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A realidade do trabalho em transformação: trabalhador, onde vais?

Cristiano de França Lima *

Resumo: As formulações conceituais sobre a estrutura e formação das atuais configurações


vigentes no interior da classe trabalhadora constituíram-se numa temática atual, a qual suscita
diferentes interpretações pelos estudiosos do assunto. Ao examinar a noção de classe, ficam
latentes as determinações históricas que compõem a sua estrutura e os processos sociais
decorrentes. Dessa forma, na atual realidade de trabalho que se apresenta tão complexa e
heterogênea, é importante problematizar a tese do fim do trabalho e, conseqüentemente, da
própria classe trabalhadora. Neste sentido, o artigo em causa centrar-se-á na problematização
desta tese, buscando identificar o que é negligenciado por aqueles que defendem a mesma. A
abordagem metodológica pautou-se pela interpretação da bibliografia hermeneuticamente
estudada.

Palavras-chave: classe trabalhadora; sociedade salarial; trabalho assalariado; fim do trabalho.

Abstract: The conceptual formulations on the structure and training of current settings within
the working class are a current issue, which raises different interpretations by scholars of the
subject. When examining the notion of class, there are dormant historical determinations that
make up its structure and further social processes. Thus, in the current reality of work that
presents itself as complex and heterogeneous, it is important to question the thesis of the end of
labour and consequently, the very working class. In this sense, the article in question focus on
the problematization of this thesis, seeking to identify what is neglected by those who support
this view. The methodological focus was hermeneutical interpretation of the studied
bibliography.

Key-words: Working class; society wage; labour employed; end of labour.

Introdução1
A composição da classe trabalhadora, a qual, historicamente, pela venda da sua
força de trabalho, produziu riqueza social, tem gerado elementos indicadores sobre a
complexa teia que cinge as suas diferentes conformações sócio-históricas. Desta forma,
ressalta-se que o trabalho e as suas metamorfoses permanecem elementos centrais para
o processo de produção moldado pelo capitalismo.
As formulações conceituais sobre a estrutura e formação das atuais
configurações vigentes no interior da classe trabalhadora constituíram-se numa temática
atual, a qual suscita diferentes interpretações pelos estudiosos do assunto. Embora
assumindo sentidos semânticos análogos no cotidiano, as expressões classe trabalhadora
e classe operária, na literatura clássica, apresentam designações distintas. A expressão
classe trabalhadora tem sido utilizada para referir o conjunto de trabalhadores

* Mestre em Sociologia e doutorando do Centro de Estudo Sociais da Faculdade de Economia da


