Você está na página 1de 7

Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.

2005

NOVOS CAMINHOS, COOPERAÇÃO E SOLIDARIEDADE:


A PSICOLOGIA EM EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS1
Maria Chalfin Coutinho
Adriano Beiras
Dhiancarlos Picinin
Gabriel Luiz Lückmann
Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: Cada vez mais se buscam alternativas para garantir a sobrevivência das camadas mais atingidas da
população. Dentre as estratégias já realizadas, cabe destacar a ampliação e o desenvolvimento de organizações
populares, fundadas nos princípios da solidariedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho e geração de
renda para trabalhadores excluídos do mercado de trabalho formal ou informal. Dentro deste contexto, este
trabalho buscou evidenciar novas possibilidades de atuação da psicologia social e do trabalho junto a estas
organizações fundadas nos princípios gerais da autogestão. Para isso propôs-se a realização de uma discussão
sobre a economia solidária hoje e a delimitação do papel da psicologia neste setor. Assim, efetuou-se um breve
levantamento sobre o significado e os conceitos de economia solidária, autogestão, cooperativas e associativismo,
e sua historia no Brasil de forma a integrar este conhecimento com a psicologia visando evidenciar possibilida-
des de um novo campo de atuação.
PALAVRAS-CHAVE: Economia solidária, cooperativismo, psicologia social do trabalho

NEW PATHS, COOPERATION AND SOLIDARITY – THE PSYCHOLOGY IN SOLIDARY ENTERPRISES

ABSTRACT: More and more often, alternatives to provide the survival of the most needy part of the Brazilian
population have been searched. Amongst these strategies, solidary organizations accomplish an outstanding
work. Recently, these organizations have been developing and increasing in popularity, as well as providing
alternatives in employment and income for workers excluded from the formal and the informal labour market.
Given this scenario, there are contributions which social and occupational psychology can make to these self-
managing organizations. This article begins proposing a discussion about the current situation of solidary
economies and the definition of the psychologist’s role in this sector. This discussion is based on a research
regarding the history of solidary economies in Brazil, its meaning and related concepts, such as self-management,
cooperatives and associative organizations. The combination of the knowledge acquired through the research
and the psychology provides a new field of possible interventions.
KEY-WORDS: solidary economy, cooperatives, social and occupational psychology

