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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Antropologia da Política – ANT7019


Docente: Dra. Letícia Maria Costa da Nobrega Cesarino
Discente: João Vitor Algeri Somavila (21100975)

RECONHECIMENTO E MERITOCRACIA COMO FATORES PSICOLÓGICOS NA


CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NEOLIBERAL

O modelo socioeconômico que nasce com o modo de produção capitalista se apresenta


inicialmente como um sistema de trocas, cuja estrutura elementar é a mercadoria (MARX,
2013). Destarte, é imperioso observar que por trás da aparência, esse modo de produção está
estruturado na dominação de uma classe pela outra, por meio da contraposição de classes frente
aos meios de produção: de um lado os burgueses, detentores dos meios de produção e do capital,
e os proletários, detentores apenas de sua força de trabalho, condicionados à vende-la no
mercado para garantir sua subsistência. A existência de um mercado de trabalho livre possibilita
a dinâmica de acumulação de capital, como premissa para a auto expansão desse capital através
de uma lógica de ganho de lucro sobre satisfação de necessidades (FRASER; JAEGGI, 2018).
Partindo do horizonte de busca incessante pelo lucro, o modo de produção capitalista precisa
arrastar todas as organizações sociais para a sua estrutura de relações de mercado, a fim de
garantir a sua sobrevivência. Diante desse contexto, o presente ensaio visa assimilar conceitos
da psicologia social com o conceito de reconhecimento, como utilizado por Nancy Fraser, na
tentativa de entender os mecanismos psicológicos que o sistema capitalista utiliza para moldar
os indivíduos segundo sua lógica de mercado, destacando o papel da meritocracia como
ferramenta de representação social da chance de vitória e ascensão individual.

De início, torna-se necessário localizar a teoria que serve como base ideológica para a
perpetuação concreta e material do capitalismo, a fim de entender os postulados teóricos que
embasam o funcionamento desse sistema. De acordo com Pavón-Cuéllar (2017), destacam-se
dois campos teóricos: primeiro o liberalismo, com autores como John Stuart Mill, David
Ricardo e John Locke, ainda no século XVIII, e em segundo o neoliberalismo, com autores
como Milton Friedman, Alfred Marshall, e políticos como Margaret Thatcher, já nos séculos
XX e XXI. De forma geral, os pressupostos do liberalismo e do neoliberalismo, enquanto teoria
econômico política, versavam para a defesa do livre mercado, na qualidade de esfera auto
regulável que pende para o pleno emprego. Podemos aliar a esse pressuposto econômico o
conceito de reconhecimento, como utilizado por Nancy Fraser em seu artigo “Do
neoliberalismo progressistas à Trump – e além”, para expor uma face mais comportamental –
em um sentido weberiano de diferença entre ação (comportamento do indivíduo) e instituição
(estruturas que regulam o comportamento) – de como ocorre a naturalização da dominação de
uma classe sobre outra.

Esse conceito de reconhecimento, como usado por Fraser (2018), remonta a um dos dois
aspectos diferentes de justiça e direito pelos quais a hegemonia capitalista foi forjada. Dando
um passo para trás, o conceito de hegemonia aparece aqui na teoria da autora como uma
releitura do conceito criado por Antonio Gramsci, e diz respeito “[...] a um processo pelo qual
uma classe dominante naturaliza sua dominação instalando os pressupostos de sua própria visão
de mundo como o senso comum da sociedade como um todo” (FRASER, 2018, p. 45). Nesse
contexto, o reconhecimento é a atribuição de valor e estima a determinadas características e
comportamentos. Ele foca na estrutura de status da sociedade, ditando aquilo que deve ser
considerado moral ou não; é um mecanismo normativo. Assim, ao observar o quadro político
econômico, atual, percebe-se que a política de reconhecimento erigida pelo bloco hegemônico
neoliberal, no que tange ao caráter econômico, naturaliza um comportamento individualizante
de auto interesse individual, o qual afirma que o desejo de fazer lucro é algo natural do ser
humano, e, portanto, seu comportamento é direcionado a satisfazer essa natureza (PAVÓN-
CUÉLLAR, 2017).

