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19/06/2022 15:22 Diferença sexual

Diferença sexual: uma questão de poder

(conferencia no I Simpósio de Gênero e Literatura da


Universidade Federal do Ceará- agosto 2011)

tania navarro swain[1]

Vivemos hoje uma sexualidade exacerbada. Tudo se passa


em torno de ter ou não ter relações sexuais, quando, com quem,
como, quantas vezes. A virilidade se mede em ejaculações, a
violência material e simbólica em relação às mulheres se
banalizou de tal forma que a capacidade de indignação se
estiola.

Os estupros são contados a cada segundo, quer seja em


estado de guerra ou de normalidade, em democracias ou estados
fundamentalistas e totalitários. Tráfico, venda de meninas e
mulheres, prostituição naturalizada, a violência hoje é uma
face incontornável da sexualidade, que, porém, necessita cada
vez mais de estímulo para se produzir. Pedofilia, mutilações,
assassinatos de mulheres que recusam tornar-se propriedade de
alguém, que não se acomodam às normas de comportamento, são
todos desdobramentos de uma sexualidade desenfreada, que não
conhece limites e que se renova em cada filme, na televisão,
nos jornais, na mídia em geral.

Os mídia não cessam de despertar a necessidade e o


desejo de sexo, mais sexo, nada mais que sexo. E não cessam
também de mostrar a violência que se instala nesta incansável
busca de sexo, nunca saciada, sempre renovada. Denúncia ou
incitamento? São as duas faces de uma mesma moeda.

Se olharmos porém, com mais atenção, a sexualidade se


desdobra em uma série de categorias que a compõem, cujo menor
peso é dado, finalmente, à sua consecução, ou seja, ao
orgasmo.

Se uma relação sexual pode durar alguns segundos ou


minutos, ou horas, a importância que lhe é dada passa pelo
encontro de corpos, de peles, de gostos, e sobretudo pela
excitação de um imaginário que alia genitália e satisfação em
diferentes níveis.

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Entretanto, não é apenas adrenalina, endorfina,


estremecimentos, suspiros ou gritos, relaxamento muscular. A
sexualidade tem um aspecto simbólico que é mais poderoso que o
próprio ato físico, pois ultrapassa as barreiras e limites dos
corpos. A sexualidade se produz em estratégias e instâncias de
poder e da produção de um conhecimento que se organiza em
torno de sua construção.

As ciências vão determinar o que é a “verdadeira”


sexualidade e também o “verdadeiro” sexo, instituindo
definições e conseqüentes exclusões, quando escapam ou recusam
seus limites. Biologia, medicina, ciências humanas e sociais,
psicologia, psicanálise, são saberes que criam uma essência,
uma identidade no social que só se realiza no desabrochar de
certa sexualidade, em corpos delimitados segundo um estrito
regime de verdade. Ao analisar a sexualidade, de fato a estão
criando.

Para Foucault, desde o século XIX há uma produção


discursiva intensa em torno do sexo e não no sentido de punir,
reduzir, restringir, mas sim em função de multiplicar e
incitar.

Diz ele:

[...]“ desde o século XIX vemos ver elaborada esta


idéia que existe outra coisa além dos corpos, dos
órgãos, das localizações somáticas, das funções,
dos sistemas anatmo- fisiológicos, das sensações,
dos prazeres; alguma coisa outra e a mais, algo que
tem propriedades intrínsecas e leis próprias: o
“sexo”. (1976: 201)

Permanece como norma a sexualidade conjugal, mas a


ênfase se desloca para outros nichos como a mulher histérica,
a sexualidade das crianças e as perversões dos adultos. A esta
economia discursiva, feita de imagens, linguagem, práticas,
caracterizada por um anonimato institucional, Foucault nomeia
dispositivo da sexualidade

“[...] um discurso decididamente heterogêneo, que


engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em

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suma, o dito e o não dito são os elementos do


dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre estes elementos” (Foucault,
1988:244). [...] e é através deste dispositivo que
pode aparecer como verdade do sexo e de seus
prazeres algo como a ´ sexualidade . (1976:91 )

Este sexo, definido socialmente em valor e importância


é, em princípio, masculino, pois se instaura em hierarquia; o
sexo aparece como divisor de águas, e o masculino funda sua
relevância na distinção, na diferença, colocando-se como
referente geral da inteligibilidade do humano. Para que haja
um “diferente”, é necessário haver um modelo ao qual se
refere, portanto o masculino se estabelece enquanto tal
fundamentado no discurso da “natureza”.

