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As cooperativas de produção na

estratégia para a superação da


alienação do trabalho

Resumo

O
artigo analisa as possibilidades e limites de superação da
alienação do trabalho presentes na expansão das cooperativas
de produção no seio do modo de produção capitalista. Primei-
ramente, examina a categoria de alienação presente nas elaborações do
jovem Marx, atualizando-a com relação ao conceito do valor-trabalho,
introduzido em suas obras posteriores. Em seguida, estabelece uma
Rodrigo Straessli compreensão sobre o que se pode entender por trabalho emancipado,
Pinto Franklin
oposto à alienação. Por fim, identifica os pontos nos quais o cooperati-
Doutorando e Mestre em
Economia do Desenvolvimento vismo colabora para esse processo de emancipação e as limitações que
pelo Programa de Pós-Gradua- pode possuir caso seja adotado como estratégia isolada para a superação
ção em Economia da Universi- do capitalismo.
dade Federal do Rio Grande do
Sul – PPGE/UFRGS. Bolsista Palavras-chave: alienação do trabalho; cooperativismo; luta de classes.
do CNPq – Brasil.
Classificação JEL: B51, J54, P13.

Pollyanna
Paganoto Moura Abstract
Mestranda em Teoria
The article analyzes the possibilities and limits of overcoming alienation
Econômica do Programa de
Pós-Graduação em Economia of labor existing in the expansion of production cooperatives within the
da Universidade Federal do capitalist mode of production. First, it examines the category of aliena-
Espírito Santo – PPGEco/
tion present in the elaborations of the young Marx, updating it with res-
UFES. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Espírito pect to the concept of labor value, introduced in his later works. Then,
Santo - FAPES. it establishes an understanding about the emancipated labor, in contrast
to alienation. Finally, it identifies the points por meio de relações monetárias, alienando as
at which the cooperativism contributes to this relações sociais ao transformá-las em meras
process of emancipation and the limitations that relações materiais entre mercadorias.
it may contain in case of being adopted as an
E, assim, o próprio capitalismo deu início ao
isolated strategy to overcome capitalism.
movimento que geraria sua antítese. A classe
Keywords: alienation of labor; cooperatives; trabalhadora, ao ser pressionada pela exploração
class struggle. desumana do capitalismo – uma exploração, ao
mesmo tempo, aberta e dissimulada –, insur-
giu contra seus opressores, em uma tentativa
Introdução
de alcançar uma sociedade cuja base fosse o
O conflito de classes é o motor do desenvol-
trabalho livre e emancipado. Com isso nasceu o
vimento histórico da sociedade humana, que
novo conflito, ou melhor, a nova forma como se
segue um percurso dialético de sintetização
expressa o antigo conflito entre classes antagô-
entre diversas teses e suas antíteses. As condi-
nicas, que definirá a próxima síntese da socieda-
ções materiais do período histórico precedente
de humana.
são as bases em que se darão as transformações
históricas atuais, que por sua vez determinarão Muitas ideias, curiosamente a maioria prove-
as condições materiais das fases vindouras. niente de teóricos burgueses, surgiram com o in-
tuito de explicar o que seria e como se daria essa
É dessa forma que o capitalismo surgiu como
sociedade utópica. Neste contexto, surgiram os
uma síntese de um momento histórico anterior.
autores que mais tarde foram denominados de
Revoluções burguesas, acumulação primitiva
“socialistas utópicos”. Estes tinham como objeti-
de capital, migração de camponeses para as
vo a implantação, com o apoio e a iniciativa da
cidades, revolução industrial, enfim, todos esses
burguesia, de uma sociedade justa e igualitária,
processos, criados e/ou direcionados pelos cho-
através da criação de núcleos de produção geri-
ques de interesses, desembocaram em um novo
dos pelos próprios trabalhadores, que seriam os
modelo de acumulação que, ao mesmo tempo
proprietários dos meios de produção. A evolução
em que desnudou as relações de exploração, ao
das ideias destes autores resultou no surgimento
retirar destas as institucionalidades políticas e
do cooperativismo, um movimento baseado na
religiosas que lhe davam forma, as dissimulou
associação livre de trabalhadores, com o intuito

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de, além de garantir a sobrevivência dos associa- dos burgueses, ou dos setores sociais identifica-
dos, buscar formas alternativas ao capitalismo dos com o capitalismo, de esvaziar essas institui-
desumano de promover a produção, circulação ções de seu conteúdo anticapitalista, e inclusive
de integrá-las à lógica do capital. (Borges Neto,
e distribuição de mercadorias. As cooperativas,
2003, p. 104)
como são denominadas essas associações auto-
gestionárias de trabalhadores, consolidaram-se Atualmente, o debate em torno da capacida-
em uma contundente inserção anticapitalista de dos empreendimentos autogestionários de
dentro do próprio capitalismo, baseadas em uma superarem a sociedade capitalista, levando a
série de princípios contrários à lógica de acumu- uma forma de organização da produção baseada
lação do capital. no trabalho livre e emancipado, sem antes se
degenerarem, resume-se a discussões sobre a via-
No decorrer do desenvolvimento do capitalismo,
bilidade da autogestão em empreendimentos de
o movimento cooperativista ganhou forças espe-
grande porte, e sobre formas de impedir o surgi-
cialmente em momentos de prolongada depres-
mento de cooperativas fraudulentas, que visam
são econômica, quando as rédeas da exploração
apenas a redução de encargos trabalhistas propi-
estão sempre mais apertadas. Com a adesão de
ciada pela natureza das relações de trabalho das
novas pessoas e novas ideias, o cooperativismo
cooperativas, ou seja, resumem-se a adequar o
acabou incorporando outros objetivos, como a
cooperativismo à lógica capitalista. Entretanto,
luta contra o desemprego e por melhores con-
se o objetivo do cooperativismo é desenvolver a
dições de trabalho, e deixou de representar, em
antítese de um sistema pautado na alienação das
certa medida, um foco de transformação revolu-
relações sociais de produção, falta ainda discutir
cionária da sociedade.
se elas permitem que o trabalho humano seja
De fato, cada vez que mais pessoas abraçam esse realizado em sua plenitude, ou seja, expressando
ideal, ele se modifica, agregando características a relação social que é em si, através da autoges-
de diferentes ideologias. Isso, inclusive, é uma tão e da cooperação entre os indivíduos; e ainda,
resposta do próprio capitalismo, que tenta assi- se essa capacidade emancipadora sobreviveria ao
milar o cooperativismo, na tentativa de transfor- processo de síntese com o capitalismo. É neste
má-lo em sua própria antítese. ponto que este trabalho se insere.
Ao mesmo tempo em que começaram a desenvol- O presente artigo está estruturado em duas
ver essas instituições que contradizem a lógica
sessões. A primeira sessão tratará dos concei-
do capitalismo tomando por base a luta dos tra-
tos de alienação e emancipação do trabalho, e
balhadores, começou também o esforço por parte
identificará as pré-condições para a realização

