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Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками

(Orgs.)
Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între
O intuito do presente livro foi Após a morte de Freud, os mais
limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues
importantes desenvolvimentos

Emiliano de Brito Rossi


Pedro Heliodoro Tavares
Walter Carlos Costa
o de reunir textos advindos de
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками na clínica e na teoria vêm sendo
reflexões sobre as consequências,
Christian Ingo Lenz Dunker Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între promovidos com base em leituras
possibilidades e impasses
surgidos desse trânsito da Claire Gillie limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues feitas em língua estrangeira.
Psicanálise entre as línguas. Elizabeth Robin Zenkner Brose Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками Após a II Guerra, o pensamento
A maior parte dos textos aqui Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între de Freud expresso em
Ernani Chaves
apresentados é fruto dos iii e iv limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues alemão passa a ser difundido
Simpósios Tradução e Psicanálise,
Junia Barreto
Luiz Alberto Hanns
Psicanálise entre línguas
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками principalmente no inglês de
Ernest Jones ou no francês de

Psicanálise entre línguas


realizados em setembro de 2013 Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între
e março de 2014 na Universidade Walter Carlos Costaτων γλωσσών Psychanalyse entre les langues Marie Bonaparte. Com o passar
Marcelo Jacques de Moraes limbi Ψυχανάλυση μεταξύ
Federal de Santa Catarina em Pedro zwischen
Heliodoro Tavares do tempo, ao final do século xx,
Marcus Coelen Psychoanalyse den Sprachen Психоанализ между языками a Psicanálise seguiu avançando na
Florianópolis. Essa série de Emiliano
eventos, por sua vez, está atrelada Maria Rita Salzano Moraes Psicoanálisis entre de
las Brito Rossi
lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între América Latina, sobretudo com
ORGS.
ao projeto As Novas Versões Maurício Eugênio Maliska limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues fecundas leituras em espanhol
Brasileiras da Obra de Sigmund Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками e português. Hoje, no início do
Patrícia Chittoni Ramos Reuillard
Freud – Adaptações e Recriações Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între século xxi, parece que os avanços
Paulo Sérgio de Souza Jr. rumam ao Leste. Não somente ao
Estilístico-Conceituais iniciado em limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues
2010 sob a coordenação de Walter Pedro Heliodoro Tavares Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками leste europeu, fundamentalmente
Carlos Costa, supervisionando a Rússia, mas também havendo
Walter Carlos Costa Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între
os trabalhos de Pós-Doutorado interessantes novidades com a
limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues
de Pedro Heliodoro Tavares no tardia entrada da Psicanálise na
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками China, após anos de proibição
programa de Pós-Graduação em
Estudos da Tradução
Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între das obras de Freud naquele país.
(pget-ufsc). limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues Com cada uma dessas passagens,
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками parece que algo das características
Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între culturais e condições históricas
limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues em que se encontram embebidas
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками cada uma dessas línguas coloca
enriquecedores questionamentos
Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între
a esse saber e a essa prática
9 788542 105216 limbi Ψυχανάλυση μεταξύ των γλωσσών Psychanalyse entre les langues
interdisciplinar desde seus inícios.
Psychoanalyse zwischen den Sprachen Психоанализ между языками
Psicoanálisis entre las lenguas 语言 之间 的 心理 分析 Psihanaliză între
psicanálise entre línguas
Walter Carlos Costa
Pedro Heliodoro Tavares
Emiliano de Brito Rossi
(Orgs.)

psicanálise entre línguas


© 2016 Walter Carlos Costa; Pedro Heliodoro Tavares; Emiliano de Brito Rossi
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Ana Cecília Menescal
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Revisão técnica
Organizadores Agradecimento 7
Prefácio 9

o divã de babel
Uma zona linguística franca: o psíquico 17
cip-brasil. catalogação na publicação Paulo Sérgio de Souza Jr.
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Língua, Tradução e Psicanálise 27
p969
Maria Rita Salzano Moraes
Psicanálise entre línguas / organização Walter Carlos Costa , Pedro Heliodoro
Tavares , Emiliano de Brito Rossi. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7 Letras, 2016. Sobre a tradução de Unbehagen – o Desassossegado Mal-estar 37
isbn: 978-85-421-0521-6 Christian Ingo Lenz Dunker
Elizabeth Robin Zenkner Brose
1. Psicanálise. 2. Linguística. I. Costa, Walter Carlos. II. Tavares, Pedro Heliodoro.
III. Rossi, Emiliano de Brito. Liebe, Situation, Sprache 53
16-38292 cdd: 150.1952 Marcus Coelen
cdu: 159.964.2
Sobre a violência da relação tradutória 67
Marcelo Jacques de Moraes
Psicanalista traidor? Pontuações a partir da prática psicanalítica 82
Maurício Eugênio Maliska
2016
Viveiros de Castro Editora Ltda. A demanda ‘silenciosa’ de Pierre Rivière –
Rua Visconde de Pirajá, 580, sl.320 – Ipanema da autobiografia ao cinema 89
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
Junia Barreto
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
a psicanálise de uma língua a outra Agradecimento
Retour à la lettre freudienne; contours et détours
d’une langue à l’autre 111
Claire Gillie
As palavras-valise nos Seminários lacanianos 125
Patrícia Chittoni Ramos Reuillard
Notas sobre três traduções do Seminário Livro 3 de Lacan 139
Walter Carlos Costa
Tradução, ética e política 152
Ernani Chaves
Les écrits de Freud avant et après leur entrée dans le domaine public –
parcours des traductions en europe et en Amérique du Sud 158 À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior),
Pedro Heliodoro Tavares pelo financiamento do Projeto As Novas Versões Brasileiras da Obra de
Sigmund Freud – Adaptações e Recriações Estilístico-Conceituais, a partir
A atualidade de Freud e um novo modo de traduzi-lo 176 do qual se elaborou os III e IV Simpósios Tradução e Psicanálise, promovi-
Luiz Alberto Hanns dos pela Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) em parceria com o Programa de Pós-
sobre os autores e organizadores 183 Graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo
(USP) e com o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Os textos aqui apresen-
tados são em sua maioria fruto de comunicações apresentadas nesses dois
eventos realizados, respectivamente, em setembro de 2013 e março de 2014.

7
Prefácio

O trânsito da Psicanálise entre as línguas caracterizou profundamente,


tanto a possibilidade de sua criação, como os seus mais significativos avan-
ços até os nossos dias. Desde a aurora da descoberta freudiana, o incons-
ciente é caracterizado em A interpretação dos sonhos [Die Traumdeutung]
como uma forma de língua estrangeira; é assim percebido pelo sujeito
previamente identificado com sua consciência, sendo o ofício tradutório
utilizado nesse livro fundador como metáfora para o processo analítico.
Após a morte de Freud, percebemos ainda que os mais importantes
desenvolvimentos na clínica e na teoria vêm sendo promovidos com base
em leituras feitas em língua estrangeira. Após a II Guerra, o pensamento
de Freud expresso em alemão passa a ser difundido principalmente no
inglês de Ernest Jones ou no francês de Marie Bonaparte. Com o passar do
tempo, ao final do século XX, a Psicanálise seguiu avançando na América
Latina, sobretudo com fecundas leituras em espanhol e português, daquilo
que fora produzido previamente nas línguas de Winnicott e de Lacan.
Hoje, no início do século XXI, parece que os avanços rumam ao Leste.
Não somente ao leste europeu, fundamentalmente a Rússia, mas também
havendo interessantes novidades com a tardia entrada da Psicanálise na
China, após anos de proibição das obras de Freud naquele país.
Com cada uma dessas passagens, parece que algo das característi-
cas culturais e condições históricas em que se encontram embebidas
cada uma dessas línguas aportam enriquecedores questionamentos a
esse saber e a essa prática interdisciplinar desde seus inícios. Se Freud

9
combina sua formação médica à curiosidade pela Mitologia clássica, pela Estadual do Mato Grosso do Sul, tivemos a oportunidade de dar sequên-
História dos monoteísmos, pela Literatura e outros tantos saberes na cia ao projeto com a chegada de Emiliano de Brito Rossi ao PGET-UFSC,
gênese da Psicanálise, vemos que em língua inglesa, por um lado, o diá- sendo ele, portanto, um dos organizadores deste segundo livro fruto do
logo segue com as buscas de torná-la um saber positivo mais próximo da projeto iniciado em 2010.
Psiquiatria, da Biologia e das Neurociências, por outro lado, ela dialoga Com uma proposta mais ampla do que a inicial, que culminou na
com manifestações da cultura como o Cinema e a Crônica Jornalística. primeira publicação, restrita às relações entre Tradução e Psicanálise,
Na França, sobretudo em torno das leituras de Lacan, a obra de Freud desta vez os autores contribuíram com artigos que colocam a indagação
passa a ser relida pelo viés da Linguística Estrutural, da Topologia, da num espectro mais amplo, envolvendo o trânsito da Psicanálise entre as
Filosofia e da Literatura de Vanguarda. Na América Latina, a Psicanálise línguas. Por isso, achamos interessante a divisão do livro em duas ses-
vem dialogar na Argentina especialmente com “a” Política e com as polí- sões: O divã de Babel, na qual os textos abordam de um modo amplo as
ticas públicas possíveis num país altamente intelectualizado e submetido relações da Psicanálise com as línguas e linguagens, e uma segunda, A
por longo período a uma cruel ditadura. No Brasil, ainda que muito do Psicanálise de uma língua a outra, na qual as contribuições estão mais
que apontamos acima esteja aqui combinado, salta aos olhos estrangei- diretamente associadas às traduções de obras e conceitos psicanalíticos.
ros nossa tendência em fazer a Psicanálise dialogar especialmente com as O criativo e erudito trabalho de Paulo Sérgio de Souza Jr. mereceu
Artes e os processos criativos em geral. E quais serão as “contaminações” abrir as discussões, pois, valendo-se do seu profundo conhecimento de
possíveis que podemos esperar do trânsito da Psicanálise com o russo, línguas tão diversas como o mandarim, o russo e o romeno, além das
com o chinês ou com outras línguas? mais influentes línguas europeias modernas, o autor coloca importantes
O intuito do presente livro foi o de reunir textos advindos de refle- questões sobre os reflexos do psiquismo ou da subjetividade nas línguas
xões sobre as consequências, possibilidades e impasses surgidos desse e vice-versa. Já o trabalho de Maria Rita Salzano Moraes, que ­traz-nos a
trânsito da Psicanálise entre as línguas. Como o leitor pode depreender tríade língua, tradução e Psicanálise já no título, confronta-nos com o
da nota de agradecimento, a maior parte dos textos aqui apresentados é fato de que toda língua nos é estrangeira, sendo a língua (dita) materna,
fruto dos III e IV Simpósios Tradução e Psicanálise, realizados em setem- aquela na qual a mãe é interditada. Já o trabalho de Christian Dunker e
bro de 2013 e março de 2014 na Universidade Federal de Santa Catarina Elizabeth Brose, que poderia ser também alocado na segunda seção do
em Florianópolis. Essa série de eventos, por sua vez, está atrelada ao pro- livro, justifica seu lugar na primeira por partir do Unbehagen freudiano
jeto As Novas Versões Brasileiras da Obra de Sigmund Freud – Adaptações visando nos confrontar com o “desassossegado sem-lugar” do sujeito
e Recriações Estilístico-Conceituais, iniciado em 2010 sob a coordenação entre as línguas e culturas.
de Walter Carlos Costa, supervisionando os trabalhos de Pós-Doutorado Na linha do situar e da situação de nossos trabalhos entre as línguas,
de Pedro Heliodoro Tavares no programa de Pós-Graduação em Estudos seguimos com um texto redigido em língua alemã que faz a Psicanálise
da Tradução (PGET-UFSC). dialogar com a Filologia. Como no caso de Maria Rita, um trinômio –
Quando o primeiro pesquisador-bolsista do Programa realizou seu amor (Liebe), situação (Situation), língua/linguagem/fala (Sprache) – con-
concurso para o cargo de professor na Universidade de São Paulo, o pro- duz as argumentações. Já o texto de Marcelo Jacques de Moraes relaciona
jeto teve continuidade com os trabalhos de pós-doutorado de Marcelo diretamente o processo tradutório à “violência” que lhe é inerente, mais
Bueno de Paula. Da parceria entre esses três pesquisadores, além da orga- do que ao papel diplomático geralmente associado a tal prática. Seu tra-
nização das primeiras edições do evento, surgiu a coletânea Tradução e balho traz importantes questionamentos sobre o envolvimento de ques-
Psicanálise, livro publicado por esta mesma editora no ano de 2013. Como tões subjetivas atinentes ao ofício do tradutor. Junia Barreto ultrapassa a
o Marcelo Bueno de Paula também acabou sendo contratado como dimensão mais tradicional dos Estudos da Tradução, tratando mais de
professor numa instituição pública de ensino superior, a Universidade uma tradução intersemiótica do que propriamente interlingual em seu

10 11
trabalho envolvendo a recriação fílmica do célebre relato autobiográfico Paris em dezembro de 2014. O autor trata das consequências do trân-
de Pierrre Rivière. Fechando a sessão, o psicanalista Maurício Maliska sito prévio entre o alemão de Freud e o português brasileiro por outras
procura transportar o já tão debatido aspecto da “traição” (tão perigosa línguas de influência da Psicanálise (inglês, francês e espanhol). Last but
quanto necessária) no processo tradutório para algo que consiste em not least, tivemos a honra de contar com uma contribuição muito espe-
novidade quando pensada referindo-se ao processo psicanalítico. cial para este livro: trata-se de um texto com as reflexões sobre a situação
No trânsito entre as línguas, a segunda sessão é aberta com o tra- da tradução das obras de Freud para o português brasileiro escrito por
balho em língua francesa que também abriu o III Simpósio Tradução e aquele que talvez seja o mais representativo autor sobre tais questões no
Psicanálise, ou seja, com as reflexões de Claire Gillie, uma psicanalista e país: Luiz Alberto Hanns, autor do Dicionário comentado do Alemão de
tradutora de Freud do alemão para o francês. Além de trazer a possibi- Freud (Imago, 1996) e coordenador da primeira edição de obras de Freud
lidade de nos transportar para uma língua estrangeira como língua de traduzidas diretamente do alemão (Imago, 2004-2007).
chegada, com todas as suas especificidades, a densa exposição combina as
questões de ambos os ofícios da autora. Seguimos com o trabalho da tra- Os organizadores
dutora e intérprete Patrícia Reulliard, professora e pesquisadora na área
dos estudos da tradução, que dedicou sua tese ao hercúleo trabalho com
as (im)possíves traduções dos neologismos e palavras-valise de Jacques
Lacan. Se o neologismo é muitas vezes fruto da percepção de uma impos-
sibilidade no âmbito na língua em que é cunhado, valendo-se de suas
idiossincrasias, como proceder com seu transporte para outra língua?
Ainda sobre as traduções da obra do mais influente psicanalista de língua
francesa, o trabalho de Walter Carlos Costa aborda aspectos de diferentes
traduções de seu terceiro seminário (As psicoses) para diferentes línguas
europeias modernas. Cabe aqui destaque para o duplo trabalho de tradu-
ção aí envolvido, já que se trata de uma versão escrita em uma nova lín-
gua de chegada para um texto oral, produzido em uma língua de partida
diferente.
As três últimas contribuições dizem respeito às traduções da obra
do criador da Psicanálise no Brasil. Ernani Chaves parte da crítica de um
tradutor brasileiro das obras de Freud que nos aponta como o paradigmá-
tico uso da palavra pulsão para verter Trieb estaria atrelado a uma leitura
lacaniana de Freud. Para desconstruir essa noção, Chaves traz um impor-
tante achado que em muito antecede as traduções de Freud no trânsito
entre as línguas alemã e francesa, justificando a manutenção de pulsion
em francês e, consequentemente, de pulsão em português. Na sequên-
cia, continuando com as reflexões expostas ao longo de seu livro Versões
de Freud (7Letras, 2011), Pedro Heliodoro Tavares, direciona ao público
francofônico a condensação dessas ideias apresentadas num evento pro-
moviodo pela Université Paris VII e a instituição Espace Analitique em

12 13
o divã de babel
Uma zona linguística franca: o psíquico1
Paulo Sérgio de Souza Jr.

E se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a


batalha? / Assim também vós, se com a língua não pronunciar-
des palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? —
porque estareis como que falando ao ar. / Há, por exemplo, tanta
espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação.
/ Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a
quem falo, e o que fala será bárbaro para mim.

Primeira epístola de São Paulo aos Coríntios (14:8-11)

Estima-se que o termo bárbaro [βάρβαρος] tenha começado a ser uti-


lizado pelos gregos no séc. V a. C. Ele designava aquele que “barbareja”
(bar, bar...), isto é, aquele que não fala a língua da civilização — a grega,
é claro. Embora a palavra tenha ganhado, com os romanos do séc. I, uma
abrangência que recobriria todo estrangeiro — heteroglota enquanto tal
—, ela fora cunhada, num primeiro momento, para designar os persas e
suas guturais sibilinas, que arranhavam os ouvidos helênicos de vogais
abertas e consoantes supostamente suaves aos ouvidos daqueles que se
espraiavam aos pés do Olimpo.
Belicosos, portanto, não eram apenas Xerxes, Artemísia de
Halicarnasso e suas frotas apavorantes de “naves, desnaves, desnavios”
[νᾶες ἄναες ἄναες, verso 680] (ÉSQUILO, 2013), mas também a sua lín-
gua e a designação sob a qual se encontravam agrupados. Tanto que na
peça de teatro mais antiga que chegou completa até os nossos dias — uma
tragédia contemporânea ao surgimento do termo e contemporânea às
Guerras Médicas: Os persas, de Ésquilo (472 a. C) —, o autor menciona
o povo em questão utilizando o termo Πέρσαι (/pérsai/, ‘persas’: verso
171), ao mesmo tempo em que também se vale do infinitivo homônimo e
1 Um primeiro momento desta reflexão foi apresentado — sob o título “O analista e os bár-
baros: sobre línguas e fronteiras” — no Colóquio “A letra e o saber fazer com lalíngua”,
promovido pela Association de psychanalyse Encore em São Paulo (13 e 14 de abril de 2014).

17
homógrafo do verbo πέρθω (/pérthō/), isto é, πέρσαι (/pérsai/, verso 178): Sendo esse, ao que parece, um bem tão justamente distribuído
um vocábulo grego que significa ‘devastar’ e que, não por acaso, será rei- entre os povos e eras (aparentado, assim, ao bom senso de que falava
teradamente empregado ao longo da obra. Logo, os primeiros bárbaros, Descartes4), acaso nós, analistas, estaríamos livres disso? Essa é uma
Πέρσαι / πέρσαι, são aqueles que ferem, sim, as embarcações e os corpos... pergunta que mereceria ser feita, uma vez que se sabe que a psicanálise
mas também os ouvidos e o espírito. não escapou ao fato de que há diversidade linguística, quer na dimensão
Contudo, desdobrar imaginariamente as línguas em afirmações sobre do caso clínico (pensemos no inglês, no francês e no italiano de Bertha
os seus falantes ou suas funções expressivas distintas / específicas não se Pappenheim [Anna O.] (BREUER; FREUD, 1895 pp. 15-ss.), mas também no
configura como um presente exclusivo de gregos, já que é definitivamente russo de Serguêi Pankêiev [Homem dos Lobos] (FREUD, 1918/1924) e no
algo que se constata nas mais diversas culturas e épocas. Pensemos, por Glanz / Blick auf der Nase do texto freudiano sobre o fetichismo (FREUD,
exemplo, i) na figura do gringo em nossa tão latina América; ii) no termo 1927), quer na transmissão de sua própria doutrina — afinal, a psicanálise
circulante nas línguas eslavas modernas que, tendo outrora servido para é herdeira, com Lacan, de uma passagem significante, conforme afirmou
designar todo e qualquer estrangeiro, hoje em dia é usado apenas para Jean-Claude Milner, em uma entrevista astuciosamente intitulada Wo Es
designar o alemão2, e cuja origem está no protoeslavo *němьcь (de *němъ, war... la langue:
‘mudo’) —; ou, ainda, iii) no famigerado parecer sistematizador que as
“Agora todas as disciplinas se encontram restituídas, as línguas instauradas”,
anedotas envolvendo um certo imperador do Sacro-Império Romano- escreve Gargântua a Pantagruel. Eu sempre percebi no discurso de Roma
Germânico constituem: trata-se de Carlos V (1500-1558) (WEINREICH, uma espécie de eco desse júbilo. Lacan, assim como Rabelais, viu-se entu-
1989), para quem o espanhol seria ideal para se falar com os reis; o ita- siasmado com a renovação das ciências, por uma renascença, que, com o
liano, com a mulher amada; o francês, com os amigos; o holandês, com fim da Segunda Guerra Mundial, foi o contrário de um luto. Não é por acaso
que isso tenha ocorrido perante os psicanalistas de língua românica, como
os serviçais; o alemão, com os soldados; o latim, com Deus e o húngaro que em testemunho disso que podia ser percebido como uma translação
com o Diabo. Disso, aliás, não escaparam nem filósofos! Voltaire (1750, de saberes: do universo da língua alemã — língua dos saberes do final do
p. 522), por exemplo, sobre a língua alemã, dizia o seguinte numa carta século XVIII até 1933 — passávamos a um universo no qual a língua fran-
a d’Argental: “o senhor que não pense que eu estudo seriamente a língua cesa, após 1945, engendraria saberes sem precedentes (MILNER, 2004 s/p).
tudesca; limito-me prudentemente a saber o que é preciso para falar com Saberes sem precedentes e que, não por acaso, encontrariam guarida
a minha gente e com meus cavalos”. no contexto pós(?)-colonial brasileiro — muitas vezes de modo irrefletido,
Os relatos são muitos, e oscilam do elogio (em geral, aos seus) à sátira é preciso dizer, sobretudo na lida com o texto. É o que se vê, minimamente,
do outro,3 de modo que, se um dia os bárbaros e suas línguas deram con- ao folhear as traduções de muitos dos tantos trabalhos que circulam no
torno ao mundo greco-romano, parece claro que a função estabilizadora país, escritos num português alquímico aceito quase que irrestritamente
do estrangeiro como caução de um limite muito conveniente ao nativo pelos iniciados nos grimórios editados, para não dizer outra coisa, à base
sobreviveu aos tempos e à geografia, e, muito provavelmente, já era her- de poucos esforços tradutórios — facilitados, muitas vezes, pelo lacana-
deira de outras épocas ainda mais antigas, pairando por terras as mais ditisme: textos repletos de frases sem cabimento, mas cujos pecados são
distantes. remidos pelo brasão “Jacques Lacan”: Já-que Lacan falou, tudo bem! Se
está azedo, deve ser só o legado dos vinagres Desseaux; enfim, coisas de
família... E isso para não dizer dos anos a fio em que, aqui no Brasil, se leu
2 Em russo e búlgaro, немец; em ucraniano, німець; em eslovaco e esloveno, nemec; em Freud à longa distância, separado pelo abismo da falta de zelo e honesti-
polonês, niemiec; em servo-croata, нијемац / nijemac; em tcheco, němec; dentre outros...
3 Citado por Henri Estienne (1579/1896), por exemplo, um texto latino dizia: “os italianos dade editoriais.
balem, os espanhóis gemem, os alemães ululam, os gálios [franceses] cantam” (balant Itali,
gemunt Hispani, ululant Germani, cantant Galli). 4 Cf. R. Descartes (1637, p. 75).

18 19
*** enquanto dificuldade de me traduzir em lalíngua inglesa. É preciso, ainda
assim, reconhecer as coisas como elas são. Eu não fui o primeiro a constatar
Parece, então, que há mais um viés com relação ao estrangeiro que essa resistência de lalíngua inglesa ao inconsciente (LACAN, 1974-75, 11 de
não pode ser ignorado: no avesso do pavor e da repulsa pelos seus cos- fevereiro de 1975).
tumes áridos, o cheiro da sua comida ou os descompassos do sonido
Ou, ainda, a de que o inconsciente chinês é radicalmente diferente do
incerto da sua trombeta (como diria o apóstolo), encontramos o fascínio
inconsciente ocidental — afirmação empreendida quando,
pela suspeita de que, quem sabe?, talvez a escuridão que o estrangeiro
habita seja a morada de um saber que nós ignoramos... e que, sobretudo, em abril de 1974, uma delegação da revista Tel Quel percorreu a China.
Foi Maria-Antonieta Macciochi quem sugeriu aos chineses esse convite e
nos faz falta.
Philippe Sollers quem propôs a lista dos membros da delegação: Roland
Ficamos, assim, fascinados perante um suposto segredo guardado Barthes, Julia Kristeva, Jean Wahl, Marcellin Pleynet e Jacques Lacan. Este
a sete chaves dessa língua que não é a nossa; e não é novidade que os explicou que havia estudado chinês durante a guerra, que retomaria seus
segredos convocam as mais tolas fantasias, como acontecia com a própria estudos e que iria de bom grado explorar o inconsciente dos chineses, que,
fabricação do vinagre, de cuja renda vivia a família Lacan desde o começo segundo afirma, não é estruturado como uma linguagem, mas como uma
escrita. Julia Kristeva, num romance à clef transparente [Les samouraïs, pp.
do século XIX. Por exemplo, durante muito tempo se acreditou na lenda 202-3], narra, assim, a cena: “Quanto aos chineses, é evidente que eles têm
de que o líquido misterioso era feito à base da fermentação de excremen- inconsciente, forçosamente, mas ele é estruturado de outra maneira, não
tos humanos: ao menos “era assim que o respeitadíssimo Domachy rela- como uma linguagem, mas como uma escrita, e a diferença é capital. Mais
tava que empresários haviam imaginado transformar barris de vinho em ainda: os chineses não têm nada a ver com os japoneses. Por causa do tao. É
preciso ouvi-los de perto! (CALVET, 2012 s/p).
privadas nas quais os operários tinham ordens de satisfazer suas necessi-
dades” (ROUDINESCO, 1994/2008). No entanto, convenhamos: procurar um limite glossográfico para o
Vejam só! Em tempo: ‘fascínio’, do latim, fascinum; símbolo que psicanalisante (dizendo que o falante de língua japonesa não precisa ser
corporifica a divindade Fascinus, representada na tradição romana nada psicanalisado), para a transmissão da psicanálise (afirmando que lalíngua
mais nada menos que por um falo — com o qual se acreditava espan- inglesa oferece resistência) ou para a própria definição de inconsciente
tar as influências malignas. Faço aqui a hipótese, portanto, de que, tam- estruturado como uma linguagem (propondo que o inconsciente chinês
bém no campo da psicanálise, esse fascínio é invocado tal como o era na é estruturado como escrita) não é uma forma de encerrar uma totalidade,
Antiguidade: enquanto lá especialmente o conclamavam para proteger as garantir um certo contorno para a coisa e a causa freudianas?
parturientes e sua prole, nós o invocamos, hoje, para proteger o parto das Parece não podermos escapar às seguintes perguntas: cabe ao analista
nossas ideias, e para que elas sejam bem nascidas — em forma, peso e julgar, com base nas línguas, quem dele precisa ou deixa de precisar? E se
medida. algo não soa na língua inglesa para alguém — como parece ter sido o caso
E não seria esse intento que faz fervilhar afirmações como, por exem- de Lacan, que tão pouco se alterava noutros idiomas; e basta ouvi-lo pro-
plo, a de que “o chiste é, no Japão, a própria dimensão do discurso mais nunciando palavras estrangeiras em seus seminários para constatá-lo —,
comum, e é por isso que ninguém que habite essa língua precisa ser psi- será que isso significa que lalíngua inglesa esteja safe’n’sound da psicaná-
canalisado” (LACAN, 1972/2003 p. 499)? Ou a de que lise? Se há o que pareça mais explícito na escrita chinesa, para o nosso
Lalíngua, eu acho que é lalíngua inglesa que constitui obstáculo. Não é estranhamento ocidental, significa que isso seja menos patente nas lín-
muito promissor, porque lalíngua inglesa está se tornando universal; ela guas que não operam com ideograma?
vem trilhando o seu caminho, quero dizer. Enfim, não posso dizer que não Em que medida? Difícil dizer, sobretudo se não ignoramos Freud
tem gente que se esforce em me traduzir nela. Os que me leem, assim, de
— que, embora arredio às terras estrangeiras (só deixou Viena arrastado,
vez em quando, podem fazer... ter uma ideia, enfim, do que isso comporta

20 21
certamente não sem muita Heimweh), não se furtava a entender o psí- goes, mas justamente de um something goes... de modo que something can
quico como zona linguística franca: be, justamente, anything.
Ademais, não nos esqueçamos de que o vetor da barbárie se inverte
Todas as outras novas aquisições da função da linguagem — se aprendo,
então, a compreender e a falar várias línguas estrangeiras, se, além do alfa- de tempos em tempos: os próprios gregos — por ironia do destino —
beto primeiramente aprendido, me aproprio do grego e do hebraico e, além amparariam a nossa noção linguística do bárbaro, como bem diz a expres-
da minha escrita cursiva, exercito a estenográfica e outras formas de escrita são “isto, pra mim, é grego”. Não é isso muito precisamente o que falamos
—, todas essas atividades [...] estão obviamente localizadas nas mesmas frente a qualquer língua que seja incompreensível, ou mesmo frente ao
áreas que reconhecemos como os centros da primeira língua aprendida
(FREUD, 1891/2013 p. 83-4, grifo do autor). que, em nossa própria, também nos escapa?

Diferentemente do rei anedótico, o linguista Roman Jakobson — ***


famigerado poliglota, de fato —, parece ter compartilhado das sutilezas
de Freud nesse sentido, ao dizer, sem cerimônia: “eu falo russo em quinze E quanto não nos escapa! Como mostra uma peculiaridade prono-
línguas” [“Я говорю по-русски на пятнадцати языках” (Jakobson minal mandarim, que vale a pena ser comentada: hoje uma forma distinta
apud Nikoltchina, 2007, p. 197; grifo nosso)]. Ele, Jakobson, cuja grande para o termo ‘eu’, 我 (wǒ), a palavra 朕 (zhèn) seria reservada, a partir da
questão sempre fora a da semelhança na diferença, pôde ouvir na diver- Dinastia Qín [秦朝], apenas para o uso do imperador. Antigamente, no
sidade linguística o entremeio das suas costuras; de modo que é interes- entanto, quando zhèn podia ser dito por qualquer um, ela não era escrita
sante notar precisamente que, ao utilizar o termo ‘falar’ [говорить], o com 月(yuè, ‘lua’) à esquerda — como é atualmente —, de modo que o
poeta da linguística o fez por meio de uma construção em que tal verbo caractere era composto por 舟 (zhōu, ‘barco’) e 关 (guān, ‘fronteira’, ‘pas-
­comparece de modo intransitivo: equivalente, pois, a um “eu falo em russo sagem / atravessamento de fronteira’, ‘perto’, ‘relação’). Em sua origem,
/ russamente [по-русски] em quinze línguas”, e não exatamente “eu falo portanto, o pronome ‘eu’ tinha algo a ver com as embarcações; e o que os
russo em quinze línguas”, como dissemos — que, por sua vez, se diria dicionários antigos nos mostram é que zhèn significava, curiosamente, o
“Я говорю русский язык на пятнадцати языках”, o que estaria perfei- espaço, a fenda (Spaltung) que se revela entre duas tábuas.
tamente correto do ponto de vista gramatical e poderia muito bem ter Se não estamos livres do fato de que a língua nos divide, nem aqui
sido empregado, ao invés da forma eleita — não fossem as sutilezas ali em nem na China, a fatalidade, digamos, é que eu está fadado a se revelar
cena, arriscaríamos dizer. — cedo ou tarde — como sendo um outro, tal como afirmaria Rimbaud
O que essa afirmação nos faz lembrar é que, se muitas formulações (1871/1999, p. 237). Ora, a língua que habitamos (e que nos habita) é tão
lacanianas são extremamente valiosas, noutros momentos é melhor estranha quanto a do outro, pois é de um Outro, mesmo, que a recebe-
sermos freudianos lá onde ele, Lacan, não fora — sem nos rendermos, mos; e, antes de se deixar impressionar pelo estrangeiro, com o intuito
­sobretudo, ao deslumbre de valorar mais um certo Lacan, aquele dos últi- de tirar consequências teóricas, convém começar lembrando que estran-
mos anos de vida e sua teorização tardia, quando, embora mais próximo geiros também somos nós... e de nós mesmos. E que, se o inconsciente
da morte, nem por isso ele teria se encontrado ali, necessariamente, mais é estruturado como uma linguagem (e não como uma língua), isso não é
próximo da verdade. sem consequências para pensar a estrangeiridade na língua.5
Portanto, na terra do entrelínguas, por assim dizer... que me perdoem Lalíngua — que é não toda — e a instância da letra — que é do foro
os fascinados, mas indiferença é fundamental. Não a indiferença do do absenso — não se deixam limitar à possibilidade frágil de se pensar
“nada importa”, mas justamente a indiferença da “atenção flutuante” [glei-
chschwebende Aufmerksamkeit] de que falava Freud nas Recomendações 5 Observação muito pertinente feita por Maria Rita Salzano Moraes (DLA-IEL/Unicamp)
em “Língua, tradução e psicanálise”, trabalho apresentado no IV Simpósio Tradução e
aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Não se trata de um anything Psicanálise (Florianópolis, 24 de março de 2014).

