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DERANTY, Jean-Philippe.

Hegel’s parliamentarism: a new perspective on Hegel’s


theory of political institutions. The Owl of Minerva, v. 32, n. 2, 2001, p. 107-133.
PR é o único exemplo de uma obra de Hegel publicada em vida para a qual ele
também deu um curso. Isso significa que, apesar da obra final ser a principal
referência, também precisamos consultar suas aulas para ter uma visão completa de
sua teoria social e política. Isso coloca um problema, pois há óbvias discrepâncias
entre esses diferentes textos. Uma alternativa seria ignorar as divergências e usar as
aulas como ilustrações do conteúdo de PR. Isso funciona para boa parte da obra, pois
há diferenças não são tão grandes. – 107 – Outra alternativa é tentar abordar as
diferenças, o que pode ser feito de duas formas. A primeira é exemplificada por Karl-
Heinz Ilting e enfoca na intepretação das próprias diferenças como demonstração de
uma mudança na posição de Hegel de progressista para reacionário. A outra aparece
em Ludwig Siep e enfoca na continuidade do pensamento de Hegel, apesar das
diferenças. Uma terceira via possível é afirmar a continuidade não apesar das
discrepâncias, mas também através delas. Esse artigo faz esse esforço no tema
específico do legislativo. Os cursos serão usados como forma de desafiar
interpretações usuais de PR.
Há dois grupos principais de diferenças entre os cursos e PR quanto ao Legislativo:

 Extensão do poder do legislativo


(i) 1817/1818 parece permitir que o Legislativo altere a constituição, mas
isso desaparece em 1820
(ii) 1817/1818 traz o direito de as assembleias inquirirem frente a
demandas formais dos cidadãos contra a administração, o que vira
papel do monarca em 1820
(iii) Em 1817, cada casa legislativa tem poder de veto contra a decisão dos
outros poderes, o que não aparece em 1820
 Funcionamento interno das assembleias estamentais.
(iv) Em 1817, Hegel afirma que o núcleo da noção de assembleia é o
“momento de oposição” – 108 -, enquanto em 1820 ele parece recusar
o conceito contemporâneo de oposição parlamentar através da ideia da
formação de uma vontade comunal de todo o processo político
(v) Em 1817, há partidos políticos representando a maioria contra minorias,
o que não aparece em 1820 ou depois.
Isso parece fortalecer a tese de Siep de que o momento parlamentar presente em
1817/1818 se perde nos textos seguintes. Para Ilting, isso representa uma diferença
entre um modelo liberal britânico ou sul-germânico e um modelo reacionário prussiano.
Quanto ao ponto (i), PR introduz uma nova subdivisão na parte sobre direito público
chamada “constituição interna para si”, que separa o tratamento dos três poderes da
constituição em si. Isso, porém, não impede uma intervenção direta de nenhum
daqueles na constituição. Nos textos anteriores, parece haver, é verdade, um grau de
intervenção maior – 109 – do Legislativo sobre a constituição que desapareceria em
1819, o que representaria um enfraquecimento do Legislativo.
Entretanto, desde 1817 Hegel deixa claro que a constituição não é apenas o texto
fundacional de um Estado. Esses textos são um mero reflexo de camadas mais
profundas das “constituições”, o Volksgeist que vai desde os costumes e crenças
sociais até um conjunto abstratos de princípios, que é o texto da própria constituição,
passando pelas instituições e regras da sociedade. Sem essas constituições, a
constituição escrita é apenas um pedaço de papel. Essa noção já está presente desde
o começo da obra de Hegel e podemos ver já em Wa 1 em uma famosa passagem:
“"the first and most important question seems to be, who in a people has to make
(machen) the constitution; however, the constitution is rather as the foundation in and
for itself of the ethical life of a people and essentially it is not something to be
considered (betrachtet) as made (gemacht) and as a subjective law” (Wa, p. 189,
§131). Considerando essa posição, não faz muito sentido afirmar que Hegel havia
dado ao Legislativo o direito de mudar a constituição de forma direta. Seu elogio em
seguida a Luís XVIII por ter dada a Charte aos franceses, condensando todas as
ideias liberais que haviam sido desenvolvidas desde a Revolução reforça essa
afirmativa. Ele também afirma que a principal característica de uma constituição é sua
imutabilidade (Wa, p. 190).