Universidade de Coimbra. Bolsista da FCT. End. eletrônico: cristiano.fralima@gmail.com
1 Devido à ausência de uma nomenclatura adequada que leve em consideração a questão de gênero
(homem e mulher), passo a explicitar sempre que as denominações “trabalhador” e “trabalhadores”
forem usadas no decorrer deste texto, pretende-se referir aos trabalhadores e trabalhadoras
pertencentes aos dois gêneros.
assalariados, urbanos e rurais, enquanto que a classe operária equivale ao proletariado,
ou seja, àquele que está inserido no processo produtivo de modelo fabril.
No decurso das transformações ocorridas na realidade do trabalho, nos últimos
30 anos, vários autores (GORZ, 1982; OFFE, 1989; SCHAFF, 1993; RIFKIN, 2004)
formularam teorias que gravitam em torno das problemáticas relacionadas com o
trabalho e, também, com a classe trabalhadora na sociedade contemporânea. Uma
grande parte desses autores prevêem o desaparecimento do trabalho, e em conseqüência,
o da própria classe trabalhadora.
A tese do fim da centralidade do trabalho tem como fundamento o surgimento de
uma sociedade pós-industrial, em que o trabalho deixaria de ter a relevância quantitativa
e qualitativa que lhe foi atribuída no passado. Esta tese apresenta como pressuposto
dois fatores recorrentes nas sociedades hodiernas: o primeiro consiste nas inovações
técnico-científicas do capitalismo moderno e, o segundo, nas novas formas de
organização produtiva e empresarial, que conjuntamente, diante das observações dos
que sustentam a tese da descentralização do trabalho, têm implicado conseqüências
negativas para a maioria dos trabalhadores, tal como o desemprego estrutural.
O que se torna patente neste debate é o fato de a questão da perda, ou não, da
centralidade do trabalho nas nossas sociedades, não explicitar que, em toda e qualquer
sociedade, seja ela no passado ou no presente, sempre houve trabalho. Torna-se,
portanto, imprescindível observar que, quanto à problemática do fim do trabalho se tem
omitido que o paradigma do trabalho toyotista-fordista não é o único, pois apenas
constitui uma parte do trabalho humano realizado.
Neste mesmo sentido, a classe trabalhadora é apenas vista como mero ator
coletivo passivo neste processo, perdendo a sua centralidade e o seu papel social, além
de ser tratada como um conjunto homogêneo no interior da sociedade.
É importante analisar de outros ângulos as mudanças, tanto na realidade do
trabalho, quanto na classe trabalhadora. Dessa forma, na atual realidade de trabalho que
se apresenta tão complexa e heterogênea, é importante problematizar a tese do fim do
trabalho e, conseqüentemente, da própria classe trabalhadora. Neste sentido, pautando-
se por uma interpretação da bibliografia hermeneuticamente estudada, o artigo em causa
centrar-se-á na problematização dessa tese, buscando identificar o que é negligenciado
por aqueles que a defendem.

A domesticação da sociedade salarial: adaptação do trabalhador e a centralidade


do trabalho
A sociedade salarial assenta no processo de assalariamento do trabalho (GORZ,
1997), constituindo naquela o trabalho assalariado o veículo da definição e descrição
dos trabalhadores na cidadania. Ou seja, é “a sociedade em que a identidade social se
baseia no trabalho assalariado” (CASTEL, 1998, p. 386). Sendo este trabalho útil à
sociedade capitalista, o salário é considerado enquanto reconhecimento social do
trabalhador, proporcionando a este o sentido de pertença e, especificamente, a inserção
na sociedade, enquanto consumidor.
Com a industrialização da produção, berço da sociedade salarial, pode-se
conjeturar que se verifica uma cristalização das relações de trabalho. Segundo Castel
(1998), a partir dessa cristalização tem lugar uma nova dimensão da relação salarial, que
Castel caracteriza pela “racionalização máxima do processo de trabalho, o
encadeamento sincronizado das tarefas, uma separação estrita entre tempo de trabalho e
tempo de não-trabalho”, acrescentando ainda, “o modo de organização do trabalho
comandado pela busca de uma produtividade máxima a partir do controle rigoroso das
operações” (199, p. 428).
Dessa forma, formula-se a condição salarial que preconiza um princípio de
distinção entre aqueles “cujos salários e cuja posição na estrutura social dependeriam
exclusivamente de seu emprego” (CASTEL, 1998, p. 468). Por isso, Castel refere-se à
sociedade salarial como aquela que constituiu um mercado de trabalho, que além de
engendrar a generalização do assalariamento, estruturou canais de participação política
por meio de organizações sociais (sindicatos, partidos, etc.), e toda uma infra-estrutura
institucional-jurídica que reconhece a condição do trabalhador assalariado.
O trabalho assalariado torna-se a ordem geral pela qual toda a sociedade passa a
ser subjugada. A adesão ao trabalho assalariado integra uma ordem social vigente,
levando a uma total desconsideração de todas as atividades que não são exercidas em
troca de um salário (Langer, 2004).
Com base na generalização do assalariamento e da infra-estrutura institucional-
jurídica produzida, a sociedade salarial traz à tona o conflito capital/trabalho e confere
reconhecimento à diversidade dos trabalhadores assalariados numa mesma sociedade.
Da interpretação dessas três condições2 que estão na base constitucional da
sociedade salarial, descrita por Castel (1998), depreende-se que os trabalhadores –
referindo-se aos empregados industriais – foram subordinados por meio da “salarização
da sociedade”.