22 23
em língua que seja uma; isto é, vê-se invariavelmente impedido ter como CASSIN, Barbara (2010) O ab-senso ou Lacan de A a D. In: BADIOU, Alain;
garantia um intervalo claro entre uma língua e outra ou, dentro do que CASSIN, Barbara (2010). Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de
Lacan. Trad. Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013, pp. 9-56.
se chama de “uma mesma língua”, os intervalos entre as partes que a
­compõem. Vale ressaltar que, embora o engenho humano se aproxime DESCARTES, René (1637) Discours de la méthode. Paris: Gallimard, coll. Folio
essais, 1991.
dos objetos de seu interesse mobilizando primordialmente uma atividade
de segmentação (dividir para conquistar... com o intelecto), a língua cos- ÉSQUILO. Os persas. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2013.

tuma desmanchar a ciência do estudioso tanto quanto faz, quotidiana- ESTIENNE, Henri (1579) Préface. In: La précellence du Langage François. Paris: E.
mente, com a do usuário (HELLER-ROAZEN, 2005 p. 60) — sem nos esque- Huguet, 1896.
cermos, com efeito, que, embora o usuário nem sempre coincida com a FREUD, Sigmund (1891) Sobre a concepção das afasias. Trad. Emiliano de Brito
Rossi. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Em alemão, disponível em: <https://
figura do estudioso, o segundo nunca deixa de ser o primeiro.
archive.org/details/ZurAuffassungDerAphasien.EineKritischeStudie>. Acesso
Se, na órbita do linguístico, os limites são sempre tênues — uma vez em 26 mai. 2014.
que se possa, ao ignorar o sentido, ver um caminho aberto para a insta-
______. (1912) Ratschläge für den Arzt bei der psychoanalytischen Behandlung.
lação da barbárie como mecanismo de garantia da unidade pré-judicada In: Zentralblatt für Psychoanalyse, Bd. 2 (9), Junho, pp. 483-9. Disponível em:
—, vemos que o galeio a ser dado noutra direção (a direção do absenso <https://archive.org/details/Zentralblatt_II_1912_Heft9_k>. Acesso em 26 mai.
e suas letras (CASSIN, 2010/2013 passim) seria justamente um pas-de-sens, 2014.
um (im)passe-de-sentido consoante com aquilo que afirma Freud sobre ______. (1918) Aus der Geschichte einer infantilen Neurose. Leipzig, Viena,
a inscrição das línguas e escritas estrangeiras no velho campo nativo (por Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1924. Disponível em:
sinal, o campo da linguagem). <https://archive.org/details/Freud_1924_Aus_der_Geschichte_einer_infanti-
Dito de outro modo, recusar o apelo à figura do bárbaro — quer em len_Neurose_k>. Acesso em 26 mai. 2014.
sua vertente que suscita a repulsa, quer na que conduz ao fascínio — tal- ______. (1927) Fetischismus. In: Almanach der Psychoanalyse 1928. Viena, 1927,
vez seja mais conveniente ao analista em sua prática, bem como na teoria pp. 17-24. Disponível em: <https://archive.org/details/Almanach_1928_k>.
Acesso em 26 mai. 2014.
que dela deriva. Prática esta marcada por um exercício da alteridade que
só ganha em fugir à mera especulação, ao mero resvalar nas recidivas HELLER-ROAZEN, Daniel (2005) Ecolalias: sobre o esquecimento das línguas.
Trad. Fábio A. Durão. Campinas: Ed. da Unicamp, 2010.
do narcísico; que nos coloca na saga pelas veredas dessa zona linguística
franca que é o psíquico. Ponto nada pacífico, por sinal... mas isso não é KRISTEVA, Julia. Les samouraïs. Paris: Fayard, 1990.

bárbaro? LACAN, Jacques (1972) Aviso ao leitor japonês. In: Outros escritos. Trad. V.
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Maison des sciences de l’homme, 1989; pp. 261-72. Quem transmuta palavras de uma língua noutra
deixa a alma nas mãos do diabo [...]
Enquanto você pensa tanto numa palavra quanto na outra,
o seu espírito permanece, indeterminado, por sobre elas,
mudo e inacabado, e fica sem saber o que é branco ou preto.
(Simona Sora, 2012)

Não é como tradutora ou teórica da tradução que aceitei o convite para


participar do Simpósio sobre Tradução e Psicanálise. O que tenho a dizer
se declina a partir da série que recebi como desafio para desenvolver uma
reflexão: “língua, tradução e Psicanálise”. Para que eu tenha algo a dizer,
preciso primeiramente inverter essa série e perguntar: como é que, a par-
tir da Psicanálise posso falar de língua e de tradução?
Para falar primeiro da relação entre línguas, vou a Jakobson, em
“Aspectos linguísticos da tradução”. Nesse trabalho, a tradução propria-
mente dita é aquela em que entram em jogo os signos de outra língua.
Nesse caso teríamos o que é próprio, autêntico da tradução, ou seja, sua
relação com a alteridade.
Para a Psicanálise, no entanto, pelo fato de o sujeito ser constituído
por linguagem, a condição de alteridade já está dada de saída na própria
língua materna e isso pode tornar a língua estrangeira familiar. Gostaria
de falar, então, sobre essa alteridade, primeiramente a partir de uma afir-
mação de Freud, de que o aprendizado (entre outros) das línguas estran-
geiras está localizado no mesmo campo simbólico da assim chamada lín-
gua materna – o campo da linguagem:

26 27
Todas as outras novas aquisições da função da linguagem – se aprendo, então, o estranho não as diferencie, mas que as coloque, como diz Freud, nas
a compreender e a falar várias línguas estrangeiras, se, além do alfabeto pri- mesmas áreas (op. cit., p. 60), que as tome primeiramente enquanto ele-
meiramente aprendido me aproprio do grego e do hebraico e, além de minha
mentos de linguagem, de maneira que se possa entender a língua estran-
escrita cursiva exercito a estenográfica e outras formas de escrita –, todas
essas atividades [...] estão obviamente localizadas nas mesmas áreas que geira como uma leitura que o sujeito faz a partir de sua posição na língua
reconhecemos como os centros da primeira língua aprendida (FREUD [1891] materna.
2013, pp. 83-84, grifo do autor). Podemos afirmar que, neste caso, a familiaridade com a língua
estrangeira vem no lugar do estranhamento na língua materna. Se con-
Se o aprendizado das línguas estrangeiras – tomadas como capacida-
cordamos com a suposição de que a condição de alteridade da língua
des simbólicas – acontece no mesmo campo simbólico em que o sujeito
materna torna a língua estrangeira familiar é porque, para Freud, se trata
foi constituído por sua língua materna, o que podemos dizer dessa “rela-
do campo simbólico, de elementos de linguagem, entre os quais estão o
ção” entre línguas, e que consequências podemos daí extrair para uma
estranho, o indizível e o impossível. Para que a língua seja materna para
reflexão sobre língua e tradução?
o sujeito é preciso que seja fruto de um impasse, de uma impossibilidade.
Para responder essas perguntas e poder fazer referência a uma espé-
Charles Melman (1992) diz que a língua materna é aquela na qual,
cie de cruzamento de línguas, a algo da ordem de uma passagem entre
para aquele que fala, a mãe foi interditada (p. 32) e, dessa forma, apre-
línguas, lembro do caso inaugural da Psicanálise, Anna O. (BREUER &
senta-a com um traço negativo, pois, tomá-la positiva e apressadamente
FREUD [1893-1895] 1996 pp. 57-81), em que a paciente de língua alemã,
como veiculada pela lembrança daquela que nos introduziu na fala, seria
depois de sofrer transtornos afásicos em que vai perdendo as funções da
uma resposta já ao alcance da mão, por estar incluída no próprio signi-
língua alemã, passa a falar inglês fluentemente durante dezoito meses,
ficante materna. Língua materna, portanto, não é a língua que se aprende
sem o perceber, não sem utilizar, em ocasiões de extrema angústia, uma
com a mãe, mas a língua com a qual o corpo da mãe é necessariamente
mistura de várias línguas, tais como o francês e o italiano. Se tivesse que
imaginarizado. Para o autor, é o objeto interditado que torna uma lín-
ler uma dessas línguas em voz alta, produzia, com extraordinária fluência,
gua materna para nós, fazendo dela o nosso Heim (lar). Ela é a língua do
uma admirável tradução inglesa.
desejo, organizada tal qual o desejo, mas essa organização não garante a
O que nos interessa nesse caso é o fato de Freud ter chamado de sin-
expressão desse desejo. Ela é materna nessa definição, a partir do objeto
toma, o “esquecimento” (de Anna O.) de sua língua materna, o que nos
que ela interdita, isto é, sob a condição de o desejo não ser reconhecido
convoca a uma reflexão sobre a questão dos limites “entre” línguas, sobre-
pelo sujeito, ou de nela faltar justamente o que é materno e, por isso
tudo se observamos a familiaridade com que a língua estrangeira é tra-
mesmo, o sujeito poder ser falado por ela e, não importa o que ela fale em
tada neste caso. Se, para Freud, o sintoma é uma relação de compromisso,
nós, seja enunciado pelo Eu (p. 15).
tomar a língua estrangeira como sintoma supõe, necessariamente, que ela
Freud aborda a língua materna de maneira desconcertante, pois
seja referida à assim chamada língua materna e, mais precisamente, supõe
coloca em causa qualquer noção de língua como saber sinônimo de fami-
tomar o sujeito como efeito de linguagem.
liaridade, porque dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz, dizer
Este caso vem, justamente, interrogar os estatutos de familiar atri-
outra coisa do que o que se diz, falar para nada dizer, não são mais, no
buído à língua materna e de estranho atribuído à língua estrangeira. A
campo freudiano, as falhas da língua, são propriedades inelimináveis e
concepção de sujeito da Psicanálise nos permite considerar o estranho
positivas do ato de falar, de acordo com o dizer de Jacques-Alain Miller
da língua materna (a representação do estranho – a alteridade) como o
(1996, p. 62). Nessa língua, a fala do sujeito testemunha a presença de um
elemento organizador, e não diferenciador, nessa relação entre línguas.
saber que age a despeito de seu querer consciente, a determinação de um
É através dessa representação do estranho que se dá a passagem entre
dizer no qual se desconhece, divisão que, longe de ser uma ignorância, é
línguas. A inclusão do sujeito falante, nessa perspectiva, permite que
sua própria atividade.

28 29
A operação da língua estrangeira deve, portanto, ser articulada pelo desejo, Wolfson busca o impossível: com o literal da linguagem, ou seja,
impossível de dizer que se impõe à língua materna. nas letras das línguas estrangeiras, defender-se da perseguição e dissolver
Também o caso Wolfson nos permite afirmar que o estranho da lín- a tonalidade dessa língua materna, cuja ressonância o capturou no corpo.
gua materna é o elemento organizador na relação entre as línguas e, assim, Um caso mais tardio da obra de Freud ([1927] 1996, p. 155) traz a con-
coloca em questão o limite entre as línguas, embora o faça, desta vez, a dição fetichista. Freud conta que um jovem paciente, cuja língua materna
partir de uma outra visada, a das correspondências fundadas nas sonori- era o inglês, veio posteriormente morar na Alemanha, esquecendo sua
dades das línguas. língua materna quase que completamente. Num dado momento da aná-
Autor de Le schizo et les langues (1970, apud FONTAINE 1987), Wolfson, lise, ao invés de dizer “Glanz auf der Nase”, brilho no nariz, diz “Glance
cuja língua materna é o inglês, escreve em francês. Seus escritos em fran- auf die Nase”, olhadela para o nariz. Freud nos diz em que língua é preciso
cês possuem uma razão comum: sua luta com a perseguição da língua ler esse lapso, porque o fetiche, originado na infância do paciente, tinha
materna, contra a qual ele se empenha em um trabalho de desarticulação. que ser ouvido em inglês e não em alemão.
Esse livro é a maneira pela qual o autor recebe e reage às sonoridades Olhar para o nariz (Glance auf die Nase) era o fetiche, que, inciden-
de sua língua materna (e particularmente à voz de sua mãe), pois esses talmente, na troca da letra, fora dotado de um brilho (Glanz) que a língua
sons: “fazem surgir na cabeça um eco intolerável, vizinho da dor, uma estrangeira permitiu aparecer. Não se deve pensar que aí houve a virada
reverberação ecolálica de seu cérebro doente” (p. 77, tradução minha) que de uma palavra em outra por equívoco. Trata-se de uma outra lógica, na
ele trata de suspender. Para isso, não pode fazer nada menos do que des- qual as relações entre termos não têm a referência externa do sentido, só
truir, sistematicamente, todas as palavras da língua inglesa, isto é, desarti- a interna, da letra. Se não houvesse aí, de alguma forma, um escrito ante-
cular todos os vocábulos dessa língua, fonema por fonema. rior (Glance), o deslocamento da letra não teria produzido, nessa outra
Wolfson se relaciona com a língua materna de maneira singular: ele leitura (Glanz), o acesso ao que constitui a indestrutibilidade do desejo. O
a escuta pelo corpo, convocado pela sonoridade literal, como se ela esti- que se vê, nesse caso, é o movimento do estranho fazendo deslizar o fami-
vesse à espera de uma leitura. O que Wolfson ouve dessa língua é um liar de um outro texto. Em todos os casos, de maneira diversa, trata-se de
modo particular de inscrição da linguagem no corpo. algo que se realiza entre línguas.
Os dois casos nos permitem afirmar que a relação com uma língua O ponto de fuga das duas línguas em questão foi a letra, que possibili-
estrangeira passa, necessariamente, pela relação estranho-familiar na lín- tou que Glance fosse esvaziado de sentido e fizesse a passagem para Glanz.
gua materna. Para Anna O., o inglês vai recobrindo o alemão, para re-calcar O que fez insistência, nesse caso, foi a letra – que distingue o significante,
esse estranho que irrompe na língua alemã. O estranho, nesse caso, movi- tomando-o como objeto ao separá-lo da significação – e não o significante
menta, isto é, causa o desejo, causa o familiar, porque o estranho-familiar propriamente dito. Lacan ([1959] 1998, p. 576) diz que a homofonia é a
encontra-se ainda no campo do sentido, no campo representacional. dimensão em que a letra se manifesta no inconsciente. É a correspondên-
Anna O. não deseja o impossível, deseja, porque é impossível. cia sincrônica de elementos literais que forma o conjunto necessário e sufi-
No caso de Wolfson, as outras línguas entram para de-fendê-lo da lín- ciente para constituir a passagem da letra. Isto quer dizer que, no equívoco,
gua inglesa. Esta lhe é absolutamente estranha, uma vez que não importa, no lapso, no esquecimento, em todas as formações do inconsciente, a letra
para Wolfson, o campo do sentido. Assim, as outras línguas entram para passa. Por que não haveria também de passar na língua estrangeira?
movimentar o estranho da língua materna que o invade como uma língua Se o inconsciente fosse estruturado por língua e não por linguagem,
estrangeira. O estranho não se apresenta aqui como aquilo que põe em não aconteceriam casos como esses e também não seria possível cometer
movimento, portanto, não pode causar o familiar. O que restou a Wolfson lapsos em língua estrangeira. Se esses fenômenos ocorrem, é porque os
de familiar é de outra ordem, não se encontra no campo representacio- elementos de linguagem não pertencem a nenhuma língua em particu-
nal, apresenta-se como dor, no corpo. Se o estranho não pode causar o lar, melhor dizendo, não há, no momento do acontecimento, nenhuma

30 31
fronteira entre as línguas, porque a letra, que é anterior ao sentido, per- A prática do tradutor ultrapassa, de fato, o que ele deseja produzir,
mite essa passagem. ou seja, uma tradução (a primazia dada ao sentido). Aquilo que a ultra-
Avançando na reflexão, lembro que o tema deste simpósio é “Tradução passa é o que a funda. Segundo François Cheng (1982, p. 42): “toda lín-
e Psicanálise”, o que aponta para um interesse de conjugar (“e”) a tradução gua constrói seus nós e procura suas possibilidades de ultrapassamento.
com a Psicanálise. A Psicanálise, por sua vez, não tem uma relação ou faz Neste sentido, a tradução é indispensável. É através de uma outra língua
uma articulação com a tradução, porque para o psicanalista a prática da que experimentamos nossas próprias riquezas e limites, e que, de repente,
tradução é parte constitutiva da transmissão e de sua formação. tocamos no alhures do sentido...”.
Por que formação? A Psicanálise chegou a nós por via da língua Gostaria, então, de perguntar: podemos chamar de “tradução” a tra-
estrangeira. Os textos que lemos são traduções (o Freud que conhece- dução de textos de Psicanálise? A articulação entre tradução e formação
mos todos esses anos foi traduzido primeiro para o inglês e depois para está em consonância com a ética da Psicanálise? Se, em Psicanálise, o
o português; e sobre Lacan, o que temos são traduções de textos autori- modo como se enuncia algo faz parte do que é transmitido, temos que o
zados – revistos, recortados, nomeados – por Jacques-Alain Miller; esta que se transmite é menos da ordem do enunciado do que do estilo de sua
é a parte ruim). enunciação.
Por outro lado, de certa forma, temos condições de ir ao assim cha- Se deslocarmos essa afirmação para a tradução, o que a constitui é
mado original de seus textos. Em quase toda Escola de Psicanálise há menos da ordem da língua do que propriamente da ordem do que existe
sempre alguém que está às voltas com a tradução – para estudos – dos de escrito na linguagem. O que há de escrito na linguagem constitui a
textos fundamentais de Psicanálise. O psicanalista tem acesso a várias língua no espaço de sua estrangeiridade em relação a si mesma. Querer,
versões/traduções das obras de Freud e Lacan. Isso indica que sabemos então, tomar a língua como sentido esbarra com um real do chiste, da
como a tradução é importante na formação, tanto para o psicanalista que homofonia, o que nos mostra que não existem na língua dois ditos seme-
traduz, como para aquele que consulta várias versões. Penso que constitui lhantes. Se inserimos o desejo no campo da língua, veremos que a língua
exceção aquele que se debruça sobre uma única versão. Dentro dessas é o lugar das equivocações. Nesse sentido, nenhuma língua dá conta de
operações de consultar várias versões e de traduzir já está em andamento, outra língua.
simultaneamente, a formação desse psicanalista. Todo esse processo faz A tradução libera dentro de cada texto as forças subversivas de sua
parte da formação do psicanalista, porque essa passagem “entre línguas”, própria estrangeiridade. O que está latente na obra, só o estrangeiro pode
seja apenas dentro do que se chama de materna ou entre a materna e a descobrir; somente a passagem para uma língua estrangeira aperfeiçoa o
língua estrangeira, é o que constitui o dia a dia do psicanalista em sua desenvolvimento da obra. Essa postura evidencia, na língua, sua posição
clínica e dentro de uma escola; a formação, portanto, além de ter essa de rede (precária) de representação do real que não para de não se escrever.
“parte material” do entre-línguas, também inclui a Ética, e vamos ver Freud primeiro chamou a interpretação do sonho de tradução
mais adiante por que. (Übersetzung), para depois explicitar que não se tratava de uma trans-
A tradução em Psicanálise, segundo Allouch (1995) não é uma prática posição de sentido de uma língua para outra, deixando, em seu texto de
teorizável. Enquanto operação de produção de um escrito, regrada pelo 1913, “O interesse científico da Psicanálise” ([1913] 1996), coabitar os dois
sentido a partir de um outro escrito – a tradução interessa à Psicanálise termos, que são, precisamente, deciframento e tradução:
por ser uma passagem que nos confronta com o ponto de fracasso do
[...] é ainda mais apropriado comparar o sonho a um sistema de escrita
simbólico, pois o sentido rola como um tonel, sempre revelando o limite [Schriftsystem] do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação de
da própria linguagem. Nada nos impede, portanto, que a nomeemos de um sonho é análoga, do começo ao fim, ao deciframento de uma escrita
tradução, desde que tenhamos em conta aquilo que a ultrapassa. figurativa da Antiguidade, como os hieróglifos egípcios. (trad. modificada,
p. 180)

32 33
Ao aproximar “deciframento” e “tradução”, Freud traz uma diferença que pretende respeitar até mesmo a ordem das palavras nas frases em ale-
fundamental, que considero importante para a reflexão sobre tradução e mão. O que ultrapassa a tradução é que não é com o sentido que se detém
transmissão. Ele nos mostra que, quando se trata de língua, precisamos a fuga do sentido. No trabalho de tradução, é preciso que a letra passe,
também ordená-la por uma referência da linguagem a si mesma, à sua pró- para que haja transmissão. Não se deve, portanto, colocar entre parênte-
pria estrutura como tal. O sonho, tal como Freud o tratou no trecho acima, ses a operação de passagem e isolar o trabalho de tradução.
distingue-se de qualquer forma de pura expressividade, por se sustentar E aqui, penso que entra a questão da Ética. A questão da Ética coloca-
numa estrutura que é idêntica à estrutura da linguagem. O que Freud faz -se da seguinte maneira: a partir da Psicanálise podemos afirmar que: a) a
com o sonho é não tomar a imagem como representante do objeto, mas língua materna não é a da familiaridade e nem, especificamente, a língua
como a escrita de seu nome. O que deve prevalecer é o que, na imagem, se estrangeira traz a alteridade, o estranho; b) faz parte da Ética da Psicanálise
fizer ouvir de textual. Seríamos levados ao erro, diz Freud, se tentássemos não procurar diretamente o sentido, mas ouvir a maneira como se diz (na
ler [lesen] esses signos em seu valor de imagem [Bilderwert] ao invés de clínica não se pode tomar o conteúdo do que o paciente diz como a revela-
lê-los em sua relação com os próprios signos [Zeichenbeziehung]. ção do sentido. Há que se considerar a maneira como ele diz o que diz). É
Se pensarmos, então, na ancoragem da tradução do texto de por isso que faz parte da Ética da Psicanálise, não procurar o sentido (nem
Psicanálise em outro lugar, além do sentido, podemos perguntar: a leitura na clínica, nem nos textos a traduzir ou já traduzidos). Então, na tradução
deve ser literal? A tradução que se quer ‘literal’ designa apenas a procura de textos de Psicanálise, essa ética também deve operar porque ela cons-
de seus pontos de ancoragem em outras partes, além do simples trans- titui o analista. Trata-se de uma posição daquele que traduz (da mesma
porte do sentido a que ela se consagra. forma que a posição de um psicanalista revela a clínica que ele conduz). A
Por outro lado, todos nós sabemos reconhecer que uma imensa parte consequência disso para o psicanalista que traduz ou para aquele que lê,
da obra freudiana faz referência aos efeitos de linguagem, porque Freud ou para aquele que escuta é então, por exemplo, não escolher traduzir/ler/
toma a língua diretamente como objeto, como material indispensável à ouvir só o conteúdo do que disse o paciente, mas incluir a maneira como
Psicanálise em seus aspectos clínicos, na análise dos sonhos, de casos, do ele o disse: materialmente falando, se ele coloca o sujeito gramatical no
chiste, passando pelas vias das associações, cadeias, pontos nodais e pontes final da frase ou no começo, se ele usa os tempos verbais da voz passiva
verbais, o que revela a maneira de operação da linguagem inconsciente. para falar das pulsões etc. Isso é Ética. É uma posição.
Traduzir Freud literalmente impede a versão literal de ser ao mesmo Tratar o estilo de Freud (a maneira como ele o diz) como irrelevante
tempo legível, porque Freud não passa seu sentido ao leitor apenas atra- é querer separar o que ele transmite do modo como o transmite. É pres-
vés de palavras e sentenças, mas também através de efeitos de linguagem supor que podemos atingir o verdadeiro conteúdo da teoria freudiana
na sua língua. Os efeitos da literalidade da língua de Freud não serão os sem necessidade de levar em conta a linguagem com que o conteúdo se
mesmos na tradução, porque a letra não se traduz, ela se transmite. transmite. Segundo Veras (2009, p. 143), “é o estilo que exige do tradutor
O problema em traduzir literalmente é nitidamente marcado por que encene em seu texto, com tato e escuta afinada, uma nova maneira de
Freud a propósito do chiste: no “chiste de pensamento”, a formulação ver- fazer-se um tempo para transmitir”. Encerro com uma citação de Freud,
bal é acessória, e o chiste pode ser traduzido sem perda do efeito cômico. de Psicopatologia da vida cotidiana ([1901] 1987, vol. VI, p. 215):
Mas o “chiste de palavras” é inseparável da expressão alemã: mesmo
Em geral se acredita que se é livre para escolher as palavras com que se
encontrando-se um equivalente na língua da tradução, as vias de conexão revestem os pensamentos ou as imagens com que eles são disfarçados. Uma
serão necessariamente diferentes. observação mais atenta mostra que outras considerações determinam essa
A tradução literal é muito mais do que traduzir palavra por palavra. escolha e que, por trás da forma de expressão do pensamento, vislumbra-se
Escolher traduzir palavra por palavra pode levar, de maneira geral, a uma um sentido mais profundo, muitas vezes não deliberado.
literalidade premeditada, compreendida em sua acepção mais estreita,

34 35
referências bibliográficas Sobre a tradução de Unbehagen –
ALLOUCH, Jean. Letra a letra. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: o Desassossegado Mal-estar
Companhia de Freud, 1995.
BREUER, Joseph; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Edição Standard Christian Ingo Lenz Dunker
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Elizabeth Robin Zenkner Brose
Imago Editora, v. II, 1891/1996.
CHENG, François. “Faute de mieux”. In: Confessions de traducteurs, L’Âne, n. 4,
Paris, 1982.
FONTAINE, Albert. “Pour une lecture de Louis Wolfson”. In: Littoral, n. 23-24,
1987, pp.73-101.
FREUD, Sigmund. Sobre a Concepção das Afasias – Um estudo Crítico. Trad.
Emiliano de Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1891/2013.
______. Psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das obras [CHRISTIAN] Em meu livro Estrutura e Constituição da Clínica
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol.
Psicanalítica, proponho comentar a tradução de Unbehagen por Mal-estar,
VI, 1901/1987.
enfatizando duas ressonâncias presentes na palavra, ou seja, a negação
______. “O interesse científico da Psicanálise”. Edição Standard Brasileira das
(Un) tanto do verbo behagen (agradar) quanto do substantivo que lhe dá
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora,
vol. XIII, 1913/1996, pp. 166-192. origem Hag (clareira). “Unbehagen in der Kultur” deveria ser entendido
como “Mal-Estar na Civilização” desde que em Mal-Estar pudéssemos ler
______. (1927). “Fetichismo”. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XXI, 1987, pp. a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação do
155-160. “bem estar”. Para tanto, sugeri que o mal-estar é esta ausência de lugar,
LACAN, Jacques. (1959). Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ou esta suspensão da possibilidade de uma escansão no ser, a impossibi-
Editor, 1998, pp. 537-590. lidade de “uma clareira” no caminhar pela floresta da vida. Vários leitores
MELMAN, Charles. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e levantaram considerações bastante razoáveis acerca desta tradução-inter-
país. CALLIGARIS, C. (org.). Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de pretativa do termo alemão que, em meu entender, sintetiza o que Freud
língua e país. Trad. Rosane Pereira. São Paulo: Editora Escuta, 1992. entende por pathos e deveria ser pensado senão como um conceito, como
MILLER, Jacques-Alain. Matemas I. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar uma noção psicanalítica. Entre os que se manifestaram de maneira mais
Editor, 1996. contundente está minha amiga, germanista e psicanalista, Elizabeth Brose.
VERAS, Maria Viviane do Amaral. “A tradução e sua relação com o inconsciente: Tendo em vista a contenda filológica que daí se originou apresentamos
transmitir a Psicanálise”. In: Tradução em Revista 7, 2009. tanto as objeções críticas que ela endereçou quanto alguns argumentos
que levantei para defender essa proposta de leitura e tradução.
Aqui está o trecho completo:
Se o psicoterapêutico configura seu objeto em torno da noção de sofrimento
e o tratamento clínico em termos de patologias, que termo estaria reservado
para a dimensão da cura? Freud valeu-se de uma expressão muito feliz para
designar este tipo de sofrimento que não se pode nomear perfeitamente
e cuja natureza é indissociável da relação com o outro, trata-se do mal-es-
tar (Unbehagen). Se a noção de sofrimento sugere passividade e a noção de

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patologia exprime certa atividade sobre a passividade (conforme o radical 1. περ: procurando associações para o de, em torno de, em volta de,
grego pathos), a idéia de mal-estar nos remete à noção de lugar ou de posi- ao redor de.
ção. Estar, de onde deriva o cognato estância, não implica agir, nem sofrer
uma ação, simplesmente estar. Talvez a palavra Unbehagen derive do radical 2. circun: em torno de, em volta de; por – com ideia de movimento;
Hag, bosque ou mata, ou seja, um lugar propício para praticar a arte de estar. ao pé de, perto de, nas imediações de.
Além disso, a noção de cura associa-se com a de mal-estar na medida em 3. abhi: abi-, sentido de distanciamento, a partir de, depois de.
que esta remete à noções como angústia, desespero ou desamparo (ROCHA,
2000 p. 158). Encontramos aqui a longa reflexão filosófica sobre estes con- 4. ἀbhi: abi-, em volta, de ambos os lados; em torno de; em meio a,
ceitos. Dos filósofos helênicos que meditaram sobre o desamparo (SÊNECA, entre; a respeito de; em consequência de; através de; perto de; cerca de.
2002), às intuições de Kierkegaard sobre o desespero (2002), até a incursão
de Heidegger sobre a cura (Sorge) como angústia no ser-para-morte (1993), Ou seja, Un-be-hagen poderia apresentar a seguinte leitura: “não
há um insistente reconhecimento desta dimensão do mal-estar como ine- estar presente ou próximo da clareira” e, talvez, essa observação nos ajude
rente às relações entre existência e verdade. Pode-se dizer que para esta a elaborar mais ainda a sua proposta de tradução, ou melhor, a seu ques-
tradição a própria filosofia deve ser encarada como uma prática de cura tionamento em relação às palavras afins. Ademais uma das fontes funda-
(DUNKER, 2012 p. 34).
mentais para entendermos a potencialidade do termo usado por Freud
[ELIZABETH] Parodiando bem-humoradamente o escritor angolano seria Goethe, antes de Heidegger. Sob a influência da escrita do autor de
Pepetela, em Lueji – o nascimento de um império, “agora sou eu que falo” Fausto e Werther, foi ao ler o seu Die Natur que o jovem austríaco, Freud,
por mim, eu, Elizabeth Brose, após acompanhar algumas conferências decidiu estudar medicina. E seguirá citando vários trechos da obra de
do meu amigo e premiado escritor, Christian Dunker, observei que, se Goethe “de cor e salteado” ou Ausfuerlich und Woertlich como consta em
­tomamos Un como prefixo negativo, behagen como verbo (agradar), Hag nota de rodapé de Die Traumdeutung (FREUD, 1900, p. 99). A inspiração
hipoteticamente como clareira, (decompondo a origem do verbo behagen, goethiana atravessa Das Unbehagen in der Kultur e Die Traumdeutung
restaria ainda o en: sufixo do infinitivo. Poderíamos considerar também com destaque para a cena de Mephisto (Fausto, I Parte, Cena 3), citada
que o be é uma partícula direta e literalmente relacionada a bei. Sendo em ambas as obras, onde se vê Mefistófeles reclamando dos germens que
assim, a relação bei, uma preposição que indica proximidade ou presença brotam aos milhares na vida.
de pessoas ou coisas, como nos explica o pioneiro dicionário diacrônico (…) tudo o que vem a ser/ É digno só de perecer;//(…)// Por isso, tudo a que
iniciado no século XIX por Jackob e Wilhelm Grimm: chamais/ Pecado, destruição, o mal,/ Meu elemento é, integral. (...) “O pró-
prio Diabo não designa o que é sagrado, o bom, como seu adversário, mas
(...) significa proximidade e presença na área e no entorno de pessoas ou coi- a energia da natureza em procriar, em multiplicar a vida — Eros, portanto”.2
sas, mas também encontra uso em outras situações. Nisto baseia-se a cone-
xão entre a espacialidade em bei e as abstrações, περί (peri) e um (circun), Como bem lembra Aguiar e Silva (1996), hoje é senso comum rela-
que se desdobraram nos sufixos cognatos abhi (abi) e ἀμφί (amphi, anfi).1
cionar uma tristeza específica ao luar, mas foi Goethe quem primeira-
Sendo assim as noções de lugar e posição intrínsecas na palavra mente estabeleceu essa proximidade entre a noite iluminada pelo saté-
Unbehagen nos conduziriam a resgatar os prefixos peri-, circun-, abi- e lite da Terra e esse sentimento de “tristeza das coisas em si mesmas”. O
anfi-, procurando associações para esse encadeamento semântico que a Leitmotiv, que se encaminha pela obra de Goethe, é o sentimento de
palavra apresenta:
2 Denn alles, was entsteht,
Ist wert, daß es zu Grunde geht.

1 “bedeutet nähe und Anwesenheit im Bereich und umkreis von Personen oder Sachen, So ist denn alles, was Ihr Sünde,
was dann auf andere zustände anwendung findet; hierin beruht der Zusammenhang Zerstörung, kurz das Böse nennt,
des räumlichen bei mit den Abstraktionen περe und um, die sich in den urverwandten Mein eigentliches Element.
Partikeln abhi und ἀund entfalten.[sic]” [Primeira Parte, cena 3, trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Nacional, s.d.]

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Unbehagen. Senão pela ficção de Fausto, pela realidade que levou o escri- perfeição na série de termos que definem o destino de alguém: infortúnio,
tor a inscrever nessa tragédia ficcional a tragédia real de sua vida: defen- infelicidade ou descontentamento.
der sem sucesso uma mulher condenada à morte pela não sobrevivência Aqui Elizabeth intervém novamente observando que a investigação
do seu recém-nascido. O poeta e advogado acreditava que a condenada feita pelos grandes impulsionadores da filologia3 nos conduz às citações
era inocente. Esse mal-estar do escritor diante do conflito dele com as da palavra Behagen tal como foram compiladas pelos irmãos Grimm,
decisões da sociedade da época causam sua produção literária. Pensando quase contemporâneos de Johan Wolfgang von Goethe4. No dicionário
então a palavra Unbehagen desde a obra de Goethe, abrimos a possibili- dos Grimm as acepções de Behagen são: “delectatio, suavitas, moderatio,
dade de outras associações, por exemplo, as duas ideias conectadas pelo zufriedenheit, freude, frohes gefühl, stille, innige kraft” (op. cit., 1971). E elas
crítico Harold Bloom: angústia e influência. aparecem nos poemas:
[CHRISTIAN REPLICA] Concordo com Elizabeth que o mal-estar deva
castelo da montanha
compreender a noção de angústia e de influência, principalmente de
Alegre bem-estar insinuou-se
influência a distância. Contudo, o seu recurso a Goethe aplica à noção de
para além do solitário sossego.
Unbehagen certa dimensão moral. Esse é um dos problemas ­enfrentados Assim como em velhos tempos
pelos tradutores: a dificuldade em definir o sentido de agradabilidade muito cerimoniosos novamente.
envolvido em behagen. A tradução para o inglês discutida amplamente
tischlied
por Freud e James Strachey sugeria discomfort (desconforto). O próprio
título originalmente pensado por Freud, presente na primeira versão do Apodera-se de mim, não sei como,
Um bem-estar celestial
manuscrito de 1929, era “Unglück in der Kultur”, ou seja, “Infelicidade Algo quer muito me elevar,
(ou infortúnio) na Cultura”. No contexto da tradução ao inglês, Freud Erguer-me às estrelas?5
sugere “Man’s discomfort in civilization”, ao que Joan Riviére corrige
para “Civilization and its discontents”. Contudo, a forma final do texto Tendo a responder para Elizabeth que as acepções de Behagen no
em alemão aparece como “Unbehagen in der Kultur”. Talvez o problema uso folclórico e popular nos remetem ou ao sentido mais transcendental
da tradução tenha levado Freud a modificar o título, mas, se isso estava de deleite, aparentado ao sublime kantiano e à beatitude, ou à sugestão de
em jogo, ele optou por manter a solução menos simples. Quiçá a ideia felicidade, contentamento e pacificação. Ocorre que a negação da beati-
mesma de mal-estar se aplique à disparidade entre dois mundos ou entre tude nos levaria ao laico, mundano ou ordinário e a negação da felicidade
duas línguas, ou seja, a incomensurabilidade na qual experimentamos à infelicidade, atormentamento ou infortúnio, como por exemplo, na
um déficit de nomeação. O sentimento que experimentamos quando algo expressão “miséria neurótica”. No entanto, nenhuma destas duas séries,
está mal-nomeado, mal-dito ou mal-traduzido.
Tanto o verbo behagen – agradar, convir – quanto o substantivo
homófono Behagen – agrado, prazer, satisfação, deleite – remetem a 3 Filologia é o estudo rigoroso do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas.
Em março de 1838, Jacob e Wilhelm Grimm começam a investigar para o projeto de um
algum tipo de prazer. Disso provém o cognato behaglich (angenehm: agra- novo dicionário de alemão, com ênfase na história dos vocábulos, ou seja, na citação daque-
dável, deleitoso; bequem: confortável, aconchegado, cômodo; behagliches las palavras em obras literárias, documentos escritos. Esse dicionário é uma imensa obra de
gramática histórica, que exigiu o empenho de equipes especializadas ao longo dos séculos.
Gefühl: sensação de bem-estar; behagliches Leben: vida sem preocupa-
4 Goethe morre em Weimar seis anos antes do início desse gigantesco trabalho dos irmãos
ções, vida sossegada, pacata) (Porto Editora, 1986). Advogo que há uma Grimm.
inadequação de base em remeter Unbehagen a uma série definida por sen- 5 Bergschloß. / Da drängte sich frohes Behagen / Hervor aus verödeter Ruh, / Da gings wie/
in alten Tagen / Recht feierlich wieder zu.
sações corporais individualizadas como desconforto, náusea (Übelkeit), Tischlied / Mich ergreift, ich weiß nicht wie, /Himmlisches Behagen./ Will michs etwa gar
embaraço ou dor (Weh). Unbehagen também não pode ser incluído com hinauf/ Zu den Sternen tragen?

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nem a soma de ambas, capta o sentido de “inescapabilidade” e de densi- invisível e, através da palavra simbólica, revela a face oculta das coisas”
dade existencial condensado na ideia freudiana de Unbegahen. (SILVA, 1996).
Ao que ela pertinentemente faz a seguinte observação: o mal-estar Nessas ficções, a evasão se dá via:
que liga escritores e leitores do Romantismo ocorre diante da constatação
das limitações que os circunscrevem, ou seja, da grande cerca viva social. (a) tempo: busca por beleza e harmonia dos grandes homens
Defende então que uma boa metáfora para esse estado de conflito român- do passado. Daí os temas terem se voltado à Idade Medieval e à
­Antiguidade dos gregos e latinos;
tico seria a da tentativa do desatar-se das heras – Hecken, que prendiam a
Bela Adormecida6 em um castelo e que a mantiveram fora do estado de (b) espaço: descrição de paisagens;
vigília por cem anos – que provocam uma tentativa de desvencilhamento (c) personagem: de natureza “exótica”, excêntrica ao universo euro-
pela evasão. peu;
Ao conflito romântico, o teórico português, Aguiar e Silva, dirige (d) fase da vida anterior a do conflito: procura pela infância, que
palavras pesadas: mediocridade, vileza e injustiça. Elas produziriam o teria esse sentido de paraíso perdido.
embate, para que o escritor se evada na literatura em profunda amargura.
Esse conflito entre escritor e sociedade seria, portanto, fulcral no pré-ro- Sendo assim, Unbehagen teria como resultado histórico a fuga
mantismo, e pode ser observado em As Confissões de Rousseau. Nesse para um paraíso, o desejo de um lugar ou um tempo que se perdeu ou
âmbito, Unbehagen é um feixe de tensões exasperadas sentido e expres- nunca existiu. Unbehagen mostraria a falta da existência em um ‘canto no
sado por escritores inconformados com os limites de sua contempora- mundo’ de harmonia ou a existência mítica do “en-canto” daquelas7 que
neidade e de seus destinos frustrados, conduzindo-os a angústia, tédio, entoaram para Odisseu uma linda e hipnótica melodia.
solidão, abandono, o que também foi chamado de mal du siècle. Neste ponto concordo com Elizabeth e mobilizo alguns paralelos
Unbehagen, nesse contexto, aponta para um sentimento que se deve a com o problema da tradução de Unbehagen ao francês. O termo francês
questões ligadas à finitude do mundo, à in-existência de Deus e ao prog- pelo qual se traduziu Unbehagen capta com precisão esta nuance entre o
nóstico de histórias de vida sem vigor. Na falta, Goethe cria personagens moral e o metafísico, entre o estético e o angustiante congregando três
com desejos, qualidades e destinos que a realidade não apresentava. Em séries semânticas diferentes. A expressão “malaise”, surgida no século XII,
Fausto, Gretchen torna-se tema importante e o escritor dedica sua vida indica um embaraço difuso ligado ao sofrimento que não se consegue
inteira para a construção ficcional de uma saída mais digna para a mulher nomear com precisão:
decapitada e que ele não conseguira libertar da decisão do judicial. “A revolução se desencadeou porque as classes inferiores sofriam de uma
Essa evasão – ou fuga – desse sentimento ocorria via drogas ou orgias terrível malaise” (Jaurès).
ou pela literatura, que se transforma em religião e centro da vida desses A malaise aponta para um sentimento associado ao sofrimento (souffrance),
homens escritores. A poesia, para eles, transforma-se na mas capaz de conter certa flutuação de sentido que vai dos problemas de
natureza fisiológica, como a doença, a indisposição, o incômodo e o emba-
(...) única via de conhecimento da realidade profunda do ser, pois o uni- raço até a série metafórica que inclui a miséria moral, a aflição coletiva e a
verso aparece povoado de coisas e de formas que, aparentemente inertes e vulnerabilidade irracional gerada pelo sentimento de que não podemos nos
desprovidas de significado, constituem a presença simbólica de uma rea- defender. A terceira acepção de malaise compreende os estados psicológicos
lidade misteriosa e invisível. O mundo é um gigantesco poema, uma vasta de sofrimento como a angústia, a inquietude, a tristeza e o estar mal (mal
rede de hieróglifos, e o poeta decifra este enigma, penetra na realidade être) (ROBERT, 1995). Característico do emprego da noção de malaise é sua
conotação de pressentimento, de problema não muito bem localizado e que
6 Outra obra recolhida pelos românticos tardios em busca de um mundo de maior ampli-
tude. A oralidade do povo poderia conter algo da falta de sabedoria existente nos seus 7 Ela mora no mar / Ela brinca na areia / No balanço das ondas / A paz, ela semeia / Ela mora
semelhantes naquela região central da Alemanha da época. no mar / Ela brinca na areia / No balanço das ondas / A paz, ela semeia (Marisa Monte).

