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O "novo normal" da exploração e o desmonte de direitos na plataformização do trabalho e da

educação

Material elaborado pelo Comitê de Base do Ensino Superior de Florianópolis-SC da Unidade


Classista e pela Célula Marcos Cardoso Filho do PCB-SC

Este texto foi elaborado com objetivo de sistematizar as discussões teóricas e políticas que a
militância do PCB tem realizado no confronto ao desmonte educacional que o país vem
enfrentando, em especial com a reconfiguração do padrão de acumulação capitalista que, em
decorrência da pandemia de Covid-19, acelerou medidas ainda mais impactantes para a
precarização do trabalho e do estudo. A plataformização da educação já não é mais uma medida
paliativa para o período pandêmico, ela já é uma “solução” para as empresas educacionais privadas
que exploram a educação como setor econômico para acúmulo de riqueza e ampliação de sua
lucratividade; e para os governos cortarem ainda mais recursos da educação pública. As ações
políticas que desenvolvemos no confronto à estas medidas, bem como a insistência da burguesia e
seus governos subordinados, parlamentos e gestões de escolas e universidades (direções e reitorias
tanto de instituições públicas como privadas), nos levou a realizar um seminário de aprofundamento
do debate, em novembro de 2022, para instrumentalizar nossas ações políticas e de agitação e
propaganda para levarmos adiante o embate contra mais um dos mecanismos de destruição do
presente e do futuro: o ensino híbrido/remoto/EaD e o trabalho remoto/teletrabalho.

Para analisar as políticas educacionais concebidas e implementadas na sociedade capitalista


temos que buscar a sua natureza, o seu ‘ser’, e não meramente sua caracterização em termos
descritivos e aparentes. Isso exige, em primeiro plano, reconhecer sua vinculação à ordem burguesa,
posto que não existe a política educacional per se, tampouco o Estado per se. Nos termos de Marx e
Engels, é preciso compreender a natureza do Estado burguês como o Estado do capital, como a
expressão e resultado do antagonismo de classes em que a classe dominante tem, no Estado, a sua
instância de poder político.

Nos atendo mais especificamente para o sistema de dominação do Estado moderno burguês,
Gramsci nos ajuda com um conjunto de conceitos que precisam ser compreendidos na sua
interconexão. Para Gramsci o Estado é constituído por aparelhos repressivos e coercitivos, mas
também se faz presente na sociedade civil, esta composta pelos aparelhos privados de hegemonia.
Para Gramsci (2014, p. 258), “isso significa que por Estado deve-se entender, além do aparelho de
governo, também o aparelho privado de hegemonia ou sociedade civil”. Dessa compreensão deriva
o conceito de Estado integral ou ampliado que, organicamente, contém em si a sociedade política,
ou Estado restrito, e a sociedade civil, espaço no qual ocorre a luta de classes.

Portanto, quando nos propomos a analisar as políticas educacionais e sua estreita vinculação
à ordem do capital, é preciso desfazer a quimera ideológica da suposta divisão dicotômica na qual
estaria, de um lado, o Estado neutro, e, de outro, a sociedade civil que, se bem organizada – leia-se
organizações da sociedade civil e tutti quanti –, cumpriria seu papel na garantia do exercício da
cidadania.

Por essa razão Gramsci formula o conceito de Estado integral ou ampliado, que comporta
em si, de forma orgânica, tanto a sociedade política (Estado restrito) quanto a sociedade civil
(espaço de luta de classes em que atuam os aparelhos privados de hegemonia). Isso implica que o
poder do Estado como um órgão de dominação de classe se dá não apenas no âmbito da sociedade






política, mas, medularmente, nos espaços da sociedade civil nos quais estão presentes os aparelhos
privados de hegemonia e seus intelectuais orgânicos. Caberia então aos intelectuais orgânicos do
capital, a função de elaboração da ideologia da classe dominante.

