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Universidade Federal de São João del Rei –UFSJ

Flávia Aparecida Jaques

A mulher e o gozo

Nos estudos de Freud a questão da feminilidade sempre foi destaque. Até 1925,
o Complexo de Édipo era considerado base na aquisição da sexualidade seja feminina
ou masculina, e a fase pré-edipiana era ainda inexplorada. Mas com o tempo percebeu-
se que a fase pré-edipiana era muito importante na questão da feminilidade.
Na conferência "A feminilidade" ( 1933 ), Freud questiona se é possível concluir
o que é específico do masculino e do feminino. Somente os dados anatômicos seriam
insuficientes para definir o que é o feminino e o masculino, atribuídos na cultura, às
funções reais e simbólicas, inerentes ao homem e à mulher. Há uma influência social
sobre estas questões. (VALDIVIA, 1997).
Há uma evolução libidinal da fase pré-edipiana da menina que a vincula com sua
mãe e o complexo de castração, pelo qual a menina entra no Édipo, e o pai se torna seu
objeto de amor e a mudança da zona erógena do clitóris para a vagina. (VALDIVIA,
1997).
Meninas e meninos podem ter atitudes tanto femininas quanto masculinas. Em
ambos os casos a relação mãe-criança é quebrada com a intervenção paterna. No
menino, a ameaça da castração possibilita que ele abandone seu primeiro objeto de amor
e se identificar com o pai, superando seu complexo de Édipo. Já nas meninas a
castração não é ameaçada, mas de maneira implícita é realizada, reconhece a mãe como
castrada e volta-se para o pai, entrando na situação edípica. Há uma rivalidade com a
mãe e inveja do pênis. (VALDIVIA, 1997).
Segundo Lacan, Freud desenvolveu seu estudo sobre a sexualidade feminina até
a posição denominada histérica, isto é, uma posição subjetiva em que a mulher pode
ocupar frente à feminilidade, o que a faz realicionar de uma maneira específica frente ao
amor, ao desejo e ao gozo. (VALDIVIA, 1997).
Lacan utiliza fórmulas para dizer sobre estas questões. Ele a descreve como a
escritura que ordenará a sexuação para todos os seres falantes. Esta escritura não é em
aspectos anatômicos, mas posições subjetivas ocupadas em face da sexualidade.
(Valdivia, 1997). São dois conjuntos, abaixo expostos, masculino (a esquerda) e
feminino ( a direita ). Para Lacan a divisão do sujeito ante o sexual não é uma divisão
entre os dois sexos, mas entre dois gozos: um que é todo fálico e outro não-todo fálico.

Para Lacan, conforme exposto em Tolipan (2012) o gozo é a satisfação de uma


pulsão. Existe entre o gozo e a lei uma relação.
A esquerda, na segunda expresssão aponta que todos os elementos desse
conjunto estão sujeitos à função fálica, ou seja, à castração. Como descreve Valdivia
(1997) “é pelo preço da castração que o homem ascende à posição viril. A castração é a
lei que vale para todos os seres masculinos.” (p. 23). Desta maneira o sujeito perverso,
que se apresenta como não-castrado, não está incluído deste lado da escritura.
A primeira fórmula a esquerda, que se lê “existe x não-fi de x” , indica que há
uma exceção a essa regra, onde ao menos um elemento não-castrado, um elemento que
escapa a lei. Para que a lei seja válida é necessário que pelo menos um elemento não
esteja sujeito a ela. Lacan faz referencia, aqui neste elemento não-castrado, o Pai do
mito da horda primeva, trazido por Freud em seu texto Totem e tabu. Este homem o
qual todos os outros se remente, funda a classe dos homens, um conjunto fechado
caracterizado pelo falo: o homem é fálico e todo fálico. (VALDIVIA, 1997).
No lado direito, na parte superior a escritura lida como “não existe x não-fi de
x”. Lacan coloca uma barra da negação sobre o quantificador da existência, para indicar
que neste conjunto não há a exceção. Os elementos deste conjunto não irão se constituir
como um todo, sendo escrito Vx. f x (não-todo x fi de x ). Os elementos desse conjuntos
se relacionam com a função fálica e com a castração como não-todo.
Sobre as escrituras da feminidade podem ser feitas diversas implicações. Uma
delas seria a relação da mulher com seu gozo, que é diferente dos seus parceiros
homens. Ela por estar não-toda na função fálica tem acesso ao gozo do Outro, que é um
gozo suplementar. Este é da ordem do indizível, o que dá a feminilidade um ar de
mistério incompreensível aos homens, que tentam compreender a partir se seu ponto de
vista todo fálico. (VALDIVIA, 1997).
A escritura referente à feminilidade não é um conjunto fechado, desta maneira
não se pode dizer que há uma classe de mulheres, como na ordem do masculino. Como
aponta Valdivia (1997) “as mulheres são únicas e só podem ser contadas uma a uma.
Não há mulher "artigo definido" para designar o universal, pois não há nela um
significante que lhe seja específico.” (p.23). Para Lacan a mulher não existe e é esta
inexistência que promoverá sua existência enquanto ideal: seja pelos homens, para os
quais uma mulher é o seu sintoma, tanto quanto para as mulheres, que se norteiam
tentando alcançar uma identificação feminina. A representação simbólica da mulher é
inalcançável, só possível pela via da maternidade. Mas, isto a situa como mulher
somente enquanto mãe.
Como não há uma classe das mulheres, a relação entre um elemento do conjunto
masculino e um do feminino não pode ser estabelecida, isto é, escrita. Lacan conclui
que a relação sexual não existe. Enquanto escritura ela é impossível, porque não é ao
parceiro que está dirigido o desejo, e sim ao falo. Isto tanto para o homem, uma mulher
que ele faz do corpo dela o recorte adequado ao seu falo, quanto para a mulher, o órgão
o qual ela encontra no corpo do homem. Assim, se a relação sexual se escrevesse não
haveria a falta e por consequência o desejo. (VALDIVIA,1997).
Lacan aponta que a existência solitária do Phallus simboliza o fracasso, este é
um outro nome atribuído à castração e testemunha que um sexo não entra em relação
com o Outro do sexo oposto, neste sentido não há relação sexual. (MURTA, 2006). Para
Lacan