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anuncia um mau destino. A série dos estados morais de aflição se alinha ao espaço que a noção de mal-estar aparece pela primeira vez em 1895
com a noção de miséria moral ou psicológica em inglês (miserable), bem no artigo “Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome
como com a noção freudiana de desamparo (Hilflosichkeit).
particular intitulada neurose de angústia”:
Percebe-se assim que traduzir Unbehagen quer pela série dos esta-
dos corporais (desconforto), quer pela série das vicissitudes do destino Refiro-me neste caso a uma variedade de vertigem, um estado de mal-estar
(Unbehagen) específico, acompanhado das sensações de que o solo oscila,
(infortúnio), ou ainda pelas variedades morais do sofrimento (descon-
as pernas faltam, é impossível ficar de pé, as pernas ficam pesadas como
tentamento) nos leva a uma parcialidade que impõe demasiadas per- chumbo e tremem, os joelhos dobram. Essa vertigem nunca culmina em
das semânticas ao conceito. Se quiséssemos condensar estas três séries queda. Em contrapartida afirmarei que um acesso de vertigem deste tipo
na ideia de mal-estar, seria preciso que esta fosse enriquecida por um pode também ser substituído por um desmaio profundo” (FREUD, 1988b).
comentário, de modo a evitar que sua conotação se torne mero sucedâneo
Vê-se assim que Freud qualifica este mal-estar específico, como um
de um “mal-estar estomacal”, ou de um “mal-estar entre amigos”, ou de um
sintoma, um sintoma intimamente ligado à experiência do mundo como
“estar de mal com a vida”.
vertigem ou desmaio. Isso nos permite renomear as duas séries semân-
O problema do tipo de satisfação-conforto-alegria envolvido no
ticas que estamos extraindo das traduções de Unbehagen: há de um lado
bem-estar, que nos autorizaria a deduzir suas propriedades antônimas
o mal-estar corporal como sintoma e de outro o mal-estar moral como
para o mal-estar, se complica de modo insolúvel se não nos atemos ao fato
experiência coletiva ou individual de sofrimento. Contudo, toda a força
de que o objeto abordado por Freud no texto não se refere às vicissitudes
e originalidade da noção de mal-estar reside no fato de que ela engloba,
do prazer corporal ou da vocação individual ou coletiva para a felicidade.
mas não se reduz, quer ao sofrimento quer ao sintoma.
No texto freudiano, o que está em causa, de maneira evidente e direta,
Reconsideremos agora o problema da tradução voltando ao termo
é o conceito de “mundo”. Por exemplo, o sentimento oceânico, noção inicialmente proposto por Freud em inglês: discomfort. Desconforto evoca
proposta por Romain Rolland e criticada por Freud logo no começo do justamente esta experiência de estar no espaço, de estar contido em um
ensaio, é um sentimento de mundo, não apenas um sentimento de si, uma espaço, abrigado e protegido. Mas algo está faltando aqui. E é justamente
presença do outro ou uma mera emoção diante da tarefa da vida. o peso existencial, a força e consequência presente na ideia de mundo.
Se entendi bem meu amigo, ele quer dizer a mesma coisa que um original Desconforto ou conforto remete ao corpo imediatamente protegido, mas
e muito excêntrico literato brinda como consolo a seu herói frente à morte esquece que mesmo a cabana confortável e aquecida no meio da floresta
livremente escolhida: “Deste mundo não podemos cair” [Außer diser Welt ainda assim pertence ao mundo em sua vastidão insondável. Ora, se há
können wir nicht fallen]. Ou seja, um sentimento de ligação indissolúvel, de
alguma mensagem teórica em Mal-Estar na Civilização é a de que tal
copertencimento [Zusammengehörigkeit] com o todo do mundo exterior
[Außenwelt]” (FREUD, 1988). “abrigo” seja ele a neurose, a narcose, o retirar-se do mundo como o ana-
coreta, o estetizar a vida, o trabalhar para conquistar a natureza, e todas
Ora, esta ideia de que estamos juntos (zusammen) e que pertencemos as outras soluções que se pode procurar para uma vida em conforto, são
a um lugar (Gehörigkeit) e que este lugar comporta exterioridade (Außer) precárias, instáveis e contingentes. O Mal-estar é inescapável e incurável,
remete, em conjunto, à noção de mundo (Welt) como totalidade. O pro- sendo sua figura fundamental a angústia e o seu correlato maior o senti-
blema para traduzir Unbehagen é, portanto, encontrar uma palavra que mento de culpa inconsciente.
responda tanto à série do desprazer-insatisfação, quanto à série do infor- Foi para dar conta desta assonância do conceito de mal-estar com a
túnio-infelicidade de tal forma que ela contenha a experiência de mundo noção de mundo que me ocorreu valorizar o radical “Hag”, presente no
como espaço, lugar ou posição. O Mal-estar não é apenas uma sensação interior de Unbehagen. Ele nos remete exatamente a um lugar, ou seja, um
desagradável ou destino circunstancial, mas o sentimento existencial de bosque ou a uma clareira. Elizabeth Brose me adverte que Hag, no dicio-
perda de lugar, a experiência real de estar fora de lugar. E é por esta alusão nário Duden, nos remete ainda à ideia de Hecke (hera); Einfriedung aus

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Gebüsch; umfriedeter Wald (cercamento por arbustos, floresta cercada), (3) Hag, m. und n. sepes; praedium, urbs; dumetum. I. Abstammung und
cujos sinônimos são Gehölz (floresta, no sentido de vegetação densa e form. hag gehört (ebenso wie ags. hig, heg heu als geschlagenes, gemähtes)
zu der deutschen wurzel hag schlagen, stoszen, stechen, welche ein goth.
baixa) e Zaun (cerca).
zwar nicht nachgewiesenes, aber mit sicherheit zu erschlieszendes haggvan
Nós nos lembramos do livro “Die Kinder- und Hausmärchen”, dos bildete (…)
mesmos irmãos amantes da história das palavras e das histórias das pes-
soas, em que o vocábulo Hecke aparece fortemente no conhecido conto Complemento o proposto por Elizabeth, neste ponto, lembrando que
da personagem-título Bela Adormecida, em que o Dornröschenhecke os correlatos latinos remetem invariavelmente a noções espaciais: sepes
remetia ao aprisionamento da menina em um castelo fechado por arbus- (sebe que protege túmulos), praedium (propriedade, herdade, terras), urbs
tos espinhosos, cujas flores chamamos de rosas (Dorn: espinho; Röschen: (cidade) e dumentum (lugar coberto por sarças, bosque, floresta, em sen-
rosinha; Hecke: cerca viva). tido figurado: espinhos, sutilezas, dificuldades) (FARIA, 1967). Todos os
cognatos apontam para um tipo de lugar, no mais das vezes delimitado,
E esse sono se espalhou por todo o castelo (...). Em volta do castelo, con- fechado ou contendo um aberto em seu interior. Por isso concordo perfei-
tudo, começou a crescer uma hera de espinhos, que a cada ano ficava mais
alta. Finalmente ela cobriu todo o castelo e, além dele, aumentou tanto que tamente com Brose quando ela enfatiza a aproximação entre Hag e Gehege,
nada mais dele era visível, nem mesmo a bandeira no telhado. (...) ou seja, área fechada por cerca, como em um recinto onde animais são
Corria pelo país, porém, a lenda da linda e adormecida Rosinha de Espinhos, mantidos. Ou seja, a negação indeterminada de Hag pode sugerir o gra-
assim era chamada a filha do Rei. Por isso de tempos em tempos, filhos de diente que vai do aconchego, do estar envolvido por algo agradavelmente,
Reis chegavam e queriam atravessar a hera e entrar no castelo. Mas para eles como em um jardim (cercado por sebes) ou uma clareira (cercada pela
não era possível, pois os espinhos, como se tivessem mãos, seguravam-nos mata fechada), até algo desagradável asfixiante, aprisionante: o sentimento
firmemente, e os jovens permaneciam ali pendurados. Sem conseguir se
de estar fechado. Estamos em Hag diante do mesmo tipo de inversão ao
libertar novamente, morriam de uma morte miserável.”8
contrário que Freud problematizou na análise da expressão “Unheimliche”
Considero que esta oposição entre o fechado e o aberto é funda- (estranho, familiar), pois os sentidos do termo nos permitem pensar tanto
mental para o uso e sentido de Unbegahen. Lembro a Elizabeth que no em algo fechado (como uma mata fechada) quanto em algo que ao ser
Dicionário Etimológico Köbler, confirmam-se as ideias de: ­cercado define uma abertura em seu interior (como uma clareira).
Combinando a ideia de Hag com sua expressão na forma de uma
(1) Hag (Hecke) cerca, vedação de arbustos (Buschwerk), moita, silvado, pequena
mata, pequeno bosque (eingzäut) tapada, cerrada (PORTO EDITORA, p. 410).
experiência indeterminada do espaço, chegamos assim a algo como “sem
(Un) cercas, moitas ou bosques (Hag)”, ou seja, sem lugar para estar, sem
(2) Hag M. Hag Gehege, Grundstück, Wall, eingefriedetes Stock,
Um-zaunung Wall, Damm Schanze (*haga, *hagan, *hagl) fassen, lugar para descanso, sem lugar para conforto, fora de lugar para ser. O
Flechtwerk termo se comporia admiravelmente também com a série do destino do
ser, na qual, se trataria de “sem destino fechado e definido”, ou “aberto ao
passado imprevisível”, de acordo com a notável interpretação do mal-estar
8 Und dieser Schlaf verbreite sich über das ganze Schloss (…) Rings um das Schloss aber
begann eine Dornenhecke zu wachsen, die jedes Jahr höher ward, und endlich das ganze
a partir da poética de Fernando Pessoa, proposta por Nelson da Silva Jr..
Schloss umzog und darüber hinauswuchs, dass gar nichts davon zu sehen war, selbst nicht No conjunto isso implicaria ler o verbo behagen em uma etimologia
die Fahne auf den Dach. (…) Es ging aber die Sage in dem Land von dem schönen schla- retórica que nos remete a “cercamento”, “envolvido por mato” ou “con-
fenden Dornröschen, denn so ward die Königstochter genannt, also dass von Zeit zu Zeit
Königssöhne kamen und durch die Hecke in das Schloss dringen wollten. Es war ihnen tornado por um bosque” implicando indeterminadamente “abertura
aber nicht möglich, denn die Dornen, als hätten sie Hände, hielten fest zusammen, und die interior” e “fechamento exterior”. Ambas as acepções se combinariam ao
Jünglinge blieben darin hängen, konnten sich nicht wieder losmachen und starben eines
jämmerlichen Todes. Coleção de contos oriundos da edição original, com 100 ilustrações modo de uma garrafa de Klein, na qual exterioridade e interioridade se
em aquarela de Ruth Koser-Michaëls: “Märchen der Bruder Grimm”, Droemer Knaur comunicam. A ambiguidade aparece também no inglês “closer” (fechado,
Verlag München, Ausgabe um 1980, p. 360.

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próximo, asfixiante) e no “enclosure” (encilhamento, cercamento das pro- No verbo estar podemos verificar a transitoriedade necessária para
priedades rurais na aurora do capitalismo). exprimir corretamente o mútuo pertencimento dos homens ao mundo,
Foi pensando nisso que recorri ao uso que Heidegger faz da expe- eles estão no mundo. É certo que os “humanos somos no mundo”, mas
riência do andar na floresta, e do encontro do ser, em uma estrutura de há algo de peculiar na noção de estar, algo que nos habilita, por exem-
clareira, ou seja, um lugar cercado, envolvido, mas onde há luz (Lichtung) plo, a perguntar “como vai você?”, no sentido de “como você está?”. Há um
e onde podemos fazer a experiência de estar. Para o autor de Ser e Tempo abismo entre responder com “Estou bem ou estou mal” e “Sou bem ou sou
a Possibilidade da Clareira se diz “Möglichkeit des Behagens”. mal”. Aqui não se trata apenas de uma referência ao prosseguir no cami-
nho, ou seja, a inflexão temporal que nos faz responder pela posição na
Uma clareira na floresta é o que é não em virtude do claro e do luminoso
que nela podem brilhar durante o dia. A clareira também subsiste na noite. vida, como um horizonte formado por antes, agora e depois. Trata-se de
Clareira diz: nesse lugar, a floresta é transitável.9 estar, de pertencer [Gehörigkeit], de deter-se, de “estar no mundo”.
Ou seja, o mal-estar (Unbehagen) remete justamente à ausência deste
Não posso evitar dizer que esta aproximação me foi sugerida também pertencimento, a esta suspensão no espaço, a esta queda (Fall) impossí-
pelo estudo dos povos ameríndios brasileiros do alto Xingu, ­estudados vel fora do mundo. À impossibilidade desta clareira na qual se poderia
pelo antropólogo Viveiros de Castro (2003), e cuja experiência crucial estar. Ora, o mal-estar está tanto em uma vida feita de cercamentos (nos-
de subjetivação revela-se em estrutura de “encontro na mata”. Encontro, sas construções culturais, leis e formas sociais), quanto na experiência do
no qual não sabemos mais quem é o Outro, mas também e, sobretudo, aberto indeterminado, como no deserto (a pulsão de morte)... e ainda em
onde temos nossa própria identidade questionada até o limite do des-ser. nossas tentativas de estar com o outro fazendo uma unidade delimitada
Encontraríamos aqui uma ressonância entre a noção lacaniana de des-ser por uma fronteira, qual uma vesícula unicelular (pulsão de vida).
e a ideia freudiana de mal-estar. Esse sentimento de falta de pertencimento no contexto literário da
Além disso, ao propor a tradução de Mal-Estar (Unbehagen) por época nos conduziu à influência de Freud para a palavra Unbehagen.
“impossibilidade de clareira”, pensava nas conversas que tive com o artista Observamos que o escritor Goethe, que tanto influenciou o pai da psi-
plástico Sergio Fingermann sobre o sentido da arte, na qual ele apresen- canálise, emprestou à Modernidade algo, aquilo que Fernando Pessoa
tava a ideia de que a arte corresponde a uma espécie de “acostamento” nomeia de desassossego, o conjunto de seus escritos, de autoria parcial do
na vida, uma suspensão, um hiato a partir do qual a estrada pode ser heterônimo ou também chamado de semi-heterônimo Bernardo Soares.
questionada quanto ao seu valor cognitivo, ético e estético. Unbehagen E desassossego pareceu ser uma tradução plausível a ser verificada.
torna-se assim também a impossibilidade e a possibilidade da arte. A questão que o Christian propõe, em síntese, é traduzir Unbehagen
Neste ponto há algo inovador que se introduz desde o português incluindo as séries:
como uma contribuição que poderia enriquecer o conceito freudiano. O
alemão, assim como o inglês, só possui um verbo para designar o verbo 1. Dos estados corporais (desconforto),
ser, ou seja, o sein. Mas quando traduzimos o verbo sein (ou o verbo to be) 2. das vicissitudes do destino (infortúnio),
ao português encontramos tanto o ser quanto o estar. Ricardo Goldenberg 3. e ainda as variedades morais do sofrimento (descontentamento).
me lembra que “Wo Es war, soll Ich werden”, pode ser traduzido tanto por
Observemos que desassossego está analogamente relacionada à
“Onde Isso era o Eu deve advir” quanto por “Onde Isso estava, o Eu deve
mutabilidade (efemeridade), deslocamento (movimento), vulnerabili-
vir a ser”.
dade (risco, insegurança diante de uma adversidade), excitabilidade física
(estar faminto), sofrimento (aflição, desgosto, desprazer), medo (pânico,
9 Disponível em: <http://hyperlexikon.hyperlogos.info/modules/wordbook/entry.php?en-
tryID=1003>. Acesso em: 12 jun. 2015. Martin Heidegger – HYPERLEXIKON hyperlexikon.
terror). Portanto, apresenta em comum com mal-estar as ideias de esta-
hyperlogos.info. dos corporais, sofrimento e infortúnio ou adversidades. E ainda contém

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a ideia de deslocamento, remetendo ao movimento de uma posição traz alívio e prazer. Daí, a associação dele – angenehm, bequem e behagli-
a outra, de transferência, tirar de um lugar para outro, portanto assim ches Gefühl e Leben – sugerirem estados de uma vida tranquila, saciada
como mal-estar apresenta alguma referência de lugar – mais de uma até: e livre de conflitos. Portanto, se Unbehagen apresenta um incômodo
o lugar da origem do movimento para o lugar de chegada do movimento, diante dos limites da existência, a evasão tornaria possível adentrar nesse
embora o enfoque, contudo, esteja no trânsito, na trajetória. E a sensação suposto paraíso, fazê-lo existir mesmo que na fragilidade, um exemplo é
de v­ ertigem é justamente a sensação de deslocamento, o ponto central da a produção ficcional.
sensação é justamente não estar nem no ponto de saída nem no ponto de Como vimos até aqui, a solução francesa malaise contém as acepções
chegada, mas na queda. da variação que vai do físico (indisposição), passa pelo descolamento
Sabemos que dificilmente alguma palavra em outra língua conterá conotativo de sentimentos de falta de defesa (aflição coletiva) e chega aos
todos os semas da obra de Freud, mas vale observar o quanto a língua estados psicológicos da inquietude. Nesse sentido, acomoda-se bem com
portuguesa pode enriquecer a amplitude de Unbehagen. Observemos as noções de desamparo e miserabilidade moral e psicológica. Em por-
como Álvaro de Campos nos explica o mal-estar: tuguês, no entanto, as diferenças semânticas se fazem valer. Unbehagen,
portanto, além de conter aspectos de um mundo experimentado pela sen-
(...) este mal-estar...
(...) é este estar entre, sação espacial da vertigem ou da queda de consciência, é também uma
Este quase, palavra que traz marcas de um mundo em que o abrigo, além de desejado,
Este poder ser que…, é tecido por soluções precárias como a neurose. Embora contingencial e
Isto. instável, as clareiras existem. E a noção de Unbehagen recebe da língua
(...)
Estou doido a frio, portuguesa uma importante possibilidade adicional e enriquecedora ao
(...) título de Freud: a da distinção entre ser e estar “malmente” na civilização.
Entre a língua de saída, alemão, e a de chegada, português, o caminho é
Escrevendo na língua de chegada, ainda que não a brasileira, pura vertigem.
Fernando Pessoa, neste excerto, elabora o mal-estar mais pelos sinais grá-
ficos do que pela adjetivação: reticências, vírgulas, ponto. Ele marca neste
referências bibliográficas
trecho do poema o “mal-estar” como um ser este estar (“é este estar”),
cuja especificidade pode ser lida como a hesitação entre a suspensão do DUNKER, C.I.L. Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica: uma arqueolo-
pensamento, a pausa intermediária e a pausa final ou pode ser lida ainda gia das práticas de cura, tratamento e terapia. São Paulo: Annablume, 2012.
como a afirmação dessas pontuações todas em sucessão. FARIA, E. Dicionário Escolar Latino-Português. Rio de Janeiro: Departamento
Ser este estar “é este estar entre” que é um “nem ser nem estar no Nacional de Educação, 1967.
aconchego da clareira”, demonstrando a relação de não-pertença daquele FREUD, S. (1930) El Mal Estar en la Cultura. In Sigmund Freud Obras Completas
V-XXI. Trad. José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 1988.
que se encontra fora, mas que nem chega a ser periférico, sendo muito
mais um não-circundante, um não-anfi (não em volta de). FREUD, S. (1895) Sobre la justificación de separar de la neurastenia un determi-
nado síndrome en calidade de neuross de angústia. Trad. José Luis Etcheverry. In
Escapando um pouco dessa angústia anterior do impacto do intra-
Sigmund Freud Obras Completas V-III, Buenos Aires: Amorrortu, 1988.
duzível, Christian mostra que Unbehagen traz ainda à tona a falta dessa
GOETHE, J. W., Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Nacional, s.d.
clareira, que contém a agradabilidade de behagen. Concordo com meu
GRIMM, J.; GRIMM, W. Deutsches Wörterbuch von Jacob und Wilhelm Grimm
amigo, agradabilidade forma-se de semas como encantamento, tomar-se
(1854-1961) 16 Bde. In 32 Teilbänden. Leipzig: Quellenverzeichnis Leipzig, 1971.
de amores, de afagos, de carinhos, ou seja, compõe-se de traços semân- Disponível em: <http://dwb.uni-trier.de/de/>. Acesso em: 30 jul. 2015.
ticos que evocam a experiência de aconchego, conforto, do bálsamo que

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HEIDEGGER, M. (1938) Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcanti. Rio de
Janeiro: Vozes, 1993.
Liebe, Situation, Sprache
KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Marcus Coelen
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PEPETELA. Lueji, o nascimento de um império. Porto: União dos Escritores
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SÊNECA. As Relações Humanas. São Paulo: Landy, 2002.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura, ed. 8ª. Coimbra: Livraria
Almedina, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Die folgenden wenigen, losen und kurzen Stücke und Sätze hängen
Naify, 2002. mit dem sich bei ihrer Abfassung immer weiter aufdrängenden Gedanken
zusammen, dass nicht nur alle von den Begriffen und Institutionen des
Wissens und der Wissenschaft bestimmten Untersuchungen, die von
der Möglichkeit einer Begegnung zwischen der Erfahrung der Literatur
im Lesen und der Psychoanalyse ausgehen, sondern vor allem auch eine
genauere epistemologische Darlegung des Problems, das diese Möglichkeit
und ihr Entgleiten darstellen, selbst vielleicht kaum möglich sind. Die
Dissidenz der Literatur und der auf sie als solche zielenden Lektüre zur
Wissenschaft ist dabei mindestens so alt wie die Entstehung dieser bei-
den Begriffe, “Literatur” und “Wissenschaft”, ihrer Bildungen und ihrer
Einrichtungen selbst, wenngleich ihre gegenseitige Unverträglichkeit den
Gegenstand eines weit gestreuten aber stets abtauchenden Wissens bil-
det, gewissermaßen einer Verdrängung durch Gemeinplatz unterliegt.
“Literaturwissenschaft” hilft hier wenig. Gerade jedoch in Momenten
der Nähe beider, wie in Humanismus und Renaissance, als textliche
Wahrhaftigkeit und historische Wahrheit aufeinander bezogen werden
sollten, oder wie in den Jahren nach Kant, als Wissenschaftslehre und
Transzendentalpoesie sich von fast derselben Reflexionskraft ergriffen
sahen, konnte auch jeweilig die prinzipielle Abweichung voneinander,
sei es in Fragment oder Fiktion, sei es in der schreibenden Abweichung
selbst, die Rede über ihre Annäherung affizieren. Symptomatisch sind
Verdoppelungen und Kreuzungen, in denen die Nähe und Ferne zur

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Sprache kommt, wie beispielsweise in einem der Schlegel’schen Lyceums- diejenigen casus linguae erzeugen, an denen Wissenschaft selbst noch
Fragmente: “Streng genommen ist der Begriff eines wissenschaftlichen in einem Sinn so geteilt ist, dass ihr nicht nur in der Aufmerksamkeit
Gedichts wohl so widersinnig, wie der einer dichterischen Wissenschaft.” auf sie selbst – in vermeintlicher Wissenschaftstheorie – das Prinzip der
(SCHLEGEL, 1974 p. 154 – Fragment 51). Im Willen, den Gegensinn des Vereinheitlichung ihrer selbst gerade entzogen wird, sondern ihr auch, und
Urbegriffs vom Begriff und diesen selbst als Gegensinn noch einmal sei es zunächst im Namen der “Schöpfung”, eine naturwidrige Kreuzung
einzutragen, fällt aber auch, in Widersinn und seiner Wiederholung, begegnet, deren Treiben nicht auf Fortpflanzung zu bringen ist: “Sinn (für
eben diese selbst auf: Wiederholung. Eine Art von Psychoanalyse avant eine besondere Kunst, Wissenschaft, einen Menschen, usw.) ist dividier-
la lettre, da auch vom Appell à la lettre heimgesucht, hat beizeiten, hier ter Geist; Selbstbeschränkung, also ein Resultat von Selbstschöpfung und
und da, die Stränge, aus denen ein solcher Widersinn, der Widersinn von Selbstvernichtung.” (SCHLEGEL, 1974 p. 149 – Fragment 28) So schreibt ein
Literatur und Wissenschaft, sich knüpft, begleitet, und sei es zunächst nur weiteres Lyceums Fragment von der “Selbstbeschränkung”: Beschränkung
als die Öffnung auf diejenige Dimension, die Freud vielleicht etwas trüge- des Selbst, aber vor allem auch, für uns lesende, Beschränkung durch das
risch “Phantasieren” nannte und der sich die philosophische Tradition in Selbst. Im Zitat, im hier zu lesenden, zeigt sich jene “Selbstbeschränkung”
ihrer langen Auseinandersetzung mit dem Komplex der Imagination und an, die zum einen nahelegt, das Selbst aus ihr heraus zu kürzen, da sie zum
Einbildungskraft widmet – die sich aber immer wieder unter den Namen anderen die naturalistischen Grobkategorien von Vergehen und Werden,
von Witz, Ironie, Enthusiasmus, Kritik, Zitat und ganz anderen ohne Schöpfung und Vernichtung, nicht ganz dialektisch2 auf einen nicht ganz
Wissen zu zersetzen weiß. In der Phantasie begegnet der Psychoanalyse synthetischen Begriff der Schranke bringt: “Selbstbeschränkung” schreibt
also die Begegnung von Wissenschaft und Literatur. in dieser von Subtraktion getragenen Wiederholung von einem Selbst
Die Kraft der Einbildung Montaignes, die seine Essais antrieb und eben jener spekulativen Operation, in dessen Namen das Subjekt noch einmal,
einem solchen diesen Titel gab, war auch eine solche kraft des Zitierens, hyper- und hypobolisch, gesetzt werden sollte. Wissenschaft, sagt dieses
und im Fortschreiben dieses Textes fällt manches Zitat gleichsam wie Fragment, gibt es von dem, wovon es zu lesen gibt: “Sinn”, “dividierter
das Genital jener Person, die unter dem Druck der Einbildungskraft und Geist”, nicht, sondern vielmehr will es sich selbst als Sinn, Spaltung und
Zuschreibungsgewalt der Gemeinschaft lange Marie genannt war, um Subjekt – Selbst – zu lesen geben. Das Fragment, das vor jedem bewuss-
dann Germain zu werden, nachdem plötzlich, durch “ein angestrengtes ten Zitat um sich bereits Anführungszeichen trägt, wird zum Absoluten,
Herumspringen, die männlichen Geschlechtsteile aus ihr hervortraten”.1 literarisch Absoluten, das die Division in sich selbst verschiebt, und zwar
(MONTAIGNE, 2004 p. 99) So jedenfalls berichtet Montaigne zu Beginn noch einmal so, dass Subjekt selbst Spaltung und Bezug zur Spaltung
von De la force de l’imagination von Berichten über diesen unerhört komi- selbst werde, wohl um derjenigen anderen zu entgehen, die an ihm bereits
schen und doch gerne kolportierten Fall, ohne der Frage der Wahrheit
darin einen Platz zu geben – geben zu müssen, zu wollen oder gar zu kön-
nen. “‘Fortis imaginatio generat casus’” – damit beginnt der Essai – und 2 Die Bestimmung “nicht ganz dialektisch” weist genauer daraufhin, wie dialektisch der
Begriff des Frühromantischen Denkens ist, wenn man darunter nicht nur den spekula-
aus den Sprüngen der Imagination fallen die Redestücke, die Generation, tiven Durchgang durch bestimmte Negation versteht, sondern, wie Heidegger ausgehend
Produktion, Physis und Geschlechtlichkeit als geteilte auslegen und von Schelling darlegt, jedes Denken der Identität durch Vermittlung der Nicht-Identität;
vgl. Martin Heidegger, Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit
(1809), hg. v. Hildegard Feick (Tübingen: Niemeyer, 1971); vgl. dazu, wie überhaupt zur
1 “Passant à Victry le Françoys, je peuz voir un homme que l’Evesque de Soissons avoit philosophischen Bestimmung der Frühromantik Philippe Lacoue-Labarthe und Jean-
nommé Germain en confirmation, lequel tous les habitans de là ont cogneu et veu fille, jus- Luc Nancy, L’absolu littéraire. Théorie de la littérature du romantisme allemand (Paris:
ques à l’aage de vingt deux ans, nommée Marie. Il estoit à cett’ heure-là fort barbu, et vieil, Seuil, 1978). Neben diesem Buch müssen hier zu Schlegel und weiterem die verschie-
et point marié. Faisant, dict-il, quelque effort en sautant, ses membres virils se produisirent: denen Arbeiten von Paul de Man und Werner Hamacher vorausgesetzt werden. Unter
et est encore en usage, entre les filles de là, une chanson, par laquelle elles s’entradvertis- anderen letzterem ist es zu verdanken, dass es wieder an der Zeit zu sein scheint, sich von
sent de ne faire point de grandes enjambées, de peur de devenir garçons, comme Marie »Philologie« affizieren zu lassen; vgl. insbesondere dessen 95 Thesen zur Philologie, roug-
Germain” (Eigene Unterstreichung und Übersetzung, M.C.). hbook 8 (Holderbank, SO: Engeler, 2010).

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die “Natur” markiert, sowie die Wissenschaft, die sich selbst nicht grund- sich vielleicht ein anderes Objekt als dasjenige dieses Subjekts, genauer
legen kann, oder zumindest als eine solche angesprochen wird. gesagt: gerade ein “Objekt” dieses absoluten Subjektes, das keines hat –
Was bei Montaigne sich zunächst in grober Weise produziert, soll sich ablesen. In dem “eine[n] großen Vorzug der Poesie” gibt es einen kleinen
in der Frühromantik noch sublimieren, indem es sich immer mehr, wenn- Zug, der das erahnen lässt. Der Aufriss der Unvereinbarkeit von Literatur
gleich darin immer auffälliger, auf “sich selbst” bezieht. Gerade dadurch und Wissenschaft zugunsten einer Vereinnahmung der Wissenschaft für
trägt sich aber vielleicht eine Spaltung ein, für welche dieser Name zu das absolute Subjekt des Literarischen lässt den philologischen Bezug
grob ist, eher der Zerfall in eine sich stets feiner splitternde und, in einer sowohl als einen nicht wissenschaftlichen als auch als einen zurück,
weiteren Splitterung, als solche adressierte Sprache, sowie der Schub eines der einer Buchstabennatur begegnet, die von der “Natur” nichts als den
Organischen, an das kaum gerührt wird. Denn die Frühromantiker wuss- Namen erhalten zu haben scheint – und diese vielleicht noch bis in den
ten sowohl von dem Wunsch, die Sprache ganz sich selbst überlassen zu Namen “Buchstaben” hinein. Dies, was die Aufhebung der Wissenschaft
können, als auch von der Sorge um die Genauigkeit gegenüber der Anrede, im Fragment-System6 einer progressiven Universalpoesie, die eine spe-
zu der sich der Andere als Leser – welcher man selbst ist – von dieser sich kulative Naturphilosophie in sich als Ästhetik verschlungen hat, als Rest
selbst überlassenen Sprache zu verhalten gehalten ist. Studium der Poesie, verbleibt, hat, grob gesagt, die Hermeneutik ins Geschichtliche gestreut,
Kritik und Gespräch waren Namen für das Wissen um diesen Wunsch um es über die In-und-aus-einander-Schematisierung von ([quasi-]
und um diese Sorge. Diese sind philologisch zu nennen: Sprachliebe; im transzendentalem oder spekulativem) Bewusstsein und Verstehen aus ihr
“Wissen” jedoch waren sie asketisch, und sie sollten die Poesie zu dem aufzulesen und in und für sich auszulegen. Sie hat damit aber nicht nur,
machen, was ein von der Natur gänzlich Reines wäre.3 “Unbeschränkter auf die eine oder andere Weise, in jedem besonderen Fall die Vermittlung
Umfang [als ...] der eine große Vorzug der Poesie” (Ebd.) meint auch voll- dessen, was an der Literatur fremd bleibt immer wieder angestrengt,
ständigste Bestimmung – der Poesie, des Werkes, des Selbst – durch ein sondern sie versucht stets auch, eine Darlegung der epistemologi-
Organisches,4 das in dieser Bestimmung das Bestimmte nicht berührt schen Frage der von einem bestimmten proto-psychoanalytischen Zug
und es mit dem von Hölderlin “aorgisch” Genannten nicht trübt. Das durchwirken Unvereinbarkeit von Literatur und Wissenschaft zu leisten.
“philologische Moment” – das sich bei den Frühromantikern vor allem Hermeneutisches bricht, dehnt, reißt, entzieht, zersetzt das Bewusstsein
in der Theorie der Liebe und Freundschaft zur Poesie theoretisiert5 – zwar, oder gibt ihm seinen Abgrund zu denken, muss aber bei diesem
erlaubt zumindest in der Verdrehung, an der Naturbestimmung eine verbleiben.
Verschränkung von “Schöpfung” und “Vernichtung” zu erahnen, die sich
weder im Selbst verabsolutiert noch sich nach den Regeln einer “natür- 6 Vgl. zu Fragment und System u. a. neben dem berühmten 53. Athenäums-Fragment – “Es
ist gleich tödlich für den Geist, ein System zu haben und keins zu haben. Er wird sich also
lichen Fortpflanzung” organisieren lässt: Trieb – als Eros und Thanatos entschließen müssen, beides zu verbinden.” – die sprechendere Aussage Friedrichs in einem
– in die Schranken gewiesen. An der Kehrseite ihres Absoluten und sei- Brief an den Bruder August Wilhelm Schlegel vom 6. März 1798: “Überhaupt hängen die ver-
ner unendlichen Schlaufe als Beschränkung durchs Unbeschränkte lässt dammten Dinger so zusammen” (Kritische Ausgabe, xxiv, S. 97) und die Bestimmung: “Ein
System von Fragmenten” (Brief an August Wilhelm, 18. Dezember 1797; Kritische Ausgabe,
xviii, S. 100); vgl. Andreas Huyssen, “Nachwort” in Schlegel, “Athenäums”Fragmente und
andere Schriften, durchges. u. bibliograph. erg. Ausgabe (Stuttgart: Reclam, 2005), S. 239-40;
3 “Sie [die sinnlichen Künste, Plastik und Musik, M.C.] sind Mischungen, welche zwischen
vor allem aber Lacoue-Labarthe und Nancy, L’absolu littéraire, S. 64: “Les fragments sont au
reiner Natur und reiner Kunst in der Mitte stehen. Die einzige eigentliche reine Kunst ohne
fragment ses définitions, et c’est ce qui installe sa totalité comme pluralité, et son achèvement
erborgte Kraft, und fremde Hülfe, ist Poesie” (SCHLEGEL, 1974 p. 294).
comme inachèvement de son infinité”, sowie die Analyse der “fragmentation” als “visée
4 Vgl. die Selbstaussage im Brief des jungen Friedrich an den Bruder August Wilhelm proprement romantique du Système” (S. 66-67). Wie aber die “verdammten Dinger” – nicht
Schlegel vom 4. April 1794: “Die Geschichte der griechischen Poesie ist eine vollständige ganz die Fragmente und das Fragment – mit der systasis des Systems, wie Heidegger es
Naturgeschichte des Schönen und der Kunst, daher ist mein Werk – Ästhetik” (Kritische nennt, zusammenhängen, das läst sich wahrscheinlich nun nicht einmal mehr a-systema-
Ausgabe, xxiii, S. 188). tisch, sondern nur aus dem Zusammenhang gelöst denken: gelöst, aber nicht absolut gelöst,
5 Der erste Satz des “Gesprächs über die Poesie” lautet: “Alle Gemüter, die sie lieben, befreun- eher lose und etwas klebrig; so wie “verdammen” und “zusammen” zusammenhängen,
det und bindet Poesie mit unauflöslichen Banden” (Kritische Ausgabe, ii, S. 284). nämlich nicht und so dann doch: “nämlich” und als Dinger.