Além de desmitificar o conceito de Estado é preciso compreendê-lo no âmbito da crise do


capital. Sabe-se que, sob o modo de produção capitalista, a produção da existência dá-se pela
divisão social do trabalho e pela propriedade privada dos meios de produção, na qual a força de
trabalho é reduzida a mercadoria. O que interessa ao capital não é o trabalho como valor de uso para
atender a necessidades humanas, ainda que dele não possa prescindir, mas o trabalho como valor de
troca, para assim garantir as necessidades do capital em seguir seu curso de acumulação por meio
da extração da mais-valia (o excedente de trabalho apropriado pelos proprietários dos meios de
produção).

No entanto, a acumulação de capital leva as contradições do capitalismo a um nível em que


as crises são determinações que o próprio sistema do capital encontra para reestruturar a base de
produção e alterar a forma da exploração do trabalho e produção de lucro para reconfigurar o
padrão de acumulação capitalista do período. Nas palavras do próprio Marx (2008, p. 327), as crises
“não são mais do que soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções
bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito”.

Na formulação de Marx, o desequilíbrio se dá pela desproporcionalidade entre a ampliação


do trabalho morto e a compulsória diminuição do trabalho vivo. Isso ocorre porque o capital vive na
concorrência entre capitalistas e a cada novo ciclo de acumulação os investimentos devem garantir
aumento na produtividade do trabalho mediante o desenvolvimento de tecnologias. Acontece que o
valor é determinado pela quantidade de trabalho humano abstrato e, portanto, somente pode ser
obtido pelo consumo da força de trabalho. Então, tem-se uma situação de instabilidade exatamente
por haver um maior incremento em capital constante, como máquinas e matérias-primas, em
detrimento do investimento em capital variável, isto é, a força de trabalho, provocando a queda
tendencial da taxa de lucro (MARX, 2011) e a consequente retomada do ciclo valendo-se de
dispositivos que atenuem o efeito.

A crescente degradação das condições de vida da população mundial, em larguíssima


medida, indica a devastadora avidez do capital na recuperação de suas taxas de lucro à custa da
exploração do povo trabalhador; desse modo, a cada nova crise do capital, são implementadas
políticas mais regressivas à maioria da população que vive do seu trabalho. Marx (2008) denominou
de “contratendências” as ações por parte do capital para se recuperar ou para minimizar a queda
tendencial da taxa de lucro, materializadas em seis dimensões: intensificação da exploração do
trabalho; redução dos salários; baixa de preços do capital constante; constituição de uma
superpopulação relativa; ampliação do mercado externo e aumento do capital em ações.

Nos períodos de reconfiguração da acumulação do capital, necessariamente um conjunto de


modificações por dentro da ordem de exploração, opressão e dominação são estabelecidas para a
retomada de lucratividade burguesa. Dentre essas modificações, a educação é uma das principais
condicionantes para o novo padrão, em dois sentidos principais: a) produzir a mercadoria força de
trabalho adequada às novas exigências da esfera produtiva com características determinadas pelo
mercado e que, na atualidade, intelectuais orgânicos da burguesia as gourmetizam chamando de
“competências e habilidades”; b) incidir na elaboração subjetiva de trabalhadores e trabalhadoras
para aprofundar e atualizar a forma da alienação presente na esfera de produção e que se eleva para






a consciência através de instrumentos ideológicos de dominação. As expressões da ideologia na


educação se apresentam de forma “dócil e moderna”, como: empregabilidade, empreendedorismo,
resiliência, cidadania etc, porém todas estas buscam capturar uma subjetividade destroçada pelas
condições degradantes de vida para um alinhamento às demandas da burguesia.

Um elemento novo a ser considerado no controle do tempo e ritmo de trabalho impostos à


trabalhadores e trabalhadoras da educação na atualidade consiste na aquisição de novas habilidades
voltadas para a gestão da sala de aula que considere a resolução das adversidades ali encontradas.
Esse gerenciamento de conflitos e das carências de estudantes envolve um dispêndio maior de
trabalho educativo, forçando a assumir novos papéis, para os quais se exige o desenvolvimento de
capacidades cognitivas e interpessoais para solucionar o impossível: as demandas crescentes
oriundas da desigualdade da sociedade capitalista. De docentes agora pede-se a metamorfose em
gestor de conflitos; de Técnico-Administrativos em Educação (TAE) se exige que assumam funções
múltiplas de organização pessoal de estudantes e famílias que sequer têm conhecimento de seus
direitos.

