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As telenovelas brasileiras em Portugal

Isabel Ferin Cunha


Universidade de Coimbra

Índice dos dos primeiros estudos de recepção re-


alizados desde 1999, na região de Lisboa.
1 Introdução . . . . . . . . . . . . . 1 Chega-se à conclusão de que existem indi-
2 No Princípio era a Gabriela . . . . 4 cadores claros sobre os factores de aceita-
2.1 O Ano de 1977 . . . . . . . . . 5 ção das telenovelas brasileiras, bem como
2.2 A década de 80 . . . . . . . . . 8 elementos que apontam para mudanças de
3 As Guerras de Audiência, Parte I comportamento das audiências frente a este
(1993-1998) . . . . . . . . . . . . 10 produto. Numa perspectiva interpretativa
4 As Guerra de Audiência, Parte II exploratória, considera-se que na base des-
(1999-2002) . . . . . . . . . . . . 13 tas mudanças se encontram factores sócio-
5 Conclusão . . . . . . . . . . . . . 17 económicos recentes, nomeadamente o cres-
6 Bibliografia . . . . . . . . . . . . 20 cimento sustentado das classes médias e mé-
dias baixas, desde o início da década de 90,
bem como factores inerentes à economia dos
Resumo: Neste artigo, procura-se contri- Media, tais como a expansão da TV a Cabo
buir para a compreensão dos processos que e a “guerra das audiências”, entre os 4 ca-
levam a telenovela novela brasileira a consti- nais generalistas, que levaram à diversifica-
tuir, desde 1977, um produto de sucesso in- ção de estratégias de programação e ao in-
discutível em Portugal. Com base em da- vestimento em novos produtos televisivos.
dos estatísticos, compilados por organismos
oficias portugueses, faz-se uma breve apre-
sentação do actual panorama mediático por- 1 Introdução
tuguês no que toca aos canais generalistas. Na nossa perspectiva, não é possível com-
Apresenta-se, em seguida, algumas questões preender os Media sem ter em conta os con-
teóricas referentes à segmentação do mer- textos políticos, económicos, sociais e cultu-
cado português quanto a consumos de produ- rais em que se inserem. Os Media são, en-
tos culturais e de conteúdos. Com base nes- quanto instituições sociais, simultaneamente
tes dados, procede-se então a um estudo ex- um sistema gerador de lógicas próprias e um
ploratório, cruzando-os com indicadores ob- dos elementos, dos mais determinantes, de
tidos por levantamentos na imprensa (de re- contaminação de outros sistemas presentes
ferência e de “coração”) e com os resulta- na Sociedade. O estudo dos Media, nesta
2 Isabel Ferin Cunha

concepção alargada, deverá ter em conside- Portugal na Comunidade Económica Eu-


ração os percursos das indústrias culturais e ropeia - CEE) como nos pertencentes ao
de conteúdo, a inserção e dinâmicas das cul- campo dos Media (por exemplo, Aprovação
turas urbanas, bem como a diversificação dos da Legislação que permite canais de televi-
estilos de vida e expansão das culturas de são privados, Início do funcionamento dos
consumo. canais privados de televisão, Expansão da
São recentes os estudos e investigações televisão a cabo e da multimédia doméstica).
sobre os Media em Portugal. A imprensa, Ressalvando a devida especificidade, estes
como Media mais nobre, reúne o maior nú- marcos surgem em conformidade com a aná-
mero de estudos,1 tendo em conta a sua na- lise da situação social das últimas décadas.
3
tureza de fonte de informações e espelho da Por outro lado, é necessário ter em conta
sociedade. Nos últimos anos, em função que, sendo extremamente difícil aceder à do-
de múltiplos factores, nomeadamente o cres- cumentação produzida, nos e sobre, os Me-
cente número de dissertções e teses em Ciên- dia, os dados quantitativos são, até ao final
cias da Comunicação e áreas afins, e dada a da década de noventa, praticamente inexis-
progressiva centralidade, visibilidade e alte- tentes. Assim, a investigação fundamenta-se,
rações dos Media na sociedade portuguesa, na generalidade, nos jornais de época e even-
têm surgido trabalhos importantes que pro- tuais documentos achados em arquivos ge-
nunciam a investigação sobre os Media a rais, bem como em dados, não sistemáticos,
partir do campo dos Media. produzidos por por empresas e institutos de
A complexidade do sistema dos Media e investigação. Convém, ainda, ressalvar que
as diversas estratégias de promoção de con- esta exposição tem como limite o ano 2002.
teúdos, exigem que se avance para uma pe- Com base nos critérios enunciados, o tra-
riodização funcional capaz de garantir a in- balho compreende os seguintes períodos: pe-
vestigação e a análise. Esforços teóricos rea- ríodo de Normalização Democrática 4 que
lizados até ao momento2 procuraram compa- abrange o ano de 1977 e vai até 1988; pe-
tibilizar determinados marcos contextuais da ríodo de Modernização e Desregulamenta-
sociedade portuguesa com as alterações que ção do mercado dos Media que abarca os
estes marcos suscitaram no campo dos Me- anos de 1989 a 1992; o período de 1993 até
dia. 1998, que é dominado pela privatização dos
Os parâmetros cronológicos propostos canais de TV, pela expansão das empresas
neste artigo fundamentam-se tanto em mar- de multimédia e de novos conteúdos e por
cos histórico-políticos (por exemplo, Estado fim, um último período, de 1999 à actuali-
Novo, Revolução do 25 de Abril, Período dade, caracterizado pela progressiva concen-
de Normalização Democrática, Entrada de tração das empresas Media e de telecomuni-
1
cações, pelas manifestas dificuldades surgi-
Por exemplo: Tengarrinha, J. (1965) História da
Imprensa Periódica Portuguesa, Lisboa, Portugália. 3
Cfr.: Barreto, A. ( 1996) Três décadas de mu-
2
Mesquita, M. (1994) Os meios de comunicação dança em Portugal. In: A Situação Social em Portu-
social. In: Portugal 25 anos de democracia, Lisboa, gal, 1960-1995. Lisboa, ICS, pp. 35-60.
Círculo dos Leitores, pp. 360-405; Correia, F. (1997) 4
Maxwell, K. (1999) A construção da democracia
Os Jornalistas e as Notícias, Lisboa, Caminho. em Portugal, Lisboa, Ed. Presença.

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das nas televisões generalistas frente ao de- ses foi tomando conhecimento do que se pas-
senvolvimento das televisões a Cabo e o con- sava no país. Foi assim com o Programa do
traditório desenvolvimento de conteúdos na- MFA, com as ocupações das fábricas, com
cionais, originais ou adaptados. as nacionalizações das empresas e os sane-
Esta periodização tem como objectivo amentos dos patrões. As rádios estiveram,
principal facilitar a investigação e organizar também, nas ocupações do Alentejo, na re-
a exposição do conhecimento apesar de, tal forma agrária e nas greves, acompanharam
como afirma Paquete de Oliveira os diferen- os acordos para a independência nas Coló-
tes ciclos demarcados da vida da comunica- nias, o regresso dos militares e os primei-
ção social portuguesa corresponderem a ou- ros refugiados/retornados. Às rádios deve-
tros tantos ciclos da história da nação.5 se, também, a expansão do canto livre, da
A complexidade, diversidade e extensão música de protesto, nacional e estrangeira, e
do objecto, e o objectivo deste artigo Tele- a abertura a países até então pouco conheci-
novelas Brasileiras em Portugal: indicado- dos. Se as rádios deram voz e divulgaram (de
res de aceitação e mudança, leva-nos a fazer forma mais eficaz que a imprensa) conteú-
uma breve exposição dos períodos enuncia- dos e jargões próprios aos diversos momen-
dos, na tentativa de melhor compreender o tos da revolução, a televisão deu-lhes o rosto.
período que se vive na actualidade. No dia 26 de Abril de 1974, à 1h 20 da ma-
Primeiramente é necessário referir que a drugada, a televisão pública apresentou, num
Revolução do 25 de Abril demonstrou que, cenário árido e ríspido, a Junta de Salvação
apesar da censura e da repressão, a Rádio, o Nacional, e ao longo dos dois anos de Re-
Jornal, a Televisão, a Indústria Cultural e as volução, reflectirá as alternâncias do Poder,
Telecomunicações constituiam instrumentos ao mesmo tempo que acertará contas com o
e agentes sociais incontronáveis.Basta lem- anterior Regime.
brar que as senhas para o deflagrar do movi- Num balanço de fim de revolução de
mento utilizaram todos estes elementos. 1974-75, algumas linhas de força estarão es-
Por outro lado, independentemente, das tabelecidas e far-se-ão sentir até aos nossos
vicissitudes internas, comuns a todas as em- dias: a relação entre Cultura e Poder (através
presas neste período (ajustes de contas, sane- de nomeações, cargos, prémios, e a coopta-
amentos, greves, comissões de luta, etc.), as ção de intelectuais, nomeadamente, através
rádios e a televisão, tiveram um papel muito da concessão de subsídios); a distinção en-
importante de dinamização, no primeiro ci- tre a cultura erudita e a cultura popular ou
clo da Revolução do 25 de Abril. Primeiro, de massas; a formação de grupos de teatro
foram as rádios que levaram aos locais mais responsáveis por transformações na lingua-
recônditos, do então Império Colonial, as no- gem teatral; a promoção do urbanismo como
tícias dos acontecimentos na capital, depois, princípio de qualidade de vida; o consumo
foi através delas que a maioria dos portugue- regular de literatura especializada (política,
5
ciências sociais, etc.); o incremento da mú-
Paquete de Oliveira, J.M. (1992), A integração
europeia e os meios de comunicação social In: Aná- sica como grande consumo cultural; a ascen-
lise Social, 27, 118-119: 4-5, 995-1024. são e a queda do número de espectadores de
cinema.

