Você está na página 1de 4

RICARDO ANTUNES - ADEUS AO TRABALHO?

Cássia Damiani'
J{eseHha

o ensaio que ora o autor nos apresenta ganha mento marxista contextualizando-o na atual crise do
uma dimensão especial neste momento de aguda crise capitalismo.
do pensamento de esquerda. A época nos apresenta Dividido em quatro partes, o livro nos leva a uma
uma significativa parcela dos intelectuais que outrora reflexão de maneira articulada sobre as indagações do
acreditaram no papel emancipador desempenhado pela autor, além do apêndice que contém seis artigos já pu-
luta da classe trabalhadora, negando este papel. O mais blicados em periódicos. Na primeira parte "Fordismo,
desalentador é que negam a própria possibilidade de Toyotismo e Acumulação Flexível" o autor parte da
construção de uma sociedade assentada sobre o traba- constatação de que o mundo da produção sofreu pro-
lho não alienado. fundas mudanças nas últimas décadas. Estas se refleti-
A fonte inspiradora deste trabalho é a polêmica ram diretamente sobre as formas de ser das classes
que paira sobre o presente e ofuturo do mundo do tra- trabalhadoras, especialmente da classe operária e na
balho. Contrapondo-se radicalmente à tese de GORZ ação sindical. A instauração de um novo modelo de acu-
sobre a tendência atual da redução do operariado indus- mulação capitalista em substituição ao fordismo, le ou
trial nas sociedades capitalistas avançadas, ANTUNES a um processo de heterogeneização, fragmentação e
faz indagações que orientam a linha reflexiva do ensaio. complexificação do mundo do trabalho. Antunes anali-
A princípio ele questiona os prenúncios atuais do desa- sa criticamente e confronta-se com as principais tese
parecimento da "classe-que-vive-do-trabalho", as de autores apologistas do toyotismo, que vêem neste
influências das metamorfoses do processo produtivo junto paradigma um avanço no sentido da superação da ex-
ao sindicalismo e indaga os desdobramentos teóricos ploração e da alienação do trabalho.
destas transformações sobre o estatuto da centralidade Ao contrário, o toyotismo "supõe uma intensifi-
da categoria trabalho na práxis humana da sociedade cação da exploração do trabalho, quer pelo fato de os
contemporânea. Finalmente, o autor oferece algumas operários atuarem simultaneamente com várias má-
indicações na defesa da centralidade do trabalho como quinas diversificadas, quer através do sistema de lu-
"elemento estruturante de uma nova forma de sociabi- zes que possibilita o capital intensificar, sem estrangular
lidade humana", na perspectiva da superação do capi- o ritmo produtivo do trabalho", além da proliferação
talismo. Em plena efervescência do debate, com muitas do trabalho terceirizado, parcial e precário, sem direi-
das transformações ainda em curso. O ensaio tem um tos sociais e sub-remunerado, fortalecendo o mercado
caráter preliminar. dual de trabalho.
O texto publicado compõe parte da tese de Li- Na tentativa de desmistificação do toyotismo. o
vre-Docência em Sociologia do Trabalho na autor nos aponta que este modelo mantém o "estranha-
UNICAMP. ANTUNES, conceituado pesquisador e mento do trabalho" e, em vários sentidos, o amplia. O
autor de diversas obras referentes ao sindicalismo e ideário da empresa incorporado pelo trabalhador "é e
às questões contemporâneas do mundo do trabalho e muito maior intensidade e qualitativamente distin o
da luta de classes, resgata em seus debates o pensa- quele existente na era do fordismo". Ou seja, o ideári
do fordismo "era movido [...] por uma lógica mais
I Professora do Dep. de Teoria e Prática do Ensino - FACED e pótica" enquanto a lógica "do toyotismo, é
mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da 'consensuaI', mais envolvente, mais participariva, e ezn
FACED/UFC. verdade mais manipulatória", pois capta o e

