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De início, torna-se necessário localizar a teoria que serve como base ideológica para a
perpetuação concreta e material do capitalismo, a fim de entender os postulados teóricos que
embasam o funcionamento desse sistema. De acordo com Pavón-Cuéllar (2017), destacam-se
dois campos teóricos: primeiro o liberalismo, com autores como John Stuart Mill, David
Ricardo e John Locke, ainda no século XVIII, e em segundo o neoliberalismo, com autores
como Milton Friedman, Alfred Marshall, e políticos como Margaret Thatcher, já nos séculos
XX e XXI. De forma geral, os pressupostos do liberalismo e do neoliberalismo, enquanto teoria
econômico política, versavam para a defesa do livre mercado, na qualidade de esfera auto
regulável que pende para o pleno emprego. Podemos aliar a esse pressuposto econômico o
conceito de reconhecimento, como utilizado por Nancy Fraser em seu artigo “Do
neoliberalismo progressistas à Trump – e além”, para expor uma face mais comportamental –
em um sentido weberiano de diferença entre ação (comportamento do indivíduo) e instituição
(estruturas que regulam o comportamento) – de como ocorre a naturalização da dominação de
uma classe sobre outra.
Esse conceito de reconhecimento, como usado por Fraser (2018), remonta a um dos dois
aspectos diferentes de justiça e direito pelos quais a hegemonia capitalista foi forjada. Dando
um passo para trás, o conceito de hegemonia aparece aqui na teoria da autora como uma
releitura do conceito criado por Antonio Gramsci, e diz respeito “[...] a um processo pelo qual
uma classe dominante naturaliza sua dominação instalando os pressupostos de sua própria visão
de mundo como o senso comum da sociedade como um todo” (FRASER, 2018, p. 45). Nesse
contexto, o reconhecimento é a atribuição de valor e estima a determinadas características e
comportamentos. Ele foca na estrutura de status da sociedade, ditando aquilo que deve ser
considerado moral ou não; é um mecanismo normativo. Assim, ao observar o quadro político
econômico, atual, percebe-se que a política de reconhecimento erigida pelo bloco hegemônico
neoliberal, no que tange ao caráter econômico, naturaliza um comportamento individualizante
de auto interesse individual, o qual afirma que o desejo de fazer lucro é algo natural do ser
humano, e, portanto, seu comportamento é direcionado a satisfazer essa natureza (PAVÓN-
CUÉLLAR, 2017).
Dentro dessa constatação, observa-se que os ideais de liberdade defendidos pelo bloco
hegemônico são válidos apenas para a liberdade das coisas que condicionam a auto expansão
do capital, em detrimento da liberdade individual em si (PAVÓN-CUÉLLAR, 2017). O ser
humano é livre para satisfazer a sua natureza de busca pelo lucro somente enquanto esse lucro
individual for benéfico ao grande capital, ou seja, enquanto o indivíduo buscar pelo lucro dentro
do mercado, atuando como uma peça que move o sistema de trocas capitalistas (FRASER;
JAEGGI, 2018). A defesa do livre mercado e dos ideais neoliberais para a economia é antes de
tudo uma defesa do próprio sistema em sua tentativa de perpetuação via acúmulo de lucro e
autovalorização do capital, revestida de defesa da humanidade em si. O reconhecimento atua
aqui como o mecanismo comportamental utilizado pelo bloco neoliberal para naturalizar essa
defesa, revestir ela de senso comum: o indivíduo pertence à sociedade como um todo só
enquanto projetar seu comportamento para a busca incessante do lucro dentro das regras
impostas pelo modelo econômico e pela organização do trabalho dentro do sistema.
Na visão do autor, a maioria dos países hoje vêm sofrendo um processo de crescimento
do livre mercado competitivo, embasado pelos dogmas neoliberais de pensamento. Entretanto,
essas ideias não ultrapassam o campo político e econômico. Então, como é possível que haja
tanta adesão individual ao sistema capitalista neoliberal? A resposta pode ser encontrada
utilizando-se de uma união da ótica da psicologia crítica, no tocante às representações
psicológicas que moldam a subjetividade segundo a exigência do mercado, com a teoria de
Nancy Fraser acerca do reconhecimento, enquanto mecanismo de validação de certos
comportamentos individuais.
A existência do sujeito livre está condicionada à sua força de trabalho, sua capacidade
de objetivar-se em outras mercadorias, de criar a base elementar da riqueza nas sociedades
capitalistas. Uma vez que o objetivo do capital é sua autovalorização, quanto mais mercadorias
forem produzidas, maior será a riqueza e a expansão capital. Assim, o reconhecimento,
enquanto um mecanismo de controle normativo, aparece como o fator psicológico que move o
indivíduo atomizado a produzir mais, desprender mais de sua corporeidade em uma
objetividade externa. O indivíduo deve desprender mais do seu corpo e de sua vontade na esfera
produtiva. Ele é condicionado a pensar assim, tanto por medo de marginalização quanto por
incentivo de conquista. Ele reconhece nos atores “bem sucedidos” algo palpável via esforço.
Aqui reside a essência real da meritocracia; mas sua aparência perante o indivíduo, a forma
como ela é psicologicamente narrada, está atrelada à representação social da ascensão social
dentro de um sistema regido pelo dinheiro. Não há neoliberalismo sem psicologia (PAVÓN-
CUÉLLAR, 2017); os homens precisam estar moldados psicologicamente para atuar segundo
essa lógica individualista de busca ao lucro.
Por sua vez, esse fator psicológico subjetivo encontra respaldo concreto na lógica
capitalista de riqueza atrelada à produção de mercadorias. De maneira alienante, nesse processo
meritocrático, o reconhecimento naturaliza a dominação de classes por meio da exaltação dos
capitalistas como pessoas cujo mérito e esforço próprio os levaram à ascensão social. Todo o
contexto de desigualdade, de exploração, de escravidão e guerras, em suma, todo o processo
histórico social que possibilitou a concentração de renda e meios de produção na mão de poucas
pessoas é ocultado. Em última análise, os capitalistas podem ser interpretados como
representações sociais de riqueza e dos valores vigentes nesse sistema. É assim que o bloco
hegemônico constrói a noção de moralmente correto. A constituição do sujeito liberal está
moldada psicologicamente para que o curso da ação humana tenha como bússola a meritocracia,
ou seja, para que a ação humana alcance uma finalidade pré-estabelecida subjetivamente.
REFERÊNCIAS