em particular, Bentham estava perfeitamente
consciente de que o objectivo de garantir a segurança e a fácil reprodução da ordem social apenas
pode sedimentar duas modalidades sociais nitidamente opostas e no entanto mutuamente
condicionantes e justificadoras: uma tendo como horizonte ideal a liberdade total, a outra
lutando pela dependência total. O "panopticon" não era um instrumento limitado aos segundo pólo
dessa oposição; não era uma invenção destinada a usar os restos produzidos pela extensão dos
direitos civis e políticos que Bentham preconizava na segunda das suas duas "pessoas". Com um
mínimo de esforço pode interpretar-se o Panopticon como sendo uma alegoria da sociedade em
geral — uma sociedade viável, uma sociedade ordeira, uma sociedade sem crime e onde seja
fácil detectar e resolver a não-cooperação, uma sociedade que procure activamente o maior
benefício e a maior felicidade para os seus membros, uma sociedade provida de todas as
funções e cargos indispensáveis para a sua sobrevivência e para o seu sucesso. Num tal sociedade,
demonstra-o o Panopticon, a liberdade de alguns torna a dependência de outros necessária e
lucrativa; enquanto a não-liberdade de uma parte torna a liberdade de outra possível. O
"panopticon" não é um suplemento à reforma parlamentar; faz parte desta, como sua própria
condição e legitimação.
Longe de ser um patife da insularidade ascética do "panopticon", o chefe de guardas-
adjudicador é uma personagem arrancada por Bentham, aberta e orgulhosamente, à

35

vida de todos os dias. "Quereria ter como meu adjudicador — um homem que, dedicado a
qualquer tipo de trabalho fácil de aprender, e saindo-se bastante bem com os braços que pôde
conseguir em condições normais, espere fazer ainda melhor com um maior número de braços
que possa conseguir em condições muito melhores." (11) Homens que buscam livremente os seus
interesses, e que, enquanto o fazem, adquirem a capacidade para dirigir e regulamentar o trabalho
de outros homens, nascem por toda a parte, cada vez em maior número. O "panopticon" não é
uma instituição especializada na luta contra o crime que exige do seu chefe a aquisição de novas
capacidades ou a transformação das antigas. É, pelo contrário, uma oportunidade de fazer o que
"homens entregues a uma trabalho fazem bastante bem" e de o fazer ainda melhor, em
condições conscientemente criados para esse fim e de quem, por isso, se esperam maiores lucros
com o mesmo investimento de esforço.
Nem tão-pouco os reclusos do "panopticon" são criaturas de um outro mundo, sequer uma
categoria especial e criminal de seres humanos necessitando de leis baseadas nos costumes.
Tal como pintada por Bentham, o seu retrato é demasiado familiar. Não se tem dificuldade em
reconhecer a semelhança com a "mão-de-obra" das fábricas. É a imagem desta última, da
origem normal do seu comportamento, dos motivos que a levam a esforçar-se e dos que a levam a
ficar inactiva, da suposta necessidade de um ambiente devidamente organizado que escolhe
para "a mão-de-obra das fábricas" o tipo de conduta que a própria mão-de-obra das fábricas é
aparentemente incapaz de escolher — que fornece inspiração para o retrato. O recluso tem
todas aquelas características contidas na imagem da mão-de-obra das fábricas, e o propósito do
"panopticon" é, uma vez mais, proporcionar as condições perfeitas para a melhor

(11) The Works, p. 50.


36

utilização da força e da fraqueza humanas, já presentes nas pessoas geralmente confinadas


dentro dos seus muros. "Supondo que não existiam regulamentos judiciosos feitos por alguém,
que os obrigassem a fazer esta ou aquela espé„cie de trabalho, o trabalho que naturalmente lhes
seria distribuído por um adjudicador, seria aquele, fosse ele qual fosse, que daria mais
dinheiro; pois que, quanto mais o prisioneiro-trabalhador ganhasse, mais o patrão poderia
arrancar-lhe.” (12)
Assim, o Panopticon pode ser interpretado como um modelo descritivo da sociedade no seu
todo; um modelo em miniatura, confinado a um edifício rotativo, mas, o que é mais importante,
um modelo corrigido e melhorado, um modelo idealizado para uma sociedade "perfeita".
Uma sociedade que, ao contrário da original imperfeita, não é controlada nem de mais nem de
menos, visto que concentra o zelo controlador nos locais onde ele é necessário, e o exclui dos
outros; uma sociedade que consequentemente elimina o crime, reprime o comportamento
socialmente prejudicial, elimina o desperdício industrial; uma sociedade que classifica
cuidadosamente os seus membros em categorias reconhecidamente diferentes e que, por isso,
gozam das diferenças medidas de liberdadç e de não-liberdade que melhor sirvam o
funcionamento harmonioso do todo e, portanto, a felicidade de todos; uma sociedade que,
graças a tudo isso, proporciona a todos os seus membros um ambiente seguro, pacífico e
ordeiro para o tipo de acção a que cada membro melhor se adapte.
Na sua ambição (seja ela manifesta ou disfarçada), embora não na sua intenção ou na sua
modéstia assumida, o Panopticon pode ser comparado ao modelo de sistema social
laboriosamente construído. por Parsons. O que ambas as obras procuram é nada menos do que
um modelo de

(12) p. 50.

37

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no :wripuog ap u.lopuianuoo uu!nbylu up uopspoiouno num Jod opuiuosuoo aluowownj a
opuiduo á suSuaJapp SESOi -ownu su anua anbuisop ap Jr2ni nas o Suosied ap oiopow
o opun2as opulaJdialui á uo3pclouvd o anb ZOA utun
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`oluuTua ou ,a -caIs9doid oomt wn Iod supruguu ops suprzHuapi suo mi sunp sy -

supiod ap ow!ujw o o (opujoiluoo anb waq os) oluom!puoi ap owpcpw o gznpoid ap a r!


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su Juia2 ap zudeo SUJO.1"81 sOlu0.10 pp u ionpidepu '0A -IS000 O osopaowieg `opuJqmnba waq
.

`uumunq ouSultquoo
descontentamente com os conceitos existentes de acção humana, todos eles cegos à
ambiguidade inerente à actuação em sociedade. Parsons expôs o seu próprio objectivo: queria
uma teoria de acção que acabasse com a fraqueza tradicional das suas predecessoras pondo em
relevo, simultaneamente, a natureza voluntária e o carácter não-casual da acção. Esta
combinação de facetas aparentemente inconciliáveis era, acreditava Parsons, uma característica
inamovível de toda a acção, urna "essência" fenomenológica da condição do actor. Dada esta
incongruência lógica inerente a cada acto, sendo esta dualidade uma verdade transcendente e a
priori de toda a acção, Parsons acreditava que o simples acto na sua forma generalizada
("uma acção como tal") era o ponto de partida certo para teorizar sobre a sociedade. E foi o
que fez. Gradualmente, construiu um modelo de sistema social em que cada actor partilha a
mesma essência universal: escolhe livremente, enquanto ao mesmo tempo às suas acções é
retirado o carácter casual pelo sistema cultural comum e por funções socialmente distribuídas
(e diferenciadas). Tal corno todos os actores representam a mesma transcendente dualidade de
acção, a maneira como as tendências a priori do actor, o sistema cultural e a estrutura social
intervêm (para produzir resultados comportamentais empiricamente encontrados) é a mesma
para todos os actores. A teoria geral de Parsons sobre a sociedade é uma teoria da totalidade
composta por unidades basicamente idênticas.
Escolher o actor e a sua acção como ponto de partida para teorizar sociologicamente e postular
a homogeneidade essencial dos actores, são actos que se condicionam e validam um ao outro;
um toma o outro simultaneamente plausível e necessário. Que é este o caso pode ser
demonstrado não apenas pela análise lógica mas também por um exame da maior parte da
teoria sociológica. A combinação da hipótese da homogeneidade dos actores (a perspectiva de
"o

40

actor como tal") com a decisão de escolher a acção social para ponto de partida para uma
teoria da sociedade (por vezes toda a sua esfera) não tem, de modo algum, estado confinada a
Parsons; é partilhada por Parsons com os seus críticos mais notáveis, por exemplo
etnometodologistas e por toda a teorização pós-Schutz, juntamente com ramificações da teoria
contemporânea de inspiração hermenêutica ou Wittgensteiniana. Todas estas variedades da
teoria sociológica requerem o conceito de um agente com liberdade de escolha como elo
essencial da sociedade. Sendo tais agentes os membros da sociedade, todos têm acesso aos
conhecimentos ao seu alcance; todos eles se movem entre várias esferas limitadas de pensamento;
todos eles decidem quanto às suas respectivas relevâncias, caracterizam, usam linguagem,
produzem e decifram pensamentos, etc.. Tudo o que é necessário à condução da vida de todos
os dias é partilhado por todos os actores. Qualquer interacção que se segue é obra de membros
essencialmente semelhantes e igualmente apetrechados.
A diferença, e não a semelhança, é o pressuposto inicial do modelo de Bentham. Alguns actores
são mais livres do que outros; a discriminação no grau de liberdade conferida a várias
categorias de actores é a matéria-prima de que o sistema social é moldado. A discriminação
precede a acção. O conteúdo e o potencial da acção dependem do lugar que ela ocupa na
estrutura da interacção, na qual os que são livres para escolher limitam a escolha daqueles que
estão colocados no lado que recebe. Em vez de ser um resultado antecipado da acção recíproca
entre agentes "fenomenologicamente iguais" e igualmente livres, a ordem social é algo que as
pessoas conferem a outras. Dentro da ordem social, as situações diferem no grau de liberdade
que oferecem e requerem dos seus dirigentes. Se é verdade que "os homens fazem a sociedade",
também é verdade que alguns homens fazem o tipo de sociedade em que outros homens têm de

41
viver e actuar. Algumas pessoas estabelecem normas; outras seguem-nas.
Indo buscar a sua inspiração à análise sistemática cibernética, Michel Crozier ligou o poder
dentro de qualquer estrutura social organizada ao controlo sobre as fontes da incerteza; os mais
próximos das origens da incerteza (aqueles cuja conduta é a fonte de incerteza para a situação
de outros), governam. (13) A acção pode gerar incerteza na medida em que está livre de
regulamentos normativos (legais ou consuetudinários); a ausência ou escassez de normas
torna a conduta pouco previsível, e por isso quem é afectado pela conduta em questão está sujeito
aos caprichos da vontade daqueles que podem escolher livremente. Por outro lado, as pessoas
podem ignorar o comportamento dos participantes na interacção que estão obrigados a normas e
por isso se comportam rotineiramente, duma maneira facilmente previsível: um comportamento
repetitivo, monótono não constitui a "incógnita" da equação situacional e poderá ser relegado
para o domínio dos pressupostos fáceis.
À luz desta análise, a liberdade aparece como capacidade de dirigir; como uma solicitação de
poder. A liberdade é poder, na medida em que existem outros que são sujeitados.
Como que antecipando o conhecimento cibernético, Bentham construiu o seu modelo de
um sistema viável, eficaz e de funcionamento harmonioso usando a diferenciação da liberdade
como principal elemento constitutivo. O sistema de Bentham consiste em contextos de
interacções relacionais, não de papéis isolados entregues a actores isolados, como nos modelos
de Parsons e semelhantes. Neste sistema, toda a atenção do arquitecto está concentrada em

(13) Comparar com Michel Crozier, The Bureaucratic Phenomenon, University of Chicago Press,
1964; e também: W. Ross Ashby, "The Application of Cybemetics as to Psychiatry", in Alfred
G. Smith, (ed.), Communication and Culture, Harcourt, Brace, Jovanovich, Nova Iorque, 1966.
42

tornar a conduta de uma parte transparente para a outra (literalmente, expondo-a ao exame
constante desta; indirectamente, empurrando-a para um espaço que contém pouca ou nenhuma
escolha), e em tornar a conduta da outra parte tão opaca à primeira quanto possível (através do
artifício de "ver sem ser visto"; e retirando virtualmente toda a coacção à liberdade de escolha
da outra parte). Por meio da oposição entre transparência e opacidade — ou, empregando termos
mais gerais, previsibilidade (certeza) e imprevisibilidade (incerteza) — é assegurada a relação
entre poder e subordinação. Grupos de predisposições e interesses nitidamente conflituosos são
integrados num sistema harmonioso sem qualquer redução do âmbito ou intensidade do conflito
em si.
A respeito dos que estão situados no ambíguo espaço intermédio entre os pólos da oposição,
Bentham faz a pergunta sacramental, "Qui custodiet ipsos custodies?". Por pouco não a faz a
respeito do guarda dos guardas, o chefe dos guardas-empresário-adjudicador em pessoa. Na
verdade, admite que os possíveis opositores do "panopticon", sabedores das leis, considerarão
a pergunta indiscriminadamente relevante, do fundo ao topo da estrutura. E assim, antecipa o
endereçar a pergunta ao chefe dos guardas —mas apenas para a anular por mal dirigida. A
necessidade de regulamentos meticulosos, de precauções infinitas, de pressões do meio
ambiente cuidadosamente dirigidas — que Benham tão entusiasticamente referiu ao idealizar
as instalações óptimas para os reclusos — é redondamente negada em relação ao chefe dos
guardas. A esse nível do sistema, ela só pode trazer prejuízo; é certo que reduzirá a eficácia
do poder do chefe dos guardas sobre os seus pupilos; mas também enfraquecerá a dedicação, a
imaginação e a energia do chefe dos guardas, e com elas a adaptabilidade e o êxito do sistema
como um todo.
O chefe dos guardas não precisa de normas e regula-
43

mentos legais, visto que tem os motivos certos para a acção, e recursos adequados para actuar
em relação a eles. Quando ambos estão presentes, a conduta resultante pode ser auto-controlada.
Vigiada pelo actor, confrontada com os seus resultados e devidamente corrigida, ela aproximar-
se-á do padrão desejável. Ter lucro será o motivo; agir de acordo significa fazer produtos
vendáveis e vendê-los no mercado. Ter lucro será sinal de se estar no bom caminho. Ter prejuí-
zo servirá de aviso de que a acção deverá ser alterada. Os ganhos precisam de recursos; o chefe
dos guardas tem esses recursos; portanto pode ser um agente livre e lançar-se na interacção com
outros agentes livres por sua própria iniciativa e responsabilidade. Os legisladores podem
ficar por aqui. De agora em diante não são necessários.
De agora em diante. Este "agora" tem sido alcançado logo que o sistema social devidamente
planeado entra em funcionamento. Mas os legisladores podem ficar por aqui porque o trabalho
de planeamento foi bem feito e o sistema pode permitir-se libertar alguns dos seus membros e
precisa da liberdade de alguns dos seus membros para o seu próprio êxito.
As pessoas que teorizam modelos de sociedade são intelectuais — no todo membros
notáveis, no entanto membros, da classe instruída (a classe das pessoas que "tratam da
produção e distribuição do conhecimento simbólico" (14)). Como intelectuais, estão empenhados
num tipo específico de prática produtiva que constitui um estilo de existência, um
posicionamento em relação ao resto da sociedade, um entendimento do seu próprio papel e um
conjunto de ambições (uma imagem idealizada desse papel) inteiramente da sua .

responsabilidade. São estas práticas, perspectivas e ambições que são transforrhadas e


teorizadas

(14) Pcter L. Berger, The Capitalist Revolution: Fifty Propositions about Prosperity, Equality and
Liberty, Gower, Aldershot, 1987, p. 66.
44

em imagens-modelo da sociedade. (15) Raramente aparecem sem disfarce em teorias sociais;


normalmente são "metidas" na imagem ostensivamente objectiva, pintadas de uma maneira que
resiste a uma determinação fácil do ponto de observação do qual a pintura foi vista. Têm de ser
recuperadas da imagem por meio de uma espécie de "hermenêutica sociológica", um esforço
sistemático para relacionar as imagens com certas situações e acções conhecidas da categoria
social dos criadores da imagem; tal esforço, se tiver sucesso, permitir-nos-á compreender as
imagens como projecções da experiência colectiva específica.
Como porta-vozes da classe instruída — pela lógica da sua posição social, se não por escolha
deliberada — os intelectuais teriam tendência para olhar o todo social de modo a tomar o seu
tipo de trabalho e de vida essencial ao funcionamento da sociedade; na verdade, os modelos
teóricos que produzem, tenderiam para representar a sociedade como um complexo social visto
do ponto de observação das tarefas empreendidas e postuladas pela classe instruída. A natureza
destas tarefas e, em consequência, o ponto de observação e a imagem resultante, alterar-se-iam
juntamente com a transformação histórica do posicionamento e funções sociais dos seus actores
intelectuais; variariam também com o enquadramento social em que os sectores dos inte-
lectuais em causa estão situados e actuam.
De acordo com esta regra, os modelos produzidos por intelectuais instalados em
enquadramentos académicos mostrarão uma inclinação para actividades simbólicas.
Frequentemente representarão a sociedade como uma série de tarefas de gestão simbólica e
imaginarão uma sociedade bem equilibrada como aquela em que o predomínio de certos
valores e normas simbolicamente articulados está
(15) Discuti este processo detalhadamente in Legislators and Interpreters, Polity Press, Londres,
1987.
45

assegurado, e o seu curso e progressiva especificação estão coordenados com as subdivisões da


sociedade e a diferenciação de funções. A influência e a popularidade notáveis do modelo de
Parsons eram devidas, pelo menos em parte, à sua "perfeita adaptabilidade" a esta tendência
colectiva, gerada pelo enquadramento, de academia. Através da mesma tendência pode
explicar-se o facto notável de, sejam quais forem os defeitos que os críticos académicos encon-
traram no outrora poderoso sistema de Parsons, continuarem a realçar a importância da
produção de símbolos e da distribuição de símbolos. Com a confiança em si própria da
"modernidade" a desvanecer-se e o eclectismo pluralista da "pós-modernidade" em ascensão,
eles substituíram os "grupos centrais", as "hierarquias de valor" e as "coordenações principais"
por uma produção livre, dispersa, descoordenada em valores e significado — porém, nunca
puseram em questão o pressuposto fundamental da visão de Parsons: que a ordem social é
resultado da manipulação dos símbolos.
Perante esta tendência a longo prazo da teorização académica, o modelo de Bentham parece
singularmente diferente. Talvez possamos entender melhor a diferença se nos lembrarmos de
que Bentham não era pelo menos não inicialmente — membro do mundo universitário.
Pertencia a um círculo de intelectuais que viviam muito próximo do mundo dos políticos, dos
administradores governamentais e dos reformadores sociais, e se entregavam a uma constante
troca de ideias com esse mundo, partilhando em larga medida os seus interesses e
preocupações, a sua articulação de tarefas acessíveis, a sua selecção de instrumentos de acção
em sociedade e os recursos em que essa acção se apoia. Não admira que no sistema social, tal
como surge dos escritos académicos de Bentham ou dos intelectuais no seu mais "óbvio senso
comum", o papel de professor-conselheiro seja quase invisível. O que não quer dizer, no

46

entanto, que os intelectuais — o melhor da classe instruída — estejam ausentes do quadro


final. Estão na verdade presentes e talvez mais espantosamente tranquilos do que nos modelos
produzidos academicamente — embora, tal como os inspectores do "panopticon", eles "vejam
sem serem vistos".
O modelo de Bentham é contruído a partir do ponto de observação dos intelectuais como
projectistas, como peritos possuidores do conhecimento das leis que guiam a conduta
humana e das competências necessárias para construir ambientes sociais dentro dos quais essas
leis possam ser aplicadas com o máximo de vantagem. O mundo perfeitamente equilibrado do
"panopticon" é um mundo forjado, planeado; o produto de um arquitecto inteligente, ponderado,
racional. Os políticos são construtores guiados pelos desenhos dele. Nem o projectista
intelectual nem os políticos são precisos, uma vez a construção completa. Um sistema social
que necessita de empresários livres e oferece condições ideais para exercerem a sua liberdade,
tendo em vista o bem comum, pode actuar por si só e perpetuar-se a si próprio sem a
interferência diária de projectistas intrometidos, e sem a vigilância de pregadores de moral e de
professores de virtudes sociais. Mas, quando tudo isto começou, o plano já existia.
Em ambos os tipos de modelos aqui discutidos os intelectuais aparecem como "legisladores",
aqueles que determinam a "norma" para sistemas sociais bem estruturados e viáveis. Podem
desempenhar o papel de legisladores, contudo, de duas maneiras diferentes, pelo menos: como
ideólogos-manipuladores de símbolos — como nos modelos do tipo de Parsons; ou como
teenólogos-projectistas peritos — como nos modelos de Bentham ou semelhantes. No primeiro
caso, a perspectiva cognitiva leva os construtores de modelos a entenderem a liberdade
como uma característica ou um direito do "indivíduo como tal"; como um atributo

47

universal de todas as unidades do sistema, uniformizadas pela sua condição comum como
objectos de educação, socialização ou prática cultural em geral. No segundo caso, a liberdade
aparece como um factor no mecanismo de produção e reprodução da ordem social; como tal,
situa-se nos laços estrategicamente cruciais que mantêm o conjunto unido. E afinal um recurso
judiciosamente localizado, sempre considerado num contexto de distribuição — como uma
extremidade de uma relação cuja segunda extremidade é a heteronomia. A liberdade é então
gerada por essa relação, sendo ao mesmo tempo a condição suprema da sua perpetuação. A
liberdade é privilégio e é poder.

48

II — SOBRE A SOCIOGENESE DA LIBERDADE


Existem alguns conceitos contemporfineos de "liberdade" em que todos os seres humanos sao
inevitavelmente livres, mesmo que nada saibam a tal respeito, nao raciocinem sobre isso, nao
pensem nisso ou o neguem redondamente quando inquiridos. Os seres humanos sao fundamen-
talmente livres como agentes que agem mais do que se abstem da accao, ou que se coibem de
agir mais do que agem de determinada maneira. Aqui a "liberdade" a apenas uma outra maneira de
afirmar o obvio, ou seja, que existem sempre mais do que uma maneira logicamente possIvel de agir
uma verdade trivial tautologicamente contida na propria ideia de "accao". Ou os seres humanos sao
fundamentalmente livres como detentores da responsabilidade pelas consequencias da sua conduta;
um entendimento de liberdade que 6 urn derivativo de algumas conviccOes morais corn fundamento
religioso ou de especulacOes legais. Ou, mais filosoficamente, os seres humanos sao fundamen-
talmente livres porque a sua vida ndo pode ser mais nada sena° 6 seu prOprio projecto, uma
actividade "a fim de", orientada para o futuro — mesmo se muitas vezes essa vida 6 vista por eles
como uma s6rie de rendiceies a necessidades e e interpretada em termos de "por causa de", como algo
determinado pelo passado. Algumas vezes a liberdade é apresentada como propriedade universal dos
seres humanos: todos os exemplos de conduta heteronoma e de coacgoes extemas sao postos de
parte como artificios super-

49

fluos. De urn ponto de vista sociologico, tais interpretacoes devem ser vistas mais como
objectos de pesquisa da sociologic do conhecimento, ou da hermeneutica sociologica do que
como uma hipotese sobre a realidade que deve ser testada em busca da verdade dessas
interpretacoes.
A maioria dos livros que incluem a palavra "liberdade" nos titulos ou nos subtitulos realcam
estes significados do termo e outros semelhantes. Duma maneira geral, tentam reconstruir,
reinterpretar e avaliar criticamente os escritos intelectuais influentes, sobre o assunto. Fazem
parte do discurso filosofico contemporaneo, por meio do qual a "liberdade", como ideia,
valor, ou "horizonte utopico" da n o s s a é m a n t i d a v i v a a o m e s m o t e m p o q u e é
reavaliada por geracOes sucessivas. Esses livros, por assim dizer, pertencem a uma filosofia que
existe apenas como sua propria historia.
Os livros em questao assumem grande importancia cultural, sendo uma parte do discurso que
registam e em relacab ao qual sao condicao indispensavel. 0 seu outro significado, que os seus
autores de orientacao cientffica muitas vezes reivindicam, nab é, porem, inquestionavel. Como
livros de historia, devem explicar a logica intrinseca do fenomeno que estudam, apresentar as
suas formas mais recentes como resultado das mais antigas e revelar as forcas responsaveis pela
passagem de umas para as outras. Para fazer tudb isto deverao escolher, de entre as
realidades complexas e abrangentes do passado, urn substrato mais ou menos completo e
autonomo, isto é, que contenha todos os factures necessarios para explicar as transformacOes
conhecidas do fenomeno em estudo. Contudo, na major parte dos casos, o substrato escolhido é o
das proprias ideias. Sugere-se entao, aberta ou indirectamente, que as sucessivas
transformacOes do !batmen() chamado "liberdade" sab identicas as suas sucessivas
conceptualizacoes. A histOria da liberdade consiste, pois, numa serie de reformulacoes,

50

redefinicOes, recapitulacOes, assim como em descobertas ou invencOes intelectuais. As ideias


nascem de ideias, alimentam-se de ideias, geram outras ideias. Pode verificar-se que os autores
dos livros em questa() projectarn sobre o tOpico que estudam a experiencia da forma de vida
que colectivamente praticam; ou antes, os seus pressupostos contrafactuais — a suposicao de
que as proprias ideias, a sua forca ou fraqueza inatas, a sua coerencia ou incoerencia, determinam a
sua aceitacao ou rejeicao. Em consequencia, escrevem a histOria da liberdade como se fosse a dos
seus colegas intelectuais.
No entanto, a importa.'ncia das formulacoes intelectuais de liberdade tern sempre nascido do
facto de abordarem problemas reais do seu tempo; os concertos existentes no discurso
prosseguido foram usados para articular a experientha das novas estruturas e processor sociais,
para dar significado a mudanca, e foi ao serem assim usados que eles se transformaram e ao seu
significado. Todo o alcance que a histOria do trabalho intelectual tinha para a historia da so-
ciedade em geral era devido ao facto de nab ser urn caso de incest() entre pensadores
profissionais.
"A sociogenese" (um termo que fui buscar, pel.o que estou grato, a Norbert Elias) da liberdade
refere-se aqueles desvios e deslocaceies, grandes e pequenos, nos contomos sociais, que
conduziram a modificacOes sucessivas na rede de dependencias e por isso tamb6rn nos
contornos da interaccao humana, e que o discurso da liberdade articulava. Presume-se que todas
essas deslocacoes criaram tenseies sociais que se apresentavam aos contemporaneos como um
problema social na-o resolvido, quer exigindo a rejeicao de conceitos antigos, quer o seu use
inovador. A aparente unidade de discurso ao longo do tempo, uma ilusa'o criada pela abordagem
da "historia das ideias", d.esvaneceu-se numa sdrie de descontinuidades apenas em parte
disfarcadas pela memoria historica institucionalizada. 0 que então

