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Resenha Crítica

André Luiz de Paiva

O trabalho é, seguramente, uma das principais categorias que permeiam, e


diferenciam, o desenvolvimento do ser humano tanto na natureza quanto em sociedade.
Diferentes estudiosos, filiados em múltiplas abordagens teóricas, têm empenhado
esforços no debate acerca do trabalho e suas implicações às pessoas. Essa discussão
perpassa diversos momentos e escolas na teoria social, de modo que nessa resenha serão
discutidos elementos do trabalho para três teóricos de grande relevância, especialmente
no contexto brasileiro: Karl Marx, Max Weber e Alberto Guerreiro Ramos (ANTUNES,
2004, MÜLLER, 2005, RAMOS, 1981).
Inicialmente, em “A dialética do trabalho”, Ricardo Antunes apresenta e discute
elementos relacionados ao trabalho a partir de obras de Marx e Engels. Nota-se que
nessa obra, Antunes (2004) compila textos originais de Marx. O pensador alemão parte-
se da noção que o trabalho é “condição básica e fundamental de toda a vida humana”
(ANTUNES, 2004, p. 11). Durante a sua evolução, o homem desenvolveu órgãos e a
própria linguagem por meio do trabalho. A partir da presença do homem na natureza, ou
seja, a partir do trabalho, a natureza é submetida, dominada, explorada e isso o
diferencia dos animais. Entretanto, essas ações trazem consequências tanto naturais
quanto sociais, o que segundo Marx, auxilia na compreensão da conjuntura que
constituiu a luta de classes entre burgueses e proletariados após a revolução industrial e
nos próprios efeitos do trabalho no mundo contemporâneo.
Conforme Antunes (2004, p. 31), os elementos que constituem o processo de
trabalho são “a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus
meios”. Objetos do trabalho (como a terra e a água) já modificados a partir do trabalho
são considerados matérias-primas. Os meios de trabalho são um conjunto de objetos e
elementos que conduzem a atividade a seu objeto de trabalho. Esses meios servem de
referência para a compreensão das condições de trabalho a que os sujeitos estão
submetidos. “No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante
o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o
princípio” (p. 34). O processo se encerra no produto e esse produto possui um valor de
uso. Esse produto e seu valor de uso é uma objetivação do trabalho realizado.
O meio e o objeto de trabalho, considerando os produtos, são “meios de
produção” e o trabalho propriamente dito é o “trabalho produtivo”. O valor de uso
constitui o produto de um trabalho e pode ser incorporado como meio de produção de
outro produto. Por isso, produtos são ao mesmo tempo trabalho e condições de
processos de trabalho. “Ao entrarem em novos processos de trabalho como meios de
produção, os produtos perdem, por isso, o caráter de produtos” (p. 36). Nessa noção, o
processo de trabalho é ao mesmo processo de consumo ao gastar seus meios de
produção. Considerando que as pessoas vendem sua força de trabalho ao capitalista,
esses indivíduos tornam-se meios de produção, cuja força de trabalho é consumida e o
trabalho que realizam tornam-se propriedade do sujeito adquirente dessa força (que
paga ao empregado por dia/hora/mês, etc.). “Ao comprador da mercadoria, pertence a
utilização da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho dá, de fato, apenas o valor
de uso que vendeu ao dar seu trabalho” (p. 39-40).
Nessa lógica, o trabalhador torna-se mercadoria do capitalista, que possui sua
força de trabalho e a transforma em meio de produção de algo que também lhe pertence.
Adiante, Antunes (2004) discute que o valor de uso do trabalho (os produtos), no
contexto capitalista, é produzido pois se espera que o mesmo tenha valor de troca, que
seja uma mercadoria, tenha valor e mais-valia. Nisso, o processo produtivo pode ser
entendido como um processo de formação de valor. “O valor de uma mercadoria é
determinado pelo quantum de trabalho materializado em seu valor de uso, pelo tempo
de trabalho socialmente necessário à sua produção” (p. 42). Em suma, Marx defende
que o valor de troca de um produto é determinado por funções sociais e históricas (da-se
o exemplo do valor de troca do algodão e da joia).
Finalmente, Marx discute o valor de uma mercadoria e como é possível
determina-lo. O autor entende que para identifica-lo, é preciso reduzir as mercadorias a
uma expressão comum a todas as mercadorias existentes, nesse caso, o trabalho
(especificamente o trabalho social). Em suas palavras “uma mercadoria tem um valor
porque é uma cristalização de um trabalho social”. Nessa direção, entende-se que o
salário de um trabalho é limitado pelo valor de troca de um produto (sendo normalmente
muitas vezes menores que esse valor). Marx discorre então que para o cálculo do lucro,
deve-se considerar que as mercadorias são vendidas, em média, “pelos seus verdadeiros
valores e que os lucros são obtidos vendendo-se mercadorias pelo seu valor, ou seja,