esse $ só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a inscrito


do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual,
que é o Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu
desejo. A este título, como o indica alhures em meus gráficos, a
conjunção apontada desse $ e desse a, isto não é outra coisa
senão fantasia (LACAN, 1975, p. 75).

Esta impossibilidade trazida por Lacan, na parte esquerda inferior do quadro. O


lado masculino (E) e fazendo partir dele uma seta que se dirige ao objeto a, que está do
lado feminino. Este objeto do qual o sujeito é separado na sua constituição está perdido
e não pode ser articulado como um significante. Por este objeto a pulsão faz o contorno,
podendo assumir diferentes formas: falo ( como objeto imaginário ), o mamilo, o olhar,
a voz. (VALDIVIA,1997).
Enquanto para o homem amor e desejo são caracterizados por uma cisão, para a
mulher isto não aconteceria, o mesmo homem ela ama e deseja. A histérica não quer
estar na posição de objeto sexual a qual a fantasia masculina a destina.
Na escritura de Lacan, em outra parte do quadro (do lado feminino ), diz a
respeito da relação da mulher com o seu gozo. Ele escreve o A de A mulher, de onde
partem dois segmentos: um dirigindo-se a S ( A ), do lado da mulher, e que constitui o
significante de uma falta no Outro, desse mesmo Outro, marcado pela barra, que aponta
castração, necessário para a constituição do sujeito. De certo modo a mulher é aquilo
que tem relação com o Outro. Através dessa relação tem acesso a um gozo suplementar.
O outro segmento vai em direção a f ( do lado masculino do quadro), que propicia o
acesso ao gozo fálico, e é no órgão do homem que a mulher o encontrará.
(VALDIVIA,1997).
Conforme Lacan, esse gozo aponta a impossibilidade da relação sexual porque
ele não é o gozo do corpo, ele é suplementar, o gozo fálico: “o gozo, enquanto sexual, é
fálico, quer dizer, ele não se relaciona com o Outro como tal” (LACAN, 1975, p. 14).
Para que seja melhor compreendido a feminilidade lacaniana faz-se necessário
esclarecer o Édipo para Lacan. Este apresenta três tempos. No primeiro, denominado
etapa fálica primitiva, onde o falo está presente na ordem da cultura. O desejo da mãe é
orientado por ele e a criança é submetida ao desejo da mãe. A criança aí está presente no
desejo do Outro, neste caso, a mãe.
No segundo tempo a função paterna intervém como castrador, separando a mãe
do seu objeto fálico. Este é o momento da intervenção da Lei. Mas para que ela produza
efeitos é preciso estar veiculada ao discurso da mãe. (VALDIVIA,1997).
No terceiro tempo, o pai intervém não mais como onipotente, e sim possuidor do
falo. Desse tempo dependerá a identificação sexual e a saída do Édipo.
(VALDIVIA,1997).
Conforme Zalcberg (2012), a partir de sua leitura de Lacan, a mulher tem
relação com o significante do Outro, ainda que ele continue sendo sempre Outro. Ainda
que a modernidade tenda a foracluir o que anima o que anima uma mulher como ser de
saber, a mulher sabe que ela não de ser mulher a não ser se fazendo Outra. O homem é o
que serve de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma. A
devastação de uma mulher seja por desilusão ou rompimento amoroso a atinge em três
níveis
a dificuldade de sustentar um semblante de existência, de
encontrar uma barreira asseguradora de seu gozo, ameaçando-a
da pulsão de morte, e a impossibilidade de encontrar fórmulas
de tornar-se Outra para ela mesma.( ZALCBERG, 2012, p.
473).