Nessa dinâmica de reconfiguração, os organismos internacionais capitalistas são


determinantes para a reelaboração das políticas educacionais que os países integrados e
subordinados ao capitalismo adotam, especialmente a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial (BM). Exemplo de como o BM contribui
para definir consensos em torno da educação está no documento: “Professores excelentes: como
melhorar a aprendizagem de estudantes na América Latina e Caribe” de 2014. Neste documento,
sob o argumento de melhoria da qualidade do ensino, o BM define para o professorado seu trabalho
e a sua carreira profissional.

A Conferência Mundial sobre Educação para Todos (promovida pela UNESCO, UNICEF,
PNUD e BM), realizada em Jomtien na Tailândia em março de 1990, estabeleceu um pacto mundial
dos organismos internacionais com as nações subordinadas em torno de um projeto educacional que
visava, dentre outros aspectos, determinar a transformação da educação como direito em um
serviço, ou seja, em mercadoria ofertada e consumida. Os termos da Carta Compromisso desta
conferência utilizam palavras dóceis para ações violentas contra o povo trabalhador. Neste
documento, quando se fala em “fortalecer alianças” significa integrar o público e o privado para a
oferta do “serviço” educação; quando fala em “melhoria da qualidade” aponta indicadores nacionais
e internacionais como parâmetros educacionais abstratos que desconsideram a realidade dos
contextos desiguais e combinados do capitalismo; quando fala em “solidariedade internacional” se
refere à abertura política e legislativa para a inserção de conglomerados empresariais da educação
mundial e exploração dos recursos públicos e do patrimônio nacional para fins de lucratividade
capital-imperialista.

A partir das diretrizes imperialistas desses organismos e compromissos, os governos


brasileiros, comprometidos com a ofensiva neoliberal que se desdobra para a educação impõem
alterações que vão desmontando a educação pública brasileira em prol dos interesses privados de
lucratividade. Os governos FHC (PSDB) estabeleceram uma grande Reforma Administrativa do
Estado com caráter neoliberal que se desdobrou em algumas políticas educacionais de caráter
privatizante. Mas. não conseguiu avançar em todo o seu programa destrutivo. Foram os governos
Lula e Dilma (PT) que implementaram as políticas neoliberais de FHC e avançaram ainda mais em
políticas de desmonte da educação pública. As principais políticas educacionais dos governos
petistas foram aquelas que criaram programas de repasse de recursos públicos para as empresas




educacionais privadas - o sonho de FHC e dos Chicago Boys que Lula e Dilma realizaram -, tais
como: Prouni, Proies, Pronatec e restruturação do FIES que já havia sido criado no governo FHC.
E, além de transferir recursos da educação pública para a iniciativa privada, fomentou o
mecanismos da dívida pública através de negócios financeiros de títulos da dívida repassado à
empresas educacionais. Mesmo políticas como o REUNI de ampliação de cursos e matrículas no
Ensino Superior, são determinadas pela lógica destrutiva do trabalho e da educação, pois a
contratação de docentes e TAEs para as instituições públicas ampliaram a defasagem de pessoal em
relação à quantidade de horas e estudantes para atendimento, ou seja, o aumento da demanda foi
muito superior às contratações de pessoal para as instituições de ensino, intensificando o trabalho e
piorando as condições de estudo para a juventude. Sem contar que o Reuni não foi apenas um
programa de ampliação de vagas em instituições de ensino superior, as legislações educacionais
estabelecidas junto ao programa definem que o REUNI é uma concepção de universidade em que os
currículos de formação são aligeirados e determinados por competências, a qualidade da educação é
avaliada por formas de ranqueamento, o financiamento é condicionado à indicadores de avaliação
externa e captação de recursos de empresas privadas, dentre outros aspectos já amplamente
apontados em estudos e pesquisas sobre as políticas educacionais dos governos petistas. As políticas
privatistas do PT no governo federal se ampliaram também com outras políticas como: Lei de
Inovação Tecnológica, Lei das Parcerias Público-privadas, Marco Legal de Ciência, Tecnologia e
Inovação, Ebserh e outras.