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Was aber bleibt – ganz naiv, wie auf der Bühne gefragt – von dem, Jacques Lacans Erfindung des “objet a” – und er selbst sprach davon,
was nie ganz da war, und doch stets mitgeschrieben wurde? In der dass es sich tatsächlich um seine “Erfindung”, seine einzige Erfindung in
Schranke, die das Bewusstsein selbst ist; dem Zitat, das zu sein ein Selbst und für die Psychoanalyse handelte, und man könnte denken, dass dies
sich bewusst wird; dem Widersinn in der Wiederholung des Widersinns, wie eine Aussage über “meine einzige Liebe” klingt –: diese Erfindung
die selbst nicht wieder Sinn ergibt und wider den Sinn verbleibt; der phy- kann als der Versuch genommen werden, sich mit der Liebe nicht nur
sis, an die nicht gerührt wird; dem Genital, das ausfällt; dem philein des an der Grenze des Wissens zu halten, sondern mehr noch: weniger noch:
logos, das die Philologie zu all dem und somit zu dem treibt, was sie der als der Versuch, ein solches Lesen, von “a”, in dem “was” “da” “ist”, ohne
Wissenschaft entreißt, ohne dass es sich wohl darlegen ließe? Schlicht von dass all das, Lesen, Wissen, Liebe, in eins zusammenfiele, zu notieren. Ein
all dem Gelesenen? jedes, das an diese algebraische Stelle, “a”, treten kann, fällt ab von einem
Vielleicht ist es, wie gesagt, kaum möglich, davon genügend zu spre- Körper, sodass das “objet a” einer Philologie abfiele vom Körper des
chen. Es könnte aber sein, dass mit “Philologie” eine Liebe genannt zu Wissens, und die Reste des Wissens als litter haben entsprechend oft ihren
werden fordert, die in jeder Situation, in die sie sich begibt, kein Wissen Weg in die Literatur gefunden. Diese wäre aber nur eine sehr einfache
dulden mag. Und als eine solche, als eine Liebe, muss sie, um zu sein, “metaphorische” Weise des Sprechens, wenn nicht im Falle des Wissens
was sie ist oder zu sein sagt: “Liebe”, sich in eine Situation, d. h. in ein der Körper selbst eben das Objekt wäre, das Vor- und Darstellbare als ein
vermutlich nur prä- oder an-ontologisch und un- oder nach-sprachlich Identisches. Das “objet a” fällt am Objekt auf: Philologie richtet sich am
zu Fassendes und selbst Erfassendes begeben, in der sie etwas, das, was sie “objet a” bloß auf das “a” – auf dies allerdings nicht als Objekt, d. h. als
liebt, auch tatsächlich und wirklich lieben könnte. Liebe ist situiert und einen Buchstaben, sondern auf seine besondere Identität, die in “a” mar-
situiert von “Liebe” sowie von dem, was sie sich damit einhandelt; von all kiert ist – und hier nicht anders. Sie verfährt hier, wie der junge Benjamin
den Namen, die ihr gegeben werden, von all den Sätzen, Halb-, Viertel-, mit dem Identitätssatz verfahren ist: sie liest an der Tatsache, dass die aus-
Achtel- oder Fragmentelsätzen, die sich um sie spinnen, den Strukturen, gesagte Identität Wiederholung ist, die andere, die immer wieder zu wie-
Strikturen, Struktionen, ihren Partikeln Kon-, De- und Re-, in die sie sich derholende Identität, die nicht eine bleibt. Denn aus den Sätzen über die
verstrickt findet. Wäre aber mit “Philologie” eine Liebe genannt, die kein “Selbstverständlichkeiten” im “Bereich des Denkens” – “Aussagen über-
Wissen dulden mag, dann wäre sie wohl auch, zunächst vielleicht bis zu haupt sind nur von Identität möglich” und “[I]n jeder Untersuchung über
Ununterscheidbarkeit, von der Eifersucht auf das begleitet, was in ihrer Identität [ist] diese schon vorausgesetzt” – folgt nicht:
Situation, wenn sie um sie weiß, gegeben sein, entstehen oder geschehen
daß dieses Identische ein mit sich selbst Identisches sei und grade dies, daß
müsste, nämlich, für sie selbst, das Wissen über ihr In-dieser-Situation- es Identität mit sich selbst gebe, sagt der Satz ‘a ist a’ aus. Sein erstes a ist also
Sein. Als eine bezogene, als eine intentionale “Struktur” – Liebe ist immer genauso ‹?› an und für sich ein Identisches, aber nicht ein mit sich selbst (d.
Liebe von etwas, so könnte man parodieren – trägt sie zumindest die Spur h. dem zweiten a) Identisches, und ebenso ist das zweite a an und für sich
eines Wissens und wird selbst von einer solchen Wissensspur getragen, ein Identisches, aber weder ein mit dem ersten a noch folglich ein mit sich
selbst Identisches (BENJAMIN, 1985 pp. 28-29).
und zwar da oder dahin, wo sie ist, oder zu sein scheint. Das Subjekt
einer Liebe, vielleicht ohne zu sprechen, wird sich zumindest sagen Am a, das mit sich selbst, also mit a, identisch ist, ließe sich ablesen,
müssen, dass “da” “was” “ist”. Und Philologie, insofern ihr dieser Name dass a an und für sich identisch sei, zudem einmal mit sich, ein zweites
zukommt, wäre dann “Liebe” um den Preis, noch nicht einmal Subjekt Mal nicht mit sich identisch: pulsierendes a, über das man so nichts wissen
dieser Minimalstruktur oder -syntax von Liebeswissen zu sein, in der kann, das aber in diesen Satz der Identität als seine Situation gesetzt ist.
Notwendigkeit zu dieser sich anders verhalten zu müssen, vielleicht ihre Die Philologie wandelt in dieser Situation träumerisch. Das schützt
Elemente lesend, ohne sie zusammen zu lesen. sie auch vor einem bösen Erwachen. Als Liebe, die weiß, würde Philologie

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nur als der Hass auf ihre Situation, um die sie wüsste, ihrem Lieben-ohne- wohnte, dass noch nicht einmal “kurz nach” dem Sprechen, noch nicht
zu-wissen treu bleiben. Nur als unbewusste würde sie sich einigermaßen einmal “im Moment” selbst, die Spur einer Erinnerung – vielleicht aber
dulden und die Chance haben, nicht von dem, was eine große, vor allem eine andere – auf diese Aussagen verwiese. Vergessen wäre der Moment
literarische Tradition, als die mächtigere Leidenschaft, mit der sie jedoch des Sprechens selbst. Bliebe also die Phantasie über ein Sprechen, dass
gleichsam verschwistert sei, nämlich die Eifersucht, bezeichnet, verdor- mit vollem Wissen – Wissen-als-Vergessen – sagen könnte – noch nicht
ben oder aufgezehrt zu werden. Das ihm unbewusste wäre der verdrängte einmal könnte, noch nicht einmal nicht könnte: “Ich weiß gerade nicht,
Hass auf das Wissen, das sie, wenn sie es nicht in sich trägt, doch stets was ich sage, mit diesem Satz, in dem ich sage, dass ich es nicht weiß;
befällt. Wenn dies aber so wäre, dann wäre Philologie, vielleicht nicht ich weiß gerade nicht, dass ich spreche; spreche… ohne… wissen.” Eine
ihrer Wirklichkeit, aber ihrem Streben oder Begehren nach, eine unbe- bloße Phantasie – und nichts weiter? Doch auch etwas, worauf eine Art
wusste Liebe – aber warum überhaupt diese Konstruktion? Nun ist eine Rätselwort Lacans abzielte: “Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit
“unbewusste” und somit nicht “wissentlich gewusste” Liebe nicht nur dans ce qui s’entend” (LACAN, 2001 p. 449). Dass man etwas sage – das
denkbar, sondern auch vielfach erfahren oder zumindest bezeugt, so z. bleibt vergessen hinter dem, was in dem, was gehört wird, gesagt wird;
B. in Sätzen des Typus: “Ich habe Dich geliebt und wusste es gar nicht”, oder hinter dem, was gehört wird in dem, was gesagt wird. Die hypo-
oder auch in der von anderen kommenden Behauptung: “Aber Du liebst taktisch ambivalente Bifurkation des Satzes streicht heraus, dass das, was
ihn doch!”, die zumindest, ungeachtet der “Richtigkeit” der Behauptung möglicherweise hier vergessen wird, sich hinter der wie auch immer aus-
selbst und ungeachtet auch der Möglichkeit oder Unmöglichkeit, eine richtenden Äquivalenz des Hören-Sagens verbirgt. Gleichgültig, ob der
solche “Richtigkeit” jemals zu bestimmen, doch wenigstens die Annahme Sinn im Gehörten oder Gesagten liegt, dahinter ist ein Vergessen, das
bekundet, dass es ein solches Wissen des Anderen sowohl über die vom weder gesagt noch gehört, aber darin eben, in einer bestimmten Modalität,
einen nicht gewusste Liebe als auch davon gebe, es durch ein Sagen sowohl gesagt wird als auch nicht überhört werden kann: als Subjunktiv:
bewusst zu machen. “qu’on dise...”: “dass man sage...”. Für Lacan ist dieser Subjunktiv eine
Gefährlich wäre hier, mit einem “Ja, stimmt” zu antworten. Und Widerrede ohne Rede zum Universellen: “Cet énoncé qui paraît d’asser-
man könnte sich fragen, ob nicht die Psychoanalyse in der gefährlichen tion pour se produire dans une forme universelle, est de fait modal, existen-
Nähe zu solchen Sätzen wie “Du liebst ihn, aber Du weißt es nicht” befin- tiel comme tel: le subjonctif dont se module son sujet, en témoignant.” (Ebd.)
det, ihr savoir supposé darin sich darstellt, und eine prinzipiell mögliche Dieses Ausgesagte, wenngleich es mit seiner universellen Form – vom
Beistimmung zu solchem voraussetzt. Die Enthaltsamkeit, freilich nicht Typ: “In einem jedem Fall gilt, dass...” – eine Behauptung zu sein scheint,
Askese, sondern die Ephexis in der Enthaltung von der Formulierung wäre tatsächlich modal und als solches existenziell, was der Subjunktiv,
solcher Behauptung und Voraussetzung, erinnert im Wort der “Ephexis” mit dem das Subjekt moduliert wird, bezeugen würde. Vergessen bleibt
selbst an das, was Nietzsche wiederum forderte, als er im 52. Fragment hinter dem Wissen die bloße Modulation und Modalisierung des Subjekts
des Antichrist noch einmal spät auf “Philologie” setzte: “Philologie als – und zwar auch in diesem Satz selbst, was immer man darin hört oder
Ephexis in der Interpretation” (NIETZSCHE, 1954 p. 1.218 – Fragment 52), mit seiner Wiederholung sagen mag. Seine Situierung ist, auf die irreduk-
was für uns nun wohl auch bedeuten müsste, sich der Interpretation von tible Situation seines Subjunktivs bezogen, was selbst noch, sich verges-
“Philologie” zu enthalten. Dann wäre aber Philologie der Wunsch nach send, gesagt werden müsste – oder sie wäre es, wenn sich das so identi-
einem Leben, oder die Phantasie über ein solches, das noch nicht einmal, fiziert sagen ließe. Auch Benjamin, man erinnert sich, sagte, “dass dieses
und wäre es ganz an “seinem Ende”, sagen würde: “Ich habe es oder sie Identische […] sei” (BENJAMIN, 1985 p. 28)...
oder ihn geliebt, aber nicht nur habe ich nicht gewusst, wer oder was es Hieraus noch ließe sich ein Wissen schlagen, in der Erinnerung, dass
ist, sondern noch nicht einmal, dass… Und auch jetzt weiß ich es nicht.” die “Situation” in einer für das 20. Jahrhundert typischen Kreuzung von
Also die Phantasie über ein Sprechen, dem das Vergessen so sehr inne- Logik und Existenz, vor allem als “Grenzsituation” gedacht und in die

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Nähe der Modalität der Unmöglichkeit gesetzt wurde, was theologische “du” nicht “du” sei – lässt sich kaum sagen, eher und weniger subjunktiv
Situationsethik und Existenzialontologie zu einer ähnlichen Inszenierung markiert, dass, mit der Situation anderes, “da”, vom Dasein abfalle: “Die
zwang.7 Sie fand sich dabei weniger im Subjunktiv, mit demjenigen, Situation ist das je in der Entschlossenheit erschlossene Da” (HEIDEGGER,
womit sich “Subjekt” moduliert, als mit einem Subjekt des Subjunktiven 1976 p. 397): “je […] Da” wäre noch nicht einmal das einzelne “Ich
als Erfahrung des Unmöglichen. Für Karl Jaspers, der Situationen als […] Du”. Nur Buffone, Komödienbegeisternde, Falschhörer, selbst ihre
Grenzsituationen und nicht anders dachte, sind diese “wie eine Wand, Liebe vergessende Liebende – Philologen – lispeln so die Szene dieser
an die wir stoßen, an der wir scheitern”. (JASPERS, 1932 p. 203) Diese als Situation und können dann auch daran erinnern, dass diese – “Situation”
Erfahrung modulierte Modalität der Unmöglichkeit lässt aber die kate- – ihren vielleicht ersten Auftritt in der Philosophie auf der Bühne der
goriale Quantität des Einzelnen und somit die kategoriale Trennung von Dramentheorie hatte: als “Mittelstufe zwischen dem allgemeinen in sich
Quantität und Modalität unberührt, wie Jaspers in einer Korrektur am unbeweglichen Weltzustande und der sich zur Aktion und Reaktion auf-
Begriff der “geistigen Situation der Zeit” ausführt: “[N]ur der einzelne geschlossenen konkreten Handlung” (HEGEL, 1970 p. 261). Die Situation
ist in einer Situation.” (JASPERS, 1931 p. 23) Der Einzelne ist allgemein im ist ein Drama der Unmöglichkeit, sicher – aber was markiert darin die
Unmöglichen situiert. Aber muss man ihm das noch sagen? linguistische Komödie des Sprechens an Modalitäten und wie moduliert
Noch in diese Verbindung von Situation und Modalität über die sie ihr Wissen und Erkennen?
Bestimmung jener als Grenzerfahrung und somit dieser als Erfahrung “Der Charakter entfaltet sich [...] im Glanz seines einzigen Zuges”
des Unmöglichen, wirkt sich, vergessen und vom anderen gesagt, das (BENJAMIN, (1977) 1985 p. 178)”8 in den Komödien, und so verschieben
Subjunktive. So ist für den Theologen Karl Barth der Sinn der Situation diese, so schrieb Benjamin, die tragische Einsicht über den Einzelnen
das, was man als die reine Spitze des gesprochenen Sinns bezeichnen zum Schatten des Einzigen: “in der höchsten Entfaltung des Individuums
könnte: “Tu du jetzt, in der unwiederholbaren und einzigen Situation, in in der Einzigkeit seines Charakterzuges” (Ebd.) Komödien verstri-
dem Stande deines Lebens in diesem Augenblick, dieses und lass jenes cken nicht in die Situation, sie zerstreuen zwischen Himmel und Erde.
– nicht weil und indem du entdeckt hast, dass gerade dieses Tun und Diese Zerstreuung und Entfaltung sind solche der “Zeichen”, (Ebd.)
Lassen der allgemeinen Form eines Imperativs entspricht.” (BARTH, 1948 Explikationen, aber sicher einzigartige, und bei diesem könnte Benjamin,
pp. 743-744) Gehorche dem Imperativ, dem Imperativ nicht zu gehor- neben anderem, an seine Auslegung des Identitätssatzes gedacht haben.
chen. Vergessen bleibt hier auch, dass damit zugleich gefordert wird, dies “Die Vision des Charakters aber ist befreiend unter allen Formen: mit
als du zu tun. Entrinne der Sprache nicht! Denn zwar: “Niemals kann ich der Freiheit hängt sie, wie hier nicht gezeigt werden kann, auf dem Wege
als Dasein aus dem In-Situationen-sein heraus.” (JASPERS, 1932 P. 56) Aber ihrer Affinität mit der Logik zusammen.” (Ebd.) Unter allen Formen, die
ich kann vergessen, dass ich es dir sage, und muss vergessen, dass “ich” sie verdecken und vergessen machen, hängt der Zug des Charakters mit
“es” “dir” “sage”. Tu “du” und lass “nicht-du” – muss gefordert sein, ohne “Freiheit” nur zusammen, sicher nicht als Form, und wahrscheinlich ist
dass es gesagt wird, weil es mit “du” immer schon gesagt ist: Was du ja dieses: dass es “hier nicht gezeigt werden kann”, nicht nur durch diese
auch anders nicht einmal denken kannst – oder? Es sei denn, dass wir es Situation “hier” vereinzelt und nicht nur durch eine geleugnete allge-
ständig auch anders läsen. meine Unmöglichkeit der Darlegung bestimmt: Es ist wohl auch sub-
Mit der Rede der “unauflösbare[n] Antinomik” (BUBER, 1962-64 junktiv, dass es, als einziger Zug, hier nicht gezeigt werden könne. Die
p. 142), die für Buber, den Denker des “Du”, die “Situation” war, mag er Charakterkomödie, an dessen Charakter Benjamin den einzigen Zug
bezeugt haben, dass von diesem Vergessenen etwas spürbar bleibt. Dass isoliert, ist die stillere Komödie des charaktêr, Zeichen, in jedem Mal.

7 Zum Einstieg in dieses Wissen kann hier der Eintrag »Situation« in Historisches Wörterbuch 8 Ich verdanke der »mündlichen Mitteilung« von Claudio Oliveira die Erinnerung an die
der Philosophie, hg. v. Joachim Ritter, Karlfried Gründer u. Gottfried Gabriel (Basel: Wendung vom einzigen Zug auch in Benjamins Schrift. Der Bezug zu Freud, zu Lacans
Schwabe, 19712007), ix (1995), Sp. 926-929, dienen. 1971-2007. trait unaire und zu jedem einzigen »einzigen Zug« bleibt zu gewinnen.

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“Die Komplikation wird Einfachheit, das Fatum Freiheit.” (Ebd.) In der tritt, wo es durch das Wissen der Etyma auf die Klage verweist und in
Einfachheit wird das Zeichen als Zeichen an und für sich “identisch” und der Sprache platziert, was der entsprechende französische Ausdruck “à
das Wirkmächtig-Gesagte frei. Der Spaß an der Komödie hängt nur noch peine” am Genießen der Körper situieren würde: was à peine oder hardly
an – nicht mehr zusammen mit etwas. Hängt eher da, wo etwas als etwas oder mal möglich ist, wird “kaum” gesprochen, vielleicht fast geschrien:
sich wiederholt und nicht so erfahren werden kann, meist interpretiert klagend, quakend, kränklich klingt hier die Stimme der etymologischen
werden muss. Darauf richtete Nietzsche seinen Spott und nannte es “den Möglichkeit nach. Vielleicht gehört “kaum” nämlich einer nennbaren
Mangel an Philologie” (NIETZSCHE, 1954 vol. 3 p. 805), Mangel dieses Gruppe an, und, so die Etymologie nach Pfeifer, diese “Gruppe gehört
Mangels – “Philologie” – hingegen: “Tatsachen ablesen können, ohne sie wahrscheinlich wie Kauz und Köter [...] zu einer schallnachahmen-
durch Interpretation zu fälschen” (Ebd.) – also Fatum so, als Faktum lesen den Wurzel ie. *gǀu-, *gnj- ›rufen, schreien‹, die auch für ahd. gikewen
zu können. Wörtlicher blieb er bei der Bestimmung der Identität an dieser ›nennen, heißen‹ (9. Jh.), aengl. cƯegan ›rufen, nennen‹ sowie aind.
Philologie: “einen Text als Text ablesen können, ohne eine Interpretation jǀguvƝ ›lasse ertönen, preise‹, griech. goƗ̗ n (ȖȠᾶȞ) ›jammern, klagen‹,
dazwischen zu mengen.” Dies bleibt nicht nur in der Reihe desjenigen, lit. gaNJsti ›dumpf dröhnen‹, aslaw. govoriti ›lärmen‹, russ. govorit’,
wozu es kein Außen zu geben scheint, moduliert also nicht nur “Subjekt” ›sprechen‹ vorausgesetzt wird.”9 So wäre kaum etwas vom Nennen und
sondern auch noch einmal die Modalitätskategorie selbst: “Dies aber ist Sprechen in anderen Sprachen, was sich möglicherweise sagen ließe. Mit
die späteste Form der ‘inneren Erfahrung’, — vielleicht eine kaum mög- Mühe, aber auch mit leichtfertiger Imitation eines Wissens, das auf die
liche…” (Ebd.) “– vielleicht eine kaum mögliche”: Lässt sich dazu etwas Imitation des Ausrufs im Ausruf stößt, würde, das, was kaum möglich ist,
sagen? Oder wird das Sprechen hier selbst vielleicht kaum möglich? Klang annehmen im Bilde einer schallnachahmenden Wurzel. Weder die
Schlecht artikuliert, genuschelt oder mit vollem Mund gesprochen klingt Eule des Wissens noch der beispielhafte Löwe – mit seinem Achill’schen
hier eben dieser, der Mund mit, als Werkzeug nicht des Sprechens, oder Mut – im Maule des metaphorischen Sprechens von der metaphorischen
kaum, sondern als Organomechanismus der Einverleibung, dem Magen Struktur – und welche Tiere für die Metonymie? – wären Sinnbilder die-
so fern als denkbar möglich. Mit sich verklebt ohne Selbst verleibt der ser Modalität, sondern Kauz und Köter würden mit ihren Lauten das
Ausdruck den Modus, vielleicht, da kaum möglich die Möglichkeit des Öffnen und Schließen der Stimmritze vorgegeben und begleitet haben
Kauens – “kaumöglich” – in den Sinn des Ausdrucks einfallend gehört – und wohl auch die Kröten. Während die Sprechakte in der tragischen
oder gespürt werden könnte, aber verbleibt so am Rande dessen, was sich Verstrickung ihre Inszenierung finden, war und wird die Situation des
über die Kategorien der Modalität, über das grundlegend zu Sagende kaum möglichen aber ständigen Geschehens in der Glottis zum Klamauk
über das Sagbare eben sagen lässt. Die Modalität des kaum Möglichen, an der Komödie. Wenn “mamama” oder “papapapa” über die Lippen
die kaum eine Modalität genannt werden kann, lässt zumindest hören, gekommen ist, haben die Sprechaktenliebhaber, die sie umgeben, schon
dass sie eine modulierte Modalität des Sprechens ist, die sich am Rande gemeint gemeint zu sein und ein Meinen, Struktur und Komplex bei der
der Artikulation situiert findet, welche man aber nicht ernsthaft eine sol- Hand, zurückgegeben. Wenn der Rachen schlicht aufgeht, wird meist
che nennen mag. Man müsste den Mund schon recht voll nehmen, um – und weltweit zu oft nicht – das vokalarme Geräusch zum Überleben
das, und sei es im Scherz, eine Modalität zu nennen: “Kaummöglichkeit”: notwendig mittels der Fütterung richtig missverstanden. Kaum möglich
kategoriales Kauderwelsch. ist die notwendige Umdeutung zu unterlassen, aber der eigentümliche
Aber die Theorie spricht gern so, wenn sie ein Wissen, und sei es ein Klang kehrt wieder, manchmal als Quak oder Quatsch. Frösche finden
Wissen im Modus des “vielleicht”, eine Wissenschaft in den Regionen, die
sich gern in Fiktion und Spekulation verliert, wie etwa die Etymologie, 9 Etymologisches Wörterbuch des Deutschen, ed. Wolfgang Pfeifer, erarbeitet im
Zentralinstitut für Sprachwissenschaft, Berlin, 2. Aufl. (Berlin: Akademie-Verlag, 1993);
hervorholt, um sich, vermeintlich, auf das Sagen selbst zu wenden. Sie Taschenbuchausgabe: ungekürzte, durchgesehene Ausgabe, 7. Aufl. (München: dtv, 2004),
findet, dass “kaum” daher kommt, wo auch die Interjektion hervor- Lemma: “Kaum”.

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sich auch vor Theben, im Klagen der Griechen noch das Quäken, und Sobre a violência da relação tradutória1
Aristophanes platzt in die Szene des Sophokles. Ein Aufriss scheint im
Schlüssel zu Weisheit und Wissen durch; ihrem: “Erkenne Dich selbst!” Marcelo Jacques de Moraes
– fundamentaler Sprechakt, verkleidet als Kognitionskommando des
Anderen – kommt zwar fast nichts in die Quere. Doch noch im gnothi
seauton klingt die Glottis an: Charakterkomödie ist Charakterkomödie,
Zug um Zug zu lesen.

literaturverzeichnis
BARTH, Karl. Kirchliche Dogmatik, 5 Bde. Zürich: Theologischer Verlag, 1948.
BENJAMIN, Walter. “Thesen über das Identitätsproblem”, in Gesammelte Schriften,
v. 7. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1985.
__________, “Schicksal und Charakter”, in Gesammelte Schriften, ii.1 (1977).
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1985. No Brasil, e em toda parte, traduz-se hoje cada vez mais, e por inú-
BUBER, Martin. Ich und Du, in Werke, 3 Bde. München: Kösel / Heidelberg: meras razões, com vistas aos mais diversos resultados, dos mais explici-
Lambert Schneider, 1962-64. tamente comerciais aos mais supostamente desinteressados. Cobrem-se
HEGEL, G.W.F. Vorlesungen über die Ästhetik, in Werke, 20 Bde. Frankfurt a.M.: na prática quase todos os matizes da oposição posta por Humboldt no
Suhrkamp, 1970. século XVIII em sua célebre formulação do dilema do tradutor, sempre
HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit, in Gesamtausgabe, I. Abt.: Veröffentlichte dilacerado entre o autor e o leitor, a língua estrangeira e a própria, o ori-
Schriften 1914-1976. Frankfurt a.M.: Klostermann, 1976-. ginal e a tradução.2 Mas no domínio que nos interessa mais especifica-
JASPERS, Karl. Die geistige Situation der Zeit. Berlin: De Gruyter, 1931. mente aqui, que é o da Literatura, parece-me que se formou praticamente
__________. Philosophie. Berlin: Springer, 1932. um senso comum, a meu ver quase pacificado, ao menos no âmbito dos
LACAN, Jacques. “L’étourdit”, in Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. estudos da tradução literária, e que nos permite dizer que hoje se tra-
MONTAIGNE, Michel de. “De la force de l’imagination”, in Les Essais, ed. P. Villey duz sobretudo, e cada vez mais, para dar a ler o original em toda a sua
e V. Saulnier. Paris: PUF “Quadrige”, 2004. estrangeiridade. Senão no limite de sua alteridade, ao menos bastante
NIETZSCHE, Friedrich. Antichrist, in Werke in drei Bänden, ed. Karl Schlechta. atento a ela. A despeito de todas as nuances da questão, vigora hoje de
München: Hanser, 1954. forma relativamente aceita a posição de Antoine Berman segundo a qual
__________. Aus dem Nachlass der Achtziger Jahre, in Werke in drei Bänden, ed. “a essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentrali-
Karl Schlechta. München: Hanser, 1954. zação” (BERMAN, 2002 p. 17). É claro que na prática do mundo editorial
SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Fragmente, in Kritische Friedrich Schlegel as coisas caminham lentamente, até porque ali não se serve a apenas dois
Ausgabe, ed. Ernst Behler et al., 35 vols. Paderborn: Schöningh, (1958-) 1974.

1 Texto apresentado em mesa-redonda no Congresso da ABRALIC de 2011 e primeiramente


publicado na Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.19, São Paulo, 2011, p. 61-77.
2 Diz o filósofo e tradutor numa carta a Schlegel: “Cada tradutor deve infalivelmente encon-
trar um dos dois escolhos seguintes: ele se limitará com demasiada exatidão seja ao origi-
nal, em detrimento do gosto e da língua de seu povo, seja à originalidade de seu povo, em
detrimento da obra a ser traduzida.” (BERMAN, 2002 p.9)

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senhores, para lembrar aqui mais uma famosa definição da tradução.3 necessariamente ambivalente dessa relação com o outro implicada de fato
Mas creio que ao menos se pode dizer que a crítica à chamada tradução na experiência do tradutor, se ignorarmos o modo como essa dimensão
etnocêntrica tornou-se, em nosso campo de estudos, quase moeda cor- está ligada a um processo de subjetivação que, intrinsecamente, não tem
rente, modulando, parece-me, de maneira às vezes mais, às vezes menos finalidade nem fim, e que é marcado por uma violência subjetiva que a
explícita, a maior parte das reflexões sobre a tradução que se fazem hoje relação tradutória, justamente, jamais resolve, mas, ao contrário, inces-
na França, nos Estados Unidos ou aqui entre nós. Creio que essa é uma santemente reexpõe.
conquista importante, com resultados práticos que começam a aparecer, Assim, o que me proponho a discutir aqui é a violência fundamental
entre os quais eu destacaria especialmente a tendência crescente a retra- intrínseca à relação tradutória, mas não tanto em sua direção mais fre-
duzir, que reflete essa dimensão crítica e essa atenção cada vez mais cui- quentemente referida, isto é, a violência do próprio sobre o estrangeiro
dadosa com o estrangeiro. que seria operada pelo trabalho da tradução de vocação etnocêntrica, a
Por outro lado, há um efeito curioso desse processo que tende a idea- violência da língua tradutora sobre a língua traduzida. Trata-se, antes, da
lizar a figura do tradutor, que passa a encarnar o altruísmo e a tolerância experiência da violência do estrangeiro sobre o próprio, da língua tra-
na relação com o estrangeiro, às vezes de maneira quase simplória. Nesse duzida, da língua do original sobre o tradutor e sua língua, e que é, a
sentido, invoca-se frequentemente, por exemplo, no mais das vezes inge- meu ver, a que deflagra propriamente a “pulsão tradutória” (BERMAN,
nuamente, bem entendido, a necessidade do acolhimento incondicional 2002 p. 24) a que se refere Berman em seu já clássico ensaio A prova do
ao estrangeiro a que se refere Jacques Derrida em sua reflexão sobre a estrangeiro, de 1984, ensaio em que discute a tradição alemã do pensa-
hospitalidade (DERRIDA, 1997), para sustentar a imagem de um tradutor mento sobre a tradução. Aliás, creio que se pode dizer, no que tange a essa
voluntariamente acolhedor, cheio de boa vontade para com o estrangeiro, relação tradutória que quero explorar aqui, que não há primeiramente o
por mais radicalmente outro que este seja. Como se isso fosse possível. original, apreendido na autonomia significante de sua língua, e depois a
Outras vezes, cai-se nos riscos implicados por uma ecologia linguística, tradução, por meio da qual o tradutor transporia esse original para sua
que no afã mais do que nobre de salvar línguas e culturas ameaçadas própria língua, ela também autônoma. A experiência da tradução é de
pela dominação de outras mais poderosas, acaba sobretudo “reforçando saída uma relação já em movimento, uma tensão já estabelecida com um
o essencialismo cultural linguístico” (APTER, 2006 p. 5), como previne original que, se exige, se deseja intrinsecamente tradução, como ensi-
Emily Apter na introdução de seu Translation Zone, livro em que ela dis- nou Walter Benjamin (BENJAMIN, 2008 p. 84),5 é justamente por apre-
cute a importância disso que chama de “zonas de tradução” para os estu- sentar-se desde sempre já em tensão tradutória. Por isso, se a tradução é
dos de Literatura Comparada.4 Bildung, como queriam os românticos alemães, não é apenas no sentido
Não pretendo aqui recusar inteiramente essa perspectiva idealiza- de um “movimento em direção a uma forma que é uma forma própria”
dora de consideração do trabalho do tradutor, perspectiva que não deixa (BERMAN, 2002 p. 80), como disse Berman, não é apenas nesse sentido,
de ter sua importância e sua razão de ser. Muito pelo contrário. Mas mas também no sentido freudiano de uma forma em formação, em tensão
ela se torna tanto mais irrealista e enganosa se ignorarmos a dimensão consigo própria, de uma forma que se apresenta intrinsecamente numa
perspectiva conflitante. Esclareço. É com o termo Bildung que Freud
3 Trata-se da definição de Franz Rosenzweig, segundo a qual “traduzir é servir a dois senho- designa tanto a noção de formação de sintoma [Symptombildung] quanto
res”, “ao estrangeiro em sua estrangeirice, ao leitor em seu desejo de apropriação”. (RICOEUR,
outras noções por ela englobadas, como as de formação substitutiva
2004, p. 41)
4 Que ela define inicialmente nos seguintes termos: “Amplamente concebida [...], a zona de
tradução aplica-se a comunidades de línguas da diáspora, a esferas públicas de impressão e 5 Essa edição comporta quatro traduções do texto de Benjamim em português. Usarei aqui
mídia, a instituições de governamentalidade e de decisão de políticas de língua, a teatros de a de João Barrento, eventualmente modificada com base na tradução de Martine Broda,
guerra, e a teorias literárias com particular relevância para a história e o futuro da literatura realizada a partir do seminário de Antoine Berman sobre o texto de Benjamin, realizado
comparada.” (APTER, 2006 p.6). em 1984-1985 e publicado em 2008 por Isabelle Berman (BERMAN, 2008).

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[Ersatzbildung], formação reativa [Reaktionsbildung] ou formação de do recalcado que ele se revela como tal, como recalque. Analogamente,
compromisso [Kompromissbildung].6 Ou seja, na perspectiva freudiana, a pois, ao que ocorre com a formação substitutiva freudiana, ao mesmo
Bildung está intrinsecamente ligada a processos e formas desencadeados tempo traço e apagamento daquilo que a determina, analogamente, não
por um embate entre representações que não se estabilizam, processos há tradução bem ou malsucedida que se revele como tal, que se revele
e formas que se dão a ver por sua implicação numa relação que a inter- como tradução, independentemente de se oferecer como boa ou ruim,
pretação psicanalítica deve por sua vez, por que não dizê-lo?, traduzir... sem o retorno mais ou menos assombroso do original. Pois é por remeter,
Tal perspectiva me parece constituir um pano de fundo interessante para positiva ou negativamente, expressamente ou à sua revelia, a certa virtua-
a discussão dessa violência fundamental que permeia a experiência do lidade ou a certas virtualidades de sentido do original, virtualidades que
tradutor. Para esboçar o problema, partirei de uma breve reflexão sobre ela vem revelar – e no mesmo movimento fixar –, é por essa remissão que
a experiência primeira do tradutor diante de um original, experiência ela pode ser considerada boa ou ruim.
anterior a qualquer decisão que ele tome de deter-se mais praticamente, Se assim for, o que será que está em jogo quando Berman diz, repito,
mais pragmaticamente, em sua tarefa. Mas experiência decisiva para a que a tradução “é relação, ou não é nada”? O que seria a tradução que
compreensão dessa dimensão pulsional do traduzir. Vou falar um pouco não é nada? Creio que para Berman não há dúvida: é justamente a tra-
disso agora a fim de ir explicitando aos poucos a questão da violência da dução etnocêntrica, aquela que é baseada, nos termos do próprio autor
tradução. em A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, aquela que é baseada
Quando, diante de letra estrangeira, alguém decide traduzir, é por- na “captação do sentido” do original, que, diz Berman, “afirma sempre
que a experiência da tradução já se deflagrou. Como eu dizia, não há a primazia de uma língua” (BERMAN, 2007 p. 33). A tradução que não é
antes o original, radicalmente estrangeiro, a desafiar o tradutor, e depois a relação, e que por isso não é nada, seria aquela em que a língua do tradu-
tradução, por meio da qual esse estrangeiro é enfrentado e transportado tor iluminaria o texto estrangeiro de tal forma que o clássico problema da
para outra língua, para a língua do tradutor. A experiência da tradução é, literalidade da tradução sequer chegaria a se formular como tal. É a partir
de saída, uma relação já em movimento, uma tensão já estabelecida com daí, aliás, que o teórico define a “transformação literária” operada pela
um original que só se furta e exige tradução por se apresentar virtual- tradução, que ele opõe justamente ao que reivindica como tradução literal
mente, desde sempre, em tradução, em tensão tradutória, justamente. Por (BERMAN, 2007 p. 28-44 e 63-71).
isso mesmo ela é Bildung, a um só tempo resultado e processo, forma e Ora, mas se tal tradução – bem ou malsucedida, segundo o ponto de
formação, forma em formação. Por isso mesmo, como diz Berman, a tra- vista – existe, ela não se deve jamais, a meu ver, à presença ou à falta de
dução, cito-o, ou “ela é relação, ou ela não é nada” (BERMAN, 2002 p. 17). qualidades intrínsecas a um trabalho específico de tradução, à presença
Se a tradução é essencialmente relação, é na medida em que ela só existe ou à falta de virtudes metodológicas de um tradutor empírico qualquer,
enquanto tal se for assombrada pelo estrangeiro, por este estrangeiro cujo em qualquer sentido que seja. Até porque, por mais que uma prática
sentido, já por meio dela, da própria tradução, repito-o, se apresenta e se etnocêntrica recalque o outro enquanto tal, este sempre deixa seus traços,
furta, se furta exatamente ao se apresentar, se apresenta ao se furtar, sus- e o estrangeiro original sempre acaba por retornar. Ao menos para quem
tentando, assim, uma relação entre línguas, entre sentidos em tensão, em conhece a língua do original.
pulsação. Creio que é aí que podemos, com Freud, pensar a tradução por Aqui, aliás, abro parênteses, poderíamos inclusive colocar em ques-
analogia a uma Ersatzbildung, a uma formação substitutiva, que se define tão, no âmbito desta discussão, o que seria essa tradução literal que Berman
por este mecanismo paradoxal que é o recalque, mecanismo que só se dá não cessa de reivindicar. Pois é essa espécie de retorno tautológico do ori-
a ver como bem-sucedido por seu próprio fracasso, já que é pelo retorno ginal, para quem conhece a língua em que ele é produzido, que funda a
6 Podemos encontrar os quatro verbetes com as respectivas remissões bibliográficas na obra
sensação paradoxal de uma espécie de precedência a posteriori do literal
de Freud em LAPLANCHE & PONTALIS (1983, p. 257-263). sobre a predicação figural que qualquer tradução não pode evitar derivar

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desse suposto original literal. O que a experiência da tradução enquanto uma língua que não conheço. Ano passado ouvi Marcelo Paiva de Souza
tal propicia ao transfigurar necessariamente o original em outra letra, lendo Drummond em polonês em tradução de Miłosz.7 Soava magnifi-
desliteralizando-o inevitavelmente, é uma espécie de diferença original camente, mas como uma música original. Como uma obra autônoma,
do original para consigo próprio, que o torna desde sempre irremediavel- encerrada em si mesma. Eu até podia ouvir um sistema rítmico e de repe-
mente distinto de si mesmo. De sua própria letra, sempre já traduzida em tições que eu identificava com as sucessivas retomadas de “Tinha uma
outra letra. Ou seja, parece-me que ao fim e ao cabo, o literal é sempre o pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra...”
retorno enigmático do original em sua materialidade irredutível a certa do poema de Drummond. Mas quem me garante que um polonês não
imaterialidade do sentido traída por sua tradução. Quero dizer que não ouvia ali algo como: “Eu comia cobras na hora do almoço, na hora do
há o literal em estado puro, sem a sombra de suas predicações – de suas almoço eu comia cobras...”? Não havia para mim a tensão inevitável da
traduções mais ou menos flutuantes. Mas passemos... experiência da tradução com o burburinho do original literal adivinhado.
Pois o ponto que quero explicitar agora é o seguinte: uma tradução Porque na tradução que é relação não posso evitar contrapor a hesitação
que não é nada só poderia existir para quem não conhece a língua do entre o som e o sentido experimentada numa língua e o modo como ela
original. Porque, justamente, para quem não a conhece, jamais existe tra- retorna na outra, para evocar a famosa definição da experiência da língua
dução. Eu, por exemplo, costumo dizer que não tenho ideia do que seja na poesia feita por Paul Valéry. A rede de relações numa língua e noutra é
uma tradução de Dostoiévski. Para mim, uma tradução de Dostoiévski necessariamente diferente e de algum modo conflitante. Rede que recons-
não é relação. É nada. Se ouso dizer que leio Dostoiévski, é como um tituo necessariamente ao ouvir Drummond em francês ou em inglês, por
original em língua portuguesa que aprecio sem saber até que ponto a exemplo, constatando quase à minha revelia as necessárias traições. Há,
estranheza que nele reconheço em minha língua portuguesa é russa ou em suma, na tradução que é relação, uma violência recíproca, de uma
dostoievskiana. Sem saber se ela é ou não é a invenção de um tradutor língua a outra. Onde até posso ter arroubos, como queria Haroldo de
que, para mim, jamais se coloca de fato como tradutor, justamente, que, Campos, de ver a tradução como um original autônomo, forjando uma
para mim, só pode se colocar como um escritor, como um produtor de rede de relações mais rica que o original, tradição diante da qual esse ori-
originais. Pois por detrás do Dostoiévski que leio em uma “tradução”, aqui ginal soaria como a tradução (CAMPOS, 1992 p. 84). Mas a instabilidade
entre aspas, pois para mim ela não se coloca como tal, por detrás desse da relação permanece.
Dostoiévski não ouço nenhuma língua estrangeira, é puro silêncio... Por Ou seja, para quem não conhece o original, a tradução tem o mesmo
isso, para mim, essa tradução é nada. Dostoiévski só pode soar como um valor (que pode ser imenso!) que a tradução que faz um Guimarães Rosa
original em português para mim, pois o russo não me sopra ao ouvido, de um original que não existe. Todos sabem a importância para Rosa das
não me assombra. Por outro lado, deem-me uma frase de Flaubert em traduções, e evoco aqui um trecho de uma famosa carta do escritor ao
português e não poderei evitar ouvir, involuntariamente, ecos dessa frase tradutor italiano. Escreve Rosa, não sem alguma consonância com as
ideias de Haroldo:
em francês independentemente de conhecer a frase original. E por mais
flaubertiana que a frase possa me parecer em língua portuguesa, a língua Eu quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”,
francesa continua a ressoar para mim por trás da tradução. E aí começo a de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano
das ideias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou
ouvir o original “literal”, em nome do qual me ponho a criticar as predi-
falhando, nessa “tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro
cações figurais operadas pela tradução em minha língua. Todos sabemos
o burburinho da letra estrangeira que ouvimos diante da tradução de um 7 Participei em setembro de 2010 de mesa-redonda com Marcelo Paiva de Souza no II
original de uma língua que conhecemos. Da mesma forma, não posso Simpósio Internacional Literatura Comparada e Tradução, realizado na Universidade de
Santa Catarina, em que ele apresentou a comunicação “Um diálogo no meio do caminho:
experimentar como relação a tradução de um texto em minha língua para Czesław Miłosz, leitor e tradutor de Carlos Drummond de Andrade”.