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do trabalho emancipado de acordo com a teoria “alienação do trabalho”, mas nem sempre com
marxista. Na segunda sessão faremos uma breve um mesmo conteúdo. Além disso, suas raízes
análise sobre as possibilidades de emancipa- hegelianas, as influências que sofreu de Feuerba-
ção do trabalho a partir das cooperativas de ch e a posterior ruptura com estes dois teóricos
1
produção. contribuíram para a complexidade da questão:
teria Marx desenvolvido um conceito em opo-
sição a Hegel, ou buscado a superação da teoria
1. A teoria da alienação em Marx
hegeliana no melhor dos termos do Aufhebung2
A alienação do trabalho humano está na essên-
alemão? Será que, para Marx, os diversos signifi-
cia do modo capitalista de produção e acumu-
cados do conceito de alienação estiveram sempre
lação. Entretanto, não é isso que aparenta o
conectados, ou teria ele atribuído diferentes
sistema baseado na exacerbação da “liberdade”
significados ao termo à medida que mudava sua
individual. De fato, muitos pensadores se propu-
concepção?
seram a desvendar o funcionamento das insti-
tuições capitalistas, e tantos outros o fenômeno A segunda polêmica que envolve a alienação do
da alienação do ser humano em sua pluridimen- trabalho é quanto ao papel reservado, por Marx,
sionalidade, mas sem estabelecerem qualquer para este conceito. Alguns autores acreditam
relação direta entre os dois temas. que a alienação do trabalho está por trás de todo
sistema econômico-filosófico de Marx, enquan-
Karl Marx foi o primeiro a estabelecer esta liga-
to outros argumentam vigorosamente que não
ção teórica entre os filósofos e os economistas po-
passa de um fruto de devaneios de um jovem
líticos. Ele mostrou que era uma tarefa necessária
Marx idealista, que foi superado pelo autor em
tanto para a economia compreender o processo de
sua maturidade.
alienação do trabalho, quanto para a filosofia des-
vendar os mistérios das relações sociais de produ- Como fica claro, ambas as questões concentram
ção. Contudo, o conceito marxista de alienação é, suas principais divergências na discussão sobre
até hoje, alvo de grande divergência entre os mar- uma possível ruptura na evolução do pensa-
xistas. Este debate divide-se em duas questões mento de Karl Marx, que colocaria de um lado
principais: quanto ao significado do conceito, e um jovem Marx com seu afã pela filosofia, e de
quanto ao seu papel na teoria marxista. outro um Marx maduro, com suas preocupações
voltadas para os fatos concretos da economia
A primeira dessas questões tem por base o fato
política. Faremos, então, uma breve sumarização
de que, durante toda a sua vida, Karl Marx pro-
deste debate.
duziu diversas obras em que utilizava o termo

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Optamos por apresentar primeiro a perspectiva seriam incorporados às ideias do jovem Marx,
daqueles que creem na dicotomia jovem Marx dentre os quais o repúdio à teoria do valor-traba-
e velho Marx, dentre os quais podemos citar lho. (Gorender, 1982, p. VIII)
Louis Althusser e Jacob Gorender. Esses autores
Foi também em 1844 que Marx elaborou seus
acreditam que o desenvolvimento do pensa-
primeiros esboços sobre sua teoria de economia
mento de Marx, expresso na transformação dos
política. Gorender ressalta que, nos Manuscritos
objetivos de suas obras, representa o processo de
econômico-filosóficos de 1844, o valor-trabalho é
construção da própria concepção do materialis-
considerado por Marx inadequado “para servir
mo histórico. Por esse motivo, Althusser rotula
de base a uma ciência da Economia Política. Em
as obras que Marx produz em sua juventude,
seu lugar, o princípio explicativo original é o
dentre as quais ressalta A questão judaica e Os
da dominação da propriedade privada, a partir
manuscritos econômico-filosóficos de 1844, tam-
do qual se enfoca a subjugação do proletariado
bém conhecidos como Manuscritos de Paris, de
como um processo de alienação”. (Gorender, 1982,
filosofia ideológica com aspirações idealistas.
p. VIII)
(Althusser, 1980)
Nos Manuscritos, Marx não só inseriu o conceito
Os autores que defendem essa perspectiva
de alienação do trabalho dentro da economia
argumentam que à medida que Marx passava
política, como o fez em posição central. O autor
a aceitar a teoria do valor-trabalho, ele teria
o considerou como o elemento chave que falta-
soterrado a centralidade do conceito de aliena-
va aos economistas de sua época para a devida
ção, substituindo-o pelo de fetichismo. Gorender
compreensão dos fenômenos econômicos, e como
(1982), na introdução que escreve para a tradução
elemento central para o entendimento dos fenô-
de Para a crítica da economia política, apresenta
menos da alienação estudados pelos filósofos.
a trajetória dessa transformação, que sumariza-
No campo filosófico, a importância dos
mos a seguir.
Manuscritos se deveu, sobretudo, à ruptura que
Antes de iniciar suas incursões pelo campo da
representou entre Marx e o idealismo hegeliano.
economia política, Marx fora fortemente in-
Neles, Marx inverteu a dialética de Hegel e
fluenciado pelas elaborações de Engels que, no
ampliou e recompôs o conceito de alienação
início de 1844, publicou o Esboço de uma crítica
tal como este o concebia. Apesar disso, Marx
da economia política. Em tal obra, que possuiu
teria se aproximado do materialismo na forma
profundas influências da filosofia de Feuerbach,3
de um humanismo naturalista de influência
o autor desenvolveu uma série de conceitos que
feuerbachiana.

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Esse humanismo, no entanto, logo cairia por dominaram a análise marxista. A mais-valia,
terra. Na obra A ideologia alemã, escrita em 1846 que passou a explicar os mecanismos de ex-
e com coautoria de Engels, Marx teria formu- ploração do capital, fez o papel que pertencia
lado uma autocrítica de seus trabalhos anterio- à propriedade privada nos pensamentos do
res na forma de uma crítica a Feuerbach. Essa jovem Marx.
crítica foi feita a fim de desqualificar todos os
Diante desta argumentação, a ruptura esta-
jovens hegelianos de seu período e o materialis-
va completa. Um era o Marx filosófico dos
mo contemplativo que os regia. Livre de Hegel,
Manuscritos, o outro era o Marx economista
Marx começou a traçar as bases para o seu
político d’O capital. Alienação versus valor-tra-
materialismo histórico, buscando na realidade
balho. Propriedade privada versus mais-valia.
concreta, ou seja, na realidade material das rela-
Filosofia versus economia política. Jovem
ções sociais, a base para seu pensamento.
Marx versus velho Marx.
O próximo passo teria sido dado com a publica-
Passamos agora a analisar o posicionamento
ção da obra Miséria da filosofia, publicada como
daqueles que não concordam com essa ruptura
crítica à obra Sistema das contradições econômicas
entre jovem e velho Marx, e que acreditam em
ou filosofia da miséria, de Pierre-Joseph Prou-
um desenvolvimento orgânico e coerente de
dhon. Em sua crítica, Karl Marx incorporou a
suas obras e ideias, dentre os quais poderíamos
teoria do valor-trabalho nos termos concebidos
destacar György Lukács, Leandro Konder e
por David Ricardo, que é a determinação do
István Mészáros. Longe de não reconhecerem
valor pelo tempo do trabalho. A teoria do valor-
uma evolução do pensamento de Marx, estes
-trabalho foi reconhecida como fundamento da
autores rejeitam “a idéia dramatizada de uma
economia política enquanto ciência, e o termo
inversão radical de sua posição depois dos Ma-
“alienação”, conforme ressalta Gorender (1982, p.
nuscritos de 1844”. (Mészáros, 1981, p. 210)
IX), nem foi citado.
As elaborações teóricas do “jovem Marx”
Posteriormente, em O capital, Marx teria, então,
foram nada mais do que seu ponto de partida.
elaborado um sistema livre do conceito de alie-
O próprio Marx deixou claro que as escreveu
nação, que só apareceria “despido de conotações
sem uma conclusão prévia em mente. Sendo
especulativas e em raras passagens” e, sobre-
obras incompletas, no sentido de não apre-
tudo, representado por sua “versão concretiza-
sentarem um sistema econômico-filosófico
da”: o fetichismo. (Gorender, 1982, p. XXVI) As
concluído, não devem ser analisadas separada-
relações sociais de produção e suas mistificações
mente. Deve-se buscar o entendimento de seus

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primeiros manuscritos dentro da totalidade da se patenteia força social […]; mas, patenteia-se
obra de Marx. força social alienada, autônoma, que enfrenta a
sociedade como coisa e como poder do capitalis-
Antes de entrar para o campo da economia
ta por meio dessa coisa”. (Marx, 1983, p. 303)
política, Marx era um filósofo, e era com os
problemas da filosofia que se preocupava. Na O fenômeno da alienação do trabalho está
tentativa de romper com Hegel, nos Manuscritos intensamente presente n’O capital, inclusive na
de 1844, Marx descobriu a chave para a devida forma do fetichismo, que consiste em atribuir
compreensão de todas as formas de alienação: a um significado maior do que o objeto realmen-
alienação do trabalho. Dessa forma, o interesse te possui, e sem ter motivos aparentes para tal
de Marx pela economia política provém de tal atribuição, vincula-se a explicações místicas
identificação. “Portanto”, afirma Mészáros: e sobrenaturais. Quando Marx afirma, por
não é verdade que, quando Marx passou a exemplo, que a mercadoria é um fetiche, ele lhe
interessar-se pelos problemas da economia políti- atribui um misticismo que não lhe pertence, um
ca, ele voltou as costas ao conceito da alienação: misticismo que parece ser derivado da própria
ocorreu exatamente o contrário. Tão logo ele natureza da mercadoria, mas que, na realidade,
compreendeu que a alienação econômica era o é derivado direto da mente humana, ou para ser
elo comum de todas as formas de alienação e
mais específico, de uma forma de organização
desumanização, foi-lhe impossível não adotar o
social. Logo, o fetichismo, um aspecto da alie-
conceito, com base nesse denominador comum
estrutural, como o centro de referência de toda a nação, não passa da autonomização de alguma
sua concepção. (ibidem, p. 211) característica do indivíduo alienado.