O desmonte da educação pública para o expansão das empresas educacionais privadas teve
fortalecimento ainda maior no governo Dilma (PT), especialmente na elaboração do PNE
(2014-2024) que teve como principal protagonista o conglomerado empresarial chamado Todos
Pela Educação que vem, há décadas, definindo a política educacional que os governos
implementam. Um PNE privatista e gerencialista que estabelece a ampliação do acesso à educação
condicionado à programas de repasse do fundo público para a iniciativa privada. É também no
governo Dilma (PT) que as medidas de contingenciamento (que na prática são cortes
orçamentários) de recursos para a educação se tornam mecanismos constantes do Poder Executivo
para diminuir recursos para a educação pública federal. Desde 2013 que estas medidas vêm sendo
adotadas e, no governo do usurpador Michel Temer (MDB), se tornaram parte da Constituição
Federal através da EC 95/2016 que diminui drasticamente o orçamento da União para os direitos
sociais e serviços públicos.

É no governo Temer (MDB) que também se aprova a Reforma do Ensino Médio e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), já gestadas nos governos anteriores, que estabelecem um
projeto de educação adequado para as transformações do mundo do trabalho do período de crise do
capital, portanto, precarizantes e alienantes da formação escolar na Educação Básica e no Ensino
Superior.

No governo genocida de Bolsonaro (PL), os vários Ministros da Educação se enredaram em


denúncias de corrupção, ataques às universidades públicas, fomento de empresas educacionais
privadas, adestramento religioso e projetos que foram combatidos e derrubados pela classe
trabalhadora, como o Future-se. Porém, na esteira do desmonte, algumas políticas foram adotadas:
das escolas civis-militares, homeschooling e intervenções nas universidades para definição de
reitorias.

Além das políticas educacionais, outras determinações que precarizam a educação pública
dizem respeito às mudanças nos direitos sociais e trabalhistas que, ao longo de todos estes




governos, conformam a demanda do capital sobre o trabalho. Ou, como amplamente utilizamos
como palavra de ordem: o lucro acima da vida! Desde FHC, todos os governos desmontaram o
sistema previdenciário com as Reformas da Previdência que praticamente impedem trabalhadores e
trabalhadoras de acessarem a aposentadoria através do regime de previdência pública, fortalecendo
e criando fundos privados de pensão que somente servem para ampliar a destinação de recursos
públicos e de trabalhadores e trabalhadoras para o mercado financeiro.

As diferentes medidas de desmonte dos direitos trabalhistas também são impactantes para a
precarização do trabalho e estudo. Desde a ampliação das formas de terceirizações que não apenas
atribuem à empresas terceirizadas as “atividades fim”, que acabam por diminuir a realização de
concursos públicos e contratações para as instituições de ensino (que passam a contratar empresas
que oferecem serviços de gestão educacional e/ou de docentes remunerados pelo número de aulas
dadas). A ampliação da pejotização (pessoas contratadas como pessoa jurídica com registro em
CNPJ) que restringe o acesso do trabalhador e da trabalhadora a direitos previstos no regime
jurídico do serviço público ou da carteira assinada: como férias, décimo terceiro salário, licenças
maternidade e de saúde, dentre outros direitos que fazem parte da regulação social do trabalho
conquistadas com muitas lutas sindicais. O trabalhador e a trabalhadora, nessa forma de relação de
trabalho, prestam serviços. Portanto, assim como a pessoa entrega um lanche sendo moto-boy, faz
uma faxina como diarista, cuida de um cachorro como petsitter, também dá uma aula como docente.
E recebe por serviço prestado e não como trabalho com proteção social.