INTRODUÇÃO zações populares, fundadas nos princípios da solida-


Vivemos em um momento de crise, desem- riedade, constituindo, assim, alternativas de trabalho
prego e intensa exclusão social. Homens e mulheres e geração de renda para trabalhadores excluídos do
se tornaram descartáveis, como meras mercadorias mercado de trabalho. É neste contexto que iniciamos
de prateleiras de supermercados, no qual excluídos se uma discussão sobre economia solidária e a partici-
tornam multidões. Em todo o mundo, crescem os pro- pação da psicologia social e do trabalho neste setor,
testos, em prol de alternativas para solucionar tais visando embasar teoricamente um projeto de exten-
problemas. Buscam-se maneiras que possam garantir são em psicologia2 .
a sobrevivência das camadas mais atingidas da popu- A psicologia tem, no que se refere ao traba-
lação, oferecendo oportunidade real de se re-inserir lho, grandes possibilidades de atuação, sendo de sig-
na economia por sua própria iniciativa; transforman- nificativa importância na medida em que possibilita
do, dessa forma, desempregados em microempresários resgatar, escutar as experiências dos trabalhadores,
ou operadores autônomos. seus sofrimentos, seu dia-a-dia dentro deste contexto
Entre as estratégias de sobrevivência cabe excludente do mundo globalizado. Assessorando-os na
destacar a ampliação e o desenvolvimento de organi- construção de uma consciência crítica, propondo no-
7
Coutinho, M.C.; Rodrigues, H.B.C.; Beiras, A.; Picinin, D.; Lückmann, G.L. “Novos caminhos, cooperação e solidariedade:
a Psicologia em empreendimentos solidários”
vas formas de experienciar o trabalho, reconstruindo os de produção e de processos coletivos de tomada de
vínculos e reivindicando direitos. Neste sentido, a psi- decisão, fundados na solidariedade de classe.
cologia social, voltada para o trabalho, busca com- Segundo Albuquerque, citado por Singer
preender a realidade social destes trabalhadores, iden- (2003), são identificáveis duas determinações essen-
tificando suas diferenças e igualdades, suas histórias, ciais do conceito de autogestão: a) superar a distin-
regras, reestruturações e lutas. Desta forma, busca-se ção entre quem toma as decisões e quem executa e b)
criar um novo campo de atuação para psicólogos, autonomia decisória de cada unidade de atividade. O
voltado para coletivos solidários de trabalhadores3 . caráter radical da autogestão abole a divisão social
O presente artigo se insere no campo propos- do trabalho, pois, em tese, os próprios produtores di-
to acima. Inicialmente propomos uma reflexão teóri- rigem sua produção e controlam os meios de produ-
ca sobre o conceito de Economia Solidária e suas for- ção, não existindo mais classes sociais, mercado, ou
mas de organização. Em seguida procuramos mesmo Estado. A autogestão não é uma relação ape-
contextualizar a realidade brasileira sobre este tema. nas política, mas uma relação de produção que se
Na seqüência, discutimos a participação da psicolo- dissemina por todas as esferas da vida social, porém
gia procurando evidenciar uma possível prática, den- não acreditamos que sua expressão radical seja possí-
tro de seus limites e possibilidades. vel no capitalismo. O que acontece são formas
organizativas solidárias inspiradas nos princípios
ECONOMIA SOLIDÁRIA autogestionários como: associações e cooperativas.
A economia solidária tem se disseminado Guillerm e Bourdet (1976) apontam um con-