Marx não teria abandonado o conceito de aliena- Levando em consideração o que foi exposto, nos
ção, nem quando identificou, mais tarde, a vali- parece apropriado analisar a alienação do traba-
dade da teoria do valor-trabalho. Na obra “Marx: lho como elemento central do sistema marxista.
a teoria da alienação”, István Mészáros levantou Todavia, não vemos motivo para crer que este
uma série de trechos de diversas obras pós- conceito, tal como foi desenvolvido nos Manus-
-manuscritos de Marx em que o termo alienação critos de Paris, tenha permanecido intacto du-
não só se fazia presente (na forma predicativa rante toda a evolução do pensamento de Marx.
da palavra alemã Entfremdung), como também A análise que Marx elaborou nos Manuscritos de
apresentava grande relevância na argumenta- 1844, por mais que tenha se aprofundado para
ção marxista. (ibidem, pp. 201-205) Destaco esta além do que os economistas políticos de sua
citação d’O capital: “[…] O capital cada vez mais época, trata dos fenômenos sociais em um nível

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tanto quanto superficial da realidade. À medida fundamento econômico, já que são as condições
que Marx alcançava uma elaboração mais próxi- materiais de vida, frutos da produção material,
ma da essência dos fenômenos sociais, surgiam que determinam a consciência humana. Lan-
novos conceitos que implicavam uma modifica- çamos mão da argumentação de Laymert dos
ção de seus escritos anteriores. Santos para explicar esta relação:

Esta evolução dialética do pensamento de Marx Ocorre que os homens pensam e, como seres
não pode ser negada. Afinal, como podem os pensantes, representam para si mesmos e para
os outros o que fazem. Essas representações, esse
Manuscritos de 1844 serem completamente com-
pensamento, são uma emanação direta de como
patíveis com, por exemplo, a teoria do valor-tra-
se comportam. Então os homens produzem e
balho, sendo que, naquele, esta não era aceita? O pensam, produzem materialmente e produzem
fato de Marx ter lançado nos Manuscritos a base representações, ideias, sobre a sua produção ma-
para toda a sua teoria não elimina a evolução de terial. Representações e ideias que também são
seu pensamento. condicionadas pelas mesmas condições materiais
de produção. Essas representações, essas ideias,
Partindo de tais concepções, apontamos para
formam a consciência; uma consciência que é
uma necessidade de atualização do conceito de determinada pela produção, que vem se sobrepor
alienação do trabalho da forma como foi apre- a ela […]. (Santos, 1982, p. 47)
sentado nos Manuscritos para o modo que foi
Uma vez que a consciência é derivada direta da
utilizado n’O capital.
realidade material, é exatamente no momento
1.1. Alienação do trabalho revisitada em que ela se desprende dessa realidade que a
alienação se torna potencial, o que ocorre com o
A alienação é, em suma, um processo de estra-
surgimento da divisão social do trabalho. Isso
nhamento e de escravização.4 Neste processo, o
significa dizer que com a divisão social do tra-
ser humano objetiva parte de si e passa a vê-la
balho, a consciência do homem deixa de se rela-
como um objeto autônomo, com vontades pró-
cionar diretamente com aquilo que a originou.
prias. Assim, o homem perde o controle de algo
que faz parte dele, e passa a ser controlado por Vejamos: enquanto a produtividade da socieda-
esse algo, agora estranho a ele. de humana se encontra em tal nível que uma
pessoa não seja capaz de produzir além do
O que, a princípio, passaria por um mero proble-
suficiente para a própria subsistência, todos os
ma de consciência, por se tratar da forma como
indivíduos precisam inevitavelmente se envolver
o homem se relaciona com parte de si mesmo,
no processo de produção material da sociedade,
deve ser compreendido como um problema de

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de modo que qualquer forma de consciência por Na realidade, a alienação é determinada pelas
eles desenvolvida esteja ligada necessariamente condições materiais de produção, que, adequada
com o processo de produção material da qual se a um modelo de divisão do trabalho, permite a
origina. separação entre consciência e produção material.
Dentro desta perspectiva, para superar a alie-
O aumento de produtividade, proporcionado
nação seria necessário restabelecer esta relação
seja pelo desenvolvimento social e tecnológi-
entre consciência e produção material, pois só
co, ou por uma primitiva divisão natural do
assim o indivíduo poderia pensar em teologia,
trabalho, permite que alguns indivíduos se
filosofia, moral etc. em acordo com as suas con-
desvinculem da produção material, garantindo
dições materiais, ou seja, em acordo com a sua
a sua subsistência a partir de alguma forma
própria realidade.
de apropriação da produção alheia.5 A divisão
social do trabalho consolida-se no instante em No capitalismo, as condições materiais de
que um grupo de trabalhadores, desvinculado produção permitem a separação da sociedade
da produção material, passa a se dedicar a uma em trabalhadores (expropriados dos meios de
produção puramente intelectual. Essa separação produção) e capitalistas (proprietários destes
entre trabalho prático e teórico permite que o meios de produção). Uma vez afastados dos
pensamento intelectual se torne autônomo, sem meios de produção, os trabalhadores são impeli-
ligação necessária com a realidade material. dos ao mercado de trabalho, onde garantirão seu
Como afirmam Marx e Engels: sustento.
A partir desse momento, a consciência pode A fim de que a classe trabalhadora mantenha-se
realmente imaginar ser outra coisa diferente da sempre dentro do processo produtivo, é necessá-
consciência da práxis existente, representar algo
rio que ela esteja sempre em busca de garantir
realmente sem representar algo real – a partir
seu sustento, o que significa que ela deve ser re-
de então, a consciência está em condições de
emancipar-se do mundo e lançar-se à construção munerada no limite do mínimo necessário para
da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. adquirir seus meios de subsistência no mercado.
“puras”. (Marx & Engels, 2007, p. 35) Mas, enquanto os trabalhadores não se encon-
trarem livres de suas necessidades materiais,
Essa separação entre consciência e realidade,
eles não serão capazes de participar da produção
entre teoria e prática, marca o surgimento da
intelectual, de forma que não serão capazes de
alienação. Vale ressaltar que a divisão social
resolver a alienação de que sofrem perante o
do trabalho encerra o germe da alienação, mas
próprio trabalho (comungando consciência com
não implica esta como consequência necessária.