Em meio à essa desregulação do trabalho, o avanço da uberização em diversos setores tem


ampliado formas degradantes de vida. Resumidamente, se trata da plataformização do trabalho que
não é apenas uma modalidade de emprego, mas de relações de trabalho estabelecidas por meio de
plataformas digitais que controlam e determinam o tipo de serviço prestado pelo trabalhador e pela
trabalhadora. Muitas vezes, inclusive, o trabalho por meio de aplicativos impede até mesmo que se
saiba quem é o patrão que deve ser cobrado por prejuízos decorrentes do trabalho, empresas que
operam no mundo todo com matriz em outros países com legislações distintas e nas quais
algoritmos determinam mais sobre o trabalho do que qualquer tribunal.

O apelo futurístico da tecnologia e modernidade, em geral, são narrativas que buscam


mascarar o real sentido da plataformização do trabalho: ampliar a extração de mais-valia absoluta e
relativa. As “modernas” relações de trabalho por meio de plataformas desresponsabilizam o patrão
capitalista de dispor os meios de produção da sua empresa, pois é quem trabalha (pessoa que se
cadastra no aplicativo e aceita os termos) que vai dispor destes meios para ser explorado, fazendo
com que o burguês receba somente o lucro (em geral é aquela taxa ou percentual pago ao aplicativo/
plataforma digital para operar o serviço prestado) e não precise sequer ter endereço da empresa.
Não paga salário, não assina carteira, não responde à sindicato e nem à Justiça do Trabalho. Sem
contar que a jornada de trabalho não é regulada, a trabalhadora e o trabalhador podem estar 24h
disponíveis para a empresa (o aplicativo, no caso) ou podem ser remunerados por serviço prestado,
portanto, jornadas exaustivas por conta da baixa remuneração e competição de mercado que acabam
por determinar a vida da pessoa durante toda a sua rotina diária.

O cenário pandêmico na educação, sob a prevalência do Ensino Remoto/híbrido,


impulsionou o fortalecimento do perfil docente pretendido pelo Banco Mundial, principalmente no
que diz respeito à utilização das Tecnologias da Comunicação e Informação (TICs) e a utilização
das plataformas educacionais presentes no mercado de EdTechs (Startups que desenvolvem meios
tecnológicos de instrução e adestramento educacional). Não é por outra razão que a lista da Forbes




dos dez maiores milionários do mundo em 2022 tem sete destes vinculados à empresas de
tecnologias digitais de informação, ou seja, um setor da economia preponderante à demais setores
para enriquecimento de poucas pessoas. O que está em jogo nestas determinações para a educação
são: a formação docente e profissional, a gestão do tempo e do trabalho na sala de aula, a
responsabilização e a alteração na carreira de trabalhadores e trabalhadoras da educação.

O mercado de EdTechs e o aprofundamento da precarização do trabalho na educação


impõem um perfil de professorado que aqui podemos chamar de “docentes de plataforma”. As
plataformas têm sido utilizadas para diversas funções, como gravação de vídeos, realização de
reuniões, depósito de aulas, entre outros. O que se observa é um fenômeno de hiper-exposição em
contextos mediante os quais o seu trabalho é constantemente vigiado e sujeito a intervenções das
famílias a partir de critérios que elas mesmas estabelecem como certo ou errado, via de regra,
desprovidos de parâmetros pedagógicos. E a própria autonomia do trabalho docente é restrita na
medida em que são as próprias plataformas que definem os meios e a forma do trabalho a ser
desenvolvido. Até mesmo questões sobre propriedade intelectual estão em pauta, pois a gravação
das aulas resultam em um produto (arquivo digital) que pode ser reutilizado ou vendido como uma
mercadoria produzida por docentes, mas que não tem a propriedade de seu próprio trabalho.