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2 No Princípio era a Gabriela estruturas domésticas e habitacionais, pro-


gredindo, constantemente, os indicadores so-
Em função do objectivo do trabalho – identi-
ciais referentes à educação, saúde, habitação
ficar os indicadores de aceitação e mudança
e consumo.
da telenovela brasileira em Portugal – optou-
Na década de oitenta, o Estado assume,
se por tratar em conjunto, os períodos cor-
de forma inequívoca, o papel de agente mo-
respondentes à Normalização Democrática
dernizador, implementando políticas econó-
(de 1977 a 1988) e à Modernização e Des-
micas e sociais tendentes, como já foi refe-
regulamentação (de 1989 a 1992), indepen-
rido, a integrar Portugal na União Europeia.
dentemente deles corresponderem a dois mo-
Se a primeira metade da década de oitenta,
mentos diferentes da vida política e econó-
corresponde, ainda, a um período de ajusta-
mica do país e envolverem fases diferentes
mentos à política ditada por empréstimos do
da realidade dos Media. Neste contexto,
FMI, reflectindo-se num abrandamento do
considera-se que o ano de 1977 é extrema-
processo de convergência frente aos países
mente importante não só por iniciar o pro-
da Europa do Sul, a segunda metade desta
cesso de Normalização Democrática,6 como
década – já como membro efectivo da Co-
por ser o ano em que é exibida a primeira
munidade Europeia, e beneficiário dos fun-
telenovela brasileira em Portugal, dando ori-
dos de estruturação – traduz-se num cresci-
gem, na televisão, a um ciclo que só se alte-
mento contínuo do PIB, à média de 4% ao
rará com o fim do monopólio estatal e a aber-
ano. Estes resultados permitem um cresci-
tura dos canais privados em 1992. Pelo meio,
mento real da remuneração dos trabalhado-
ficam as privatizações da imprensa, as dis-
res por conta de outrém e a diminuição do
cussões e decisões sobre a distribuição das
desemprego estrutural. Os problemas tra-
frequências na Rádio, sobre a abertura da te-
balhistas decorrentes dos ajustamentos pós-
levisão a operadores privados e sobre a des-
revolucionários abrandaram e os retornados
regulamentação do sector das telecomunica-
das colónias africanas integraram-se, cons-
ções.
tituindo dos núcleos mais empenhados na
Os anos finais da década de setenta, cor-
modernização das infra-estruturas produti-
respondem a um período de grande confli-
vas. Ao mesmo tempo, o efeito de feminiza-
tualidade social e trabalhista, na medida em
ção da população activa trouxe a muitos gru-
que, após a fase de normalização democrá-
pos domésticos, por desdobramento de salá-
tica, são tomadas medidas políticas e eco-
rios, um maior poder de compra e conforto.7
nómicas, patrocinadas pelo FMI, no sentido
A progressiva urbanização e litoralização
de aproximar Portugal dos restantes países
das populações permitiu o crescimento das
europeus. Neste período, ao mesmo tempo
novas classes médias, habitando em grandes
que se dava um verdadeiro êxodo rural e se
aglomerados urbanos com acesso a melhores
acomodavam mais de meio milhão de re-
níveis de escolaridade e empregados em sec-
tornados das ex-colónias africanas, a maio-
7
ria da população passou a usufruir das infra- Almeida, J. F de (1994), Evoluções Recentes e
Valores na Sociedade In: Portugal Hoje, Oeiras, INA,
6
Maxwell, K. (1999) A construção da democracia pp.57-70.
em Portugal, Lisboa, Ed. Presença.

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tores sócio-profisionais intermédios. Estes gramas de esclarecimento político, debates


contextos, que serão propícios ao desenvol- e complementação escolar. Em 1977, ainda
vimento da televisão, promoveram a emer- sem a Lei da Televisão em vigor, o avolumar
gência de novos estilos de vida e de con- dos problemas orçamentais (provocados em
sumo, ao mesmo tempo que constituíram um parte pela fuga à taxa obrigatória), das cri-
campo propício ao surgimento da telenovela, ses laborais partidarizadas, levam a uma re-
o género que mais se coaduna, no dizer de estruturação da televisão e à reformulação de
alguns autores, com as expectativas vivenci- programas.
adas por estas classes médias suburbanas.8 É É nesta conjuntura que surgem dois pro-
nesta perspectiva, que se analisará o impacto gramas, A visita da Cornélia (um concurso-
da telenovela brasileira em Portugal. reallity show) e a telenovela brasileira Ga-
briela, Cravo e Canela, que alterarão o per-
2.1 O Ano de 1977 curso da televisão em Portugal ao mesmo
tempo que anteciparão e simbolizarão a
O ano de 1977 inicia um período de transi- emergência de uma nova sociedade e estilos
ção, após os anos de Revolução de 1974-76, de vida centrados no consumo e nos Media.
que irá terminar, segundo Barreto9 , apenas Nessa altura já eram produtos de grande
com a entrada de Portugal na União Euro- impacto e consumo: a música popular, a in-
peia (UE) em 1985. É o ano de vigência do I dústria livreira, o teatro e o cinema brasilei-
Governo Constitucional eleito nas primeiras ros. No momento em que se assiste ao lan-
eleições livres, em 1976, para a Assembleia çamento do primeiro capítulo da telenovela,
e Presidência da Republica. O ano em que 16 de Maio de 1977, as rádios e a televisão
se formaliza o pedido de adesão de Portugal mantinham programas regulares de divulga-
à UE e se inicia o percurso de reunir pedaços ção da MPB 12 , os romances de Jorge Amado
após a revolução dominada.10 eram best-sellers na feira do livro 13 e nas
Durante o período revolucionário a televi- livrarias, 14 enquanto encenações de Boal
são, um monopólio do Estado, participa ao (Barraca conta Tiradentes15 ) e uma peça de
lado de quem esteve e alternou no poder.11 Dias Gomes, O Santo Inquérito16 eram exi-
Com uma programação circunscrita a dois bidas nos teatros da capital com notável êxito
períodos – hora do almoço e fim de tarde de bilheteira. No mesmo período, o cinema
das 18h às 23h – incorporou nos anos revo-
12
lucionários a doutrina desenvolvimentista da O programa "Tropicalia", por exemplo, às sextas-
feiras às 19.30, feito por correspondentes da RTP no
formação e educação das massas, com pro-
Brasil.
13
8
Silverstone, R. Silverstone, R. (1995), Television Entre surpresas e Barracas de "Artesa-
y vida cotidiana, Buenos Aires, Amarrortu Editores. nato"Gabriela manda na Feira (do livro), Diário
9
Barreto, A.,org. (1996), A situação social em de Lisboa, 20/05/77, p. 4.
14
Portugal, 1960-1995, Lisboa, Instituto de Ciências Cfr: Livros mais vendidos, Expresso Revista,
Sociais. 28/05/ 77 a 26/11/77.
15
10
Maxwell, K.(1999), A construção da democracia Feio, L., Barraca conta Tiradentes: o êxito de
em Portugal, Lisboa, Ed. Presença. uma companhia ...,O Jornal, 06/05/77,p. 25.
16
11
25 anos inesquecíveis: os pontos altos da televi- Teatro de Campolide estreia"Santo Inquérito", O
são, Expresso, no 1848, 1998. Jornal, 16/09/77, p. 25.