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produção material), e nem de superar, portanto, ordem de exposição apresentada por Marx, visto
as demais formas de alienação das quais são que agora partimos de uma concepção teórica
vítimas (política, religiosa etc.). diferente. Em suas digressões sobre a alienação
do trabalho nos Manuscritos, Marx começou
Da mesma forma, o capitalista, não-produtor,
com o seguinte parágrafo:
por mais que esteja livre para realizar plenamen-
te suas capacidades intelectuais, enquanto tais O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto
capacidades permanecerem separadas do proces- mais riqueza produz, quanto mais sua produção
aumenta em poder e extensão. O trabalhador
so de produção material, não será ele capaz de
torna-se uma mercadoria tanto mais barata,
pensar de acordo com a sua realidade material,
quanto maior número de bens produz. Com a
e da mesma forma permanecerá alienado em valorização do mundo das coisas aumenta em
todos os sentidos. proporção direta a desvalorização do mundo dos
Por esse motivo, a alienação do trabalho, a sepa- homens. O trabalho não produz apenas mercado-
rias; produz-se também a si mesmo e ao traba-
ração entre consciência e prática, determinada
lhador como uma mercadoria, e justamente na
pelas condições materiais de produção do perí-
mesma proporção com que produz bens. (Marx,
odo atual, é o conceito-chave para a resolução 1989, p. 159 [grifos nossos])
de todas as outras formas de alienação dentro
Com o foco na propriedade privada, Marx vai
do pensamento marxista.6 Nos Manuscritos
desenvolver a categoria de alienação a partir da
econômico-filosóficos, Marx desenvolve os quatro
expropriação do produto do trabalho humano.
aspectos que a alienação do trabalho apresenta
Todavia, acreditamos que, se tivesse elaborado
no capitalismo: alienação da natureza; alienação
tal análise n’O Capital, ele tê-la-ia concebido a
do indivíduo; alienação da condição humana; e
partir da transformação do trabalhador em mer-
alienação das relações sociais.
cadoria, ou seja, a partir da alienação mercantil
Como dito anteriormente, não acreditamos da força de trabalho.
que a adoção do valor-trabalho tenha invalida-
do qualquer um destes aspectos, mas isso não 1.1.1. Alienação do indivíduo
significa que eles tenham sobrevivido incólumes Esse processo de transformação do trabalha-
do aprofundamento do pensamento marxiano. dor em mercadoria só é possível devido a duas
Faremos uma atualização dos aspectos apre- premissas: primeiro, o trabalhador tem que
sentados nos Manuscritos de Paris a partir de ser proprietário livre de sua força de trabalho;
elementos presentes n’O capital. segundo, o trabalhador não pode ser capaz de
Antes, porém, sugerimos uma inversão da satisfazer as suas próprias necessidades através

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do seu próprio trabalho, ou da venda do produ- quando sai do trabalho. Por isso, o trabalhador
to do seu trabalho. (Marx, 1985a, pp. 187-188) A rejeita o trabalho, já que “o trabalho externo, o
segunda premissa é garantida com a separação trabalho em que o homem se aliena, é um traba-
entre os trabalhadores e a propriedade dos meios lho de sacrifício de si mesmo, de mortificação”.
de produção, enquanto a primeira é garantida (Marx, 1989, p. 162) Para o trabalhador, o traba-
pelas instituições liberais do capitalismo. É as- lho passa a ser momento de tortura, momento
sim que a condição material da classe trabalha- de negação de si, um processo de desrealização
dora a impele a vender sua única posse: a força do próprio trabalhador.
de trabalho.
Além disso, as condições materiais com as quais
Dessa maneira, o trabalhador é reduzido a uma o trabalhador realiza o trabalho não são por ele
7
mera mercadoria, uma objetivação autônoma de escolhidas, mas lhe são impostas pelo capita-
si mesmo, um ser sem identidade, igual a todos lista. Sendo assim, com o intuito de alcançar o
os outros. Essa é a forma como o capitalista, máximo de produtividade, o trabalhador é posto
proprietário dos meios de produção que compra a trabalhar com máquinas automatizadas, as
sua força de trabalho, o vê. Quando realizam tal quais são a cristalização de um trabalho anterior
transação, o trabalhador dispõe de seus mús- – ou trabalho morto – e além de afastarem ainda
culos e cérebro para que o capitalista os use mais a consciência do trabalhador do processo
da forma como entender por um determinado de produção, podam qualquer participação ativa
período de tempo. dele dentro deste processo. Como refletia Marx:

Durante esse tempo, o trabalhador deixa de per- Em nenhum sentido a máquina aparece como
tencer a si mesmo e passa a pertencer ao capita- meio de trabalho do trabalhador individual. A
sua differentia specifica não é de forma alguma,
lista. O trabalhador sai de seu corpo, se desliga,
como no meio de trabalho, a de mediar a ativi-
fica ausente, sente as cordas que amarram seus
dade do trabalhador sobre o objeto; ao contrá-
membros de forma que possa ser manipulado rio, esta atividade é posta de tal modo que tão
como uma marionete. O trabalhador não pensa, somente medeia o trabalho da máquina, a sua
não sente, apenas faz. ação sobre a matéria-prima – supervisionando-a
e mantendo-a livre de falhas […]. A atividade do
O trabalhador não se reconhece no processo de
trabalhador, limitada a uma mera abstração da
produção porque não se pertence durante o
atividade, é determinada e regulada em todos os
processo. Ele deixa de existir enquanto indiví- aspectos pelo movimento da maquinaria, e não o
duo quando trabalha, e passa a existir somente inverso. (Marx, 2011, p. 580)

22
O trabalhador, que objetivou sua força de tra- expresse sua vontade perante o ambiente que o
balho, não é capaz de reconhecer a sua própria cerca, perante o mundo dos sentidos. Mas o ho-
participação no processo de produção, que agora mem não só expressa, como se impõe e domina
o domina em nome do capitalista. O trabalhador a matéria sobre a qual age – em outras palavras,
está alienado de si e do processo produtivo. Essa através da produção material o ser humano
separação entre trabalhador e processo de produ- domina a natureza. Em suma, o homem modifi-
ção é o primeiro aspecto da alienação do trabalho ca o ambiente ao seu redor através do trabalho,8
no capitalismo: a alienação do indivíduo. que se concretiza no produto.

Quando escreveu os Manuscritos de 1844, Marx O produto do trabalho humano é a cristaliza-


não tinha claro que a exploração no capitalismo ção da própria vontade humana, é a expressão
se dá pela justa relação mercantil de compra pura do que o homem representa, é o reflexo
e venda de força de trabalho. Mesmo assim, do homem no mundo, é o que liga o homem de
o autor identificou este aspecto da alienação, hoje com seu passado e seu futuro. O produto do
em que o homem se desvincula de si mesmo ao trabalho é a prova concreta da relação homem-
estranhar o processo produtivo, mas deduzia tal -natureza, visto que resulta diretamente da
ocorrência da separação entre o trabalhador e seu realização desta relação. Ele faz parte do homem
produto, ou seja, da alienação da coisa, ou como da forma como a natureza também o faz.
preferimos chamar, da alienação da natureza.
Quando o trabalhador vende sua força de traba-
lho, seu produto deixa de expressar sua vontade.
1.1.2. Alienação da natureza
O trabalhador perde não só o direito sobre seu
Quando o trabalhador vende a sua força de
produto, como também perde a sua relação
trabalho, a única mercadoria de que dispõe, ele
com o produto. E uma vez que não é capaz de
abre mão de seu produto antes mesmo de produ-
se relacionar com o produto, meio pelo qual o
zi-lo, pois vende a sua participação no processo
homem interage com o ambiente, o trabalhador
de produção. Essa cisão entre o trabalhador e
é castrado de suas relações com a natureza. A
seu produto causa muito mais do que o simples
alienação da coisa, que separa o trabalhador de
empobrecimento do trabalhador.
seu produto, é a própria cisão entre o homem e a
Como já foi dito anteriormente, o ser do ho- natureza, entre o homem e o mundo que o cerca.
mem é moldado pelas suas condições materiais.
O produto desse trabalho alienado, a mercado-
E, através do processo de produção, o homem
ria, já não mais representa a supremacia huma-
modifica essas condições, permitindo que ele
na. O que ocorre é o inverso: ela não representa