Quem fala de “natureza” para justificar discriminação,


injustiça, violência, exclusão, dominação, está revivendo um
discurso racista, com outra denominação: “sexismo”. Colette
Guillaumin, no fim dos anos 1970, contemporânea de Foucault,
analise a apropriação dos corpos instituídos no feminino, nas
diferentes instâncias e práticas sociais: apropriação do
tempo, do trabalho, da riqueza produzida, da emoção e do
sangue, em mortes múltiplas. Diz ela:

« a apropriação das mulheres, o fato que sua


materialidade é adquirida em bloco está tão
profundamente admitida que não é vista. ».
(Guillaumin, 1992 :38)

O discurso da “natureza” afirma tamanho e força como


parâmetros definitivos de superioridade masculina. Neste caso,
não seriam os gorilas superiores aos homens? São argumentos
que não merecem senão a derrisão.

A “natureza” que nos últimos séculos serviu para


desqualificar o feminino retoma, de fato, as narrativas
religiosas e a transforma em ciência, ou as enunciam em um
senso comum abusivo, criando argumentas onde só existem
afirmações e desejo de poder. Criam, de fato, o solo sobre o
qual se apóiam, como diria Foucault.

Ou seja, o estabelecimento de regras binárias que


definem superior / inferior, sujeitos políticos / sujeitos
naturais, cria uma argumentação baseada na sua própria

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afirmação, maneira positivista de construir axiomas. “É assim


porque é, é porque sempre foi”. Sempre? que tipo de cientista
trabalha com afirmações do tipo “sempre” ou “nunca”. Quem
conhece toda a história da humanidade para ousar tais
afirmações?

É o discurso da “natureza” dos sexos, retomando as


imposições religiosas, que cria uma economia valorativa,
fundada por representações sociais do presente onde se
verifica esta hierarquia, para transpô-la a todo passado
humano.

Judith Butler afirma que não há gênero fora de práticas


de gênero. Isto é, não se é homem ou mulher fora de práticas
sociais valorativas que definem lugares de fala, de
autoridade, de importância. Desta forma, o sexo, tal como
víamos com Foucault, é uma criação do gênero, ou seja, das
práticas sociais que criam “referente” e “diferente” e
instalam estas categorias de forma binária e hierárquica.

Foucault nomeia biopoder, aquele exercido sobre os


corpos e neste caso, este entrelaçado de poderes, cria, em
uma rede de significações, o sexo e com ele o desejo do sexo.
Ou seja, o biopoder que instaura nos corpos um significante
geral chamado sexo, institui, na sexualidade, práticas de
normatização e de comportamentos inteligíveis.

Neste caso, em vez de falar de gênero, prefiro falar


de sexo social, como as feministas francesas dos anos 1980. O
sexo social seria então, a criação de imagens e representações
sociais hierárquicas que dividem o humano em feminino e
masculino, cuja base discursiva é a “natureza” agindo como
justificativa de práticas de dominação e de posse.

Assim temos, em torno de sexo e sexualidade,


estratégias e mecanismos de inserção e posições sociais,
comportamentos, distinções, status, autoridade, lugar de fala
e de ação. Ou seja, as práticas sociais se instalam hoje em
uma economia discursiva que cria e desenvolve as relações
humanas estreitamente ligadas aos contornos e sexo e a seu
corolário, a sexualidade.

As estratégias discursivas que engendram sexualidade


passam, sobretudo, pela mímica da posse, pela apropriação dos
corpos, do trabalho, das emoções, da vontade das mulheres. Na

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linguagem comum dize-se: “eu a possuí” e esta possessão passa


pelo sexo, através da sexualidade. O prazer da posse significa
não somente a apropriação do corpo de outrem, mas também de
sua individualidade.

Este, de fato, é o prazer do estupro. É uma mulher que


se compra, que se possui, apropriada, dominada, este é, de
fato, o prazer inconfessável da posse e do estupro.

Se os mecanismos da sexualidade são simples, quase


lineares, sobretudo para os homens, é toda uma economia
simbólica e política de relações de sexo que lhes conferem a
força de vida e o selo da identidade. “Seja um homem!”,
significa, de fato, “não seja uma mulher! ».