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6 Isabel Ferin Cunha

brasileiro chega a Portugal, quer através de nários20 e principalmente a História do ano


festivais mais selectivos, como o da Figueira de 197721 .
da Foz17 , quer através do grande circuito co- Ao longo dos três grandes momentos de
mercial (Dona Flor e seus dois maridos) 18 , O agendamento (Fase de Lançamento, Fase de
Casamento de Arnaldo Jabor e Xica da Silva Tematização e Fase de Encerramento) os jor-
de Cácá Diegues19 ). nalistas e o público, entrevistado pelos diver-
A relação entre os diversos produtos da in- sos jornais, vão-se dando conta da sofisticada
dústria cultural, e de conteúdos, com a tele- indústria que produz a telenovela, a qual é
novela é estabelecida constantemente, de di- identificada, posteriormente, como um gé-
versas formas e em diferentes níveis: entre a nero televisivo e não, apenas, como uma
literatura e a telenovela, entre o teatro, os ac- mera adaptação televisiva de um romance de
tores e a telenovela, entre a MPB e a teleno- Jorge Amado, uma indústria que produz si-
vela, assim como entre o cinema, os actores multaneamente música, cinema, shows e um
e a telenovela. star system próprio, ao mesmo tempo que
Não existindo estudos da época sobre a re- promove a Literatura e o Teatro brasileiro.
cepção da telenovela Gabriela, é com base Por outro lado, num país fragmentado pe-
na análise dos jornais, grandemente politi- las quezílias políticas no âmbito nacional e
zados em função da Revolução do 25 de familiar, a telenovela Gabriela vem gerar um
Abril, que se torna possível construir essas fenómeno de coesão e consenso social em
formas de recepção. Sabendo-se que cada função da interactividade que promove com
um dos jornais tende a reflectir determina- o seu público – interpelando-o a partir da sua
das tendências latentes na sociedade portu- unidade básica de audiência, a família, no
guesa, as peculiaridades do agendamento da seu quotidiano – proporcionando um factor
telenovela Gabriela, Cravo e Canela, reali- de mediação cultural e política entre os di-
zado como se de um acontecimento genuíno versos grupos sociais.22 Ao mesmo tempo,
se tratasse, poderão ser compreendidas como a politização das temáticas faz da recepção
formas de negociação da mensagem ficcio- desta telenovela, um fenómeno de audiências
nada, o que tenderá a tornar as "estórias"da predominantemente masculino.
telenovela uma história dos anos revolucio- Sabendo-se que, em 1977, o número de
17
Cfr: VI Festival de Cinema da Figueira da Foz: aparelhos de televisão por mil habitantes
Da Gabriela aos filmes de Leste, Diário de Notícias, 20
Castrim, M., Canal da Crítica: Gabriela outra
22/09/77, p. 8. São referidos os seguintes filmes: vez ela, Diário de Lisboa, 5/11/77, p.11; Dionísio,
"A lenda de Ubirajara"de André Luís de Oliveira; M., Ideias e opiniões: Crónica de Verão, O Jornal,
"Barra Pesada"de Reginaldo Farias; "Tenda dos Mi- 06/08/77, p. 18.
lagres"de Nelson Pereira dos Santos. 21
Castrim,M., Canal da Crítica: Gabriela ,
18
Ramos, J. L., Crítica do cinema: "Dona Flor e mas...aviso ao público: a crónica de hoje fala de po-
seus dois maridos"de Nuno Barreto, Diário de Lisboa, lítica, Diário de Lisboa, 28/10/77; Guidinha, Tempo
17/11/77, p. 13; Livre: Os tonicos e os ramiros da Graça, O Jornal,
19
Ramos, J.L., Crítica de Cinema: "Xica da 29/07/77, p.13.
Silva"de Carlos Diegues , "O casamento"de Arnaldo 22
Martín-Barbero, J. (1997), Dos Meios às Media-
Jabor, Diário de Lisboa, 03/05/77, p. 14. ções: comunicação, cultura e hegemonia, Rio de Ja-
neiro, Ed. UFRJ, pp. 291-303.

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As telenovelas brasileiras em Portugal 7

rondava os 15023 e que era prática corrente, A visita da Cornélia, inaugurou aquilo que
nas aldeias, vilas e bairros, assistir-se à tele- alguns críticos, comentaristas e jornalistas
novela nos cafés, associações de bairro, as- designaram por país televisivo25 ou seja, o
sociações de moradores ou sedes de outras início, em Portugal, dos fenómenos ineren-
associações cooperativas, pode-se imaginar tes à massificação das audiências centrada na
o efeito de interactividade criado pelo sim- televisão. Entretanto, os profissionais deste
ples facto de fruição conjunta da exibição. sector tomam consciência que existe uma
Pelos indicadores que a análise dos jornais indústria de conteúdos em português – al-
nos fornecem, o público tenderá a apropriar- tamente desenvolvida, portadora de lógicas
se da telenovela Gabriela em função das próprias de criação e divulgação – e da fas-
suas expectativas e referências mais premen- cinação provocada pelos seus produtos.
tes: em primeiro lugar em função dos con- A opção pela telenovela brasileira como
textos políticos e sociais do Portugal pós Re- estratégia de fidelizar audiências na televi-
volução do 25 de Abril, nomeadamente nas são pública não foi pacífica, não só por se
questões referentes à identidade decorrentes temer uma demasiada influência dos falares
do fim do ciclo imperial; em seguida em fun- e vivências culturais brasileiras como por se
ção dos seus quotidianos, como seja a eman- considerar que a uma televisão pública, paga
cipação da mulher, a liberdade sexual e as com impostos públicos, compete a divulga-
mudanças de estilos de vida e costumes. ção da cultura feita em Portugal e por por-
Se a inserção da telenovela no horário no- tugueses. Contraditoriamente, uma das jus-
bre fez parte de um processo de reestrutu- tificativas para o sucesso do género em Por-
ração da RTP, 24 o seu sucesso, reconhe- tugal, está com certeza vinculados ao facto
cido unanimemente, promoveu novos acor- da(s) telenovela(s) brasileiras terem proposto
dos para a compra de telenovelas, enquadra- aos seus receptores, durante mais de vinte
das, mais uma vez, num outro processo de anos, conteúdos e temas que os interpela-
reestruturação que incluiu a repetição da Ga- ram. Estes conteúdos, expressos numa lín-
briela à hora do almoço. Assim, se a exibi- gua comum mas, também, num imaginário
ção da telenovela, por volta da hora do jan- comum, de mitos, heróis, acontecimentos,
tar, vai criar a receita de sucesso telejornal- paisagens, recordações e saudades, permi-
telenovela-telejornal, na RTP 1 – alterando tem facilmente, sua identificação por todos
os quotidianos das famílias e estabelecendo os portugueses.26
o início do Jornal Nacional às 20 horas – a Acresce a esta justificativa o facto dos es-
re-exibição da telenovela à hora do almoço pectadores, sobretudo as classes médias por-
vai contribuir para a feminização da recep- tuguesas em ascensão, perceberem os con-
ção da telenovela em Portugal. teúdos das telenovelas como modelos de
A exibição da telenovela Gabriela, Cravo comportamentos, estilos de vida e valores
e Canela, em simultâneo com o reality show 25
Amorim, R., Gabriela desapareceu..., Expresso
23
Barreto, A. (1996), ob. cit., p. 146. Revista, 19/11/77, p. 17R
26
24
Nova programação da RTP já segunda-feira, Diá- Featherstone, M. (1997), O desmanche da cul-
rio de Lisboa, 14 de maio de 1977, p. 6. tura: globalização, pós-modernismo e identidade,
São Paulo, SESC, p. 151.

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inerentes à modernização, nomeadamente no tos jornalísticos, já com um carácter empre-


que se refere a comportamentos da vida pri- sarial. No meio Rádio, a Igreja e o Estado
vada e à reivindicação de liberdades públi- partilham os canais de maior audiência, en-
cas. Esta hipótese, já avançada em outros ar- quanto se assiste à implosão das rádios li-
tigos27 tem vindo a ser comprovada, à pos- vres, ou piratas, criadas no vazio legislativo.
teriori, por estudos de recepção efectuados Na televisão, mantêm-se o monopólio do Es-
entre 2000 e 2002,28 permitindo identificar a tado até à revisão constitucional de 1989 que
telenovela brasileira quer como um agente de abre caminho aos operadores privados que
globalização, quer como um agente de mo- iniciarão a sua actividade em Fevereiro de
dernização e democratização.29 1992.30
A televisão, apesar de pública e monopo-
2.2 A década de 80 lizada, torna-se, a partir deste momento, um
dos agentes mais activos da modernização –
A política de privatizações, empreendida pe- cerca de 90% dos lares possuem televisão,
los sucessivos governos na década de oi- ainda a preto e branco, no final da década de
tenta, no domínio dos sectores mais produ- 80 – ao constituir-se como centro de infor-
tivos, confere ao Estado um encaixe econó- mação e de cultura(s) nacionais e internacio-
mico que permite a modernização de infra- nais, estabelecendo relações entre imagens e
estruturas e o investimento na área social. No realidades, normalizando procedimentos pri-
campo dos Media, as políticas de privatiza- vados e públicos, conferindo rotinas ao quo-
ções, empreendidas pelos sucessivos gover- tidiano.
nos, vêm privilegiar as empresas que actuam Ao longo desta década, a estação pública
no sector, dando origem à constituição e ex- optou por um modelo convencional, apre-
pansão de grupos existentes, bem como a sua sentando um serviço generalista no canal 1
diversificação e aliança com empresas inter- (RTP1), enquanto no canal 2 (RTP2) a gre-
nacionais. De uma forma sucinta, estas mu- lha se encontrava direccionada para atender
danças reflectem-se no desaparecimento de os gostos de um público cultivado. Nos dois
muitos títulos da imprensa – que tendo sido canais, os horários eram parcelares: na RTP1
nacionalizados na Revolução do 25 de Abril, das 12h às 14h e à tarde, das 18h às 24h;
não conseguiram subsistir uma vez repriva- na RTP2 iniciava-se a emissão por volta das
tizados – e no lançamento de novos projec- 20h, excepto aos fins de semana, com tér-
27
Fein Cunha, I. (2000),Transição e Telenovela: o mino à meia-noite. Entre os dois canais da
ano de 1977, São Vicente, Actas do IV Lusocon. mesma estação pública, travaram-se algumas
28
Policarpo, V. (2001) Telenovela Brasileira: apro- guerras de audiência, em torno da informa-
priação, género e trajectória familiar, Dissertação de ção: O Canal 2 desenvolveu em programas
Mestrado em Sociologia, apresentada à Universidade
de Coimbra; Imagens do masculino e do feminino na
pioneiros, uma escola de jornalistas e apre-
telenovela brasileira, Projecto financiado pela Funda- 30
Paquete de Oliveira, J.M. (1992), A integração
ção Ciência e Tecnologia, 2000-2002. europeia e os meios de comunicação social, Análise
29
Ferin Cunha, I. (1999), As "Agendas"da teleno- Social, vol. XXVIII, (118-119): 4-5, 995-1024.
vela brasileira em Portugal, Actas do I Congresso de
Ciências da Comunicação, Lisboa.