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mais nada para o trabalhador que não a própria fruto de relações de produção alienadas, e passa
mercadoria. O processo de alienação do produtor a ser carregada de ideologia. A mercadoria passa
é o processo de emancipação da mercadoria. A a ser, ela mesma, um foco de alienação.
mercadoria torna-se um ser autônomo, com exis-
1.1.3. Alienação da condição humana
tência própria e estranha ao trabalhador.9
Assim que o trabalhador torna-se escravo da
A mercadoria domina o trabalhador. Incapaz de
mercadoria, assim que a realização de seus dese-
se relacionar diretamente com o mundo, o traba-
jos resume-se ao consumo de mercadorias, o ser
lhador pode se relacionar apenas com a merca-
humano afasta-se daquilo que Marx considera
doria e através desse relacionamento, ou seja,
como condição humana.
através do consumo das mercadorias, o trabalha-
dor busca satisfazer suas necessidades, busca se Para Marx, um dos principais aspectos que
relacionar com o ambiente à sua volta. É desse diferenciam o ser humano dos animais é fato de
fenômeno de dominação pela mercadoria que os o ser humano pensar em si como um ser gené-
outros dois aspectos da alienação do trabalho, que rico, ou seja, como um elemento pertencente à
serão tratados adiante, derivam. espécie humana. Sendo essa consciência genérica
que diferencia os homens dos animais, a natu-
Com a atualização do conceito de valor-trabalho,
reza do homem seria a própria realização dessa
a alienação da natureza é derivada direta da
consciência.
alienação do indivíduo. A propriedade privada
expropria não o produto do trabalho humano, Marx acreditava que o homem só poderia viver
mas a própria força de trabalho. Afinal, dizer e agir conforme sua natureza se agisse de forma
que a alienação do trabalho deriva da separação deliberada e consciente como um “ser genérico”,
entre trabalhador e produto significa condenar a isto é, como um ser social. (Marx, 1989, p. 45,
divisão social do trabalho como foco gerador ne- nota 19) Como já vimos, a ação do trabalhador
cessário de alienação. Em consequência, estaria na esfera pública, a esfera onde o ser humano
condenando a vida social do homem, uma vez relaciona-se com o mundo à sua volta10 – a esfe-
que a divisão social do trabalho, ao mesmo tem- ra da produção –, está longe de ser algo volun-
po em que permite o surgimento da alienação, tário no capitalismo. O trabalhador só entra no
obriga os homens a manterem relações sociais de processo produtivo porque é obrigado a vender
produção. sua força de trabalho, e vê neste processo apenas
o meio de garantir os recursos necessários para
Além disso, a mercadoria ganhou mais espaço
a sua subsistência.
na teoria marxista. Ela deixa de ser um mero

24
A atividade produtiva passa a ser apenas um de trabalho e da mercadoria, mais próximo da
meio do trabalhador garantir a sua existência natureza humana? Este modo de produção, que
física. Ele abre mão da sua participação na cons- aliena os trabalhadores, não faz menos com os
trução material da sociedade e passa a exercê- não-trabalhadores, afinal, “tudo que aparece
-la simplesmente pela vontade de outro. A vida no trabalhador como atividade de alienação se
genérica, realização da natureza humana, passa manifesta no não-trabalhador como condição de
a ser apenas um meio para a vida individual. O alienação”. (ibidem, p. 171).
trabalhador busca sua realização enquanto ser
1.1.4. Alienação das relações sociais
não na esfera pública da produção, mas na esfe-
ra privada individual do consumo. “Na medida Por fim, à medida que o trabalho alienado afasta
em que o trabalho alienado subtrai ao homem o o ser humano de sua vida genérica, de seu ser
objeto da sua produção, furta-lhe igualmente a social, ele afasta o homem de sua relação com o
sua vida genérica, a sua objetividade real como próprio homem. (ibidem, p. 166) O ser humano
ser genérico”. (ibidem, pp. 164-166) não é capaz de compreender as relações sociais
por trás do processo de produção de mercado-
Graças ao seu trabalho alienado, o trabalhador
rias. Para ele, tais relações são estranhas, obscu-
estranha a sua própria natureza, a sua própria
ras ou até inexistentes.
condição humana. O ser universal é agora algo
fora do homem. Objetivada pelo processo de Como os trabalhadores estão podados de suas
produção, a vida genérica deixa de pertencer ao relações com o mundo exterior, eles consequen-
trabalhador. Vai para longe dele, junto com seu temente estão podados de suas relações com os
produto e com a atividade de produção, pois a outros trabalhadores. Dessa forma, dominados
vende junto com sua força de trabalho. pela mercadoria, apenas com ela podem se
relacionar.
O trabalhador despojado torna-se mais uma vez
um escravo. Desta vez, ele é dominado pelas suas Para o indivíduo de uma sociedade capitalista,
próprias necessidades materiais. Afinal, é em be- as relações sociais de produção, que são relações
nefício das suas necessidades materiais, da sua entre pessoas, são transformadas em relações en-
realização como ser individual, que o homem tre coisas, relações entre meras mercadorias. Isto
aliena sua própria natureza. ocorre devido ao fato de as mercadorias encerra-
rem nelas mesmas um mistério, um fetiche.
Uma vez que o trabalhador se encontra afastado
da condição humana, estaria então o capitalista, A mercadoria é misteriosa simplesmente por
proprietário dos meios de produção, da força encobrir as características sociais do próprio

Revista da sociedade brasileira de economia política 25


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trabalho dos homens, apresentando-as como A igualdade dos trabalhos humanos fica dis-
características materiais e propriedades sociais farçada sob a forma da igualdade dos produtos
inerentes aos produtos do trabalho. […] Através do trabalho como valores; a medida, por meio
dessa dissimulação, os produtos do trabalho se de duração, do dispêndio da força humana de
tornam mercadorias, coisas sociais, com proprie- trabalho toma a forma de quantidade de valor
dades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. dos produtos do trabalho; finalmente, as relações
(Marx, 1985a, p. 81) entre produtores, nas quais se afirma o caráter
social dos seus trabalhos, assumem a forma de
Como poderiam, todavia, duas mercadorias,
relação social entre os produtos do trabalho.
seres inanimados, não só se relacionarem, como (ibidem, p. 80)
também ofuscarem uma relação social real?
O fetichismo da mercadoria, que é a base das
Se a mercadoria é o fruto material do trabalho
relações sociais capitalistas, não é nada mais
humano, logo objeto puramente material, como
do que o poder, transferido pela sociedade, que
poderia possuir uma característica que, apesar
as mercadorias possuem de igualar todas as
de inerente, é contrária à sua própria natureza
formas de trabalho humano em um quantum de
material? A resposta é simples: as mercadorias
trabalho abstrato e, assim, de reificar as relações
possuem tal poder por serem frutos do trabalho
humanas.
alienado.
Quando esta transferência ocorre, o trabalhador
Na mente dos seres humanos, essas mercado-
perde a capacidade de reconhecer a igualdade do
rias são objetos autônomos, com uma realidade
trabalho abstrato humano, enxergando-o apenas
própria e distinta do homem. Mas, na realidade,
em sua forma de trabalho concreto. Assim, o
elas são parte do próprio ser humano, são a pró-
metalúrgico, por exemplo, não consegue ver se-
pria materialização da interação do homem com
melhança entre o trabalho que realiza e o traba-
o ambiente que o cerca. Quando o trabalhador
lho realizado pelo pedreiro, ou pelo engenheiro,
passa a estranhar o próprio produto, ele torna
ou por qualquer outro que não metalúrgico. Os
autônomas suas propriedades sociais presentes
trabalhadores não conseguem perceber a essência
na mercadoria. Como o homem não reconhece o
do trabalho humano que os iguala.
fruto do próprio trabalho como sendo parte dele
– e, portanto, também não reconhece o trabalho Apenas as mercadorias podem fazer esta comu-
do outro na mercadoria do outro –, ele não é nicação entre os homens. Apenas as mercadorias
capaz de reconhecer as relações sociais por trás podem fazer diferentes pessoas dentro da socie-
das trocas. dade capitalista se relacionar. E ainda assim, o
fazem na forma de relações entre mercadorias.