Um segundo aspecto é que o trabalho remoto/híbrido/teletrabalho se caracteriza por ser


intemporal. Assim, o trabalho desempenhado em casa mescla-se ao trabalho doméstico e
compromissos familiares (como o cuidado à familiares crianças, adolescentes, idosos, com
deficiência e demais dependentes no âmbito doméstico). Além da necessidade de engajar-se em
grupos de atendimento à familiares de estudantes, por meio de aplicativos de bate-papo, nos fóruns
de conversas, na troca de e-mails com demais colegas e gestões, dentre outros, resultando na
disponibilidade praticamente em tempo integral (em qualquer horário e dia da semana) e
ocasionando a sensação de que o expediente nunca termina. E, praticamente remontando a
acumulação primitiva do capital, cada vez mais a legislação vai regulamentando o trabalho por
produtos/tarefas para TAE, ou seja, a jornada é calculada por uma média de tempo para cada tarefa,
por exemplo: um atendimento à estudante vale X horas, elaborar e emitir pareceres valem X horas,
realizar projetos e execução orçamentária, patrimonial e de pessoal valem mais X horas. A
responsabilidade pelas condições de trabalho é da pessoa em teletrabalho e não mais da instituição
de ensino e, dadas as contradições da sociedade capitalista, as condições de vida também são
distintas para trabalhadores e trabalhadoras. A lógica do trabalho por produto/tarefa tenta equiparar
desiguais pela mercadoria/produto produzida. A título de exemplificação, o patriarcado diferencia a
realidade do trabalho doméstico em escala gigante, nas quais as mulheres sofrem com as múltiplas
jornadas originadas na opressão patriarcal. Portanto, trabalhar em sua residência tem tempos e
demandas distintas para homens e mulheres, como então podemos pensar que uma mesma tarefa
leve tempo igual para o homem e para a mulher mesmo que sejam da mesma categoria profissional?

Ainda sobre jornada de trabalho, a classe trabalhadora sempre luta pela regulamentação da
jornada como instrumento de proteção contra a superexploração, assim como a permanente luta pela
diminuição da jornada sem diminuir salários é uma luta histórica dentro do capitalismo na medida
em que o trabalho é vendido à um patrão que explora, portanto, o tempo de trabalho é um tempo
que não pertence ao trabalhador e à trabalhadora. Quanto menor for esse tempo vendido, mais horas
sobram para a autonomia de sua vida. Na jornada de trabalho docente, uma das lutas da categoria
tem sido, há décadas, a referência da Hora Aula ao invés da Hora Relógio, pois o tempo de um
período escolar não é o mesmo para a realização de uma aula, pois esta necessita ter preparação,
organização e produção de materiais didáticos, avaliação, atendimento antes e depois do período



etc. E se a forma remota/híbrida das aulas avançar ainda mais, possivelmente as lutas sindicais da
categoria em relação à jornada de trabalho será entre horas síncronas e assíncronas. Obviamente que
a burguesia e os governos quererão regular a jornada ampliando a intensificação do trabalho
docente e a precarização do mesmo.

Um terceiro aspecto diz respeito à responsabilidade de arcar com os custos da reprodução da


própria força de trabalho: plano de internet, aparelhos, energia elétrica, adaptação de um cômodo
específico no ambiente doméstico e afins. Sem contar com a manutenção dos equipamentos e
ambientes todos voltados para a instituição de ensino e não mais para sua moradia. Praticamente se
expande a abrangência física da instituição para a casa de docentes, TAEs e estudantes. Para
estudantes a precarização é ainda maior na medida em que a juventude trabalhadora, em sua
maioria, tem acesso à internet e equipamentos bastante limitados enquanto estudantes com maiores
rendas têm acesso à educação em qualidade superior. Portanto, a desigualdade social é ampliada
através das formas híbridas/remotas de ensino e a qualidade da formação é prejudicada pelo modelo
que responsabiliza cada estudante, TAE e docente pela qualidade do trabalho que realiza.