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sentadores que dominam, até hoje, o espec- preferidas Escrava Isaura (1978), Guerra
tro dos Media em Portugal. dos Sexos (1984) e Roque Santeiro (1987).31
Na RTP1, as grelhas integraram, na dé- Esta última, dez anos depois da exibição de
cada de 80 os programas infantis, à me- Gabriela vai conseguir, de novo e em ambi-
dida que os prazos das emissões se foram ente de eleições autárquicas, politizar a re-
alargando, com desenhos animados originá- cepção, como o prova a análise dos jornais e
rios dos países de Leste, da Europa Central semanários de qualidade, onde são constan-
ou do Brasil (como por exemplo, o Muppet tes as referências de políticos e de líderes de
Show e O Sítio do Picapau Amarelo), pro- opinião ao enredo, nomeadamente no que se
gramas de carácter cultural (por exemplo, so- refere à corrupção política.32
bre História e Música), programas formati- A hegemonia da produção brasileira na
vos e educativos (desde a TV Rural ao en- televisão pública portuguesa, repercutiu nas
sino à distância), programas de humor portu- instituições governamentais e entre agentes
gueses (onde se iniciaram a maior parte dos interessados no sector das indústrias cultu-
grandes humoristas portugueses da actuali- rais. Os debates – na televisão, nos jornais
dade, por exemplo, Herman José) e brasilei- e em colóquios – visaram encontrar alterna-
ros (por exemplo, O Planeta dos Homens e tivas a esta realidade e propor medidas que
Viva o Gordo, abaixo o Regime), bem como constituíssem opções para quem não gosta
as transmissões de festivais de Música Li- de brasileiradas.33 Surgiu, assim a produ-
geira e a revelação, em programas de auditó- ção de telenovelas portuguesas, inspiradas
rio, de novos talentos das artes e dos espectá- no modelo da Globo, mas com temas e acto-
culos (por exemplo, no programa O Passeio res nacionais, sendo a telenovela Vila Faia,
dos Alegres, de Júlio Isidro, a presença regu- exibida em 1982, a tentativa com mais su-
lar de actores como Mário Viegas). cesso. Conforme dados recolhidos e trata-
A televisão pública, no tocante à ficção, dos pela empresa Marktest34 e publicados no
tentou, nos anos oitenta, diversificar a oferta jornal O Dia, de 14 de Junho de 1982, Vila
integrando Portugal na rota das produções Faia agradou, nos seus primeiros cinco epi-
globalizadas – foram exibidas a soap-opera sódios a 71% dos portugueses e terminou
Dallas e as séries Balada de Hill Street e 31
Sondagem Telenovelas/SIC: as 20 novelas prefe-
Fame, bem como séries ingleses e italianas ridas dos portugueses. Universo: Eleitores residen-
– ao mesmo tempo que se ensaiavam as pri- tes em Portugal Continental e Regiões Autónomas.
meiras tentativas de telenovela portuguesa e Amostra: Aleatória e representante do universo, com
se mantinha a receita de sucesso do prime- 848 entrevistas telefónicas. Realização: 14 a 17 de
Abril de 1998, pelo Centro de Sondagens da SIC.
time fundada na sequência – sandwich – te- 32
Figueiras, R. (2002), A telenovela “Roque San-
lenovela brasileira-telejornal-telenovela bra- teiro” na Imprensa Portuguesa (no prelo).
sileira. 33
E a Telenovela Portuguesa? Diário de Notícias,
Não havendo alternativa, aos dois canais 28 de Fev. 1981.
34
públicos, as audiências eram cativas, che- Burnay, C. (2002) A telenovela portuguesa: his-
tória e audiência, Dissertação de Mestrado a apresen-
gando aos 92% do universo dos especta-
tar no Mestrado de Comunicação e Indústrias Cultu-
dores, durante os períodos de exibição das rais na Universidade Católica Portuguesa.
telenovelas brasileiras, nomeadamente das

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10 Isabel Ferin Cunha

agradando a 91%. Ao mesmo tempo, 23% de convergência apoiados pelos Fundos Es-
dos telespectadores consideraram esta tele- truturais da Comunidade Europeia, propicia
novela portuguesa melhor do que as brasilei- um constante aumento dos indicadores de
ras, 55% consideraram-na igual às brasilei- bem estar, económicos e sociais, dos portu-
ras e 12% pior. gueses. Segundo Barreto,38 para além de al-
Durante esta década, outras tentativas fo- gumas tendências mais evidentes – como a
ram feitas pela televisão pública, com o modernização, a urbanização, o desenvolvi-
objectivo de travar esta colonização brasi- mento do capitalismo e da economia de mer-
leira,35 mas com pouco sucesso: as tele- cado, a ligação crescente às economias glo-
novelas brasileiras continuaram a manter as bais, o envelhecimento da população, a esco-
maiores audiências e as produções portugue- larização da população jovem, a democrati-
sas não conseguiram captar a atenção do pú- zação da política e da sociedade e outros –
blico. existem outros processos sociais em curso,
A comunidade académica portuguesa não nomeadamente as alterações da concepção
se interessou pelo fenómeno telenovelas bra- do papel da mulher e da família, a seculariza-
sileiras, apesar do seu impacto e visibili- ção da vida pública e privada, a terciarização
dade. Apenas são conhecidos dois estudos da economia e da sociedade, a imigração e
relativos aos anos oitenta, um na óptica da os novos fenómenos de exclusão. Ao mesmo
produção e do conteúdo, da autoria de João tempo, a década de noventa assiste a um au-
Paulo Moreira36 e outro na perspectiva da re- mento progressivo, e constante, do bem-estar
cepção, de João Manuel Leite Viegas.37 Uti- colectivo e individual, possível de detectar
lizando propostas teóricas e metodológicas através de indicadores de consumo, de equi-
diferentes, ambos procuram cruzar, na pers- pamento doméstico, de conforto, de acesso à
pectiva da recepção, variáveis demográficas educação e à cobertura sanitária. Bens como
e sociais com as formas de captar sentidos e o telefone, a televisão a cores (mais de um
assistir à telenovela. aparelho por lar), o frigorífico, as máquinas e
electro-domésticos e o automóvel tornam-se
acessíveis, através do crédito, à generalidade
3 As Guerras de Audiência,
dos indivíduos das classes médias.
Parte I (1993-1998) Neste contexto, as privatizações e as al-
Nos anos noventa, a estabilidade económica terações na legislação sobre Comunicações,
e política, alicerçada nos sucessivos planos prevista na Lei de Bases de 88/89, tornaram
possível a reorganização do sector. A cria-
35
E a Telenovela Portuguesa? Diário de Notícias, ção da holding Comunicações Nacionais, em
28 de Fev. 1981.
36
Moreira, J.P. (1980), Telenovelas: a propósito da
1993, reuniu as empresas públicas de Cor-
cultura de massas, Revista Crítica de Ciências Soci- reios, Telefones, Rádio e Televisão e a Mar-
ais, no 4/5: 47-85. coni, entregando a liderança à Portugal Tele-
37
Viegas, J.M.L. (1987), Telenovelas: do modelo
38
de recepção à diversidade de reconhecimento, Re- Barreto, A., org. (2000), A Situação Social em
vista Sociologia , problemas e práticas, Lisboa, Pu- Portugal 1960-1999, Lisboa, Imprensa de Ciências
blicações Europa América, no 2. Sociais, p.60.