Educação em Debate - Fortaleza -,ANO 20 - N° 35 - 1998 - _


fazer do trabalhador em favor da elevação da produ- sa as múltiplas processual idades das relações sociais de
tividade. produção vigentes, contrapondo-se a GORZ, OFFE e
Em verdade, o discurso que aponta para a proximi- agora, KURZ, que apontam para a ''tendência genera-
dade existente entre as funções de elaboração, planeja- lizante e uníssona, quando se pensa no mundo do trabalho".
mento e execução, é aparente, não encontra repercussão Nesse embate, fundamenta sua tese constatando
na realidade pois, "a concepção efetiva dos produtos, a as contradições precípuas existentes na processualidade
decisão de como produzir, não pertencem aos trabalhado- multiforme da classe trabalhadora, demonstrando sua
res. O resultado do processo de trabalho corporificado no heterogeneização, fragmentação e cornplexificação. Por
produto permanece alheio e estranho ao produtor". É nes- um lado, aponta a "desproletarização relativa do traba-
te engodo que muitos intelectuais de esquerda embarcam, lhador industrial", com a retração do operariado industrial
sem perceberem que este novo modelo preserva, em sua tradicional e, por outro, o aumento da subproletarização
totalidade, o fetichismo da mercadoria e a alienação. do trabalho precário, temporário, "terceirizado". E ain-
A polêmica estabelecida com diversos autores da como partícipe deste processo, há a intensificação
como SABEL e PIORE, CLARKE, POLLERT, do assalariamento no setor de serviços e a incorpora-
ANNUNZIATO, MURRAY, HARVEY, CORIAT e ção da mulher na produção.
GOUNET vai delineando a opinião do autor sobre os Estas transformações no mundo do trabalho rati-
desdobramentos do toyotismo, inclusive no que tange ficam a expansão mundial do desemprego estrutural na
ao Estado de Bem-Estar Social, e o debate sobre as atualidade. E, paralelamente a isso, afeta qualitativa-
teses que sugerem que" nem tudo é negativo" no mo- mente a forma de ser do trabalho, "evidencia-se por-
delo, ou contrariamente, aquelas que acreditam na pos- tanto, que ao mesmo tempo em que se visualiza uma
sibilidade de incorporação das virtudes do toyotismo ao tendência para a qualificação do trabalhador, desenvol-
modelo social-democrático europeu, teríamos, ao invés ve-se intensamente um nítido processo de desqua-
da socia-democratização do toyotismo, no caso de fu- lificação dos trabalhadores que acaba configurando um
são, "uma toyotização descaracterizada e desorganiza- processo contraditório que superqualifica em vários
da da social-democracia". ramos produtivos e desqualifica em outros". Esta lógi-
Outra grande polêmica deste ensaio é a que o au- ca destruidora das multifaces do mundo do trabalho es-
tor mantém contra as teses de HABERMAS, OFFE e tão em acordância com o desiderato do capital. Mas a
GORZ que apregoam o fim da central idade da categoria realidade nos aponta outras determinações como a par-
trabalho na sociedade contemporânea, e lançando mão ticipação dos trabalhadores dos setores de serviços
das afirmações de MARX, Antunes argumenta que "mes- no coletivo produtor, apontando uma "expressiva expan-
mo num processo produtivo, tecnologicamente avançado são e ampliação da classe trabalhadora" - o que leva o
[...] a criação de valores de troca seria resultado [...] autor a concluir que o operariado não desaparecerá tão
[da] articulação entre os trabalhos vivo e morto". Fica rapidamente e, principalmente "não é possível
claro o papel do trabalho social concreto como gerador perspectivar nem mesmo num universo distante, nenhu-
de valor de uso, sendo inadmissível, portanto, sua extinção, ma possibilidade de eliminação da classe-que-vive-do-
Já a extinção do capitalismo, o fim do trabalho abstrato, trabalho".
do trabalho alienado é algo admissível. Conclui o autor Na terceira parte do trabalho "Dimensões da
que, para resolver a crise da sociedade do trabalho abs- Crise Contemporânea do Sindicalismo", Antunes anali-
trato, a classe trabalhadora tem papel fundamental. sa as diversas tendências do movimento sindical e como
Diante das questões postas, ANTUNES elenca o sindicalismo tem respondido às metamorfoses do mun-
as debilidades por que passam os organismos represen- do do trabalho e enfrentado suas crises.
tativos dos trabalhadores, e denuncia uma tendência ao A crise de quase duas décadas que assola o
atrelamento destas entidades aos valores fornecidos pela sindicalismo nos países de capitalismo avançado e agora
sociabilidade do mercado e do capital, neste sentido, os repercute no terceiro mundo é delineada pelo aumento
sindicatos distanciam-se dos movimentos autônomos de (desigual para cada país) das taxas de dessindicalização;
classe e "da reação desenvolvida pelo sindicalismo pelas grandes diferenciações postas entre os trabalha-
classista e pelos movimentos sociais anticapitalistas, que dores incluídos, estáveis e os "terceirizados", temporá-
isam o controle social da produção". rios, com o fortalecimento do neocorporativismo "que
a segunda parte, o autor vai examinar as impli- procura preservar os interesses do operariado estável,
ções das "Metamorfoses no Mundo do Trabalho" na vinculado aos sindicatos"; e, pela ineficiência prática na
orma de ser das classes trabalhadoras. Antunes anali- efetivação dos instrumentos concretos de luta, devido à