cada vez mais como uma possibilidade de sobrevi- tínuo desde formas participativas mais limitadas, tal
vência das camadas da população excluídas do mer- como a gestão participativa e a co-gestão, até a
cado formal de trabalho. Manifesta-se sob diferentes autogestão social, que implicaria em uma transfor-
formas organizativas, construídas sobre princípios mação radical da sociedade. Para estes autores “[...]as
gerais que fundamentam a prática da autogestão, cooperativas têm convivido com o sistema capitalista
caracterizada por tomadas de decisão mais democrá- sem contestá-lo seriamente, uma vez que, não podem,
ticas, relações sociais de cooperação entre pessoas e por si mesmas, levar à autogestão social”(COUTINHO,
grupos e pela horizontalidade nas relações sociais em 2000, p. 14).
geral. Acreditamos que os empreendimentos solidá-
Gaiger (2000), acredita que a economia soli- rios podem constituir-se em alternativas de geração
dária estaria apontando para a possibilidade de cria- de trabalho e renda, mas são incapazes de confrontar
ção de uma forma social de produção diferente, que as formas mercantis de produção. Diante do contexto
convive com a produção capitalista. Já para Lisboa de desemprego e precarização das relações de traba-
(2000), esta foi concebida para atuar fora da esfera lho, as formas cooperativas, assim como outras orga-
estatal e em paralelo à economia mercantil, fundan- nizações do terceiro setor, não são “...uma alternati-
do-se na tradição familiar, na economia camponesa, va efetiva e duradoura ao mercado capitalista, mas
no trabalho por conta própria, nos empreendimentos cumpre um papel de funcionalidade ao incorporar
autogestionários. parcelas de trabalhadores desempregados pelo capi-
Machado e Ribas (2002) acreditam ser o ob- tal.” (ANTUNES, 2000, p.113).
jetivo central da economia solidária a geração de A economia solidária vem se estruturando hoje
possibilidades econômicas destinadas à reintegração através de associações e cooperativas. Associações são
dos “excluídos” pela ordem neoliberal de forma que quaisquer grupos sociais unidos em torno de uma fi-
passem a pertencer novamente ao processo de produ- nalidade específica e com estatuto orientado pelo
ção e, portanto, com possibilidade de trabalho e de Código Civil Brasileiro de 2002. No Brasil, o
renda. Para compreender a lógica da economia soli- associativismo ainda está em processo de constitui-
dária, segundo Singer (2000), é fundamental consi- ção como movimento social forte e articulado.
derar a crítica operária e socialista ao capitalismo, O cooperativismo teve contribuições teóricas
que condena a ditadura do capital nas empresas e o de vários pensadores, que procuravam ver realizada
poder ilimitado que o direito de propriedade dá ao uma ordem econômica baseada na justiça social,
dono dos meios de produção. impulsionando diversas realizações práticas. Segun-
A história da autogestão é marcada por vári- do Singer (2003), uma das mais famosas experiênci-
as experiências de lutas operárias, surgindo sempre as foi a de Robert Owen na Inglaterra. Esta iniciativa
depois de momentos de crise e caracterizando-se como de experimentar os princípios revolucionários de
uma estratégia bem definida na luta de classes, que autogestão e justiça social foi imitada em diversos
objetiva o pleno domínio do processo e das condições países.
de trabalho, através da propriedade coletiva dos mei- As cooperativas calcadas nas propostas soli-
8
Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