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idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor artificial em nossa língua: trata-se de defeito ou de qualidade da tradu-
quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu ção? São problemas práticos que se colocam para um tradutor e que ele
desvirtuara (GUIMARÃES ROSA, 2003 p. 99).
jamais pode resolver satisfatoriamente: privilegiar a estrangeirice intrín-
Ou seja, a tradução, para quem não conhece a língua do original, se seca da língua em que se fabrica o original ou tentar restituir na tradução
inscreve na língua do leitor como esse tipo de tradução primeira a que se a posição daquele texto original em relação às normas dessa sua língua
refere Rosa, como repertório no “interior da floresta da língua” (BENJAMIN, original? Sabemos que um texto absolutamente normativo e burocrático
2008 p. 91), para evocar uma vez mais Benjamin e sua Tarefa do tradutor. numa língua pode constituir uma experiência interessante e surpreen-
Mas nessa tradução que funciona como um original, a tensão da relação dente em outra.
entre duas letras, entre significantes que se “aparentam”, mas se excluem, Assim, por exemplo, se traduzimos uma expressão estabelecida
essa tensão da relação tradutória não se põe. Em suma, a tradução, para numa língua estrangeira por uma que consideramos equivalente em
quem não conhece a língua do original, vale como um original qualquer, e nossa própria língua, deformamos certamente uma virtualidade da língua
não como relação. Daí a célebre pergunta do filósofo alemão: “Uma tradu- do original. Ocorreu-me, por exemplo, quando escrevia este texto uma
ção vale para os leitores que não entendem o original?” (BENJAMIN, 2008 expressão que aprecio em inglês, “still life” (em alemão: “Stillleben”), para
p. 82) Pois só para os que entendem o original a tradução pode ser de dizer “natureza morta”; se resolvemos traduzir, digamos, “literalmente”,
fato – e é inevitavelmente – relação, a despeito do maior ou menor esforço por “vida imóvel” ou por “ainda a vida”, também deformamos de outra
relacional do tradutor. Assim, independentemente de a tradução ser boa maneira a relação do escritor que estamos traduzindo com sua própria
ou ruim, de ser mais ou menos etnocêntrica, sua importância, para os que língua. Mas se não for um manual de pintura tradicional, por exemplo,
não entendem o original, não está, a meu ver, em possibilitar a relação com pode ser que o autor em questão esteja ali explorando voluntariamente
o estrangeiro enquanto tal. Mas em despertar eventualmente esse desejo certa dimensão “literal” da expressão. O que se perde se eu traduzir por
de relação, que só pode de fato se realizar se o leitor for então levado a “natureza morta”. Enfim, eis uma pergunta com que o tradutor, num ou
aprender outra língua, e assim estar continuamente exposto à experiência noutro momento, sempre se depara: quem fala nessa fantasmagoria origi-
estrangeira inclusive em relação à própria língua. Até porque “é preciso nária que é o original literal? A língua ou o sujeito? Quando um se impõe
compreender ao menos duas línguas para saber que se fala uma”, como ao outro? Quem dobra quem?
costuma dizer a filósofa Barbara Cassin (CASSIN, 2010). Nesse sentido, podemos evocar também um exemplo clássico, no
Por tudo isso, uma das questões impossíveis de serem respondidas caso da filosofia, do famoso problema apontado por Heidegger na tra-
por quem lê uma tradução sem conhecer a língua do original é a seguinte: dução do grego physis para o latino natura. Em relação a essa discussão,
até que ponto tal estranheza do original se deve à língua desse original Andrew Benjamin afirma, por exemplo, visando a apresentar a posição de
ou ao modo como tal escritor a utiliza? No caso de Dostoiévski, às vezes Heidegger sobre a tradução:
me pergunto: será que esta língua que tal tradutor do russo inventa aqui
A perda que marca o presente filosófico é superada por atos de restaura-
é uma potência interior à minha língua? Como a que inventa Rosa, por
ção, restabelecimento, e recuperação. Em cada instância, o que precisa ser
exemplo? Ou é uma daquelas línguas híbridas que só se produzem em recuperado etc. e, portanto, o que foi perdido, é a arcaica realidade expressa
tradução? Questão, aliás, muitas vezes impossível de ser respondida, já na e com a palavra. A consequência é que o que está perdido na tradução,
que sabemos que o próprio Rosa não teria inventado a língua que inven- ou antes o que foi destruído [“destruído” é um termo que o autor retoma
tou se não tivesse incorporado à língua portuguesa virtualidades das de Heidegger] na tradução de physis por natura é essa realidade arcaica
(BENJAMIN, 1989 p. 18-19).
muitas outras línguas que conhecia. Como, aliás, fazem muitos escri-
tores. De todo modo, o que quero dizer aqui é que percebemos muitas Ou seja, haveria para Heidegger uma equivalência, ainda que pro-
vezes ao traduzir que produzimos uma língua que soa completamente blemática, entre a palavra e o que ela diz. Equivalência que se recupera,

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ou que se destrói, na tradução. De todo modo, a pergunta que retorna é sazão... e mesmo cerveja, Uma cerveja no inferno.8 Qual seria a tradu-
sempre a mesma: o que resta do original enquanto tal, o que resta como ção literal? Talvez alguns tendessem a dizer que fosse sazão? É, aliás, este
seu sentido original atrelado à sua letra, quando esse sentido só se dá a ver conflito insolúvel entre traduzibilidade e intraduzibilidade que sustenta o
enquanto tal já em tradução? infinito processo de interpretação que define um texto para Derrida – ou
Aqui posso também relatar uma anedota do escritor bilíngue Julian o que Benjamin chama de sua sobrevida. Até porque se a tradução efe-
Green, que expõe de maneira interessante esse impasse a partir de sua pró- tivamente se realizasse e estabilizasse o texto, ela o negaria enquanto tal.
pria experiência de viver entre duas línguas, a inglesa materna, e a fran- Pois a tradução revela justamente, talvez melhor do que qualquer outro
cesa, do país onde cresceu e viveu grande parte da vida. Primeiro ele conta tipo de leitura, a instabilidade do sentido de um texto, e de uma língua.
a história de uma criança francesa que teria perguntado à mãe: “Quando Feitas essas reflexões e digressões, que creio mais ou menos recorren-
você pensa, você pensa com pensamentos ou com palavras?” Ao que a tes para todos aqueles que vivem entre literaturas e línguas estrangeiras,
mãe respondeu prontamente que pensava com pensamentos... Intrigada, retorno ao ponto fundamental em relação à experiência da tradução que
porém, ela apresentou a questão a um amigo filósofo, que lhe teria dito: propus como central deste ensaio. Pois nessa experiência da relação impli-
“Seria melhor que você dissesse ao seu filho que não sabemos nada a res- cada por um texto estrangeiro cuja tradução nos solicita, não se escolhe
peito disso”. Na sequência do relato, Green evoca a pergunta que sempre ou bem dar ouvidos ou bem não dar a tal ou qual irredutibilidade da letra
lhe faziam e que sempre o aborrecia: “Você pensa em inglês ou em fran- estrangeira. Como eu dizia no início, há uma violência fundamental na
cês?” “Eu tinha uma resposta pronta”, continua ele: “Primeiro me diga experiência da relação, e que não é a violência operada pelo chamado
se pensamos com palavras.” (GREEN, 1987 p. 153-155) Fim da história de etnocentrismo da tradução. A violência fundamental dessa experiência,
Green. É o caso de nos perguntarmos o que resta dos pensamentos depois e que deflagra de fato a pulsão de traduzir, é, repito mais uma vez, a vio-
que os traduzimos em palavras. E, sobretudo, depois que traduzimos essas lência do original sobre o tradutor. Como lembra, aliás, Berman, em seu
seminário sobre a Tarefa de Benjamin, a tradução não é simplesmente
palavras por palavras em outra língua. Em todo caso, trata-se de nossa
uma circunstância fortuita da vida de um original, produzida por um tra-
eterna e espinhosa tarefa de seres de linguagem que nos leva irremedia-
dutor que, num belo momento, se interessaria por ele (BERMAN, 2008 p.
velmente a nos mover entre a imaterialidade assombrosa do sentido – o
52). A tradução é uma solicitação, uma exigência do original, que este
original primeiro de Rosa? – e a materialidade literal das palavras.
impõe justamente ao furtar-se a ela, à tradução, à relação, como eu tam-
De todo modo, é a partir dessa tensão entre original e tradução que
bém já disse antes. E é ao furtar-se a ela que esse original violenta a língua
o original se revela como passível de múltiplas determinações em si. Ou
do tradutor, atingindo assim a estrutura etnocêntrica da cultura do tradu-
seja, que o literal se desdobra em outras letras, refigurando-se, ganhando
tor, em seu narcisismo, naquele “narcisismo das pequenas diferenças” de
e perdendo necessariamente predicações. Daí a célebre frase de Rimbaud
que falava Freud9 – e que consolida cotidianamente – e reativamente – a
ao responder sobre o que queria dizer seu Une saison en enfer, Uma esta-
inserção de cada um em sua própria cultura, por oposição às outras que
dia no inferno, na tradução de Ivo Barroso. Disse o poeta: “Eu quis dizer o
o rodeiam de forma mais ou menos próxima. Assim, se a tradução etno-
que isso diz, literalmente e em todos os sentidos” (RIMBAUD, 1914 p. 699).
cêntrica tem um caráter violento e traiçoeiro em relação ao estrangeiro,
Primeiro Rimbaud aponta a tautologia do sentido do literal: “eu quis dizer tal violência responde de certa forma a uma violência anterior: à violência
o que isso diz, literalmente”; para em seguida solicitar os sentidos da tra-
dução operada pela leitura e por sua proliferação figural, que ele marca
8 Ivo Barroso apresenta algumas dessas versões em seu blog (2011).
pela conjunção aditiva e... Ele diz: “literalmente e em todos os sentidos”. 9 Freud propõe a expressão em “O tabu da virgindade” (1918), a partir da reflexão sobre a
Essa proliferação se reflete, por exemplo, nas várias traduções em por- diferença sexual, e retoma-a mais tarde, sobretudo em seus textos sobre a cultura – parti-
cularmente em “O mal-estar na cultura” (1930) e “Moisés e o monoteísmo” (1939) – para
tuguês da palavra saison, do título: estadia, estação, temporada, época, refletir sobre a (in)tolerância do homem em relação ao semelhante.

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do original sobre a língua do tradutor. Desse ponto de vista, será que não experiência vertiginosa de linguagem entre as duas línguas, suspendendo
poderíamos apelidar a tradução etnocêntrica de Reaktionsbildung, a for- o fluxo contínuo de ambas. Assim, da mesma maneira que o ato de hos-
mação reativa freudiana? pitalidade reivindicado por Derrida, o ato tradutório não é voluntário,
Mas para nos aproximarmos do fim, persistamos ainda um pouco mas imposto por uma violação da soberania, que não se trata de acatar
nessa analogia com Freud e a trama de traduções que constitui a interpre- ou não, com maior ou menor boa vontade. É, digamos, uma espécie de
tação psicanalítica. Pensemos na Ersatzbildung, na formação substitutiva. irrupção significante com que o sujeito-tradutor tem que se haver à sua
No âmbito do trabalho analítico, o sentido que determina tal formação própria revelia. É por isso que a relação de hospitalidade é, como reivin-
e que ela de certa maneira traduz – o sentido do original – só pode ser dica Derrida, incondicional (DERRIDA, 1997), e não porque seja motivada
construído a partir da rede de associações que ela desencadeia. Temos por algum imperativo ético que teria levado alguém a decidir que ela o
aí dois níveis de tradução.10 uma primeira tradução, digamos, simbólica fosse, que ela fosse incondicional, por alguma espécie de generosidade,
– a Ersatzbildung, a formação que “substitui” uma forma original cujo de boa vontade, de tolerância ou de altruísmo, como eu dizia no início,
sentido de algum modo violenta o sujeito e de que ele não é capaz de se que seriam intrínsecos a um tradutor empírico qualquer ou a uma certa
apropriar integralmente; e a tradução dessa tradução propiciada por meio posição de tradutor. Assim, o que está em jogo na experiência-limite da
de uma rede de associações que só se materializa a posteriori, nachträ- relação não é a incorporação de recursos e de valores de uma língua, de
glich como diria Freud (ou “só-depois”, conforme a tradução brasileira de uma cultura, por outra, como queriam de certa forma os alemães nos
MD Magno),11 em função da instabilidade da primeira tradução. E que séculos XVIII e XIX. A relação vale não tanto como experiência da incor-
retrama as ligações associativas entre o suposto original e a primeira tra- poração ou da contaminação de diferenças, mas, sobretudo, como expe-
dução, impondo um processo interminável de retraduções. O que vemos riência da afirmação da sua irredutibilidade, da irredutibilidade das dife-
aí no ato de tradução psicanalítica é, ao mesmo tempo, uma “produção renças. Fazendo com que a tradução seja necessariamente interminada e
retrospectiva das pré-condições para a tradução” (BENJAMIN, 1989 p. 46) interminável. Ao menos para aqueles que têm – e para quem sempre se
e a inseparabilidade do original de suas sucessivas e infinitas traduções. impõe – mais de uma língua.
Uma relação entre representações que se infinitiza por sua própria natu- À guisa de conclusão, eu diria que o grande mérito da atual tendên-
reza conflituosa. Em suma – e retomo a ideia do início –, talvez tal ana- cia crítica a que eu me referia no início, na área dos estudos da tradução,
logia com a noção de formação substitutiva possa nos ajudar a pensar a tendência crítica ao etnocentrismo necessariamente presente em toda
aquela tradução que o tradutor faz à sua própria revelia de um original tradução, é o de levar o leitor que não conhece a língua do original a sus-
que o assalta, deflagrando um processo infinito de retorno de um original peitar, a intuir essa violência original do processo e, consequentemente, a
que sempre revela e reivindica outra rede de determinações, atualizando, suspeitar e a intuir também a dimensão intrinsecamente interminável da
assim, a tensão irredutível da relação tradutória. tarefa do tradutor, que é efeito dessa violência. E, nesse sentido, estimu-
Da mesma maneira, como vimos, no que concerne à experiência da lar esse leitor a aprender línguas estrangeiras. Pois é isso que pode fazer
tradução de que estou tratando aqui, só há relação se houver violência, e face a uma das ambiguidades do crescimento da atividade da tradução, a
isso não passa por uma decisão, por um arbítrio. A relação já se dá a par- um de seus aspectos negativos: como chama a atenção Emily Apter, “se
tir da violência da língua outra sobre a língua própria, produzindo uma a tradução é considerada essencial para a disseminação e a preservação
da herança textual, ela também pode ser entendida como um agente de
10 Inspiro-me aqui em parte nas reflexões de Andrew Benjamin (1989) no capítulo exterminação linguística” (APTER, 2006 p. 4). Afinal, sem aquelas suspei-
“Psychoanalysis and translation”. Cf. p. 109-149 e, em particular, p. 143-147. tas, qual o sentido de aprender a língua estrangeira em nossos tempos em
11 Cf. verbete “Posterioridade, posterior, posteriormente” em LAPLANCHE, & PONTALIS (1983, p.
441-445). A tradução brasileira de MD Magno foi proposta a partir da tradução francesa do
que por um lado a atividade de tradução se intensifica, dando-nos a ler
termo por Jacques Lacan – “après-coup” (LACAN, 1979). “generosamente” (digo generosamente entre aspas, não sem uma certa

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ironia, bem entendido...) toda espécie de estrangeiro – mas isso sobre- APTER, Emily. The translation zone: a new comparative literature. New Jersey:
tudo tendo como língua alvo as línguas das economias mais poderosas Princeton University Press, 2006.
– e ainda nestes nossos tempos em que, por outro lado, as ferramentas de BARROSO, Ivo. Disponível em: <http://gavetadoivo.wordpress.com/2010/10/06/
tradução se automatizam e se tornam cada vez mais eficazes? a-proposito-de-um-titulo/>. Acesso em 08 jul. 2011.
Por isso deve-se continuar, sim, é claro, a estimular toda espécie de BENJAMIN, Andrew. Translation and the nature of philosophy. A new theory of
tradução, mas deve-se sobretudo estimular a formação incessante de tra- words. London/ New York: Routledge, 1989.
dutores, destes homens que, longe de apagar as fronteiras entre as línguas, BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Quatro traduções para o português.
as conservam, ao mesmo tempo em que experimentam a possibilidade de Organização de Lúcia Castello Branco. Traduções de Fernando Camacho,
Karlheinz Barck e outros, Susana Kampff Lages e João Barrento. Belo Horizonte,
circular entre elas. Em um livro publicado em 2010 na França, e no qual Fale/UFMG, 2008.
faz, não sem polemizar, o “elogio das fronteiras”, Régis Debray escreveu:
BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha
A fronteira, este fortificante, nos dá vontade de nos desenraizar, faz recuar a romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: EDUSC, 2002.
saciedade terminal. De sua salvaguarda depende a sobrevida não de “cida- BERMAN, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução
dãos do mundo”, clichê vaidoso e que não engaja a coisa alguma, mas cida- de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Rio de Janeiro:
dãos de vários mundos ao mesmo tempo (dois ou três, já não é mau), e que 7Letras, 2007.
se tornam, por aí mesmo, estes fecundos andróginos que são os homens-
-fronteiras (DEBRAY, 2010 p. 93). BERMAN, Antoine. L’Âge de la traduction. “La tâche du traducteur” de Walter
Benjamin, un commentaire. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes,
Esses “fecundos andróginos”, esses “homens-fronteiras”, que circu- 2008.
lam não apenas nas fronteiras nacionais, mas nestas zonas “in-transla- CAMPOS, Haroldo de. “O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Teoria da
tion” a que se refere Emily Apter, nestas zonas em translação/tradução, linguagem em Walter Benjamin”. Revista USP, n. 15, set/out/nov. 1992.
zonas intersticiais em que se desnaturaliza o espaço confortável de toda CASSIN, Barbara. “Plus d’une langue. Appel pour une politique européenne de
espécie de pertencimento identitário, esses homens-fronteira são primei- la traduction”. Disponível em: <http://www.dglflf.culture.gouv.fr/publications/
References10_Traduire.pdf>. Acesso em: 05 set. 2010.
ramente e acima de tudo tradutores. Quando submetidas no dia a dia
DEBRAY, Régis. Éloge des fontières. Paris: Gallimard, 2010.
à violência da tradução, as reificações identitárias, solidamente calcadas
nas identidades linguísticas, se desestabilizam. E uma centelha de hete- DERRIDA, Jacques. De l’hospitalité. Paris: Calmann-Lévy, 1997.
rogeneidade, em letra vinda de alhures, pode nos levar a modular nossa GREEN, Julian. Le langage et son double. Paris: Seuil, 1987.
hostilidade de princípio ao estrangeiro. GUIMARÃES ROSA, João. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradu-
Para concluir em duas frases, eu diria apenas que não é exatamente tor italiano Edoardo Bizzarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte:
lendo traduções mais ou menos etnocêntricas que nos transformamos em Editora UFMG, 2003.
humanos mais abertos e mais tolerantes com o estrangeiro... Precisamos LACAN, Jacques. O seminário, livro I, Os escritos técnicos de Freud. Tradução de
acima de tudo nos tornarmos todos, e cada vez mais, ao menos virtual- MD Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

mente, homens-fronteiras, tradutores, para, diante da violência que só LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste. Vocabulário da Psicanálise.
entre línguas podemos experimentar, sermos capazes de dobrar aqui e ali, Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
de fato, nossas pequenas e grandes diferenças, com toda a ambivalência RICOEUR, Paul. Sur la traduction. Paris: Bayard, 2004, p. 41.
que isso implica, e vislumbrar, assim, outras possibilidades de vida. RIMBAUD, Isabelle. Rimbaud mystique. Paris: Le Mercure de France, 1914.

referências bibliográficas

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Psicanalista traidor? Pontuações a partir infidelidades conjugais, as deslealdades com os amigos, enfim, externam
essa condição humana que também é expressa pelos registros históricos
da prática psicanalítica e pelos dramas na Literatura. Há também uma autotraição do sujeito em
Maurício Eugênio Maliska análise, pois mesmo quando ele pensa estar dizendo a mais pura verdade
sobre si, ali ele se trai, pois em seu discurso surge algo que o denuncia,
algo que o revela. Freud (1905, p. 78) mostra isso numa passagem do Caso
Dora. Diz ele: “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir fica conven-
cido de que os mortais não conseguem guardar nenhum segredo. Aqueles
cujos lábios calam denunciam-se com as pontas dos dedos; a denúncia
lhes sai por todos os poros.” É interessante notar como a traição traz algo
da denúncia, da entrega. Nesse caso, o sujeito se denuncia, se entrega,
mas também há a denúncia de outro ou então a denúncia/entrega de sua
própria traição. Isso vem ao encontro do sentido popular da origem latina
traditione, na medida em que essa significa “entrega” (FERREIRA, 2004).
A citação de Freud também traz a ilusão do segredo, ou seja, ela marca a
Parto do desgastado ditado: traduttore, traditore! não para me ater à impossibilidade de guardá-lo na medida em que a infidelidade vaza pelos
posição do tradutor, mas pretendo lançar algumas questões relativas ao poros da pele. Dessa forma, o sujeito é poroso, furado feito uma peneira,
traidor. Mais especificamente, me interessa articular a noção de traidor logo, não se consegue represar um segredo, ele vaza por algum lugar.
com a função do psicanalista na sua prática clínica. Por um lado, essa entrega tem o sentido de delatar; por outro, pode
De algum modo muito especial, o traidor é uma figura que chama ser entendida como transmissão, cessão, ato ou efeito de entregar-se, ou
atenção, pois envolve uma infidelidade, uma trapaça, uma desconfiança. seja, pode haver aí algo muito importante para a análise na medida em
Ao longo da história há exemplos clássicos de traidores: Judas traiu que ocorre uma entrega do sujeito ao processo de análise. O sujeito abre
Cristo, Brutus traiu Júlio César, Joaquim Silvério dos Reis traiu os incon- mão do narcisismo do autoconhecimento para poder ceder algo de si
fidentes mineiros, entre tantos outros menos conhecidos que protago- para o outro. Em outras palavras, o analisante precisa se entregar à análise
nizam os dramas noveleiros e as tramas de amor e ódio. O interessante ou então entregar parte de si para o analista e isso começa com a própria
é que em uma das definições de traidor apresentadas pelo Aurélio apa- voz. Esse objeto a tão caro e precioso, que muitos analisantes insistem
rece: “2. Perigoso, com aparência de seguro.” (FERREIRA, 2004 p. 1973). É em reter como um objeto pulsional, autoerótico, deve ser dado ao outro
muito interessante pensarmos nessa “aparência de seguro”, pois a traição (analista) na análise. A recusa dessa entrega são os famosos mutismos por
enquanto sinônimo de deslealdade, infidelidade, marca que na infideli- parte dos analisantes, que aparecem no imaginário disfarçados de timi-
dade há fidelidade, assim como na deslealdade há lealdade; é necessário dez. É fundamental que o sujeito se entregue à análise, se entregue aos
conceber uma negação expressa na partícula des ou in, ou seja, para trair processos inconscientes e nessa entrega apareçam as traições, sejam as
é necessário ter sido fiel e leal. A traição implica num pertencimento a um autotraições ou aquelas cometidas contra alguém. Ainda entre essas duas,
determinado grupo, agremiação, compromisso com algo ou alguém, ou a pode-se dizer que a primeira (a autotraição) é inconsciente, e a segunda,
algum compartilhamento de ideias ou saberes. Nesse sentido, o traidor é aquela cometida contra alguém, pode ser tanto inconsciente como cons-
uma “espécie” de anjo caído, aquele que profana algo do sagrado. ciente, pois o sujeito, muitas vezes, sabe que está traindo, ainda que possa
Na clínica psicanalítica a traição é prato do dia, pois os analisan- não saber o porquê. Em muitas infidelidades conjugais, o sujeito inclusive
tes confessam com muita frequência suas traições profissionais, suas jura: “eu não gostaria de trair minha esposa”, mas confessa que é tomado

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por uma força incontrolável, maior do que ele. Esta força é inconsciente, Harari (2008), em seu texto O Anti-Hamlet, trata de um comentá-
mesmo que o ato de traição seja consciente. rio acerca da leitura da obra de Freud, feito por Lacan, por ocasião de
Até o momento faço uma pequena aproximação do tema, na medida uma palestra em Londres no ano de 1975. Neste comentário, Lacan elo-
em que almejo tratar da traição do lado do psicanalista e não esta do sujeito gia a peça Rosencrantz e Guildenstern morreram (1966) do dramaturgo
em análise. Nessa direção, de tempos em tempos, costumo ouvir de leigos Tom Stoppard, pois o autor parte de uma leitura inventiva e inovadora de
a seguinte pergunta: “Você é psicanalista ortodoxo?” Pergunta essa que é Hamlet, dando um outro tom para a peça de Shakespeare. Harari, a partir
frequentemente direcionada para os analistas. Há, contudo, uma série de daí, argumenta que Stoppard, via Lacan, nos ensina uma maneira de ler
equívocos nessa questão. Doxa é uma opinião, então tratar a psicanálise um clássico, uma maneira inventiva que faz da letra uma substância viva
como doxa já é um equívoco, pois o analista não emite sua opinião nem e operante. Para Lacan, Stoppard leu Hamlet de modo a transformá-lo
sobre o sujeito, muito menos sobre aspectos da sua vida íntima. Tratar a em algo para além de Hamlet. Stoppard subverteu Hamlet para ser ainda
prática psicanalítica como ortho, no sentido daquilo que é certo, exato, mais hamletiano. Para Harari, isso que Lacan nos ensina, apoiando-se no
absoluto, também não parece condizer com a prática da psicanálise, uma movimento de Stoppard, é a maneira de ler Freud, é o que o próprio Lacan
vez que se trata de uma prática atravessada e recortada por falhas, falta, fez com Freud: “[...] detectou noções – aparentemente – secundárias, e
dizeres múltiplos, discursos polissêmicos, abertos ao inesperado, à equi- as elevou à dignidade de conceitos maiores [...]” (HARARI, 2008 p. 23).
vocação. Parece impossível pensar uma ortodoxia numa prática psicanalí- Lacan não leu Freud como letra morta, nem tão pouco o imitou ou tentou
tica, uma vez que não se trata nem da opinião (doxa), nem do certo/exato reproduzi-lo, mas o leu de um modo inventivo e freudiano. Para Harari
(ortho). Lacan (1998) em Função e campo da fala e da linguagem faz uma (2003), baseado no próprio dizer de Lacan (2007), isso tudo significa que
contundente crítica a uma outra psicanálise que se ocupava da ortodoxia. Lacan prescindiu do Nome-do-Pai se servindo dele, ou seja, quanto mais
Para o autor (1998, p. 247), “fica-se preso às convenções, na impossibili- Lacan se afirmou nessa filiação a Freud, mais se serviu de Freud, e pôde,
dade de saber, sobre a doutrina, dizer o que quer seja”. Lacan (1998), nesse com isso, ir além dele nessa leitura inventiva e transformadora.
sentido, foi muito claro quando disse que todo o analista deve reinventar a Lacan, de algum modo, traiu Freud ao não seguir à risca suas reco-
psicanálise com cada analisante. Isso mostra o quanto ela está aberta à (re) mendações tal como faziam os psicanalistas da Associação Internacional
construção, à (re)novação, à (re)invenção. Talvez a pergunta sobre a orto- de Psicanálise (IPA). Por exemplo, nessa instituição, pregava-se que a ses-
doxia possa ter um sentido de saber se o psicanalista segue à risca os ensi- são deveria ter 50 minutos de duração, isso porque Freud (1913) mencio-
namentos de Freud, se ele cumpre com os dizeres do mestre vienense. Pois nou que dedicava uma hora para cada paciente. Os dez minutos restantes
bem, esse é o ponto fundamental em que quero me deter. O que significa seriam para a saída de um paciente e a entrada de outro. Lacan leu esse
seguir à risca os ensinamentos de Freud e, consequentemente, não traí-lo? enunciado de Freud no sentido de dedicar para cada paciente um horá-
Freud jamais colocou seus escritos como um dogma a ser seguido, falava rio, para não se confundir com a prática médica, em que o paciente difi-
em recomendações. Ele próprio modificou muitos pontos de sua teoria, em cilmente é atendido no horário marcado. Lacan (1998) entendia que se
um movimento de uma constante reformulação, ou seja, não tomando suas deve reservar um horário para cada paciente, mas quanto tempo durará a
elaborações como algo fechado, encerrado em si mesmo. Lacan (1999, tra- sessão, isso dependeria de seu próprio andamento. Se Lacan traiu Freud,
dução nossa), diante disso, recomenda: “sigam o exemplo, e não me imitem”, nesse momento, é por não tomá-lo ao pé da letra, é por entender que uma
ou seja, não é para imitar o analista, mas sim um fazer com(o), um fazer ao das características do inconsciente é a atemporalidade, então, por que
modo de. A recomendação acima orienta os psicanalistas a fazerem com(o) colocar um tempo cronológico na sessão, sendo que essa está subordinada
Lacan, sem imitá-lo, da mesma forma que ele fez com(o) Joyce e Freud, sem ao inconsciente, que não segue essa temporalidade? Lacan subverte Freud
imitá-los. Talvez seja isso que ele (2007, p. 88, grifo do autor) também qui- para ser ainda mais freudiano. Para Vanier (2005), os analistas da IPA se
sesse dizer ao citar Picasso: “Eu não procuro, acho”. equivocavam, pois na tentativa de prorrogar Freud, o anulavam.