O quarto aspecto que destacamos diz respeito às questões pedagógicas e de formação da


juventude, sejam em escolas ou instituições de Ensino Superior. A inserção da plataformização do
trabalho e estudo não é apenas medida de redução de gastos, mas também um projeto político de
dominação que impõe uma educação precarizada para formar sujeitos ainda mais subsumidos pela
alienação própria da produção capitalista. A reconfiguração do padrão de acumulação capitalista
requer a produção de um outro tipo de força de trabalho, adaptada à lógica da insegurança e
instabilidade no emprego; a formas de renda precárias, informais ou pejotizadas; de competências
gerenciais de plataformas tecnológicas sem necessitar conhecimento científico e filosófico da
realidade; de normalização do trabalho por produto/meta que nas instituições educativas já iniciam
com a certificação por tarefas realizadas (a “presença” em aula comprovada pela entrega de um
trabalho, a conclusão de uma disciplina baseada nas tarefas entregues etc). E, ainda, o isolamento
do aprendizado em que cada estudante está em sua casa em frente à tela, o adapta à lógica ferrenha
do individualismo competitivo e predatório do mercado capitalista. Não há trocas e
compartilhamentos de saberes entre a diversidade de sujeitos em um mesmo espaço, estudantes não
constituem vínculos e relações com outras pessoas que também contribuem na sua formação
humana. O diálogo e a interação entre diferentes perspectivas de mundo que possibilitam uma
expansão de si enquanto ser humano são restringidas pela quantidade de dados que acessa no plano
de internet e pela tela que robotiza sujeitos supostamente igualando todo mundo na “nuvem” de
alienação que o ensino e trabalho remoto criam. Aliás, a título de ilustração sobre a importância do
vínculo interpessoal criado em espaços presenciais, podemos questionar: porquê as igrejas não são
online/remotas/híbridas/à distância?

O projeto de educação precarizado pela plataformização do trabalho e estudo desconsidera


um dos mais importantes meios de aprendizado que é o território educativo. Uma instituição de
ensino também é educadora dos sujeitos dela, sejam estudantes, TAE ou docentes, na medida em
que há toda uma organização do trabalho pedagógico que pressupõe uma estrutura em que o estudo
e o trabalho são elaborados a partir das necessidades de aprendizados que buscam sempre se
ampliar. A qualidade da formação é incomparável quando pensamos em uma instituição na qual
estudantes acessam bibliotecas, salas de estudos individuais e coletivos, participam de projetos de
ensino, pesquisa e extensão, têm acesso à laboratórios diversos, à práticas corporais e artísticas,
orientação psicológica e pedagógica e, acima de tudo, constituem vínculo com o espaço em que
existe unicamente para sua própria formação enquanto sujeito. E, mais uma vez dadas as condições



desiguais do capitalismo, a grande maioria de estudantes tem acesso a única refeição diária de
qualidade na merenda escolar e nos restaurantes universitários do Ensino Superior garantidos pela
assistência estudantil.

A pergunta central de todo esse processo de desmonte educacional pela plataformização do


trabalho e estudo é: tecnologia a serviço de quem? E respondemos em dois pontos centrais: a)
ampliar a miséria material e teórica do povo trabalhador; b) fragmentar a classe trabalhadora para
dificultar as lutas coletivas.

Sobre o primeiro ponto, mesmo que a burguesia e os governos subordinados repitam


constantemente a fantasia apelativa da modernidade como avanço tecnológico, a questão central
posta é da redução de investimentos em educação pública e produção de lucratividade da educação
privada. Para entender isso basta pensarmos nos desdobramentos da ampliação do teletrabalho/
trabalho remoto e do ensino híbrido para as instituições de ensino: se estudantes irão acessar a sua
formação na sua residência e não mais nas estruturas físicas das instituições, não haverá mais
necessidade de investimentos em bibliotecas, salas de aula, espaços de convivência, auditórios,
laboratórios, restaurante universitários e outros espaços necessários para uma formação de
qualidade; assim como, docentes e TAE não terão condições de trabalho adequadas nas instituições
pois não mais estarão presencialmente nestes espaços. Na prática, isso significa que diversos
trabalhadores e trabalhadoras das empresas terceirizadas de manutenção, portaria, segurança,
transporte, serviços gerais e alimentação serão demitidos por “falta de demanda”. Da mesma forma
não haverá necessidade de concursos públicos para contratação de TAE para trabalhar em
bibliotecas, departamentos, colegiados de curso, laboratórios e outras funções previstas no plano de
cargos e salários da categoria. Portanto, a miserabilidade do povo trabalhador se amplia na medida
em que essa moderna tecnologia será responsável por demissões em massa.