j v.",=~IÇ<-:IO em Deba:e - Fortaleza -/'NO 20 - l'r 35 - 1998 - p. 99-102


fragmentação e heterogeneização crescentes dos tra- dores diretamente produtivos e por isso, atuando enquan:
balhadores. classe, constituem-se no segmento social dotado de
Outras tendências identificadas pelo autor agra- maior potencial anticapitalista"; d) essa configuração
vam o quadro do movimento sindical, quando resistem à atual da classe-que-vive-do-trabalho não coloca como
centralidade das classes trabalhadoras na construção horizonte a sua extinção, "ao contrário de adeus ao tra-
dos projetos anticapitalistas, criando um clima de "ad- balho ou à classe trabalhadora, a discussão [...] perti-
versidade e hostilidade contra a esquerda, contra o nente é aquela que reconhece, de um lado, a possibilidade
sindicalismo combativo e os movimentos sociais de ins- de emancipação do e pelo trabalho, como ponto de par-
piração socialista". Elas apontam para a crescente tida decisivo para a busca da omnilateralidade humana"
individualização das relações de trabalho, primam pela e, de outro o grande desafio de edificar "uma ação con-
desregulamentação e flexibilização do mercado de tra- junta destes segmentos enquanto classe". A tarefa
balho e pela opção ao "sindicalismo de participação". crucial dos socialistas revolucionários deve ser, a de
Os principais desafios postos aos sindicatos combativos superar a fragmentação da classe trabalhadora e "bus-
dos países que estão sob influência destas tendências car os mecanismos necessários, capazes de possibilitar
capitalistas, estão na capacidade de reverterem este a confluência e aglutinação de classe, contra todas as
quadro, combatendo o "sindicato de empresa", e efeti- tendências à individualização das relações de trabalho,
vamente instaurarem um sindicalismo horizontalizado, à exacerbação do neocorporativismo [...]"; e) "o capi-
participando e auxiliando "na elaboração de um modelo talismo dos nossos dias, ao mesmo tempo em que, com
econômico alternativo, com claros traços anti- o avanço tecnológico, potencializou as capacidades hu-
capitalistas" . manas, fez emergir crescentemente o fenômeno social
Na tentativa de indicar teses para oferecer con- do estranhamento". O estranhamento opõe-se ao de-
clusões em relação aos temas abordados ao longo do senvolvimento das individualidades em direção à
livro, a quarta parte ganha maior densidade. "Qual é a omnilateralidade humana, e tem ainda "enorme relevân-
Crise da Sociedade do Trabalho?" O autor resgata o cia no universo da sociabilidade contemporânea". À guisa
pensamento de MAR.X e de LUKÁCS para desenvol- de conclusão, ANTUNES assinala que "ao contrário
ver cuidadosamente as categorias analíticas na defesa das formulações que preconizam o fim das lutas sociais
de suas teses: a)"Ao contrário daqueles autores que de- entre as classes, é possível reconhecer a persistência
fendem a perda da centralidade da categoria trabalho dos antagonismos entre o capital social total e a tota-
na sociedade contemporânea, as tendências em curso lidade do trabalho".
[...] não permitem concluir pela perda desta central idade Sob forma de apêndice, o autor expõe seis textos
no universo de uma sociedade produtora de merca- que são complementares ao livro, e que em sua maioria
dorias."; b) O autor resgata a distinção marxiana entre já foram publicados em periódicos.
trabalho concreto (produtor de valor de uso) e trabalho "A crise vista em sua global idade" é o que pre-
abstrato (produtor de valor de troca), este duplo caráter tende analisar Robert KURZ em seu livro: O Colap-
do trabalho serve para afirmar a impossibilidade de se so da Modernização (Da Derrocada do Socialismo
destruir o "trabalho como criador de valor-de-uso, como de Caserna à Crise da Economia Mundial). _.a
trabalho útil, [que] é indispensável à existência do ho- opinião de ANTUNES, este é um empreendimento
mem[ ... ]", nesse sentido o trabalho é considerado dificílimo, mesmo quando o objeti o é reter algumas
protoforma do ser social. Mas não elimina a possibili- de suas tendências mais gerais. Ressalta ainda um
dade de se "visualizar a eliminação do trabalho abstrato dos "equívocos" instigantes do livro "que reconhe e
- ação esta naturalmente articulada com o fim da socie- a sociedade como produtora de mercado ias. mas
dade produtora de mercadorias"; c) "as possibilidades que acaba acreditando na tese da extição da Ias se
de uma efetiva emancipação humana ainda podem en- trabalhadora como agente capaz de impulsionar es-
contrar concretude e viabilidade social a partir das re- sas transformações.'
voltas e rebeliões que se originam centralmente no mundo O texto "Indivíduo, classe e gênero humano: o
do trabalho' , apesar dos óbices derivados de suafrag- momento da mediação partidária", é um roteiro para
mentação, heterogeneização e complexificação. Vi- debate. Enumera questões indicati as sobre a
endo numa sociedade que produz mercadorias, valores pertinência e alidade de se pensar as conexões entre
de troca, as re oltas do trabalho ganham estatuto de os partidos e as classes sociais. É preocupação do autor
central idade, por isso, os trabalhadores subpro- analisar as multifaces desta relação com o gênero hu-
letarizados, podem (e devem) somar-se aos trabalha- mano ("Ser genérico, em termos marxianos, entendido