51

fluos. De um ponto de vista sociolOgico, tais interpretagOes devem ser vistas mais como
objectos de pesquisa da sociologic do conhecirnento, ou da hermeneutica sociolOgica do que como
uma hip6tese sobre a realidade que deve ser testada em busca da verdade dessas inteipretacOes.
A maioria dos livros que incluem a palavra "liberdade" nos titulos ou nos subtftulos realgam
estes significados do tem) e outros semelhantes. Duma maneira geral, tentam reconstruir,
reinterpretar e avaliar criticamente os escritos intelectuais influentes, sobre o assunto. Fazem
parte do discurso filosofico contempordneo, por meio do qual a "liberdade", como ideia, valor, ou
"horizonte utOpico" da n os s a é ma nt id a vi va a o me s m o te mp o q ue é reavaliada por
geragOes sucessivas. Esses livros, por assim dizer, pertencem a uma filosofia que existe apenas
como sua propria historia.
Os livros em questa'o assumem grande importancia cultural, sendo uma parte do discurso que registam
e em relagdo ao qual sac) condicdo indispensdvel. 0 seu outro signi ficado, que os seus autores de
-

orientagdo cientifica muitas vezes reivindicam, nab é, porem, inquestiondvel. Como livros de
histaria, devem explicar a lOgica intrinseca do fen6meno que estudam, apresentar as suas formas
mais recentes como resultado das mais antigas c revelar as forgas responsaveis pela passagem de
umas para as outras. Para fazer tudb isto deverdo escolher, de entre as realidades complexes e
abrangentes do passado, um substrato mais ou menos completo e autOnomo, isto é, que contenha todos
os factores necessarios para explicar as transformacOes conhecidas do fenomeno em estudo. Contudo, na
major parte dos casos, o substrato escolhido é o das prOprias ideias. Sugere-se entdo, aberta ou
indirectamente, que as sucessivas transformagOes do fenomeno chamado "liberdade" sdo identicas
as suas sucessivas conceptualizacOes. A historia da liberdade consiste, pois, numa serie de
reformulacOes,

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redefinicOes, recapitulacOes, assim coma em descobertas ou invencOes intelectuais. As ideias


nascem de ideias,
alimentam-se de ideias, geram outras ideias. Pode verificar-se que os autores dos livros em
questao projectam sobre o tOpico que estudam a experiencia da forma de vida que
colectivamente praticam; ou antes, os seus pressupostos contrafactuais — a suposicao de que
as proprias ideias, a sua forca ou fraqueza inatas, a sua coerencia ou incoerencia, detemainam a sua
aceitacao ou rejeicao. Em consequencia, escrevern a historia da liberdade como se fosse a dos seus
colegas intelectuais.
No entanto, a importancia das fonnulacoes intelectuais de liberdade tern sempre nascido do
facto de abordagem problemas reais do seu tempo; os conceitos existentes no discurso
prosseguido foram usados para articular a experiencia das novas estruturas e processos sociais,
para dar significado a mudanca, e foi ao serem assim usados que eks se transforrnaram e ao seu
significado. Todo o alcance que a historia do trabalho intelectual tinha para a historia da so-
ciedade em geral era devido ao facto de nao ser urn caso de incesto entre pensadores
profissionais.
"A sociogenese" (urn termo que fui buscar, pelo que estou grato, a Norbert Elias) da liberdade
refere-se aqueles desvios e deslocacoes, grandes e pequenos, nos contornos sociais, que
conduziram a modificacifies sucessivas na rede de dependencias e por isso tambem nos
contornos da interaccao humana, e que o discurso da liberdade articulava. Presume-se que todos
essas deslocaciies criaram tensOes sociais que se apresentavam aos contemporaneos como urn
problema social nao resolvido, quer exigindo a rejeicao de conceitos antigos, quer o seu use
inovador. A aparente unidade de discurso ao longo do tempo, uma ilusao criada pela
abordagem da "histOria das ideias", desvaneceu-se numa serie de descontinuidades apenas em
parte disfarcadas pela memOria histOrica institucionalizada. 0 que então

51

se revela é que, mais do que o desenrolar do significado total da ideia a partir da sua forma
embrionaria original, a histOria da liberdade é uma ponte que atravessa urn vasto ambito de
configuracoes sociais, corn os seus conflitos especificos e lutas pelo poder.
Talvez a ideia mais antiga de liberdade se referisse mais a um acto do que a uma condicao: uma
decisao dos poderosos para libertar alguem sujeito a seu poder da escravatura, cativeiro ou
servidao. Tat libertacao manumissao (de manumittere, largar da mao) — era, para todos os
fins e intentos praticos, urn acto de "humanizacao": na antiguidade classica, os escravos ou
cativos eram olhados e legalmente tratados como bens merveis semelhantes a restante
propriedade do seu senhor; prejudice-los ou destruf-los era como um assalto mais a propriedade
do senhor do que aos "direitos humanos" — e o dano tinha de ser reparado, tal como no caso de
um roubo de ovelhas ou de fogo-posto. A manumissao transformava urn escravo ou cativo num
homem libertado, na major parte dos casos nab inteiramente urn ser human°, mas ja nao um
bem mOvel. 0 homem libertado libertinus trazia em si a marca da sua condicao anterior,
marca impossivel de lavar, por vezes ate a terceira geracao. A sua situagao legal era
completamente negativa; /Id o era urn escravo. Para isto fazer sentido, a sua condicao tinha de ser
avaliada em comparacao corn a condica'o de escarvatura ou de cativeiro. Esta mostrava quern
ele era, enquanto a condicao de uma pessoa que nunca fora escravo, pouco dizia quarto a
sua situacao social. Fosse qual fosse a "liberdade" existente na identidade do homem
libertado, ela era relativa. Referia-se ao que ele ji tinha deixado de ser e que alguns outros
ainda eram. Referia-se tambem a urn terceiro agente, o tinico verdadeiro agente do triangulo o
poder que ditava essa distincao. Os homens libertados tinha de ser tornados livres. A
libertacao em si mesma nab era urn acto de liberdade.

52

Pode argumentar-se que a teoria e a pratica da heteronomia, ou a negatividade da liberdade, legadas


tanto pela antiguidade judaica como pela greco-romana, lancaram alguma luz sobre o conhecido
episodio da "heresia de Pelagio" no inicio da historia da Igreja. Os ensinamentos de Pelagio e a
resposta veemente que mereceram a Santo Agostinho (que seria repetida mais tarde, virtualmente in-
tacta, por S. Tomas de Aquino e Joao Calvino, embora nunca tivesse sido oficialmente aceite como
urn canon da Igreja) diziam respeito a origem e ao ambito da "livre vontade". Segundo Pelagio,
Deus fez os homens livres; tendo sido assim feitos, os seres humanos podiam escolher entre o
bem e o mal segundo a sua vontade. Dependia deles viverem para a salvagao ou para a
condenagao; ten& sido feitos livres, tendo-lhes sido dado o dom da livre vontade, suportavam a
inteira e exclusiva responsabilidade pelos seus actos. Os ensinamentos de Pelagio parecem
estar de acordo corn a pratica da antiguidade: a manumissao era na verdade o fim do estado de
escravatura e, entre outras coisas, significava a aceitacao por parte do homem libertado de
toda a responsabilidade pela sua conduta. E verdade que, em numerosos casos, havia uma
condicao ligada ao acto de libertacao; os libertini podiam ser obrigados a ficar ao servico do
seu antigo senhor, ou a cumprirem deveres para corn ele. 0 prOprio acto da manumissao podia
estar condicionado ao cumprimento regular e perpetuo desses deveres e ser rescindido no caso
de ele nao acontecer. Mas mesmo esta eventualidade testemunhava o facto de o homem
libertado ser agora urn "detentor de responsabilidade"; podia escolher ser leal ou trair o seu
senhor, e deveria ser recompensado ou punido de acordo corn a sua escoiha. A Antiguidade,
porem, conheceu tambdm uma libertacao incondicional e irreversivel: nesses casos, o senhor
que exercera o poder anteriormente — no acto da manumissao
renunciava ao seu dominio sobre o antigo escravo, para o futuro.

53

E provavel que precisamente esta consequencia do acto de libertagdo tornasse inaceitaveis os


ensinamentos de Pelagio para Santo Agostinho e para os poderes que estavam por tras dele. Na
verdade, Pelagio reduziu a Igreja a uma associacdo de pregadores de moral e recusou-lhe
qualquer outro poder sobre os fieis a nab ser o da exortagRo espiritual. Se é verdade que Deus,
na sua omnipotencia, dotou os seres humanos corn o dom irrevogavel da livre vontade, da
mesma maneira lhes nas ma - os o seu proprio destino, e decidiu renunciar a todo o poder
sobre a sua conduta. Indirectamente, a Sua decisdo teria lancado dtividas sobre as
reivindicacoes da Igreja de todo o controlo do seu rebanho, e augurado prejulzos para a
condicao social da hierarquia eclesiastica que surgia. Foi esta ameaga que Santo Agostinho
tratou de afastar corn a sua doutrina, complexa e notoriamente arnbivalente, da grata divina e do
pecado original. Segundo esta doutrina, os seres humanos continuam para sempre a suportar a
marca do seu passado culpavel e condenavel muito a semelhanca dos homens libertados, trans-
portando consigo ate a morte e a morte dos seas descendentes o estigma da sua escravatura
original. Todos os seres humanos participam no pecado original — o acto de rejeicao da
custodia de Deus e da ordem divina. Dal a sua propensdo inata para preferirem o mal ao
bem. 0 facto de nao poderem propagar a sua existencia terrena sena° atrayes do desejo carnal e
das paixOes sexuais, confirma a regra duradoura das coisas corporais (o mal) se sobreporem as do
espirito (o bem). Neste sentido, continuam a ser escravos. A sua liberdade limita-sea escolha do
mal; escolher o bem so pode ser obra da grata divina. Os seres humanos precisam da
orientacab constante do seu divino Mestre: precisam de ser vigiados, censurados, admoestados,
forcados a seguir o caminho da virtude. Indirectamente, mais uma vez, a Igreja, esse vigario
colectivo de Deus na Terra, deve censurar, vigiar e impor a virtude. (Pode ser de algum
interesse socio-

54

IOgico fazer notar que nao foi a Igreja, afinal, que rejeitou us ensinamentos de Pelagio;
enquanto o Papa ZOsimo hesitava quanto ao acerto de condenar a doutrina de Pelagio, o
imperador Hon(Via proscreveu o infeliz advogado da livre vontade e a Igreja seguiu-o.)
0 episodio da heresia pelagiana revela urn aspecto novo e importante da liberdade. Talvez
pela primeira vez, surge uma teoria que lanca completa e firmemente a liber dade para os
dominios•do mal, apenas para a usar como justificacao da regra heteronomica. Esta teoria esta
bem de harmonia corn as condicOes sociais dos seculos que se seguiriam, condicOes essas
sob as quail nenhum ser humano podia razoavelmente afirmar ser "completo em si mesmo",
auto-suficiente, corn total dominio sobre as circunstancias da sua vida ou sobre os recursos
necessarios ao seu trabalho. CondicOes que nao davam espago para "homens sem dono" e que
transformaram a falta de amarras, de vassalagem ou de pertencer a uma corporacao
(vadiagem, vagabundagem) no mais aterrador dos perigos sociais e no mais odioso dos crimes.
Nos seculos que se seguiram, ate ao alvorecer da era modema, a sociedade nao conheceu
outro metodo de preservacdo da ordem social e nenhum outro meio de controlo alern da
regra do senhor ou da corporacao local ou ocupacional. Ou antes, confiava, sem saber e sem
pensar, nesses metodos e meios para viver o seu modo de vida, familiar e portanto pacific°. Na'o
admira que a visa° de uma pessoa sem dono e independente, viesse a gerar aquela ansiedade
que o realce dado as pressuposicOes, ate entalo tacitaE tinha de provocar. A condicao de nil() ter
dono deve ter sido, sem duvida, alarmante: em primeiro lugar por causa da dificuldade de a
controlar e, em segundo, porque apresentava a ordem social como algo que deve ser
conscientemente cuidado e que nao se conservara por si propria.
.Nestas circunstancias, a liberdade, tal como pode ser

55

aceite sem ameaca notoria para a sociedade, é sempre qualquer coisa concebida, e pela sua
origem no acto da concessac) (pelo menos em principio) controlada de perto. Alan disso, tal
liberdade é sempre parcial, "a respeito de certas coisas"; ou consiste na dispensa de obrigagOes ou
jurisdigao claramente definidas e especificas, ou no facto de se ser membro de uma
colectividade partilhando um privilegio. A liberdade é na verdade urn privilegio, c urn privilegio
oferecido corn moderagao e sem entusiasmo por parte de quem a oferece.
Na Idade Media a liberdade estava nitidamente relacionada corn a luta pelo poder.
Significava a dispensa de alguns aspectos do poder superior; a condicao de livre tes-
temunhava a forca daqueles que a ganhavarn e a fraqueza daqueles que, relutantemente,
tinham de a conceder. A "Magna Carta Libertatum", talvez o documento mais simbolico e
celebre dessa luta, era urn produto comum dos direitos dinasticos duvidosos do rei Joao, dos
altos custos das Cruzadas, que levaram ao ponto de ruptura os recursos e a paciencia dos
barges do rei, e da necessidade de mobilizer os cavaleiros para o servico militar e da ameaga
crescente de guerra civil. A Magna Carta — o "grande foral da liberdade" foi imposta a urn
monarca que nab teve forga para resistir. Aceitava uma serie de "liberdades" de que os barges
haviam de gozar dal em diorite e que o rei prometia na'o infringir; entre essas liberdades,
avultava a seguranga contra os impostos "arbitrarios" (isto é, nab acordados). A Carta
legalizava a condicao de "homens livres" e defmia-a indirectamente como uma liberdade que
impossibilita a prisao ou a privacao excepto por decisab dos pares do reino (outros homens
livres) e pela lei do pals.
A Magna Carta, portanto, transformou em lei a fraqueza temporaria da monarquia; sujeitou as
acgoes do monarca a uma permanente coaccao, tornando-as por isso mais previsiveis para os
stibditos do rei, e despojando-as de muito

56

do seu caracter de "fonte de incerteza". Ainda nisio se conliava, obviamente, nas meras
coaccOes legais, visto que os barges mencionaram no texto da Carta o seu direito a pegar em
armas contra o rei, se este violasse os limites do seu poder; para os homens livres, a defesa da
sua liberdade, mesmo pela forga, tomou-se uma das atitudes sancionadas pelas regras do jogo
— agora parte da ordem politica e nab a sua violagao. Corn o direito a resistencia, os barges
transformaram-se num "factor de incerteza" permanente para a situacao do monarca e ao mesmo
tempo impuseram limites eficazes a liberdade do rei. Indirectamente, os limites agora impostos as
acgoes do monarca que afectassem a condicao dos seus silbditos livres definiam a nocao de
regra "arbitraria" ou "despOtica" como um "crime real" especifico —uma transgressao da
ordem social que os monarcas tem tendencia para cometer e pela qual devem ser punidos.
A liberdade era, portanto, urn privilegio obtido do rei por uma categoria relativamente
pequena de stibditos ricos e poderosos; em breve a palavra "liberdade" comegou a ser usada
como sinOnimo do conceito de uma pessoa de nascimento e ascendencia nobres. "Livres" eram
aqueles subditos do rei sobre os quais este gozava apenas de uma jurisdigao limitada.
Na Idade Media (na realidade a partir do seculo XII) o privilegio da liberdade era concedido
nab so a pessoas individuals ou linhagens familiares, mas a colectividades inteiras,
particularmente as cidades. A liberdade de uma cidade poderia significar isengao de impostos
ou de outros encargos financeiros; supressao de restricoes e regulamentos impostos ao
comercio; o direito ao auto-governo; e uma enorme serie de privilegios ostensivamente
insignificantes ou inferiores, que contudo desempenhavam urn importante papel cerimonial e
simbOlico, restabelecendo a autonomia da cidade em relagab a propriedade agraria e a
prOpria monarquia. A liberdade da cidade envolvia o direito a con-

57

ceder essa liberdade a cidadaos seleccionados geralmente os mais ricos. Ser urn homem livre
de uma determinada cidade significava gozar de certas imunidades em relacao ao govern° da
cidade, alem de partilhar os privilegios corporativos da mesma. Na liberdade da cidade, o factor
mais fecundo, de consequencias histoficas incomensuraveis, era a isencao da cidade e dos seus
muitos comercios em relacao a jurisdicao da propriedade agraria. A liberdade das cidades distinguia e
colocava a divisao progressiva da riqueza em duas categorias diferentes, cada uma sujeita as suas
proprias regras: corn uma das duas categorias, conseguir a sua independencia em relacao a outra, apenas
para por fim a submeter, apos seculos de luta pelo seu dominio. Nas palavras de Louis Dumont:
No tipo tradicional de sociedade, a riqueza it-novel (as propriedades) é nitidamente distinta da
riqueza mewl (dinheiro, bens mOveis) pelo facto de todos os direitos sobre a terra estarem de tal
maneira enredados na organizaca'o social que os direitos supericires acompanham o dominio sobre
os homens. Esses direitos ou "riqueza", surgindo essencialmente como uma questao de relagoes entre
os homens, silo intrinsecamente superiores a riqueza movel... Com os modernos, a revolucdo
ocorreu neste aspecto: o do entre a riqueza imovel e o poder sobre os homens foi quebrado, e a
riqueza movel tornou-se inteiramente autanoma em si mesma, como um aspecto superior da
riqueza em geral... Deve notar-se que é apenas neste ponto que podemos extrair uma diferenca
nitida entre o que chamamos "politico" e... "economico". (')
A emancipacao das cidades livres em relacao aos poderes dos barges locals quebrou o elo mais
importante entre riqueza e direitos sobre as pessoas. A liberdade das cidades significava na
pratica a separacao da circulacao de dinheiro e mercadorias das estruturas tradicionais da
organização

(9 Louis Dumont, Essays on Individualism: Modern Ideology in Anthropological Perspective,


University of California Press, Berkeley, 1986, pp. 106107.

58

social, e em especial da rede de direitos e obrigagoes mutuos que rodeavam a posse hiergrquica
da terra e a participacao no produto da terra. Dentro dos muros da cidade a criacao e distribuicao da
riqueza podiam desenvolver-se sem restricoes por parte das relacties tradicionais do poder
relacties sentidas como "naturals", como parte integrante da "grande cadeia do ser" (para
empregar a celebre expres- silo de Arthur Lovejoy). A liberdade das cidades significava, portanto,
a gestagao da economia como urn sistema de accOes e relaceies humanas separado do "regime
politico" e de todo o universo de direitos tradicionais sobre as pessoas; urn sistema que tende a
tornar-se um "todo" no seu direito proprio, uma totalidade auto-controlada e auto-regulada,
mantida em movimento e na corrida apenas pela logica impessoal da oferta, procura e circulacao de
bens ("a mao invisivel" de Adam Smith, que forjou o bem com um a partir da multida'o de accaes
.

&spares e de interesse proprio de individuos, coordenadas apenas pelas trocas de mercado dos
seus bens). Ainda mais geralmente, a liberdade das cidades — tendo separado a vida urbana do
mundo em que as dependencias humanas tinham estado imiscuidas na propriedade da terra, e por
isso eram sentidas como "naturals" forneceu os fundamentos do "artificialismo" tipicamente
moderno: a concepcao da ordem social nao como uma condicao natural da humanidade, mas
como um produto da inteligencia e da administragao humanas, como algo que deve ser planeado e
executado de uma maneira ditada pela razao humana e dirigido precisamente contra as predisposicoes
"naturais" (moralmente feias, irracionais e desordenadas) dos animais humanos. A vida citadina
separou os homens da natureza; a liberdade das cidades separou os homens das "leis da natureza"
— a submissao da vida ao ritmo c aos caprichos de fenomenos sobre os quais a vontade e a
capacidade humanas tinham pouco, se é que algum, efeito.

59

Tem-se tornando claro, atraves deste resumo superficial dos usos da liberdade nos tempos antigos e
medievais, que a liberbdade nab 6, de modo algum, uma invengdo modema; nem as relaceies
institucionalizadas que proporcionavam alguma autonomia individual (ou, se quisermos ver do
outro extremo, urn limite as prerrogativas do poder), nem o conceito que as articulava, ficaram
limitados a era modema. Alem de que, foi na Idade Media que foram construidas as estufas onde as
plantas das liberdades modernas se propagaram. E, no entanto, a modema forma de liberdade difere
consideravelmente das suas antecessoras. Urn nome igual esconde, na realidade, caracteristicas
vincadamente diferentes.
Tem sido escritas bibliotecas sobre a singularidade e os muitos atributos notaveis do fenomeno
modemo (ocidental) da liberdade. Parece, porem, que, do ponto de vista socio16- gico, duas das
indubitavelmente muitas caracteristicas diferentes da liberdade nao sao de especial interesse: a sua
relaga'o intima corn o individualismo e a sua ligagao genetica e cultural corn a economia de mercado
e o capitalismo (o tipo de sociedade defmido muito recentemente por Peter L. Berger como "produtos
de individuos empreendedores para urn mercado, ou maquinageles corn o objectivo de obter lucro" (2)).
0 centro do individualismo esta, como comentava recentemente Colin Morris, "na experiencia
psicolOgica corn que comegamos: o sentido de uma distingab nitida entre o meu ser e o das outras
pessoas. 0 significado desta experiencia 6 grandemente empolado pela nossa fe no valor dos
seres humans em si mesmo." Logo que a marca do valor especial — na verdade, supremo — foi
impressa sobre a experiencia, sob outros aspectos mundana, de praticarmos os

(2) Peter L. Berger, The Capitalist Revolution, Gower, Aldershot, 1987, p. 19.
60

nossos actos e pensarmos os nossos pensamentos, "seguiu-se uma consciencia aguda de nos
prOprios — urn impulso para nos olharmos a nos mesmos como objectos de temos cuidados e
aperfeigoamentos. Essa consciencia, diz Morris, "tem sido uma faceta caracteristica do homem
ocidental". Mais do que isso, a forma de individualismo resultante pode ser considerada "uma
excentricidade entre as culturas". (3)
0 que 6 tab excentrico, podemos acrescentar, nab 6 o preceito que atribui urn valor especial
(possibilidades especiais, tarefas especiais, deveres morais especiais) para singularizar os
homens como distintos do grupo a que pertencem. Tais preceitos podem encontrar-se entre
muitas culturas, na verdade muito antes de o fenomeno chamado "homem ocidental"
aparecer numa forma reconhecivel. Dumont encontrou esses preceitos na antiga teologia e pt.&
ticas religiosas indianas, para vir a report.-los mais tarde a algumas correntes da antiga filosofia
grega e, o que 6 mais importante, aos ensinamentos da Igreja Crista.'. 0 que, porem, unia a
religido indiana, as filosofias dos Epicuristas, dos Cfnicos e dos EstOicos e as homilias dos Pais
da Igreja, colocando-as ao mesmo tempo a parte das filosofias individualistas modernas, era a
"outra mundanidade" do individuo. Na medida em que era um verdadeiro individuo isto 6,
alguern que podia escolher livremente, urn detentor autonomo da responsabilidade moral, dono
da sua propria vida
o homem estava colocado fora da vida &aria mundana, pagando a sua liberdade corn a remincia
aos deveres sociais e deixando para tras a azdfama vangloriosa das preocupacoes terrenas. 4
individuo era, portanto, urn ser essencialmente nao-social, ou pelo menos alguern que existia
fora da

(3) Colin Morris, The Discovery of the Individual, 1050-1200, SPCK, Londres, pp. 2-4.
61

sociedade. 0 caminho para a individualidade estava, pois, aberto aos poucos escolhidos
somente. Passava pela concentracao mistica, pela cultura filos6fica e por uma extrema piedade
religiosa. Quern quer que seguisse esse caminho tinha de estar preparado para acabar como
urn sannyasin, urn mendigo-filOsofo ao estilo de Diogenes, urn pilar de santidade ou urn
anacoreta do deserto. Era urn caminho para os bem-aventurados, os contemplativos ou os
desesperados — nab, decerto, para os lenhadores e aguadeiros. Era explorado pelos filosofos e
os devotos religiosos que nunca compreenderam a auto-alienacao que escolheram ou aceitaram
como uma proposta realista (muito menos urn dever universal) para os simples mortais. A
filosofia do individualismo da outra mundanidade nab era uma formula para fazer proselitos.
Se a individualidade da outra mundanidade era um premio que esperava no fim do caminho
tortuoso e espinhoso da rectidao, a individualidade da mundanidade moderna — apegada a
inimitdvel e moderna forma de liberdade -- podia ser, e tern sido, articulada como urn atributo
universal dos seres humanos; e, mais do que isso, como o mais universal, ou antes, o mais
decisivo, entre os atributos universais. Para Aristoteles parecia natural comecar a pensar na
existencia humana a partir da polis uma entidade colectiva que conferia calk-deter e

identidade a todos que coubessem dentro do seu abrago definindo assim os seres
humanos como "animais politicos", membros e participantes da vida comunal. No entanto,
parecia natural a Hobbes e a outros pioneiros do pensamento moderno partir dos individuos
pre-sociais, e deles e dos seus atributos essenciais e inseparaveis prosseguir perguntando como
tais individuos podem associar-se para formarem algo tao "supra--individual" como uma
sociedade ou urn estado. A oposicao entre as duas estrategias mostra a enorme distancia que
separa a individualidade modema da sua predecessora, os-

62

tensivamente de outra mundanidade, a qual sempre existiu it margem da sociedade e das


instituicOes e, em certo sentido, delas independente.
Havia, contudo, outra faceta importante que colocava a individualidade moderna aparte. Tendo
sido firmemente inserida dentro da vida social mundana, ocupava desde o inicio uma posicao
ambigua em relac`do a sociedade, cheia de tensoes que nunca abrandavam. Por um lado, o
individuo era creditado corn uma capacidade de julgamento, de reconhecimento dos interesses das
decisoes a tomar para actuar a seu favor — todas estas, qualidades que tornam viavel a vida em
conjunto numa sociedade. Porem, por outro lado, a individualidade estava imbuida de perigos
intrinsecos: o prOprio interesse do individuo, que o impelia a procurar garantias colectivas de
seguranca, tentava-o ao mesmo tempo a ressentir-se das coaccOes que essas garantias tmpli-
cavam. Em especial, a seguranca oferecida pela autoridade supra-individual estava condicionada
a eliminacao daqueles aspectos do individuo que se opunham a vida em associacao (e eram, por
isso, apelidados de "impulsos animais" ou "paixoes"). S6 quando esses atributos anti-sociais
forem usados em seguranca ou controlados, os seres humanos serao individuos completos.. Dal a
dualidade da individualidade moderna: por urn lado, ela é pertenca natural e inalienavel de todos
os seres humanos; mas por outro, é algo a ser criado, treinado, legislado, imposto pelas
autoridades agindo em nome do "bem comum" da sociedade como urn todo. Notemos
imediatamente que o que um tal element() de artificialismo implicava era a possibilidade de os
seres humanos nao serem todos igualmente permeaveis ao tratamento para os polir e aperfeigoar
e, por isso, nem todos terem igual oportunidade de se tornarem individuos no completo
sentido da palavra. Em alguns casos, o treino pode vir a ser inconclusivo e a imposicab vir a
ser permanente.