Sexo, assim, expressa, em primeiro lugar, a


construção de corpos em função de um sexo social, definidos
pela escolha de um detalhe anatômico para criar uma diferença
valorativa; em segundo lugar, exprime a posse e a penetração
de um corpo, de fato, de uma individualidade que se transforme
de humano, em carne a ser consumida.

Assim a exigência de sexo e a prática sexual marca uma


certa imagem de virilidade para designar uma posição de
autoridade e de poder pois a obrigação normativa, real ou
metafórica de relações sexuais é uma questão de poder, de
posse. A apropriação social e individual dos corpos das
mulheres pela classe dos homens é um sine qua non da própria
explicitação do ser homem e do ser mulher.

Colette Guillaumin comenta com pertinência que o sexo -


a genitália e seu simbolismo - é masculino, as mulheres são
desprovidas deste sexo social que assegura prestígio e
importância. Carole Pateman, Luce Irigaray ratificam esta
análise, na medida em que é a posição social que dá ao
masculino a ingerência sobre os corpos das mulheres, através
do sexo como marca distintiva e da sexualidade como forma de
apropriação global.

O sistema se baseia na tática de reproduzir a


diferença sexual nos termos da sexualidade
reprodutiva: todo o edifício social se engendra a
partir desta especificidade que é a procriação
alojada nos corpos definidos então como femininos.
A partir daí, numa inversão de fatos, as mulheres

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passam a ser as hospedeiras da semente masculina,


ele, então o princípio procriador. Adrienne Rich,
nos anos 1980 já notava como o sexo social
entrelaçava e identificava a sobrevivência da
espécie, os meios de fertilização e as relações
afetivas/eróticas ; além disto, sublinhava as
coerções violentas que são postas em prática para
assegurar “ uma sujeição total, tanto afetiva
quanto erótica, aos homens”. (Rich,1981:21)

Deste modo, comenta esta autora, o amor /sexualidade


entre mulheres representa um perigo a este sistema, pois é uma
relação indiferente aos homens, que dispensa sua presença,
nega sua autoridade, recusa sua ingerência na liberdade de ser
e fazer, na liberdade de existir.

Fora da norma, fora do esquema de poder / dominação /


amor, as lesbianas podem ainda esperar muita repressão, muita
violência, pois sua existência significa um alerta de
liberdade para todas as mulheres. Neste caso, a diferença
sexual passa a ser in-diferença.

Como salienta Colette Guillaumin:

A noção de diferença, cujo sucesso entre nós é


prodigioso (...) é ao mesmo tempo heterogênea e ambígua. (...)
Heterogênea, pois contém por um lado, dados anátomo -
fisiológicos e de outro, fenômenos sócio-mentais (...). Níveis
que são inseparáveis, pois são conseqüência uns dos outros,
distintos, porém, em nível de análise (...) Enfim, não se pode
falar de "diferença" como se isto aparecesse em um mundo
neutro. (Guillaumin,1979:4)

Qualquer discurso que se diga “neutro” está de antemão


se preparando para enunciar alguma “verdade” definitiva,
criando para si um espaço de autoridade e de fala que se quer
indiscutível. Não é de se espantar que as posturas ditas “pós-
modernas” tenham recusado as “narrativas mestras” das
ciências, as que se postulam como enunciadoras definitivas da
verdade.

Portanto, nesta ótica, recusar os discursos da


“natureza” para criar a diferença entre os sexos não deveria

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ser assim tão difícil. Entretanto, este reconhecimento atinge


todo o relacionamento social humano e significa fazer tabula
rasa da hierarquia entre os sexos e da apropriação geral das
mulheres pelos homens, seja pelo convencimento social, seja
pela força. Quem está pronto a abdicar do poder?

As bancadas religiosas no congresso são um exemplo


nítido da ênfase que se coloca no controle dos corpos
femininos e na afirmação da norma heterossexual como caminho
da “natureza”. A contracepção foi conseguida a duras penas
pelas mulheres, livrando-as, de uma gravidez indesejada.
Entretanto, o direito ao aborto, o direito a decidir sobre seu
próprio corpo é um ponto nodal da demarcação que define os
limites entre ser livre e ser apenas um ventre. Entre ser
humano ou apenas mulher.