Dentro dessa constatação, observa-se que os ideais de liberdade defendidos pelo bloco
hegemônico são válidos apenas para a liberdade das coisas que condicionam a auto expansão
do capital, em detrimento da liberdade individual em si (PAVÓN-CUÉLLAR, 2017). O ser
humano é livre para satisfazer a sua natureza de busca pelo lucro somente enquanto esse lucro
individual for benéfico ao grande capital, ou seja, enquanto o indivíduo buscar pelo lucro dentro
do mercado, atuando como uma peça que move o sistema de trocas capitalistas (FRASER;
JAEGGI, 2018). A defesa do livre mercado e dos ideais neoliberais para a economia é antes de
tudo uma defesa do próprio sistema em sua tentativa de perpetuação via acúmulo de lucro e
autovalorização do capital, revestida de defesa da humanidade em si. O reconhecimento atua
aqui como o mecanismo comportamental utilizado pelo bloco neoliberal para naturalizar essa
defesa, revestir ela de senso comum: o indivíduo pertence à sociedade como um todo só
enquanto projetar seu comportamento para a busca incessante do lucro dentro das regras
impostas pelo modelo econômico e pela organização do trabalho dentro do sistema.

Partindo da constatação de que os pressupostos neoliberais estão em função do


crescimento do capital, e são então benéficos à manutenção do sistema, é possível estabelecer
uma linha de análise que parte dos modelos neoliberais cujas políticas econômicas possibilitam
a expansão do capital, para chegar à constituição subjetiva do sujeito neoliberal como unidade
elementar possibilitadora desses modelos. Segundo Fraser e Jaeggi (2018), o capitalismo
depende de poderes públicos para estabelecer e fazer valer suas normas constitutivas. Uma
economia de mercado não se mantém sem um quadro jurídico que sustente a empresa privada
e a troca mercadológica. Historicamente, esses poderes públicos foram alojados na figura dos
Estados Nacionais, de forma a possibilitar a atuação da política e da economia em esferas
aparentemente separadas, mas com aquela sendo pano de fundo para esta. Nesse sentido, Pavón-
Cuéllar (2017, p. 592, tradução nossa), localiza a concretização dos modelos neoliberais no
Consenso de Washington, que de acordo com ele:

Impulsionou uma linha de privatizações da máquina pública, uma liberalização do


comércio e uma desregulação dos mercados, fato este que deu um imenso poder ao
capital e que moldou as políticas econômicas da maior parte dos países nos últimos
trinta anos.

Na visão do autor, a maioria dos países hoje vêm sofrendo um processo de crescimento
do livre mercado competitivo, embasado pelos dogmas neoliberais de pensamento. Entretanto,
essas ideias não ultrapassam o campo político e econômico. Então, como é possível que haja
tanta adesão individual ao sistema capitalista neoliberal? A resposta pode ser encontrada
utilizando-se de uma união da ótica da psicologia crítica, no tocante às representações
psicológicas que moldam a subjetividade segundo a exigência do mercado, com a teoria de
Nancy Fraser acerca do reconhecimento, enquanto mecanismo de validação de certos
comportamentos individuais.

A psicologia crítica introduz uma nova chave de análise: um campo essencialmente


imaterial em relação direta com os campos materiais da realidade social. Foi exposto acima que
a liberdade do mercado é revestida narrativamente de liberdade da humanidade. A construção
dessa narrativa não ocorre de outra forma se não ideologicamente, por meio da utilização de
fatores psicológicos que constroem categorias de pensamento alinhadas à ilusão da meritocracia
e da aptidão natural do ser humano ao lucro. De acordo com Marx (2013), a implementação do
modo de produção capitalista, ainda no século XVIII, se deu pela substituição de todas as
relações sociais pré-existentes pela relação de mercado. Ao pensar essa relação como uma
relação de competição regida pelas forças do livre mercado, exclui-se toda a noção de indivíduo
social multifacetado, dotado de múltiplas capacidades, restando apenas um ser atomizado,
objetivado como mercadoria, e por isso livre de todas as amarras. Essa constatação aponta para
um sujeito reconhecido como livre enquanto for capaz de projetar sua ação na mesma direção
que o interesse do bloco hegemônico. O reconhecimento aqui não atua de outra forma senão
como um componente normativo essencial, com o qual as hegemonias são construídas
(FRASER, 2018).