63

Antes de tentarmos explorar o significado sociologic° de tal implicacao, devemos fazer uma
pergunta mais fundamental. 0 aparecimento relativamente stibito do conceito de
individualidade universalista e mundana 6, se bem pensarmos nisso, urn misterio. Tanto mais
que aconteceu apenas numa pequena area do mundo e num periodo relativamente curto da
histOria. Nao pode ser explicado como invencao feliz de urn filosofo ou de uma escola filosOfica
que, por acaso, falou a imaginacao dos contemporaneos: o conceito, nas suas muitas aplicacOes
e nas praticas que legitimou e inspirou, surgiu ao inesmo tempo em demasiadas estruturas e
processos sociais para que o facamos remontar a urn imico livro ou mesmo a uma serie de
livros (sendo a possibilidade de assim o fazer remontar uma ilusao provocada e sustentada pela
perspectiva da "histOria das ideias"). Parece mais provavel que, se o conhecimento filosofico da
autonomia terrena do individuo humano se repercutiu tao largamente e depressa saturou a
consciencia de si propria de toda uma epoca historica, foi porque se harmonizou tab bem corn
urn novo galena de experiencia social — tao nova e diferente que nao se podia mais falar dela
ou explica-la em termos de estados, comunidades ou corporacoes. Parece provavel que esta
experiencia singular contenha a chave do nosso misterio.
Esta experiencia singular, ao contrario das descricOes populares e simplificadas, nao consistiu
num enfraquecimento subito, e muito menos no desaparecimento, da dependencia social — o
grau em que os seres humanos eram moldados, instruldos, controlados, avaliados, censurados,
"mantidos na linha" e, se necessario, "reconduzidos ao redil" por outros membros da sociedade.
0 grau de dependencia social assim entendido continua estavel atraves dos tempos, sendo
uma condica'o indispensavel para a existencia e perpetuacao da sociedade humana. Nab ha
seres humanos fora da sociedade, por muito que dependam dos

64

recursos que pessoalmente controlem para sua sobrevivencia, e por muito independentes que
se sintam nas suas decisOes. Foi antes a maneira como as pressOes sociais tinham sido
exercidas que passou por uma mudanca profunda, e resultou na experiencia de ser deixada,
finalmente, a discricao e a escolha de cada urn. A mudanca consistiu primeiro e
principalmente na substituicao de uma superabundancia de autoridades parciais, mutuamente
desligadas, por vezes mutuamente contraditorias, comportando-se todas como se nao existissem
outras sociedades e todas exigindo o impossIvel — lealdade apenas para corn elas
por uma fonte de autoridade unificada, indiscutIvel e facilmente reconhecIvel.
A necessidade social falava agora por muitas vozes que, juntas, soavam mais como uma
cacofonia do que como urn coro. Em larga medida, foi deixado ao ouvinte extrair do barulho
uma melodia consistente que pudesse seguir. Ate certo ponto, as vozes calaram-se umas as
outras; nenhuma voz era capaz de assegurar uma superioridade nitida e indiscutivel para o tema
que desenvolvia. Isto tinha urn duplo efeito sobre o "ouvinte': por urn lado, era-lhe oferecida
uma nova autoridade de arbitrageur; por outro, ficava sobrecarregado corn a nova
responsabilidade pela escolha resultante.
Nem tao-pouco foi essa experiencia singular algo surgido simultaneamente a todos os habitantes
da Europa ocidental, em todos os paises e a todos os niveis da hierarquia social. Conforme
demonstrado convincentemente por estudos recentes, as condicOes subjacentes ao aparecimento
da individualidade surgiram em Inglaterra muito antes de em qualquer outra parte. D. A. Wrigley
documentou a alta taxa da mobilidade social, o declInio dos direitos e obrigacOes ligados ao
parentesco, a invulgarmente grande extensao da intervencao do mercado na circulacao das
mercadorias, e o relativo enfraquecimento da autoridade comunal em virtude

65

de uma burocracia de estado avancada tudo isto acontecido em Inglaterra seculos antes de se
alargar ao continente europeu. (4) Alan Macfarlane fez remontar a singularidade inglesa ao
seculo XIII e observou que "os estrangeiros que visitaram Inglaterra ou leram acerca dela e os ingleses
que viajaram e viveram no estangeiro nab podem ter deixado de notar que estavam a passar nao
apenas de uma zona geogthflea, lingulstica e climatica para outra, mas de e para uma sociedade em
que quase todos os aspectos da cultura eram diametralmente opostos aos das naceies circundantes". (5) As
diferencas entre os palses eram, contudo, de tempo; as diferencas entre os niveis da hierarquia
social mostraram ser, a longo prazo, muito mais arreigadas, porque se mostraram mais
resistentes ao impacto nivelador do tempo.
De facto, a individualidade era o destino de algumas pessoas; e, como no caso da liberdade, era
assim sentida na medida em que continuava a ser uma diferenca mais do que uma condicao universal.
Este facto dd.° se reflectiu necessariamente nas analises filosOficas dos conceitos de
individualidade, autonomia pessoal e liberdade. Em vez disso, elas concentraram-se nos locais
onde as condicOes de vida podiam ser expressas como individualidade e liberdade — e esses
eram locais selectivos. 0 esclarecimento da experiencia ligada a esses locais levou aos filosofos
muito tempo. Edward Craig distinguiu recentemente tres temas sucessivos nos raciocinios dos
filosofos ocidentais (e modemos) sobre a condicao humana. (6)

(4) D. A. Wrigley, People, Cities, and Wealth; The Transformation of Traditional


Society, Blackwell, Oxford, 1987, pp. 51-60.
(5) Alan Macfarlane, The Origins of English Individualism: The Family, Property
and Social Transition, Blackwell, Oxford, 1978, p. 165.
(6) Edward Craig, The Mind of God and the Works of Man, Clarendon Press, Oxford,
1987.
66

No inicio da era modema, e particularmente nos tempos do Iluminismo, a "tese da semelhanca"


dominava o pensamento filosofico: a experiencia embriagadora da liberdade obtida de fresco em
relacao aos determinantes externos da escolha, era sentida como dominio sobre a realidade externa;
urn dominio semelhante — talvez mesmo igual — aquele anteriormente reservado apenas a Deus.
Contudo, depressa o efeito inevitavel da autodeterminacab individual — o choque de vontades, a
disparidade entre intencoes individuais e resultados factuais — foi descoberto, e a atencdo dos
filOsofos voltou-se para o conflito ubiquo entre a liberdade moral e a necessidade Mica, os desejos
individuais e as exigencias sociais; as consequencias praticas do choque de vontades tem sido
explicadas como solidez e elasticidade, indiferentes e naturals, da realidade social ("realidade" na
medida em que nab podiam ser banidas). So para o fim do seculo XIX o tema de "accao" ou "pthtica"
comecou a ganhar ascendencia, tema que extrala conclusaes tanto da ingenuidade do antigo
optimismo como do desespero que se seguiu a sua derrocada. Este ultimo tema
que liga a liberdade de escolha do homem (embora nab necessariamente liberdade de alcangar os
resultados esperados) ao catheter inconclusivo, e por isso manipulavel, da deterrninacao extema —
chega talvez mais perto da explicacao da condicdo mais fundamental do individualismo modern: o
pluralismo, a heterogeneidade, a desarticulacito dos poderes sociais, que criam tanto a necessidade como
a possibilidade da escolha individual, da motivacao subjectiva e da responsabilidade pessoal.
De urn modo geral, alguns sociologos tinham antecipado esta conclusao filos6fica relativamente
recente. Procuraram as razes da individualidade modema em varias partes da historia ou da
estrutura social, mas concordaram no essencial: a individualidade como valor, preocupacdo intensa, corn
as caracteristicas e a singularidade individuais, a expe-

67
riencia pungente de ser um "eu" e de "ter" urn eu ao mesmo tempo (isto é, ser obrigado a
cuidar, defender, manter lirnpo, etc., o seu eu, tal como se faz corn as outras coisas
possuldas) é uma necessidade imposta a algumas classes de pessoas pelo contexto social das
seas vidas, e o aspecto mais relevante desse contexto é a ausencia de uma norma inequlvoca e
abrangente capaz de fornecer (e fazer cumprir) uma receita comportamental inequivoca para o
"projecto de vida" como urn todo, assim como para as situacoes sempre variaveis da vida de
todos os dias. Na ausencia de uma corrente toda-poderosa e esmagadora, as naus individuais
tern de ter os seus proprios giroscopios para as manter na rota. Esse papel de "giroscopio" é
desempenhado pela capacidade individual de controlar e corrigir a propria conduta. Esta
capacidade chama-se "auto-controlo".
A liberdade do individuo modemo nasce, portanto, da incerteza; de uma certa "sub-
determinagae da realidade externa, da controversia intrinseca das pressOes sociais. 0 individuo
livre dos tempos modernos, para empregar a famosa expressao de Robert Lifton, "urn homem
proteico", alguem que é simultaneamente sub-socializado (porque nenhuma formula que tudo
abranja e seja indiscutIvel esta prestes a surgir vinda do mundo "la fora"), e ultra-
socializado (porque nenhum "inicleo" no sentido de identidade atribulda, herdada ou oferecida é
suficientemente forte para resistir as correntes desencontradas das pressoes externas, e por isso a
identidade tem de ser constantemente negociada, ajustada, construlda sem interrupcao e sem
nenhuma perspectiva de finalidade).
A responsabilidade por esse estado de coisas atribufram-na os sociOlogos a desuniao,
pluralidade de poderes e heterogeneidade da cultura, que é cada vez mais reconheci-
(') Comparar corn Robert Jay Lifton, "Protean Man", Partisan Review, Invemo de 1968, pp. 13-27.
68
da como a caracterfstica mais conspicua da sociedade moderna. Emile Durkheim ligou o
nascimento da individualidade moderna a crescente divisao do trabalho e a consequente
exposicao de todo e qualquer membro da sociedade a areas de autoridade especializadas e
descoordenadas, nenhuma das quais podendo reivindicar uma lealdade total e abrangente.
George Simmel viu a tendencia individual para apelar "ao maxim° em singularidade e
particularizacab" como uma necessidade da vida que, "cada vez mais, é composta" de "contelido e
ofertas" &spares; o Unico terreno solid° que a pessoa pode desejar (e mesmo esse em vac)) no
turbilhao de impressOes caoticas que o meio urbano moderno nunca se cansa de proporcionar, é a
sua propria "identidade pessoal".
0 estudo de Norbert Elias sobre a modemizacao como "processo civilizador" (que colocou numa
perspectiva historica a ligacao entre a sociedade modema e as coaccOes civilizadoras impostas
ao comportamento humano "naturalmente" violento e apaixonado, pela primeira vez realcado
por Siegmund Freud) apresenta a experiencia da autonomia do individuo, da sua "falta de
ligacao" corn dependencias extrinsecas, mais como urn resultado do processo de auto-
distanciamento e auto-desprendimento do que como um reflexo de uma distancia "objectiva" e
de falta de relacao. 0 catheter confuso das pressOes extemas e a sua evidente falta de direccao
sao encaradas como a insignificancia e a inutilidade do que quer que seja que exista "fora" do
individuo. Dal a nao-ligacao do "eu" que pensa, que sente e que tern objectivos, corn alvos inertes,
inanimados, do seu pensamento e accao. No entanto, este Or de parte é possivel (e
discutivelmente inevitavel) apenas porque as cornpulsOes inter-pessoais externas ja foram
"incorporadas" e reforjadas no ego auto-controlador ("a guamicao da cidade conquistada" de
Freud).

69

Sao estes autocontrolos civilizadores, funcionando em parte automaticamente, que sao agora
experimentados na auto-percepgab individual, como um muro quer entre "sujeito" e "objecto"
quer entre o proprio "eu" e as outran pessoas (a "sociedade").
A nogRo de individuos decidindo, actuando e "existindo" em absoluta independencia uns dos
outros é urn produto artificial dos homens caracterfstico de uma certa fase do
desenvolvimento da sua auto-percepcdo. Apoia-se em parte numa conflisdo de ideias e de
factos, e em parte numa coisificac5o dos mecanismos individuals de auto-controlo. (8)
Se Elias desenvolve a interpretacao da individualidade moderna segundo as linhas anteriormente
exploradas por Simmel, outro distinto sociOlogo contemporaneo, Niklas Luhmann, segue a
linha originariamente escolhida por Durkheim. Relaciona as origens da individualidade
moderna corn "a transicao da diferenciacao estratificada para a funcional, dentro da
sociedade"; esta transicao, por sua vez, conduz "a uma major diferenciagao dos sistemas pes-
soais e socials", porque, "corn a adopcao da diferenciacao funcional, as pessoas individuais ja
nao podem ser firmemente colocadas num unico sub-sistema da sociedade, mas antes devem ser
encaradas a priori como socialmente deslocadas". Em palavras mais simples, toda a pessoa é,
em certo sentido, um estranho, urn marginal num aspecto ou noutro; nao pertencendo a
qualquer entidade "total" mas forcados a inter-agir corn muitas dessas entidades, os
"individuos sao ainda mais induzidos a interpreter a diferenca entre eles proprios e o meio
ambiente... em termos da sua propria pessoa, pelo que o ego se toma o ponto focal de todas as
suas experiencias interiores e o meio ambiente perde a maioria dos seus contornos." (9)

(') Norbert Elias, The Civilising Process: The History of Manners, trad. de Edmund Jephcott, Clackwell,
1978, pp. 256 e 260 respectivamente.
(9) Hildas Luhmann, Love as Passion: The Codification of Intimacy, trad. de Jeremy Gaines e Doris L.
Jones, Polity Press, Londres, 1986, p. 15.

70

Do ponto de vista de Luhmann, esta alienacao de toda e qualquer pessoa em relacao a todo e
qualquer "sub-sistema" dentro da sociedade, abre urn vasto espaco para o desenvolvimento
individual e permite que a vida interior do individuo alcance uma profundidade e riqueza
nunca atingidas em condicoes de rigoroso controlo comunal. Porem, por outro lado, a alienacao
rmitua dos individuos pOe em duvida a propria continuacao da comunicacao inter-pessoal; na
verdade, urn discurso e urn acordo significativos tornam-se improvaveis. Para que a
comunicacao aconteca apesar disto, as experiencias interiores dos seus intervenientes organizadas
a volta de pontos focais separados tern de ser validadas inter-subjectivamente, isto é,
socialmente. Segundo Luhmann, esta validacao é na verdade consumada numa sociedade
moderna atraves do amor: urn meio de comunicacab consentido e apoiado, em que os
intervenientes que inter-agem reconhecem reciprocarnente a validade e relevancia da
experiencia interior uns dos outros — cada parceiro encarando a experiencia interior do outro
como real, tomando-a como motivo da sua propria accao.
Podemos aqui observar que a incerteza que ensombra todas as auto-sinteses individuais,
enquanto ainda nao é socialmente confirmada condicao esta tao inteligentemente explorada
por Luhmann desencadeia urn desejo obsessivo de certeza que pode ser saciado por outros
meios que nao o "amor". Bensman e Lilienfeld sugerem a psicoterapia como urn desses meios;
consideram a entrevista psicoterapeutica "uma das grandes realizacOes da psicologia", "onde o
peso da privacidade é, durante uma hora, valorizado" (1°) e onde e oferecida uma avaliacao
cientificamente respeitavel e, portanto, socialmente credivel. Andrew J. Weigert generalizou
o papel exemplificado pela

(1") Joseph Bensam e Robert Lilienfeld, Between Public and Private: The. Lost Boundaries of
the Self, Free Press, Nova lorquc, 1979, p. 62.

71

psiquiatria, fazendo notar que a necessidade de "verdade" (fundamento supra-pessoalmente


confirmado, autorizado e por isso socialmente valid° para a auto-interpretacao) "faz o cidadao
dependente dos peritos": "nos, modernos, vivemos uma vida dominada pela atitude cientifica
sem sermos nos prOprios verdadeiros cientistas" (11); o direito exclusivo de falar coin a
autoridade do conhecimento cientffico e objectivo tem sido reservado aos especialistas.
Podemos tambem pensar noutros meios que satisfacam corn exit° a procura gerada pelos
problemas de validacao da sintese centrada no ego — tal como a inddstria do consumo e a sua
arma da publicidade, ou movimentos politicos totalitaxios, ou seitas religiosas
fundamentalistas. Voltaremos a este topic° mais detalhadamente no capftulo seguinte.
A parte a sua estreita ligacao corn o individualismo, a versao modema de liberdade é
caracterizada pela sua intima relacao corn o capitalismo. Na verdade, as dtividas expressas pelos
opositores politicos do capitalismo quanto a ser esse realmente o caso, tern poucas
probabilidades de ganhar a questa°, visto que a afirmacao que contestam é virtualmente
autoconfirmada. As modernas interpretacoes de liberdade e definicoes de capitalismo eslao
articuladas de tal forma que supOem a necessidade de uma ligacao inquebravel entre as duas e
tornam a hip6tese de uma poder existir sem a outra logicamente defeituosa, se nao absurda.
Como inteligentemente fez notar Mike Emmison, (12) o que chamamos capitalismo é uma
situacdo onde as funcOes economicas, substantivas e etemas, de qualquer sociedade

(") Andrew J. Weigert, Sociology of Everyday Life, Longman, Londres, 1981, pp. 115, 122.
(12) Mike Emmison, "The Economy" : Its Emergence in Media Discourse, in Woward Davis e
Paul Walton (eds.), Language, Image, Media, Blackwell, Oxford, 1983, pp. 141 e ss..
72

humana, designadamente a satisfacdo das necessidades humanas atraves da troca corn a natureza e
corn as outras pessoas, sa.o executadas pela aplicacao de alculos meios-fins a questab da
escolha entre recursos escassos e limitados. Mas a escolha e o calculo meios-fins
(nomeadamente, o comportamento motivado, intencional e controlado pela razab) sab as
caracteristicas essenciais e definidoras da liberdade conforme a entendida na sociedade moderna. 0
que se segue 6 que o capitalismo, por sua propria definicao, abre a liberdade uma esfera de vida social
enorme, se nab decisiva: a producab e distribuicao de bens destinados a satisfacao das
necessidades humanas. Sob a forma capitalista de organizacao economica, a liberdade (pelo menos
a liberdade economica) pode fiorescer. Mais do que isso, a liberdade torna-se uma necessidade.
Sem liberdade, o objectivo da actividade economica nao pode ser cumprido.
0 capitalismo proporciona as condicoes praticas para o comportamento da livre-escolha
"erradicando" a funcao economica, isto 6, cortando a actividade economica de todas as outras
instituicOes e funcOes sociais. Enquanto a economia esteve "radicada" (e assim ficou ate ao ponto
de nab se distinguir conceptualmente da vida social em geral, durante a maior parte da histOria da
humanidade — de facto, ate ao seculo XVIII), a actividade produtiva e distributiva esteve sujeita a
pressOes de numerosas normas sociais nab directamente destinadas a actividade em si, no entanto
orientadas para a sobrevivencia e reproducab de outras instituicoes vitais. Assim, a producab e
distribuicao estayam sujeitas a deveres de parentesco, a lealdades comunais, a solidariedades
corporativas, rituais religiosos ou estratificacao hierarquica dos padrOes de vida. 0 capitalismo
tornou irrelevantes todas estas normas extrinsecas e assim "libertou" a esfera economica, para a regra
indiscutivel do calculo meios-fms e para o comportamento da livre escolha. A economia
capitalista nab a apenas o terreno onde

73

a liberdade pode ser praticada da maneira menos coagida, sem interferencias de quaisquer
outras pressOes ou consideracOes sociais; e tambem o viveiro onde a modema ideia de
liberdade foi plantada e cultivada para mais tarde ser enxertada noutros ramos da vida
social, cada vez mais ramificada. E evidente que, mesmo na esfera econ6mica propriamente
dita, a regra absoluta de liberdade a mais urn postulado ou urn ideal do que uma realidade;
todavia, em nenhuma outra area a liberdade se aproxima tanto da regra indivisa como na
economia.
0 capitalismo define a liberdade como a capacidade de orientar o pensamento prOprio apenas
pelo calculo meios-fins sem necessidade de preocupacoes corn outras consideracoes ("outras"
serao, por definicao, aquelas consideragOes requeridas pelo use de meios menos eficientes, ou
que comprometem os objectivos, ou ambas as coisas). Qual 6, por6m, a substan.cia social do
calculo meios-fins?
Philippe Dandi deu-nos recentemente uma descricao sucinta daquilo a que ele charna
"discurso primitivo ocidental do poder": "Conquistaremos e subjugaremos a natureza,
dominaremos as leis da fisica e teremos poder sobre as coisas. Esta mentalidade é tambern
expressa no nosso desejo de tratar as pessoas da mesma maneira como aprendemos a tratar as
coisas. Vemo-nos uns aos outros como ins-trurnentos para moldar e manobrar como se as
pessoas tambern fossem coisas". (13) No comportamento subordinado somente ao calculo meios-
fins, as outras pessoas sao destinadas a terem uma finalidade — como as coisas que servem
para o mesmo proposito (materias primas, meios de transporte, etc.). 0 comportamento guiado
pelo calculo meios-fins esforca-se por tomar as outras pessoas "como

(13) Philippe Dandi, Power in the Organisation: The Discourse of Power in Managerial Praxis,
Blackwell, Oxford, 1986, p. 1.
74

coisas"; isto 6, tende para privar as outras pessoas da escolha, e ao mesmo tempo torna-as
mais objectos do que sujeitos da accao.
Existe, pois, uma intrinseca ambiguidade na liberdade, na sua edicao moderna, ligada ao
capitalismo. A eficacia da liberdade exige que algumas pessoas permanecam nao-livres. Ser
livre significa ter a possibilidade e a capacidade para manter os outros nao-livres. Assim a
liberdade, na sua forma modema economicamente definida, nao difere das suas aplicaceies
pre-modemas no que respeita ao seu con-teach) de relacOes sociais. E, como antes, selectiva. Pode
ser verdadeiramente alcancada (como distinta da postulada filosoficamente) apenas por uma
parte da sociedade. Constitui um polo numa relacao que tern regulamentos normativos,
limitacOes e coaccOes como o seu outro polo.
Esta caracterfstica crucial da liberdade moderna é muitas vezes escondida na generalizacao
filosofica de uma experiencia limitada, em verdade, aos privilegiados. A consciencia do
dominio sobre as nossas proprias condicoes (do-mini° inevitavelmente conseguido a. custa da
subordinacao de outra qualquer pessoa) 6 mencionado como a facanha colectiva da humanidade; a
conduta intencional, consciente da sua eficiencia e, guiada pela razao, identifica-se corn a ra-
cionalizacao da sociedade como tal. Por fim, fazem-se afirmacoes mais mistificadoras do que
esclarecedoras acerca das realizacOes de urn "homem" nao especificado das quais a que se
segue é urn born exemplo: "0 domInio do mundo, ou pelo menos o potencial para ele,
surgiu ao homem atraves da racionalizacao. Os seres humanos substituiram Deus como
controladores do seu destino". (14) 0

(14) Jeffrey C. Alexander, "The Dialectic of Individuation and Domination: Weber's


Rationalisation Theory and Beyond", in Sam Whimster e Scott Lash (eds.), Max Weber,
Rationality and Modernity, Allen & Unwin, Londres, 1987, p. 188.
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III — OS BENEFÍCIOS E OS CUSTOS DA LIBERDADE


O desejo de liberdade nasce da experiência da opressão, isto é, da sensação de não se poder deixar de
fazer o que se preferiria não fazer (ou não poder abster-se de o fazer sem se expor a uma pena que é
ainda mais desagradável do que a rendição à exigência original), ou da sensação de não se
poder fazer o que se desejaria fazer (ou de não poder fazê-lo sem se expor a uma pena mais dolorosa
do que a abstenção dessa acção).
Por vezes é possível localizar a origem da opressão nas pessoas conhecidas — pessoas com quem
se tem um contacto comunicativo directo. Grupos pequenos e íntimos, com os quais se entra ou
estabelece voluntariamente contacto — esperando escapar às regras incómodas e aos moldes formais
da "vida pública", e assim deixar cair os braços, relaxar-se, dar livre curso às verdadeiras sensações —
podem transforma-se rapidamente em fontes de opressão por direito próprio. Nas palavras de
Barrington Moore Jr.:
Entre os grupos íntimos e até entre os casais de apaixonados a experiência comum mostra que a
amizade calorosa pode, com a passagem do tempo; transformar-se numa altamente agressiva. A
protecção pode transforma-se em opressão. Uma razão para esta transformação é o tédio e a
saciedade. Outra ... é a quebra das relações cooperativas. (I)