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Parece que esta traição é necessária, afinal, a psicanálise não é uma primeira entrevista, foi logo falando que morava na rua e que não tinha
religião em busca de fiéis, mas uma prática clínica em que, nas palavras condições de pagar uma análise, mas que ouvira dizer sobre a possibili-
de Lacan (1998, p. 253), “a arte do analista deve consistir em suspender as dade de um preço diferenciado. Após algumas palavras, ela lhe propõe
certezas do sujeito, até que se consumem suas últimas miragens”. Quando então um valor simbólico de cinco euros. O analista recusa a proposta
Lacan (1991, p. 59) aponta que “[...] a análise, é o que se espera de um psi- da moça e diz que não vai lhe cobrar, que vai lhe atender gratuitamente.
canalista” ou “o analista pode fazer o que quiser desde que o faça como Quando relatava o caso, durante o referido seminário, Vivès se volta para
analista”, não está buscando definições circulares que fazem um giro e vol- o público e confessa que desobedeceu Freud, uma vez que Freud (1913) é
tam ao mesmo lugar, mas dizendo do caráter não-estático da psicanálise e muito explícito em alertar sobre o fracasso de um tratamento gratuito, pois
que sua definição está suspensa em cada intervenção, com cada analisante. é necessário, como foi dito anteriormente, que o sujeito dê algo de si para
Suspensa para ser construída com cada analisante, algo que se afasta de a análise funcionar. Vivès justificou seu ato dizendo que cinco euros era o
uma noção de dogma. Isso mostra a prática psicanalítica aberta ao ines- preço que as coisas custavam na rua, ou seja, cinco euros era a sua moeda
perado, aberta às possibilidades de intervenção, de invenção, não se defi- de troca, era isso que ela recebia de esmola e era isso que ela pagava para
nindo num único ponto. Por isso, a psicanálise é o que se espera de um comer ou para comprar drogas. Aceitar a proposta de cinco euros seria
analista e não uma certeza e uma definição válida para todos e de igual instalar no interior da análise a mesma repetição pulsional e sintomática
forma. Harari (2008) critica uma definição que classifica de “paratodo”, de seu fantasma posto em cena na rua. Ele quebra com isso ao negar a
ou seja, algumas abordagens definem a condição humana num paratodo, proposta da paciente, e tenta nas intervenções fazer com que ela possa dar
paratodo sujeito...., paratodo caso de...., subtraindo a singularidade de algo de si para a análise. Isso era uma tentativa de provocá-la, verificar se
cada sujeito e subtraindo as possibilidades do fazer psicanalítico aberto a ela tinha condições de dar algo verdadeiramente seu para a análise, e não
equivocação. Para Lacan (1998) o que se apresenta para o analista é a tenta- dar uma esmola para o analista. Esta jovem começou, então, uma análise,
ção de abandonar o fundamento da palavra em função de um formalismo em que ela vinha, era instigada a falar, por vezes confrontava a realidade
levado às raias de um cerimonial, ou mesmo de uma suposta fidelidade, da análise com a da rua. Falava, por exemplo, de um empuxo que sentia
que ao se colar no mestre anula seu próprio dizer. Para não abandonar a ao vir para a análise quando passava em frente a outros moradores de rua,
função e o campo da fala e da linguagem em Psicanálise parece impor- parecia que sentia seu corpo sendo puxado para a rua, mas lembrava da
tante se descolar do mestre, poder escutá-lo de modo singular, traí-lo para voz do analista, não do que ele dizia, mas de sua voz e isso parecia servir
poder haver o que chamamos de uma transmissão em Psicanálise. como uma invocação. De modo geral, a análise transcorria em progresso
Para finalizar, trago um exemplo clínico em que aparece a traição do até o dia em que, após uma intervenção, ela questiona: “Por que o senhor
psicanalista de forma clara na clínica psicanalítica. Trata-se de um caso não me cobra?” Já percebi, pelas suas intervenções, que o senhor não é
relatado por Jean-Michel Vivès (informação verbal), psicanalista fran- nenhuma alma caridosa. Algum dia irá me cobrar, e eu terei que lhe pagar,
cês, durante um Seminário em 2007 no Rio de Janeiro, promovido pelo de algum modo, por esse serviço. Nesse momento, o analista encerra a ses-
Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise. Vivès, na ocasião, relatava o são. Na próxima sessão, a analisante vem decidida a interromper a análise
caso de uma moradora de rua assistida pelo Serviço Social da munici- e afirma que somente voltaria quando pudesse pagá-la. Após um ano, ela
palidade de Toulon (França). Essa moça resistia a sair das ruas e entrar retorna. Agora, morava em uma pensão e tinha um emprego, podia então
nos programas assistenciais oferecidos pelo Serviço de Assistência Social. pagar a análise. Sua análise durou, ao total, sete anos.
Num determinado dia, um pouco ao acaso, Vivès conversava com uma O exemplo parece mostrar claramente como a desobediência a Freud
das Assistentes Sociais que lhe comentava sobre o caso dessa moça. O em função de uma escuta singular do analista faz a psicanálise avançar.
analista se interessou pelo que escutava e propôs à Assistente Social que Desobedecer, aqui, não é um gesto rebelde e inconsequente, mas alinhado
lhe encaminhasse o caso. A jovem apareceu em seu consultório para uma àquilo que disse Lacan (1991): “O analista pode fazer o que quiser desde

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que o faça como analista”. O exemplo mostra a prática da psicanálise de A demanda ‘silenciosa’ de Pierre Rivière.
modo pulsante e vivo, em que a intervenção não é a reprodução de um
modelo, mas a invenção viva e operante de uma escuta singular, marcada Da autobiografia ao cinema
por um corte e o estabelecimento de um outro discurso. Traição, aqui, Junia Barreto
soa quase homófono a tração (potência pulsional), atração (no sentido
daquilo que puxa, que atrai para uma escuta, para uma posição de ana-
lista). Se isso é traição, pois bem, sejamos traidores; os fiéis sempre se ilu-
dem e caem em constelações imaginárias. Trair é não seguir um modelo
dado, pronto, paratodo o sempre; deixemos isso para as religiões, sejamos
traidores, quer os psicanalistas ou os tradutores.

referências bibliográficas
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua por-
tuguesa. 3 ed. Curitiba: Positivo, 2004.
introduzindo
FREUD, Sigmund. Fragmentos da análise de um caso de Histeria (1905 [1901]).
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. O caso de Pierre Rivière, jovem camponês que degolou sua mãe, sua
V. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
irmã e seu irmão no início do século XIX, em Aunay, na França (precisa-
______. Sobre o início do tratamento (novas recomendações sobre a Técnica da mente em 03 de junho de 1835), interessa aqui em sua passagem, em sua
Psicanálise I) (1913). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud. v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
tradução do relato memorial do próprio Rivière, que em princípio trata-
remos enquanto gênero literário – a autobiografia, para o texto fílmico
HARARI, Roberto. Como se chama James Joyce? A partir do Seminário Le sin-
thome de J. Lacan. Salvador e Rio de Janeiro: Ágalma e Companhia de Freud, dirigido por René Allio, de 1976. O filme foi concebido a partir do dos-
2003. siê constituído, estudado e anotado por Michel Foucault e um grupo de
______. O Psicanalista, o que é isso? Carlos A. Remor, Inezinha Brandão Lied, pesquisadores do Collège de France, cuja publicação ocorreu em 1973, pela
Tânia V. Nöthen Mascarello (Org.). Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008. coleção Archives, dirigida por Pierre Nora. O memorial de Pierre Rivière foi
LACAN, Jacques. La tercera. In: ________. Textos e intervenciones 2. Buenos aí inserido, integrando o dossiê publicado por Foucault. O incômodo surge
Aires: Ediciones Manantial, 1999. (versão eletrônica). do silenciamento de Rivière no dossiê (pois seu discurso não é efetivamente
______. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Trad. Sérgio Laia. ouvido nem pelos corpos jurídico e médico da época, nem pelos consti-
Jorge Zahar, 2007. tuidores do dossiê) e da indisponibilidade de escuta do outro, enquanto a
______. A direção da cura e princípios de seu poder. In: ______. Escritos. Rio de demanda de Pierre Rivière, que leva à consumação do crime, nos parece
Janeiro: Jorge Zahar: 1998: 591-653. ser a demanda de resolução do eterno conflito entre o pai e a mãe, diante
______. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. In: ______. do qual ele funciona como uma espécie de oficial de justiça. Tal incômodo
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1998: 238-325. diante do ‘silenciamento’ do sujeito no dossiê nos parece, portanto, encon-
______. Le Séminaire, livre XVII: l’envers de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1991. trar melhor acolhida na versão fílmica de Allio, quando, de fato, o discurso
VANIER, Alain. Lacan. São Paulo: Estação liberdade, 2005. autobiográfico de Rivière é colocado em primeiro plano, traduzido em
imagens e som, assim como sua demanda de escuta, evidenciada na tela,
parece, enfim, encontrar lugar de enunciação, o que acentua, a nosso ver,

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a necessidade de uma leitura de cunho psicanalítico do caso, para além de leituras presentes, verdadeiras camadas de textos que se incrustam,
dos aparatos médico e jurídico constitutivos do dossiê de Foucault. Nossa não o constituindo, precisamente, enquanto obra ou texto, mas como a
intenção não é empreender aqui uma tal leitura, mas ressaltar sua ‘falta’ no representação da manifestação inescrutável de une lutte singulière, un
dossiê da equipe de Foucault e destacar a tentativa da câmera de Allio de affrontement, un rapport de pouvoir, une bataille de discours et à travers des
dar voz ao sujeito e também de representar com o discurso fílmico algumas discours,2 segundo considera o próprio Foucault. (FOUCAULT, 1973 p. 12)
das manifestações do inconsciente presentes no caso.
o memorial de pierre rivière, uma autobiografia
o caso pierre rivière e o dossiê de foucault
Na medula do dossiê se encontra o memorial de autoria de Rivière,
O caso de Rivière tomou vida durante o seminário de Foucault em escrito de livre iniciativa na casa de detenção da cidade de Vire, na França,
torno das relações entre psiquiatria e justiça penal, após ter sido encon- entre 10 e 21 de julho de 1835 (em onze dias ao todo). Pierre Rivière inti-
trado pelos pesquisadores do grupo nos Annales d’hygiène publique et tulou seu relato de Détail et explication de l’événement arrivé le 03 juin à
médecine légale, de 1836. No dossiê, organizado em seguida por Michel Aunay, village de la Fauctrie, écrite par l’auteur de cette action.3 No decor-
Foucault em torno do caso, o memorial escrito de próprio punho por rer das 75 páginas do memorial, divididas em duas (02) partes - Résumé
Pierre Rivière ocupa uma pequena parte do todo (apenas 75 das 350 pági- des peines et des afflictions que mon père a souffertes de la part de ma mère
nas), somando-se então à caracterização feita do crime em si e da prisão depuis 1813 jusqu’à 1835 e [...] abrégé de ma vie particulière et des pensés
na qual esteve o réu, e também à instrução do processo, aos pareceres qui m’ont occupés jusqu’à ce jour,4 Rivière contará em seu relato ‘como’ e
médico-legais, ao processo propriamente dito e à documentação relativa ‘o que’ o levou a matar, com golpes de foice, três membros de sua família,
à sua estada na prisão. As diferentes peças constitutivas do dossiê estão sua mãe, sua irmã e seu irmão.
dispostas cronologicamente, figurando antes e depois do memorial de Ao mesmo tempo em que o texto se constitui em uma eloquente
Rivière, este, no centro do conjunto, o que estabelece ao menos três gran- explicação do crime do qual ele é o autor – o que configura a narrativa de
des camadas textuais aí incrustadas: as peças relativas ao crime e à ação Rivière como circunstancial – é também uma espécie de narrativa auto-
judiciária, o memorial do condenado e as notas e reflexões tecidas por biográfica, que revela o prazer do autor de se escrever (de escrever a si),
Foucault e pelos diferentes membros da equipe do Collège de France. de escrever seu crime, escrever e inscrever, então, sua própria identidade
O crime de parricídio cometido por Rivière lhe custou, à época, a marginal5 produzindo, por sua vez, um forte efeito de leitura no leitor
condenação à pena de morte, mas obteve clemência real e teve a pena do relato, incluindo aí, evidentemente, Foucault e sua equipe. Apesar de
comutada para prisão perpétua, o que é minuciosamente exposto no dos- algumas rupturas de tom, a narrativa de Rivière não tem nada de caótica,
siê, assim como as condições da própria morte do jovem Pierre Rivière muito pelo contrário, pois chama a atenção do leitor pela firmeza de sua
que, apesar da comutação da sentença, se enforcou em 22 de outubro de composição.
1840, aos 25 anos.
A heterogeneidade do material entrelaçado pelo grupo foucaultiano
no dossiê (intitulado originalmente, em sua publicação, de Moi, Pierre 2 Em português: (...). uma luta singular, um afrontamento, uma relação de poder, uma bata-
lha de discursos e através de discursos.
Rivière, ayant égorgé ma mère, ma sœur et mon frère… Un cas de parri-
3 Em português: “Detalhe e explicação do acontecimento ocorrido a 3 de junho em Aunay,
cide au XIXe siècle)1 se configura a partir das diferentes estratificações vilarejo de la Fauctrie, escrito pelo autor desta ação”.
4 Em português: “Resumo dos sofrimentos e aflições causados por minha mãe a meu pai de
1 Traduzido em português por, Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu 1813 a 1835”; “[...] resumo da vida particular e dos pensamentos que até hoje me ocuparam”.
irmão... Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault. 2ª ed. Trad. 5 É preciso lembrar que o século XIX se configurou como o século dos marginais
Denise Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 2013. e das marginalidades.

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Com a mise en place de sua breve autobiografia (que atinge seu ápice jurídicos e médicos. A equipe de Foucault se abstém de estudar e de inter-
enquanto gênero textual ao longo das quatro páginas do abrégé de ma pretar o texto e se justifica afirmando que “(...) ce mémoire (...) n’a rien
vie particulière et des pensés qui m’ont occupés jusqu’à ce jour), Rivière perdu de son étrange pouvoir qui est de prendre au piège toute interpréta-
revela publicamente os elementos que compõem o cerne do conteúdo de tion à prétention totalisante. Dévoile-t-il le sens caché d’un geste ou d’une
sua vida até consumar aquele que foi considerado como seu erro maior. parole, on ne peut en faire état sans se brûler les doigts (…) (Philippe Riot
Dentro de uma perspectiva autobiográfica, ele entrelaça alguns discur- apud FOUCAULT, 1973 p. 304).6 Os distúrbios psíquicos de Pierre Rivière
sos biográficos consumados em sua infância com discursos tecidos a seu carecem, portanto, de uma leitura psicanalítica de sua história de vida,
respeito pela opinião pública, e mesmo com as dúvidas suscitadas em marcada antes mesmo de sua difícil concepção, pelo total distanciamento
torno de sua figura pelas instituições do poder público. Entre apologia, do pai e da mãe, que se unem apenas em função do não-engajamento
requisitório e autobiografia, o discurso de acusação de Rivière contra a paterno no exército do imperador em 1813. Uma união oportunista mar-
própria mãe perde sua função ofensiva, em certo momento, e ganha um cada pela desunião parental, em constante estado de guerra declarada, o
tom defensivo no conjunto da estrutura discursiva. A mãe, culpada estig- que percorrerá toda a trajetória familiar e, sobretudo, a de Pierre Rivière.
matizada, se torna, então, vítima, produzindo, segundo Philippe Lejeune, Necessário também o empreendimento de uma leitura psicanalítica em
um desconcertante efeito de remanência no leitor (LEJEUNE, p. 08). torno dos fenômenos psicológicos envolvidos no crime (percepção total-
Consideramos, então, a possibilidade de pensar tal narração como mente ausente no dossiê), e que atentaria à escritura do memorial (há
uma tentativa (um projeto) de autobiografia, partindo da proposta de ausência de uma real ‘escuta’ do réu/paciente/autor), assim como ao estilo
Lejeune de tratar a autobiografia, grosso modo, como uma narrativa desse ‘autor’ – estilo de aparente distância, preso aos fatos e com poucos
retrospectiva em prosa que um sujeito real faz de sua própria existên- comentários, causando grande estranhamento ao leitor –, à ortografia e
cia, ao focar sua vida individual e, em particular, a estória de sua perso- à pontuação empregadas em seu texto, tanto quanto às notas aí inseri-
nalidade (LEJEUNE, 1975 p. 13-46). Para constituir tal definição, Lejeune das; o todo sendo analisado enquanto significantes. Realizar uma leitura
considera a interação de determinados fatores, como o registro da lin- do memorial que poderia se dar nos moldes da leitura de um sonho ou
guagem, o objeto tratado no texto, a situação/identidade do autor e a do discurso de um analisando (o memorial como equivalente ao con-
posição/identidade do narrador. Obviamente que a presença e interação teúdo manifesto do sonho, escondendo aí seu conteúdo latente), ou seja,
dos diferentes fatores entre si influem na identificação de categorias/gêne- empreender uma leitura das associações inconscientes dentro do próprio
ros aparentados à autobiografia (como memórias, biografia, confissões, texto, único discurso de Rivière sobrevivente aos fatos e à sua própria
romance pessoal, diário, poema autobiográfico, testemunhos). Para que a morte. A falta de leitura e análise do discurso autobiográfico de Pierre
autobiografia se configure é preciso que haja identidade entre autor, nar- Rivière, figurante obscuro do dossiê de Foucault, nos parece mascarar, de
rador e personagem. É a partir daí, em consonância com a perspectiva de certa forma, o crime e seu contexto.
Lejeune, que consideraremos aqui o relato de Rivière, do qual ele é autor, A partir das notas feitas durante o seminário de Foucault, em 1973, na
narrador e personagem, enquanto substrato literário autobiográfico, ape- École des Hautes Études o memorial da psicanalista Élisabeth Geblesco7
sar da mistura de registros presentes ao longo do memorial. em torno do caso tenta preencher esta lacuna e propõe fazer do relato
de Rivière uma leitura de um texto (ela aí postula que Pierre Rivière não
a ausência da perspectiva psicanalítica no dossiê 6 Em português: “ (...) esse memorial (...) não perdeu nada de seu estranho poder, que é o de
pegar numa armadilha toda interpretação de pretensão totalizante. Desvenda ele o sentido
Tal memorial é marcado por uma forma narrativa bastante particu- oculto de um gesto ou de uma palavra, não se pode fazer dele registro sem queimar os
dedos (...).”.
lar, que entendemos necessitar ser lida a partir de todos os ‘ângulos’ do
7 Memorial apresentado e discutido no artigo de ALEKSIĆ, Branco, “Présentation du dossier
episódio homicida e não apenas sob a perspectiva de aspectos criminais, inédit d’Élisabeth Geblesco sur Pierre Rivière, 1973”, 2014.

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dissocia o ato da escritura do ato de matar), atenta aos grandes traços a saber, a própria Geblesco. O memorial de Geblesco [apud ALEKSIĆ, p.
definidores da paranoia enquanto “entidade mórbida”, segundo a defini- 04] parte de reflexões tecidas em torno do ensaio de Lacan, Motifs du
ção de Lacan. Isto é, um delírio intelectual que varia seus temas indo das crime paranoïaque,9 no qual Lacan delineia suas conclusões sobre o caso
ideias de grandeza às ideias de perseguição (no que, segundo Geblesco, se das irmãs Papin,10 que ela relacionará ao caso de Pierre Rivière, dada a
encaixaria o delírio de grandeza de Rivière), reações agressivas frequen- similitude das duas situações: os testemunhos médicos diante do tribu-
temente assassinas e evolução crônica. A proposta de Geblesco é de tout nal, tanto em defesa de Rivière quanto na defesa das irmãs Papin, con-
lire (de tudo ler), sob a perspectiva da psicanálise lacaniana, pois Rivière, vergiam quanto às hipóteses suscitadas em relação à parte hereditária
apesar de humilde camponês e advindo de um meio desfavorecido, é um das anomalias mentais e o delírio dos sujeitos, além da “influência das
leitor que constrói, através da justaposição de fragmentos de suas leituras relações sociais incidentes”11 nos fenômenos de ordem psicológica; e,
diversas, um imaginário oriundo de um fundo cultural coletivo (a partir especialmente, as “várias hipóteses quanto à anomalia [mental] presu-
das histórias que lê e de seus personagens). mida das irmãs”,12 tal como no caso de Rivière. Geblesco defende uma
Nos neologismos criados em sua utilização da linguagem, por convergência das principais hipóteses sobre a estrutura da psicose nos
exemplo, surgem os traços de sua ‘biblioteca’, constituída pela Bíblia, da dois casos, apoiando-se no que Lacan estabelecera em torno do affaire
obra filosófica oitocentista do Curé Meslier, de Shakespeare, Boulanger, das irmãs Papin: “uma a detém pelo desenvolvimento de uma ‘consti-
Holbach, La Mettrie; também das histórias sobre Bonaparte, dos alma- tuição’ mórbida, quer dizer, de um vício congênito do caráter; a outra,
naques, livros de geografia ou sobre o direito romano, um rico e signifi- nela representa os fenômenos em suas desordens elementares e momen-
cativo material a ser decodificado em seu discurso. Há ainda o que pros- tâneas da percepção (...) sintomas típicos do delírio tal como aquele da
pectar em torno do movimento e dos registros linguísticos de sua escrita incompreensão sistemática da realidade”.13 Lacan disse a respeito do caso
propriamente ditos, cujos manuscritos revelam que Rivière preenche a das irmãs Papin que somente os psicanalistas poderiam ter aí detectado
página literalmente, indo de alto a baixo e da esquerda para a direita, sem a existência e a atuação de desordens instintivas na base da motivação do
deixar qualquer espaço em branco, assim como rabisca trechos e palavras, crime: a perversão sadomasoquista e a inversão produzida pela hostili-
que, segundo Lejeune, poderiam ter explicações diversas conduzindo a dade em desejo (LACAN, 1972 p. 100-103). A intencionalidade dos crimes
diferentes interpretações: desde hesitações da memória de um texto pos- se resumiria então a uma vingança, que Lacan vai decodificar/traduzir
sivelmente memorizado, aos erros de cópia de algum rascunho ou meras desde 1934, no sentido de uma punição, mecanismo pelo qual também
correções de texto no momento em que ele é composto. advoga Geblesco para pensar o caso Rivière, trazendo à luz uma leitura
Texto escrito, mas que nos parece recitado, espécie de performance
entre o oral e o escrito, misturando o conhecimento de certos procedi- 9 In: Minotaure, n. 3-4, 1933-34, p. 25-28; apud ALEKSIĆ, Branco, 2014, p. 03.
mentos da retórica com o desconhecimento de normas básicas da escrita 10 L’affaire Papin, como o caso é conhecido na França, envolve o crime praticado por duas
(como o uso de maiúsculas ou parágrafos); enfim, um rico material que irmãs, trabalhadoras domésticas consideradas empregadas modelo, Christine e Léa Papin,
em fevereiro de 1933, na cidade de Mans, na França, contra suas patroas. O caso suscitou
pode ser lido também a partir de bases etnográficas. comoção e fascínio nas mais diferentes classes sociais, levando também Jacques Lacan,
As conturbadas relações de Foucault com a psicanálise pontuam ainda jovem, a refutar em seu artigo Motifs du crime paranoïaque: le double crime des sœurs
Papin, as conclusões da expertise criminológica, psiquiátrica e jurídica.
sua observação de 1976, quando diz, felicitando-se por ter dado voz a
11 Tradução nossa. Em francês: l’influence des relations sociales incidentes.
criminologistas, psicólogos e psiquiatras em torno do caso – à part une
12 Tradução nossa. Em francês: plusieurs hypothèses sur l’anomalie [mentale] présumée des
sotte, une psychanalyste, qui a prétendu que Rivière était une illustration sœurs.
même de la paranoïa chez Lacan (...)8 (FOUCAULT, 2001, nº 180 p. 98) – 13 Em francês: (…) l’une la tient pour le développement d’une ‘constitution’ morbide, c’est-à-dire
d’un vice congénital du caractère; l’autre en désigne les phénomènes dans ses troubles élémen-
8 Tradução nossa: (...) menos a uma sonsa, uma psicanalista, que pretendeu que Rivière era taires momentanés de la perception (…) des symptômes typiques du délire, tel que celui de la
a própria ilustração da paranoia em Lacan. méconnaissance systématique de la réalité. LACAN, apud ALEKSIĆ, 2011, p. 145.

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psicanalítica sobre a gênese psíquica do sujeito (e seus fantasmas) prete- Diferentemente, René Allio não apenas consagra o papel principal
rida no dossiê de Foucault. a Rivière e seu relato em sua película, como deixará claro que, para que
esse simplório camponês, perdido em um vilarejo inóspito da França pro-
a recriação fílmica funda, pudesse existir enquanto intelectual (que sabia e tinha gosto pelo
ler e escrever em meio a tantos analfabetos), para que ele pudesse deixar a
Michel Foucault não participou da realização do filme de René Allio; vida ordinária e, de fato, ter o direito de escrever, foi preciso empreender
ele explica que não foi uma questão de falta de solidariedade, mas que, ao o gesto ritual de empunhar uma foice; eis que da morte simbólica que
publicar o material recolhido, ele deixava livre curso às diferentes inicia- normalmente empreendemos, compreende-se pelo filme a necessidade
tivas da comunidade interessada no dossiê - Faites en ce que vous voulez,14 da passagem ao ato de Rivière.
era o seu princípio. Em Dits et Écrits II (FOUCAULT, 2001, 182 p. 106) seria Tal como no dossiê, o filme de Allio será tecido por diferentes regis-
publicado, mais tarde, uma entrevista de Foucault a François Châtelet, tros ou narrativas que se sobrepõem e que vão, sobretudo, confrontar o
na qual ele saúda a iniciativa do cineasta, assim como sua originalidade: aparelho judiciário – que vê Rivière como um monstro responsável por
René Allio en a fait quelque chose de bien, de grand. Le fait d’avoir fait jouer seus atos, e os especialistas de medicina legal – que o eximem da obri-
cela sur les lieux mêmes, par des acteurs amateurs qui étaient des paysans gação de responder por suas ações, pois creem na irresponsabilidade do
absolument semblables à ceux qui étaient contemporains de l’histoire, je alienado.
dirais presque par les mêmes personnages, tout cela est important. Le film
O filme dirigido por René Allio parte do dossiê de Michel Foucault,
n’a pas éloigné l’histoire de ce qu’elle a été. Il a permis, au contraire, que
l’histoire revienne à son point de départ. Cette histoire, nous la connaissons mas recria a história de Pierre Rivière a partir de sua própria ‘leitura’. A
parce que Rivière, soi-disant analphabète, l’a écrite. La manière dont Allio a película inicia com uma imagem parada da campanha francesa (árvores
fait jouer la voix off, dont il a voulu que tout ce qui est dit dans le film ait été desfolhadas em meio ao céu acinzentado) e o áudio revela o ambiente de
dit dans le mémoire (il n’y a donc aucune parole originale du film), c’est, je uma sala de audiência (como numa corte judicial), com três marteladas
crois, très nouveau.15
iniciando a sessão. Logo na abertura surge no letreiro e entre aspas, o
Foucault considerou extraordinário o fato de o filme tornar presente título da obra de Foucault, seguido imediatamente do anúncio – d’après
uma história de pessoas que, desde o século XIX, não tinham jamais tido a le dossier publié sous la direction de Michel Foucault, indicando de forma
palavra. Justamente a palavra que ele próprio e sua equipe, de certa forma, explícita a operação tradutória (texto → imagem+som), o que suposta-
cercearam a Pierre Rivière, ao acordarem um espaço intermediário ao mente daria talvez maior respeitabilidade ao filme, criado sob a égide de
seu discurso e ao não acrescerem ao memorial, também como parte inte- Michel Foucault, ‘pai’ do dossiê. A referência imediata ao dossiê o con-
grante do dossiê, subsídios de cunho psicológico/psicanalítico para se firma enquanto instância maior no processo tradutório que envolve o
pensar a enfermidade de Rivière (Foucault considera, em 1976, “insípido” caso Rivière e sua repercussão social na mediação processada por dife-
o discurso de psicólogos e psiquiatras) (FOUCAULT, 2001, 180 p. 98). rentes áreas do conhecimento e das artes (direito, medicina, psicologia,
sociologia, literatura, cinema).
14 Façam dele o que quiserem. Tradução nossa.
Em seguida, assim como no dossiê, é possível identificar no filme,
15 René Allio fez com ele algo de bom, de grande. O fato de rodar o filme nos mesmos locais, mas de forma não-linear, as diferentes peças que compõem o dossiê de
por atores amadores, que eram camponeses absolutamente semelhantes àqueles contem- Foucault. Surgem na tela a data do acontecimento e a cena do pós-crime: os
porâneos à história, eu diria que quase pelos mesmos personagens, tudo isso é importante.
O filme não distanciou a história do que ela foi. Ao contrário, ele permitiu que a história três membros da família estão mortos no chão em meio a muito sangue (o
voltasse ao seu ponto de partida. Essa história, nós a conhecemos porque Rivière, preten- que o espectador descobre sem uso de qualquer estímulo sonoro, imerso
samente analfabeto, a escreveu. A maneira pela qual Allio usou a voz off, que ele pretendeu
que tudo que é dito no filme tivesse sido dito no memorial (não há, então, nenhuma pala-
em silêncio absoluto). Advém, subitamente, o grito pungente da avó de
vra original do filme), é, creio eu, bastante novo. Tradução nossa. Rivière e estampa na tela a surpresa e o desespero de outros membros da

96 97
família e do povoado ao descobrirem o ocorrido. Em seguida, a chegada Na sucessão dos fatos Rivière é encarcerado e a cena seguinte mos-
das autoridades, o reconhecimento das vítimas, os diferentes depoimen- tra que uma mesa, papel e pena são colocados em sua cela. Solitário e
tos dos cidadãos do lugar. Têm início o processo verbal dos médicos e a em silêncio, ele começa o relato do memorial, introduzindo o título do
descrição ‘oficial’ das consequências dos golpes sofridos. mesmo, que se compõe sobre a tela, escrito pela mão de Rivière: Détail et
A chegada ao vilarejo do procurador do rei, que vem ouvir as teste- explication de l’événement arrivé le 03 juin à Aunay, village de la Fauctrie
munhas, é anunciada pela data exibida na tela, marcando os decorridos écrite par l’auteur de cette action.
dois dias após o crime. É feita então a nomeação de Pierre Rivière como Em seguida, de frente para a câmera, em close, se dá então o início da
autor do crime (aos 08’19’’), ao que se seguem novos depoimentos dos tradução fílmica do memorial fonte, transcriado através da performance
habitantes do lugar sobre o autor do crime e seu comportamento ao longo do ator não-profissional e de projeção unicamente local, Claude Hébert,
dos anos. Intervém aí a construção do perfil físico e moral do ‘criminoso’ no papel de Pierre Rivière. O relato empreendido por Hébert no filme e
feito pelo procurador, ao mesmo tempo em que o espectador assiste ao recriado sob a direção de Allio é bastante fiel ao texto do memorial escrito
velório das vítimas. Ele advoga pela figuração de Rivière enquanto indi- por Rivière (texto que, por sua vez, fora resgatado e recuperado por Foucault
víduo cruel e frio, um verdadeiro selvagem. A cena é cortada e assistimos e sua equipe). Durante 01 hora e 16 minutos do filme (cuja duração total
Pierre escapar pela floresta sob os chamados da irmã e de outros conheci- é de 02 horas e 02 minutos), diferentemente do dossiê, posto que ocupa
dos (primeira imagem de Rivière, de costas, aos 11’14’’). Uma narrativa em grande parte da narrativa cinematográfica, o memorial de Rivière será tra-
off reproduzindo as notícias dos jornais (o Pilote du Calvados) toma lugar duzido e recriado através do tecido fílmico (imagens e sons). No filme, a
na cena, em flash back, até o momento da prisão de Pierre Rivière, que se narrativa de Rivière não constitui meramente uma das peças apresentadas
dá sem qualquer resistência do acusado. no interior do dossiê de Foucault, mas torna-se o centro do interesse, que
Em seguida intervém a cena passada numa sala do tribunal de pri- é a fala, o próprio discurso de Pierre Rivière, o momento em que ele sai de
meira instância, onde Rivière é interrogado pelo juiz de instrução. É a pri- seu silêncio, toma a palavra e narra a estória sob sua perspectiva.
meira vez que o espectador vê a imagem de Pierre Rivière e que o ouvimos No memorial, a narrativa de Pierre Rivière se caracteriza por uma
falar (14’34’’). Como no dossiê de Foucault, o personagem é pouco ouvido dupla escritura/relato: a narrativa objetiva dos acontecimentos e aquela
e demora a tomar a palavra. Nos depoimentos do réu, fica evidente a sua que se assemelha a um lamento do condenado. No filme, após fazer uma
indignação com o que a mãe fazia com o marido, caracterizando a insana espécie de introdução aos fatos, quando passa a resumir os sofrimentos
perseguição materna contra o pai e, consequentemente, refletida sobre os e aflições causados ao pai pela mãe, Rivière torna-se narrador da pró-
filhos que, em grande parte, apoiavam a figura paterna (dos seis filhos do pria estória e da estória familiar, e a atenção até então acordada ao crime
casal, quatro ficarão a maior parte do tempo com o pai – um deles morrerá se desloca completamente. Percebe-se aí, de forma bastante evidente, a
devido a problemas de saúde, e dois com a mãe, justamente os que serão existência de uma outra demanda onipresente do sujeito, silenciada no
assassinados por Pierre). Num primeiro momento, Rivière diz que sua ação dossiê, e que não encontra resposta – a demanda de resolução do inter-
seria comando de Deus, abandono de Deus, dúvida da existência ou não de minável conflito entre o pai e a mãe.
Deus, o qual não socorrera o pai (ele evoca o comando de Deus a Moisés, Mesmo que esteticamente entrecortada por depoimentos, testemu-
pois conhece bem a Bíblia). Finalmente diz que a razão do crime fora nhos, notícias de jornal e relatos devidamente intitulados e datados, alter-
tirar seu pai do embaraço, ajudá-lo contra a mãe, une méchante femme16 nando os diferentes extratos narrativos, é a narrativa autobiográfica de
que quase arruinou o marido e a família. Teria matado a irmã porque ela Pierre Rivière que irá se impor e se fazer ouvir, não permitindo que a
tomava o partido da mãe, e o irmão, porque este amava a mãe e a irmã. querela entre crime e demência do dossiê ocupe lugar absoluto e nem
tampouco oculte sua voz. A alternância na tela das diferentes perspec-
16 Uma mulher má. tivas narrativas (aparato judiciário x aparato médico + relato do réu)

98 99
na reconstituição e julgamento do crime produz um embaralhamento As referências feitas pelo grupo de pesquisadores ao texto de Rivière
e confusão tais, que remetem à fragilidade e ao esfacelamento psíquico também não nos parecem revelar uma disposição em deixá-lo de fato
de Rivière. A expressão facial do ator – ora de desamparo, ora perversa, falar, pois não atentam para o espaço vazio que é tecido entre as palavras.
ora desvairada ou impassível, denunciando seu caos interno, ao qual nin- Foucault se defende em sua introdução ao dossiê, afirmando:
guém parece atentar ou decodificar de fato antes do crime (nem família,
Nous savons que nous avons négligé beaucoup d’aspects majeurs. On aurait
nem o corpo social), assim como suas reações, movimentos corporais, pu analyser le merveilleux document d’ethnologie paysanne constitué par la
tom de voz e sua taciturnidade o tornam objeto intraduzível diante do première partie du mémoire de Rivière. Ou évoquer encore ce savoir et cette
espectador. As desordens psíquicas de Rivière parecem ‘gritar’ na tela définition populaires de la folie qui se dessinent à travers le témoignage des
solicitando ‘lugar’ de fala, de escuta, acolhimento e tradução. villageois.18 (FOUCAULT, 1973 p. 15).
O chamamento a uma leitura psicanalítica do discurso de Pierre O dossiê organizado por Foucault tem o grande mérito de apresen-
Rivière no filme parece então escoar-se da narrativa fílmica da Allio e tar as várias peças do caso – laudos, registros, relatórios, cartas, testemu-
configura-se enquanto premência para se pensar o caso Rivière. nhos, pareceres, depoimentos diversos, notícias da imprensa, registros e
notas da equipe sobre seu conteúdo –, o que faz de Foucault, aos olhos
o silêncio de rivière no dossiê de Paul Veyne, um revolucionário da escrita da História (VEYNE, 1998 p.
383-429); mas, como afirmaram dois de seus constituidores, Jean-Pierre
Se a tradução do texto do memorial em texto fílmico (através do duo
Peter e Jeanne Favret, não deixa de ser um dossiê “duro”. Nele, a querela
imagem/som) cria uma ‘voz’ para Pierre Rivère (a do ator não profissional
judiciária e médica (se criminoso ou louco) nos parece, aí sim, se sobre-
Claude Hébert), evidencia, sobretudo, através dos diferentes signos fílmi-
por à escritura do texto, à voz de Rivière, ao seu discurso autobiográfico.
cos expostos na tela, o silenciamento do discurso de Rivière no dossiê, o
O locus de transgressão que é o espaço literário, no qual se revela algo que
que o próprio Foucault tentou justificar, revelando sua possível dificul-
está oculto, opaco, no uso cotidiano da linguagem, é inteiramente negli-
dade em adentrá-lo:
genciado, visto que não é alvo de reflexão e análise pelo grupo. Não há
Ce discours de Rivière, nous avons décidé de ne pas l’interpréter, et de ne qualquer estudo de cunho analítico do memorial integrando o dossiê, o
lui imposer aucun commentaire psychiatrique ou psychanalytique. D’abord que levaria a refletir, por exemplo, sobre a parte de ‘estranho’ que envolve
parce que c’est lui qui nous a servi de point zéro pour jauger la distance entre
les autres discours et les rapports qui s’établissaient entre eux. [...] Ensuite
o comportamento de Pierre, mas que não configura qualquer premissa
parce qu’il ne nous était guère possible d’en parler sans le reprendre dans l’un de um destino criminal (até no uso de neologismos como calibene, o
de ces discours (médicaux, judiciaires, psychologiques, criminologiques) nome de sua ferramenta para matar passarinhos e arbalète, nomes que
dont nous voulions parler à partir de lui. Nous lui aurions alors imposé ce podem ter sido forjados a partir dos personagens Caliban e Ariel da peça
rapport de force dont nous voulions montrer l’effet de réduction, et nous en
A Tempestade, de Shakespeare); ou ainda no emprego do termo parricide
aurions été à notre tour victime. [...] Enfin et surtout, par une sorte de véné-
ration, et de terreur aussi peut-être pour un texte qui devait emporter avec [parricídio] por Rivière, quando não há assassinato de fato do pai, mas
lui quatre morts, nous ne voulions pas surimposer notre texte au mémoire da mãe, mesmo que o substantivo, tanto em francês quanto em portu-
de Rivière. [...]17 (FOUCAULT, 1973 p. 14) guês, possa se referir comumente à morte do pai ou da mãe, o que não
deixa de ser instigante a não opção pela palavra matricide [matricídio] –
17 Esse discurso de Rivière, decidimos não o interpretar, não lhe impor nenhum comentário
psiquiátrico ou psicanalítico. Primeiro porque ele nos serviu de ponto zero para avaliar a
sugerindo, segundo algumas interpretações, uma inversão do complexo
distância entre os outros discursos e as relações que entre eles se estabeleciam. Em seguida
porque não nos seria muito possível falar dele sem retomá-lo em um desses discursos 18 Sabemos que negligenciamos muitos dos aspectos primordiais. Poderíamos ter analisado
(médicos, judiciários, psicológicos, criminológicos) [...] Enfim e sobretudo, por uma espé- o maravilhoso documento de etnologia camponesa constituído pela primeira parte do
cie de veneração, e talvez, também de terror, por um texto que devia carregar com ele quatro memorial de Rivière. Ou ainda evocar esse saber e essa definição populares da loucura que
mortes, nós não queríamos sobrepor nosso texto ao memorial de Rivière. Tradução nossa. se delineiam através dos depoimentos dos aldeões. (Tradução nossa).