Como consequências surgem desorientação, à angústia profunda, depressão. Isso


mostra a maneira de correlacionar o desejo e gozo, sem falhas e sem resto. Algumas
mulheres acreditam no amor louco, amor essse combinando com a desmedida de seu
gozo, e outras mulheres escolhem nada ceder, não mais de seu corpo que do seu ser,
reivindicando uma solidão que não engana. (ZALCBERG, 2012)
O gozo traz algo que se inscreve como dívida, ou seja, tudo que é proibido se
torna cobiçado. Quando a lei é instaurada, toda transgressão implicará um gozo. Essa
dívida vai sofrer um efeito imaginário aparecendo como culpa. Quando mais o sujeito se
submete às exigências morais do supereu, mais ele o castiga. (TOLIPAN, 2012).
A dialética dos gozos mantém uma lógica com relação à pulsão de morte e à
pulsão sexual. Uma vez que a pulsão sexual for interditada, inconsciente, ela estará sob
o domínio da significação fálica, e o gozo, por sua vez, também terá que passar por aí. É
somente a partir do significante que se pode traçar o que está fora dele. O gozo ilimitado
pertence à pulsão de morte. O gozo a que temos acesso é dominado à lei do significante
falo, que logo responde à pulsão sexual, essa estranha combinatória do real do gozo com
o simbólico do significante. (TOLIPAN, 2012).
Porém em todo sujeito existe uma dimensão de risco de vida, ligada a pulsão de
morte. Neste aspecto se goza. É um risco de vida que aparece em atos cotidianos, como
beber muito, dirigir em alta velocidade. Está sempre relacionado aos excessos. E o gozo
quando não articulado ao significante é experimentado como sofrimento. (Tolipan,
2012).
Há vários sintomas, assim como os modos de gozo. Eles encontram forma de se
alimentar naquilo que a contemporaneidade traz em termos de pronto-a-gozar. Isto
deixa evidente que a demanda de amor da mulher volta a ela sob forma de devastação.
O amor em nossos tempos está em crise, faltam semblantes que limitem e regulem os
gozos que se apresentam numa proporção inversa do estabelecimento de vínculos
sociais sólidos. (ZALCBERG, 2012).
O contraponto ao gozo é o desejo, que está sempre insatisfeito. Quando
realizamos um desejo, outro desejo sempre aparece. A psicanálise tem como objetivo
possibilitar que o sujeito sustente seu desejo. Apesar de que o gozo apresente um
obstáculo a isso, não se pode descartá-lo. É preciso articular o desejo e o gozo, sem que
um elimine o outro. (TOLIPAN, 2012). Quando o sujeito não sai de uma situação que o
embaraça é porque não sabe como fazê-lo; o principal motivo de sua permanência no
mesmo lugar, o que o prende, está ligado ao gozo, e é aí que cabe a psicanálise atuar.
Segundo Lacan (1958) é com os efeitos do desejo que a psicanálise vai lidar.

Referências:

Valdivia, O. B. (1997). Psicanálise e feminilidade: algumas considerações. Psicologia


ciência e profissão. 17, 3, 20-27

Murta, C. (2006). O Amor Entre Filosofia E Psicanálise.Revista do Departamento de


Psicologia - UFF, v. 18 - n. 1, p. 57-70, Jan./Jun. 57

LACAN, J. (1975) Le Séminaire: Encore. Paris: Seuil, 1975. Livre 20.

Zalcberg, M. (2012). A devastação: uma singularidade feminina. Tempo psicanalítico,


Rio de Janeiro, v. 44.2, p. 469-475.

Tolipan, E. (2012). Os paradoxos do gozo. ALETRA FREUDIANA-Ano XI-ns


10/11/12

LACAN, J (1958). O valor de significação do falo. In: LACAN, J. (1957-1958/1999). O


Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

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