dárias em geral operam sob alguns princípios, como solidação das cooperativas no Brasil. Uma das prin-
liberdade de adesão, gestão democrática participativa cipais estratégias do movimento para fazer com que
e igualdade de participação econômica, isto é, cada as áreas assentadas se tornem economicamente viá-
membro contribui igualmente para o capital da coo- veis é organizar diferentes tipos de cooperativas. Singer
perativa, cujos excedentes, se for este o caso, terão (ibid.) também cita as Incubadoras Tecnológicas de
seu destino estabelecido através de decisões democrá- Cooperativas Populares (ITCP), que funcionam liga-
ticas feitas pela cooperativa. Todas as ações das coo- das a universidades como fortalecedoras do
perativas devem primar pela segurança do controle cooperativismo no Brasil. As incubadoras têm por
democrático e autonomia. As cooperativas devem pro- objetivo organizar grupos de trabalhadores em torno
mover a contínua educação e formação de seus mem- de cooperativas de trabalho ou de produção dando
bros, dos representantes eleitos e dos trabalhadores apoio administrativo e jurídico.
de forma que estes possam contribuir eficazmente para Atualmente, não há dados claros sobre o nú-
o desenvolvimento das mesmas. mero de empreendimentos autogeridos em nosso país.
A sobrevivência das cooperativas requer atu- Mas está evidente que seu número vem aumentando e
ação conjunta, através de suas representações locais, já é bastante significativo. Esse aumento se deve, prin-
regionais, nacionais e internacionais, facilitando a tro- cipalmente, as diversas formas de precarização do tra-
ca de produtos e serviços que possibilitem a subsistên- balho e ao aumento vertiginoso do desemprego. Po-
cia e desenvolvimento dos empreendimentos coopera- rém pode-se perguntar por que os empreendimentos
tivos em geral e criação de novas cooperativas. Con- autogeridos ganharam força nos últimos anos, já que
tudo, é preciso que se esteja atento a um mecanismo a precarização do trabalho e o desemprego estão pre-
utilizado por empresas que, para não terem de arcar sentes há muito mais tempo em nossa sociedade. Ocor-
com encargos sociais de seus empregados, alteram re que o tempo de retorno dos trabalhadores ao mer-
seus registros legais de forma a apresentarem uma cado formal está muito mais longo e muitos deles
“fachada” de cooperativa enquanto continuam funci- não tem possibilidade de voltar ao mercado formal
onando como empresas, isto é, calcadas na relação por diversos motivos como baixa escolaridade, faixa
patrão-empregado e sustentadas no lucro. São as cha- etária entre outros.
madas “cooperativas-gato”, que dão à sociedade uma
imagem falsa das cooperativas solidárias ou popula- O ENVOLVIMENTO DA PSICOLOGIA:
res, prejudicando os grupos que se mostram engajados CONTEXTUALIZAÇÃO E POSSIBILIDADES
em empreendimentos legitimamente solidários, que Buscando auxiliar os trabalhadores nesta di-
acabam esbarrando no preconceito e na escassez de fícil realidade, acreditamos que a psicologia social e
políticas públicas e linhas de crédito para esse tipo de do trabalho pode ser de grande valia para a consoli-
iniciativa. dação destes empreendimentos, atuando de diversas
maneiras, seja com a organização como um todo, seja
UM POUCO MAIS SOBRE OS com cada trabalhador. Priorizaremos aqui as inter-
EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS NO BRASIL venções de caráter coletivo, porém, faz-se necessário
Os primeiros empreendimentos solidários no adaptar técnicas tradicionais, como as dinâmicas de
Brasil começaram a ganhar mais destaque na década grupo, às características dos membros da comunida-
de 19804 e se tornaram mais comuns a partir da me- de, revendo referências de tempo, espaço, escolarida-
tade da década de 90. Eles são resultantes de vários de etc.
movimentos sociais que se mobilizaram diante da crise A psicologia do trabalho aplicada às organi-
de desemprego que passou a assolar o país a partir de zações passou por várias etapas desde o seu surgimento
1981 e se agrava no início dos anos 90 com a abertu- como instrumento das indústrias que seguiam os pres-
ra de mercado para os produtos importados. Segundo supostos tayloristas. A psicologia industrial, classifi-
Singer (2000), os primeiros empreendimentos são re- cada por Sampaio (1998) como a primeira face da
sultado do apoio de assessores sindicais a operários psicologia no campo, tinha como função realizar se-
que se apossaram da massa falida de empresas assu- leção e colocação profissional, ou seja, se integrava
mindo seu controle administrativo com o objetivo de ao princípio taylorista de colocar o sujeito na função
manter os empregos e a renda dos trabalhadores. Es- que melhor se adequasse às suas características. Além
sas empresas se uniram para formar a Associação disso, fazia orientação profissional e avaliava as con-
Nacional de Trabalhadores de Empresas dições de trabalho com o objetivo de aumentar a pro-
Autogestionárias e de Participação Acionária dutividade.
(ANTEAG). O mesmo autor classifica a segunda face da
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem psicologia aplicada ao trabalho como psicologia
Terra (MST) também tem papel fundamental na con- organizacional, argumenta que essa face não foi uma
9
Coutinho, M.C.; Rodrigues, H.B.C.; Beiras, A.; Picinin, D.; Lückmann, G.L. “Novos caminhos, cooperação e solidariedade:
a Psicologia em empreendimentos solidários”
ruptura com a primeira, mas sim a incorporação de Ao resgatarmos os conhecimentos acumula-
novas atividades como treinamento, classificação de dos pela psicologia comunitária, buscamos incorpo-
pessoal e avaliação de desempenho, além de passa- rar um saber construído a partir da perspectiva das
rem a discutir as estruturas das organizações de tra- camadas menos favorecidas da população. Pretende-
balho. Nesse período foram incorporadas as novida- se, assim, ampliar o campo de pesquisas e interven-
des do estruturalismo e da teoria sistêmica da admi- ções da psicologia do trabalho, tradicionalmente vol-
nistração. Fica claro que essa passagem não repre- tada para a adaptação dos trabalhadores ao modo
sentou mudanças nos objetivos da psicologia, pauta- capitalista de produção. Neste sentido, fizemos uma
dos no aumento da produtividade nas empresas. proposta de intervenção articulando as abordagens
Muitas críticas foram feitas à psicologia teórico-metodológicas da psicologia comunitária e da
organizacional enfatizando sua orientação psicologia do trabalho.
tecnocrática e sua falta de interesse pelo simbólico. Em nossa experiência nas atividades de ex-
Chanlat, citado por Sampaio (1998), coloca que a tensão universitária, encontramos grupos bastante
pesquisa e o desenvolvimento da psicologia heterogêneos, principalmente no que diz respeito à
organizacional foi orientada pela busca de eficácia, faixa etária. O trabalho foi feito em uma Associação
desempenho e produtividade. de Recicladores de Lixo, a partir de um levantamento
Sampaio (1998) critica o caráter instrumen- inicial das associações e cooperativas existentes na
tal da disciplina, mesmo quando da introdução de região da grande Florianópolis e de posterior apre-
novas teorias, como a teoria contingencialista. Esta sentação de uma proposta de intervenção. Nossa prá-
teoria, introduzida pela Administração nos anos 70, tica procurou tornar o grupo consciente de suas difi-
buscava compreender os fenômenos produtivos a par- culdades e conquistas, bem como de seu próprio pro-
tir dos condicionantes externos, mas mantinha o foco cesso grupal. O grupo levantou problemas a serem
no aumento da lucratividade. O questionamento dos resolvidos, tais como: a falta de conscientização do
objetivos da psicologia organizacional originou a ter- uso do material de segurança, a desvalorização do
ceira face da psicologia do trabalho, que busca com- trabalho e das condições fornecidas pelos próprios as-
preender o trabalho humano nos seus significados e sociados e pela população em geral.
em todas as suas manifestações. Diferencia-se das fa- “Compete, portanto, aos psicólogos/as comu-
ces anteriores por se voltar para a saúde e bem-estar nitários/as trabalharem na construção de uma cons-
dos trabalhadores, não priorizando o lucro e a produ- ciência crítica, de uma identidade coletiva e individu-
tividade. al mais autônoma e de uma nova realidade social
Diferente das práticas tradicionais, a psico- mais justa.” (Neves & Bernardes, 2001, p.242). Sendo
logia do trabalho voltada para as organizações soli- que, esta busca do desenvolvimento da consciência
dárias visa o desenvolvimento da autonomia e da so- crítica, da ética, da solidariedade e de práticas coo-
lidariedade, buscando re-significar a identidade pro- perativas ou autogestionárias, a partir da análise dos
fissional do trabalhador/cooperado, fortalecendo o problemas cotidianos da comunidade, marca, de acor-
vínculo grupal. Para a realização destes objetivos, o do com Freitas, citado por Campos, (1996), a produ-
resgate da psicologia comunitária mostra-se de gran- ção teórica e prática da psicologia social comunitá-
de valia, considerando que, historicamente, esteve ria.
voltada para os grupos populares. Na mesma linha Utilizando teoria e métodos da psicologia em
de pensamento de Campos (1996), procura-se traba- trabalhos feitos em comunidades de baixa renda, como
lhar com estes grupos para que eles assumam pro- em experiências em bairros populares, favelas, asso-
gressivamente o papel de sujeitos de sua própria his- ciações de bairro, comunidades eclesiais de base e
tória, conscientes dos determinantes sócio-políticos de movimentos populares, esta prática visa a melhoria
sua situação e ativos na busca de soluções para os das condições de vida da população trabalhadora,
problemas enfrentados. partindo de um levantamento das necessidades e ca-
Para Lane (2003), a psicologia comunitária rências vividas por cada grupo.
no Brasil surge no período posterior ao golpe militar
de 1964 como um questionamento dos profissionais E COMO ESSE TRABALHO PODE SER FEITO?
de psicologia a respeito da sua atuação junto à maio- Os métodos tradicionais da psicologia do tra-
ria da população. A autora também salienta que os balho, construídos nos setores de recursos humanos
grupos são o espaço privilegiado para uma análise das organizações de grande porte, não são compatí-
teórico-prática do desenvolvimento dos indivíduos e veis com as organizações solidárias, daí decorre ne-
que o psicólogo inserido em comunidades trabalha- cessidade de desenvolvimento de metodologias oriun-
rá, fundamentalmente, com as relações grupais, vín- das da psicologia comunitária e centradas nos pro-
culo essencial entre indivíduos e a sociedade. cessos grupais.
10
Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