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As telenovelas brasileiras em Portugal 11

com, que posteriormente será parcialmente pelas telenovelas brasileiras. Como afirma
privatizada.39 Lopes,41 a política de confronto com base
Com o crescimento da publicidade, nas telenovelas brasileiras foi assumida an-
tornam-se possíveis projectos profissionais tes do arranque da SIC, no momento em que
de jornalismo – como o diário Público, a televisão pública antecipou a estreia da te-
e o semanário Independente – e abre-se lenovela Pedra sobre Pedra, em sobreposi-
caminho a dois operadores privados de ção a Meu Bem Meu Mal. No Verão de
televisão: a SIC (Sociedade Independente de 1994, o contracto de exclusividade firmado
Comunicação) e a TVI (Televisão da Igreja, com a Globo permitirá à SIC tomar progres-
depois Televisão Independente) que inicia- sivamente a liderança das audiências com a
ram as suas actividades, respectivamente em telenovela Mulheres de Areia, apostando na
6 de Outubro de 1992 e a 20 de Fevereiro de continuação do modelo existente na RTP1,
1993. telenovela-telejornal-telenovela.
O panorama dos Media e das indústrias Ao mesmo tempo, o grupo Imprensa, a
culturais altera-se rapidamente: até Outu- que pertence a SIC, e o semanário Expresso,
bro de 1992, cem por cento do investimento bem como revistas de coração e de televi-
publicitário na televisão era feito na RTP e são, concertam uma agenda periódica sobre
cerca de 9, 5 milhões de pessoas viam regu- as telenovelas exibidas, o que permite dar
larmente o Canal 1. Dois anos depois, no uma grande visibilidade às produções e aos
mesmo Canal, o valor médio do share des- temas tratados. Esta Agenda, presente em ór-
ceu para 50% desse valor, atingindo a sua gãos de comunicação de qualidade e introdu-
melhor cotação no intervalo das telenove- zida, como fait-divers, nos jornais nacionais
las brasileiras. Os restantes 50% da publi- e programas sobre beautiful people, confe-
cidade os anunciantes distribuíram-nos pelos rem grande visibilidade ao produto teleno-
dois novos canais, sendo que a SIC, exibindo vela e procura atingir as classes A/B, decla-
também telenovelas brasileiras, irá arrecadar radamente avessas a este género televisivo42 .
progressivamente, uma maior fatia. 40 A RTP1 ainda tentou até 1995 in-
Independentemente da SIC ter iniciado o verter a tendência das oscilações das
seu projecto televisivo com base na Informa- audiências no momento das telenovelas,
ção, e ter durante os dois primeiros anos im- procurando quebrar o circulo telenovela-
portado reality shows e concursos musicais, telejornal-telenovela, apostando no conceito
o director da estação, Emídio Rangel, per- de informação espectáculo, inforteinement,
cebeu imediatamente que a guerra das audi- introduzido pela SIC, ao mesmo tempo que
ências só poderia ser ganha, contra a RTP1, aumentava os tempos comerciais. Mas as
39 41
Sousa, H. Políticas da comunicação: reformas e Lopes, F. Estratégias e rumos no Panorama Au-
continuidades In: Pinto, M., org. (2000), A Comu- diovisual Português In: Pinto, M., org. (2000), A
nicação e os Media em Portugal, Braga, Instituto de Comunicação e os Media em Portugal, Braga, Ins-
Ciências Sociais da Universidade do Minho, pp.31- tituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho,
51. pp.77-97.
40 42
Gonçalves, M. A. (1994), Um ano de televisão a A televisão já não é o que era, Dossier Revista
quatro, Público, pp.24-25. Expresso, 24/05/97.

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12 Isabel Ferin Cunha

progressivas dificuldades da estação e a elei- De uma maneira geral, pode-se afirmar


ção do governo socialista, com outro Pro- que a segunda metade da década de noventa,
jecto para os audiovisuais, irão remeter o ca- mantém grelhas muito semelhantes ao início
nal para um lugar secundário nas preferên- das emissões dos canais privados em 1992.
cias das audiências. A grande novidade deste período está na pro-
Entre 1992 e 1996, os espectadores au- liferação de programas – com maior ou me-
mentaram de 65,9% para 70,8% da popula- nor visibilidade – protagonizados por gente
ção total, 43 a média de tempo gasto frente anónima, o cidadão comum. Estes progra-
aos televisores passou de 258 minutos diá- mas, normalmente exibidos pela manhã, ou
rios para 239, sendo a classes D (a conside- após a hora de almoço, se por um lado pa-
rada mais popular) que mais tempo passou recem dar voz a quem não tem voz, fazendo
frente à televisão, cerca de 4horas diárias. A com que os mais humildes sejam escutados,
partir do Verão de 1994, as telenovelas brasi- por outro lado, abrem caminho à televisão de
leiras exibidas na SIC, chegam a captar 80% proximidade e, mais á frente, à televisão in-
a 85% do total das audiências. timista, centrada na exploração de sentimen-
Resumindo, na primeira metade da dé- tos e rotinas do cidadão actor e das tendên-
cada de noventa, a SIC alcança a liderança cias voyeristas das audiências domésticas.
e apresenta resultados positivos, a televi- No de mais, estando a SIC à frente das prefe-
são pública mergulha definitivamente numa rências dos espectadores, seguida da RTP1 e
crise crónica, enquanto a Televisão da Igreja a TVI, não existe praticamente disputa pelo
(TVI) luta para manter o seu projecto até prime-time ganho antecipadamente pela es-
1996, oscilando entre a carta de princípios tação que detêm a exclusividade das teleno-
cristãos – que nunca respeitou totalmente – e velas brasileiras.
as tentativas de agradar às audiências. Contudo, é necessário referir que a exclu-
A segunda metade da década de noventa sividade da exibição das telenovelas brasilei-
caracterizar-se-á pela hegemonia incontes- ras pela SIC abriu, a partir de 1994, e por
tada da SIC, as crises cíclicas da RTP (que contraposição, um novo mercado para pro-
inclui o Canal 1 e 2, a RTP Internacional dutoras, actores e demais profissionais do
e a RTP-África), agravadas pelas constan- audiovisual nos outros canais. Apesar das
tes mudanças de direcção e as limitações experiências da década de oitenta não te-
ao investimento publicitário. A TVI ensaia rem sido, na generalidade, bem sucedidas
sucessivos modelos de viabilização até ser a empresa NBP-Produção e Video, criada
comprada, em Março de 1997, primeiro pela em 1990, vai dar um novo impulso à fic-
SOCI, depois pela Media Capital, em aliança ção portuguesa, assegurando cerca de 70%
com outras empresas internacionais do sec- desta produção em todos os canais genera-
tor. Neste período, a TV Cabo expande-se e listas. Adaptando-se à realidade audiovisual
os canais temáticos adquirem maiores audi- portuguesa, imprimindo um ritmo industrial
ências.44
diovisual Português In: Pinto, M., org. (2000), A
43
Segundo dados da AGB, num painel de Comunicação e os Media em Portugal, Braga, Ins-
8.970.000 portugueses com mais de 4 anos de idade. tituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho,
44
Lopes, F. Estratégias e rumos no Panorama Au- pp.77-97.

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As telenovelas brasileiras em Portugal 13

à produção e à criação, a NBP recruta técni- imprimindo uma nova dinâmica ao quotidi-
cos e profissionais no Brasil e na Europa, ao ano dos portugueses. Dentro dos fenóme-
mesmo tempo que através da Casa de Cri- nos económicos com maiores repercussões
ação promove, não só a adaptação de for- sociais poderão ser referidos, a abertura da
matos estrangeiros (séries e telenovelas) à Banca portuguesa ao estrangeiro, com a con-
realidade portuguesa, como tenta desenvol- sequente luta por quotas de mercado através
ver projectos originais.45 Não sendo propri- da concessão de crédito fácil; a inaugura-
amente ficção, deve-se, contudo referir um ção de grande número de shopping-centers
produto, de grande sucesso, comum a todos de grandes dimensões; a internacionalização
os canais, os sketches cómicos, normalmente do comércio através das franchise; a espe-
utilizados como tampão entre o fim do jornal cialização da oferta e o uso generalizado do
da noite e o início da telenovela ou ficção, telemóvel. Complementarmente, fenómenos
por exemplo, Os Malucos do Riso (na SIC) sociais de ostentação de riqueza, de imigra-
ou Bora lá Marina (na TVI).46 ção – principalmente dos Países Africanos de
Língua Portuguesa, do Brasil e dos Países da
Europa de Leste – e de exclusão tomam no-
4 As Guerra de Audiência, Parte
vas dimensões. Ao mesmo tempo, assiste-
II (1999-2002) se à expansão das classes médias – de que
Os finais da década de noventa, início do mi- fazem parte muitos imigrantes – assente nos
lénio, acentuam algumas tendências que já ganhos, em constante progressão, de activi-
se vinham sentindo sobretudo no começo da dades e salários de profissões relacionadas
segunda metade da década de noventa. A à construção civil, aos serviços e às empre-
partir de 1998, torna-se perceptível o esgota- sas de carácter familiar.47 Estas classes mé-
mento do modelo centrado na expansão eco- dias, com escolaridade média e média baixa,
nómica suportada, com base nos Fundos da detentoras de um deficit crónico de bens de
Comunidade Europeia, pelas grandes obras consumo e aspirando a um sucesso rápido,
públicas (Centro Cultural de Belém, Ponte parecem estar a afirmar-se socialmente por
Vasco da Gama, as Auto-estradas que ligam meio de outros comportamentos, gostos e va-
as principais cidades do país e estas à vizi- lores.
nha Espanha) e eventos culturais nacionais Com efeito, tendo como base indicadores
(a Expo’98, ou em 1994, Lisboa Capital da de tendências48 pode-se avançar que a emer-
Cultura). gência destas novas classes médias – com
No mesmo período, fenómenos económi- valores e estéticas próprias, com caracterís-
cos e sociais adquirem grande visibilidade, ticas próximas ao que alguns autores deno-
47
45
Burnay, C. (2002) A telenovela portuguesa: his- Lisboa Hábitos de compra, Lisboa, Câmara Mu-
tória e audiência, Dissertação de Mestrado a apresen- nicipal, 2001.
48
tar no Mestrado de Comunicação e Indústrias Cultu- Janus 99-2000, Lisboa ,Público-Universidade
rais na Universidade Católica Portuguesa. Autónoma de Lisboa; Janus 2001, Lisboa, Público-
46
Ferin Cunha, I., Burnay, C., Gameiro, L. (2002) Universidade Autónoma.
A ficção em Português nas televisões generalistas: um
estudo de caso, Lisboa, Revista do Obercon, no 6.