2 É de salientar que apesar de as três condições – proletária, operária e salarial – se sucederem uma à
outra, conforme demonstra o autor, a seqüência em que se desenvolveram não se pautou por um
processo linear.
Esta subordinação encontra o seu eixo condutor numa sociedade em que o
trabalho, como nos diz Gorz (1982, p. 10), “é apenas um meio de ganhar dinheiro e não
uma atividade com fim em si mesma”. Ou seja, o trabalho tornou-se uma atividade que
visa prioritariamente o acesso a um salário, o que determina socialmente a utilidade
daquele. “Trabalhar por um salário é, portanto, trabalhar para poder comprar à
sociedade em seu conjunto o tempo que se lhe forneceu” (GORZ, 1982, p. 10).
Um elemento importante para a efetivação dessa subordinação consistiu no
processo de educação que objetivava a adaptação dos trabalhadores ao paradigma de
trabalho assalariado. Não se pode deixar de ter em conta que, ao longo das várias
transformações ocorridas na sociedade capitalista, no que diz respeito à forma e
organização do trabalho, novas solicitações foram feitas aos trabalhadores, o que gerou,
em especial, no âmbito do sistema educativo, novas exigências quanto ao padrão
funcional e institucional, a fim de se responder à procura por maior produtividade,
qualidade e competitividade do mercado de trabalho. Tal finalidade, típica da sociedade
salarial, impôs, para fins de garantia de inserção do trabalhador no sistema produtivo
hegemônico, um mínimo de formação geral.
Torna-se imprescindível que a posse dos saberes disciplinares escolares ou
técnico-profissionais se relacione com a capacidade de o trabalhador os mobilizar na
busca de soluções para as situações inusitadas no cotidiano do trabalho. De acordo com
Arroyo (1991, p. 169), a vinculação entre educação e trabalho passa a tomar corpo na
teoria da educação, enquanto teoria da formação humana. Para este autor, o trabalho na
contemporaneidade tem formado uma outra consciência no seio da classe trabalhadora,
tendo como ponto de partida novos saberes ou capacidades inovadoras para
compreender e interpretar a realidade e a lógica que regula a sociedade.
O que fica por analisar neste debate sobre a relação entre educação e trabalho,
inserida na realidade brasileira, é o aspecto do total distanciamento deste sistema, da
realidade sócio-econômica da maioria populacional que não está incorporada no
paradigma de trabalho industrial, mas que exerce, no seu cotidiano, outras formas de
trabalho, para as quais, segundo a ordem econômica hegemônica, não se pressupõe a
aquisição de competências e/ou qualificações.
Dessa forma, o trabalho constitui-se num elemento central na sociedade salarial, pois
aquele constitui uma categoria organizada e gerida pela sociedade, à medida que esta
desenvolve as suas próprias formas de divisão e organização dos modos de produção,
moldando regimes de regulamentação de trabalho e de relações entre os trabalhadores.
Partindo dessa afirmação, as previsões de que o trabalho possa vir a perder a
centralidade que sempre teve para a organização da vida social (OFFE, 1989; MÉDA,
1999; GORZ, 1982), questionam o fato de o mesmo constituir o elemento basilar da
constituição da sociedade industrial, enquanto fator de produção e de riqueza.
Schaff, além de pressupor que o trabalho “desaparecerá gradualmente”, salienta
que não se trata de afirmar que toda a atividade humana, ou seja, todo o trabalho
realizado na sociedade, esteja predestinado a desaparecer. “Para evitar erros de
interpretações, devemos salientar que a eliminação do trabalho (sentido tradicional da
palavra) não significa o desaparecimento da atividade humana, que pode adquirir a
forma das mais diversas ocupações” (1993, p. 22).
Em discrepância com essa visão, para Antunes (2005, pp. 159-160), o trabalho
não deixa de ter a sua centralidade, mas sim, tem vindo a passar por metamorfoses:
“diminuição do operariado industrial tradicional e aumento da classe-que-vive-do-
trabalho”.
Segundo Langer (2004, p. 52), “o que falta não é trabalho, mas um determinado