Primeiro, temos que olhar com alguma dose de cuidado as notas de aulas escritas a
partir das explicações orais de Hegel. – 110 – Em 1817, Hegel parece descrever o
Legislativo como o momento universal do Estado político, como o poder onde a
vontade comum da comunidade tem expressão, por isso ele afirma que o Legislativo é
um momento da constituição e a pressupõe (Wa, p. 220, §146). Como a obra do
Legislativo se ocupa dos assuntos universais do governo, ela tem uma ligação natural
com a constituição. Há uma reciprocidade entre constituição e Legislativo. “Legislation
presupposes constitution, but as legislation helps constitute and change the overall
organization of the people, which is reflected in the constitution, then legislation
indirectly changes the constitution.”
Assim, Hegel, em PR, enfatiza que o Legislativo não consegue diretamente alterar a
constituição, mas a própria atividade da legislatura modifica a expressão da vontade
comum, logo muda a própria vontade comum e, portanto, a constituição. A diferença é
que essas mudanças são indiretas e ao longo do tempo. - 111
Quanto ao ponto (ii), o poder das assembleias estamentais de inquirir sobre denúncias
formais apresentadas pelos cidadãos aparece em 1817 (Wa, p. 242, §157), some em
1818 e reaparece em 1820, mas, para Siep, agora seria o monarca aquele acionado
pelos cidadãos (PR, §295). Mas esse último trata de dois pontos distintos ao tratar do
que chama de tirania dos burocratas. O primeiro é controle hierárquico dos abaixo na
escala do governo pelos de cima, chegando até o monarca. O segundo é para evitar
que a própria burocracia baixa fuja dos olhares de seus superiores. Respectivamente,
temos um controle de cima para baixo e outro de baixo para cima.
A assembleia estamental media a relação entre monarca e o povo através de um
elemento que vem do governo (os ministros) e outro que vem dos estamentos
(Senado). No conflito entre administração e povo também temos dois elementos: um
vindo da administração (controle administrativo formal) e outro do povo. Hegel fala em
um reconhecimento legal [Berechtigung] de comunidades e corporações. – 112 – Isso
inclui o direito de administrar a si mesmos (Wa, p. 218) e a capacidade, das
corporações e comunidades, de apresentar queixas formais contra servidores públicos
(PR, §295, 301). Apesar de Hegel não dizer qual instituição processaria essas queixas
em PR, parece razoável supor uma continuidade com 1817, já que as assembleias
estamentais funcionam como emanação direta das corporações. Hegel parece recusar
que juízes cumpram essa função, já que também fazem parte do estado administrativo
e este tende a fechar-se (PR, §295). – 113 – Isso é reforçado pela centralidade que
1
Vorlesungen über Naturrecht und Staatswissenschaft-Heidelberg 1817/1818-mit Nachträgen aus der
Vorlesung 1818/1819, nachgeschrieben von P. Wannenmann, ed. C . Becker et al. (Hamburg: Felix
Meiner, 1983)
Hegel atribui à publicidade. “When a judicial procedure affects the political State, and
not civil society, it seems the proper channel where it should be dealt with should be
the place where the common will is formed and can be heard. This general role of the
assembly of estates, as the channel for all perspectives of the common life to come
together, has remained the same from 1817 to 1827.”
Quanto ao ponto (iii), o poder de veto recíproco entre as casas aparece
expressamente em 1817 (Wa, p. 230), mas não aparece nos textos seguintes. Ainda
assim, é possível afirmar uma continuidade. – 114 – Em 1818-1819, Hegel afirma duas
coisas que podem parecer contraditórias: o monarca tem poder absoluto de decisão;
as casas legislativas têm direito de veto (Wa, Ilting 2, p. 275). A primeira é decorrência
da lógica hegeliana. O Absoluto é um sujeito. O Absoluto não seria absoluto se não
tivesse o poder de fazer-se atual (concreto) e isso exige que assuma a forma de um
sujeito. Se o Estado é a imagem do Absoluto no mundo, ele precisa de um ápice
subjetivo que completa essa organização autossuficiente e organizada. O monarca faz
a comunidade ser uma comunidade. Isso é constante em toda a obra de Hegel e o
texto de 1817 não vai contra (Wa, p. 187, §133). – 115
A razão de ser da assembleia estamental está expressa em PR, §300-301. Para que a
vontade universal seja determinada não de forma contingente e em si, mas para si e
necessariamente, com a participação do corpo de cidadãos [allgemeine Bürgerschaft].
