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Muito antes de sua proposição do gozo não-todo, Lacan traz muitas formulações sobre a
mulher. O psicanalista busca na literatura, quatro figuras de mulheres que são, segundo
ele, de fato o exemplo maior das “verdadeiras mulheres”. São elas: Antígona, heroína da
tragédia grega de Sóflocles, Madeleine, mulher do escritor André Gide, Medéia,
personagem da tragédia escrita por Eurípedes, e Ysé, a heroína trágica de Paul Claudel.
São muitos exemplos instigantes que Lacan nos apresenta, para este trabalho, elegi Ysé,
como figura que possibilita ricas problematizações acerca do desejo feminino.
Lacan afirma que o escritor Paul Claudel conseguiu criar (não sem antes errar bastante),
um verdadeiro personagem de mulher que lidera o papel principal de uma versão
contemporânea da tragédia nas fábulas de Coufontaine, trata-se de Ysé. Colette Soler
(2005), resolve seguir essa pista deixada por Lacan e diz da manifestação do feminino,
nessa personagem literária, como algo que transpõe o registro fálico. A importância e a
sedenta curiosidade sobre a mulher ficam escancaradas nos escritos de Claudel:
A mulher é antes de tudo alguém sobre quem pesa a exigência prática. Mas
ela é também alguém em cuja fronte está inscrita a palavra: Mistério. Ela é a
possibilidade de alguma coisa desconhecida. Um ser secreto e cheio de
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significações. Um ser secreto e ignorado por si mesma que postula, para sua
realização, uma intervenção exterior. [...] Para arrancar um homem de si
mesmo até as raízes, para dar-lhe o gosto do outro, este avarento, esse duro,
esse egoísta, para fazê-lo preferir esse Outro que a si mesmo até a perdição
do corpo e da alma, só há um instrumento apropriado: a mulher (CLAUDEL,
1967, p. 134).
Lacan vê aparecer em Ysé, o que poderia chamar de aquela que se parece muito com o
que é uma mulher, uma figura feminina que abre mão de todas as insígnias fálicas que
lhe são postas e apreendidas, uma vez que Ysé é esposa, é mãe, é amante e nega todos
os esses semblantes. Diante de tudo o que pode ser o desejo feminino, ela se desgarra do
simbólico, se extravia e deixa bem claro que esses bens não são passíveis de conter sua
solidão de mulher.
Ysé tem medo de si. Da Outra que lhe habita e pode querer escolher o caminho do gozo
não simbolizável. Ysé tem medo do marido a deixar sozinha e que a tentação que nela
reside, a movimente e a desproteja de toda a regulação. Regulação simbólica. Na
ausência do marido, ela se perderia em si mesma, o que não convém. Um afeto tão
radical, um desejo tão ilimitado que não pode ser reconhecido pela própria castração.
Um elemento disruptivo que ele entende como o cerne daquilo que é seu ser mulher.
Ysé tem em si a trágica intuição que o gozo da mulher é um gozo solitário e não sabe
bem o que fazer com isso. Em várias de suas falas, quando demonstra medo de ficar
sem seu marido que barraria a tentação, ou quando diz de poder responder por vários
nomes dentro dela mesma, Ysé diz também desse inapreensível que é o feminino. Seu
receio revela um saber sobre o que não conseguimos dizer e acaba aniquilando-a em um
empuxo mortífero. Ysé era apaixonada pelo abismo.
Ela passa a vida se entregando as fantasias de seus homens e, quando se depara com o
fato de que isso não garante sua regulação, se vê diante de uma liberdade assustadora.
Tudo passa a somente amansar esse elemento assustador que ela teme encontrar. Essa
devastação, esse aniquilamento é o que, para Lacan, marca essa posição que excede
todas as medidas. Excede todas as medias fálicas e coloca Ysé no lado do não-todo, o
lado em que marca seu extravio e seu caminho para um lugar que ela mesma não
conhece. O lugar do não simbolizável, do furacão, do furor, do furo. O lugar do
feminino que pode ser tão apaixonante por todo o sentido que ele não tem.
Ysé age de uma forma que poderia ser comparada a da mulher mítica. Trai todos os seus
homens e, ao trair, trai assim todos os objetos que por ventura responderiam a sua falta
fálica. A tentação que teme não são novos amores e amantes e sim “a do amor louco, de
um amor total que, anulando tudo, aparenta-se com a morte” (SOLER, 2005, p. 21).
Renuncia a todos sem sacrifício uma vez que nada além do abismo tem valor. Um amor
absoluto pelo vazio, uma exaltação de um amor que teria como fim a morte; a
mortificação; o aniquilamento:
É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto irrespirável, que varre
para longe não só as mediocridades do compromisso, mas esvazia de
substância os objetos mais diletos, mata qualquer diferença e se afirma sob a
forma de um aniquilamento – a ser distinguido da denegação, é claro – de
todos os objetos relacionados com a função fálica, ou seja, com a falta.
(SOLER, 2005, p. 21).
Sabemos que a histérica procura nomear-se como mulher através da mediação fálica,
buscando esgotar nas máscaras que utiliza a pergunta sobre a feminilidade. É uma
maneira de dar nome ao inominável no lugar do feminino. Sendo sua feminilidade
estranha a si mesmo, a mulher se defende através destas insígnias, do mistério da Outra
mulher que detém o segredo do que ela é, do que é ser uma mulher. Ao contrário da
posição histérica, Lacan vai nomear como uma verdadeira mulher a personagem
representada por Ysé, exatamente porque ela não sustenta uma posição histérica de
esquiva, nem de uma ambivalência contestadora, mas uma posição que se basta, sem o
privilégio dos objetos.
Ysé existe de uma forma que ultrapassa a função fálica, rompendo com o simbólico e se
nomeando “eu sou o impossível”. Longe de se esgotar algo do feminino, o impossível e
a inscrição de Ysé em um não-todo fálico dizem de uma verdade poeticamente
subversiva da sexualidade feminina. É nesse não-todo que nasce o novo. Que nasce a
invenção. É do não-todo d’A mulher que ela pode ser o que ela quiser. Que podemos ser
o que quisermos. Ouvir sobre isso, dizer disso e tentar encontrar um “saber & fazer” a
partir daí. É uma verdadeira jornada de invenções que passa como machado em terra
fina e escancara o furo que mostra onde dói. Dor que pode matar mas que também pode
ensinar a viver. Há vida no não existir d’A mulher.
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Referências