100 101
de édipo e um possível desejo de Rivière pelo pai e não pela mãe. (Cf. a voz de pierre rivière no filme
THIRION, 2010)
Alguns anos mais tarde, em entrevista a François Châtelet,19 Foucault A nós interessa o desamor do qual se ressente Rivière em seu memo-
dirá que ao publicar o dossiê e reavivar o caso Rivière pretendera dizer rial, o desamor entre pai e mãe, que se inicia pela caracterização de con-
a todos, médicos, psiquiatras, psicanalistas, comentadores, cineastas, trato no qual é relegado o casamento dos pais – incomoda a inexistência
homens de teatro etc., “faites-en ce que vous voulez” [façam disso o que de uma lua de mel, e mesmo de uma noite de núpcias (a recusa da mãe
quiserem], como já evocado aqui anteriormente, se eximindo, assim, de ao pai é longa); há o estranhamento pela ausência de vida conjunta (o
qualquer responsabilidade com relação à ‘leitura/tradução’ do material casal pouco habitou conjuntamente, dormindo juntos apenas quando o
ora apresentado. pai vinha trabalhar as terras da mãe) e, implicitamente, a total ausência
Mas o que reivindica Pierre Rivière é ter voz e ser ouvido. Solicita do sentimento de amor materno do qual Rivière se torna alvo. Mãe que
a atenção logo no início do memorial: [...] pourvu qu’on entende ce que ele intimamente parece desejar. Desamor que ele não nomeia.
je veux dire, ce c’est que je demande [...]20 (FOUCAULT, 1973 p. 73-4) De O largo tempo acordado à mise en images et son do memorial de
maneira clara e articulada, evidenciando seu surpreendente manejo da Rivière no filme de Allio aproxima o espectador do personagem de
memória, Rivière aí expõe suas razões e assume a responsabilidade pelo Rivière e sua estória (relembramos que ele ocupa 01 hora e 16 minutos
crime cometido – crime cujo gesto, a ação propriamente dita, não é aí das 02 horas e 02 minutos da película, sem contar os créditos, ou seja,
relatada. Se descentralizarmos a atenção do crime em si e suas implica- mais da metade do tempo da película).
ções subsequentes, damos então ouvidos à demanda que consideramos Testemunhamos na tela que a concepção de Pierre teve como objetivo
central no discurso de Rivière, e na qual insistimos, a resolução de um fazer o pai escapar do alistamento militar. Assistimos seu conturbado nas-
conflito permanente entre o pai e a mãe, que permanecerá sem resposta. cimento – Pierre é o primogênito dos seis filhos do casal – marcado pela
Fréderic Deshusses, em seu artigo “Être son propre juge. Pour un doença da mãe, por sua frieza e sua desafeição pela concepção. Durante
nouveau dossier Pierre Rivière” aponta para a insolubilidade da disputa os muitos meses que permanecerá no leito, seus seios ‘apodrecem’ e é o
parental, mas sob o aspecto da instância judiciária, o que pode ser cons- pai que deles extraía o veneno, cuspindo-o em seguida. O desprezo da
tatado na primeira parte do memorial - Résumé des peines et afflictions, mãe não era só pelo pai ou pela sogra, mas também pela maternidade e
pela qual se depreende o caráter contratual da relação dos pais Rivière, o próprio filho. O filme retrata e insiste no período de puerícia, quando
cujo casamento não era erigido sob qualquer base afetiva. Mesma cons- Pierre, ainda bebê, já estava sob os cuidados da avó paterna, sempre des-
tatação da onipresença do contencioso civil no memorial fazem o etnó- provido da atenção materna (27’45’’– 28’55’’).
logo Daniel Fabre e a historiadora Sylvie Lapalus. Lapalus insiste sobre a Não é a doença que afasta mãe e filho, posto que na gravidez seguinte
denúncia do próprio Rivière quanto ao caráter ilusório de todo contrato, (da filha Victoire) a mãe cai novamente doente e Victoire – descobrire-
mas cujo memorial se assemelha (também) a um ato notarial, aí tecendo mos mais tarde – será sua filha querida e que permanecerá sempre ao
um minucioso inventário das infrações parentais ao contrato de casa- lado da mãe, despertando a ira do irmão. Rivière não sabe ‘como’ e nem
mento, cometidas regularmente ao longo da vida. sob ‘quais’ circunstâncias, mas após o nascimento da irmã, que perma-
nece com a mãe em Corvaudon, ele fica com o pai e a avó paterna em La
Faucterie (o filme insiste na cena de violência, na qual a criança com 3/4
anos está junto à família paterna durante o trabalho no campo, quando a
mãe, enraivecida, mas sem dizer uma só palavra, chega subitamente para
tomar e levar Pierre, que grita ao pai desesperadamente. O pai vem em
19 “Pourquoi le crime de Pierre Rivière”. In: FOUCAULT, Dits et Ecrits, t. II, texte 182, p. 106-108.
seu socorro, mas se vê obrigado a entregar o filho à mãe 31’04’’ – 32’25’’).
20 Em português: “[...] desde que escutem o que quero dizer, é isso que eu peço [...]”

102 103
Pierre está sempre com o pai, ainda que apenas quando o mesmo é diante das sandices da esposa, sempre incorrendo no mesmo erro de
vinha trabalhar as terras da mãe (33’03’’ – 33’09’’). Nos anos que passa ceder ou de se deixar desgraçar pela mulher).
na casa materna (mais ou menos dos 3/4 anos até os seis anos de idade), Rivière parece cada vez mais angustiado e atormentado mediante o
ele relembra as incessantes brigas da mãe com os próprios pais, que Allio caos familiar (01h02’48’’ – 01h03’57’’). Na casa do pai, ele testemunha a
retrata por meio de embates irascíveis e agressões físicas. Pierre denun- mãe receber algumas vezes um marceneiro, com quem ela parece ter rela-
ciará posteriormente que fora testemunha das muitas disputas familiares, ções bastante íntimas (01h18’41’’ – 01h19’24’’). A mãe humilha o marido
das quais se refugiava algumas vezes junto ao avô materno (34’50’’ – 36’). diante do possível amante, e os amigos e a família dizem a Pierre sobre
Aos 10 anos, Pierre vai morar definitivamente com o pai. A família ficará os homens que a mãe frequenta e insistem sobre o fato de que ‘ele nunca
então dividida: quatro filhos com o pai – Pierre, Aimé, Prosper e Jean, e os deve abandonar o pai’ (01h21’12’’ – 01h21’55’’).
outros dois, Victoire e Jules, com a mãe (de quem sempre permaneceram Diante do desespero do pai, atônito, e que não consegue mais tra-
ao lado) e que serão mais tarde assassinados por Rivière. balhar, Pierre parece prestes a tomar para si o peso e a responsabilidade
Diferenciando-se da questão maior do dossiê – louco ou criminoso, de dar um fim a tal situação. Assim termina sua narrativa sobre os sofri-
o filme de Allio retrata Pierre como um menino aparentemente normal, mentos do pai (à 01h23’46’’ – que toma quase uma hora do filme – 50’) e,
apesar de silencioso e retraído. Insiste no respeito que ele nutre pelo pai quando retoma seu relato, passa então a falar de seu próprio caráter, seus
e na ajuda que lhe presta no trabalho. Apesar dos vários depoimentos, sentimentos e sua vida pessoal (o que corresponde à segunda parte do
intencionados e maldosos após o crime, por parte de alguns habitantes do memorial – em torno de 20’ do filme).
lugar, é possível ao espectador constatar o afeto de Rivière pelos irmãos Diferentemente do memorial do dossiê, a primeira coisa que diz
com quem divide a casa, assim como a boa estruturação de seu discurso, Rivière no filme, nesse momento da narrativa, é reafirmar seu amor pelo
quando necessário ou desejado (o que também surpreende o leitor do pai (01h27’19’’ – 01h28’26’’), motivo que o leva a conceber seu plano de
memorial), (38’20’’ – 38’39’’; 40’54’’ – 41’35’’; 43’18’’ – 44’01’’). Ao ser trans- morte (no memorial, isso está um pouco mais adiante no relato). Ele tam-
formado em testemunha dos acontecimentos familiares, Pierre se mostra bém aí revela seu desejo de escrever sobre a vida de seus pais (configu-
bastante consciente diante dos ataques da mãe ao pai, de suas falsas acu- rando o Pierre Rivière autor).
sações, humilhações, agressões físicas, gritos histéricos, tramoias, men- Pierre tem horror ao adultério, por isso não se aproxima muito das
tiras, desperdícios de dinheiro, dívidas, traições e todo tipo de vilanias. mulheres da família. Meninas de sua faixa etária costumavam rir dele,
Ele se coloca do lado do pai e tenta advertir sua irmã Victoire do caráter o que desperta sua ira e o afasta delas. Externa também sua revolta em
doentio da mãe, sem sucesso (49’ – 49’31’’). relação ao comando das mulheres, rememorando o passado e chegando
Pierre não tem grande estima pela mãe, que ao longo de toda a pelí- até o século das luzes (XVIII), século do desejo por liberdade, mas no qual
cula não faz prova de um único gesto de afetividade ou de bom senti- homens obedeciam a mulheres (seu discurso é um verdadeiro exercício
mento em relação ao filho. Em diversas cenas de disputa entre os pais de estilo e revela o conhecimento de Rivière, camponês simplório que
(físicas e morais), Pierre está presente, espectador dessa espécie de des- dizia mal saber ler e escrever) – os exemplos da história evocados por
cida ao inferno que empreende o casal (56’38’’ – 56’47’’), levando o pai e Pierre são, no filme, seguidos de imagens ilustrativas na tela (01h29’44’’
também a avó materna (desafeto da mãe) ao desespero e à ruína finan- – 01h31’02’’). Rivière está, então, decidido a executar seu plano de morte,
ceira – as despesas e dívidas contraídas pela mãe e a irmã Victoire levam a mas sofre e hesita. A ocasião se apresentando, eis que Pierre pega a foice,
família literalmente à bancarrota (01h10’’ – 01h01’30’’). Pierre é o filho que entra na casa da mãe e comete seu crime funesto (01h37’40’’ – 01h37’50’’).
assiste ao sofrimento familiar e que se mostra lúcido diante da situação. Seu relato revela ainda sua inteligência e perspicácia, assim como seu
Seu silêncio se revela repleto de dor e angústia diante da impossibilidade talento científico e manual, ávido por instrução e conhecimento. Rivière
de uma solução (as atitudes do pai nunca são efetivas, homem fraco que confessa em depoimento ter martirizado pequenos animais (01h44’30’’

104 105
– 01h46’21’’). Diz experimentar certo prazer em assustar crianças, mas a de médecine légale de 1836), tenta contemplar, de alguma forma, o chama-
quem ele jamais teria pretendido fazer o mal. Era apenas um jogo. Jogo mento a uma leitura, a uma escuta de cunho psicanalítico, diferentemente
também ao criar palavras, segundo ele, que lhe valiam o atributo de da proposta de Foucault e seu grupo, no dossiê, focados principalmente
bizarro, de estranho – a arma que criou para matar passarinhos, como sobre a questão jurídica/penal. O memorial de Rivière não esclarece e
já citamos (p. 13), ele a nomeou caliben, que em muito se assemelha ao muito menos responde à querela entre a justiça e a medicina, se ele seria
nome do monstruoso e vil personagem de Shakespeare, Caliban, escravo um indivíduo normal e, portanto, criminoso, ou alienado, louco. Além
do mago Prosper (que é o mesmo nome do irmão de Pierre). O que força de não respondê-la, a construção de sua narrativa acrescenta mais um
lembrar que a psicanálise não procura um sentido fixo que desvende um enigma ao próprio enigma do crime; um enigma que conserva sua força
determinado texto/discurso, mas sim a produção de novas palavras, que desconcertante. Escrevendo e rememorando seu ato para o leitor, Rivière
venham estranhar o texto e até mesmo a própria psicanálise. o duplica. Suas palavras e gestos materializados tornam ainda mais estra-
Em depoimento ao tribunal, Pierre reafirma que morreria para asse- nhas suas atitudes – sua atitude diante de seu projeto, diante de seu ato,
gurar a felicidade do pai. No filme, o ator revela claramente não suportar diante do texto autobiográfico.
a tese de alienação, que é confrontada àquela do criminoso. Ele é respon- Ao dar voz a Rivière e ao colocar em imagens e som seu discurso, sua
sável por seus atos. Condenado à morte por parricídio, ele terá a pena angústia e desespero diante do conflito parental, manejando a difícil tarefa
comutada pela reclusão perpétua, considerado não capaz de responder de conciliar um filme a documentos (caráter de documentário) e uma fic-
plenamente por seus atos. ção dramática (que parte do dossiê de Foucault, aliando dados, pareceres
O filme de Allio termina com o impacto do discurso de Rivière, e processo mas, sobretudo, a autobiografia do próprio réu, René Allio não
seguido por 44 segundos finais acordados à notícia de sua morte. É, só dá vida ao extraordinário poder de escritura do sujeito desviante em sua
portanto, Rivière que encerra, de fato, o texto fílmico, fazendo seu mea tradução fílmica, como expõe as relações traçadas entre palavra e coisa, de
culpa, diferentemente do dossiê de Foucault, no qual, após o término do um lado, e linguagem, inconsciente e memória, de outro.
memorial, seguem-se os pareceres médico-legais, o processo, a apelação
e o indulto, prisão e morte, além dos estudos da equipe, que constituem referências bibliográficas
a segunda parte do dossiê. Inicialmente, Rivière tentara se suicidar uma
ARTIÈRES, Philippe (dir.). Michel Foucault, la littérature et les arts. Actes du
primeira vez temendo que o pai fosse inculpado como cúmplice, mas
Colloque de Cérisy-Juin 2001. Paris: Éditions Kimé, 2004.
renunciou ao atentado por temer a Deus. Pierre diz se arrepender dos
ALEKSIĆ, Branco. “Présentation du dossier inédit d’Élisabeth Geblesco sur Pierre
crimes cometidos e de seu próprio ressentimento, mas não podendo tra-
Rivière”, 1973. In Topique. N. 117. Paris: 2011/4, p. 143-154.
zer de volta suas vítimas, decide que irá se juntar a elas, pois conhece
DESHUSSES, Frédéric. “Être son propre juge. Éléments pour un nouveau dossier
bem o código e a pena para o parricídio. Como não quer ser tomado por Pierre Rivière”. In Carnets de bord. N. 9. Genève, septembre 2005, p. 35-42.
alienado, Rivière decide então se entregar.
FABRE, Daniel. “La folie Pierre Rivière”. In Le Débat. Paris: Gallimard, 1991/4, n.
66, p. 96-109.
encerrando FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, “Tel”, 1972.

A partir das ‘pistas primeiras’ por nós elencadas para uma análise ______ (prés.). Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma sœur et mon frère…
Un cas de parricide au XIXe siècle présenté par Michel Foucault. Paris: Éditions
ainda a ser empreendida, consideramos que a tradução fílmica de René
Gallimard, “Collection Archives”, 1973.
Allio, filmada no século XX, do caso de triplo assassinato cometido por
______. Estética. Literatura e pintura, Música e cinema. 3ª ed. Org. Manoel
Pierre Rivière no século XIX, cujas ‘peças’ foram resgatadas e reconstituídas
Barros da Motta. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
em dossiê por Michel Foucault (a partir dos Annales d’hygiène publique et Universitária, 2013.

106 107
______. (Apresentação). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e
meu irmão... Um caso de parricídio apresentado por Michel Foucault. 2ª ed. Trad.
Denise Lezan de Almeida. Rio de Janeiro: Graal, 2013.
______. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris:
Éditions Gallimard. “Bibliothèque des Sciences Humaines”, 1979.
______. Dits et écrits. I. 1954-1975. Édition établie sous la direction de Daniel
Defert et François Ewald avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris:
Gallimard, “Quarto”, 2001.
______. Dits et écrits. II. 1976-1988. Édition établie sous la direction de Daniel
Defert et François Ewald avec la collaboration de Jacques Lagrange. Paris: a psicanálise de uma língua a outra
Gallimard, “Quarto”, 2001.
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Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma sœur et mon frère…. D’après le
dossier publié sous la direction de Michel Foucault. Réalisation de René ALLIO.
France, 1976, 125’.

108
Retour à la lettre freudienne; contours et détours
d’une langue à l’autre
Claire Gillie

Traduttore, traditore ! (Traducteur, traître !)

Freud, écrivain (Dichter) mais également traducteur de son maître


Charcot,1 a supervisé les premières traductions qui ont été faites de son
œuvre, tant il redoutait que la lettre vacille au moment de sa prise dans
l’Unheimlich d’une langue autre. Déjà en 1905, dans Le mot d’esprit et ses
rapports avec l’inconscient, il cite le célèbre proverbe italien “Traduttore -
Traditore!” (Traducteur, traître!) afin de montrer les ravages du sens opé-
rés par déplacement ou substitution de quelques lettres. Citons le passage
de ce texte: “Un bel exemple de mot d’esprit par modification est la célèbre
exclamation: Traduttore - Traditore! La similitude des deux mots, qui frise
l’identité, exprime de façon saisissante la fatalité qui fait du traducteur un
traître à son auteur”. Et Freud de rajouter en note de bas de page: Drill cite
un mot d’esprit par modification tout à fait analogue Amantes amentes
(Amants - déments).
Lorsque Samuel Jankélévitch – le père du philosophe français
Vladimir Jankélévitch – se proposa pour traduire ses œuvres, Freud
(1900) lui répond dans une lettre du 13 avril 1911, que si sa Traumdeutung
(L’Interprétation des rêves) est bel et bien une œuvre exemplaire de lapsy-
chanalyse, elle n’en demeurera pas moins intraduisible et rebutante pour
1 Charcot, Jean-Martin: Sur un cas de coxalgie hystérique de cause traumatique chez l’homme,
unter dem Titel: Über einen Fall von hysterischer Coxalgie aus traumatischer Ursache
beim Manne.

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un lecteur français. La preuve en est l’usage du pluriel “les rêves”, alors que transposer (translater) depuis une langue vers une autre langue. Dans
d’autres traductions vont opter pour Interprétation du rêve. Auparavant, l’acception juridique, c’était autrefois “transférer d’un lieu à un autre”, mais
en 1926, Meyerson avait de son côté proposé à la traduction La science cela continue à vouloir dire de nos jours: “envoyer quelqu’un devant la
des rêves. justice, afin qu’il soit jugé”. Par extension, on utilise également ce terme en
Prudence donc à qui s’aventure dans les arcanes de l’allemand freu- français pour dire “expliquer, interpréter, exprimer”.
dien; l’impossible le guette, avec la traîtrise en option! Si le verbe “translater” est tombé en désuétude, c’est pourtant ce
C’est donc “en connaissance de cause” que nous nous sommes ris- terme qu’on va trouver en allemand sous la plume de Freud, au moment
qués, en tant qu’Amantes de l’œuvre freudienne à entreprendre une œuvre où il invite à décontextualiser certains concepts, afin de leur donner une
quelque peu amentes (“dément” en français signifie également “gigan- chance d’entrer dans une chaîne signifiante.
tesque”), en tentant de donner bel avenir français à la lettre freudienne.
Nous étions encouragée en cela par Lacan d’une part - qui a opéré son l’allemand freudien; langue originelle de la
retour à Freud en retournant à l’allemand freudien – et par Paul-Laurent psychanalyse
Assoun d’autre part, grand commentateur et critique de l’œuvre freu-
dienne en France,2 n’omettant jamais de citer Freud depuis le texte ori- “Il n’est pas bon de translater (versetzen) des notions loin du terrain
ginal, en proposant lui-même ses traductions. Paul-Laurent Assoun est qui les a vues grandir, mais nous devons donner sens à cette concordance
lui-même traduit en plusieurs langues, et nous lui sommes reconnais- (Übereinstimmung)”.3
santes de nous avoir offert une place auprès de lui au moment d’ouvrir Nous versons au compte de l’acte de traduire cette remarque de Freud
une nouvelle collection au Cerf: Psychanalyse et Religion. C’est ainsi que au chapitre VIII de L’Avenir d’une illusion. Car de versetzen (translater) à
nous venons de publier au Cerf, il y a juste un an (en octobre 2012) la übersetzen (traduire), il n’y a qu’un pas à franchir qui est celui du mouve-
première édition critique de L’Avenir d’une illusion de Freud (1927) dont ment de passe et de torsion d’une langue à l’autre, de la scène langagière
j’ai eu en charge la traduction et l’édification d’un glossaire. Edition suivie freudienne d’origine à la scène linguistique d’accueil. Nous voici donc
par L’Illusion d’un avenir de Pfister (2014), réponse un an plus tard que ce prévenus par Freud lui-même des risques qu’il y aurait à exiler la langue
dernier, pasteur et analyste, adresse à Freud en forme de “confrontation allemande, et la langue freudienne, hors des frontières qui les ont vues
amicale” … mais néanmoins polémique! grandir. Cela ne peut donc se faire sans “donner sens” aux concordances
entre les deux langues, et sans être porté par le désir de l’analyste qu’un
C’est donc à partir de notre travail de traduction de ces deux ouvrages, transfère opère d’une concordance à l’autre.
que nous porterons témoignage de l’enjeu d’un “Retour à la lettre freu- C’est en allemand, langue originelle de la psychanalyse, que l’in-
dienne”, enjeu se confrontant aux “contours et détours d’une langue à conscient pour la première fois s’écoute, se déchiffre, se transcrit, s’écrit,
l’autre”. et se transmet. Freud nous propose souvent dans ses notes de bas de page
Mais avant de revisiter l’allemand freudien, il convient de faire un une exploration des ramifications grammaticales et lexicales possibles
détour par l’étymologie et les définitions que donnent les dictionnaires de certains mots-clefs des rêves. Lui-même émaille parfois son texte de
français du terme “traduire”. Le verbe “traduire” vient du latin tradūcĕre, citations et expressions autrichiennes, anglaises, yiddish ou françaises,
composé de trans “à travers” et dūcō “mener, conduire”. Traduire, c’est la langue venant donc infléchir et faire dériver le flux des associations
“libres”… et pourtant assujetties à des assonances, allitérations, homopho-
2 Paul-Laurent Assoun, L’entendement freudien. Logos et Anankè (1984), Le freudisme (1990), nies, polysémie sur lesquelles l’inconscient vient faire fond. Cependant,
Introduction à l’épistémologie freudienne (1990), Introduction à la métapsychologie freu-
dienne (1993). Nous ne citons ici que ces quatre ouvrages prélevés sur une trentaine d’ou- 3 On trouvera dans ce texte de larges extraits de notre présentation du glossaire dans les deux
vrages qui font autorité en France et sur la scène internationale. ouvrages cités.

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l’allemand est une langue “presque incapable d’abstraction” comme l’ex- par Freud lui-même en 1932, et Claude Lorin, premier traducteur de
prime Georges-Arthur Goldschmidt (1988 et 1996) dans ses ouvrages où il L’Illusion d’un avenir (1928/1977). Le Traduire Freud des traducteurs des
explore le déchiffrement de l’inconscient dans son rapport avec la langue Puf est désormais incontournable pour qui veut entrer dans les arcanes
allemande. Car c’est une langue populaire, descriptive, s’étayant sur des de la langue allemande et le lexique spécifique freudien. Ces traductions
verbes d’action basiques, et qui porte dans son nom même la marque du ne peuvent non plus s’engager sans tenir compte des écrits venant discu-
terroir; effectivement, Deutsch veut dire “populaire”. ter des termes fondateurs de la théorisation freudienne, et sans se laisser
Il est particulièrement fascinant de repérer que cette langue alle- enseigner par le travail inlassable de Lacan, remettant la psychanalyse à
mande dans laquelle Freud a pensé l’appareil psychique en sa configu- l’épreuve d’un retour aux sources de la langue allemande. Nous rappe-
ration mécaniciste (structure qui se tient, mais aussi mouvement de lons également la traduction intégrale qu’il réalisa en 1932 d’un article
ses “rouages” Getriebe) est ce que nous pourrions appeler “une langue de Freud de 1922 “Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht,
du mouvement”. Donnons pour exemple les façons de nommer le lien Paranoia und Homosexualität” (“De quelques mécanismes névrotiques
à l’autre: il peut se dire Beziehung (rapport) ou se dire Verhältnis (rela- dans la jalousie, la paranoïa et l’homosexualité”).4 Autre type de concor-
tion). À la racine du premier ziehen (tirer), et à la racine du second halten dance troublante puisque 1932 est justement l’année de traduction par
(tenir) n’impliquent pas un même positionnement, ni un même mouve- Marie Bonaparte de L’Avenir d’une Illusion, traduction relue par Freud lui-
ment transférentiel à l’autre. On peut “tenir” à quelqu’un, sans être “attiré” -même rappelons-le, et l’année de soutenance par Lacan de sa thèse “De la
par lui. “Halten”, c’est donc un mouvement pétrifié, mais qui fait tout de psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité”!
même “tenir” quelque chose.
D’autre part, il arrive que des locutions, par le jeu de la syntaxe, se conception méthodologique du glossaire
trouvent disséminées dans la phrase allemande, entraînant une modifica-
tion du verbe dont le sens bascule de par la présence de particules comme Le glossaire – qui suit la traduction et les «  Notes Historico-
ver, ab, auf, vor etc. Or, c’est cette métamorphose du sens ainsi provoquée Critiques » de Paul-Laurent Assoun – est destiné à fournir aux lecteurs,
qui fait passer des verbes simples et figurant des mouvements simples germanistes mais aussi non germanistes, les éléments d’information qui
(poser, élever, bouger) à des verbes plus complexes et nuancés que l’on ne lui permettent de juger, pour chaque terme du texte freudien, à la fois
peut rendre en français, le plus souvent, que par un néologisme ou une du travail de la signification et des avatars du signifiant terminologique.
locution équivalente. Rappelons que la structure grammaticale de l’alle- S’agissant des choix terminologiques de Pfister, ils ont été comparés le
mand veut que le verbe se trouve à la fin de la phrase, suspendant ainsi le cas échéant avec le lexique freudien. La visée de la lisibilité donnée à ces
sens jusqu’à la césure de la virgule ou du point. concordances linguistiques, étant que le lecteur puisse à son tour mettre
C’est pourquoi nous avons fait suivre la traduction des textes de au travail la langue, en scruter les assises, en mettre à jour les variantes, et
Freud et de Pfister d’un “Glossaire”. On trouve donc dans ces glossaires, s’approprier les textes dans toute leur richesse lexicale.
quand cela s’avère nécessaire, une “déconstruction” des néologismes afin La méthode choisie pour le glossaire présuppose des choix relatifs à
d’en faire goûter le montage et leur “transfiguration” (Verklärung), surtout la vaste question de la traduction de l’œuvre freudienne.
lorsqu’il s’agit des “mots composés par Freud” ou des “mots composés par Pour chaque terme retenu, nous avons choisi parmi quatre rubriques
Pfister”. celles qui pouvaient le mieux expliciter notre choix: sens littéral, sens

Une nouvelle traduction ne peut se faire sans rendre hommage à nos 4 Traduction de l’allemand par Jacques Lacan d’un article de Freud “Über einige neurotische
Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität”, paru pour la première fois
prédécesseurs (Vorgänger), entre autres Marie Bonaparte qui fut la pre- dans Internationale Zeitschrift Psychoanalyse, Bd VIII, 1922. Cette traduction fut publiée
mière traductrice française de L’Avenir d’une illusion, traduction “validée” dans la Revue française de psychanalyse, 1932, tome V, n° 3 pp 391-401.

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retenu, discussion lexicale, contexte. Ces quatre rubriques n’ont pas été pouvons aller vers un “comblement des aspirations” à remanier selon la
systématiquement renseignées, et ont été traitées en fonction des ques- syntaxe de la phrase. Et ce “comblement” reste au plus près du Erfüllung
tions qui se sont soulevées. Elles tentent de faire apparaître les “mots dont la racine est füllen (remplir, combler), montrant ainsi bien cette
composés par Freud”, néologismes freudiens qui constituent un véritable béance originelle que le Wunsch vient recouvrir. D’autres termes clefs
“lexique freudien” qui a déjà son histoire, ses traductions et ses commen- pour la psychanalyse ont été remis au travail. Nous citerons pour exemple
taires. Nous en avons répertorié 82 dans ce texte, contre 41 dans le texte la Vatersehnsucht (désir ardent pour le père, désir ardent du père) que
de Pfister. Nous avons souligné à chaque fois les substantivations qui ont nous avons choisi de traduire par “nostalgie désirante du père”, et éga-
permis d’élever certains adjectifs ou certains termes au rang de concepts. lement la Hilflosigkeit (détresse, désaide, sentiment d’abandon, délaisse-
Ce glossaire reprend les termes sélectionnés en marge de notre tra- ment) que nous avons traduit par “déréliction”… avant de revenir vers
duction, que ce soit pour le texte de L’Avenir d’une Illusion, de même que “détresse”, “déréliction” ayant une connotation trop théologique.
d’autres termes sur lesquels s’articulent la pensée et l’écriture freudiennes. Pour mener à bien ce travail, nous nous sommes appuyés sur un cer-
Pour L’Illusion d’un avenir, le glossaire s’aligne sur la même méthode, tain nombre de dictionnaires et d’ouvrages dont le dictionnaire de Sachs
mais en lui apportant des modifications propres au style de Pfister d’une et Villatte de 1905 qui nous a été précieux, car il donne parfaitement l’état
part, et aux emprunts qu’il fait au “lexique freudien” d’autre part. Surtout des lieux du vocabulaire allemand, du temps de Freud. Nous avons indi-
que Pfister apporte aux signifiants-souches sur lesquels s’étaye la version qué certaines de ses propositions de traduction d’autant plus intéressantes
freudienne de l’illusion, des nuances ou des métamorphoses qui en font lorsqu’il s’agit de termes tombés en désuétude, ou d’usages s’étant étiolés
vaciller parfois le sens. On assiste donc en quelque sorte à une “traduction au fil du temps. C’est le cas de “endigt” trouvé dans le texte de Pfister,
dans la traduction” qu’il importe de mettre en relief ici. venant de endigen et pour lequel on découvre qu’à l’époque, il avait pour
D’autres termes ont été retenus pour figurer dans les glossaires. On équivalence enden et beenden qu’on peut traduire par: mettre fin, arri-
en retrouve la liste dans un index des termes français renvoyant au glos- ver à achèvement. D’autre part, comment traduire le Genußsucht mot
saire, où les nuances terminologiques pour une même traduction sont composé par Pfister à partir de Genuß et de Sucht (“appétence patholo-
données si nécessaires, comme c’est le cas pour “approuver” (accueillir): gique” selon Paul-Laurent Assoun)? Les dictionnaires contemporains tra-
begrüßen qui se distingue de “approuver” (se ranger, se rallier à l’avis de): duisent Genuß par “plaisir”, alors que le Traduire Freud des PUF propose
beipflichten et encore de “approuver” (être d’accord): beistimmen. pour traduction “jouissance” en opposition à Lust “plaisir”. Là encore le
Notre souci a été de garder la rigueur des Puf, en restant au plus dictionnaire de 1905 sélectionne sans détour: “jouissance”, et c’est pour
proche du texte allemand, et de sacrifier des formules plus nuancées, ou cette traduction que nous avons opté. Ce qui nous permet de résoudre
des termes mieux choisis, afin de rester fidèle à la sélection opérée par l’énigme de ce terme composite, et de choisir de traduire Genußsucht
Freud, et à la syntaxe allemande. Ce qui n’avait pas été l’option de Marie par la “recherche ardente de jouissance”. On peut aussi citer l’adjectif lie-
Bonaparte cherchant à redonner au texte allemand la fluidité et la verve blich dont la traduction par “charmant” ou “ravissant”, pour qualifier les
de la langue française. Nous avons cherché à sauvegarder nous aussi cette symboles de la religion, peut surprendre! Le dictionnaire de 1905 est très
fluidité, en allant chercher dans les ressources des locutions ce que la mul- prolixe sur les traductions possibles de ce terme, et l’on trouve à côté de
tiplicité de traductions des “mots de liaison” et des articulateurs (also, wie, “charmant” les propositions suivantes: qui plaît au sens, agréable, gra-
nun etc…) permet. Nous n’avons jamais considéré comme acquise une cieux, délicieux, suave. Ce qui nous conforte dans cette nuance voulue
traduction faisant désormais foi. Citons pour exemple la Wunscherfüllung; par Pfister, en revêtant les symboles de la religion de cette bigarrure lin-
selon que l’on traduit Wunsch par désir ou par souhait, nous pouvons par- guistique entre “majestueux” et “charmant”.
venir à la “réalisation des désirs”, ou à “l’accomplissement des souhaits”.
Mais si nous choisissons de traduire Wunsch par “aspiration”, alors nous

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traduction finie et infinie sens, c’est éprouver cette “traduction terminable et interminable” qui fait
mettre au travail la pensée freudienne d’une part, les concepts de la psy-
Notre objectif en poursuivant cette méthodologie, est de faire parti- chanalyse de l’autre.
ciper le lecteur même non germaniste, et non germanophile, à une plon- C’est en ayant donné la tonalité à l’esprit de cette recherche, que nous
gée au cœur même de la langue dans laquelle ce texte est écrit. Loin de pouvons maintenant aborder quelques aspects du travail de traduction
vouloir “arrêter une traduction”, ou “défendre une traduction” contre une auquel nous a conviés Pfister.
autre, il s’agit de donner boussole et gouvernail au lecteur soucieux de
s’aventurer dans la pensée de Freud. Les Puf dans leur Traduire Freud,
le style oratoire de pfister
mettent en garde contre l’étalage des “états d’âme” des traducteurs faisant
part de leur doute. Si, certes, il y a doute, c’est bien sur le moment où doit Freud le premier décèle dans l’écriture pfisterienne un style particu-
prendre fin cette auscultation du palimpseste, où strate après strate, se lier, et c’est en ces termes qu’il le qualifie dans la lettre qu’il lui adresse le
dévoile l’écriture de la langue sous l’écriture de l’œuvre. 17 juin 1910: “vous employez un langage un peu apprêté et nourri de for-
Ce retour à Freud par la langue, Lacan – comme nous le disions plus mules qui proposeront des énigmes aux profanes”. De même dans sa lettre
haut - nous en a montré le chemin méticuleux, exigent mais passionné, du 15 juin 1911, où il commente un envoi de textes que lui a fait Pfister, il
avec sa reprise sans cesse remise au travail des termes fondateurs de la anticipe en quelque sorte ce que sera cette “confrontation amicale“: “les
langue freudienne. On pourra se référer au lexique des termes freudiens polémiques sont extrêmement intéressantes. Dans la dernière, une res-
travaillés par Lacan dans les dernières pages des deux tomes de ses Ecrits; pectable portion de poison théologique au goût douceâtre”.
lexique permettant de se guider dans les pages des Ecrits de Lacan. Nous En effet le style de Pfister, et l’usage abondant qu’il fait des métaphores
avons fait place à quelques allusions à ce travail dans notre glossaire. et des mots d’esprit ou double-sens qu’elles génèrent, implique parfois des
Revenir à la source de la conception du lexique freudien devrait choix de traduction concernant des expressions dans leur ensemble. C’est
contribuer selon nous à faciliter la compréhension de la langue allemande, pourquoi on trouvera ici un certain nombre d’expressions traduites tout
même pour qui ne l’a jamais “apprise”, ainsi qu’a favoriser la préhension d’abord dans leur littéralité, afin de mieux en goûter la lettre, puis ensuite
de l’œuvre de Freud. Nous pensons ici à nos étudiants de même qu’aux traduites en fonction des exigences syntaxiques et des tournures propres
“éternels étudiants” du texte freudien, afin que ce travail puisse leur per- à la langue française. Nous donnerons pour exemple l’expression “durch
mettre de se confronter aux sens multiples qui enrichissent les concepts, einen vom Zaun (…) erklären”, expression archaïque qui signifie “insulter
et les font sortir des “formules apprises” confinant à une certaine “caté- son voisin”, alors que chaque terme a un sens propre: erklären (expliquer)
chèse psychanalytique” qui aurait fait frémir jusqu’à Freud lui-même. et Zaun (clôture). Comme le “parler à travers la clôture” allemand, n’a pas
Ainsi souhaitons-nous que le lecteur passionné, qu’il soit familier ou non son équivalent dans la langue française, nous avons choisi de conserver
de la langue allemande, puisse faire sa propre traversée dans l’allemand une référence à la configuration de l’habitation, et de traduire par “crier
freudien, saisir d’autres possibilités qui sont elles que le texte lui tend, sur les toits”, qui a également une connotation biblique.
après une première exploration des sens possibles et s’aventurer dans ce La syntaxe allemande pfsiterienne pose des soucis de lecture, même
qui pourrait être “sa propre traduction”. Ainsi, après s’être prêté au mou- dans le texte allemand où le rythme du phrasé parfois se précipite “en
vement de torsion qu’exige la passe d’une langue à l’autre – de l’allemand haletant”, conduisant à l’éclipse de certains termes, et à des phrases scan-
au français – nous formulons le vœu qu’il puisse mieux prêter l’oreille dées par de rares virgules de respiration sur une page entière. On pourrait
à d’autres contours et détours linguistiques de la part des compatriotes verser au compte du style quasi oratoire de Pfister ce que lui-même écrit
de Freud et de ses successeurs, au moment où ils vont puiser à la source dans son texte: “la mobilisation de la pensée du réel par la pensée du désir,
du lexique-souche freudien. Ainsi, le faire participer à cette recherche de devraient-ils façonner l’Idéal, vers lequel aspire en haletant (keuchend)