Por outro lado, a hipersexualização, também celebrada


como exaltação da vida, é a exacerbação do dispositivo da
sexualidade, inseparável da violência, da negação de vidas,
fundada na diferença de sexos e seu corolário de dominação e
exclusão, de morte e silêncio social. A criação da diferença
de sexos, deste modo, é um ato político, que instaura nos
corpos femininos uma sexualidade ávida, mostrada e ensinada em
forma de sedução e essência do existir, “a verdadeira mulher”,
no singular, imagem única de um ser “feito para isto”.
Mulheres e bebidas, esta é a imagem da festa!

Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres


são « diferentes », isto é, sua construção em práticas e
representações sociais sofre a interferência de um outro
dispositivo: o dispositivo amoroso. Poder-se-ia seguir sua
genealogia nos discursos – filosóficos, religiosos,
científicos, das tradições, do senso comum – que instituem a
imagem da « verdadeira mulher », e repetem incansavelmente
suas qualidades e deveres: doce, amável, devotada (incapaz,
fútil, irracional, todas iguais!) e sobretudo, amorosa.
Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de
todo limite, de toda expressão de si.

O amor está para as mulheres o que o sexo está para os


homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento
identitário. O dispositivo amoroso investe e constrói corpos-
em-mulher, prontos a se sacrificar, a viver no esquecimento de
si pelo amor de outrem. As profissões ditas femininas

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partilham estas características: enfermeira, professora


primária, doméstica, babá, etc.

O dispositivo amoroso, por outro lado, as conduz


diretamente para uma heterossexualidade incontornável,
coercitiva, sem equívocos, já que a procriação é sua
recompensa. Mesmo se o prazer é raro ou ausente, é uma
sexualidade sem questões, sem desvios, é assim, ponto. No
discurso feminino, “ser mãe” é condição de autoridade, é o
lugar de fala inteligível

Adrienne Rich insite que

"(...) a heterossexualidade, como a maternidade,


deve ser reconhecida e analisada como instituição
política- mesmo e mais especialmente por aquelas
que se sentem em sua experiência pessoal como as
precursoras de uma nova relação entre os sexos"!
(1981:20)

O dispositivo amoroso, assim, cria mulheres dóceis e


além disto e dobra seus corpos às injunções da beleza e da
sedução, guia seus pensamentos, seus comportamentos na busca
de um amor ideal, feito de trocas e emoções, de partilha e
cumplicidade. A sexualidade às vezes é até acessória. As
tecnologias sociais do gênero investem os corpos-sexuados-em-
mulher em práticas discursivas que propõe como axioma a
“natureza” feminina, um pré-conceito ancorado no senso comum,
propagado e instituído por um conjunto de discursos sociais.
Todavia, como bem sublinha Foucault .

“O ‘pré-conceitual’ assim descrito, em lugar de


desenhar um horizonte que viria do fundo da
história e se manteria através dela, é, ao
contrário, no nível mais ‘superficial’ ( em nível
dos discursos)o conjunto de regras que se encontram
aí efetivamente aplicadas” (1987:83)

Ou seja, as práticas criam o objeto dos quais descrevem


o funcionamento ou os contornos, em um processo contínuo.
Assim, a fórmula de Judith Butler (1990) “não há gênero fora
de práticas de gênero”, aí encontra todo seu sentido. É
efetivamente o gênero e suas tecnologias que constroem os
sexos e suas delimitações, seus princípios de exclusão, suas
formas e expressões, a heterossexualidade como norma e
referencia, a sexualidade como fundamento do ser, como
identidade e inteligibilidade social. Ou seja, a instituição
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do sexo como eixo da vida se apóia unicamente na importância


que se lhe é dada.Mulheres nos social, fêmeas no biológico, os
corpos-em-mulher fixam uma identidade fictícia onde se
imbricam as injunções do amor e da sexualidade.

O dispositivo amoroso se afirma nas práticas que se


desdobram de forma exponencial para a construção do feminino:
a educação formal, a pedagogia sexual, a disciplina dos corpos
– magros e belos – a domesticação dos sentidos e dos desejos
para seguir a imagem ideal DA mulher. Isto é o assujeitamento,
em sua plenitude. Restam as brechas, o formigamento do desejo
de liberdade, para além da sexualidade e do sexo...