proporcionalmente à quantidade de trabalho nelas incorporada” (p. 68).
Em seguida, apresentando outras noções a respeito do trabalho, Müller (2005)
discute os pressupostos que fundamentam este conceito em Max Weber. Inicialmente, o
autor argumenta que “o trabalho, sua significação, o surgimento da organização racional
do trabalho, bem como da relação entre vocação e identidade” (p. 234) são temas
centrais na obra de Weber, especialmente em suas análises da ascensão do capitalismo
ocidental.
A respeito de sua ampla formação, Weber estudou o trabalho em quatro
domínios: da estrutura técnica e econômica (organização do trabalho); da estrutura
social (relações entre profissão e estratificação social); da estrutura política (classes e
partidos) e; da estrutura cultural (relações entre vocação, personalidade e modo de vida
a partir do trabalho). Weber é inclusive um dos responsáveis pela fundação da chamada
sociologia do trabalho e das organizações (MÜLLER, 2005).
Considerando os domínios de estudo de Weber, Müller (2005) discute nesse
texto especialmente aspectos relacionados aos domínios estrutural e cultural do
trabalho, haja visto que para o pensador alemão, essa categoria é uma das principais
instituições sociais. No entanto, para compreender o conceito de trabalho em Weber,
Müller (2005) percorre cinco etapas.
Primeiramente, as discussões sobre trabalho para Weber perpassam a própria
ascensão do capitalismo e a configuração da modernidade no Ocidente, marcada por um
modelo de racionalização das relações. Nesse sentido, Weber entende que o trabalho
figura como um dos principais elementos para se compreender este movimento. O que
chama atenção, contudo, é que o capitalismo ocidental se desenvolve como tal devido a
aspectos culturais que envolvem o trabalho, especialmente a partir de uma ordem
religiosa que trata o trabalho como um tipo de vocação, um ideal transcendental para o
indivíduo. Por isso, a racionalização do trabalho torna-se institucionalizada, implicando
em uma série de transformações na sociedade.
Nessa discussão que envolve a chamada ética protestante e o desenvolvimento
do capitalismo a partir do trabalho, Müller (2005) discorre que o trabalho é um
elemento essencial para a reprodução natural e social da humanidade. No entanto, o
trabalho, em condições naturais, é tido como algo penoso e indesejável para aqueles
sujeitos que buscam uma “boa vida”. Em sentido contrário, a ética puritana que
fundamenta a ética social da sociedade capitalista ocidental se baseia em certos aspectos
relacionados ao trabalho: o lucro monetário, a ideia do dever profissional e a
competência no trabalho.
O trabalho e a prosperidade econômica, a partir dessa ética, tornam-se signos
promissores que indicavam que o indivíduo figurava entre os eleitos que estariam salvos
por Deus, segundo o dogma da pré-destinação. Ou seja, nessa concepção, o trabalho
torna-se um tipo de vocação divina. Dessa ética puritana, contudo, Weber discute que o
capitalismo moderno desenvolveu uma nova ética, com a qual o trabalho (ofício) e a
acumulação são elementos centrais da vida. Disso vem a metáfora da gaiola de ferro que
o capitalismo ocidental impõe e envolve sobre as pessoas.
Outro aspecto interessante no que se refere às discussões weberianas sobre o
trabalho está relacionado às naturezas do trabalho rural e do trabalho industrial, bem
como a organização do trabalho moderna (MÜLLER, 2005). Em suas pesquisas
direcionadas a novas organizações do trabalho na Alemanha do fim do século XIX,
Weber discute implicações do capitalismo na forma de significação do trabalho para os
indivíduos, descrevendo aspectos tais como o aparecimento de trabalhadores
assalariados no campo e a nova classe operária industrial.
Finalmente, Müller (2005) traz a discussão que encerra o capítulo, congregando
os principais argumentos de Weber em relação ao trabalho. Nesse sentido, destaca-se
como o pensador alemão discute esta categoria sob uma perspectiva histórica e social,
ressaltando como o conceito e as práticas mudaram ao longo dos anos, de uma recusa ao
trabalho na Antiguidade, para uma ética puritana de valorização e santificação do ofício,
até a ética capitalista, que se distancia da proposta anterior (apesar de ter sido
constituída por ela) e trata o trabalho como um tipo de atividade “sem vocação”, sem
identidade, que fornece os meios necessários para se viver. Contudo, Müller (2005)
questiona se essa noção é definitiva ou se o próprio Weber não consideraria mudanças
sociais nas relações de trabalho.
Seguindo as discussões, Guerreiro Ramos (1981), em “A nova ciência das
organizações”, também traz importantes reflexões sobre o trabalho e suas relações na
sociedade contemporânea. O debate de Ramos (1981) está centralizado sobretudo nas
noções de racionalidade instrumental e substantiva que permeiam o trabalho.
No texto em questão, Ramos (1981) traz uma reflexão crítica em torno das
ciências organizacionais, fundamentada em uma proposta de teoria das organizações de