– 116 – Há uma necessidade que cada esfera da comunidade seja ouvida no processo
legislativo, ainda que, em tese, o ministros sejam mais aptos a pensar a melhor lei. A
forma da comunidade aceitar as decisões do governo passa por essa contingência.
Entretanto, não faria sentido falar em necessidade se a voz do povo não possui
nenhum poder real. A reunião serviria apenas para explicar os motivos do governo e
ouvir queixas. Nada mais.
“The moment of the freedom ‘for itself’ must be institutionalized like all other moments,
that of objective knowledge and that of the decision. This is why the Heidelberg
lectures give the two Houses of Parliament a right of veto. However, as the framework
and logic of the political State remain exactly the same from Heidelberg to Berlin, as
the sphere of the political State fulfils exactly the same role, namely providing political
institutions for each of the moments included in the formation and expression of the
common will, then this right of veto must also be present in the Berlin versions of the
Philosophy of Right.”
Sua ausência do texto de PR não muda o fato que a lógica da construção política
como um todo assim exige. O capítulo sobre legislatura parece ir na mesma direção. O
pensamento de Hegel é silogístico. Assim podemos identificar o poder do monarca
como o momento da singularidade sendo – 117 – seu momento mediador. O poder
governamental tem o momento de particularidade como sua mediação (subsome o
particular sob o universal). A legislativo tem o momento universal como sua mediação,
na assembleia. Aos descrever esses poderes em PR, §300, Hegel fala que o monarca
tem o poder de decisão última e o governo é o momento de aconselhamento
(conhecimento concreto e supervisão do todo). Entre um e outro momento, ainda é
necessária uma instituição que fala o universal como tal. Isso é feito pelo Legislativo
através da assembleia. Se é assim, a assembleia não pode ser apenas algo a ser
consultado. Se algo é um ser verdadeiro, ele deve ter poder para se afirmar enquanto
tal. Se a voz da assembleia não é voz verdadeira, não tem peso institucional e política,
ela não é voz. Sem isso, o silogismo não faria sentido.
2
Hegel: Die Philosophie des Rechts-Die Mitschriften Wannenmann (Heidelberg 1817/1818) und Homeyer
(1818/1819), ed. K-H Ilting (Stuttgart: Klett-Cotta, 1983
Esse silogismo político pode ser visto de duas formas. Primeiro, vemos os momentos
conceituais (universal, singular, particular) como funções políticas gerais
desempenhadas pelo Estado: deliberar, decidir, aplicar a decisão. Neste sentido, o
momento universal – 118 – é realizado pela assembleia de estamentos, pois é aqui
que a universalidade da nação se faz existir, ganha peso político (PR, §301). Em um
segundo sentido, a mediação pelo silogismo é entre portadores institucionais das três
funções político-conceituais (§302): a assembleia media entre necessidades
particulares da esfera social e a singularidade da decisão do monarca ajudado pela
burocracia. Essa função de mediação deve ter poder político, caso contrário não
desempenha função alguma. “The assembly of estates has the power to say ‘yes’ or
‘no,’ based on what society (as opposed to the State) needs.” Apesar da palavra veto
não aparecer, §§312-313 deixam claro que a assembleia não é apenas um lugar de
registro de decisões governamentais. – 119
Possível explicação para a ausência de menção expressa ao veto: “Mentioning a right
of veto in the context of 1820 Germany, with such clear reference to the historical
English model and to liberal theories neither of which Hegel fully condoned, was bound
to lead the reader astray.” – 120 – Um exemplo dessa preocupação linguística é a
substituição do termo Volk por Estado. [nota 42: Volk aparece na 1ª Enciclopédia, mas
é substituído depois por Estado - 131] Hegel, de maneira geral, parece ter evitado usar
termos da tradição liberal, apesar de suas visões se aproximarem e talvez
precisamente por isso.