O dispositivo amoroso e a sexualidade formam a trama


onde se tece e se produz o feminino – a objetivação
indissociável do processo de subjetivação, a produção do
sujeito de um saber e a produção do saber sobre um sujeito por
meio de práticas discursivas e não discursivas diversas. As
tecnologias do gênero tem assim uma dupla face, externa e
interna a si mesma, que trabalha na produção do sujeito
feminino em quadros de valores para os quais é e cria
referencia. A ação sobre si utiliza técnicas de adaptação, de
recusa, de assujeitamentos aos códigos, aos limites, às normas
de gênero e de sexualidade, constituindo o que chamamos de
"processo de subjetivação".

Por ocasião deste processo de subjetivação, portanto,


eu me construo, incessantemente. E as tecnologias do sexo, do
gênero, são constitutivas de meu devir, já que eu sou por meio
da iteração, do assujeitamento, da recusa ou do excedente em
relação às normas e definições.

Atualmente, os moldes que detém os contornos mulher /


homem tornam quase impossível uma relação igualitária nos
embates sexuais, atravessados de poder. Há, nas dobras dos
lençóis, um maniqueísmo binário insidioso mesmo se os papeis
podem ser, eventualmente, intercambiáveis. Onde há sexualidade
abriga-se também a posse, a traição, a honra, a auto-estima,
a emoção, valores que se confundem em torno de corpos
definidos pelo poder de nomeação, pela performatividade dos
comportamentos codificados pelo social, pelas condições de
imaginação que esculpem modelos e referentes ideais.

Sou bastante cética sobre o tema da sexualidade


incontornável. Claro, as redes de sentido que nos conferem
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inteligibilidade – a começar por nossa própria auto-


representação – nos desenham assim: seja sexy ou morra, tenha
sexo ou morra. A performance sexual é tudo, o desejo de
outrem abre meu caminho para o mundo, garante minha inserção
no social. O que cruamente, reduz-se a línguas, bocas, mãos,
órgãos genitais em profusão, ditando a identidade e a eclosão
da vida.

Estimo, porém, que o dispositivo da sexualidade,


imbricado ao dispositivo amoroso atingiu seus limites de
saturação. O que me parece evidente é que a injunção à
sexualidade – e aí não importa qual seja sua prática – é a
ação do poder criando uma nova servidão, a dos orifícios, das
ereções, das performances, das conquistas, uma banalidade que
faz morrer de tédio. Sinto necessidade de mudar de nível, de
mudar, apenas. Não, não sou contra a sexualidade, ao
contrário. Tenho, entretanto, um engajamento feminista, um
engajamento comigo mesma, que impede o cego assujeitamento às
imposições do social sobre meu corpo e meu ser. Procuro, ao
contrário, perfurar as evidências infladas de certezas e
verdades, as que criam obrigações e fixam identidades,
encobrindo a face do poder.

No fim das diferenças, quem sabe, a liberdade.

Referencias

Adrienne Rich. 1981. RICH, Adrienne.1981 La contrainte à l´hétérosexualité et l´existence


lesbienne, Nouvelles questions féministes mars, n.1 Ed. Tiercepp15-43

Carole Pateman. 1988. The Sexual Contract. Stanford University Press

Colette Guillaumin. 1992. Race et Pratique du pouvoir. L’idée de Nature, Paris, Côté-
femmes,

Colette Guillaumin.1979. "Pratique du pouvoir et idée de nature » 2.Le discours de la Nature,


Questions féministes,n.3, mai, p.5-28.

Luce Irigaray. 1983. Ce sexe qui n´en est pas un. Paris :Editions de Minuit

Michel Foucault. 1976. Histoire de la sexualité, vol.1, Paris : Gallimard

Michel Foucault. 1987. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense Universitária

[1] professora da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne.


Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre .Na
Université du Québec à Montréal, (UQAM), foi professora associada ao IREF, Institut de
Rechereches et d´Études Féministes. Criou, na Universidade de Brasília, curso de Estudos
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Feministas na graduação e na pós-graduação,.área de concentração, com a mesma


denominação, abrangendo Doutorado e Mestrado, a primeira no Brasil, iniciada em 2002.
Publicou, pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 , organizou um número especial
“Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002.
Organizou igualmente os livros “História no Plural” e "Mulheres em ação: práticas
discursivas, práticas políticas" publicado em 2005 pela editora das Mulheres; tem mais de 60
publicações em revistas nacionais e internacionais, bem como capítulos de livros.É editora da
revista digital Labrys, estudos feministas".

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