(') Barrington Moore Jr., Privacy: Studies in Social and Cultural History, M. E. Sharpe, Arnouk,
1984, p. 42-43.
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Na nossa sociedade, complexa e funcionalmente dividida, a necessidade de 'amizade calorosa",


que somente os grupos íntimos ou os casais podem oferecer, é talvez mais forte do que antes.
Porém, também o é a possibilidade de tais grupos se transformarem numa nova e sinistra fonte de
opressão. Os grupos estão sobrecarregados de expectativas que é virtualmente impossível
realizar, e que, ao serem frustradas, levam à mútua recriminação. No estudo atrás citado,
Nicklas Luhmann relaciona esta sobrecarga contemporânea de intimidade com o facto de ser no
companheiro amante-amado que as pessoas agora procuram a aprovação e a "confirmação
social" da sua identidade individual.
Noutros casos, a experiência da opressão pode ser difusa, "imprecisa", vinda de uma fonte
obscura. Sente-se que se é maltratado mas não existe ninguém em especial a quem culpar, excepto
o "eles" anónimo (que apenas substitui a consciência da própria ignorância). Esta dificuldade
notória em localizar os culpados de muitos actos obviamente maldosos explica-a John Lachs pela
"mediação da acção" — o facto de, numa sociedade complexa, com divisões de trabalho
multidimensionais e minuciosamente aperfeiçoadas, a iniciativa e o desempenho autêntico da
maior parte das acções, coincidirem raramente numa pessoa; em regra, existe uma grande
distância social entre a ordem e o seu cumprimento, entre o projecto e a execução, uma distância
preenchida por muitas pessoas, cada uma delas apenas tendo um vago conhecimento de intenção
original e do objectivo final da actividade para a qual contribuem (a alternativa para entender a
"acção mediadora" seria em termos de "laços alargados de dependência" que, segundo Norbert
Elias, caracterizam a nossa sociedade moderna).
O que é extraordinário é não sermos incapazes de reconhecer as más acções e as grandes
injustiças quando se nos deparam. O que nos espanta é como elas puderam aparecer quando
cada uni de nós não praticou senão actos inofensivos. Procuramos alguém a

82

quem atribuí-las, conspirações que possam explicar os horrores que abominamos. É difícil
aceitar que muitas vezes não exista pessoa nem grupo que as planearam ou causaram. (2)
Sempre que, a despeito de grande esforço, não conseguimos "pessoalizar" a culpa, temos
tendência para falar de opressão social; uma opressão que deriva da própria existência da
sociedade, como uma espécie de necessidade inevitável e natural (quando não tencionamos
fazer nada contra ela); ou uma pressão que resulta de urna organização defeituosa da sociedade
(quando ainda temos esperança de a eliminar).
Por muito que especulemos sobre a sensação de opressão, as raízes dela estão sempre no
conflito entre as nossas próprias intenções (ou intenções sentidas como nossas) e a
possibilidade de agir segundo elas. Esse conflito é o que se (leve esperar numa sociedade em que
praticamente toda a gente está "socialmente deslocada", e exposta continuamente a pressões e
exigências descoordenadas e muitas vezes contraditórias, vindas de sectores funcionais e
semi-autónomos da sociedade mais alargada, e a avaliações reciprocamente incompatíveis dessas
exigências e pressões. Paradoxalmente, a mesma sociedade que, graças às suas diferenciações
funcionais, deixa ao indivíduo muitas possibilidades de opção e o faz um indivíduo
verdadeiramente "livre", também gera em altíssima escala a experiência da opressão.
Quando a experiência de opressão é comum, também o é o esforço para a liberdade. O
significado de liberdade permanece claro enquanto se pensa nela como correcção da opressão;
como supressão desta ou daquela coacção específica, em desacordo com uma intenção sentida
muito inten-

(2) John Lachs, Responsability and the Individual ira Modern Society, Ilarvester Press,
Brighton, 1981, p. 58.
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samente e dolorosamente frustada. É menos fácil visualizar a liberdade positivamente, como


um estado durável. Todas as tentativas para o fazer levam a contradições para as quais, até
agora, não se encontrou solução.
A "liberdade completa" só pode ser imaginada (embora não praticada) como plena solidão:
abstenção total de comunicação com outras pesoas. Tal estado é insustentável mesmo em
teoria. Primeiro, a libertação dos laços sociais deixaria a pessoa "livre", sozinha contra as
vantagens esmagadoras da natureza; as outras pessoas, por muito nocivas e importunas que
possam ser, como fonte de exigências indesejáveis, são também recursos sem os quais o
esforço de sobrevivência puramente física estaria condenado. Segundo, é em comunicação com
as outras pessoas que a afirmação das nossas opções se estabelece e as acções ganham
significado. Por muito pessoais que os nossos propósitos possam parecer, são sempre mais
copiados do que inventados ou, pelo menos, é-lhes dado sentido em retrospectiva pela
aprovação por parte de algum agrupamento social (ou é-lhes recusada aprovação, e neste caso
continuarmos devotados a eles seria socialmente classificado como um caso de loucura). A
separação persistente de companhia humana envolveria, portanto, as calamidades gémeas de
falta de protecção e de incerteza crescente, cada uma delas suficiente para transformar em
perda todos os ganhos imagináveis de liberdade.
Se a liberdade completa é mais uma experiência mental do que prática, a liberdade numa forma
mais atenuada é praticada sob o nome de "privacidade". Privacidade é o direito de recusar a
intromissão de outras pessoas (como indivíduos ou como agentes de alguma autoridade
supra--individual) em lugares específicos, em momentos específicos ou durante actividades
específicas. Enquanto goza de privacidade, o indivíduo pode estar "fora das vistas", certo de
não ser observado e por isso capaz de se dedicar seja ao

84

que for que queira dedicar-se, sem medo de reprovação. A privacidade é em regra parcial —
intermitente, confinada a lugares especiais ou a determinados aspectos da vida. Para além de
certos limites, pode transformar-se em solidão, e proporcionar assim um sabor a alguns dos
horrores da liberdade "completa" imaginária. A privacidade serve melhor a sua função de
antídoto das pressões sociais, quando nos podemos mover livremente para dentro e para fora
dela; quando a privacidade é realmente um interlúdio entre períodos de convívio social; de
preferência, um interlúdio que possamos marcar para o momento da nossa escolha.
A privacidade é dispendiosa e é-o à letra. Algumas pessoas são privadas dela pela força e por
isso expostas à vigilância implacável de controlos externos, corno os reclusos do "panopticon"
de Bentham; prisões, quartéis, hospitais, clínicas psiquiátricas, escolas, são todos instituições
onde o impedimento de privacidade avulta largamente entre as técnicas usadas ao serviço de
fins declarados. A ausência de proibições impostas pela força não significa, todavia, que a
privacidade esteja livremente ao nosso dispor. A privacidade requer "refúgios" (Orest Ranum
o% quartos particulares, jardins murados, recantos, bosques isolados contra intrusos — espaços
assinalados como de uso pessoal somente, e protegidos eficazmente de "passeantes sem au-
torização". O acesso a estes espaços é sempre questão de privilégio ou de ostentação; só os ricos
e poderosos podem partir do princípio de que a alternativa da privacidade está constantemente ao
seu dispor, como facto consumado. Para os restantes, a privacidade, mesmo como proposição
viável, é problemática — um alvo distante — o objectivo de um esforço e de um sacrifício
tenazes.

Orest Ranum, "Les Refuges de l'intimité", in Phillipe Ariès e Georges Duby (eds.), Histoire de la
Vie Privée, Seuil,
Paris, 1986, vol. 3, pp. 211-214.
85

Porém, a privacidade é também dispendiosa no sentido de outras necessidades pessoais que


têm de ser negociadas em seu nome. Acima de tudo, a privacidade requer pelo menos uma
suspensão temporária das relações sociais; não há ninguém com quem partilhar os nossos
sonhos, preocupações ou receios, que ofereça ajuda ou protecção. A privacidade é suportável
somente graças à certeza de que o regresso à companhia dos outros, a oportunidade para par-
tilharmos os nossos pensamentos e propósitos com outros são sempre possíveis. Os custos
subjectivos dessa opressão, que são o preço de toda a comunicação, tendem a diminuir à
medida que aumenta a extensão da privacidade.
A imagem geral que surge das considerações atrás é de ambiválência. O horror à repressão é
contrabalançado pelo medo da solidão; o descontentamento com a aceitação imposta tende
para ser neutralizado pela ansiedade provocada pela responsabilidade que não é possível
partilhar com os outros. Olhando para a ambiguidade inerente à liberdade pelo outro lado,
George Balandier fez notar o seu parentesco com uma ambivalência igualmente persistente
de todo o poder, por mais opressivo. O poder oferece, por assim dizer, "liberdade pela
liberdade"; liberta da responsabilidade de escolha — que é frequentemente cruciante e
demasiado arrriscada para o gosto de cada um. Precisamente porque pode ser
opressivo, e por isso eficiente no seu despotismo, o poder pode ser encarado como uma garantia
de regularidade, experimentada como ordem e segurança; por isso tem tendência para ser
aceite, mesmo se, ao mesmo tempo, é ressentido e contestado como o guardião de uma
versão específica de ordem, em que os problemas controversos são resolvidos contra os
interesses das pessoas. A aceitação e a recusa não se limitam a alternar na nossa atitude para
com o poder; a maior parte das vezes estão presentes ao mesmo tempo, misturando-se incomoda-
mente nas nossas relações com o poder, tal como fazem na

86

nossa atitude para com a liberdade. "Todos os regimes políticos exibem esta ambiguidade,
quer se submetam à tradição, quer à racionalidade burocrática." (4)
Os dois casos de ambivalência, um associado à experiência da liberdade e o outro às coacções
ligadas a todos os membros de grupos, geram continuamente o sonho da comunidade; um
género especial de comunidade, digamos assim, que não tem semelhanças com quaisquer
comunidades reais conhecidas dos historiadores e antropólogos (na curta frase de Mary
Douglas, "as sociedades em pequena escala não servem de exemplo da visão idealizada de
comunidade" (5)). A fantasia, gerada e alimentada pela desconcertante ambiguidade da liberdade,
evoca uma comunidade que põe fim ao medo da solidão e ao horror à opressão ao mesmo
tempo; uma comunidade que não se limita a "deitar fora" os dois insuportáveis extremos, mas
que os elimina para sempre; uma comunidade onde a liberdade e a companhia podem ser gozadas
simultaneamente — ambas recebidas, por assim dizer, livres de encargos. Comunidades
sonhadas deste tipo servem como soluções ilusórias para uma contradição que sempre se nos
depara e que nunca é conclusivamente solucionada na realidade da vida diária. Tais sonhos
são muitas vezes mal interpretados como manifestações de nostalgia e logo postos de parte
com base na inexactidão histórica. De facto, as suas raízes pren dem-se firmemente nas
realidades presentes, e é por isso que as comunidades ilusórias nos ajudam a compreender
melhor as contradições bem reais implantadas na vida social moderna.
A necessidade de liberdade e a necessidade de interac-

(4) George Balandier, Political Anthropology, trad. de A. M. Shandon Smith, Random House,
Nova Iorque, 1970, p. 41,
(') Mary Douglas, How Institutions Think, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1987, p. 25.
87

ção social — inseparáveis, embora por vezes em desacordo uma com a outra — parecem ser
uma faceta permanente da condição humana. De uma maneira geral, a acutilância com que cada
uma delas é sentida, depende do grau em que a outra é realizada ou exagerada. O equilíbrio
entre elas modifica-se quando passamos de uma era histórica para outra, ou de uma sociedade
para outra. A revolução capitalista inflamou a imaginação popular com a visão de liberdade em
relação às iniquidades de posição social e às aborrecidas intromissões por parte de corporações
ou de paróquias. Com estas coacções travadas e postas de parte, a maior parte das pessoas
achava, contudo, que a liberdade significava a necessidade de contar com os seus próprios
recursos, o que estava certo desde que tivessem recursos com que pudessem contar. Para
muitos o poder forte mais uma vez se tomou uma prioridade — e um candidato a ditador
que prometesse às pessoas perplexas uma forte dose de leis, ordem e certezas, teria boas
probabilidades de ser largamente ouvido e avidamente aceite.
Para que lado se move o pêndulo no tipo de sociedade onde vivemos? Sentimos mais falta da
liberdade ou da companhia comunal? A nossa sociedade, com a sua liberdade para
procurarmos riqueza e importância social, com a sua livre-competição e uma gama cada vez
maior de opções para o consumidor, proporcionou-nos toda a liberdade que desejamos? Será que
a satisfação da outra necessidade, a do apoio comunal, é a última tarefa que ainda resta na agenda
social?
Uma resposta concisa para esta pergunta não é fácil de encontrar e ainda mais difícil de
justificar. Desvios subtis na perspectiva cognitiva (entre aspectos de vida, ou categorias de
pessoas cuja situação é posta em foco) podem conduzir a pontos de vista largamente
divergentes. Muitos observadores afirmam, com boas razões, que o capitalismo, especialmente
na sua fase de consumo, abriu à maioria das

88

pessoas a possibilidade de exercerem o seu talento, vontade e julgamento numa medida até então
desconhecida (comparem-se, por exemplo, os comentários de Bryan S. Turner sobre o papel da
opção do consumidor no aumento da liberdade individual (6)). Outros realçam com razões igualmente
boas, o enorme avanço do controlo social sobre a vida individual, que foi possibilitado pelos
progressos espectaculares da tecnologia de informação, as chamadas "profissões da comunicação"
e, na verdade, uma nova versão do "taylorismo social", desta vez dirigido ao comportamento do
consumidor. A citação que se segue, de um estudo de Robins e Webster é uma expressão deste
ponto de vista, invulgarmente equilibrada e moderada:
os círculos da vida estão agora regulamentados mais consciente e sistematicamente, mais claramente
geridos do que no passado (quando a fome, a opressão e a tirania da natureza eram os principais
meios de controlo), mais fáceis de prever, de orientar, e de aproveitar os desejos das pessoas, as
suas carências, motivações e acções. A nossa opinião é que o controlo está mais integrado nas
relações sociais do que anteriormente e que, embora possa não tomar uma forma rígida ou mesmo
desagradável, é mais alargado do que dantes, de tal modo que mesmo as "tentativas de fuga" da
rotina e da arena previsível do trabalho, para passatempos, férias, fantasias, etc., estão habitualmente
arrumadas e seladas. (7)
Uma corrente de certo modo diferente de análises recentes diz respeito não tanto à quantidade
global de liberdade ou não-liberdade que a sociedade contemporânea pro-

(6) Bryan S. Turner, "The Rationalisation of the Body: Reflections on Modernity and Discipline",
in Sam Whimster e Scott Lash (eds.), Max Weber, Rationality and Modernity, Allen & Unwin,
Londres, 1987, p. 238.
(') Kevin Robins e Frank Webster, "The Revolution of the Fixed Wheel", (Jeremy Seabrook):
Information, Technology and Social Taylorism", in Phillip Drummond e Richard Peterson
(eds.), Television in Transition, BFI, Londres, 1985, p. 36.
89

duz, como ao carácter mutável de tais liberdades tal como esta sociedade pode proporcionar.
O leitor talvez se recorde, do capítulo precedente, que a versão moderna de liberdade estava
marcada por uma íntima associação com a individualidade e com o capitalismo; no entanto, é
precisamente esta ligação que agora se afirma estar a desaparecer. rapidamente. A liberdade que
podemos encontrar na nossa sociedade — diz-se — não está decerto a tomar a forma do indivíduo
soberano, afirmativo, independente, que considerávamos a sua corporização mais evidente desde
o alvorecer dos tempos modernos e da sociedade capitalista. E assim, Abercrombie, Hill e
Turner sugerem que o "Individualismo e o capitalismo já não estão ao serviço um do outro. O
capitalismo ultrapassou o individualismo e é agora menos modelado por ele do que
anteriormente. Na verdade, existem indícios de que o individualismo no mundo moderno pode
ser desestabilizador para o capitalismo". E concluem que "há uma erosão progressiva da área da
liberdade e um correspondente regresso ao mundo privado que resta". (8)
Sem emitir hipótese semelhante, Norbert Elias apresentou uma teoria que descreve um divórcio
progressivo entre o capitalismo e o "indivíduo soberano" como inevitável. Na verdade, a
sobrevivência deste último é impossível, se o princípio que define o primeiro ("livre
competição") for aplicado sem qualificação. Esta é uma teoria poderosa, baseada numa
análise perceptiva de profusa evidência histórica, e desenvolvida com uma lógica impecável.
Os conceitos essenciais da teoria de Elias são a "competição eliminatória" e a "função
monopolista". Embora se tenha desenvolvido principalmente para explicar a passa-

(') Nicholas Abercrombie, Stephen Hill e Bryan S. Turner, Sovereign Individuais of


Capitalism, Allen & Unwin, Londres, 1986, pp. 121, 151.
90

gem da dispersão feudal para o estado absolutista, localizava-se a um alto nível de


generalidade; o resultado final era justificado em termos da lógica interna de uma configuração
que consiste num certo número de unidades independentes ligados por uma competição
espontânea entre umas
e outras:
uma sociedade com muito poder e unidades de propriedade de tamanho relativamente igual,
tende, debaixo de pressões competitivas fortes, para o alargamento de algumas unidades e
finalmente para o monopólio... Uma configuração humana onde um número relativamente
grande de unidades estão em competição em virtude do poder ao seu dispor, tende para se
desviar do estado de equilíbrio (muitos equilibrados por muitos; competição relativamente
livre) e para se aproximar dum estado diferente em que cada vez menos unidades são capazes
de competir... A figuração humana apanhada neste movimento... a não ser que se tomem
medidas compensatórias, aproximar-se-á de um estado em que todas as oportunidades serão
controladas... Um sistema com oportunidades abertas transformou-se num sistema com
oportunidades fechadas...
Uma quantidade sempre crescente de possibilidades de poder tende a acumular-se nas
mãos de um número sempre decrescente de pessoas, através de uma série de competições
eliminatórias. (9)
Os muitos que perderam a competição tornam-se agora servos dos poucos que a ganharam. O
que significa que, mesmo que a figuração parta de um estado de perfeita igualdade entre as
suas unidades constitutivas (o que nunca é o caso na prática), acabará inevitavelmente como
um conjunto de poucas unidades poderosas e um grupo de muitos despojados, agora
transformados em subordinados cuja acção é dirigida, e por certo já não "soberanos". Em

(9) Norbert Elias, Civilising Process: State Formation and Civilisation, trad. de Edrnund
Jepheott, Blackwell, Oxford, 1982, pp. 99, 106, 107.
91

menor escala, vimos recentemente em acção um exemplo notável do princípio da "competição


eliminatória'. A "desregulamentação", executada em nome da competição crescente, conduziu
rápida e invariavelmente à formação de alguns poucos conglomerados gigantes que entre si
monopolizaram a parte de leão do campo e, para todas as intenções e propósitos, acabaram
com a ideia de "empresários independentes" (como no caso das linhas aéreas americanas ou dos
correctores da Bolsa de Londres).
Com a "competição eliminatória" e a "função monopolista" em acção, esperar-se-ia a atitude
tipicamente capitalista de limitar a liberdade individual a uma parte cada vez mais pequena da
população. Acabaram-se os tempos dos grande magnatas isolados, elevando-se às mais altas
camadas da sociedade pelas puxadeiras das botas. Os magnatas que subiram por si próprios
estão mortos, mesmo como mitos ou como heróis de sonhos populares. Os estudantes de
literatura contemporânea destinados a leitores para as massas notam o desaparecimento
virtualmente completo do interesse pelas histórias de sucesso ao velho estilo dos "pioneiros
da indústria"; juntamente com esse interesse desaparece a confiança, até então largamente
espalhada, nas qualidades pessoais de carácter individual como factores decisivos para o
sucesso na vida. Nas palavras de John G. Cavelti:
Não tinha ainda surgido nenhum ideal popular para tomar o lugar anteriormente ocupado pela
filosofia do sucesso. Ao contrário, parecia que o ideal do homem que subiu por si próprio tinha
desaparecido gradualmente sem gerar um novo modelo para a determinação dos objectivos
individuais e sociais... Hoje, qualquer paquete de escritório sabe que um ano na Escola
Comercial de Havard fará mais pela sua carreira profissional do que uma vida inteira na
indústria, na economia, na abstinência e na religião. (10)

(10) John G. Cavelti, Apostles of the Self Made Man, University of Chicago Press, Chicago, 1965,
-

pp. 203, 207.


92

Para a maioria das pessoas que, se tivessem vivido há um século e meio, se teriam lançado
na impiedosa luta competitiva pela riqueza e pelo poder, o caminho para uma vida agradável
passa agora por se excederem na concordância com os propósitos, regras e modelos de conduta
institucionalmente estabelecidos. Para serem bem sucedidos, têm de renunciar àquilo que o herói
que se fez a si mesmo ou o capitalismo empresarial consideravam uma parte inalienável da
liberdade. Também têm de suportar uma dose muito maior de opressão do que os seus antecessores
empresários teriam podido tolerar. Têm de aceitar ordens, de demonstrar boa vontade em
obedecer, de limitar as suas acções à medida imposta pelos seus superiores. Por muito que se
elevem em riqueza, poder ou fama, continuam conscientes de que "estão a ser vistos",
observados e censurados, como os inspectores de categoria média do "panopticon" de Ben-
tham. O tradicional modelo capitalista de liberdade não é para ele. O seu próprio caminho para
a liberdade tem de procurar outras vias, de encontrar novas formas. Restam poucos, se é que
alguns, lotes de terreno virgem na terra que produz riqueza. O que não significa necessariamente,
no entanto, que não tenha sido oferecido nenhum espaço alternativo para a liberdade.
O caminho do indivíduo para a auto-afirmação foi excluído da área de produção material.
Em vez deste, abriu-se para ela um espaço mais largo do que nunca, na nova "fronteira dos
pioneiros", o mundo do consumo em rápida expansão, aparentemente ilimitado. Neste mundo, o
capitalismo parece encontrar, finalmente, o segredo da pedra filosofal: visto do ponto de
observação dos consumidores, o mundo do consumo (ao contrário da área de produção e
distribuição da riqueza e do poder) está liberto da praga da competição eliminatória e da função
monopolista. Aqui, a competição pode prosseguir e tornar a prosseguir sem a eliminação; e o
número dos seus participantes pode de facto

93
crescer em vez de diminuir. Como se isto não fosse uma proeza suficientemente notável, o
mundo do consumo parece ter curado a liberdade de outro mal: a insegurança. Na sua versão
de consumo, a liberdade individual pode ser exercida sem sacrificar a certeza que existe no
fundo da segurança espiritual. Estas duas realizações verdadeiramente revolucionárias legitimam
a opinião de que a sociedade capitalista recente, na sua fase de consumo, oferece um espaço
para a liberdade humana maior do que o de qualquer outra sociedade conhecida, passada ou
presente.
A excepcional liberdade do mundo do consumo em relação à tendência auto-destruidora de
todas as outras formas de competição foi conseguida elevando a rivalidade inter-individual
acima da riqueza e do poder (bens que são, por natureza, escassos, e por isso sujeitos à
imparável tendência monopolista) e transformando estes em símbolos. No mundo do
consumo, a posse de bens é apenas um dos riscos da competição. A luta é também por
símbolos, e pelas diferenças e distinções que eles representam. Como tal, esta competição
tem uma singular capacidade para propagar os seus próprios riscos mais do que para os esgotar
no decurso da luta.
Muitos anos antes de o consumismo se ter finalmente implantado, um dos sociólogos
americanos mais perspicazes, Thornstein Veblen, detectou este potencial para a competição
simbólica: "visto que a luta é substancialmente uma corrida para a respeitabilidade na base da
comparação injusta, não é possível qualquer aproximação a uma consecução definitiva". 01) Não
sendo nunca conclusiva, sempre dotada de novos estímulos e mantendo sempre viva a espe-

(") Citado segundo Edmund Preteceille e Jean-Pierre Terrail, Capitalism, Consumption and Needs.
Blackwell, Oxford, 1986, p. 21.
94
rança, a luta pode perpetuar-se eternamente, bebendo a sua finalidade e energia na sua própria
força. Este mecanismo de auto-propulsão e auto-perpetuação foi sujeito a um exame minucioso
e profundo por parte de um proeminente sociólogo francês, Pierre Bourdieu. (12) A essência da
conclusão que tirou é que as diferenças entre posições sociais, mais do que as posições sociais
em si, são a verdadeira aposta da competição, tal como definida pelo mundo do consumo; e
"As diferenças de situação e, acima de tudo, de posição, são, a um nível simbólico, objecto de
uma expansão sistemática". (13) o número das diferenças de posição não tem fim. Em princípio,
nem os recursos naturais escassos, nem as coacções da necessidade da riqueza disponível o
limitam. Diferenças sempre novas surgem no decurso da concorrência entre os consumidores, e
por isso as compensações conseguidas por alguns antagonistas não diminuem necessariamente
as possibilidades dos outros. Pelo contrário, estimulam os restantes para esforços cada vez
maiores e mais determinados. A participação na luta, mais do que os troféus materiais que
simbolizam o estado momentâneo do jogo, é que constitui a diferença.
Marc Guillaume sugeriu que na fase de consumo a "função utilitária" dos bens adquiridos
no mercado é eclipsada, enquanto "a função sintomática" se orgulha do seu lugar. (14) São os
sintomas que são cobiçados, procurados, perseguidos e consumidos. Podemos dizer que os bens
são desejados não pela sua capacidade para melhorar o nosso

(12) Comparar com Pierre Bourdieu, "Distinction", A Social Critique of the Judgement of Taste, Harvard
University Press, Cambridge, Mass., 1984.
Pierre Bourdieu, "Conditions de classe et positions de classe",European Journal of Sociology 2,
(1966), p. 214.
(14) Comparar com Marc Guillaume, Le capital et son double, PUF, Paris, 1975.
95

corpo ou o nosso espírito (torná-los mais saudáveis, mais ricos, mais agressivos), mas pelo
seu potencial para dar ao corpo ou ao espírito uma forma especial, distinta e por isso desejada
(um certo aspecto que serve de sinal de que se pertence ao lado certo da diferença).
Podemos também ir mais longe do que Guillaume e aventar que a própria distinção entre as
funções "utilitária" e "sintomática" não faz muito sentido, tendo em atenção o facto de ser
precisamente a capacidade indicadora que constitui a principal atracção, na verdade a
autêntica "função utilitária" dos bens vendáveis.
t
Transferir a área da liberdade individual em relação à competição pela riqueza e pelo poder para
uma concorrência simbólica, cria uma possibilidade inteiramente nova de auto-afirmação
individual; uma possibilidade que nunca fica exposta ao perigo de uma derrota conclusiva e
iminente e por isso não transporta necessariamente as sementes da frustação e da auto-
destruição. Teorizar a concorrência consumista como "não de facto uma verdadeira liberdade", como
uma compensação para reprimir "a verdadeira competição", como um produto da decepção ou uma
conspiração de grandes companhias comerciais, pouco ou nada mudará a sua verdade. A
concorrência, a energia individual que ela congrega, a variedade de opções que torna possíveis, a
satisfação pessoal que traz, tudo isto é suficientemente real. Tudo isto é apreciado, estimado, visto
como equivalendo à auto-afirmação e não seria facilmente renunciado — decerto não em troca de uma
regulamentação das necessidades e de um racionamento das respectivas satisfações.
Podemos agora modificar de certo modo a nossa conclusão prévia e preliminar quanto ao destino
histórico do casamento original entre o capitalismo e a liberdade do indivíduo. O casamento não
acábou em divórcio. Pelo contrário, está vivo e de boa saúde. O que aconteceu é algo

