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Dado que para Freud se trata no fim da maturação sexual da “eleição de objeto
sexual” ele deve dar conta do processo, mediante o qual cada ser humano chega ou
deveria chegar à eleição na qual coincide biológico e a identidade sexual. A “máquina”
que produz tal resultado é, segundo suas concepções, o Complexo de Édipo o qual faz
com que, depois de atravessá-lo, o menino resulta varão e a menina mulher, ainda que
ao avançar seus desenvolvimentos teóricos tenha admitido uma cota de
homossexualidade, inclusive nos casos normais. Para tais fins, a mãe mulher e o pai
homem devem cumprir as funções específicas de cada sexo no seio da família na
primeira infância da criança. Já que se trata de um resultado normal, Freud também
deve especificar as propriedades universais do masculino e do feminino. O homem deve
ser dominante, já que a libido masculina é ativa e a mulher dominada já que a sua é
passiva; a realização do homem passa, então, por sua gestão ativa e criteriosa sobre a
realidade, sua transformação e domínio, e a da mulher, mais passional, portas para
dentro do lar, é ter filhos e criá-los. O forte supereu do primeiro o habilita a tal função
social e o débil da segunda impede isso, ou deveria fazê-lo. O falo, elemento
fundamental do Édipo freudiano, é o símbolo do poder e da ação, portanto admirado e
ambicionado. O homem temerá perdê-lo – angústia de castração –, e a mulher sentirá o
prejuízo por não possui-lo – inveja do pênis. Assim, se uma mulher é demasiado ativa e
poderosa buscando sê-lo, receberá a advertência por cair na figura de “mulher fálica”.
Este último não foi afirmado por Freud, mas por seus discípulos que desenvolveram
suas ideias. A partir dessas concepções as posições gays, lésbicas, bissexuais,
trangêneros, queer, travestis, etc., são o resultado da falha do Édipo e das funções do pai
e da mãe e, portanto, se trata de uma teoria que gera culpa, ainda hoje em dia, não
somente nos “desviados” mas também em seus pais, culpa que padecem inclusive quem
não possui formação psicanalítica.
Jacques Lacan, pelo contrário, afirma que “homem”, “mulher” e “criança” são
somente significantes. Em seu modelo teórico isto implica, ao menos, duas
considerações fundamentais: a) enquanto tais esses significantes não significam nada
em si mesmos, somente consistem na diferença que mantêm com todos os outros, e b)
se são significantes não possuem nenhuma relação nem com a natureza nem com a
biologia. A impossibilidade de fazer coincidir “homem” com macho, “mulher” com
fêmea e “criança” com cria é o que afirma sua fórmula: “não há relação sexual”. Há
práticas sexuais, mas se perdeu desde o início e para sempre para o sujeito do
significante a condição sexual natural. A metáfora paterna será a “máquina” que,
segundo Lacan, dará conta de como em cada história se inscreve o que nenhum
representante do A (o lugar da linguagem, a lógica e a verdade) ou seja, nenhum Outro,
pode coincidir com aquele. A função da metáfora paterna é legislar para cada caso que:
Outro ≠ A. Nem as mães, nem os pais, nem os avós, nem nenhuma instância de
representação de autoridade que tenha operado em uma história podem usurpar o poder
da linguagem, que ainda que padeça de um inerente “não todo”, o que se escreve A/ (A
barrado), é a única fonte de potência. Se a “máquina” operou em sua função específica
não existirá nenhuma instância onipotente. A metáfora paterna terminará, ademais,
aportando significado ao sujeito, não identidade sexual como no Édipo, nem nenhum
definitivo. “Desejo da mãe” não se refere à mãe, mas a encarnação do Outro (mãe, pai,
parceiro da mãe ou do pai, etc.) e o “Nome-do-Pai” será a função que operará como tal,
se o poder não coincide nem com o pai nem com ninguém; a lei que instaura é aquela
que afirma que ninguém pode encarnar ou deter a lei por si mesmo.
É possível que, dada sua proposta de passagem a uma escrita algébrica dessas
funções, Lacan considere que se poderia interpretar como tem passado à letra os
significantes “homem” e “mulher” em toda época e sociedade em função de como se
relacionem essas funções e como elas mesmas sejam interpretadas. O conceito de
“sujeito” de Lacan, cuja definição é: o que um significante representa frente a outro
significante, implica necessariamente que não é homem, não é mulher, não é criança,
não é gay, não é lésbica, não é trans, não é bissexual, não é neurótico, etc.; simplemente
“não é”, carece de ser e de identidade. Em cada história particular de uma pessoa, uma
família, um povo, etc., o valor de “sujeito” participará de redes significantes, cadeias de
cadeias, nas quais adquirirá significados e sentidos múltiplos nunca garantidos em sua
verdade, nem em sua perduração. Depende da ética de cada um de nós quais desses
significados enfrentaremos e rechaçaremos com total indignação e a quais ajudaremos a
prosperar, sabendo que nem um nem outro está plenamente nas mãos de ninguém. O
mesmo – tampouco há que esquecê-lo – deve sustentar-se a respeito dos significantes:
islâmico, cigano, negro, judeu, yankee, refugiado, israelense, etc. Estes significantes não
provêm de nenhuma objetividade, nem a do corpo biológico nem a de nenhuma
estatística aceitável, e assim não possuem identidade nem consistência ontológica. O
significado e o sentido que recebam virá da articulação do entremeado significativo de
cada caso e da posição que se assuma a respeito. “Psicanalista” tampouco designa nada
em si mesmo, seu significado dependerá de cada caso e de cada contexto. Não todo
psicanalista é patriarcal, machista e eurocentrista. Assim como não existe uma
linguística, nem uma filosofia, tampouco uma física. Não existe um discurso da
psicanálise; existem múltiplos, alguns em minoria – como o é, talvez, o que se sustenta
nestas linhas – mas tampouco neste caso devem ignorar-se. Não há discurso da
psicanálise, afirmá-lo possui o mesmo defeito epistemológico que o do binarismo ou
qualquer racismo ou xenofobia. É responsabilidade de cada analista e sociedade de
analistas o tipo de psicanálise que assuma, pratique e difunda, e nisto, para começar,
terá que decidir se é “freudiano” ou não, paternalista ou não, biologicista e
individualista ou não.
É possível que Lacan não tenha conseguido com suas concepções rechaçar
totalmente o legado misógino, machista e patriarcal que se pode localizar na obra de
Freud; esta é nossa tarefa presente e futura se assumimos a posição que se estabelece a
favor da diferença. Se o fazemos, o axioma deverá ser: primeiro a linguagem, o
significante, o Outro, o A/ (A maiúscula barrado), etc. e então, só então, as múltiplas
formas que existem ou que se creem (de criar) de inscrever os corpos e de padecer ou
disfrutar os gozos e as posições e recursos curativos que devamos assumir ou rechaçar a
respeito.
(1) https://drive.google.com/file/d/11FT53loQb3COE5QC-vKtmZtnI9djYjhi/view
(2) https://psicoanalisislacaniano.com/2019/12/01/preciado-psicoanalisis-maleval-
20191201/