Os programas de intervenção desenvolvidos dários. Este suporte teórico fundamentou a escolha de


em coletivos solidários devem buscar contribuir para técnicas de dinâmica de grupo adequadas para uma
sua organização e gestão. Para tanto, é preciso en- intervenção grupal transformadora, possibilitando que
frentar “...dois grandes desafios: 1) o de desenvolver os trabalhadores sejam vistos como sujeitos ativos,
estruturas e canais de diálogos compatíveis com as capazes de decidir coletivamente seus destinos, ainda
necessidades e a cultura dos cooperados; 2) o de ga- que conscientes de suas possibilidades e limites.
rantir a organicidade entre as estruturas A expectativa inicial era a de desenvolver um
organizacionais e os sujeitos que delas participam.” modelo de intervenção psicológica capaz de atender
(SCOPINHO & MARTINS, 2003, p. 136). às necessidades de organizações não tradicionais. Esta
Temos como principal objetivo o fortalecimen- experiência foi realizada a partir de módulos
to dos laços coletivos, atuando a partir do entendi- temáticos criados para organizar a atuação, relacio-
mento dos processos grupais desenvolvidos em cada nados a temas como: laços grupais, comunicação, li-
organização solidária, utilizando técnicas de dinâmi- derança e tomada de decisões em grupo, cooperação
ca de grupo que favoreçam a emergência das caracte- e solidariedade e identidade profissional e coletiva.
rísticas singulares do grupo. Em nossa prática com a Um desafio foi adaptar as práticas a trabalhadores
associação de recicladores, o nosso modelo de inter- com baixo grau de escolaridade (muitos analfabetos),
venção passou por várias revisões, já que, apesar de estabelecendo uma relação flexível e não autoritária
termos buscado referências não tradicionais da psico- com eles.
logia organizacional, o coletivo com o qual estáva- Procurou-se realizar atividades vivenciais ins-
mos lidando tinha especificidades que exigiram um pirados no psicodrama, em brincadeiras infantis e nos
trabalho de adaptação na linguagem utilizada e na jogos cooperativos, de forma que o conhecimento pu-
forma de intervenção. Apesar de algumas dificulda- desse ser entendido de forma mais eficiente e adequa-
des, encontramos resultados bastante positivos. Per- da para esses grupos. É importante destacar as contri-
cebemos problemas relacionados a: comunicação, buições da psicologia no que se refere a: compreen-
confiança e entendimento grupal (fofocas, intrigas, são de fenômenos grupais, tomadas de decisão e reso-
falta de conversa etc.). Vimos que a associação tem lução de problemas; fornecendo estratégias de resga-
seus mecanismos próprios para regular alguns destes te da cidadania e da consciência coletiva, estimulan-
problemas, como advertências verbais, regulamenta- do a reflexão dos trabalhadores sobre seu potencial
das no estatuto. como agentes de mudanças sociais.
O elemento desencadeador do processo grupal O contato com estas organizações permitiu
é o reconhecimento mútuo dos sujeitos, que ao se ve- que fosse percebido o quanto o apoio externo é funda-
rem compartilhando algo significativo, sentem-se cons- mental para sua sobrevivência. Foi possível observar
tituintes de um grupo. A partir do encontro promo- que freqüentemente a criação, manutenção e desen-
vem, simultaneamente, continuidades e rupturas com volvimento desse tipo de organização depende de apoio
a história pregressa, construindo assim sua própria de educadores, de sindicalistas ou de técnicos de ou-
rota, sendo esta marcada tanto pelas singularidades tras entidades. O desenvolvimento de políticas públi-
presentes quanto pela ação coletiva ali engendrada. cas voltadas para o campo da economia solidária tam-
Neste sentido, concordamos com a afirmação: “A pro- bém é fundamental para a sobrevivência dos coleti-
dução do coletivo se faz à medida que todos interagem vos solidários de trabalhadores.
e negociam visando o interesse em comum”, sendo
que “o coletivo é produzido concomitantemente pelas CONSIDERAÇÕES FINAIS
singularidades que o produzem” (ZANELLA & PEREI- A economia solidária decorre de um conjun-
RA, 2001, p.112). to de circunstâncias que pressionaram pela busca de
O que caracteriza a constituição do grupo é saídas para a difícil situação atual da classe traba-
a ação grupal ou coletiva, desencadeada por uma lhadora. Acreditamos que as experiências neste cam-
consideração mútua, realizando-se com o po resultam de um processo contínuo de trabalhado-
envolvimento de todos e tendo como resultado o cole- res em luta contra as desigualdades provocadas pelo