96

que só se espera em casamentos prolongados: ambos os cônjuges sofreram uma série de


transformações que, para alguém que os encontrasse agora pela primeira vez desde o casamento,
pareceriam tê-los modificado ao ponto de não serem mais reconhecíveis. Hoje o capitalismo não é
definido pela competição. Há muito tempo que deixou de ser "livre para todos", uma fronteira sem
limite à vista, um solo fértil para o engenho, para a iniciativa e para a simples força muscular. Em vez
disso, é um sistema altamente organizado, orientado e controlado a partir de um número limitado (e
ainda a decrescer) de centros de controlo, cada um deles dotado de meios tecnológicos potentes e
dispendiosos destinados a recolher e a produzir informação. A competição capitalista parece ter-se
aproximado da finalidade de todas as competições: deixar de ser, digamos, um emprego; acabar
consigo própria. O objectivo foi quase alcançado, pelo menos até ao ponto em que a entrada de
novos competidores se tornou extremamente difícil — de maneira que a competição, na sua forma
tradicional do início do capitalismo, se transforma numa proposta imprópria para à distribuição em
massa.
Mas o outro cônjuge do casamento mudou igualmente. O indivíduo auto-afirmativo do começo
da era capitalista, preocupado em estabelecer a sua nova identidade e vê-la aprovada socialmente,
ainda está bem vivo — apenas procura a resolução do seu problema numa outra esfera da vida e, em
conformidade, emprega instrumentos diferentes. A liberdade de escolha, e a maneira de viver auto-
afirmativa que a acompanha, é hoje uma opção aberta e acessível a uma parte muito maior da
sociedade do que nos tempos dos pioneiros. A despeito da dureza com que os pregadores dos "farrapos
para os ricos" tentaram convencer-nos do contrário, o número de pessoas que podiam exercer
verdadeiramente a sua liberdade na competição capitalista foi sempre extremamente limitado. A época
dos pioneiros e dos gran-

97

des magnatas foi uma época em que a esmagadora maioria dos membros da sociedade estava
confinada, para toda a vida, aos escalões mais baixos da hierarquia de tipo "panopticon". A
liberdade era um privilégio e, com excepção de alguns casos singulares e de curta duração (como
a fronteira ocidental dos Estados Unidos), um privilégio acessível a muito poucos. Não
podemos sequer ter a certeza se o número total daqueles que se aproveitavam desse privilégio teve
tendência para diminuir ao longo dos anos, como muitas vezes é insinuado. Pode ser que o
número ficasse razoavelmente constante e seja ainda tão grande (ou antes, tão pequeno) como em
qualquer época: passada. O que é erradamente tomado pela morte do empresário que subiu por si
próprio, ousado, duro e empreendedor, mais não é do que uma dupla mudança da ideologia, mais
do que da prática, da sociedade capitalista. Primeiro, admitiu-se finalmente a evidência inflexível e, a
sociedade capitalista consciente de si mesma, conformou-se com o facto de as histórias singulares
das vidas de uns poucos magnatas de sucesso espectacular nunca se transformarem num modelo uni-
versal de sucesso pessoal para as massas. Segundo, o velho modelo "empresarial" do sucesso perdeu
muito da sua popularidade e da sua exclusividade. Apareceram modelos igualmente atraentes e mais
realistas, melhor adpatados para a distribuição em massa.
Entre estes outros modelos, sobressai um em muitos aspectos superior ao antigo: o modelo do
sucesso, como distinção simbólica atingível por meio da concorrência dos consumidores — um
sucesso atingível (para usar as palavras de Max Weber) não por meio da competição de classe
interna e da luta inter-classes, mas através da concorrência dentro dos grupos sociais, e da controvérsia
de gosto entre eles. A superioridade deste modelo de sucesso sobre aquele tradicionalmente associado
ao capitalismo, e activamente promovido na primeira metade da sua história, é surpreen-

98

dente. O novo modelo não se limita a substituir o velho como orientador eficiente do
comportamento individual; é o primeiro modelo de liberdade individual e de auto-afirmação
que pode ser seguido, não apenas em fantasias ideologicamente motivadas mas na vida prática,
pela maioria da sociedade capitalista. Longe de anular o potencial para a expansão individual, o
capitalismo trouxe um tipo de sociedade ondé o modelo de vida da livre escolha e da auto-
afirmação pode ser praticado numa escala nunca antes conhecida. Este, porém, é um
desenvolvimento intimamente ligado à substituição da competição pela riqueza e poder pela
concorrência simbólica; por outras palavras, à delimitação duma reserva especial onde os
indivíduos livres podem actuar sem coacções, e sem prejudicar a rede básica das relações de
poder onde os princípios da competição eliminatória e da função monopolista se mantêm
como garantias seguras de estabilidade.
O capitalismo sai fortalecido deste novo arranjo. A tensão excessiva gerada pela luta pelo
poder foi canalizada das estruturas do poder central para um terreno seguro, onde as tensões
podem ser descarregadas sem afectarem desfavoravelmente a administração dos recursos do
poder. A propagação da energia libertada por indivíduos livres empenhados na concorrência
simbólica, aumenta a procura de produtos da indústria capitalista até níveis sempre crescentes, e
emancipa eficazmente o consumo de todos os limites "naturais" definidos pela capacidade de
"necessidades materiais" — aquelas capacidades que requerem bens apenas como "valores
utilitários". Por fim mas não menos importante, com o consumo firmemente estabelecido como
o pólo de atracção e o terreno de recreio para a liberdade individual, o futuro do capitalismo
parece mais seguro do que nunca. O controlo social toma-se uma tarefa mais fácil. Os
dispendiosos métodos de controlo à maneira do "panopticon", cheios como estão de dissidências,
podem ser dis-

99

pensados, ou substituídos por um método de sedução (ou antes, o uso dos métodos do
"panopticon" pode ser limitado a uma minoria da população que, por qualqúer razão, não pode
ser integrada através do mercado de consumo) menos dispendioso e mais eficiente. A solicitação de
uma conduta funcionalmente indispensável ao sistema económico capitalista e inofensiva para o
sistema político capitalista, pode agora ser confiada ao mercado de consumo e aos seus
atractivos. A reprodução do sistema capitalista é, pois, alcançada através da liberdade individual e
não da sua abolição. Em vez de ser registada na página das despesas gerais sistemáticas, toda a
operação de "controlo social" pode agora incluir-se entre os fundos sistemáticos.
O que torna o mercado de consumo uma forma de controlo que os controlados abraçam
voluntária e entusiasticamente, não é apenas o fulgor e a beleza que ele oferece em troca da
obediência. O seu principal atractivo é, talvez, o facto de oferecer liberdade a pessoas que
noutras áreas da sua vida apenas encontram coacções, muitas vezes sentidas como opressões. O
que torna a liberdade oferecida pelo mercado ainda mais sedutora é o facto de aparecer sem as
nódoas que manchavam a maioria das suas outras formas: o mesmo mercado que oferece
liberdade oferece também certeza. Oferece ao indivíduo o direito à escolha "totalmente
individual"; todavia também proporciona aprovação social para essa escolha, exorcizando
assim o fantasma da insegurança que (como vimos no começo deste capítulo) envenena a alegria
da vontade soberana. De maneira paradoxal, o mercado de consumo satisfaz aquela
"comunidade de fantasia" onde a liberdade e a certeza, a independência e a companhia, vivem
lado a lado sem conflito. As pessoas são pois empurradas para o mercado por um duplo motivo:
dependem dele para a sua liberdade individual; e dependem dele para gozarem a sua liberdade sem
pagarem o preço da insegurança.

100

Recordamos que, tendo quebrado as grilhetas que amarravam as pessoas quase


definitivamente a posições impostas, os tempos modernos encontraram indivíduos com a
tarefa cruciante de construírem a sua própria identidade social. Todos têm de responder para si
próprios à pergunta "quem sou eu", "como devo viver", "quem quero vir a ser" — e, no fim do
dia, estarem preparados para aceitar a responsabilidade da resposta. Neste sentido, a liberdade é
para o indivíduo moderno o destino a que não pode fugir, excepto retirando-se para um mundo
de fantasia ou através de perturbações mentais. A liberdade é portanto uma bênção confusa.
Precisamos dela para sermos nós próprios; mas sermos nós próprios apenas pela força da
nossa opção livre, significa uma vida cheia de dúvidas e de receios de errar.
Há muitas maneiras de cumprir a tarefa de construir a identidade própria. Para serem
adequadas à tarefa, porém, as maneiras escolhidas devem conter alguns critérios pelos quais o
sucesso de todo o empreendimento possa ser avaliado e o resultado da auto-construção
aprovado. A autoconstrução do eu é, por assim dizer, uma necessidade. A auto-confirmação do
eu é uma impossibilidade.
Poucas das soluções teoricamente possíveis para a tarefa da autoconstrução satisfazem essa
condição adicional. Uma que seguramente o faz é a solução auto-afirmativa: um esforço para
impor às outras pessoas o nosso próprio projecto, a nossa própria concepção do mundo,
sujeitando-as assim à nossa vontade — em vez de encontrarmos o próprio caminho através da
realidade, refazermos a realidade à nossa medida, "deixando a nossa marca no mundo". Era
este, reconhecidamente, o processo dos pioneiros capitalistas, dos artistas românticos e dos
demagogos políticos. A fraqueza óbvia desta solução (sejam quais forem as suas virtudes
imaginárias ou verdadeiras) é que apenas pode ser escolhida por uns poucos; na verdade, só
faz sentido na

101

condição de a maioria das pessoas constituírem a mesma realidade que vai ser moldada,
moldada de novo, sujeita à lei, "marcada". É a sua passividade e obediência que servem como
confirmação dos poucos "eus" heróicos; a sua concordância é a prova procurada da auto-
afirmação de alguma outra pessoa. Decididamente, não se pode considerar a solução auto-
afirmativa como a maneira universal de levar a cabo a tarefa da autoconstrução.
O método para enfrentar a tarefa da autoconstrução oferecido pelo mercado de consumo está
livre de tais limitações: em princípio, pode ser usado por toda a gente, e por todos ao mesmo
tempo. O método do mercado consiste em seleccionar símbolos de identidade de entre os
muitos bens à venda. Os símbolos seleccionados podem ser reunidos de muitas maneiras,
tomando assim possi'vel um grande número de "combinações únicas". Virtualmente, para
cada "eu" projectado, existem sinais compráveis para o exprimir. Se, por agora, eles faltam,
podemos ter a certeza de que a lógica de mercado orientada para o lucro há-de fornecê-los
em breve.
O método de mercado consiste, digamos, em construir o "eu" usando imagens. O "eu" fica
idêntico às indicações visuais que as outras pessoas podem ver e reconhecer como significativos
de qualquer coisa que se pretenda que signifiquem. As indicações visuais são de muitos
géneros. Incluem a forma do corpo, os adornos corporais, o tipo e o conteúdo da casa, os
lugares frequentados e onde se pode ser visto, o comportamento ou as conversas, aquilo de
que se fala, o gosto artístico e literário demonstrado, os alimentos, a maneira de os preparar —
e muitas outras coisas, todas oferecidas pelo mercado na forma de bens materiais, serviços ou
conhecimentos. Além disto, as indicações em separado trazem consigo instruções sobre como
reuni-las em imagens totais. Nenhum indivíduo se deve sentir diminuído pela pobreza da sua
imaginação — identidades-

102

-modelo — são também fornecidos pelo mercado e a única coisa que resta fazer ao próprio
indivíduo é seguir as instruções contidas na embalagem. Portanto, a liberdade de escolher a
própria identidade tornar-se uma proposta realista. Existe uma série de opções por onde
escolher, e uma vez a escolha feita, a identidade seleccionada pode tornar-se real (isto é,
simbolicamente real, real como imagem perceptível) fazendo as aquisições necessárias ou
sujeitando-se aos exercícios requeridos — sejam eles um novo penteado, o hábito de correr, a dieta
para emagrecer ou o enriquecimento da maneira de falar por meio de um vocabulário em voga
simbolizando a posição social.
Esta liberdade difere das formas anteriormente tratadas na medida em que não conduz a um jogo
"nulo", isto é, um jogo em que só pode ganhar tanto quanto outra pessoa tem de perder. No jogo
da liberdade de consumo todos os fregueses podem ser ganhadores ao mesmo tempo. As identi-
dades não são bens escassos. Pelo contrário, a sua oferta é excessiva, tal como a superabundância de
qualquer imagem corre o risco de depreciar o seu valor como símbolo da singularidade individual.
A desvalorização de urna imagem nunca é uma tragédia, visto que as imagens postas de parte são
imediatamente seguidas de novas, até agora não demasiado comuns, de modo que a autoconstrução
pode recomeçar, esperançada como sempre em atingir o seu objectivo: a criação de um ego cínico.
Daí, a universalidade da solução de mercado pari u problema da liberdade individual — e a ausência
aparente das tendências autodestruidoras que encontrámos nas outras soluções.
A aprovação social das livres escolhas (isto é, a liberdade em relação à incerteza) é outro serviço
que o mercado oferece aos consumidores. Este serviço é livre. A aprovação vem incluída nas
embalagens da identidade, como instruções para instalação.
Nos mapas cognitivos dos clientes em perspectiva os

103

símbolos estão associados ao tipo de vida que esses clientes pretendem conseguir com a sua
ajuda. Os elementos da imagem final são cuidadosamente reunidos antes de serem revelados;
são apresentados "num contexto", a par com sinais facilmente reconhecíveis das situações que
prometem proporcionar, de maneira que o elo sedimente no espírito (ou no subconsciente) dos
consumidores como "natural", "evidente", sem necessidade de mais argumentação ou de
justificações. Daqui em diante a situação em questão parece incompleta sem uni certo
elemento de valorização (uma festa mundana sem determinada marca de vinho; a felicidade
da família sem uma dada marca de detergente; cuidar do pai e do marido sem uma apólice
de seguro especial; pele bela e jovem sem determinado perfume, etc.). Ainda mais importante,
os elementos valorizadores em questão parecem daqui em diante combinar-se com a própria
situação; como seu maior atractivo oferecem confiança em que as situações de que são parte
orgânica serão na verdade alcançadas.
O valor de alguns outros símbolos de elementos valorizadores é afirmado na autoridade de
personalidades públicas bem conhecidas, que já gozam da estima pública ao ponto de se
tornarem padrões da emulação popular; ou na autoridade da ciência, à qual se atribui a posse de
conhecimentos sólidos e indiscutíveis. O reclame ao produto é apresentado por uma pessoa
célebre que afirma ao público que o usa regularmente e com sucesso, ou mesmo que o sucesso
pessoal em virtude do qual essa pessoa é famosa foi conseguido graças ao uso do produto (um
grande atleta que adquiriu a sua força bebendo determinada mistura nutritiva; uma actriz popular
que conserva a sua beleza graças a certo creme para a pele). Em alternativa, o anúncio invoca
uma "descoberta científica" não especificada, serve-se indirectamente da opinião "de médicos",
"de dentistas" ou, mais genericamente, de imagens da tecnologia moderna (ou futu-
104
ra) já firmadas no espírito do público como conhecimentos sólidos, dignos de confiança (por vezes é
suficiente utilizar uma gíria ostensivamente "científica" para criar a aparência de um argumento racional
— como "este detergente lava mais branco porque contém um ingrediente especial que lava mais
branco", (15) ou, para clientes mais sofisticados, imprimir uma descrição dum automóvel caro numa língua
estrangeira e salpicá-la generosamente com o que parece serem equações de física ou fórmulas
algébricas). O resultado não é apenas a certeza do cliente de que o produto serve bem a sua finalidade
declarada; há também um benefício nítido para o bem-estar psicológico do cliente: um produto à venda
nas lojas torna-se uma verdadeira materialização de racionalidade, e o seu uso um símbolo de com-
portamento racional. Quem quer que use o produto participa do prestígio das maiores autoridades dos
nossos tempos. Podemos tornar-nos racionais simplesmente pelo acto de uma aquisição certa;
podemos comprar certeza juntamente com o produto. A livre escolha transforma-se numa escolha bem
fundamentada sem sacrificar a liberdade de quem escolhe, da mesma maneira que a liberdade já não
precisa de pôr em perigo a nossa autoconfiança — a convicção de que as escolhas são certas e racionais.
Um efeito semelhante de certeza subjectiva pode ser conseguido evocando a autoridade doS números.
Neste caso, o prestígio do voto democrático é posto ao serviço da certeza do consumidor. A
publicidade informa os hipotéticos clientes de que tantos por cento da população (sempre uma
maioria) usa um dado produto; ou que as pessoas "aderem cada vez mais" ao produto. Os grande
números têm autoridade só pelo seu tamanho; a assunção comum

(s) Martin Esslin, The Age of Television, W. H. Freeman, São Francisco, 1982, p. 85.
105

(embora raramente entendida) é que "tantas pessoas ao mesmo tempo não podem estar enganadas",
especialmente se estão em maioria. A função fundamental do argumento por meio de números não
é, porém, incutir certezas do tipo das induzidas com a ajuda da autoridade científica. As
percentagens e as maiorias são citadas como símbolos de aprovação social; fazem as vezes do apoio
comunal, outrora tão poderoso e agora enfraquecido ou ausente, negociado no passado através da
inter-acção cara a cara. Comunidades fortemente estruturadas têm sido pulverizadas e transformadas
em "populações" — agregados soltos de indivíduos desligados uns dos outros. Nesta fase a sua
autoridade só pode ser construída contando percentagens e só pode exprimir-se pelos resultados das
sondagens de opinião. Reivindica, contudo, e com certo sucesso, o prestígio outrora ligado aos
veredictos comunais. O prestígio emprestado da comunidade permite que o argumento quantitativo
sirva como fundamento seguro para a certeza individual.
O mercado de consumo é, pois, um lugar onde a liberdade e a certeza são oferecidas e obtidas ao
mesmo tempo; a liberdade vem sem dor, enquanto a certeza pode ser gozada sem enfraquecer a
convicção de autonomia subjectiva. O que não é pequena proeza do mercado de consumo; nenhuma
outra instituição foi tão longe no caminho da resolução da mais perniciosa das contradições da
liberdade.
Escusado é dizer que o mercado não oferece o seus serviços ímpares por amor aos
consumidores (embora muitas companhias sigam o exemplo dos "Bancos sorridentes" e dos "Bancos
que gostam de dizer sim", tentando convencer os clientes de que é exactamente isso que motiva a
sua conduta). Nem o casamento da liberdade com a certeza -- tão crucial para o papel desempenhado
pelo mercado de consumo no controlo e na integração da recente sociedade capitalista — é o resultado
de um empreendimento político ou de uma campanha de propaganda cuidadosamente

106

planeada. O mercado de consumo oferece o seu serviço ímpar à estabilidade política do


capitalismo e à integração social dos seus membros "a caminho" dos seus próprios objectivos
subordinados ao lucro. O serviço é, por assim dizer, um "efeito lateral", um "subproduto" da
busca racionalmente organizada da procura crescente e do rendimento aumentado. A certeza que
o mercado proporciona não é oferecida incondicionalmente; é sempre estruturada de
maneira a incluir, como ingrediente indispensável, a aquisição de um certo produto. O acto da
aquisição é apresentado como o único caminho para a certeza. Aqueles que se abstêm de
comprar não podem ter a certeza de se comportarem razoavelmente; mais do que isso, devem
compreender que não são seres racionais, que usam mal a sua liberdade e correm um enorme
risco que lhes custará caro. Na brilhante descrição de Michael Parenti:
O leitor e o espectador de anúncios comerciais descobrem que não estão a proceder bem
em realção às necessidades dos bebés ou aos desejos das suas mulheres ou maridos; que
estão a falhar nas suas carreiras profissionais por causa do seu mau aspecto, dos fatos
desmazelados, ou do mau hálito; que não estão a tratar devidamente da pele, do cabelo ou das
unhas; que sofrem desnecessariamente de frio e dores de cabeça; que não sabem fazer o café
mais saboroso, nem as tartes, nem os pudins, nem os pratos de frango; e, se deixados às suas
próprias habilidades, nem seriam capazes de limpar o chão das suas casas, os lavatórios e
os sanitários como deve ser, nem tratar dos relvados, dos jardins, das ferramentas e dos
automóveis. Para viverem bem e decentemente, os consumidores precisam dos produtores
corporativos para os guiarem. Os consumidores são convencidos da sua incompetência e da
sua dependência dos produtores do mercado de massas. (16)

(") Michael Parenti, Inventing Reality: The Politics of the Mass Media, St. Martin Press, Nova
Iorque, 1986, p. 65.
107

Assistido pelos peritos impecavelmente informados que emprega, o mercado oferece a


passagem da ignorância à racionalidade, da incompetência à confiança em que os projectos e
desejos do indivíduo serão realizados. A única coisa necessária para nos aproveitarmos desta oferta
é confiar nos conselhos e segui-los obedientemente.
Cada vez que a oferta é aproveitada, a dependência do indivíduo em relação ao mercado e aos
peritos e seus conhecimentos é reproduzida e reforçada. Os indivíduos dependem do mercado e dos
peritos para serem indivíduos — isto é, serem capazes de fazer opções livres e fazê-las sem riscos
desnecessários nem custos psicológicos. A liberdade individual torna-se um elo importante no processo
de reprodução da estrutura do poder. Se um único anúncio escrito ou exibido promove marcas
concretas de um único produto, o impacto global e a longo prazo da liberdade e da certeza com
interposição do mercado é a segurança do sistema social e a estabilidade da sua estrutura de
domínio. Nestas circunstâncias, o método de controlo do comportamento do "panopticon" (consistindo
primeiro e antes de tudo em privar os indivíduos da sua liberdade de escolha) pode ser posto de
parte.
Porém, não completamente. O método de controlo "de sedução" — através do mercado e do
consumidor livre —requer um certo nível de riqueza dos seus destinatários. Apesar da suas
vantagens subjectivas e sistemáticas não pode expandir-se indiscriminadamente a todos os
membros da sociedade. Há sempre um nível abaixo do qual os recursos monetários de um indivíduo
são demasiado pequenos para tornarem a liberdade de escolha verdadeiramente "sedutora" e, em
consequência, o controlo por ela exercido, verdadeiramente eficaz. Uma sociedade integrada por
meio do mecanismo de sedução do consumidor está pois sobrecarregada com uma margem de pessoas
cujo comportamen-

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to tem de ser controlado por outros meios, talvez por alguma versão da técnica do "panopticon".
O bem-estar social é uma versão desse tipo. Segundo a oportuna advertência de Douglas E.
Ashfield, "uma das mais importantes falsas concepções sobre o desenvolvimento político dos
estados sociais cultivados por uma curta perspectiva histórica é que a ascensão até à notoriedade
da política social foi uma realização do socialismo". (17) O desenvolvimento do bem-estar social foi
vigorosamente promovido e teve fraca resistência graças ao seu papel no fortalecimento da estrutura
do poder, ao assegurar a paz e a ordem dentro de um sistema social marcado pela eterna desigualdade
das posições e das oportunidades sociais. Por um lado, o bem-estar social era a maneira de pagar
"colectivamente" os custos sociais da procura privada de lucro (isto é, de mitigar os danos sofridos
pelos que perderam); por outro, o bem-estar social era desde o início um método para controlar todos
aqueles em quem, sendo "homens sem dono" — nem donos nem servidores de donos —, não se
podia confiar para orientarem as suas acções ou para as terem já orientado na direcção correcta.
Estas pessoas tinham de ser privadas da liberdade de escolher e colocadas em situações onde o seu
comportamento pudesse ser completamente determinado e constantemente vigiado.
Nassau Senior escreveu em 1841:
É preciso que o homem que exige ser sustentado pelo trabalho e pela frugalidade dos outros, entre
numa casa abastecida para ele pelo público, onde tudo o que é necessário à vida existe em
quantidade, mas de onde foram excluídos toda a animação e o simples divertimento — uma casa
onde ele esteja mais bem instalado, mais bem vestido, mais bem alimentado do que estaria na sua

(") Douglas E. Ashfield, The Emergence of the Welfare State, Blackwell, Oxford, 1986, p. 13.
109

110

111

112

113
IV — A LIBERDADE, A SOCIEDADE E 0 SISTEMA SOCIAL

Na sociedade onde vivemos, a liberdade individual move-se firmemente para a posicao de


centro cognitivo e moral da vida -- corn consequencias de largo alcance para cada individuo e
para o sistema social no seu todo.
Este lugar central foi ocupado no passado durante a primeira parte da historia capitalists —
pelo trabalho, entendido como o esforco partilhado e coordenado, destinado
producao de riqueza por meio da aplicacao do esforco human() na reconstrucao da natureza.
0 trabalho era fundamental para a vida do individuo. Estabelecia a diferenca entre riqueza e
indigencia, autonomia e dependencia, posicao social alta ou baixa, presenca ou ausencia de
respeito por si prOprio. Como (mica maneira aceite de o individuo poder influenciar a qualidade
da sua vida, o trabalho era a norma moral principal que guiava a conduta individual, e o unico
ponto de observacao de onde o individuo observava, planeava e modelava o seu processo de
vida como urn todo. Assim, o valor e a dignidade da vida de cada urn eram aferidos por estes
criterios, como relacionados corn o trabalho e corn os varios aspectos de uma atitude positiva
para corn o trabalho: aplicacao, diligencia, assiduidade, iniciativa. Por outro lado, o descredito
moral estava ligado a abstencao do trabalho — denegrida e ultrajada corno ociosidade,
indolencia, preguica, ou mandriice. Quando a vida individual era planeada, era a profissao da

115

ida inteira que fornecia a moldura. As pessoas definiam-se em termos da sua competencia
profissional, do tipo de trabalho que tinham aprendido a executar. As pessoas que partilhavam o
mesmo tipo de aptidOes e as exerciam no mesmo local, eram os "os outros importantes"; era a
sua opiniao que contava e que tinha autoridade para avaliar, e se necessario corrigir, a vida de urn
individuo.
No piano social, o local de trabalho proporcionava o cenario fundamental para o treino e a
"socializnao" do individuo como pessoa social. Era lá que as virtudes de obediencia e respeito pela
autoridade, os habitos de auto-disciplina e os padrOes de comportamento aceitavel eram mi-
nistrados; foi por intermedio do local de trabalho que aeonteceu a mais meticulosa vigilancia
social e controlo do comportamento individual. 0 controlo atraves do local de trabalho foi
exercido praticamente sempre, uma vez que a maioria das pessoas 1a passava uma parte
consideravel do seu tempo e a maioria dos anos da sua vida. Por outran palavras, o local de
trabalho servia como o principal campo de treino das atitudes e accoes prOprias para as normas
hierarquicamente diferenciadas da sociedade capitalista. Com o trabalho ocupando a maior
parte da vida do individuo e influenciando tab fortemente (tanto cognitiva como moralmente) o
restante das suas ocupnoes, podia confiar-se amplamente no local de trabalho como garantia
suficiente da integrnao social.
Ainda no piano social, o local de trabalho servia como ponto focal natural para a cristaliznao
das dissidencias sociais e como campo de batalha onde os conflitos podiam ser esgotados.
Como o local de trabalho ocupava uma posicab fundamental na vida do indivIduo, o mesmo
acontecia corn os seus conflitos; e os conflitos nao podiam sena° ser constantemente gerados
pelo local de trabalho que funcionava como instrumento de treino corporal e espiritual e de
anulnao da autonomia individual. Numa primeira fase do