tipo de trabalho que passamos a denominar de emprego. Este sim está em crise. Mas
trabalho, há demais”.
Será que é mais exato falar de descentralização, ou de metamorfoses do trabalho
nas sociedades contemporâneas? A que tipo de trabalho se referem estes autores, no seu
debate sobre a perda da centralidade do trabalho? Não estão estes estudiosos, mais uma
vez, limitados a uma noção de trabalho historicamente localizada? Já que, como salienta
Schnapper (1998, p. 18), “não se pode deduzir que o trabalho deixou de ser uma norma,
de ter valor, de organizar a vida coletiva [...] o trabalho continua a ser central tanto para
os que trabalham como para aqueles que já não têm empregos”. Chegámos a um ponto
importante para a perspectiva da análise em causa: numa realidade de trabalho tão
diversificada, e com toda a particularidade histórica da formação do mercado de
trabalho no Brasil, será que, ao invés de abordarmos a centralidade do trabalho ou a sua
perda, não será mais plausível debruçarmo-nos sobre os novos sentidos e significados
atribuídos ao trabalho, por parte da grande parcela da população que não foi incluída
pelo mercado de trabalho dito formal?
Será que podemos concluir que, olhando para o contexto brasileiro, conforme
nos diz Schnapper (1998, p. 91), “não se caminha para o fim do trabalho, mas para uma
mudança das formas do trabalho e da estrutura dos empregos”? Portanto, o que se vive
atualmente é apenas uma alteração de ordem sócio-econômica da hegemonia do
paradigma do trabalho fabril, e não o fim do trabalho. Desta perspectiva, podemos
conjeturar que todo o trabalho humano não se resume, apenas, à formulação do
trabalho-emprego, forjado na matriz da industrialização, mas que também existem
outras formas de trabalho exteriores a esta matriz.
Torna-se imprescindível observar que, quanto à problemática do fim do trabalho,
se tem omitido que o paradigma do trabalho toyotista/fordista não é único, pois apenas
constitui uma parte do trabalho humano realizado. Não se pode deixar de salientar que
vivemos, de uma forma ou de outra, em sociedades de trabalhadores, em que o trabalho
constitui um vetor de organização social. Na opinião de Schnapper (1998, p. 17), o que
está a dificultar a compreensão dessa questão, é o fato de os sociólogos que anunciam o
fim do trabalho ou o fim do valor do trabalho, terem a idéia de que se pode mudar o
sistema de valores, e que hoje seria possível deixar de se ter em conta a dupla dimensão
constitutiva das sociedades contemporâneas, da cidadania e do produtivismo. Para esta
autora, não se pode ignorar que pertencemos a sociedades organizadas em torno da
produção de bens e de serviços, com todas as conseqüências que daí resultam para o
nosso modo de vida.
Todavia, para um olhar sob a realidade e as relações de trabalho estabelecidas
em todo o território brasileiro, as críticas e análises do paradigma hegemônico de
trabalho – padrão industrial fordista/taylorista – não são suficientes, dado que aquelas
não fornecem os elementos adequados para se conseguir descortinar a vasta rede sócio-
econômica que se faz e refaz nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros
industrializados, e também no seio dos mesmos, em especial, nos localizados na região
Sudeste do país.
Para lidarmos com a heterogeneidade da realidade do trabalho na sociedade
brasileira, podemos recorrer aos estudos de Latour (1987) que explicitam a interação
existente entre vários elementos e fatores (humanos e não-humanos) que coexistem e
conformam as relações sociais. Para este autor, a melhor forma de perceber esta
interação consiste em “seguir os atores”, ou seja, investigar “quem é quem” na trajetória
dos artefatos ou processos, e deixá-los falar. “Seguindo os atores” podem-se identificar
as redes, evitando impor aos mesmos categorias que não se lhes adequam. Assim,
poderá ser trazida à superfície da questão do trabalho no Brasil, toda a diversidade da
classe trabalhadora que interage entre si, constituindo-se numa rede heterogênea.