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14 Isabel Ferin Cunha

minaram cultura de urgência49 – irão provo- criações), nomeadamente telenovelas, séries


car, nos finais da década de 90 e início do e telefilmes.
milénio, em conjunção com indícios econó- Nos últimos três anos, 1999-2002, as te-
micos recessivos, alterações progressivas nas levisões generalistas portuguesas ensaiaram
ofertas dos Media. Neste contexto – pontu- múltiplas estratégias, com o objectivo de au-
ado pela expansão da Internet, pela diversifi- mentar as suas quotas de mercado através
cação da oferta cultural e de entretenimento da apresentação de novos produtos em no-
–os directores das televisões generalistas re- vas grelhas. Estas acções justificam-se da-
petirão à saciedade a ideia que as televisões das as dificuldades económicas sentidas pe-
dão o que o povo quer ver ( visto que quem los grupos nos quais as estações televisivas
não é povo, vê canais temáticos e tem acesso se encontram inseridas e por mudanças de di-
a outras opções de entretenimento e lazer) recção que envolveram os profissionais mais
enquanto as elites intelectualizadas não se qualificados do mercado. Estas novas estra-
cansarão de repetir que os três canais se igua- tégias centraram-se na organização de gre-
laram na emissão de telelixo. lhas que pudessem, por um lado, concorrer
Relativamente a este período convém re- com as estações rivais, por outro, aumen-
ferir alguns factos e indicadores. Primeira- tar as quotas de audiência e, em simultâ-
mente, é necessário evidenciar as tentativas neo, obedecerem a contenções orçamentais.
realizadas pelos Governos, de reorganizar o Neste jogo, as estações acabam por ratear
sector e as actividades audiovisuais, que re- partes do prime-time, assumindo à partida
sultaram na criação da empresa Formas e que não vale a pena investir altas somas em
Conteúdos, em 1999, por autonomização do determinados espaços – já ganhos pelas con-
Centro de Produção de Lisboa da RTP, e a correntes com determinados produtos consi-
congregação na holding Portugal Global das derados imbatíveis – e procurando através de
empresas RTP, RDP e Lusa, detidas pelo Es- análises de mercado, outros produtos possí-
tado. Em seguida, nestes três últimos anos veis de granjear mais audiências e que pode-
multiplicam-se as iniciativas de organismos rão ser alvos de disputa por melhores quotas
como a Comissão Inter-Ministerial para o de audiência.
Audiovisual e a Plataforma do Audiovisual, Neste contexto, assiste-se à implementa-
organismos que reúnem agentes interessados ção de um novo estilo de televisão, propa-
no sector, no sentido de propor medidas con- gado pelos novos directores, agora à frente
cretas para o desenvolvimento da produção das antigas estações rivais. Apesar de não
portuguesa, incluindo a criação de um fundo ser possível ignorar os canais públicos neste
de apoio. Estas iniciativas resultaram num puzzle, sobretudo a RTP1, é entre a SIC e
aumento significativo de oferta de ficção por- TVI que se promove o novo estilo, visível
tuguesa em todos os canais generalistas, não não só nos ajustamentos internos de gre-
só em horas/emissão como na oferta e vari- lhas como na compatibilização externa das
edade de géneros (adaptados a Portugal ou mesmas, em função de critérios subordina-
49
dos a análises pragmáticas de rentabiliza-
Confr: P.- H Chombart de Lauwe e os trabalhos
do Laboratório de Sociologia Urbana, CNRS, Paris. ção. A TVI comanda a implementação deste
novo estilo, utilizando como táctica a expan-

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As telenovelas brasileiras em Portugal 15

são do conceito de prime-time, e conferindo de 1999 a 2000 a SIC diminui ligeiramente o


ao jornal televisivo uma estrutura que con- seu share – para cerca de 48% de audiências
tinua e antecipa a estrutura das telenovelas – enquanto a TVI veio a subir de forma cons-
apresentadas. Assim, no jornal televisivo, tante no mesmo período, em detrimento dos
encontram-se presentes não só narrativas he- dois canais públicos.51
róicas contextualizadas em cenários tipifica- No centro da nova guerra de audiências
dos (materiais e emocionais), mas também pelo prime-time, encontram-se , mais uma
um conjunto de valores tendentes a repor a vez as telenovelas brasileiras. Os sinais de
coesão social em função de uma determinada cansaço das audiências, frente ao modelo de
visão do mundo. sucesso inaugurado em 1977 pela RTP1, e
Num contexto de grande concorrência en- aprofundado pela SIC, fundado na receita te-
tre os canais privados e a estação pública, lenovela brasileira-telejornal-telenovela bra-
com a saída do director da RTP1 para a TVI sileira, acentuam-se a partir de 1999, quando
e, posteriormente, do director da SIC para a o share decai de aproximadamente 80% para
RTP1, as estratégias das televisões tomam 65%, no momento da exibição da telenovela
novos rumos. A partir deste momento, a Terra Nostra. Contudo, segundo refere Po-
TVI disputará o prime-time com a SIC, re- licarpo,52 no dia 30 de Dezembro de 1999,
correndo quer a estratégias de expansão do 74% dos aparelhos de televisão do sistema
prime-time, como atrás se referiu, quer à exi- de audiometria estavam sintonizados para as-
bição de reality shows e à promoção de fic- sistir a Terra Nostra, e sondagens audiomé-
ção portuguesa (telenovelas e séries). Por tricas realizadas para o semanário Expresso,
outro lado, este mesmo canal adoptará, a par- referem que 61% dos telespectadores seriam
tir do lançamento do Big Brother, em Setem- mulheres, 34,6% pertencentes à Classe C2 e
bro de 2000, duas estratégias constantes as- 32,8% à classe D, (perfazendo um total de
sentes na expansão do conceito de infortei- 67,4% dos estratos médio-baixo e baixo), es-
nement e de product placement. Com base tando situadas 26,3% no interior rural e na
no inforteinement, a TVI introduzirá nos ali- grande Lisboa.
nhamentos dos jornais televisivos – já aligei- Já em Agosto de 1999, apesar da SIC
rados pela ênfase nos fait-divers 50 e na es- manter a liderança e a RTP1 ainda se en-
trutura narrativa heróica – diversas peças so- contrar em segundo lugar, nas preferências
bre o Big Brother e através do product pla- dos espectadores, nota-se uma tendência as-
cement, rentabiliza os promotores e anunci- cendente da TVI – com José Eduardo Mo-
antes ao colocar, sistematicamente, no Big 51
OBERCOM (2000), Anuário Comunicação: os
Brother, produtos de consumo diário em si- media e os novos media, 2000-2001, Lisboa, Obser-
tuação de visível destaque. vatório da Comunicação.
52
Dados recolhidos pelo Observatório de Policarpo, V. (2001), Telenovela Brasileira:
apropriação, género e trajectória familiar, Disserta-
Comunicação (OBERCOM) referem que em
ção de Mestrado em Sociologia, apresentada à Uni-
50
Martins, M. (2002), Jornalismo e Ética na TVI, versidade de Coimbra; Imagens do masculino e do
Dissertação de Mestrado a apresentar à FCH da Uni- feminino na telenovela brasileira, Projecto financi-
versidade Católica. ado pela Fundação Ciência e Tecnologia, 2000-2002,
p.50.