116

capitalismo, o principal ponto de discordia era a opressao em si; as pessoas sujeitas ao treino
da fthrica capitalista queriam conservar ou restaurar o direito a autodeterminacao — condicao
esta ainda fresca na memoria dos operarios e artesaos de outros tempos. Porem, depressa o foco
do conflito se desviou do problema do poder e do controlo para o da distribuicao da mais-valia.
A oportunidade para regressar a relnoes de poder mais simetricas, e de minar o direito a
mandar do gerente, perdeu-se; a aceitnao desse direito e a conformacao com uma permanente
posicao de subordinacab dentro da hierarquia da fabrica foram compradas por troca corn urn
maior quinhao do produto excedente. 0 que foi inicialmente (e assim ficou na sua substancia,
embora nao nos seus alvos ostensivos) urn conflito de poder tornou-se progressivamente
"economizado". (1) As batalhas travavam-se agora em nome de melhores salarios, menos
horas de trabalho, mais cuidado corn a qualidade das condicOes de trabalho. A integracao social
foi conseguida por meio de transigencias, nao de consenso. 0 poder do capital podia ressentir-
se, desde que nao fosse contestado. As ambicoes e esperancas dos oprimidos estavam agora
canalizadas corn seguranca para longe da estrutura do poder e em direccao a melhoria dos
seus padrOes materiais. Isto, todavia, teve o efeito bastante inesperado. de suscitar fortes
interesses de consumo. Os problemas do consumo receberam urn poderoso impulso
proveniente do seu papel de substitutes das ambicOes de poder permanentemente frustadas,
como (mica recompensa pela opressao no trabalho, a unica saida para a liberdade e a
autonomia arrancados ao sector major e mais consequencial do processo de vida.
0 desvio da luta pelo.poder dentro do local de trabalho

(') Para uma anapse detalhada do processo, ver Z. Bauman., Memories of Class: Essays in Pre-
history and After-Life of Class, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1982
117

para a concorrencia individual no mundo do consumo foi urn processo longo; a sua
direccdo toma-se visfvel apenas cm retrospectiva. A histOria do capitalismo foi marcada
pela militancia dos trabalhadores, cujo mclhor exemplo é a longa luta dos sindicatos.
Ostensivamente, essa luta procurava corn firmcza melhores salarios; e melhores condicOes
de trabalho; ostensivamente, o colectivismo da luta condu zida pelos sindicatos era a reaccao
natural dos trabalhadores ao desequilibrio de poder nos doffs lados da grande linha divisoria,
uma necessidade ditada pela urgencia de restaurar o equilibrio de poder distorcido pelo
monopolio dos patroes, no que respeita a recursos do poder. Todavia, quando apreciadas do
ponto de vista das suas consequencias a longo prazo, as lutas sindicais parecem ter
conseguido algo de bastante diferente; corn cada triunfo, afastaram as preocupacOes dos
trabalhadores mais urn passo da hierarquia de poder dentro do local de trabalho, aproximando-
as da liberdade individual de escoiha e da autonomia fora da fabrica; "difundiram"
progressivamente os conflitos de poder, transformando a energia libertada dos dissidentes
na pressito dirigida no mercado de consumo. Ao mesmo tempo, a luta sindical tinha como
objectivo a salvacao ou o engrandecimento da dignidade e do respeito por si prOprios dos
trabalhadores em condi:0es de permanente subordinagdo e de recusa de autonomia pessoal
dentro dos muros da fabrica. Gradualmente, porem, este cenario de guerra pela dignidade
humana foi concedido ao inimigo e as "prerrogativas administrativas" inteiramente aceites.
Cada vez mais, o esforco dos sindicatos se concentrava em assegurar para os seus membros
uma existencia privilegiada fora do local de trabalho: (2) as condiceies necessarias para
gozarem a liber-

(2) Comparar corn a analise aprofundada de Frank Parkin da tend8ncia "conclusEo pela
exclusab" in Marxism and Class Theory: A Bourgeois Critique, Tavistock, Londres, 1979.
118
dade de consumo, para reafirmarem a autonomia adquirida no local de trabalho no novo e
magnifico universo do mercado de consumo.
No piano sisternatico o trabalho era, ao longo da maior parte da historia capitalista, a principal
necessidade sistematica. A manutencao e a reproducao das estruturas econ6- micas e politicas
dependiam do facto de o capital ocupar o resto da populacao no papel de produtores. 0 produto exce-
dente, utilizado como recurso principal na expansao da producao social de riqueza e de apoio a
hierarquia social do privilegio e do poder, dependia da subordinacao directa da "mao-de-obra viva" no
processo de producao. Os individuos ingressavam no sistema social no papel de produtores,
inicialmente; tais papeis eram unidades essenciais ao sistema. 0 poder de coercao, monopolizado
pelas instituic5es politicas do Estado, era evidenciado principalmente no servico de
"reajustamento" da riqueza como capital (isto é, a riqueza que pode ser encaminhada para a tarefa de
produzir mais riqueza), e dos membros individuais da sociedade como miio de obra. 0 sistema
- -

capitalista formava os seus membros como autenticos ou potenciais detentores dos papdis de
produtores, relegando todos os outros papeis para a posicao de simples "meio ambiente" da esfera
produtiva. A politica desenvolveu recursos socialmente disponiveis para servir esta tarefa; o sucesso
ou o malogro dos programas politicos, assim como a "eficiencia" geral do Estado como um todo,
podiam ser e eram avaliados pela medida em que essa tarefa era levada a cabo. Com efeito, a quanti-
dade de capital investido na producao e o numero de individuos trabalhando no processo produtivo
como mao-de-obra, eram as consequencias principais da politica e serviam de medida do exit° do
sistema.
Resumindo, ao longo da primeira parte da historia, o capitalismo era caracterizado pela posicao
essencial ocupada pelo trabalho, simultaneamente nos pianos individual,
119

IZI
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taneamente do trabalho e que as discussOes de nada servem contra as suas paixoes. (4)
A conclusao de Freud foi que, em virtude da necessidade social de trabalho, as pessoas tera'o
sempre de ser coagidas a obedecer as normas da "regulamentacao civilizada" (isto 6, a integracrto
social).
Como muitas outras das afirmagOes gerais de Freud, este argumento apresenta, como "lei da
natureza" universal, uma certa conjuncao que tern o seu comeco (e tambem possivelmente o seu
fim) na hist6ria humana. A combinagao do trabalho e da coercao 6, na verdade, uma "necessidade
social", porem uma necessidade intimamente relacionada corn um tipo especifico de sistema social,
caracterizada por coordenar accoes humanas corn a reproducao sistematica atraves da instituicao do
trabalho. 0 "descentrar" do trabalho dentro do mundo da vida individual, pode muito bem tornar as
necessidades de ontem irrelevantes para a perpetuagao do sistema e, em certo sentido, "marginalizar" a
coercao. A substituicao do trabalho pela liberdade de consumo, como eixo a volta do qual gira o
mundo da vida, pode bem mudar radicalmente a relacao ate agora antagonica entre o prazer e os
principios da realidade. Na verdade, a prOpria oposicao entre os dois, descrita por Freud como
implacavel, pode ser tudo excepto neutralizavel.
Longe de suprimir a tendencia humana para o prazer, o sistema capitalista na sua fase de
consumismo, alarga-a para sua prOpria perpetuacao. Os produtores, movidos pelo principio do
prazer, constituem uma calamidade para uma economia orientada para o lucro. Igualmente se nao
mais desastroso, seria, contudo, os consumidores nao movidos
(4) Sigmund Freud, The Future of an Illusion, trad. de W. D. Robson-Scott, Hogarth Press, Londres, 1973,
pp. 3-4.
122

pelo mesmo principio. Tendo ganho a batalha pelo controlo sobre a producao, e assegurado a sua
ascendencia nessa esfera, o capital pode agora dar redea solta ao principio do prazer no mundo do
consumo. Na verdade, a conquista da producao continua firme precisamente porque se encontrou
uma saida segura (e benetica) para a tendencia para o prazer potencialmente pertubadora.
Para o consumidor, a realidade nao a inimiga do prazer. 0 elemento tragic° foi excluido da
tendencia insaciavel para a fruicao. A realidade, tal como o consumidor a sente, é uma busca do
prazer. A liberdade diz respeito a escolha entre major e menor satisfacao, e a racionalidade refere-se a
escolher a primeira e nao a segunda. Para o sistema de consumo, urn consumidor que gosta de
consumir a uma necessidade; para o consumidor individual, gastar é um dever talvez o mais
importante de todos. Existe uma pressao para gastar: a nivel social, a pressao da cottcorrencia
simbolica, da autoconstrucao por meio da aquisicao de diferencas e caracteristicas, da busca de
aprovacao social atraves do estilo de vida e de associacao simbolica; a nivel sistematico, a pressao das
companhias comerciais, pequenas e grandes, que monopolizam entre si a definicao de uma vida boa,
das necessidades cuja satisfacao ela requer, e das maneiras de as satisfazer. Porem, estas pressOes nao
sao sentidas como opressao. A rendicao que elas exigem so promete alegria; nao apenas a alegira da
submissao "a algo major do que eu proprio" — a qualidade que Emile Durkheim, urn tanto
prematuramente, imputou a conformacao social na sua prOpria sociedade, ainda largamente pre-con-
sumista (e reclamou como atributo universal de toda a conformacao, em qualquer tipo de
sociedade, antiga ou modema) — mas a alegria franca e sensual da comida saborosa, dos cheiros
agradaveis, de bebidas reconfortantes, do automobilismo relaxante, do prazer de estar rodeado

123

por coisas belas, cintilantes, consoladoras para a vista. Corn tais deveres, quem precisa de direitos?
Os estudiosos e analistas da sociedade contemporanea manifestaram repetidamente a opiniao de que o
pensamento e a accao do individuo modem° sao fortemente influenciados pelo facto de estarem
expostos a chamada "comunicagao dos "mass media'. Esta é tarnbem a opiniao popular; no entanto, o
que querem dizer corn "influencia dos "mass media' difere vincadamente do significado implicit° na
critica popular aos "media" (a TV em especial). Esta critica interpreta "a influencia" em termos simples e
directos: como certas afirmacties explicitas em que se acredita logo no momento em que sao ouvidas, ou
mostrando imagens de accOes que sao imitadas no momento em que sao vistas. Os autonomeados guardiiies
da moral publica protestam contra cenas de violencia ou de sexo; partem do principio de que os instintos
violentos e os apetites sexuais dos espectadores aumentam a vista de tais imagens e sao instigados a pro-
curar satisfacao. Nao existem pesquisas conclusivas quer para corroborar quer para negar estas
assuncOes. 0 que é, no entanto, uma caracteristica muito notoria dos receios populares ligados ao
pemicioso impacto moral da televisao.e nab ser de todo considerada a possibilidade de a
apresentacao total da realidade atraves da televisao, e nao programas ou cenas separadas ser o que importa.
Pode observar-se que a falta de atencao da audiencia a csta influencia "global" dos "mass media" no
mundo das suas vidas é, em si mesma, um efeito surpreendente da influencia global.
Foi a preocupacao corn o impacte total da televisao sobre a nossa imagem do mundo e a nossa
maneira de pensar o mundo e de nele actuarmos, que o analista canadiano Marshall MacLuhan
cxprimiu na sua celebra frase "o mcio de comunicacao é a mensagem". Contida nesta frase esta a
ideia algo complexa de que qualquer que seja a

124

mensagem explicita dos "media", a mais forte influencia sobre o espectador é exercida pela
maneira e a forma como a mensagem é transmitida, mais do que pelo seu " conteudo" (ou seja,
aquele aspecto da mensagem que pode ser verbalizado como uma serie de afirmaceies acerca do tema
aparente da mensagem). Se, o que se sabe a respeito do mundo, vem mais da televisao do que de
qualquer outra fonte, o mundo de que se sabe consistird, muito provavelmente, em imagens que apenas
duram urn breve momento, em "aeontecimentos" mutuamente desligados e em episOdios encerrados
em si mesmos, factos causados e impedidos por individuos movidos por motivos facilmente
reconhecfveis e familiares, individuos auxiliados por peritos a encontrarem a suas verdadeiras
necessidades, a maneira de lhes dar satisfacao e o modelo de felicidade.
Martin Esslin tomou em maos a tarefa de descobrir que especie de "mensagem" é exactamente a
televisao. Eis a sua conclusao: "independentemente do que mais apresente aos espectadores, a televisao
mostra as caracterfsticas basicas do processo dramatic° de comunicacao e de pensamento, pois
que o drama é tambem urn metodo de pensar, de sentir o mundo e de raciocinar sobre ele".
Ora o "processo dramatic° de comunicacao" distingue-se por urn certo ntimero de
particularidades, cada uma das quais de importancia directa para o modo de viver do consumidor e
para aquela singular alianca entre a realidade tradicionalmente hostil e o prazer, para aquele excepcional
modo de estar, onde a liberdade nao tern de ser paga corn a angtistia da inseguranca. Citemos algumas,
seguindo as sugestOes de Esslin. Para comecar, "os factos reais acontecem somente uma vez, sao
irreversfveis e nao se repetem: o drama parece urn facto real mas pode ser repetido segundo a nossa
vontade". A notfcia fica emparedada entre dois trechos de historias dramatizadas, corn as quais
partilha a apresentacao dos factos como essencialmente "repetfveis";

125

acontecimentos que podem ser vistos e revistos, em movimento rapido ou retardado, deste angulo ou
de outro; acontecimentos que, por esta razao, sao sempre inconclusivos "ate novas ordens", e nunca
finais e irrevogaveis; factos que se assemelham muito a urn tipo de experiencia que "pode ser de
outra maneira" (recordam-se de Judas perguntar a Cristo "por favor, podemos comecar de novo?"
em Jesus Cristo Superstar? E este genero de pergunta que so pode ser feita na era da televisao). 0
mundo disperso numa profusao de mini-dramas tem um modo proprio de existencia, mas nao uma
direccao bem definida. E urn mundo "suave", onde as accoes sao apenas episodios sucessivos
entre muitos outros anteriores e posteriores, tern consequencias temporarias e remediaveis, e por isso
nap transportam consigo responsabilidades morais despropositadas. Alem de que, "o drama é
sempre uma accao; a sua accao é sempre a dos seres humanos. No drama sentimos o mundo
atraves da personalidade... o que ouvimos é sempre dito por um individuo especifico e tern valor
apenas conforme a afirmacao proferida". (5) Os factos sao aquilo que os individuos praticam.
Acontecem porque foi destinado que acontecessem. Podia ter sido destinado de outra maneira, ou
nao ser de todo destinado. 0 seu significado definitivo é, portanto, o motivo individual que fez corn
que acontecessem. Existe urn indivIduo motivado e que pode escolher livremente por tras de cada
acontecimento, e o mundo nao é mais do que uma serie de acontecimentos. 0 mundo é apenas urn
con-junto de opceies e escolhas exactamente como o mundo do livre consumo. Os dois mundos
piscam o olho urn ao outro, respondem um ao outro, legitimam-se e confirmam -Se urn ao outro.

(5) Martin Esslin, The Age of Television, W. H. Freeman, Sao Francisco, 1982, pp. 8, 20.
126

Alguns estudos recentes insistem em que a televisao faz mais do que apresentar o "mundo real"
como drama; transforma-o num drama, clá-lhe a forma de acontecimento dramatico. Sob o
impacto da televisao o "mundo real" torna-se na verdade semelhante a urn drama teatral. Muitos
acontecimentos "reais" acontecem apenas por causa da sua potencial condicao de serem
televisionados: é sabido que as figuras pdblicas, os politicos tal como os terroristas, "actuam para a
televisao" motivados pela esperanca em que a televisdo transforme os seus actos privados em
acontecimentos publicos e conscientes da diferenca de impact() que isso provocard. 0 que, de certo
modo, se entende menos é que cada vez mais os acontecimentos "existam" apenas na televisao e
atraves dela. Na opiniao de Benjamin Barber, "é dificil imaginar a geracao dos Kennedy, os anos
60, o Watergate, a geracao de Woodstock ou mesmo a "Maioria Moral" sem a televisao nacional". ( 6)
Daniel Dayan e Elihu Katz afirmam que a quantidade de acontecimentos origin& rios da prOpria
televisao vao tendo lentamente precedencia (corn a cooperacao entusiastica das personalidades corn
pretenseies pdblicas e dos seus agentes publicitarios) sobre a "mera reproducao dos
acontecimentos", ou sobre o oferecer ao espectador acesso a um facto de que, de qualquer modo,
aconteceria mas em que o espectador nao participaria se nao fosse a televisao. Estes
acontecimentos dos "media" "nao sao descritivos de um estado de coisas, mas simbolicamente
instrumentais ao divulgarem esse estado de coisas". (7)

(6) Citado segundo Louis Banks, The Rise of Newsocracy, in Ray Eldon, Hiebert e Carol
Reuss, (eds.), Impacts of Mass Media Current Issures, Longman, Londres, 1985, p. 31.
(7) Daniel Dayan e Elihu Katz, "Performing Media Events", in James Curran, Anthony
Smith e Pauline Wingate (eds.), Impacts and Influence Essays on Media Power in the Twentieth
Century, Methuen, Londres, 1987, pp. 175, 183.

127

0 facto de uma parte cada vez major do "mundo exterior" de que os espectadores tomam
conhecimento atraves da televisiio ser urn mundo criado pela propria televisito, ganha especial
importilncia na perspectiva da tendencia compreensivel dos "media" da comunicacao para a auto-
citacao. Equipado corn meios de comunicacao de enorme poder, o mundo dos profissionais da
comunicacao e dos artistas expande-se muito para alem do seu antigo territOrio, outrora limitado e
confinado ao palco, apropriando-se de dominios anteriormente utilizados, digamos, pelos politicos
profissionais. No mundo feito pela TV, a "gente da comunicacao" esta fortemente representada
(assim como os acontecimentos corn origem nos "media" em comparacao corn os de outra origem
ou incidencia). Discretamente, e decerto sem intencdo, aos acontecimentos no mundo dos "media" e
aos seus herois sdo atribuidos o mesmo, se nab major, peso e importancia que aos de fora; muitos
"concursos de conhecimentos", por exemplo, ddo prernios a quem se lembra das tabelas dos dez
melhores e a quem tern capacidade para notar a diferenca entre dois artistas e nao a quem tem talento
para interpretar os acontecimentos da "verdadeira histOria". A verdade a que ja nab é evidente o
que é a "verdadeira histOria" e ate onde foram alargadas as suas fronteiras.
0 mundo dos "media" tern, digamos, uma estranha capacidade para se fechar em si mesmo. E
como tambern mostra uma nitida tendencia para se meter (e conquistar) em terrenos anteriormente
adminsitrados por estranhos, pode bem tomar-se a tinica realidade em relacao a qual a experiencia
do livre consumidor pode e deve ser posta prova. Uma vez que o mundo dos "media" e a
experiencia do consumidor tern eco urn no outro e proporcionam urn ao outro uma "prova de
realidade" suficientemente forte, a orientacao do consumidor que guia a vida individual pode

128

muito apropriamente servir, ao nivel social, como principal factor de integragdo social.
0 mundo dos "media" é vasto e colorido o bastante para preencher o campo de visa() dos seus
espectadores de um extremo ao outro e para lhes prender toda a atencdo sobre si proprio. Nab ha
necessidade nem espaco para mais nada. Entre as muitas coisas que ficam de fora esta um grande sector
da politica: o sector que ndo pode ser facilmente acomodado dentro do tinico mundo que os "media" sdo
capazes de retratar; todos os problemas mais abstractos e importantes das opcOes polfticas ou das
tendencias hist& ricas que dizem respeito mais a dimensdo sistematica da vida humana do que a sua
dimensdo pessoal, e por esta raza.'o ndo se deixam traduzir em imagens, em dramas passionais ou em
historias de interesse pessoal. A Unica forma em que a politica a aceite no mundo dos "media" é talhada a
medida desse mundo. A politica aparece nesse mundo como urn drama de personalidades, como os exitos
ou insucessos dos politicos individualmente, como choque de caracteres, motivaciies, ambigoes, como
uma outra fase da perpetua e imutivel comedia humana. Enaltecer ou repelir certas facetas do catheter,
respostas corajosas ou cobardes aos desafios do antagonista, a aparente sinceridade ou dissimulacdo do
politico, importam mais do que os meritos ou as fraquezas dos programas politicos pela simples raid .°
de serem muito mais faceis de transmitir (e de transmitir de uma maneira interessante) pelo codigo dramatico
da televisdo. Atraindo sobre si proprios toda a atencdo, estes pormenores pessoais e ndo essenciais da
politica deixam escondidas muitas questOes polfticas primarias. Paradoxalmente, a torrente de inforrnacdo
tornada possivel pelos "mass media" torna invisivel a maioria das condiciies fundamentais da
existencia social.
Exposta ao sector major dos cidaddos somente atraves dos peritos em relacoes ptiblicas e dos
acontecimentos de

129

relacoes publicas, a politica goza de consideravel imunidade em relacao ao controlo pUblico. Como
os inspectores de Bentham, "ve sem ser vista". Embora esta nao seja necessariamente uma condicao
planeada de antemao e provocada por esquemas conspiratorios, é decerto gratificante para os politicos.
Manter o pdblico a distancia de modo que so veja o que eles querem que seja visto, confere aos
politicos uma liberdade extra e permite-lhes prosseguir corn aquilo que definem como "sendo do
interesse do Estado", por muito poucas probabilidades que haja de o pAblico concordar, se de tal
Liver conhecimento. Nao confiando ate agora na selectividade espontanea dos "mass media" da
comunicacao, os governos usam outros meios para assegurarem que o reino da sua liberdade
se mantem os problemas que nao tem probabilidades de provocar consenso entusidstic° sao
classificados como "segredos de Estado" e activamente impedidos de aparecer aos olhos do public°.
Ironicamente, este zelo tern por vezes efeitos contrarios as intencoes: muitos assuntos tecnicos
enfadonhos transformam-se em "piteus para os "media" " uma vez que se saiba que foram tratados
pelos senhores do poder de uma maneira dissimulada, reservada, nao inteiramente honesta.
Seria, contudo, urn grave erro descrever o "acto em desaparecimento" da politica como urn sub-
produto acidental do avanco dos "media". A progressiva eliminacao da politica do horizonte da vida
individual tern sido grandemente ajudada pela revolucao nos "media", mas nao causada por ela. Nao
se pode comprec Jer inteiramente, a nao ser que o papel variavel do Estado, na fase de consumo do
capitalismo, seja levado em linha de conta. Possivelmente, a alteraca'o mais importante e a lenta
demissao do papel de "reajustamento" do Estado, muito importante anteriormente; a retirada do
Estado da intervencao directa nas relagoes capital/trabalho, das suas preocupacties e responsabilidades
no campo da reproducao de riqueza como capital e os
130 individuos como mao-de-obra, num sistema em que o do-mini° do capital se apoiava em fazer
do resto da sociedade produtores autenticos ou potenciais. No nosso sistema actual o capital ocupou a
sociedade basicamente como consumidores. Todavia, este ajuste nao requer uma intervencao activa
do Estado. 0 mercado de consumo encarrega-se de conseguir consenso e de solicitar uma conduta
social correcta. 0 comportamento consensual é muitas vezes acornpanhado pela aprovacao do mercado
livre e da liberdade de escolha individual — mas urn consenso ideologic° nao figura entre as
condicOes necessarias. A orientacao do mercado por individuos que buscam a satisfacao das suas ne-
cessidades sempre crescentes e tudo o que é preciso para a integracao social. Nem a coercao é
necessaria; as pessoas tinham de ser obrigadas a trabalhar numa certa fase da historia capitalista
(recordemos a opiniao de Bentham sobre a fabrica como uma das variedades da reclusao
semelhante a prisao), mas nem a coaccao e decerto nem a violencia sac) necessarias para conduzir a
participacao no jogo de mercado. Nao sendo já a legitimacao importante entre as tarefas do Estado,
e sendo a coaccao raramente aplicada para manter o conformismo, o desaparecimento da politica
do horizonte da vida diaria nao é forjado nem lamentado. A maioria dos participantes no mercado sao
timidos e desconfiados dessas forcas pollticas (partidos, programas) como inclicio de "repolitizacao" do
mundo do consumo individual agora privatizado e de interferencia naquilo que se tornou uma questao
particular entre consumidor e mercado. Apesar de precisarem de regulamentos externos, os individuos
preferem escolher e comprar eles proprios. Preferem ser dirigidos por medicos, advogados ou
professores de sua escolha.
A. 0. Hirschman distinguiu duas maneiras de os cidadaos poderem exercer controlo sobre o poder
que os domi-

131

na e chamou-lhes respectivamente "saida" e "voz". ( 8) Esta diferenga parece ser muito util quando
aplicado a inter-acca'o entre consumidores e fomecedores por junto ou a retalho de bens e servicos
compraveis; de facto, os consumidores estabelecem um limite a liberdade dos fomecedores, quer
recusando comprar os seus artigos (saida) quer envolvendo-se mais activamente na regulamentagao da es-
trutura de fornecimento, atraves de associagoes de defesa do consumidor ou de comissoes de
vigilancia (voz). Em ambos os casos é de esperar que os fomecedores sejam influenciados; tentarao,
muito provavelmente, modificar a sua oferta de acordo corn a procura dos clientes. Contudo, é menos
convincente a hipotese de os metodos de saida e voz serem opgoes abertas aos cidadaos que querem
exercer pressao sobre os govemos. Os .govemos que nao precisam de mobilizar e arregimentar os seus
cidadaos, nao ficarao especialmente preocupados corn uma saida maciga da politica; pelo contrario, parece
terem desenvolvido urn certo interesse na indiferenga e passividade dos seus subditos. Os govemos actuais
estao mais preocupados corn a ausencia de dissidentes do que corn a presenga de apoiantes. Urn cida-
dao passivo paga a conta perfeitamente, visto que se abstern de causar prejuizo; a sua ajuda nao é pedida, pelo
menos em condigOes normais e pacificas. Sair da politica significa uma aceitagao indirecta do tipo de
governo que pouco tern a ganhar e muito a perder em relagao ao envolvimento activo dos seus
stibditos no processo da tomada de deciseies politicas.
0 mercado de consumo como urn todo pode ser visto como uma saida institucionalizada da politica;
ou como urn atractivo altamente compensador. destinado a encorajar os