A metamorfose do trabalhador: uma classe em extinção?


Um dos principais debates sobre as transformações ocorridas na organização e
nas relações de trabalho no final do século XX tem focado a nova configuração da
classe trabalhadora. Ao examinar a noção de classe, ficam latentes as determinações
históricas que compõem a sua estrutura e os processos sociais decorrentes. Como tão
bem explica Hobsbawn (2000), no capitalismo, a classe é uma realidade histórica
imediata e, em certo sentido, diretamente vivenciada, enquanto que nas épocas pré-
capitalistas, aquela poderia representar meramente um conceito analítico que conferia
sentido a um conjunto de fatos que de outro modo seriam inexplicáveis. Como ainda
nos faz ver este autor, não se verifica uma homogeneidade interna na classe de
trabalhadores, pois quem a defendesse incorreria numa negligência das complexidades
sociais e das estratificações, para além de outras características intrínsecas às classes.

De acordo com Thompson (1987, p. 10), o conceito de classe encontra-se


implicitamente relacionado com as experiências partilhadas pelas pessoas, as quais
resultam na formação de uma identidade nascida de interesses comuns. Tais
experiências são determinadas, na sua maioria, pelas relações de produção. Desta
maneira, a noção de pertença a uma classe surge ligada ao papel social, ocupado pelo
trabalhador, ou ao modo como ele veio a desempenhar esse papel, numa determinada
organização social. O autor conclui que a única definição de classe é estabelecida pelas
próprias pessoas, enquanto estas vivem a sua história.
Gorz pressupõe que não é apenas o trabalho que está em vias de extinção mas a
própria classe trabalhadora. O trabalho, enquanto atividade que se realiza fora do
controle e do domínio desta classe, tende a provocar a decadência da própria classe
trabalhadora. Mas segundo o autor, desta decadência “nasce uma não-classe de não-
trabalhadores” (1982, p. 87): “Esta não-classe, diferentemente da classe operária, não é
produzida pelo capitalismo e marcada pelo selo das relações capitalistas de produção;
ela é produzida pela crise do capitalismo e pela dissolução sob o efeito de técnicas
produtivas novas, das relações sociais de produção capitalistas (idem).
Na análise de Gorz, os membros da “não-classe” encontram-se sujeitos a exercer
uma atividade inferior à sua capacidade, e sempre prestes a retornar à condição
transitória de desempregados que “não se reconhecem na categoria 'trabalhadores' nem
naquela, sua simétrica, de 'desempregado'. Quer trabalhe em um banco, na
administração pública, em um serviço de limpeza ou numa fábrica” (GORZ, 1982, p.
90).3
Nesta mesma linha de raciocínio, Schaff denota que o espaço deixado pela classe
trabalhadora (o que levará, na visão do autor, à negação da própria existência das
classes sociais) será ocupado pelo que ele chama de “estrato social”: “Provavelmente o