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16 Isabel Ferin Cunha

niz, à frente, vindo da RTP – sobretudo ação, em função do género e trajectória fa-
nos segmentos de público, Donas de Casa miliar da telenovela Terra Nostra, apontam
e Crianças (4-14 anos). Esta tendência será para a ideia que, existindo na generalidade
reforçada em 2000 com as novas grelhas, mais de um receptor de televisão em cada
sendo que a TVI apostará numa contra – casa, e sendo o zapping uma constante, a te-
programação frente à SIC, fundada nas te- lenovela brasileira é regularmente objecto de
lenovelas portuguesas, em programas de for- visualização, sendo entendida como um fac-
mato importado, como o Big Brother, e no tor de utilidade social, de aprendizagem, de
prolongamento do telejornal da noite onde prazer estético, de relaxamento e, em menor
são introduzidas informações sobre as tele- grau, de entretenimento .54
novelas e o Big Brother. Se o impacto do reality show, Big Brother,
Neste novo contexto, a exibição de Laços na TVI, abalou toda a estratégia da SIC, na
de Família na SIC, será gravemente afectada, verdade não é possível menosprezar a aposta
sofrendo constantes oscilações nos seus sha- feita por essa estação nas telenovelas e sé-
res (entre 53% e 34%), mas mantendo con- ries portuguesas. Como afirmou o director
tudo a média da liderança com uma percenta- da TVI, José Eduardo Moniz, o Big Brother
gem de cerca de 39,9% da audiência total, o funcionou como locomotiva de atracção dos
que corresponde a mais de um milhão e meio espectadores, mas para os fidelizar lá esta-
de espectadores, representando 16% da po- vam o Jornal da Noite, com a jornalista-
pulação portuguesa. Dados fornecidos pela vedeta Manuela Moura Guedes, as séries
empresa Marketest, recolhidos pelo Projecto Jardins Proibidos, Crianças SOS, Super Pai
Imagens do Masculino e do Feminino na te- e as telenovelas Olhos de Água, Anjo Selva-
lenovela brasileira,53 referentes à visualiza- gem (2002) e Filha do Mar(2002). A partir
ção da telenovela Laços de Família, de Maio do último trimestre de 2001, sempre puxadas
a Dezembro de 2000, parecem indicar que pelas aventuras e desventuras das expulsões
são as mulheres de mais de 45 anos, vivendo dos moradores da casa do Big Brother I, II e
nas cidades do interior, que independente- III, a TVI consegue superar os níveis de au-
mente das classes sociais mais consomem te- diência da SIC.55 Pelo meio ficaram dias me-
lenovelas brasileiras. No entanto, a investi- moráveis de contra-progragramação, com a
gação levada a cabo por este Projecto – com exibição de telenovelas por tempo indetermi-
base em entrevistas individuais e de focus nado ou programas de apoio explícito a listas
group a cerca de vinte homens e mulheres de clubes de futebol, bem como o recurso a
jovens adultos, na cidade de Lisboa – e a histórias pessoais de violência, miséria ou in-
pesquisa realizada por Verónica Policarpo – segurança. A SIC ainda tentou contra atacar
cerca de 20 entrevistas , 7 homens e 13 mu- exibindo reality shows comparáveis ao Big
lheres, na mesma cidade – sobre a apropri- Brother, como o Bar da TV, Acorrentados,
53
mas acaba por incorporar uma táctica palia-
Projecto financiado pela Fundação Ciência e Tec-
nologia (FCT), de 2000 a 2002, com a participação 54
Policarpo, V. (2001), Ob. Cit. p. 46.
das seguintes investigadoras, Isabel Ferin Cunha, Te- 55
OBERCOM (2001), Anuário Comunicação: os
resa Líbano Monteiro, Verónia Policarpo e Leonor media e os novos media, 2001-2002, Lisboa, Obser-
Gameiro (bolseira da FCT). vatório da Comunicação.

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As telenovelas brasileiras em Portugal 17

tiva, ao procurar reforçar os tempos anterio- rar um longo prime-time esticado, das 20h às
res ao prime-time liderado pela TVI, na espe- 24h, com o Jornal da Noite e as telenovelas
rança de um esgotamento daquela estratégia. portuguesas.
Neste enquadramento, a SIC investiu, du- No cenário dinâmico destes três últimos
rante o ano de 2001, na exibição de teleno- anos, convém referir as alterações que fo-
velas brasileiras, num total de cerca de 882 ram realizadas, ou anunciadas, pelo governo
horas/ano, bem como em 10 telefilmes por- eleito em Março de 2002, nomeadamente a
tugueses. As tardes foram ocupadas, desde a reestruturação da RTP(com a possível extin-
hora do almoço até ao início do prime-time, ção do Canal 2), a extinção da holding Por-
pelas reposições de A Próxima Vítima e a Vi- tugal Global, a redefinição dos objectivos do
agem, as telenovelas Uga, Uga, New Wave serviço público de televisão e de rádio, com a
e O Cravo e a Rosa. No início do prime- diminuição dos tempos de publicidade e hi-
time, a SIC tentou a exibição, sem grande erarquização de conteúdos de interesse pú-
sucesso, de Ganância, uma telenovela por- blico (as telenovelas são, directamente, con-
tuguesa com actores brasileiros e atirou para sideradas de não interesse público), o fim dos
o fim do prime-time (22h 30m) Porto dos Mi- subsídios a organismos vocacionados para a
lagres.56 Durante o ano de 2002, esta estação criação de conteúdos.57
utilizará a mesma táctica, ao concentrar as
telenovelas brasileiras (Desejos de Mulher,
5 Conclusão
New Wave, Coração de Estudante) no pe-
ríodo anterior ao prime-time, preenchendo e A sociedade portuguesa mudou muito do fi-
estendendo o prime-time com programas de nal da década de setenta até ao ano de 2002.
humor e tentando a sorte com a telenovela São cerca de vinte e cinco anos que fizeram
portuguesa Fúria de Viver (bastante mais ba- de Portugal um país diferente nos aspectos
rata, cerca de 30.000 Ă por capítulo, contra económico, político, social e demográfico.
os cerca de 100.000 Ă das brasileiras), ao Os portugueses, apesar de se manterem na
mesmo tempo que atirava O Clone para o cauda da Europa, atingiram muitos dos ín-
período após o fim do prime-time. dices de desenvolvimento e bem estar euro-
A táctica de resistência da SIC parece ter peus e, como já foi afirmado, mas é sempre
acabado por dar resultado, de acordo com bom retomar, os portugueses têm as mesmas
dados da Marketest, a partir de Maio de expectativas perante a sociedade material, o
2002, quando recupera a liderança das au- consumo, a organização, as férias, a cultura
diências, registando um share médio mensal e o divertimento que os mais ricos habitan-
de 32,9%, contra os 29% de quota de mer- tes do hemisfério Norte.58 Por outro lado,
cado da TVI e os 21,2% da RTP1. Contudo, estas expectativas são forjadas, quase na to-
esta posição da SIC fica-se pela média do talidade, pelos Media e pelas indústrias cul-
dia, continuando a TVI, com 35%3 a lide- turais, através de incentivos ao consumo e a
56 57
Nunes, C. (2001), "Ficção vence Big Brother: a Henriques, J.P. (2002), Governo pôs em marcha
novela da TVI Olhos de Água lidera os programas plano para reformar RTP, Público, 10/05/02, p.2.
mais vistos. A novela real cedeu o lugar à ficção", 58
Maria João Avillez conversa com António Bar-
Expresso, 07/04/01, p.12. reto: Entrevista. Expresso, 11/07/98.

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18 Isabel Ferin Cunha

apresentação de estilos de vida, assentes em ração da Revolução, tornaram-se, no imagi-