tivo. Desta forma, sua existência dependerá da ação capitalismo.
deliberada de seus participantes e este agir coletivo Atuando no processo grupal, pode-se, tam-
será gerador de outras novas necessidades que bém, auxiliar o grupo a tornar-se um local de diálo-
realimentarão, por conseguinte, as relações entre os go, solidariedade e cooperativismo, onde os sujeitos
sujeitos e seus interesses em trabalhar coletivamente. se envolvam na luta coletiva contra a opressão, injus-
Partindo do entendimento do processo grupal tiça e desigualdade, antes enfrentadas individualmente.
como uma ação coletiva, buscamos uma maneira de Se, por um lado, o desenvolvimento de um projeto
intervenção profissional adequada aos coletivos soli- comum transforma esses indivíduos em grupo, por
11
Coutinho, M.C.; Rodrigues, H.B.C.; Beiras, A.; Picinin, D.; Lückmann, G.L. “Novos caminhos, cooperação e solidariedade:
a Psicologia em empreendimentos solidários”
outro, é somente sua estruturação como grupo que (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas.
possibilita a construção de alternativas solidárias de Campinas, 2000.
luta.
Novos significados e ações são produzidos co- GAIGER, L. I. Sentido e possibilidades da economia
letivamente, pois juntos podem reconstruir seu mo- solidária hoje. In: KRAYCHETE, G.. et al. (org.)
mento histórico, modificando-o, buscando superar as Economia dos setores populares: entre a realidade e a
opressões existentes sobre o grupo. Tal superação, en- utopia. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p.167-190.
tretanto, defronta-se com os limites impostos pela in-
serção dos coletivos solidários em uma sociedade de GUILLERM, A; BOURDET, Y. Autogestão: uma
mercado, que privilegia valores econômicos. mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
A partir disso, cabe ressaltar a importância
de projetos de extensão universitária voltados para LANE, Sílvia T.M. Histórico e Fundamentos da
organizações solidárias, na medida em que estes au- Psicologia Comunitária no Brasil. In: CAMPOS, Regina
xiliam a população em suas necessidades básicas e H. de F.(org.). Psicologia Social Comunitária: da
especificas através de conhecimentos produzidos no solidariedade à autonomia. 9a ed.. Petrópolis: Vozes,
contexto da universidade, marcadamente nas univer- 2003. p. 17-34.
sidades públicas. A integração da universidade com
as comunidades permite a aplicação dos conhecimen- LISBOA, A.de M. Empresa Cidadã: na metamorfose
tos acadêmicos, adaptando-os a cada contexto e cri- do capital? Florianópolis: Cidade Futura, 2000.
ando novas possibilidades de atuação profissional. MACHADO, L. C. Pinheiro e RIBAS, C. Economia
solidária: solução ou engodo? Florianópolis:UFSC,
NOTAS [digitado], 2002.
1
Uma versão inicial deste artigo foi apresentada no
XII Encontro Nacional da ABRAPSO, em outubro de NEVES, S. M. ; BERNARDES, N. M. G.. Psicologia
2003 na PUCRS, Porto Alegre. Social e Comunidade. In: STREY, M. N. Psicologia
2
Projeto de extensão universitária do curso de Social Contemporânea, Petrópolis:Vozes, 2001.
graduação em psicologia da Universidade Federal de
Santa Catarina, intitulado “Assessoria Psicológica a SAMPAIO, J. dos R. Psicologia do Trabalho em Três
Organizações Solidárias de Trabalhadores”. Faces. In: GOULART, I. B. (Org.) Psicologia do Traba-
3
Entendemos aqui como organização solidária de lho e Gestão de Recursos Humanos: Estudos Contempo-
trabalhadores (OST) uma forma alternativa de geração râneos. (pp.19-40) São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
de renda, sendo que este coletivo pode se organizar
como cooperativa ou associação, caracterizando-se SCOPINHO, R. A; MARTINS, F. G. Desenvolvimento
por formas coletivas de tomada de decisão, propriedade organizacional e interpessoal em cooperativas de pro-
coletiva dos meios de produção e distribuição dução agropecuária: reflexão sobre o método. Psico-
igualitária dos rendimentos. logia & Sociedade, v.15, n.2, p.124-143, jul./dez.,2003.
4
É preciso ressaltar que as cooperativas agrícolas já
eram comuns no Brasil, mas não se caracterizavam SINGER, P. Economia Solidária: um modo de produ-
como empreendimentos solidários. ção e distribuição. In: P. SINGER, A Economia Solidá-
ria no Brasil: A autogestão como Resposta ao Desem-
REFERÊNCIAS prego. São Paulo: Contexto, 2000.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio
sobre a afirmação e a negociação do trabalho. São SINGER, P. Economia Solidária. In: CATTANI, A. A
Paulo: Boitempo, 2000. Outra Economia. Porto Alegre: Veraz, 2003.