3 Grifos do próprio autor.


lugar destas classes desaparecidas será ocupado por um estrato social integrado por
cientistas, engenheiros, técnicos e administradores, que se incumbirão do
funcionamento e dos progressos da indústria e dos serviços” (1993, p. 45).
Distinto do proletariado de Marx, a não-classe de não-trabalhadores de Gorz não
se define pelo trabalho que realiza, nem tampouco pela sua posição no processo de
produção social. Portanto, aqueles que se encontram na esfera da não-classe, fazem
parte do “neoproletariado pós-industrial”: “o neoproletário é antes um não-trabalhador
provisoriamente empregado em uma tarefa indiferente: faz 'qualquer coisa' que
'qualquer um' pode fazer em seu lugar” (GORZ, 1982, p. 90).
Seguindo este ponto de vista, este neoproletariado, estando fora do processo de
produção capitalista, não teria, dessa forma, nada a esperar do futuro, enquanto
trabalhador: “não se trata mais de conquistar o poder como trabalhador, mas de
conquistar o poder de não funcionar mais como trabalhador” (Ibid., 87). Em sua análise,
Gorz (1982) argumenta que o desaparecimento da soberania do trabalho acabaria por
destruir o 'fundamento duplo do socialismo científico', isto é, a condução do processo
revolucionário pela classe majoritária – o proletariado – e a existência de uma
contradição entre a soberania do trabalhador e suas relações de trabalho, e a constante
negação da soberania operária pelo capital.
Na contramão desse conjunto de idéias, para Antunes, não se trata de declarar o
futuro desaparecimento da classe trabalhadora, mas sim de averiguar que esta classe,
hoje, “compreende a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da
venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção” (2000, p.
198). Na ótica da racionalidade econômica capitalista, nem todos os incluídos nesta
classe se encontram diretamente ligados à criação de valor e produtos cambiáveis no
mercado de troca. Portanto, para este autor, “[...] uma noção ampliada de classe
trabalhadora hoje me parece evidente e decisiva para responder ao significado essencial
da forma de ser dessa classe e, desse modo, contrapor aos críticos do fim do trabalho,
aos críticos do fim da classe trabalhadora” (pp.198-199).
Dessa maneira, Antunes, apostando numa noção ampliada de classe
trabalhadora, utiliza a expressão “classe-que-vive-do-trabalho” visando “dar
contemporaneidade e amplitude ao ser social que trabalha” (2000, p. 101)4. Neste
conceito encontra-se inclusa a totalidade daqueles que vendem a sua força de trabalho
em troca de um salário, além dos trabalhadores produtivos industriais que produzem

4 O autor exclui os gestores do capital, os seus altos funcionários, os quais detêm o controle dos
processos de trabalho e de valorização e reprodução do capital no interior das empresas. O mesmo
ocorre com os pequenos empresários e a pequena burguesia urbana e rural.
mais-valia e participam diretamente do processo de valorização do capital, e também os
trabalhadores improdutivos, cujas formas de trabalho são utilizadas como serviços.
Contudo, vale a pena salientar que apesar deste conceito incluir esses dois tipos de
trabalho, ainda gira em torno do papel daqueles ligados ao trabalho fabril – os
trabalhadores produtivos.
Mas a noção trazida por Antunes adequa-se à classe trabalhadora brasileira, ao
contrário das noções apresentadas por Gorz e Schaff. Porém, Antunes não se afasta de
uma concepção matricial de trabalho, tal qual os autores supramencionados,
continuando a basear-se no modelo de produção fordista/taylorista, o qual se direciona
para um novo paradigma industrial, com novos moldes de organização e gestão do
trabalho, ou seja, para a reestruturação produtiva, denominada de acumulação flexível.
Antunes conclui que na sociedade capitalista moderna a classe trabalhadora, ao
invés de estar em vias de desaparecer, se complexificou, fragmentou e heterogeneizou
ainda mais. Essa classe encontra-se dividida entre “qualificados/desqualificados,
mercado formal/informal, jovens/velhos, homens/mulheres, estáveis/precários,
nacionais e imigrantes, brancos e negros, inseridos e excluídos, etc.” (2000, p. 104),
sem falar ainda nas divisões que decorrem da inserção diferenciada dos países e de seus
trabalhadores na nova divisão internacional do trabalho. Tais configurações não deixam
espaço para a idéia, seja no presente ou num futuro distante, de eliminação da “classe-
que-vive-do-trabalho”, contrariando as alegações de Gorz e Schaff.
Segundo Antunes, a classe-que-vive-do-trabalho tornou-se mais qualificada em
vários setores, como na siderurgia, na qual houve uma relativa intelectualização do
trabalho, mas desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos, tal como na indústria
automobilística, na qual o operário viu relativamente diminuída a sua importância.
Criou-se, de um lado, em escala minoritária, o trabalhador "polivalente e
multifuncional", capaz de operar máquinas de controle numérico e, de outro, uma massa
precarizada, sem qualificação, que hoje se defronta com o desemprego estrutural.
Para Gorz (1982) caberá ao neoproletariado pós-industrial, e não ao proletariado
tradicional, uma ação transformadora do sistema, enquanto classe inserida no mesmo.
No entanto, para Antunes, o proletariado tradicional conserva o papel de agente
transformador do sistema capitalista, cuja centralidade do trabalho ainda se encontra no
“chamado trabalho produtivo, o trabalho social e coletivo que cria valores de troca, que
gera mais-valia” (2000, p. 198).
Neste cenário, em particular no contexto brasileiro, tanto os trabalhadores que se
incluem no tipo de trabalho fordista quanto aqueles que foram excluídos desse modelo
coexistem numa sociedade integrada. A questão pertinente, no entanto, é a de que,
apesar de eles se encontrarem envolvidos em processos distintos, ambos vivem numa
mesma realidade que os subjuga.
Para melhor examinarmos esta realidade, em primeiro lugar, deveremos
considerar o legado cultural do processo de produção anterior, baseado no fordismo,
herdado pelo atual modelo produtivo do capitalismo moderno. Aquele legado propicia,
como anteriormente mencionado, uma plataforma de novas exigências para os
trabalhadores, e a coexistência (presente em todo o contexto brasileiro) do trabalhador
de produção em massa, da era do fordismo, com o trabalhador do padrão atual,
polivalente, especializado e com alto grau de instrução, e também com o trabalhador
atípico, o qual desenvolve outros tipos de trabalho que não se cingem ao modelo
fordista/taylorista. Tal coexistência denota a quebra da dicotomia trabalho produtivo e
improdutivo, a partir de uma nova configuração da classe trabalhadora, a qual abrange,
numa mesma realidade social, os trabalhadores que exercem atividades diversas e
complexas no interior das sociedades contemporâneas.