26
A alienação das relações sociais ganhou mais humanização das relações sociais, e, neste pro-
profundidade com o desenvolvimento da teoria cesso, as condições materiais de vida deverão ser
de Marx. Apesar de ser a forma menos desen- modificadas para que possam reproduzir essa
volvida nos Manuscritos econômico-filosóficos, ela condição de trabalho emancipado, i.e., para que
se faz presente por trás de quase todo O capital. o produto do trabalho reflita as relações deriva-
A teoria do valor de Marx alcançou elementos das do processo produtivo.
fundamentais para a adequada compreensão
De acordo com a concepção do materialismo
desse aspecto da alienação – como, por exemplo,
histórico de Marx, o capitalismo, enquanto
o trabalho abstrato e o fetichismo da mercado-
modo de produção historicamente localizado,
ria. Nos Manuscritos, Marx buscou partir do que
chegará necessariamente a um fim. Porém, nada
chamou de “fatos econômicos contemporâneos”,
se pode concluir sobre que sistema irá sucedê-
e podemos perceber que se manteve fiel aos
-lo. A mobilização da classe trabalhadora será
fatos como os observou naquele período. Acre-
decisiva para a superação do capitalismo, visto
ditamos que as mudanças em suas conclusões
que o movimento histórico é determinado pela
deveram-se exclusivamente ao aprofundamento
luta de classes.
de suas pesquisas, sem apresentar uma ruptura
A questão fundamental é que, sendo a alienação
de sua posição político-filosófica.
um conceito sócio-histórico, a sua superação
1.2. A emancipação do trabalho também deve ser. Disso decorre primeiramente
que a transcendência da alienação deve compre-
Tendo claro o conceito de alienação do traba-
ender um desenvolvimento histórico necessário,
lho, devemos nos aprofundar no debate sobre
que se dará a partir das instituições e condições
as formas de sua superação, ou seja, da eman-
materiais capitalistas. Essa transformação social
cipação do trabalho. Se as divergências sobre o
deve consistir em um movimento de superação
tema anterior já são muitas, o debate sobre sua
dialética da alienação, em que ocorra tanto
superação é ainda mais complexo.
a supressão de seus determinantes, quanto a
Em suas obras, Karl Marx coloca, de forma
preservação e superação de alguns elementos
categórica, que o homem só se tornará comple-
fundamentais para sua transcendência. E como
to, ou seja, livre dos fenômenos da alienação,
um processo histórico, ela não poderá nunca
no comunismo, pois “nele o homem será capaz
ser considerada definitiva, visto que, como
de se reconciliar consigo mesmo, com o gênero
fenômeno histórico, sempre será passível de
humano e com a natureza”. (Santos, 1982, p.
modificação.
41) O comunismo é o resultado do processo de

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Partindo daí, a emancipação do trabalho na A produção não será, então, regida pela acumu-
teoria marxista pode ser “[…] entendida como lação. Os produtos – que no capitalismo são pro-
uma sucessão de conquistas sociais, das quais duzidos para serem trocados, e não para serem
a última é a menos (na verdade, qualitativa- consumidos – terão suas quantidades e qualida-
mente menos) impregnada de alienação do que des definidas conforme os anseios da coletivida-
a precedente” (Mészáros, 1981, p. 225); levando, de no que tange à manutenção e reprodução de
através de uma tendência emancipadora, a uma um modo de vida.
transformação nas condições de trabalho e vida
Como a circulação das mercadorias está intrin-
dos indivíduos, de forma que elas apresentem
sicamente relacionada com a forma como elas
relações transparentes e racionais com outros
são produzidas, alterando-se esta última, aquela
indivíduos e com a natureza (Santos, 1982, p.82),
também será alterada. Os instrumentos de trocas
de forma que se reduzam as possibilidades de
deverão ser, portanto, modificados. A mercado-
ressurgimento da alienação do trabalho.
ria – produto do trabalho humano dotado de
Dentro destes termos, resta estabelecer os passos utilidade e cuja troca (processo redutor de tra-
necessários para uma devida superação da balho concreto em abstrato) é o meio pelo qual
alienação do trabalho. O primeiro passo é iden- seus produtores se relacionam – deve ser extinta.
tificar o trabalho emancipado como o trabalho Em seu lugar deverão surgir mecanismos de
não-alienado, ou seja, aquele em que o trabalha- troca transparentes que evidenciem as relações
dor (enquanto classe) domine tanto o processo sociais de produção e que impeçam a reprodu-
produtivo quanto o fruto de seu trabalho e per- ção das contradições imanentes ao capitalismo.
ceba as relações sociais e naturais representadas
O trabalho, então, poderá ser encarado como
no processo de produção.
forma de realização do indivíduo. Tal postura
Para isso, em primeiro lugar, os trabalhadores perante o trabalho é contrária à presente na
enquanto classe devem ser os proprietários dos sociedade capitalista, em que o indivíduo busca
11
meios sociais de produção. Além de poderem se satisfazer através do não-trabalho, do ócio.
exercer o trabalho de forma livre, eles poderão Isso implica uma modificação cultural que deve
subordinar o processo produtivo aos seus inte- passar pelos mecanismos de disseminação da
resses, acabando com o trabalho degradante e cultura e da educação.
dominador. Dominando o processo de produção,
Em suma, a fim de emancipar o trabalho, de-
darão um passo essencial para a reconciliação
verão ser modificadas, em um desenvolvimento
entre a consciência e a prática de transformação
histórico consciente, as condições materiais de
do concreto.
28
vida dos indivíduos, causando impactos diretos capitalismo. O que daria ao cooperativismo
na consciência humana. esta característica revolucionária seria o fato de
que, enquanto uma empresa capitalista é uma
associação de proprietários (não-trabalhadores)
2. A utopia cooperativista
dos meios de produção que tem como objetivo a
Colocar em prática o plano de emancipação do
geração de lucro, uma cooperativa é uma asso-
trabalho é uma tarefa árdua do movimento dos
ciação de produtores (e ao mesmo tempo pro-
trabalhadores. Árdua não só devido à brutali-
prietários dos meios de produção) superando de
dade dos conflitos de classe, mas também pela
forma positiva, ainda que limitada, a oposição
dificuldade de encontrarem alternativas sólidas
entre capital e trabalho.
e consistentes com o processo de superação da
alienação. Dessa forma, para alguns autores de influências
marxistas, essas associações livres de traba-
Muitas são as frentes em que os trabalhadores se
lhadores poderiam ser consideradas implantes
organizam para enfrentar o capital: a luta sindi-
socialistas no sistema capitalista, visto que “na
cal, político-partidária, revolucionária etc. O co-
medida em que os resultados econômicos das co-
operativismo, movimento de trabalhadores que
operativas (os ‘lucros’, se houver) são distribuídos
se associam a fim de se tornarem proprietários
entre os sócios-trabalhadores, desaparece a mais-
de seus próprios meios de produção, consiste em
-valia, a exploração”. (Borges Neto, 2003, p. 104)
uma importante e crescente frente de enfren-
tamento. Quanto mais agudas são as crises do Contudo, acreditamos que a ânsia por encontrar
capital, maior o número de trabalhadores que uma forma de superação do capitalismo colabo-
ingressam no movimento por meio da forma- ra para embaçar a análise sobre a existência de
ção de novas cooperativas de produção. Dentre exploração no cooperativismo. Os apologistas do
estes estão os funcionários de empresas falidas cooperativismo muitas vezes não veem que nas
que lutam para não perderem seus empregos, cooperativas “são os trabalhadores como associa-
assim como os desempregados ou trabalhadores dos os capitalistas deles mesmos, isto é, aplicam
do setor informal que buscam alternativas para os meios de produção para explorar o próprio
contornar sua atual situação. trabalho”. (Marx, 1985b, p. 509)

Além de representar uma alternativa ao desem- A exploração do trabalho nas cooperativas ainda
prego e às precárias condições de trabalho, um é uma realidade. Uma vez inseridas em um
dos objetivos relacionados ao cooperativismo contexto capitalista, não são necessariamente
é o de apresentar uma alternativa ao próprio os trabalhadores associados que absorvem a