Esse quadro ainda se agrava com a “substituição” de docentes e TAE por plataformas
gerenciais e educativas, inclusive com a aquisição de pacotes de cursos online pelas instituições que
descartam a necessidade de docentes e TAE para o trabalho pedagógico. A qualidade da formação
não é, nem de longe, a preocupação dos propagandistas das formas remotas de ensino e trabalho.

O segundo ponto trata da compreensão da luta de classes como uma determinação da


sociedade do capital em que a classe dominante, para perpetuar sua dominação, cria diferentes
formas ideológicas e impositivas contra a classe trabalhadora tentando desarmar essa mesma classe
inclusive de suas formas de luta e resistência. É imperativo para as organizações proletárias a luta
coletiva que somente é possível na medida em que a classe se encontra nos mesmos espaços: no
trabalho, na instituição de ensino, na associação de bairro e desses encontros se constituem a
identidade da classe nas demandas de vida que se transformam em perspectivas de reivindicação e
luta, que avançam para a constituição de organizações da classe que podem confrontar a burguesia
tensionando por outro modo de vida que não da exploração e da opressão.

Nas instituições de ensino, tanto os sindicatos como o movimento estudantil são as


organizações da classe que historicamente tem realizado lutas sociais que garantem, ainda, o acesso
à educação pública e gratuita. E o trabalho político de organização é coletivo, portanto pressupõe
que TAE, docentes e estudantes compartilhem espaços coletivos para construção de suas lutas. Na
forma plataformizada da educação, se amplia a fragmentação da classe na medida em que cada
sujeito está isolado em sua moradia e não se encontra em suas reivindicações. O empreendedorismo
e o isolamento subjetivo que se interpõem são motivadores da dispersão da classe que não mais se





encontra nos espaços. As iniciativas tecnológicas apresentadas têm também o sentido de confrontar
as organizações da classe para dificultar sua mobilização e luta. Podemos traçar um paralelo em
relação à reestruturação produtiva neoliberal dos anos 1990 no Brasil que modificou a esfera
produtiva das grandes indústrias para polos atomizados de produção que colocava o povo
trabalhador em diferentes setores da produção e não mais em fábricas que reuniam um contingente
maior de trabalhadores e trabalhadoras que se organizavam em seus sindicatos e lutavam pela
conquista de direitos. Assembleias e reuniões em formato online não substituem, de nenhuma
forma, a luta presencial, coletiva e de mobilização da classe. Inclusive, se torna comum que “fura-
greves” se utilizem das plataformas online para ministrarem aulas ou realizar suas tarefas no
teletrabalho. A plataformização da educação, portanto, incide na luta de classes para desarmar a
classe trabalhadora nos instrumentos políticos que historicamente garantem direitos sociais.

Por todas estas razões e análises aqui desenvolvidas que entendemos a importante tarefa da
classe trabalhadora de combater todas as iniciativas de plataformização da educação e do trabalho.
Para garantir a qualidade da educação e da formação humana, para evitar o aumento do
desemprego, para garantir assistência estudantil de acesso e permanência e, principalmente, para
lutar por uma educação da classe e pela classe. Somente no presencial e coletivo conquistamos o
futuro da humanidade emancipada das amarras do capitalismo.

Referências

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2014.

BANCO MUNDIAL. Professores excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na


América Latina e Caribe. 2014. Disponível em: <http://www.worldbank.org/content/dam/
Worldbank/Highlights%20&%20Features/lac/LC5/Portuguese-excellent-teachers-
report.pdf>.Acesso em: 24 nov. 2016.

MARX, Karl. Parte terceira. Lei: Tendência a cair da taxa delucro. In:Marx, Karl. O capital. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 277-316. Livro 3. Volume 4.

MARX, Karl. A lei geral da acumulação capitalista. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia
política. 25. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011. v. 2, livro II, p. 713-824.

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