Quanto ao ponto (iv), sobre a assembleia como lugar de oposição, em 1817 temos
uma divisão de tarefas nos seguintes moldes: ministro prepara o conteúdo do projeto
de lei; Parlamento concorda ou não; ministro não participa da decisão final sobre a lei
que preparou; os estamentos não podem apresentar o projeto de lei, mas apenas seus
desejos (Wa, p. 226; §149, §156). – 121 – Além disso, Hegel afirma a necessidade de
um momento de oposição dentro da assembleia estamental (Wa, p. 241), mas é um
momento de oposição conceitual. É uma oposição entre o governo como um todo e a
assembleia como um todo. A ideia de conflito está no fato que cada instituição tem
uma função e poder específicos que apenas ela pode cumprir. Não é conflito de
interesses ou um sistema de pesos e contrapesos. Esse conflito institucional entre
governo e Parlamento exige, ao mesmo tempo, que o próprio Parlamento tenha uma
oposição interna, pois um Parlamento unido contra o governo significa que o governo
deve se dissolver ou cair. – 122 – O equilíbrio está no apoio do governo por uma
maioria no Parlamento, não por todo o Parlamento. PR segue a mesma linha. Em
§302, fala na relação entre governo e assembleia como oposição [Gegensatz] e
contradição [Widerstreit], mas, para que o Estado não se destrua, é necessário um
órgão mediador na figura dos Estamentos.
“This, in turn, means that the first, abstract, opposition between government and
assembly is revealed in its truth as a mere appearance (ein Schein), and is internalized
within the assembly itself. §304 translates this conceptual/functional imperative of
mediation into the political/institutional requirement of parliamentary opposition.” Uma
consequência disso é a formação de partidos políticos. – 123 – Oposição entre casas
legislativas e oposição entre partidos políticos.
Mesmo em PR podemos ver essa dualidade do Parlamento como suporte para o
Executivo e como possível órgão de censura. Por exemplo, na relação com os
ministros. Da mesma forma serve de local para que a opinião pública conheça os
talentos e virtudes das autoridades estatais, se essas não tiverem tais qualidades,
teremos, na prática, um órgão de censura (PR, §284, 301R, 304, 315). Isso parece se
estender até mesmo o poder do Parlamento de exigir uma mudança dos próprios
ministros (PR, §313; Wa, p. 226) – 124 – Ou seja, temos uma noção de mudanças nos
apoios parlamentares.
Quanto ao ponto (v), sobre a existência de partidos políticos, nas lições de Heidelberg,
em §156, Hegel fala da necessidade de uma política partidária como como forma de
representar e resguardar as esferas particulares de interesse: “it serves to reconcile
the particular interests of those working for the common good with the universally
defined demands of that work. In other words, it unites the particularity of the
representatives with the universal.” – 125 – Hegel afirma expressamente que isso
representa a virtude política, em oposição à virtude religiosa ou moral. A virtude é
política, pois se ocupa com o que é politicamente bom. Não se trata de um julgamento
moral ou religioso (do ponto de vista hegeliano). Nada impede que a ação
politicamente virtuosa seja considerada, por alguém, como religiosamente ou
moralmente errada.
Esses partidos políticos, portanto, se fundam em questões de interesse e não em
diferenças ideológicas. Isso aparece em §302, quando Hegel fala que a natureza da
oposição parlamentar gira em torno de objetos e não de elementos essenciais do
Estado. – 126
“The rational State, on the basis of its absolute strength as a good approximation of a
functioning organism, is basically indifferent to the everyday quarrels of political life.
Such quarrels are indispensable in that they ensure that the subjectivities running the
objective machine are totally dedicated to it, but the conflicts of subjectivities vying to
govern the machine should not affect the machine itself The constitution, at all the
different levels of its meaning, either is out of reach of direct interference from the
legislative, or it expresses objective, imperative needs which any executive and
legislative must address.” - 127

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