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mais-valia produzida. Neste sentido, o que ocor- exploração do trabalho,12 uma vez que estes
re nas cooperativas pode ser entendido como a não dizem respeito apenas ao funcionamento
autoexploração do trabalho, situação em que os interno da empresa, mas a todo o sistema de
próprios trabalhadores são responsáveis por ex- produção e circulação de mercadorias. Para isso,
trair a mais-valia de seus trabalhos para que seja é preciso buscar de forma consciente a trans-
apropriada pela classe capitalista como um todo. formação dos meios materiais, para que expres-
A raiz desse fenômeno está na distinção entre sem uma nova forma de interação social, sem
geração e apropriação de mais-valia, ou seja, no exploração.
fato de que a mais-valia gerada em determinada O que dizer, então, da possibilidade dessa forma
indústria possa ser apropriada por capitalistas de organização de se apresentar como um meio
ou rentistas de outros setores. Para citar duas para a superação da alienação do trabalho nos
formas de apropriação de mais-valia: há, por termos que delineamos na sessão precedente?
exemplo, a transferência resultante do pagamen- Em primeiro lugar, devemos evidenciar os
to de juros, renda fundiária, impostos etc.; além, avanços que o cooperativismo representa nesse
também, da transferência de valor resultante da caminho.
transformação dos valores em preços de pro-
Há, nas cooperativas, um reencontro entre a
dução – que faz com que parte da mais-valia
classe dos expropriados com os meios de produ-
gerada nas indústrias mais intensivas em capital
ção. Como ressaltamos anteriormente, a base da
variável seja direcionada para as indústrias mais
alienação do trabalho no capitalismo nasce da
intensivas em capital constante.
criação de uma classe de trabalhadores despos-
Assim, nas cooperativas, os trabalhadores não só suídos. Uma vez não possuindo nada além da
continuam sendo explorados, uma vez que po- própria força de trabalho, é esta que eles devem
dem se apropriar apenas da parte da mais-valia vender para garantirem a sua sobrevivência. O
direcionada ao capital industrial, como também cooperativismo apresenta-se como uma solução
podem vir a se apropriar da mais-valia produzi- para este impasse para muitos trabalhadores, so-
da nas empresas capitalistas tradicionais, como bretudo nos momentos de crise em que eles são
seria o caso de cooperativas intensas em capital rejeitados pelo capital e enviados para ampliar o
fixo. exército industrial de reserva.
Portanto, desde que inseridas no modelo de acu- Além disso, a propriedade dos meios de produ-
mulação capitalista, as cooperativas não serão ção não “liberta” os cooperados da necessidade
capazes de romper com os mecanismos de do trabalho (como ocorre no caso do capitalista

30
que, por isso mesmo, se aliena). Esses proprietá- tornam-se mais próximos do próprio processo
rios dos meios de produção precisam trabalhar produtivo, e com isso, aproximam-se de si mes-
nas cooperativas das quais fazem parte e, para mos enquanto indivíduos envolvidos no pro-
isso, organizam-se na forma da autogestão. cesso produtivo. E ainda, são os associados em
conjunto que decidirão sobre a forma em que
A autogestão permite a convergência entre pro-
devem ser distribuídos os produtos e as receitas
priedade, gestão e execução. Em uma empresa
do empreendimento, permitindo que estes rom-
capitalista comum, cabe aos proprietários dos
pam com a própria lógica do valor ao decidirem
meios de produção (por exemplo, os acionistas
por formas alternativas de distribuição.15
majoritários) decidirem sobre os objetivos do
empreendimento, as linhas estratégicas gerais Não obstante, também é preciso reconhecer
e outras decisões de longo prazo, enquanto os limites que a expansão do cooperativismo
cabe a um corpo de funcionários especializados dentro do capitalismo enfrenta no sentido de
a gestão propriamente dita – otimização dos estabelecer a emancipação do trabalho humano.
recursos, tendo em vista os objetivos definidos, Um primeiro ponto que deve ser levantado diz
e algumas decisões de curto alcance tomadas no respeito ao domínio do processo produtivo por
dia-a-dia –, cabendo aos trabalhadores apenas a parte dos trabalhadores. Por mais que a autoges-
13
execução da atividade produtiva. Nas coopera- tão permita o controle da produção no interior
tivas de produção, essa divisão não ocorre, pois da cooperativa, ela não direciona esforços para
os associados são ao mesmo tempo proprietá- inverter a desumanização do modo de produção
rios, gestores e trabalhadores. capitalista,16 ou seja, as cooperativas não buscam
criar um modo de produção condizente com sua
Essa comunhão permite que a unidade entre
natureza, o que as impedem de prosseguir com
consciência e produção material seja restabeleci-
um plano efetivo de emancipação do trabalho.
da. A partir do momento em que quem toma as
Pelo contrário, a fim de competirem com empre-
decisões são os mesmos indivíduos envolvidos
sas capitalistas, as cooperativas reproduzem o
no processo de produção material, as decisões
mesmo modelo produtivo e as mesmas estraté-
passam a ser tomadas tendo em vista a realiza-
gias de redução de custos, que apenas favorecem
ção do trabalho.
a exploração e a alienação do trabalho.
Os indivíduos são capazes, assim, de identificar
Isso significa que não só a divisão do trabalho é
seu papel ativo na construção da cooperativa,
similar, como que os instrumentos de trabalho
pois veem que a adequação desta às suas von-
utilizados são os mesmos. Como ressaltamos na
tades depende apenas deles.14 Os trabalhadores

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sessão anterior, os instrumentos de trabalho do geral provisório da Associação Internacional dos
modo capitalista de produção são instrumentos Trabalhadores, em 1866:
que tentam reduzir ao máximo o valor da força Restricted, however, to the dwarfish forms into
de trabalho, transformando o produtor em um which individual wages slaves can elaborate it
instrumento da máquina. by their private efforts, the co-operative system
will never transform capitalist society. To con-
É assim também que a terceirização e outras for-
vert social production into one large and har-
mas de utilização de trabalho de não-associados monious system of free and co-operative labour,
são inseridos nas cooperativas. Ao utilizar este general social changes are wanted, changes of the
tipo de recurso, além de promoverem a explora- general conditions of society, never to be realized
ção da força de trabalho, as cooperativas abrem save by the transfer of the organized forces of
mão, deliberadamente, de parte do processo society, viz., the state power, from capitalists and
produtivo, que passa a ser de responsabilidade landlords to the producers themselves. (Marx &
Engels, 1985, p. 190 [grifos nossos])
de agentes externos (sejam empregados ou em-
presas terceirizadas). Claro que as cooperativas podem exercer um
papel importante com relação à ampliação da
Se a partir do momento que as cooperativas
consciência individual no que tange à necessida-
deixam de assumir um papel ativo na modi-
de de subjugar o processo produtivo à vontade
ficação das condições materiais de produção,
da coletividade. Mas sem um esforço coordena-
elas estagnam no processo de emancipação do
do no sentido de dominar o poder estatal e, com
trabalho, quando adotam trabalho terceirizado
isso, o comando sobre a produção coletivizada,
ou contratam mão-de-obra não cooperativada,
a expansão das cooperativas no seio do capi-
elas invertem este processo, tornando-se algo
talismo não será suficiente para provocar tal
similar a empresas capitalistas da capital aberto
transformação.
com um alto grau de democracia (entre os
“acionistas”). Um segundo ponto que deve ser ressaltado
quanto aos limites do cooperativismo dentro do
Além disso, a ausência de um plano de expansão
capitalismo diz respeito à manutenção da lógica
que pense o cooperativismo como um todo, e
do valor. As cooperativas reforçam a alienação
que vise dominar o processo de produção como
do trabalho a partir do momento em que repro-
um processo social, reduz as cooperativas a ini-
duzem a lógica de acumulação do capital. Na
ciativas isoladas, com um potencial limitado de
medida em que participam do mesmo sistema
transformar da sociedade. Como Marx ressaltou
de produção e circulação de mercadorias, elas
nas Instruções para os delegados do conselho