modelos de vida quotidiana. nário urbano e consumista, um percurso em
Ao longo destes vinte e cinco anos, muitas linha recta para todos os jovens. A partir de
destas expectativas concretizaram-se. A ge- 1998, as crescentes dificuldades económicas
ração que era adolescente, ou jovem adulta, de Portugal em cumprir prazos e metas, fi-
na Revolução do 25 de Abril de 1974, nanceiros e económicos, exigidos pela União
progrediu economicamente com a democra- Europeia, vieram demonstrar que este cami-
cia, adquiriu mais estudos, beneficiou das nho de sucesso individual e colectivo é sinu-
oportunidades oferecidas pela integração na oso: grande número de portugueses ficaram
União Europeia. De uma maneira geral, de fora das benesses da prosperidade anun-
os portugueses desta geração, nos primeiros ciada, muitos não têm, nem terão, acesso rá-
quinze anos, pós 25 de Abril, estabeleceram- pido ao bem-estar. Entretanto, a sociedade
se nas cidades, compraram casa, esquece- mudou, bem como os valores, os estilos de
ram os tempos da ditadura e do Império, vida e os quotidianos de grande parte dos
educaram-se e educaram os filhos. Nos úl- portugueses.
timos dez anos, os mesmos portugueses pas- O Relatório do OBERCOM oferece o se-
saram a ver-se como europeus, a olhar para guinte quadro dos espectadores, por canal
os imigrantes com certo desdém, esqueci- generalista. O espectador da SIC vive no in-
dos da sua emigração, habituaram-se via- terior e na Grande Lisboa, enquanto a TVI
jar, a consumir no quotidiano, tornaram-se apresenta maiores resultados no Interior e
conservadores nas práticas e nos gostos. A no Litoral Norte, à semelhança da RTP1.
geração da Revolução do 25 de Abril pro- Relativamente às classes sociais, os espec-
curou, frente aos mais novos, simplificar- tadores da SIC, da RTP1 e da RTP2 perten-
lhes a vida: ofereceu-lhes os produtos no- cem sobretudo à classe D, sendo na SIC o
vos que eram anunciados na televisão pú- resultado bastante próximo da Classe C2. É
blica e depois nas privadas. Primeiro vieram a esta última que pertence o espectador da
as farinhas Nestlé, a Coca-Cola, os yogurtes TVI, que apresenta em segundo e terceiro lu-
Danone, depois os brinquedos do He-Man, gar as Classes D e C1 com resultados bas-
as Tartarugas Ninja e, finalmente, o McDo- tante aproximados. No que diz respeito ao
nalds, os brinquedos da Toy’s & URST com- género, RTP1, SIC e TVI são mais vistos por
prados nos shoppings-centers das Amorei- mulheres, enquanto a RTP2 é mais vista pelo
ras, Cascais ou Colombo. O consumo pas- sexo masculino. Nas faixas etárias, os es-
sou a ser uma rotina no quotidiano. O con- pectadores dividem-se praticamente em uni-
sumo das indústrias culturais e de conteúdos formidade pelos vários canais. A RTP1 é
tornou-se uma forma de distinção, um dado mais vista pelas faixas mais envelhecidas,
na composição do estilo de vida, um meio de apresentando 28,6% na população com mais
se integrar e na Europa e na sociedade Glo- de 64 anos e 16% nos que têm entre 55 e
bal. 64 anos, à semelhança do que acontece na
As histórias de sucesso, do homem de su- RTP2, que é vista 24,4% pelas pessoas com
cesso português, acarinhadas pelo primeiro mais de 64 anos e 14,6% pelas que têm entre
ministro Cavaco Silva, incorporadas pela ge- 55 e 64 anos. Já o espectador da TVI, pelo

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As telenovelas brasileiras em Portugal 19

contrário, pertence às camadas mais jovens, capta as audiências, são também frequente-
com os que têm entre 4 e os 14 anos a repre- mente apontadas as convergência entre os te-
sentar 19,8% e as pessoas que têm entre os mas tratados nas telenovelas brasileiras, fei-
15 e os 24 anos a significarem 15%. A SIC, tas para as audiências brasileiras e os interes-
por seu lado, abrange as várias faixas etá- ses presentes nas audiências portuguesas.
rias, situando-se os seus maiores resultados Os sinais desta convergência de interesses,
na camada jovem, entre os 4 e os 14 anos presentes durante toda a década de noventa,
(15,7%) e na faixa etária com mais de 64 devem-se provavelmente, ao vertiginoso pro-
anos (20,5%). 59 cesso de abertura da sociedade portuguesa à
A televisão, e os géneros televisivos, re- sociedade europeia e aos modelos de quoti-
flectem estas mudanças: novas gerações no- diano globalizados, e que podem ser identifi-
vas exigências. O caso das telenovelas bra- cados nas referências públicas – na imprensa
sileiras, em Portugal, é provavelmente um de qualidade, na de coração e nas duas inves-
caso paradigmático da leitura que as audi- tigações realizadas – às telenovelas brasilei-
ências fazem de determinados géneros em ras como apresentando temáticas modernas,
função das alterações sociais por si viven- actualizadas e com uma certa utilidade so-
ciadas. Nos primeiros dez anos, a politiza- cial. No entanto, na medida em que surgem
ção da recepção das telenovelas brasileiras espectadores mais jovens, já socializados em
está por demais documentada na imprensa de ambientes urbanos, com hábitos de consu-
qualidade e de coração. Nesse período, ao mos culturais variados e grande número de
mesmo tempo que se mantém o interesse pe- horas/géneros de televisão visualizadas, tal-
las telenovelas que focam temas de carácter vez esta convergência tenda a se esgotar ou
histórico – nomeadamente, pelas que apre- a se estabilizar num certo público. Este pú-
sentam um imaginário lusófono – aumenta o blico constituído por mulheres e homens, de
interesse pelas temáticas de ascensão social meia-idade, dos meios urbanos do interior
(tipo Rainha da Sucata) e pelas narrativas e das grandes cidades, pessoas que mantêm
humoradas que privilegiem temas ainda ta- com a telenovela brasileira uma empatia li-
bus (por exemplo, Guerra dos Sexos, Roque gada ao seu percurso de urbanização recente.
Santeiro). Na década de noventa, a superiori- Talvez, confirmando esta função de ser-
dade técnica de todos os agentes envolvidos viço público atribuído à telenovela, se possa
na indústria da telenovela brasileira é unani- citar a Sondagem realizada no mês de Junho,
memente reconhecida em Portugal: eles sa- do presente ano, com vista a fundamentar os
bem contar uma história, divertir e entre- géneros necessários a uma grelha de serviço
ter, ao mesmo tempo expressar as alegrias, público, onde as telenovelas (sem se especi-
tristezas e preocupações dos espectadores.60 ficar se são as brasileiras ou as portuguesas)
Mas não é só esta superioridade técnica que surgem dividindo a opinião pública. Isto é
59
cerca de metade dos inquiridos consideram
OBERCOM (2001), Anuário Comunicação: os
media e os novos media, 2001-2002, Lisboa, Obser-
vatório da Comunicação, p.268-269.
60
Miguel, T. (1993), Portugal: alegrias e misérias,
Revista Expresso, 25/09/1993, p 18-19 R.

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20 Isabel Ferin Cunha

que as telenovelas prestam um serviço pú- dade antropológica e sociológica das perso-
blico.61 nagens construídas pelas telenovelas brasi-
Ao mesmo tempo, os investimentos por- leiras, bem como o marchandise social que
tugueses no audiovisual e no domínio de constitui, hoje, uma mais valia para a ficção
técnicas e a melhoria das performances dos televisiva. E parece que a Globo já percebeu
profissionais, tendem a criar novos públi- que tem de entrar neste jogo de tematizar e
cos para as telenovelas feitas em Portugal, localizar as telenovelas em Portugal ao pro-
enfatizando a narrativa ficcionada, os ima- duzir Sabor de Paixão com algumas atenções
ginários, as expectativas e angústias nacio- ao público do além-mar.62
nais. Com este objectivo, nem sempre con-
seguido, tem-se vindo a localizar a ficção
6 Bibliografia
nas terras e cidades portuguesas – filma-se
o Douro, as lezírias ribatejanas e os Açores – Barreto, A., coord. (2000) A situação social
constróem-se personagens com base em es- em Portugal: 1960-1999, Lisboa, ICS.
tereótipos identificáveis – uma matriarca po-
derosa, jovens à procura de sucesso rápido – Conde, I. Contextos, Culturas, Identidades
mostra-se de relance as culturas regionais – In Viegas, J.M. e Costa, F. .(1998) Por-
os lagares de azeite e vinho, a culinária – e tugal que modernidade ? Oeiras, Celta.
os lugares de cult nocturno da juventude por- Correia, F. (1997) Os jornalistas e as Notí-
tuguesa. Por outro lado, assiste-se à busca cias, Lisboa, Caminho.
de temas que possam congregar diversos pú-
blicos (estratos sociais,faixas etárias, níveis Maxwell, K. (1999) A construção da demo-
de escolarização) à volta da narração de uma cracia em Portugal, Lisboa, Ed. Pre-
estória. A experiência da TVI com a teleno- sença.
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2002), ambientada na província de Gaza, em Pinto, M, coord. (2000) A comunicação e os
Moçambique, nos anos cinquenta, é um pis- Media em Portugal: 1995-1999, Braga,
car de olhos à identidade colonial portuguesa Instituto de Ciências Sociais da Univer-
perdida, ao recriar através de uma estória de sidade do Minho.
família – onde falta coragem para discutir o
Mesquita, M. Os meios de comunicação so-
que foi o colonialismo para os portugueses
cial In: Portugal 25 anos de democra-
e para os moçambicanos – uma sociedade
cia(1994) Lisboa, Circulo dos Leitores,
colonial idílica. Deve-se referir, contudo, o
pp. 360-405.
avanço técnico e organizativo que esta expe-
riência revela, bem como a contracenação de Mesquita, M. e Rebelo, J. (1994) O 25 de
grande número de actores portugueses e mo- Abril nos Media internacionais, Porto,
çambicanos. No entanto, a esta e às outras Afrontamento.
telenovelas portuguesas ainda falta a densi- 62
Motta, S. B. Novela com sabor português, Diário
61
Vilar, E. (2002), Telenovelas dividem opiniões, de Notícia: Media, 17/09/02, p. 44.
Público, 24/06/2002, p. 34.

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