BRASIL, República Federativa. Código Civil. São Pau- ZANELLA, A.V. & PEREIRA, R.S. Constituir-se enquan-
lo: Saraiva, 2002. to grupo: a ação de sujeitos na construção do coleti-
vo. In: Estudos de Psicologia, v.6, n.1, p.105-114, jan./
CAMPOS, Regina Helena de Freitas. A psicologia Social jun., 2001.
Comunitária In.: CAMPOS, Regina Helena de Freitas.
Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à
autonomia. Petrópolis: Vozes, 1996.

COUTINHO, M. C. Entre o velho e o novo: estratégias


de participação no trabalho. 2000. 284 f. Tese
12
Psicologia & Sociedade; 17 (1): 17-28; jan/abr.2005

Maria Chalfin Coutinho é docente do Departamento


e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina,
coordendadora do projeto de extensão Assessoria
Psicologia a Organizaçãoes Solidárias de
Trabalhadaores.
O endereço eletrônico da autora é:
chalfin@mbox1.ufsc.br

Adriano Beiras é Psicólogo, Mestrando em Psicologia


pela Universidade Federal de Santa Catarina.
O endereço eletrônico do autor é:
adrianobe@ibestvip.com.br

Dhiancarlos Picinin é Psicólogo, Mestrando em Psi-


cologia pela Universidade Federal de
Santa Catarina.
O endereço eletrônico do autor é:
dpicinin@uol.com.br

Gabriel Luiz Lückmann é Psicólogo formado pela


Universidade Federal de Santa Catarina.

Maria Chalfin Coutinho, Adriano Beiras,


Dhiancarlos Picinin, Gabriel Luiz
Lückmann
Novos caminhos, cooperação e
solidariedade: a psicologia em
empreendimentos solidários.
Recebido: 14/10/2004
1ª revisão: 27/01/2005
2ª revisão: 8/04/2005
Aceite final: 25/04/2005

13

Você também pode gostar