32
produzem formas reificadas das relações sociais, Conclusão
ou seja, fortalecem o fetichismo da mercadoria. O presente trabalho teve por objetivo avaliar as
Enquanto produzirem mercadorias, produzirão possibilidades que a expansão das cooperati-
alienação. Como vimos, a mercadoria é a forma vas de produção dentro do sistema capitalista
fetichista do produto, e ela ganha essa forma apresenta para se alcançar a emancipação do
quando, fruto de um trabalho alienado, recebe o trabalho humano e, por suposto, a superação do
poder de igualar as diferentes formas de traba- próprio capitalismo.
lho concreto em trabalho abstrato socialmente Para atingir tal objetivo, iniciamos nosso artigo
determinado. com uma análise sobre o conceito de aliena-
Ora, mas se o mercado é o ambiente onde a ção no paradigma marxista, com o intuito de
mercadoria é realizada, ele é em si “uma forma identificar os elementos necessários para a sua
social que produz alienação, que tem a lógica superação. Assim, compreendendo a alienação
de dar origem a leis que se impõem aos produ- do trabalho em quatro dimensões – do indiví-
tores”. (Borges Neto, 2003, p. 112) Portanto, para duo, da natureza, da condição humana e das
romper com esse fetichismo, além de adotar relações sociais –, apontamos que sua superação
formas de produção não-alienadas, é preciso depende, sobretudo, de se colocar os meios de
superar o próprio processo de circulação de produção sob o domínio dos trabalhadores, e
mercadorias, ou seja, o mercado. Faz-se necessá- de eliminar a mercadoria enquanto forma de
rio encontrar formas alternativas de estabelecer relação do trabalho humano.
essas relações de troca de maneira que expres- Apontamos que o cooperativismo apresenta
sem de forma transparente e racional as relações alguns elementos que afirmam e outros que
sociais entre os indivíduos. negam a alienação do trabalho. A coletivização
Mas inverter o atual modo de circulação de dos meios de produção, mesmo restrito à reali-
mercadorias significa inverter toda a lógica das dade da cooperativa, e a autogestão do processo
relações sociais. Porém, de nada adianta uma co- produtivo se mostram como pontos-chave para
operativa realizar sozinha esta inversão (ela nem a superação da alienação. Primeiro, por serem
poderia), caso a sociedade com que se relaciona passos decisivos para a união da consciência
não a tenha feito. com o processo produtivo; segundo, por colo-
carem à disposição dos trabalhadores todas as
ferramentas necessárias para a realização desse
processo.

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Não obstante, podemos perceber que a mera ex- Bibliografia
pansão das cooperativas dentro do modo de pro- ALTHUSSER, Louis. Ler o capital. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
dução capitalista não se mostra como elemento BORGES NETO, João Machado. “Cooperativas e socialis-
suficiente para nos levar à emancipação do tra- mo”. In: SOUZA, A. R.; CUNHA, G. C. & DAKUZAKU, R.Y.
(orgs.). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a econo-
balho humano. Em primeiro lugar, pelo fato da mia solidária. São Paulo: Contexto, 2003. pp. 99-125.
autogestão que nela se realiza estar limitada à GORENDER, Jacob. “Introdução”. In: MARX, Karl. Para a
atividade de cada cooperativa, ou seja, ela não é crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
pp.VII-XXIII.
capaz de gerar uma forma de organização social
KONDER, Leandro. Marxismo e alienação. Rio de Janeiro:
que subjuga o modo de produção como um todo
Civilização Brasileira, 1965.
à vontade da coletividade. Em segundo lugar,
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 3.
enquanto permanecerem dentro de uma estru- vol. 4. 4 ed. São Paulo: Difel, 1983.
tura de mercado – que produz mercadorias para _______. O capital: crítica da economia política. Livro 1. vol.
a venda (e não para o consumo) com o intuito 1. 10 ed. São Paulo: Difel, 1985a.

de se obter lucro –, as cooperativas não serão _______. O capital: crítica da economia política. Livro 3. vol.
5. 4 ed. São Paulo: Difel, 1985c.
capazes de desnudar o fetichismo e mostrar o
_______. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições
que há de humano por trás das relações entre as
70, 1989.
mercadorias.
_______. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
Por fim, é importante frisar que, ao apontar MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São
os limites que a expansão das cooperativas no Paulo: Boitempo, 2007.

modo de produção capitalista apresenta para a ______________. Collected Works.Vol. 20, Marx and Engels:
1864-1868. London: Lawrence & Wishart, 1985.
superação da alienação do trabalho, não esta-
MÉSZÁROS, István. Marx: A teoria da alienação. Rio de Janei-
mos nos posicionando contra essa forma de ro: Zahar Editores, 1981.
organização enquanto estratégia do proletariado
SANTOS, Laymert Garcia dos. Alienação e capitalismo. São
na luta de classes em prol da implantação do Paulo: Brasiliense, 1982.
socialismo. O que queremos mostrar é que as
cooperativas só poderão ter um caráter real-
Notas
mente transformador se estiverem articuladas
1 A despeito da existência de cooperativas de naturezas
com outras iniciativas que busquem suplantar o diversas (cooperativas de consumo, de crédito, de habitação
controle do capital sobre o processo produtivo e etc.) e do devido papel que cada uma desempenha para a
superação da alienação, este trabalho possui foco nas coo-
acabar com as formas reificadas e fetichistas de perativas de produção, visto que são nelas que o trabalho
relações sociais. de produção material é realizado de forma autogestionária.
Portanto, sempre que utilizamos o termo “cooperativa”,

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será exclusivamente a este tipo de cooperativa que estare- 10 Em contraposição à esfera privada, em que ele se rela-
mos nos referindo, salvo quando especificado o contrário. ciona consigo mesmo.
2 Aufhebung é um termo-chave, muito utilizado na literatura 11 Fica implícito o fim da segmentação da sociedade entre
marxista, que em alemão “[…] significa ao mesmo tempo capitalistas e trabalhadores.
‘transcendência’, ‘supressão’, ‘preservação’ e ‘superação (ou
12 O que não significa que o mesmo ocorreria se esti-
substituição) pela elevação a um nível superior’” (Mészáros,
vessem inseridas em outro modo de produção (como o
1981, p. 14).
socialismo, por exemplo).
3 “[…] a crítica do próprio Engels partia de princípios
13 É claro que isso varia de acordo com a empresa, sendo
humanistas antropocêntricos e moralizantes, inspirados na
que em algumas o trabalhador goza até de um certo grau
filosofia de Feuerbach. Com apoio no humanismo feuer-
de autonomia e de participação nas decisões (como é o
bachiano é que se desvenda a Economia Política como
caso do modelo de gestão japonês), mas em nenhuma
ideologia da propriedade privada, da concorrência e do
empresa nos moldes capitalista ocorre a fusão plena destes
enriquecimento sem limite […]”. (Gorender, 1982, p.VII)
três papéis.
4 Muitos teóricos consideram uma diferença entre os
14 Nas cooperativas são os próprios associados que defi-
termos alienação e estranhamento tal com utilizados por
nem a cadência do trabalho, as condições de segurança em
Marx. Nós, no entanto, nos posicionamos ao lado daqueles
que será realizado e até mesmo se e quando o realizarão.
que utilizam ambos como sinônimos.
Além disso, os cooperados podem, ainda, determinar os
5 Note que, ao mesmo tempo em que surge a divisão social meios de produção que serão utilizados, modificando as
do trabalho, surgem tanto a propriedade privada quanto a condições materiais de trabalho.
divisão da sociedade em classes (de diferentes ofícios).
15 Como, por exemplo, ao substituir a lógica de que cada
6 O fato de ver na alienação do trabalho o conceito-chave um recebe de acordo com a quantidade (e qualidade, para
para entender todos os fenômenos da alienação do homem adicionar o preconceito) de trabalho realizado, pela de que
não deve ser encarado como mero reducionismo. As de- cada um recebe de acordo com as suas necessidades.
mais formas de alienação merecem atenção específica dos
16 É muito ressaltado o fato de o cooperativismo acabar
teóricos marxistas. No entanto, não adianta tentar resolvê-
com a ditadura do capital nas empresas. Contudo, não
-las antes de modificar as bases materiais em que a vida dos
estamos nos referindo somente à desumanização do modo
indivíduos se assenta. Nem se deve imaginar que a resolu-
de organização da produção, mas à desumanização inerente
ção da alienação econômica seria suficiente para emancipar
às formas materiais de produção.
o homem em toda sua pluridimensionalidade. Cf.: Konder
(1965, pp. 28-29).
7 Uma mercadoria com uma capacidade especial: a de criar
valor.
8 Além de modificar o ambiente que o cerca, o trabalho
modifica o próprio homem.
9 Como disse Marx nos Manuscritos, “[…] a alienação do
trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho
se transforma em objeto, assume uma existência externa,
mas que existe independentemente, fora dele e a ele estra-
nho, e se torna um poder autônomo em oposição com ele;
que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e
antagônica.” (Marx, 1989, p. 160 [grifos nossos])

Revista da sociedade brasileira de economia política 35


40 / fevereiro-maio 2015

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