Considerações Abertas
Olhar para a questão do trabalho no Brasil, a partir de uma leitura que se resume
apenas a um determinado tipo de organização do trabalho, especialmente ao padrão
industrial fordista/taylorista, não nos possibilita apreender todas as variantes
econômicas, sociais e culturais que circundam as teias de relações no seio da sociedade.
Não nos permite desmantelar a visão restritiva de uma realidade localmente
circunscrita, ou seja, retratar toda a complexidade da problemática do trabalho face à
realidade dos grandes pólos industriais, especialmente, na região Sudeste daquele país,
apesar de, mesmo nestes pólos, o trabalho assalariado sempre ter coexistido com outras
formas de trabalho.
O mesmo se aplica ao debate sobre a descentralização do trabalho. Um debate
que tem grande ressonância nos países europeus, mas que não encontra fundamentos
práticos no contexto brasileiro, já que são os sentidos do trabalho e, não a sua
centralidade, que estão sendo questionados pelas relações sócio-econômicas
experimentadas pelos trabalhadores na reprodução de suas vidas. É o debate sobre os
sentidos atribuídos ao trabalho que nos parece mais adequado, já que, para a trajetória
da “classe-que-vive-do-trabalho”, a questão crucial consiste em assegurar um trabalho
mais seguro, digno e com sentidos. Como tal, nos parece mais apropriado falar de
sentidos do trabalho no contexto histórico brasileiro, no qual, a maioria dos pobres
sempre viveu fora do mercado formal de trabalho e das relações assalariadas, num
sentido estrito.
Da mesma forma, a teoria do desaparecimento ou da perda do valor da classe
trabalhadora na contemporaneidade não possui qualquer fundamento. A realidade do
trabalho não é homogênea, portanto, a sociedade salarial, com os seus arcabouços,
coexiste com outras relações sócio-econômicas no interior das sociedades hodiernas.
Neste sentido, a classe trabalhadora, apesar da sua homogeneidade endógena,
partindo das experiências vivenciadas no cotidiano das relações de trabalho, se encontra
num processo de reconfiguração de uma nova postura e do seu papel social diante das
atuais realidades e relações sociais de, e no, trabalho.

Referências:
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GORZ, André. Misères du prèsent. Richesse du possible. Paris: Galilée, 1997.
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