(N) Comparar corn A. 0. Hirschman, Exit, Voice, and Loyalty, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1970.
132

clientes em perspectiva a deixar em pedagos o mundo soturno e desagradavel das normas politicas e
burocraticas. Este ultimo mundo esta a espreita para incentivar a migraga'o e os premios, cada vez mais
tentadores, a espera dos migrantes. A movimentagao para dentro do mercado é acelerada tanto pelas forgas
que "empurram" como pelas que "puxam". As pessoas estao desiludidas corn as salas de aula super-
lotadas, corn a ma qualidade e inseguranga dos transportes ptiblicos, corn as longas filas e o tratamento
negligence dado pelo servigo nacional de satide, sobrecarregado corn trabalho e corn poucos recursos; e
assim pensam encantados em consultar "urn medico da sua preferencia no momento que entenderem" ou ern
mandar os filhos "a escola da sua preferencia, administrada pela autoridade escolar que escolherem". Quanto
menos satisfatoria e mais opressiva a cena publica dirigida pela politica, mais entusiasmo tern os cidadaos
por "se livrarem dela". Se pudessem, deixariam para tras os servigos ptiblicos politicamente administrados.
Quantos mais o fizerem, menos forga muscular ou puro aborrecimento restara naqueles que nao podem dar-
se ao luxo de "sair". E exercida menos pressao sobre o govern° para melhorar o trabalho no sector public° e
para tomar os seus servigos mais atractivos. E assim a deterioragao continua, e corn crescente velocidade.
Ainda mais energia é acrescentada a debandada.
A ciencia politica moderna desenvolveu um "teorema do eleitor medio" que diz, resumindo que,
"somente os programas que podem atrair o apoio da maioria dos eleitores sera° aprovados". (9)
Segundo este teorema, os governos evitam atribuir recursos a minoria, mesmo que apenas estes pequenos
grupos minoritarios precisem muito deles e

(8) Patrick Donleavy c Brandon O'Leary, Theories of the State: The Politics of Liberal
Democracy, Macmillan, Londrcs, 1987, p. 109.
(9)
133
nao possam passar sem eles. Esta atribuicao seria altamente impopular junto de todos os outros, isto é,
da maioria que a interpretaria como urn fardo que eles, os contribuintes, tern de suportar. Se as
necessidades de uma minoria se tornarn verdadeiramente insuportaveis e nao podem mais ser igno-
radas, a atribuicao é por vezes realizada mas apenas numa forma que separa os dissidentes
daqueles que nao precisam dela. Por exemplo, em vez de financiar generosamente a educacao das
criancas verdadeiramente pobres, bem como dos adolescentes, é oferecida a todos uma subvencao
mais pequena (claramente insuficiente para alguns, mas execessiva para outros), ou pelo menos a um
numero suficientemente grande para alcangar o "eleitor medio". Isto é muito dispendioso e os
govemos prefeririam nao fazer qualquer atribuicao, e apaziguar o "eleitor medio" reduzindo os
impostos. Somente urn "poder incomodativo" realmente consideravel de uma minoria desprezada
pode prevalecer sobre esta preferencia.
Mas a sada macica dos mais favorecidos torna a "voz" dos menos favorecidos inaudivel pois que o
seu "poder, incomodativo" é suficientemente pequeno para ser ignorado sem perigo. Um clamor
macico de aprovacao por este facto ainda abafaria mais qualquer voz de protesto que pudesse
levantar-se. Corn a "saida" aumentando em volume e extensao, e libertando assim os govemos da
pressao "dos que nao contain", aqueles cujas vidas continuam directamente dependentes de
decisOes politicos, verificam que a sua capacidade para "emitir voz" (a oportunidade pratica de
empreender uma accao politica eficaz) esta desa-parecendo rapidamente. Sem sentido em termos de
actuacdo democratica regulamentada pela regra da maioria (tal como descrita no "teorema do eleitor
medio"), o seu protesto a classificado como uma questa° de lei e de ordem, e como tal reprimido. 0
paradoxo da polftica na era do consumo é o facto de aqueles que podem ter impacto nas decisOes
políticos

134

terem pouco estImulo para o fazerem, enquanto aqueles que mais dependem das decisOes politicas
nao terem recursos para as influenciar.
Dentro da sociedade de consumidores existe uma categoria de pessoas que tern fracas oportunidades
para "sair" da supervisao importuna da burocracia de Estado e cuja "voz" nao pode ser
suficientemente sonora para ser escutada. Esta categoria é composta por pessoas que vivem na
pobreza ou prOximas dela, por estarem cronicamente desempregadas ou empregadas apenas em
trabalhos ocasionais, ilegalmente desprotegidos e irregulares, ou estarem sobrecarregadas por urn
grande mlmero de pessoas a seu cargo, por terem "a cor de pele errada", ou por viverem na "parte
errada do pais", isto é, a parte abandonada pelo capital. Numa sociedade de consumo tais pessoas
sap socialmente definidas como consumidores imperfeitos; a sua "imperfeicao" (usada para legitimar a
discriminacao de que sao alvo) consiste na sua incapacidade para entrar no jogo da livre escolha, na
sua inaptidao manifesta para exercer a sua liberdade individual e conduzir as suas vidas como urn
assunto particular entre eles e o mercado. A sua "imperfeigab" é tomada (numa argumentacalo
tipicamente circular) como prova de que as pessoas desta categoria nab sabem fazer o devido use de
qualquer liberdade que possuam e que, por consequencia, devem ser guiadas, controladas,
corrigidas ou penalizadas por desobediencia por aqueles que sabem o que é born para elas e como
elas devem usar a sua liberdade. Tal definicao social é auto-realizada. Uma vez que certas pessoas
nao sabem quais sao as suas necessidades, estas devem ser determinadas por outras que sabem. Uma
vez que certas pessoas mostraram a sua incapacidade para usarem devidamente a sua liberdade, o
seu direito a tomar decisOes deve ser-lhes retirado ou suspenso, e os problemas devem ser
decididos por outras. Estas

135

"outras" silo a burocracia de Estado e os varios peritos que ela emprega para esse fim.
Numa sociedade de consumo, pobreza significa incapacidade social e politica, causada primeiramente
pela inaptidao para desempenhar o papel de consumidor, e depois confirmada, legalmente
corroborada e burocraticamente institucionalizada como condicao de heteronomia e de nao-
liberdade. A pobreza reporta-se ao rendimento (pequeno demais pelos padreies aceites) e ao volume
de propriedades (pequeno demais para satisfazer necessidades consideradas basicas ou vitais) os quais,
em principio, podem ser medidos de certa maneira "objectiva" (claro que a propria ideia de que des
podem ser assim medidos pressupoe que existern outros peritos, especialistas que "sabem
verdadeiramente" o que c e o que nab é a condicdo de pobreza). 0 estado de pobreza nao é,
contudo, definido por ester indices de medicao. Numa sociedade de consumo, como em qualquer outra
sociedade, a pobreza é, na sua essencia, uma condicao social. Abel-Smith e Townsend observaram que o
estado de pobreza é determinado pelo grau de "eficiencia social" (ou antes, ineficiencia). Uma pessoa
pobre é alguem que nao pode tomar parte no comportamento social reconhecido como proprio de um
membro "normal" da sociedade. Pormenorizando esta ideia, David Donnison defmiu a pobreza como
"um pada° de vida tao baixo que exclui as pessoas da comunidade em que vivem". (10) Notemos que o
que de facto exclui as pessoas pobres da comunidade, o que as torna "socialmente ineficientes",
nao silo apenas os meios insuficientes para viver mas tambem o facto de o estado de heteronomia e
a legislacao burocratica importuna,

Citado segundo Stein Ringer, The Possibility of Politics: A Study in the Political Economy of the Welfare State,
Clarendon Press, Oxford, 1987, p. 144.
136

as separar dos outros membros da comunidade, iivres e autOnomos. Numa soc iedade de
consumidores livres recebermos das autoridades indicagoes de como gastar o nosso dinheiro, a uma
,

fonte de vergonha. A "ineficiencia social"


uma questa° de estigma sermos estigmatizados torna-nos ainda menos eficientes. Os sociologos que
estudaram a vida dos pobres contemporaneos concordam em que urn aspecto muito notorio do viver-
se na pobreza 6 a exclusa.o dos pobres da inter-acgao social, a tendencia para quebrar velhos lagos sociais,
para fugir dos lugares pdblicos para procurar reftigio em casa, que passa a servir de sitio que protege
da ameaca real ou imaginaria da condenagao comunal, do ridfculo ou da compaixao.
A determinagao burocratica das necessidades significa uma persistente falta de autonomia pessoal e de
liberdade individual. A heteronomia de vida é o que constitui privacab numa sociedade de consumo. A
vida dos que silo privados esta sujeita ao govern° burocratico, que isola e incapacita as suas vitimas, dando-
lhes poucas possibilidades para lutarem, para darem resposta, ou mesmo para resistirem atraves da nao-
cooperagao. Na vida dos que foram privados, a politica d omnipresente e omnipotente; penetra profundamente
nas areas mais privadas da nossa existencia, enquanto fica, simultaneamente distante, estranha e inacessivel. Os
burocratas "veem sem serem vistos"; falam e esperam que os oucam mas ouvem apenas o que pensam que
vale a pena ouvir; reservam-se o direito de tragar a linha entre a verdadeira necessidade e urn mero capricho, entre
a prudencia e a prodigalidade, a razao e a falta dela, o "normal" e o "louco". Na sociedade de consumo,
a opress'ao burocraticamente administrada 6 a dnica alternativa a liberdade do consumidor. E o mercado de
consumo 6 a dnica fuga a opressao burocratica.
Na sociedade capitalista na sua face de consumo, este

137

caminho de fuga esta aberto e 6 ocupado por uma grande maioria de individuos, embora o resicluo
daqueles a quem a fuga nab 6 acessivel pareca ser inevitavel e permanente. Porem, existe agora urn
outro tipo de sociedade modema — a comunista — onde a fuga a uma proposicao viavel apenas para
uma minoria pequena e incaracteristica. Nessa sociedade, a determinacao burocratica e a administracao
das necessidades individuais e o principio essencial, nao uma medida residual e marginal: o mesmo
acontece corn a opressao, corn a incapacidade politica e corn a expropriacao forcada da "voz" que
vem corn ela.
Uma maneira de imaginar as sociedade comunistas (tal como surgiram historicamente num certo !
lamer() de paises em todos os continentes) a visualize-las como urn alargamento daquelas
condicOes de vida que numa sociedade capitalista estao associadas corn a pobreza, a sociedade no
seu todo. Isto nao significa necessariamente que todos os membros de uma sociedade comunista
vivem na pobreza (id vimos que a pobreza é uma questa() de relativa "ineficiencia social"; e que o
caracter especial da pobreza nas sociedades capitalistas contemporaneas vem do facto de ela ser "um
desvio da norma" — sendo a norma a liberdade de consumo). Nem sequer se refere a qualquer
padrao de vida especial e concreto. Refere-se sim ao grau de influencia que o individuo pode exercer
(individualmente como consumidor; ou, colectivamente como cidadao) sobre as suas proprias
necessidades e sua satisfacao. As "condiciies de vida" em questa°, que sao extensivas a sociedade no
seu todo, sao condicOes de heteronomia, de limitar a escolha individual ate ao ponto de quase
extincao. As analises muito profundas das sociedades de tipo comunista procuram "a essencia"
dessas sociedades precisamente na administracao das necessidades individuais feita pelo Estado.
Ferenc Feher, Agnes Heller e Gyorgy Markus definem o estado comunista
138
como "ditadura sobre as necessidades". (") Quais sao as necessidades dos individuos, e como e em
que medida devem ser satisfeitas e decidido pelo estado politico, e posto em pratica pela burocracia;
os individuos cujas necessidades sao determinadas desta maneira, pouco ou nada tem a dizer sobre
questOes quer do Estado quer da burocracia. Nao tern, por assim dizer, nem "saida" nem "voz".
A vida miseravel e sordida sob o regime comunista, a notOria escassez de bens de consumo, a
quantidade de tempo necessgrio para obter mesmo os artigos mais elementares, sao muitas vezes
explicadas como resultado da inepcia de quem planeia, da ausencia de incentivos para trabalhar
bem, ou da corrupc'g.'o generalizada. A questao 6, porem, se a ausencia notOria da liberdade de
consumo e de urn ambiente proprio para o seu desenvolvimento 6 uma manifestacao de urn certo
"mau funcionamento" do sistema mal administrado ou do principio essencial da sua administragao.
Pode argumentar-se que esta ultima hipotese 6 a verdadeira; que o sistema comunista representa uma
altemativa a uma sociedade integrada atraves do mercado de consumo e que a ausencia de
liberdade de consumo é urn atributo notorio e indispensavel dessa alternative. 0 poder politico do
Estado assenta na sua capacidade para "determinar as determinantes" do comportamento
individual. Esta formidavel capacidade depende da ausencia da "sada" e da eliminacao da "voz".
Urn mercado de consumo bem apetrechado forneceria uma "saida"; a liberdade de escolher entre o
conformismo e a dissidencia tornaria a "voz" teoricamente audivel (embora nao necessariamente
na pratica). Notemos que a ubiquidade das regras politicas ao penetrarem nos recursos mais
intimos da vida individual repercute-se
(") Ferenc Feher, Agnes Heller e Gyorgy Markus, Dictatorship over Needs, Oxford University Press,
Oxford, 1983.
139

na "politizacao" de questoes que noutras circunstancias nao teriam qualquer interesse para o Estado.
Todos os problemas pessoais se transformam imediatamente em questOes politicas; nao podem ser
resolvidos sem recorrer a alguns sectores do poder polftico. Qualquer tentativa dos indivfduos para
usarem o seu proprio engenho ao enfrentarem as tarefas da vida é potencialmente perigosa, visto que vai des-
truindo o princIpio da determinagao da posicao social dos individuos por mando politico; é, portant°,
considerada corrupcao. Enquanto na sociedade capitalista de consumo o Estado pode encarar a proliferagao
de ideias polfticas e sociais corn rectidao visto que nem a integracao sistematica nem a social
dependem ja da aceitagao universal de uma formula legitimadora especifica o Estado comunista fica
abalado por todas as expresseies de dissidencia intelectual; nao oferecendo "sada" da polftica nao pode
esperar que a tendencia para a resistencia atraves da "voz" se dissiPe por si propria. 0 Estado comunista
tern de se apoiar fortemente nao tanto na aceitagao real da sua formula de legitimizacao, mas na
liquidagao de qualquer tentativa de mobilizacao polftica por parte dos dissidentes; ou antes, qualquer
manifestagao de desacordo colectivo assume imediatamente, do ponto de vista do Estado, o caracter de
dissidencia politica.
O nosso exame a organizacao interna da sociedade capitalista de consumo, e a sua comparacao corn a
sociedade comunista organizada sobre urn princfpio reconhecidamente oposto, sugere a opressao
politica burocratica como dnica altemativa a liberdade de consumo; pelo menos, como tinica
altemativa "realmente existente" (diferente das altemativas apresentadas como desejaveis mas nao sujeitas,
ate agora, a um teste conclusivo de plausibilidade pratica ou teOrica). Alan disto, o nosso exame sugere
que, para a maioria dos mernbros da sociedade contemporanea, a liberdade individual, se é que pode ser
alcancada, surge sob a
forma de liberdade de consumo, corn os seus atributos quer agradaveis quer menos agradaveis. Uma vez que a
liberdade de consumo tomou a sua conta as preocupacoes individuais, a integracao social e a reproducao
sistematica (e a liberdade de consumo toma de facto a sua conta todas tres), a pressao coerciva da
burocracia politica pode ser atenuada, a manifestagao das antigas ideias e praticas politicas difundida, e
muitas opiniaes, estilos de vida, crencas, valores morais ou perspectivas esteticas podem desenvolver-se
sem serem pertubados. 0 paradoxo é, esta claro, essa liberdade de expressao nao dominar de modo
algum o sistema ou a sua organizacao politica de modo a ele ser controlado por aqueles cujas vidas ele ainda
determina, embora a distancia. A liberdade de consumo e a liberdade de expressao nao sao politicamente
dificultadas desde que se mantenham politicamente ineficazes.

141

V — 0 FUTURO DA LIBERDADE. ALGUMAS CONCLUSOES

A incidencia da sociologia termina onde o futuro come-ca. 0 maxim° que um sociOlogo pode fazer, ao
imaginar o tipo futuro de so&dade, a extrapolar a partir do seu tipo actual. Ao faze-1o, o sociologo
nao 6 muito diferente dos homens e das mulheres vulgares e razoaveis. Ao pensarmos na paisagem ainda
escondida atras do horizonte, imaginamo-la semelhante ao que vemos a nossa volta; esperamos encontrar
"mais das mesmas coisas". Nao sabemos, evidentemente, se a nossa expectativa 6 bem fundamentada. Nem
tao-pouco o sociologo. Se afirmar o contrario, poe em risco a sua integridade profissional. A sociologia
desenvolveu-se como sabedoria retrospectiva, nao como uma versa° moderna de qualquer profecia.
A incapacidade de contar o futuro corn a mesma seguranca corn que se conta a historia do passado, ou se
descreye a tendencia do presente, nao é culpa da sociologia. No pode ser acusada da indiferenca dos
sociologos pelo futuro ou de uma metodologia defeituosa, apenas propria para tratar os aspectos da vida
humana já sedimentados ou ossificados como factos consumados. Independentemente da controversa
questa() sobre se uma metodologia alternativa concebivel, esta dificilmente

140

tomaria uma visa.° antecipatoria do futuro mais credfvel. E isto por uma razao relativamente simples: a
condicao humana nao é "comprada" pelo seu passado. A historia dos homens nao é
predeterminadapelas suas fases ja passadas. 0 facto de algo ter acontecido, mesmo durante muito
tempo, no é prova de que continuara a acontecer. Cada momento da histOria é uma confluencia de
caminhos que conduzem a varios futuros. Estar nas encruzilhadas é a maneira de existir da
sociedade humana. 0 que em retrospectiva parece um desenvolvimento "inevitavel" comecou na sua
epoca por tomar uma estrada entre as muitas que se estendiam a sua frente.
0 futuro difere do passado precisamente porque deixa urn amplo espaco para a escolha e a accao dos
homens. Sem escolha nao ha futuro mesmo que a escolha consista simplesmente na abstencao de
escolha e em escolher it ao sabor da corrente. Tambem sem accao nao existe futuro — mesmo que a
accao se limite a padrOes habituais e nao admita a possibilidade de ser diferente do que é. E por esta
razao que o futuro é sempre um "ainda nao", incerto e ilimitado.
E somente neste contexto de escolha que a sociologia pode ser relevante para a nossa maneira de
pensar o futuro. A sociologia nab pode dizer-nos como sera, o futuro. Nab pode sequer assegurar-
nos o resultado do nosso esforco para o moldar de determinada maneira. Nao pode, em resumo,
oferecer-nos certezas quanto ao futuro tipo da nossa sociedade — quer desejemos molds-la mais a
nosso gosto, quer estejamos apenas curiosos acerca do que "vira a acontecer no fim". A sociologia
pode, por outro lado, informar a nossa escolha (entre esta ou aquela accao, entre a accao e a nao-
accao), dando-nos a conhecer as tendencias ja evidentes no presente, o tipo

143

de coisas que trarao consigo se deixadas entregues a si prOprias, e as forcas dentro da sociedade que
fazem essas tendencias funcionar no seu sentido actual. A sociologia pode tambem informar a nossa
escolha revelando as consequencias e as associacOes da nossa conduta diaria, todas elas invisfveis
dentro da estreita perspectiva da nossa experiencia "privada" ou individual. A somar

144

a isto, a sociologia pode informar a nossa escolha tornando-nos conscientes de que a escolha é
possfvel: apontando altemativas a nossa maneira de viver habitual, que podemos achar ou nao mais
convenientes para aquilo que julgamos ser as nossas necessidades. Tudo isto nos possibilita fazer-
mos as nossas escolhas conscientemente; usarmos, tao bem quanto possivel, essa oportunidade de
liberdade que certamente o futuro pode oferecer-nos. Estes servicos da sociologia destinam-se aqueles
de entre nem que preferem actuar conscientemente, mesmo sem o conform da certeza de sucesso.
Estamos agora entrando no reino das possibilidades, nao dos factos; nem sequer das
probabilidades dos factos. Como todos os futuros, o futuro da liberdade nao é predeterminado. Entre
os factores que por fim decidirao a sua forma, o principal é a direccao que tomarem os esforcos dos
homens. E isto sera decidido por quem fizer esses esforcos.
Como todas as tentativas para descobrir uma logica intrinseca na realidade ja consumada, a nossa
analise da maneira como funciona a nossa sociedade p6s em destaque a sistematizacao do seu
mecanismo, a exactidao corn que a maneira de viver individual, a integracao social e a estabilidade do
todo "encaixam umas nas outran". Em virtude desse destaque, o quadro geral nao augurava nada de
born quanto a perspectivas de mudanca. 0 consumo surgiu da nossa analise como a "riltima
fronteira" da nossa sociedade, a sua unica components dinamica, em constante mutacao; na verdade,
o unico aspecto do sistema que gera os seus prOprios criterios de "movimento para a frente" e
assim pode ser encarado como "em progresso". Pareceu tambem desempenhar o papel de urn para-
rains eficaz que facilmente absorve o excess() de energia que poderia queimar as ligagoes mais
delicadas do sistema, e de uma valvula de seguranca oportuna que encaminha os
descontentamentos, as tensOes e os conflitos continuamente gerados pelos sub-

145

-sistemas politico e social para a esfera onde podem ser simbolicamente rejeitados e desmantelados.
Tudo considerado, o sistema parecia estar de boa satide e nao em crise. De qualquer maneira, ele é
capaz de resolver os seus problemas e de se reproduzir nao menos do que outros sistemas conhecidos
o podem fazer e que os sistemas em geral se espera que facam. Tambem vimos que a maneira
especial de resolver problemas, de sanar conflitos e de integrar socialmente, caracteristica do nosso
sistema, tende a ser ainda mais fortalecida pelo desencanto daquilo que parece ser, do ponto de vista
sistematico, a sua tinica alternativa. 0 sistema eliminou corn exit° todas as altemativas excepto uma: a
repressao a raiar a privagaio de direitos civis surgiu .como a unica "possibilidade realista" alem da
liberdade de consumo. Dentro do sistema ja nao existe escolha entre a liberdade de consumo e
outras especies de liberdade. A Unica escolha nao desacreditada pelo sistema como "utopica" ou
irrealista é a escolha entre a liberdade de consumo e a nab-liberdade; a liberdade de consumo e a
"ditadura sobre as necessidades" praticada em escala limitada em relacao ao residuo de
"consumidores imperfeitos", ou numa escala global por uma sociedade sem vontade ou sem
capacidade para proporcionar os encantos do mercado de consumo desenvolvido.
Ha meio seculo, Aldous Huxley e George Orwell assustaram o mundo ocidental corn duas visOes
altamente contrastantes da transformagdo social iminente. Ambos pinta-ram quadros de mundos auto-
controlados e auto-apoiados, mundos que apenas viam os conflitos como anomalias ou excentricidades
e varriam para debaixo do tapete os poucos dissidentes que restavam. Em todos os outros aspectos os
mundos de Huxley e de Orwell diferiam consideravelmente. Huxley foi buscar o seu mundo a
experiencia dos ricos pioneiros do consumo livre. Orwell, pelo contrario, inspirou-se na situagdo dos
primeiros proscritos do progressivo

146

mercado de consumo. A visa° de Huxley é de contentamento generalizado, de busca do prazer, de


indiferenca; a de Orwell é de ressentimento generalizado (embora reprimido), de luta pela
sobrevivencia e de temor. Porern, o resultado é muito semelhante: uma sociedade segura da sua
prapria identidade, imune aos ataques, capaz de perpetuar a sua glOria e a sua miseria
indefinidamente. No mundo de Huxley, as pessoas nab se revoltam porque nab querem; no de
Orwell, nao se revoltam porque nao podem. Seja qual for a razao da obediencia, ambas as sociedades
garantiam a sua etema estabilidade, empregando a mais infalivel das medidas: a eliminagdo das
altemativas a si proprias.
Nenhumas das duas visOes corresponde corn exactidao ao sistema actual, embora nao seja precis()
grande esforgo para detectar semelhangas parciais aqui e ali. Existe, todavia, uma terceira visa() ja
velha de 500 anos, laconica e rudimentar, em cornparagdo quer corn a de Huxley quer corn a de
Orwell, no entanto alcangando a essencia mais profunda de urn sistema cimentado pela liberdade de
consumo. Esta visa° devemo-la ao padre franciscano Francois Rabelais e a sua obra-prima satirica
Gargantua, o livro que termina corn a construgao da Abadia de Theleme. Theleme é o local da boa
vida; ali a riqueza é a virtude moral, a felicidade a norma principal, o prazer o objectivo da vida, o
born gosto o major talento, o divertimento a arte essencial, o gozo o tinico dever. Mas em Theleme
existe mais do que as delicias sensuais e a excitacdo de caricias ainda desconhecidas. A
caracteristica mais notavel de Theleme sAo os seus muros espessos. LA dentro, nao ha ocasido para
preocupacties quanto a origem da riqueza, da felicidade e dos divertimentos; é esse o prego de estarem
sempre e profusamente a disposicao. Nao se ye o "outro lado". Nem se tern curiosidade em o ver:
afinal é o outro lado.
Podemos dizer que a sociedade de consumo comegou onde terminou o Gargantua. Elevou as regras
toscas da