A existência do sujeito livre está condicionada à sua força de trabalho, sua capacidade
de objetivar-se em outras mercadorias, de criar a base elementar da riqueza nas sociedades
capitalistas. Uma vez que o objetivo do capital é sua autovalorização, quanto mais mercadorias
forem produzidas, maior será a riqueza e a expansão capital. Assim, o reconhecimento,
enquanto um mecanismo de controle normativo, aparece como o fator psicológico que move o
indivíduo atomizado a produzir mais, desprender mais de sua corporeidade em uma
objetividade externa. O indivíduo deve desprender mais do seu corpo e de sua vontade na esfera
produtiva. Ele é condicionado a pensar assim, tanto por medo de marginalização quanto por
incentivo de conquista. Ele reconhece nos atores “bem sucedidos” algo palpável via esforço.
Aqui reside a essência real da meritocracia; mas sua aparência perante o indivíduo, a forma
como ela é psicologicamente narrada, está atrelada à representação social da ascensão social
dentro de um sistema regido pelo dinheiro. Não há neoliberalismo sem psicologia (PAVÓN-
CUÉLLAR, 2017); os homens precisam estar moldados psicologicamente para atuar segundo
essa lógica individualista de busca ao lucro.

Por representação social, entende-se aqui um processo mental, carregado de um sentido


simbólico, que busca explicar a realidade social por meio da interpretação de um objeto; seu
objetivo é dar significado ao objeto focalizado, é transpor para o concreto uma coisa que existe
enquanto ideia (MARKOVÁ, 2017). Nesse sentido, a meritocracia é a concretude da ideia de
vitória enquanto ascensão social. Ela abarca a noção de que existe uma natureza humana voltada
para o lucro, e que na organização social regida pelas trocas, a possibilidade de efetivação dessa
natureza é a própria aptidão individual. Em termos do senso comum, é o reconhecimento de
que o sucesso depende única e exclusivamente do indivíduo. A força da meritocracia, por sua
vez, reside na representação do sucesso como resultado do esforço individual, e ela opera por
meio da manipulação psicológica da subjetividade humana, que é moldada de forma ideológica
para aceitar passivamente o fato de que não há outra saída para o sucesso.

Por sua vez, esse fator psicológico subjetivo encontra respaldo concreto na lógica
capitalista de riqueza atrelada à produção de mercadorias. De maneira alienante, nesse processo
meritocrático, o reconhecimento naturaliza a dominação de classes por meio da exaltação dos
capitalistas como pessoas cujo mérito e esforço próprio os levaram à ascensão social. Todo o
contexto de desigualdade, de exploração, de escravidão e guerras, em suma, todo o processo
histórico social que possibilitou a concentração de renda e meios de produção na mão de poucas
pessoas é ocultado. Em última análise, os capitalistas podem ser interpretados como
representações sociais de riqueza e dos valores vigentes nesse sistema. É assim que o bloco
hegemônico constrói a noção de moralmente correto. A constituição do sujeito liberal está
moldada psicologicamente para que o curso da ação humana tenha como bússola a meritocracia,
ou seja, para que a ação humana alcance uma finalidade pré-estabelecida subjetivamente.

REFERÊNCIAS

FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade,


[S.L.], v. 17, n. 40, p. 43-64, 29 mar. 2019.
FRASER, Nancy; JAEGGI Rahel. Capitalism: a conversation in critical theory. Medford,
MA: Polity, 2018.
MARKOVÁ, Ivana. A fabricação da teoria de representações sociais. Cadernos de Pesquisa,
[S.L.], v. 47, n. 163, p. 358-375, mar. 2017.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do
capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
PÁVON-CUÉLLAR. David. Subjetividad y psicologia en el capitalismo neoliberal.
Psicologia Política. v. 17. n. 40. p. 589-607. set./dez. 2017.

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