Educação em Debate- Fortaleza - ANO 20 • N° 35 • 1998 • p. 99.10211 O 1


como ser consciente, que vive a efetividade humana de construção de sociedades socialistas, no caso, a da
omnilateral"), compatibilizada com a questão gênero/ URSS e do Leste Europeu.
mulher. "Mundo do trabalho e sindicatos na era da
"Trabalho e estranhamento" nos traz o aprofun- reestruturação produtiva: impasses e desafios do novo
damento ontológico destas duas categorias. Servido sindicalismo brasileiro", o autor levanta as temáticas
pelas teorias marxiana/lukacsiana, "ressalta a capa- desenvolvidas e detalhadas no livro, faz uma análise
cidade teleológica do ser social" quando o ser huma- crítica ao sindicalismo brasileiro e conclui, questio-
no, em sua consciência, tem ideado "a configuração nando: "Qual o caminho que o novo sindicalismo bra-
que quer imprimir ao objeto do trabalho, antes de sua sileiro, nascido no final dos anos 70, vai adotar: irá
realização" . negociar dentro da ordem ou contra a ordem? Pro-
"A prevalência da lógica do capital". Neste texto curará elaborar um programa de emergência para sim-
o autor procura apontar alguns elementos que determi- plesmente gerir a crise do capital ou tentará avançar
naram a "derrocada" da URSS e da "experiência soci- na elaboração de um programa econômico alternati-
alista" intentada neste século. Trabalha com duas teses: vo, formulado sob a ótica dos trabalhadores, ca-
"a experiência da URSS não concretizou valores es- paz de responder às reivindicações imediatas do
senciais do pensamento de Marx" e, "as sociedades mundo do trabalho, mas tendo como horizonte uma
pós-revolucionárias não conseguiram construir-se organização societária fundada nos valores socialis-
enquanto sociedades socialistas". tas e efetivamente emancipadores?"
"Dimensões da crise contemporânea ou da nova ANTUNES ao referir-se a esta obra como um
(des )ordem internacional", trata-se de uma tentativa de ensaio necessariamente preliminar e limitado, surpre-
desmistificar e recolocar a dimensão aguda da crise ende seus leitores com a rigorosidade e aprofun-
contemporânea que está obnubilada por diversas con- damento nas análises fortemente centradas na
cepções. ANTUNES elege duas destas que considera materialidade do processo de trabalho, tendo em vista
mais nefastas e insuficientes para os trabalhadores: 1) que este debate é recente e está em efervescência no
é "responsável pelo entendimento que se propagou, a Brasil. Este livro traz uma grande contribuição ao pen-
partir da derrocada do Leste em 1989, com o samento acadêmico, bem como ao sindicalismo, prin-
desmantelamento da URSS e praticamente de todos os cipalmente pela sua ousadia em (re )afirmar o marxismo
países que compreendiam o equivocadamente chama- na atualidade. E, é imprescindível para aqueles que se
do "bloco socialista"; 2) a crença da vitória do capitalis- dedicam ao estudo de temas como: sindicalismo, tra-
mo que teria, com a derrota do Leste, criado as balho e classes sociais, sociologia industrial, formação
condições para sua "eternização". Estes dois últimos profissional e outros. Por fim, ANTUNES faz um con-
textos, apesar das concessões ao trotskismo e às teorias vite irresistível ao debate e ao enfrentamento dos atu-
sociais democratas, que negavam a possibillidade obje- ais desafios impingidos às classes trabalhadoras e ao
tiva de construção do socialismo na URSS a partir de sindicalismo, especialmente àqueles que acreditam na
1917, nos traz algumas pistas importantes para enten- possibilidade histórica de soerguer uma sociedade ne-
dermos a crise e o desmoronamento das experiências cessariamente socialista.

Debare - Fortaleza -IWO 20 - N" 35 - 1998 - p. 99-102

Você também pode gostar