racionalidade substantiva. Essa noção busca, sobretudo, apresentar novos
direcionamentos epistemológicos para se pensar em relações nas organizações, o que
impacta diretamente nas formas de se pensar o trabalho.
Primeiramente, Guerreiro Ramos chama atenção para a necessidade de se
repensar a noção de racionalidade predominante na teoria organizacional, direcionada
ao comportamento econômico como totalizante da condição existencial humana. Nesse
tipo de racionalidade instrumental, assume-se que todas as ações do homem são
movidas pelo interesse de elevar ganhos econômicos, ou seja, é voltada para os fins da
ação. Essa configuração, conforme o autor apresenta fortes elementos ideológicos
(RAMOS, 1981).
Ramos (1981) propõe que a organização formal, nos termos hegemônicos, é um
construto que deve ser considerado em um contexto sócio e histórico, do capitalismo e
da modernidade. Ou seja, não é uma noção universal e que, portanto, não pode ser
pensada como um paradigma de organizações. Aliás, para o autor, é plenamente
possível considerar um tipo de organização baseada em uma racionalidade substantiva.
Adiante, o autor argumenta que um possível caminho para se superar a visão
economicista tem seu fundamento em correntes que reconhecem o interacionismo
simbólico. Nesse sentido, pressupõe-se que a essência da realidade é constituída por
diferentes interações simbólicas que podem tanto trazer concepções instrumentais
quanto substantivas, a depender de engajamentos nessa direção, o que incorreria em
mudanças profundas nas relações interpessoais nas organizações.
Por fim, essa abordagem traz implicações diretas às relações de trabalho. Ramos
(1981) narra que a teoria das organizações convencional, baseada em um sistema de
mercado, atribui uma visão mecanomórfica ao homem, o que impossibilita a distinção
entre trabalho e ocupação. Para Ramos (1981, p. 130), o trabalho “é a prática de um
esforço subordinada às necessidades objetivas inerentes ao processo de produção em
si”. Por sua vez, a ocupação é “a prática de esforços livremente produzidos pelos
indivíduo em busca de sua atualização pessoal” (p. 130). No sistema de mercado, o
homem é tido apenas como um requisito do plano mecânico de produção (ou um meio
de produção, nos termos de Marx) e seu trabalho é item de custo, direcionado apenas ao
salário. Ramos discute que esse sistema também traz elementos ideológicos que
fundamentam uma ética do trabalho (próxima à ética puritana discutida em Weber), em
que essa atividade é tomada como um instrumento de medição do valor e da dignidade
humana. Ramos (1981) entende que distinção entre trabalho e ocupação precisa ser
superada e que a consideração do trabalho como indicativo de valor é apenas um
“expediente psicocultural, usado para minimizar a dissonância cognitiva e o conflito
interior”, haja visto que o trabalho é “naturalmente” algo que o ser humano despreza.
Posto dessa forma, Guerreiro Ramos (1981) defende um programa de mudança
epistemológica no que se refere aos estudos organizacionais, em direção ao
reconhecimento de formas substantivas de organizações, para além da primazia de uma
racionalidade instrumental.
Considerando as três abordagens aqui discutidas, nota-se a existência de
aproximações e diferenças entre as propostas de Marx, Weber e Ramos quanto ao
“trabalho”. Inicialmente, os três autores concordam que o trabalho tem sido explorado
como uma categoria central no desenvolvimento histórico do homem. Todavia,
divergem quanto a sua natureza. Enquanto para Marx o trabalho é condição básica
natural do ser humano, Weber e Ramos reconhecem o caráter histórico do sentido
normativo e ideológico do trabalho, já considerado, especialmente na Antiguidade,
como um tipo de atividade de degenerativa e politicamente inferior dos indivíduos.
Ramos vai além e discorda do caráter universal do trabalho, diferenciando esta categoria
do conceito de “ocupação”, o qual deve ser fomentado em sua virada epistemológica
das ciências administrativas. Ainda assim, esses três autores concordam quanto à
apropriação ideológica do trabalho pelo sistema capitalista que fundamenta a sociedade
contemporânea aos autores e a nós próprios.
De qualquer forma, reconhece-se a importância e validade de estudos sobre o
trabalho considerando os referenciais tratados nesta resenha. É necessário, contudo, que
novos esforços críticos sejam produzidos, de modo a atualizar algumas noções,
inclusive de Guerreiro Ramos, quanto aos direcionamentos do trabalho no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, R. A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo:


Expressão Popular, 2004.
MULLER, H. P. Trabalho, profissão e “vocação”; o conceito de trabalho em Max
Weber. In: O trabalho na história do pensamento ocidental. Petrópolis: Vozes, p.
237, 2005.
RAMOS, A. G. A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das
nações. Fundação Getúlio Vargas, 1981.

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