147

abadia de Rabelais ate as transformar em princfpios sistematicos sofisticados. A sociedade


organizada a volta da liberdade de consumo pode ser considerada uma versa° elaborada de
Theleme.
Muros espessos sao uma componente indispensavel da sociedade de consumo; assim como a sua
impenetrabilidade para os que estao la dentro. Se esses muros aparecem na visao dos consumidores
é como uma tela para grafitos coloridos e esteticamente agradaveis. Tudo o que é verdadeiramente
feio e desagradavel é deixado para tits: lojas que exploram os empregados, a mao-de-obra nao
sindicalizada e desamparada, a miseria de viver da caridade, de ter a car de pele errada, a agonia de se
ser inutil e indesejado. Os consumidores raramente vislumbram o outro lado. A sordidez das cidades
do interior sofrem-na eles dentro dos seus belos e confortaveis carros. Se alguma vez visitam o "Ter-
ceiro Mundo" a pelos seus safaris e saleies de massagens, nao pelas suas lojas exploradoras.
Os muros nao sao apenas fisicos. A percepgao aumenta a distancia e aprofunda a separacao entre
os dois lados. Os que estao dentro da sociedade de consumo pensam nos que estao fora, por vezes corn
receio, outras vezes corn reprovacao: corn piedade, quando muito. Numa sociedade organizada a
volta da liberdade de consumo, todos sao definidos pelos seus gastos. Os que estao de dentro sao
pessoas por inteiro porque exerceram a sua liberdade de consumidor. Os que estao de fora mais nao sao
do que consumidores imperfeitos. Podem pedir compaixao, mas nao tern nada de que se orgulhar nem
direito ao respeito; afinal, falharam onde tantos outros tiveram exit°, e tern ainda de provar que o
destino cruel, mais do que o seu catheter corrupto, é responsave! pelo seu insucesso. Os que estao de
fora sao tambern uma ameaca e urn incOmodo. Sao considerados uma coaccao a liberdade dos que
estao de dentro; pesam fortemente na escolha dos que estao de dentro, ordenando-lhes os bol-

148

sos. Sao uma ameaca publica, pois os seus pedidos de auxilio pressagiam novas restrigoes para os
que podem passar sem ajuda.
Por outro lado, a agressividade moral em potencia dos muros é disfarcada pela indiferenca moral
das mascaras sob as quais aparecem ern pablico. Os muros raramente surgem como muros; em vez
disso, sao vistos como precos de bens, margens de lucro, exportagao de capital, nlveis de impostos.
Nab podemos desejar pobreza para os outros sem nos sentirrnos moralmente despreziveis; mas
podemos desejar impostos baixos. Nao se pode desejar o prolongamento da Tome em Africa sem
nos odiarmos a nos prOprios; mas podemos alegrar-nos quando os precos dos artigos baixam. O
que todas estas coisas inocuas corn aparencia de tecnicas fazem as pessoas nab é imediatamente
visivel. Nem tao-pouco essas pessoas.
Finalmente mas nao menos importante, porque é que os que estao de fora levam a mal a sua
situacao? Porque lhes foi negada a mesma liberdade de consumo de que gozam os de dentro. Se lhes
dessem oportunidade, agarra-la-iam corn ambas as maos. Os consumidores nao sao inimigos dos
pobres; sao padreies de uma vida agradavel, exemplos que se tenta imitar tanto quanto o talento de
cada urn o permitir. O que os pobres buscam é uma mao melhor, nao urn jogo de cartas diferente. Os
pobres sofrem porque nab tem liberdade. E julgam que o fim do seu sofrimento sera a liberdade de
aquisicao no mercado. Nao apenas a posicao dos que estao de fora mas tambem as saldas
previsiveis tern sido definidas pelas condiceies dentro do mundo dos consumidores.
E assim, voltamos ao ponto de partida. A forca do sistema social baseado no consumo, a sua
notavel capacidade para atrair apoiantes ou pelo menos incapacitar os dissidentes, assenta
fortemente no seu exito ao denegrir, marginalizar ou tornar invisfveis todas as altemativas a si
mesmo,

149

except() o evidente dominio burocratico. E este sucesso que toma o tipo de liberdade de consumo
tao poderoso e eficaz
e tao invulneravel. E este sucesso que faz qualquer nocao de outras formas de liberdade parecer
utopica e irrealista. Na verdade, como todas as tradicionais exigencias de liberdade e autonomia
pessoais foram absorvidas pelo mercado de consumo e traduzidas para a sua linguagem de tro .cas
comerciais, a pressao potencial dessas exigencias tern tendencia para se transformar noutra fonte de
vitalidade do consumismo e da sua importancia na vida individual.
0 sistema baseado no consumo nao é, esta claro, imune aos desafios vindos de fora. As sociedades
onde esse sistema foi instalado corn major ou menor seguranca, constituem, ate ao presente, (e
continuarao a constituir num futuro previsivel) uma minoria privilegiada em relacao ao resto do
mundo. Todas ultrapassaram aquele limiar de provisao de artigos para alem do qual os atractivos do
consumo se tomam factores eficazes de integracao social e de administracao sistematica mas
atingiram este privilegio pox intermedio de urn quinhao desproporcionalmente grande de recursos
e da subordinacao das economias de nacoes menos afortunadas. Esta longe de ser evidente se o
consumismo pode existir, a escala social, como algo diferente de urn privilegio. Pode argumentar-se
que o privilegio de hoje é o modelo generalizado de amanha; pode argumentar-se corn igual
conviccao que a solucao consumista para os problemas de sistema de algumas sociedades esta
mais do que acidentalmente ligada a exploracao dos recursos de outras sociedades. Seja qual for o
argumento que prevaleca, o consumo continua a ser ate ao presente urn privilegio e, como tal, é
object() de inveja e de potencial desafio. Os mecanismos que tomam a soluca.o do consumo
relativamente segura em relacao as forcas antagonicas dentro de uma determinada sociedade, nao
funcionam a escala mundial — ou, pelo menos, nao funcionam de maneira igual-
150
mente eficaz. Os que pagam o preco da liberdade de consumo, ou os que simplesmente ficaram para tabs
na corrida, nem podem ser afastados como consumidores defeituosos nem parecem estar dispostos a
definirem-se como tal. Podem ainda pensar em termos de redistribuicao, onde o jogo em que se sentem
sistematicamente enganados pode ser ele proprio urn risco. E para impedir que os acontecimentos
tomem este rumo que as naVies ricas te'm todo o interesse em ajudar as pobres deste mundo a
maltratarem-se umas as outras. Enquanto elas usarem as annas generosamente fornecidas pelas ricas para se
desfazerem umas as outras em desavencas infind.a.veis e sem qualquer prestigio, a probabilidade de desafio
mantem-se abaixo do nivel de perigo.
Pondo de parte urn desafio vindo de fora, que probabilidades existem de que o sistema baseado no
consumo seja reformado a partir de dentro? Como já vimos, as oportunidades de uma tal reforma nao
parecem grandes, tendo em vista a capacidade de auto-etemizacao do sistema, que encontrou uma
virtual "pedra filosofal" na liberdade de consumo. Corn a regulamentacao burocratica firmemente instalada
como a tinica alternativa sistematica interna a essa liberdade, o mais certo é que o tipo de conduta que
revigora os mecanismos. de mercado, e assim ajuda a reproduzir os seus proprios atractivos, persistird
incolume.
Recordemos, porem, antes de tirarmos esta conclusao, que a notavel popularidade da liberdade na sua
forma de consumo nasceu originariamente do seu papel como paliativo ou como substituto. A liberdade
de consumo era originariamente uma compensacao pela perda de liberdade e de autonomia do produtor.
Tendo sido posto fora da producao e do autogoverno comunal, o individuo corn tendencia para a
auto-afirmacao encontrou a sua saida no jogo do mercado. E licit° sup& que, pelo menos em parte, a
crescente popularidade do jogo de mercado vem do seu virtual monopOlio

151

como veiculo de autoformacao e de autonomia individual. Quanto menos liberdade existir nas
outros esferas da vida social, mais forte é a pressa'o popular no sentido do alargamento da liberdade de
consumo custe ela o que custar.
Esta pressao so pode abrandar se os outros campos da vida social forem abertos ao exercicio da
liberdade individual; especialmente nas areas de producao, de govemo comunitario e de politica
national. Alguns sociologos apontam os numerosos movimentos sociais que, independentemente dos
seus objectivos declarados, exigem uma major participacao das pessoas no tratamento dos seus
problemas locais ou na decisao sobre assuntos vitais da politica do Estado. Alguns outros sociologos
realcam as iniciativas locais, os sinais de urn crescente interesse pela liberdade comunal em relagao a
interferencia burocratica e uma tendencia renovada para a liberdade nao limitada ao consumo individual.
Os sociologos acham estes desenvolvimentos interessantes e importantes, porque podem quebrar o
circulo magic° da burocracia e da liberdade de con-sumo, introduzindo uma terceira altemativa ate agora des-
prezada: a da autonomia individual conseguida por meio da cooperaca'o comunal e baseada no auto-
govemo comunal.
A liberdade mais como capacidade para nos governarmos a nos proprios do que como desejo de que o
govern "nos deixe em paz", foi o sonho dos movimentos revolucionarios que introduziram o mundo
ocidental na sua historia modema. A Rev°lucao Francesa de 1789 teve por objectivo transformar aquele
"nada" que era o Terceiro Estado (ou seja, a grande maioria da nagao, a quem era negada influencia
real sobre a administracao dos assuntos de Estado) num "tudo" numa forca que decidiria livremente sobre
todas as questoes de interesse pliblico. Os "Pais Fundadores" da Revolucao Americana procuraram, na
sua Declaracao de Indepcndencia, "garantir urn espaco onde a liberdade possa

152
de possa surgir" liberdade mais uma vez entendida como participacao universal e completa nos
assuntos publicos. Ao comentar as primeiras experiencias da America revolucionaria, Alexis de
Tocqueville escreveu a respeito da "liberdade por si propria", justificada pelo puro prazer de se poder
falar, agir, respirar. A ansia de uma liberdade que nao é aquela que nao pode ser incomodada pelos
problemas blicos, antes pelo contrario, uma liberdade exercida entusiasticamente e sem restricoes,
propria para se ocupar deles, nab é, pois, nova. Tern acompanhado as sociedades modernas desde os
seus primOrdios. Porem, sempre se manteve como urn sonho urn "horizonte utopico", quando
muito. A historia verdadeira das sociedades modemas tomou urn rumo diferente. Conduziu a
"saida" e para longe da "voz". Reduziu a esfera publica ao sector a que sao dirigidas as
reivindicagOes. Tomou a autonomia e a indiferenca pessoais em relacao as coisas publicas
reciprocamente dependentes e condicionadoras uma da outra.
Ha urn quarto de seculo, no seu estudo aprofundado da revolucao como fenomeno moderno, Hannah
Arendt atribuil' a derrota histOrica da liberdade na sua forma activa e publica ao problema da
pobreza, ainda por resolver:
a abundancia e o consumo infindavel sao os ideais dos pobres; sao a miragem no deserto da
miseria. Neste sentido, a fartura e o inforttlnio sao apenas duas faces da mesma moeda; os limites da
necessidade nao precisam de ser de ferro, podem ser feitos de seda. Sempre se pensou que a liberdade e
o luxo eram incompativeis e a estimativa modema que pretende culpar a insistencia dos "Pais
Fundadores" em relacao a frugalidade e a "simplicidade de costumes" (Jefferson), do desprezo
puritano pelas delfcias do mundo, testemunha uma incapacidade de compreender a liberdade, mais
do que a liberdade em relacao ao preconceito. Por isso, a "paixdo fatal pela riqueza stibita" nunca
foi o vicio dos hibricos mas sim o sonho dos pobres... 0 desejo oculto dos pobres nao é "A cada

153

urn segundo as suas necessidades", mas "A cada urn segundo os seus desejos". (1)
Estes "pobres", sobre os quais Hannah Arendt escreveu, nao sao necessariamente as pessoas que
vivem "objectivamente" na pobreza, lutando pela sua sobrevivencia biolOgica, sem a certeza
daquele minim° de alimentos e de proteccao contra o frio que se erguem entre a vida e a morte. Alguns
deles sao sem ddvida pobres neste sentido. Mas existem muitos outros que sao "pobres" e
continuarao a se--lo segundo todas as probabilidades, porque aquilo que possuem é lamentavel em
comparacao corn o que esta a venda, e porque todos os limites foram cortados aos seus desejos. Sao
"pobres" porque a felicidade que procuram se exprime por um nrimero sempre crescente de coisas
possufdas, e por isso constantemente lhes escapa, para nunca mais ser alcancada. Neste sentido mais
lato, nab apenas os "reprimidos" mas tambem os "seduzidos" sao pobres. Neste sentido mais lato, os
livres consumidores sao pobres e por isso desinteressados da "liberdade pdblica". Em vez de
procurarem entrar na esfera pdblica, procuram o momento em que ela "recue", querem que "ela lhes
saia de cima das costas".
Hannah Arendt culpa a frustacao do impulso revolucionano, no sentido da liberdade pdblica, pelo
problema nao resolvido da pobreza genuina que desviou a politica para a "questa() social", isto é, a
provisao de verdadeira liberdade em relacao as carencias e, assim, a sobrevivencia e a subsistencia das
pessoas necessitadas. Isto, em seu entender, trouxe a substiuicao da ideia original de liberdade pelo
ideal da liberdade individual. Gradualmente, a propria liberdade foi sendo identificada como o direito
do individuo a buscar a

(I) Hannah Arendt, On Revolution, Faber & Faber, Nova Iorque, 1963, pp. 135-136.
154

sua propria felicidade. No clamor geral pelo prazer pessoal, os problemas pdblicos, o prOprio
desejo de autogoverno comunal extinguiram-se.
que Arendt nao teve tempo de notar foi que a sociedade de consumo, nascida da "desintegracao"
do bemestar pdblico numa porcao de accOes particulares de consumo, desenvolveu as condicOes
para sua propria etemizacao. Tenha ou nao sido bem sucedida em levantar os "genuinamente pobres"
acima do nivel de uma existencia miseravel e precaria, a verdade é que transformou, decerto, a
maioria esmagadora do restante da populacao em "subjectivamente pobre". Se o elo (objectivo ou
subjectivo) entre a pobreza e a erosao do interesse pela liberdade ptiblica é tao real e forte como
Arendt sugere, entao as oportunidades do avango da sociedade de consumo em direccao a uma
pressao mais forte pelo direito a "ter algo a dizer" na administracao dos assuntos comunais nao
parecem prometedoras.
Por outro lado, existe a opiniao largamente difundida entre os sociologos de que o "comunalismo"
(o forte interesse por aquilo a que Arendt chamou "liberdade pdblica") é uma tendencia dos pobres
quase "natural". E logico que precisamente as pessoas demasiado debeis e sem recursos suficientes
para assegurarem a sua propria subsistencia, e para se apoiarem nos seus proprios pes, estejam
interessadas em compensar a falta de forca individual unindo as suas forcas e os seus esforcos. Num
estudo recente e muito inovador sobre os dilemas de viver numa sociedade de consumo "aberta",
Geoff Dench faz notar que o "comunalismo", contrariamente ao "humanismo" individualista dos
que vivem bem, é "especialmente relevante para o povo humilde os "perdedores" da sociedade
aberta. 0 comunalismo é uma filosofia para os fracos" (enquanto o individualismo notoriamente
universalista "genericamente.humano" das elites, é "uma filosofia para os "ganhadores").
Se existe, na verdade, essa afinidade natural entre a

155

condicao dos pobres e a tendencia para a cooperacao comunal e para o autogoverno, a raridade deste
ultimo constituiu urn misterio. Ainda mais dificil de compreender é a ausencia de qualquer nitida
correlacao entre o actual aumento da "pobreza objectiva" e a crescente procura de mais "liberdade
pdblica". 0 proprio Dench oferece a chave deste quebra-cabecas: afirma que somente os grupos de
onde os membros mais fortes nao podem sair sao capazes de sustentar os fracos. (2) As populacoes
racial ou etnicamente segregadas sao os exemplos mais obvios de tais grupos: para os seus membros
individualmente bem sucedidos nao existe "fuga" do grupo, por muito que desejem ver-se livres de
limitagOes politicas, sociais ou culturais associadas corn a sua raga ou etnia. Contudo, nao é este o caso
de outros grupos despojados. Sair do grupo e entrar numa condicao social privilegiada nao é interdito.
Nao existem barreiras — juridicas ou sociais — e por isso o caminho para uma vida melhor esta.
individualizado, como tudo o resto neste tipo de sociedade. Os individuos corn desembaraco,
esperteza e energia na medida exacta, sao convidados a juntarem-se as fileiras dos privilegiados
"comprando simplesmente a sua sada" do grupo sobrecarregado corn limitacoes. A sua partida deixa o
grupo mais fraco e mais pobre do que antes e menos capaz de transmitir a urgencia das suas
necessidades ao resto da sociedade. E ainda mais importante, o grupo flea corn menos confianca
na excelencia dO "comunalismo" e nas estrategias colectivistas em geral. A .sua experiencia mostra de
modo convincente quanto a iniciativa pessoal a mais eficaz do que o esforco colectivo.
Por isso as opiniiies acerca da "liberdade pdblica" (liberdade como emancipacap, plena dos membros
da comunidade, como direito a compartilhar o rumo do destino co-

(2)Geoff Dench, Minorities in the Open Society: Prisoners ofAmbivalence, Routledge & Kegan Paul, Londres,
1986, pp. 180, 184.

156

mum) diferem. Nas suas analises, os soci6logos acentuam factores diferentes e propOem diferentes
hip6teses causais. Todavia o quadro geral mostra que a liberdade de consumo autocentralizada
continua viva e de boa satide, fazendo frente corn eficacia aos desafios, dominando a cena politica
e tendo ainda suficiente forga impulsionadora para se man-ter durante muito tempo.
Este nao é, ern si mesmo, urn argumento decisivo. Os estudiosos da sociedade tern sido
repetidamente prevenidos pela histOria contra a minimizacao da futura importancia dos fenomenos
corn base na sua raridade e relativa fraqueza. Pode bem acontecer que o impulso dos homens para a
liberdade nao se satisfaca corn as conquistas particulares dirigidas pelo mercado; que a energia agora
canalizada para a concorrencia consumista procure uma sada para o alvo mais ambicioso do
autogovemo comunal. Ate agora isto é, porem, uma possibilidade inexplorada. E sendo o futuro o que
e nab cabe aos soci6logos decidir qua.° realista esta possibilidade se revelara por fim.
,

157

SUGESTOES PARA LEITURAS COMPLEMENTARES

0 significado e a funcAo da liberdade na sua forma contemporanea nAo podem ser verdadeiramente
entendidos sem o conhecimento das transformacoes radicais economicas, politicas e culturais que estAo
associadas ao conceito de "modernidade" e a sua crise actual. Podem encontrar-se descrigoes destes
processos in Peter L. Berger, The Capitalist Revolution (Gower, Aldershot, 1987); Norbert Elias, The
Civilising Process, State Formation and Civilisation (Blackwell, Oxford, 1982); e Sam Whimster e Scott
Lash (eds.), Max Weber, Rationality and Modernity, (Allen & Unwin, Londres, 1987). Analises
aprofundadas dos processos cruciais que definem o estado actual da modernidade surgem in Claus Offe,
Disorganised Capitalism, Contemporary Transformations of Work and Politics (Polity Press, Londres,
1985); Frank Parkin, Marxism and Class Theory (Tavistock, Londres, 1979); e David Beetham, Bureau-
cracy, (Open University Press, Milton Keynes, 1987). Theories of the State, the Politics of Liberal
Democracy (Macmillan, Londres, 1987) de Patrick Dunleavy .e Brendan O'Leary é uma introducao
Weida as teorias da polftica modema.
Algumas informacoes basilares sobre sociogenese da liberdade modema podem set respigadas de Louis
Dumont, Essays on individualism (University of Chicago Press, Chicago, 1986); Barrington Moore
Jr., Privacy, Studies in Social and Cultural History (M. E. Sharpe, Arnouk, 1984) e Michael
Ignatieff, The Needs of Strangers, (Chatto & Windus, Londres, 1984). As peculiaridades da historia
da liberdade em Inglaterra sac) totalmente examinadas in Alan Macfarlane, The Origins of English
Individualism (Blackwell, Oxford, 1978) e D. A. Wrigley, People, Cities, and Wealth (Blackwell,
Oxford, 1987). Nicholas Abercrombie, Stephen Hill e Bryan S. Turner, Sovereign Individuals of
Capitalism (Allen & Unwin, Londres, 1986) e Joseph Bansman e Robert Lilienfeld, Between
Public and Private: The Lost Boundaries of the Self (Free Press, Nova Iorque, 1979) oferecem
estudos esclarecedores de contradicOes basicas da liberdade moderna.
Variados aspectos da transformacao da liberdade individual na nascente sociedade de consumo sao
analisados in Zygmunt Bauman, Legislators and Interpreters: On Intellectuals, Modernity and
Postmodernity (Polity Press, Londres, 1987), John G. Cavelti, Apostles of the Self-Made Man
(University of Chicago Press, Chicago, 1965); Elisabeth Loy, The American Dream and the
Popular Novel (Rout-ledge & Kegan Paul, Londres, 1985); David Madden, (ed.), American
Dreams, American Nightmares, (Southern Illinois University Press, 1971). Uma interessante
introducao aos complexos problemas da teoria e da pratica do consumismo moderno 6-nos oferecida
por Wolfgang Fritz Haug, Critique of Commodity Aesthetics: Appearance, Sexuality and
Advertising in Capitalist Society (Polity Press, Londres, 1986); Rosalind H. Williams, Dream Worlds
(University of California Press, Berkeley, 1982); Elisabeth Wilson, Adorned in Dreams: Fashion
and Modernity (Virago, Londres, 1985).
159

A primeira apreciacao e interpretacdo aprofundadas do papel desempenhado pelos meios de


comunicacao modernos no desenvolvimento e manutencao da forma da liber-

160
dade de consumo sdo-nos proporcionados por Andrew J. Weigert, Sociology of Everyday Life
(Longman, Londres, 1981); Liisa Umitalo (ed.), Consumer Behaviour and Environmental Quality
(Gower, Aldershot, 1983); Martin Esslin, The Age of Television (W. H. Freeman, Sao Francisco,
1982); Ray Eldon Hiebert e Carol Reuss (eds.), Impact of Mass Media (Longman, Londres, 1985);
e por James Curran, Anthony Smith e Pauline Wingate (eds.), Impacts and Influences: Essays on
Media Power in the Twentieth Century (Methuen, Londres, 1987).
A pobreza e a opressao que constituem a outra face do consumo moderno sRo exploradas por Claus
Offe, Contradictions of the Welfare State (Hutchinson, Londres, 1984); Zygmunt Bauman, Memories
of Class, (Routledge & Kegan Paul, Londres, 1982); Sir John Walley, Social Security: Another
British Failure? (Charles Knight, 1972); Henry Hazzlitt, The Conquest of Poverty (UPA, Lanham,
1973), Stein Ringen, The Possibility of Politics (Clarendon Press, Oxford, 1987). Jeremy Seabrook, in
Landscapes of Poverty (Blackwell, Oxford, 1985), dd-nos uma imagem desoladora da vida dos nao-
consumidores no mundo da liberdade de consumo.

161

INDICE ANALfTICO

A
Abel-Smith, Brian, 110-1, 136 Abercrombie, Nicholas, 90 Agostinho, Santo, 53-4
Albrow, Martin, 77
Alexander, Jeffrey C., 75
Arendt, Hannah, 153-5
AristOteles, 62
Ashfield, Douglas E., 109
B•
Balandier, George, 86-7
Banks, Louis, 127
Barber, Benjamin, 127
Beetham, David, 78
Bensman, Joseph, 71
Bentham, Jeremy, 23, 26-9, 31, 33-6,
38-9,41-3,46-7, 78, 85, 93, 130-1 Berger, Peter L., 44, 60
Bourdieu, Pierre, 95
C.
Calvino, Jac), 53 Cavelti, John G., 92 Craig, Edward, 66 Crozier, Michel, 42
D
Dandi, Philippe, 74
Dayan, Daniel, 127
Dench, Geoff, 155-6
Didgenes, 62
Donleavy, Patrick, 133
Donnison, David, 136
Douglas, Mary, 87
Dumont, Louis, 58, 61
Durkheim, Emile, 69, 70, 123
E
Elias, Norbert, 51, 69, 70, 82, 90-1 Emmison, Mike, 72
VOLUMES
Esslin, Martin, 105, 125-6
F
Feher, Ferenc, 138-9 Foucault, Michel, 23 Freud, Sigmund, 69, 121-2
G
Guillaume, Marc, 95-6
H
Hazzlitt, Henry, 110 Heller, Agnes, 138-9 Hill, Stephen, 90
Hirschmann, A. 0., 131-2
Hobbes, 62
Huxley, Aldous, 146-7
Ignatieff, Michael, 34
K
Katz, Elihu, 127
L
Lachs, John, 82-3
Lash, Scott, 76-7
Lifton, Robert Jay, 68
Lilienfeld, Robert, 71
Lovejoy, Arthur, 59
Luhmann, Niklas, 70-1, 82
M
Macfarlane, Alan, 66
MacLuhan, Marshall, 124 Magna Carta, 56
Markus, Gyorgy, 138-9 Moore, Barrington Jr., 81 Morris, Colin, 60-1
N
Nassau Senior, 109
0
Parkin, Frank, 118
Parsons, Talcott, 37-42, 46-7 Pelagio, 53-5
Preteceille, Edmund, 94
R
Rabelais, Francois, 147-8 Ranum, Orest, 85 Ringer, Stein, 136 Robins, Kevin, 89
S
Schutz, Alfred, 41
Seaton, Jean, 112
Simmel, George, 69, 70 Smith, Adam, 59
T
Terrail, Jean-Pierre, 94
Tocqueville, Alexis de, 153 Tomas de Aquino, 53 Townsend, 136
Turner, Bryan, 89, 90
V
Veblen, Thornstein, 94
W
Offe, Claus, 120 O'Leary, Brandon, 133 Orwell, George, 146-7
P
Parenti, Michael, 107 Weber, Max, 75-9, 89, 98 Webster, Frank, 89 Weigert, Andrew, 71 Whimster,
Sam, 76-7 Wittgenstein, Ludwig, 41 Wrigley, D.A., 65-6
VOLUMES PUBLICADOS

1 4 Conservadorismo, de Robert Nisbet


2 — A Ideologia, de David McLellan


3 Raga e Etnia, de John Rex
4 — 4 Liberalismo, de John Gray
5 — A Burocracia, de David Beetham
6 — 0 Socialismo, de Bernard Crick
7 A Democracia, de Anthony Arblaster
8 A Propriedade, de Alan Ryan
9 — A Liberdade, de Zygmunt Bauman

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