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l’esprit dans son développement, empli d’espoir et toujours plus cruelle- dans le Beseitigung pfisterien, l’élimination du père s’entend comme une
ment déçu”. “mise sur le côté”. Variation donc sur les concepts freudiens - travestis à la
Mais il ne faut pas oublier que Pfister est suisse, et que le suisse alle- manière d’une charade (scharadenartig verkleidete) selon l’expression uti-
mand est souvent elliptique, ce qui peut expliquer une certaine condensa- lisée par Pfister lui-même à propos de la connaissance -, comme c’est aussi
tion des phrases où sujets et verbes sont éparpillés à quelques lignes d’in- le cas avec sa Triebversagung, refusement pulsionnel qui vient faire écho,
tervalle, laissant parfois le doute sur leur mise en relation, tout en alternant mais écho dénaturé (verzerrten) au Triebverzicht (renoncement pulsion-
avec des envolées lyriques occupant la page entière. Citons pour exemple: nel) freudien. Ce glissement d’un signifiant à l’autre, à l’intérieur des mots
“La religion est le soleil qui a entraîné l’éclosion de l’art et la plus riche composés et des néologismes fait de Pfister en quelque sorte le spécialiste
moisson des idées morales”. Style conférant donc à la Tondichtung (écri- du Hilfsbegriff (concept de recours).
ture musicale) de Pfister une certaine polytonalité entrelaçant une écriture Un lexique comparé des mots composés à partir de denken (pen-
dense et massive brahmsienne avec des échappées belles lisztiennes. ser) chez Freud et chez Pfister fait apparaître des séries n’ayant qu’un
signifiant commun: le Denkverbot soit “l’interdit de pensée”. Si Pfister
joute lexicale entre pfister et freud évoque le Denkarbeit (travail de la pensée, travail de l’esprit) Freud parle
de Denkfunktion (fonction de pensée), Denkhemmung (inhibition de
“Mais comme cela paraît singulier quand de deux interlocuteurs, l’un pensée), denkschwach (peu apte au raisonnement), Denkschwäche (fai-
parle dans un état d’investissement libidinal et l’autre dans une situation blesse de pensée). D’autre part, là où Freud dans L’Avenir d’une illusion
de retrait exactement comme un amoureux qui fait sa cour à une beauté parle d’Erziehung zur Realität (éducation à la réalité), Pfister parle lui de
complètement froide”. C’est en ces termes, que déjà en 1910, dans sa lettre Erziehungsmittel (moyens d’éducation), puisant là dans le lexique pédago-
du 23 juillet, Freud s’employait à comparer deux styles de discours qui gique qui lui était familier.
affleureront plus tard à la lecture comparée de L’Avenir d’une illusion et
de L’Illusion d’un avenir. Styles dissonants, qui viennent s’étayer sur deux
lexiques qui divergent en bien des points. On relèvera que se constitue, à lire Freud et Pfister, un véritable
Dès le titre, Pfister utilise le terme freundschaftliche Auseinandersetzung – “lexique de l’illusion” qui vient ici enrichir celui déjà proposé par Freud
confrontation amicale – là où il aurait pu choisir le terme Gegenüberstellung, dans L’Avenir d’une illusion avec Illusion, Taüschung (tromperie, dupe-
qui désigne également une confrontation, mais avec une connotation rie) et Verschleierung (fourberie, supercherie), jmdm. etw vorspiegeln
allant plus vers “l’affrontement”. Dans cette Auseinandersetzung, on (faire miroiter quelque chose aux yeux de quelqu’un), Vorspiegelung
retrouve setzung présent dans le terme Übersetzung (traduction), et plus (mirage). Ici avec Pfister, viennent se rajouter les termes de abspeisen
d’une fois on se rendra compte, à la lecture de ce glossaire, que Pfister (berner), hintergehen (abuser, tromper), Hirngespinst (fantasmagories),
s’empare du lexique freudien en en faisant varier, voire osciller le sens, Mogelei (tricherie), narren (duper), Scheinkultur (culture du paraître),
provoquant ainsi une sorte de confusion des langues entre le religieux Vorspiegelungen (simulations).
et l’analytique. Nous citerons pour exemple la phrase suivante “Quel
est l’analyste qui n’a jamais eu l’occasion de rencontrer des athées, dont une écriture “begriffsjonglistik”
l’incroyance n’était qu’une forme déguisée de l’élimination du père
(Vaterbeseitigung)”. Ici Pfister parle de Vaterbeseitigung, c’est-à-dire de C’est bien dans un Begriffsjonglistik, c’est-à-dire “en jonglant avec des
“l’élimination du père”, là où Freud utilise der Totschlag des Vaters, c’est- concepts” que Pfister s’aventure dans cette joute lexicale avec Freud, mais
à-dire “le meurtre du père”. A scruter la langue de plus près, si dans le également en faisant des Jongleurtrick, véritables tours de passe-passe
Totschlag freudien, se niche littéralement “le coup qui porte la mort”, terminologiques se jouant de la langue allemande, de ses assonances et

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allitérations. Car comment comprendre qu’il fasse allusion à la Heide (la passe d’arme d’un signifiant à l’autre, conduite avec fermeté, ferveur
lande) (“la lande de la théorie sur laquelle erreraient les spectres de l’er- mais aussi élégance. Comme dans l’analyse, on assiste là à la circulation
reur”), si on ne sait pas que le Heide, c’est le païen! De même, on remar- de signifiants entre les deux duettistes, signifiants que Pfister transpose
quera que dans la langue allemande même, à l’identique de la langue – depuis son désir de se mettre en résonance (in Einklang setzen) avec
française, il y a ambigüité assonantique entre Heil (salut), heil (sain) et Freud – dans son propre lexique théologique, avant de le restituer et resi-
heilig (saint), ce qui conduit à noter que s’agissant du Seelesorge, le “soin tuer. Mais dans ce mouvement de torsion du sens, on peut alors saisir sur
des âmes”, mener à la guérison (der Heilerfolge entdecken) le croyant ou le le vif le pas de côté qu’il fait faire à la langue analytique.
patient, serait également, d’après la langue, le mener au salut, mais aussi Transfert de langue donc, où s’inscrit dans le corps de la lettre le
le mener à la sainteté! transfert poignant et indéfectible entre les deux hommes.
De l’illusion de la vérité (Illusion der Wahrheit) scientifique à la Alors, comment nommer ce que nous avons réalisé? “Œuvre de péda-
vérité libératrice par l’Amour, tel pourrait être le titre du “prêche” qu’en- gogie”? “Œuvre de transmission”? Nous répondrons depuis deux langues:
gage Pfister. Cette libération était déjà annoncée à travers l’évocation du la langue musicologique et la langue analytique. Nous pouvons dire en
“souffle libérateur (freie Luft) du véritable Évangile qui fabrique une pro- effet qu’il s’agit là d’un acte de transposition, au sens musical du terme,
tection indispensable contre le danger de la névrose”, mais également par de faire “sonner” le clavier bien tempéré de la langue allemande sur un
l’usage même du terme frei (libre) présent pas moins de 28 fois dans le autre clavier de langue, aux tonalités et modalités différentes. Mais nous
texte, contre 20 fois pour le terme Wahrheit (vérité). La phrase finale de pouvons affirmer également que nous avons posé là un “acte analytique”
l’ouvrage surprend par son exhortation courte que Paul-Laurent Assoun porté par le Wunsch de retourner aux racines du “vocabulaire freudien”
qualifie dans son Introduction de “cri, surgi d’un sermon“: “La vérité vous de l’inconscient, afin de ressaisir les assises premières des néologismes
rendra libre!”. A l’instant de quitter cet ouvrage du pasteur analyste, s’ex- freudiens et de les appeler à comparaître – autre acception juridique du
primant parfois dans une double Tondichtung, la traduction hésite à choi- terme “traduction”5 – comme porteurs de l’analyse devant ceux qui s’en
sir la tonalité: tonalité lyrique paulinienne: “Seule la vérité fera de vous font les opposants. Mais aussi Wunsch partagé de garder sur les braises ce
des hommes libres”, ou bien tonalité propre au Wunsch silencieux analy- Wißbegierde (désir de savoir); au risque d’éprouver “l’illusion encyclopé-
tique: “La vérité vous libérera”. dique” de vouloir se saisir de l’insaisissable et l’intraduisible d’une langue
à l’autre.
l’ombilic de la langue freudienne Et si c’était cela, ce moment de butée contre l’éprouvé de la “traduc-
tion finie et infinie”: laisser certains termes être et rester l’Ombilic de l’al-
Si nous ouvrions cette brève présentation par une mise en garde de lemand freudien?
Freud, nous la borderons pour finir par celle de Lacan:
“Je vous laisse à juger quelle sorte de maléfice il faut admettre dans le sort references
fait aux textes de Freud en français, si l’on se refuse à croire que les traduc-
teurs se soient donné le mot pour les rendre incompréhensibles, et je ne GOLDSCHMIDT, Georges-Arthur. Quand Freud attend le verbe – Freud et la
parle pas de ce qu’ajoute à cet effet l’extinction complète de la vivacité de son Langue Allemande II, Paris: Buchet/Chastel, 1996.
style” (LACAN, 1999). ______. Quand Freud voit la mer – Freud et la Langue Allemande I, Paris:
Buchet/Chastel, 1984.
Au seuil de cette conclusion, c’est donc à une traversée du tissage
contrapunctique des langues et des discours que le lecteur, germaniste ou
5 “Traduire quelqu’un en justice”, comme nous l’évoquions en introduction, cela signifie dans
non, est convié. Il pourra ainsi mieux goûter cette joute lexicale et épisté- la langue française: poursuivre quelqu’une en justice, porter plainte contre quelqu’un, faire
mologique entre les deux hommes, joute qui s’apparente à une véritable passer devant un tribunal.

122 123
LACAN, Jacques. “Réponse au commentaire de Jean Hyppolite”, in Ecrits I, Paris :
Éditions du Seuil, 1999.
As palavras-valise nos Seminários lacanianos
PFSTER, Oskar. L’Illusion d’un avenir, Première édition critique de Paul-Laurent Patrícia Chittoni Ramos Reuillard
Assoun. Nouvelle traduction de Claire Gillie, Paris: Edition du Cerf, 2013.
FREUD, Sigmund. Die Traumdeutung (1899-1900), trad.: L’interprétation du rêve,
dans Œuvres complètes, T.IV, Paris: PUF, 2003.
______. L’Avenir d’une illusion, Première édition critique de Paul-Laurent Assoun.
Nouvelle traduction de Claire Gillie, Paris: Edition du Cerf, 2012.
FREUD, Sigmund & PFSITER, Oskar. L’illusion d’un avenir. Confrontation amicale
avec le Professeur Sigmund Freud, Imago, Revue pour l’application de la psycha-
nalyse aux sciences de la nature et de l’esprit, 1928, v. XIV, cahier 2-3, traduit de
l’allemand en français par Claude Lorin dans la Revue Française de Psychanalyse
3 de 1977.

introdução
Nos Seminários (1951-1980) ministrados por Jacques Lacan, conhe-
cidos, entre outras características, por sua grande fertilidade neológica, a
criação de palavras-valise se revelou um dos processos mais produtivos
(REUILLARD, 2007).
Do ponto de vista formal, uma palavra-valise se forma a partir da
redução de duas ou mais palavras a uma só, por meio de combinações
entre apócope, aférese e síncope. Esse tipo de criação parece se originar,
em Lacan, numa busca de criação estética para se demarcar do discurso
cientifico psicanalítico usual,1 aliada a uma necessidade conceitual; com
efeito, pois uma nova palavra quase sempre nasce espontaneamente da
necessidade de denominar algo novo.
Para melhor compreender esse fenômeno, retomaremos breve-
mente alguns autores que dedicam às palavras-valise algumas páginas:
Boulanger (1979), Clas (1987), Sandmann (1988, 1992, 1993) Grésillon
(1984) e Sablayrolles (2000). Em seguida, apresentaremos alguns exem-
plos desse tipo específico de criação neológica nos Seminários.

1 A este respeito, Marcel Bénabou diz: “Todos devem concordar conosco que a invenção
verbal não é o que melhor se compartilha no mundo. Não é dado a todos criar vocábulos
novos, menos ainda vocábulos destinados a durar. [...] Logo ilustraremos a que extremo vai
em Lacan, a efervescência neologizante. [...] Neste caso, existe uma preocupação estética
incontestável. Lacan se deixou levar por isso, chegando a fazer disso o próprio arcabouço
de seu método teórico” (apud PÉLISSIER, 2002 p. VIII-IX). (grifo e tradução nossa)

124 125
1. palavras-valise: definição parece ser o primeiro [apócope e aférese], que é o mais produtivo. (CLAS,
1987 p. 348, tradução nossa)
Para Boulanger (1979), palavra-valise2 é uma palavra oriunda da
redução de uma sequência de palavras a uma só: a parte inicial da pri- O autor afirma ainda (CLAS, 1987 p. 347) que se trata de um processo
meira palavra é conservada assim como a parte final da última. O autor econômico e lúdico de formação de palavras, uma matriz terminológica,
salienta ainda que o corte dessas partes nem sempre corresponde a cor- universal, que pode responder a necessidades de criatividade. Assim, ana-
tes morfologicamente naturais e exemplifica com a palavra chocomou- lisa essas formações do ponto de vista formal – utilização combinada de
sse, em que chocolat é cortado após choco e acrescido de mousse. Para apócope, aférese e síncope4 – e do ponto de vista sintático-semântico: os
ele, “o sistema da língua fica perturbado e obscurecido por tais criações” componentes A e B dão o resultado C, que pode ser, por sua vez, de dois
(BOULANGER, 1979), opinião compartilhada por Josette Rey-Debove tipos; no primeiro deles, o resultado C é um A e um B; por exemplo,
(apud BOULANGER, 1979 p. 81), para quem esse processo atrapalha grave- stagflation, que é ao mesmo tempo stagnation e inflation; no segundo, o
mente a morfologia, levando a pensar que as partes de palavras são mor- resultado C é modificado por A ou por B, como em progiciel, um logiciel
femas. Segundo o autor, tais criações são muito usadas nas terminologias com um programme. Clas salienta que a decomposição semântica pode
técnicas e científicas e funcionam como marcas registradas. ser muito variada, mas nem sempre convincente, havendo várias possibi-
Clas (1987) lembra que esse processo – que ele denomina braqui- lidades para uma mesma formação (grifo nosso) Conclui, por fim, que a
grafia encaixada3 – é utilizado simultaneamente pela língua técnica e, de braquigrafia encaixada não passa de um caso particular da composição5
modo menos sério, pela língua corrente, concluindo que essas criações só e nisso se apoia em Jean Tournier (apud CLAS, 1987 p. 351-352):
podem ser efêmeras e ter apenas um status estilístico. Com efeito, mais Morfologicamente, a única diferença é que os elementos do amálgama são
da metade das palavras-valise encontradas nos Seminários revelou-se uma mais ou menos encaixados uns nos outros ou, como se diz, “engavetados”,
palavra hápax, ou seja, ocorre uma única vez, indicando uma necessidade ao passo que são justapostos nos outros compostos. (tradução nossa)
momentânea de criação, como o próprio Lacan afirma: “si je puis m’ex- Sandmann (1992, p. 58-60), em obra que dedica à morfologia lexical,
primer ainsi et si vous me permettez de m’amuser un peu” (LACAN, apud compartilha da mesma opinião, quando afirma que
PÉLISSIER, 2002). Dentre os processos habituais de criação de palavras-va-
lise estabelecidos por Clas – apócope e aférese, apócope e apócope, aférese O tipo de formação de palavras chamado ‘cruzamento vocabular’ é, no
fundo, um tipo de composição, diferenciando-se desta, porque no cruza-
e aférese, apócope simples, aférese simples e apócope e síncope –, o mais
mento vocabular as bases que entram na formação de nova unidade lexical,
produtivo em Lacan é o primeiro, o que vem ao encontro da afirmação: ou ao menos uma, sofrem diminuição, não-sistemática ou regular, de seu
corpo fônico.
Se teoricamente todos os modelos são possíveis, deve-se entretanto obser-
var que a produtividade dos modelos é variável e que o modelo canônico
Acrescenta ainda que, assim como os compostos, os cruzamentos
2 Existem inúmeras designações para este tipo de criação lexical: mots porte-manteau, mot- vocabulares podem ser copulativos – adição de elementos de mesmo
s-centaures, contamination words, blending words, crossing words, telescoped words, por-
te-manteau words cf. CLAS, 1987, Meta XXV; palavras-valise, cruzamento vocabular, conta-
nível –, ou determinativos – adição de dois elementos de nível dife-
minação, cf. ALVES, 1994; palavra-ônibus (cf. HOUAISS); composição haplológica, mistura, rente (SANDMANN, 1993 p. 76). Para ele, há dois tipos de cruzamentos
cf. MARTINS, 2004.
3 Em francês, brachygraphie gigogne. “Diante da diversidade das denominações dos mesmos
processos de abreviação, decidimos intitular nosso estudo de braquigrafia de encaixe para 4 Para CLAS, 1987, 348, há seis modelos de combinações: apócope e aférese, apócope e apó-
mostrar que se trata de escritas truncadas que se encaixam e para evitar os termos mais cope, aférese e aférese, apócope simples, aférese simples e apócope e síncope.
ou menos marcados tais como hapaxépie, haplologia, acronímia, crase, paronomásia, cru- 5 Em língua portuguesa, distingue-se a composição por justaposição ou por aglutinação.
zamento, amálgama, engavetamento, encaixe, ou ainda palavra-valise, palavra centauro, Desse ponto de vista, as palavras-valise seriam formadas pelo processo de aglutinação, em
palavra de encaixe, palavra contaminada, palavra fusionada, palavra portemanteau”. (tra- que os elementos componentes se juntam num só vocábulo gráfico e sofrem perda de sua
dução nossa) CLAS, 1987, Meta, XXXII, 3, p. 347. integridade silábica (CUNHA, 1978 p. 77).

126 127
vocabulares: homófonos e não-homófonos (SANDMANN, 1988 p. 151). Os Tais formações acabam, muitas vezes, por ser a marca registrada de um
constituintes dos cruzamentos homófonos têm uma parte comum mais autor, como o exemplo clássico de Guimarães Rosa.
ou menos longa, como em Hospitaú, de Seguro Hospitalar Itaú; os cru- Porém, Martins lembra, com acerto, que a criação neológica não é
zamentos não-homófonos não contêm segmento fonético comum, como apanágio dos escritores, visto que essas formações surgem igualmente nas
em showmício, de show e comício. Essa classificação formal se aproxima línguas de especialidade ou no cotidiano. A diferença consiste no fato de
muito daquela proposta por Clas, embora seja mais sucinta. que os neologismos de determinadas áreas de conhecimento são incor-
No que tange à especificidade semântica dos cruzamentos vocabu- porados nos dicionários de língua, o mesmo não acontecendo com os
lares, Sandmann (1988, p. 152) salienta que eles são muitas vezes marca- neologismos literários.
dos pela jocosidade, ironia ou desapreço e que “a relação que une [seus] Grésillon (1984, p. 24-25), em obra consagrada ao estudo das pala-
elementos deve, antes, ser atribuída a fatores pragmáticos ou históricos”. vras-valise de Heinrich Heine, define-a como a produção de uma forma
Nesse sentido, no que tange às palavras-valise lacanianas, acredi- totalmente singular, obtida pela fusão de dois termos que podem ser
tamos poder afirmar, com Gérard Gorcy (apud BORDIER, 2004), que foneticamente próximos, que compartilham um segmento homófono,
“Toutes ces créations sont plus appelées à faire mouche qu’à faire souche”,6 mas entre os quais não existe em geral nenhum vínculo semântico natu-
posto que a maioria dessas criações parece atender a uma necessidade ral. Segundo a autora, a palavra-valise caracteriza-se formal e semantica-
estética de criação, preenchendo uma função estilística. Ao colocar o sig- mente por sua dupla natureza. Sua classificação comporta cinco tipos de
nificante no centro da cena, Lacan busca atingir o ouvinte/leitor por meio palavras-valise: com segmento homófono (uburbanisme = Ubu + urba-
de suas criações. nisme), é o mais usual; com truncação, afetando um ou dois constituin-
Segundo Barbosa (2000, p. 182), nos neologismos que surgem nos tes (grammaniaque = grammaire + maniaque); com segmento homófono
universos de discurso jornalístico, humorístico, publicitário, dentre e truncação (mélancolisé = mélancolique + alcoolisé); com encaixe, mais
outros, raro (ubiamourquité = ubiquité + amour); palavras dévalisés (usurepassion
= usure + passion = ? usurpation).
[...] se nota uma ação que o emissor procura exercer sobre o receptor. O
emprego do neologismo passa, então, a ter como função dominante outra
que não a referencial: a busca de um efeito, de uma ação produzida sobre o 2. palavras-valise em lacan: alguns exemplos
destinatário. É a função conativa.
De acordo com a classificação proposta por CLAS (1987),7 as pala-
Esse recurso às palavras-valise é bastante empregado na literatura vras-valise lacanianas, em função do lugar respectivo das aféreses, das
por grandes escritores. A título de exemplo, seguem algumas criações em apócopes e das síncopes, subdividem-se em cinco grupos. Vejamos cada
língua francesa, por ordem de surgimento: hypocritiquement (Rabelais, um dos tipos a partir de alguns exemplos.
1483-1553); mélancolise (Honoré de Balzac 1799-1850); caméléopard
(Charles Baudelaire 1821-1870); concubiste (Louis Aragon, 1897-1982); 2.1 Apócope e aférese: supressão do final do primeiro elemento e do início
cordoléances (Ionesco, 1909-1994); parlementeur (Boris Vian, 1920-1959), do segundo:
entre muitos outros.
affreud: AFFREUx + freuD
Também na literatura brasileira, em épocas diferentes, os escrito-
Joyce est un affreud, je dirai; avec le jeu de mot sur affreux. Il est un
res recorreram a essas formações. É o caso de Cruz e Sousa e de Millôr
aJoyce. (Seminário Le Sinthome, Lição 16/03/1976)
Fernandes, ambos estudados detalhadamente por Martins (2007; 2004).
7 O Institut National de la Langue Française propõe a mesma classificação de Clas (1987)
retoma seus exemplos. Disponível em: <http://inalf.fr/chroniques/gorcy.htm>. Acesso em:
6 “Mais do que um ponto de partida, todas essas criações têm um alvo definido”. 15 mar. 2001.

128 129
âmoureux: Âme + aMOUREUX Et c’est en quoi la langue, la langue, lalangue que j’ai appelée lalanglaise
Mais il se trouve que les femmes aussi sont âmoureuses, c’est-à-dire qu’el- a, a toutes sortes de ressources: I have to tell, j’ai à dire. (Seminário Le
les âment l’âme. (Seminário Encore, Lição 13/03/1973) Sinthome, Lição 13/04/1976)

anistoter: ÄNe + arISTOTE + -er poubellication: POUBELLe + pubICATION

Aristote qui lui, argumente sur l’idée d’âne, pour dire que l’âne est un âne, [...] c’est ainsi que par les faits je viens de parler d’un publiciste, chacun
que c’est bien lui, et qu’il y a pas d’âne majuscule, hein, et ben! il anistote sait les jeux de mots que je me suis permis autour de la «poubellication»
lui aussi ! (Seminário RSI, Lição 11/03/1975) - nous voilà donc un certain nombre de par la grâce de qui c’est l’office,
réunis dans la même poubelle; on pourrait avoir plus désagréable com-
anna-freudonner: ANNA-FREUD + fredONNER pagnie! (Seminário D’un Autre à l’autre, Lição 13/11/1968)
Mais pourquoi ces hanes-à-liste, à liste d’attente bien entendu, faisaient stécriture: STÉnographie + éCRITURE8
la queue aux portes de l’Interfamiliale Analytique Association et anna-
-freudonnaient en coulisse le retour au berceau en me bricolant des Vous ne comprenez pas stécriture. Tant mieux, ce vous sera raison de l’ex-
motions d’ordre gratinées ? (Seminário RSI, Lição 11/03/1975) pliquer. Et si ça reste en plan, vous en serez quitte pour l’embarras. Voyez,
pour ce qui m’en reste, moi j’y survis. Encore faut-il que l’embarras soit
circulature: CIRCULArité + quadraTURE sérieux pour que ça compte. (posfácio do Seminário Les Quatre Concepts
[...] cette parole fondatrice se heurtera à ce que j’appellerai, puisque nous Fondamentaux de la Psychanalyse, 01/01/1973)
sommes en présence d’un carré, le problème non pas de la quadrature du
cercle, mais de la circulature des métonymies, qui restent bel et bien dis- 2.2 Apócope simples: mantém-se intacto o segundo elemento.
tinctes, même dans le conjungo le plus idéal.(Seminário Les Formations
de l’Inconscient, Lição 18/12/1957) âmoralité: Âme + MORALITÉ
extimité: EXtériorité + inTIMITÉ Les pervers, on a alors commencé à en rencontrer, c’est ceux-là qu’Aris-
tote ne voulait voir à aucun prix. Il y a chez eux une subversion de la
En fin de compte, si nous partons de ce que nous décrivons comme ce lieu
conduite appuyée sur un savoir-faire, lequel est lié à un savoir, au savoir
central, cette extériorité intime, cette extimité qui est la Chose, peut-être
de la nature des choses, il y a un embrayage direct de la conduite sexuelle
ceci éclairera-t-il pour nous ce qui reste encore une question... (Seminário
sur ce qui est sa vérité, à savoir son amoralité. Mettez de l’âme au départ
L’Éthique de la Psychanalyse, Lição 10/02/1960)
là-dedans - l’âmoralité... (Seminário Encore, Lição 13/03/1973)
hainamoration: HAINe + énAMORATION
crachose: CRAchat + CHOSE9
Ce que pour vous aujourd’hui j’écrirai volontiers de l’hainamoration est
Si nous nouons, comme c’est ici représenté [...], le Symbolique avec le Réel,
le relief qu’a su introduire la psychanalyse pour y situer la zone de son
ce qui bien sûr serait l’idéal, à savoir, que puisque les mots font la chose, la
expérience. C’était de sa part un témoignage de bonne volonté.[...] Je ne
Chose freudienne, la Crachose freudienne, je veux dire que c’est justement
pense pas, malgré tout ce qu’on a pu raconter par exemple de Lénine, que
de l’inadéquation des mots aux choses que nous avons affaire. Ce que J’ai
la haine ni l’amour, que l’hainamoration, en ait vraiment étouffé aucun.
appelé la Chose freudienne, c’était que les mots se moulent dans les choses.
(Seminário Encore, Lição 20/03/1973)
Mais il est un fait, c’est que ça ne passe pas, qu’il n’y a ni crachat ni crachose
jalouissance: JALOUsie + jouISSANCE et que l’adéquation du Symbolique ne fait les choses que fantasmatique-
ment [...]. (Seminário Le Moment de Conclure, Lição 15/11/1977)
On en reste [...] à la notion de la haine jalouse, celle qui jaillit de la
jalouissance, de celle qui s’imageaillisse du regard chez Saint Augustin
qui l’observe, le petit bonhomme. (Seminário Encore, Lição 20/03/1973)
8 Segundo Elisabeth Roudinesco (1994, p. 324), essa palavra-valise manifesta “o quanto
lalanglaise: LA + LANgue + anGLAISE Lacan parecia desprezar a passagem da fala à escrita”.
9 Sobre este neologismo, diz Roudinesco (1994, p. 374): “crachose, para significar ao mesmo
tempo a chose [coisa] freudiana e o fato de Freud ter inventado uma prática de falar muito
(cracher, cuspir, salivar)”.

130 131
demansion: DEmeure + diMENSION = DEmension + MANSION bien dire que ça se termine au niveau du ça, et que c’est assez court.
La vérité n’est pas le contraire du semblant, la vérité si je puis dire est cette (Seminário Le Sinthome, Lição 18/11/1975)
dimension, ou cette demansion, d.e.m.a.n.s.i.o.n, si vous me permettez corps-sistance: CORPS + subSISTANCE
de faire un nouveau mot, pour désigner ces godets, cette demansion qui
est strictement corrélative de celle du semblant. Cette demansion, je vous Le matériel se présente à nous comme corps-sistance, je veux dire sous la
l’ai dit qui, cette dernière, celle du semblant, la supporte. (Seminário D’un subsistance du corps, c’est-à-dire de ce qui est consistant [...]. (Seminário
Discours qui ne serait pas du semblant, Lição 20/01/1971) L’Insu que Sait de l’Une Bévue s’Aile à Mourre, Lição 14/12/1976)

étourdit: ÉTOURdi + DIT dieu-lire: DIEU + déLIRE


Mon dire, que l’inconscient est structuré comme un langage, n’est pas du Or tout ce qui s’énonce, jusqu’à présent, comme science, est suspendu à
champ de la linguistique. C’est une porte ouverte sur ce que vous verrez l’idée de Dieu. La science et la religion vont très bien ensemble. C’est un
commenter dans le texte qui paraîtra dans le prochain numéro de mon Dieu-lire! Mais ça ne présume aucun réveil. Heureusement, y a-t-il un
bien connu apériodique sous le titre l’Étourdit - d, i, t – une porte ouverte trou. Entre le délire, social, et l’idée de Dieu, il n’y a pas de commune
sur cette phrase que j’ai l’année dernière, à plusieurs reprises, écrite au mesure. (Seminário L’Insu que Sait de l’Une Bévue s’Aile à Mourre, Lição
tableau sans jamais lui donner de développements. (Seminário Encore, 17/05/1977)
Lição 10/04/1973)
dit-mension: DIT + dimension
parlêtre: PARLer + ÊTRE C’est la dit-mension dont vous savez qu’elle me permet, [...] celle donc, dont
[...] mais s’il n’y avait pas ce diable de symbolique à le pousser au der- j’instaure le sujet dans ce que je vais appeler aujourd’hui encore, puisque je
rière, pour qu’en fin de compte il éjacule et que ça serve à quelque chose, fais de la littérature et que je suis gai, vous allez le reconnaître, je l’avais écrit
mais il y a longtemps qu’il n’y en aurait plus, n’est-ce pas! de ces parlêtres, sous une forme, ces derniers temps, celle-ci le Hun-en-peluce. (Seminário
de ces êtres qui ne parlent pas seulement à être, mais qui sont parlêtres. D’un Discours qui ne serait pas du semblant, Lição 12/05/1977)
(Seminário RSI, Lição 17/12/1974)
2.4 Síncope e apócope: supressão no meio do primeiro elemento e no final
polylinguisterie: POLYlogue + LINGUISTERIE do segundo, combinação não prevista nos modelos propostos.
J’aimerais quand même m’informer, auprès de Julia Kristeva, puisqu’elle
a fait l’effort, ce matin, de bien vouloir se déranger, comment elle conçoit condansation: CONdensATION + DANse
ce Polylogue. J’aimerais bien qu’elle me dise si ce Polylogue, comme peu-
t-être enfin il m’apparaît pour autant que j’ai pu le lire - car je ne l’ai pas [...] c’est la danse. Ça permettrait d’écrire un peu différemment le terme
reçu il y a longtemps - si ce Polylogue est une polylinguisterie, je veux de condansation. (Seminário Le Sinthome, Lição 11/05/1976)
dire, si la linguistique y est en quelque sorte - ce que je crois qu’elle est, aphliger: AffLIGER + Phallus
quant à moi -, plus qu’éparse, est-ce que c’est ça que par Polylogue elle a
voulu dire ? (Seminário L’Insu que Sait de l’Une Bévue s’Aile à Mourre, C’est le complément bien inutile du fait que c’est le signifiant un et sans
Lição 17/05/1977) trou, sans trou dont il soit permis de se servir dans le nœud borroméen,
qui, à un corps d’homme asexué par soi (Freud le souligne), donne le
partenaire qui lui manque. Qui lui manque comment? Du fait qu’il est,
2.3 Aférese simples: o primeiro elemento permanece intacto.
si je puis dire, aphligé (aphligé à écrire comme ça) aphligé réellement
d›un phallus qui est ce qui lui barre la jouissance du corps de l›Autre.
Çade: ÇA + Sade (Seminário RSI, Lição 11/03/1975)
Vous écrirez Sade comme vous voudrez -soit avec une majuscule, pour
rendre un hommage à ce pauvre idiot qui nous a donné là-dessus d’inter-
minables écrits - soit avec une minuscule, puisque c’est en fin de compte
sa façon à elle d’être agréable, et qu’en vieux français, c’est ce que ça veut
dire - soit, mieux, çade, pour dire que la moralité, il faut tout de même

132 133
2.5 Dévalisés necessários e suficientes. O limite superior de constituintes não é defini-
tivamente atribuível” (tradução nossa). Além disso, em todos esses novos
Segundo Grésillon (1984, p. 26), os neologismos dévalisés são aqueles
itens lexicais, Lacan mostra-nos direta ou indiretamente a trajetória da
que repousam na assimilação aproximada de uma palavra usual, C, de
criação, ou seja, ele indica ao ouvinte o ponto de partida e o encaminha-
suas duas partes A e B, também usuais e resultando de uma cisão falaciosa
mento da criação do neologismo. “Os parâmetros formais [das palavras-
de C. Apresentam alguns traços das palavras-valise – reunião estranha de
-valise] fornecem as condições de formação”, ensina-nos Grésillon (1984,
duas palavras usuais, nem derivação, nem composição, o processo de reu-
p. 26), mas desvela-se igualmente a existência de uma relação semântica
nião-cisão se sustenta também na homofonia –, mas diferem em outros:
entre seus constituintes, mais evidente em alguns casos do que em outros.
“o produto não é uma palavra totalmente nova, pois se assemelha como
Encontram-se seis tipos de relações semânticas nas palavras-valise
um irmão gêmeo a uma palavra usual [...]; a (quase-homofonia) não
dos Seminários: sinonímia, antonímia, homonímia, identidade fonética e/
opera entre A e B como no caso da palavra-valise, mas entre a reunião de
ou gráfica de palavras com significados diferentes, paronímia, analogia e
(A + B) de um lado e de C, de outro.”
proximidade de campo semântico. Vejamos alguns exemplos.
C’es: ça + c’est
La meilleure façon que je trouve de l’indiquer – je l’ai déjà plusieurs fois a) Sinonímia, palavras com significados próximos: anificiel/orificiel.
suggéré quelque part – c’est de **restituer** à sa vraie forme la cédille b) Antonímia, palavras com significados opostos: extime: extériorité/
du «ça» en français. Ce n’est pas une cédille, c’est une apostrophe, c’est, intime; extimité: extérité/intimité; hainamoration: haine/amour.
dans l’apostrophe du «c’est», la première personne de l’inconscient et vous
pouvez même barrer le t de la fin: «c’es» voilà une façon d’écrire le sujet c) Homonímia, palavras semelhantes gráfica e/ou foneticamente:
au niveau de l’inconscient, le sujet du fantasme. (Seminário Le Transfert, âmoralité/amoralité; âmoureux/amoureux; anthropie/entropie;
Lição 28/06/1961) aphliger/affliger; çade/Sade; condansation/condensation; corps-de/
lituraterre: LITURA + littérature corde; dit-mension/dimension; é-pater/épater; étourdit/étourdi;
Ce mot, lituraterre, que j’ai inventé, se légitime de l’Ernout et Meillet, hontologie/ontologie; hystorique/historique; parêtre/paraître; pho-
comme il y en a peut-être qui ici savent ce que c’est; c’est un dictionnaire teuil/fauteuil; raie-sonner/résonner; réti-sens/réticense.
dit étymologique du latin. Cherchez à lino, litura, et puis liturarius. Il est
bien précisé que ça n’a rien à faire avec littera, la lettre. Que ça n’ait rien
d) Paronímia, palavras semelhantes na forma e diferentes no signi-
à faire, moi je m’en fous. Je ne me soumets pas forcément à l’étymologie ficado: muroir/miroir; archéophélie/archéologie; merdeuil/merteil;
quand je me laisse aller à ce jeu de mots dont on fait à l’occasion le mot poubellication/publication; poubellique/publique ; rhétifer/rectifier;
d’esprit, le contrepet, en l’occasion évident, m’en revenant aux lèvres et le rhétification/rectification.
renversement à l’oreille. (Seminário D’un Discours qui ne serait pas du
semblant, Lição 12/05/1971) e) Analogia, palavras criadas a partir de um modelo preexistente:
autron/palavras formadas pelo sufixo -on da Física; circulature/
quadrature; corps-sistance/consistance; cosméticuleuse/méticu-
3. considerações finais
leuse; déjet/déchet; dis-corps/discours; élangue/élation; é-pater/
Para criar as palavras-valises dos Seminários, formadas pela agluti- épater; étourdit/étourdi; hainamoration/énamoration; horsexe/
nação de dois elementos, Lacan recorre a esses quatro processos formais horla; lalanglaise/lalangue; polylinguisterie/linguisterie; raie-son-
diferentes: apócope e aférese, apócope simples, aférese simples e síncope ner/résonner; sexuilatence/sexuisemblance.
e, por fim, apócope. Vale ressaltar que nenhum desses neologismos escapa Note-se, ainda, que polylinguisterie e lalanglaise se formam a partir
à regra básica de formação quanto ao número de constituintes, conforme de criações neológicas do próprio Lacan: linguisterie e lalangue.
nos ensina Grésillon (1984, p. 15): “dois constituintes de base são em geral

134 135
f) Proximidade de campo semântico: neste caso, as palavras não ______. D’un Autre à L’autre 1968-1969. Publication hors commerce. Document
pertencem ao mesmo campo semântico, mas há uma interse- interne à l’Association Freudienne et destiné à ses membres.
ção de sentidos. Com efeito, o substantivo mirage refere-se a um ______. D’un discours qui ne serait pas du semblant, 1971. Version AFI.
fenômeno óptico ou a uma aparência enganosa, que leva a uma Encore: 1972-1973. Seuil.
ilusão; o adjetivo imaginaire refere-se a algo criado pela imagina- ______. Le désir et son interprétation: Séminaire 1958-1959. Publication hors com-
ção, que também pode levar a uma ilusão. Observe-se, também merce Document interne de l’Association freudienne internationale et destiné à
que miraginaire pode ter sido criado em analogia com o adjetivo ses membres.
miragineux,-euse referente a mirage, considerado raro e literário: ______. Écrits. Seuil: Paris, 1966.
miraginaire: mirage/imaginaire. ______. Écrits techniques: Séminaire 1953-1954. Publication hors commerce.
Document interne à l’Association freudienne internationale et destiné à ses
Vale lembrar que algumas palavras-valise podem encerrar mais de membres.
uma relação semântica. É o caso de raie-sonner (homonímia e analogia), ______. L’envers de la psychanalyse: 1969-1970. Texte établi par Jacques-Alain
hainamoration (antonímia e analogia), épater (homonímia e analogia), Miller. Seuil, 1991.
étourdit (homonímia e analogia). ______. L’éthique de la psychanalyse: Séminaire 1959-1960. Publication hors com-
Por fim, relembremos que a criação de palavras-valise é apenas um merce. Document interne à l’Association freudienne internationale et destiné à
dos processos neológicos de Jacques Lacan, que também recorre aos pro- ses membres.
cessos de derivação e composição, decalque, criações por associação, aos ______. Les formations de l´inconscient: Séminaire 1956-1957. Seuil, 1998.
empréstimos internos, o que evidencia um profundo conhecimento lin- ______. L’identification: Séminaire 1961-1962. Publication hors commerce
guístico, aliado a um novo aparato conceitual. Document interne à l’Association freudienne internationale et destiné à ses
membres.
referências bibliográficas ______. L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre: Séminaire 1976-1977.
Publication hors commerce. Document interne à l’Association freudienne inter-
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destiné à ses membres. nationale et destiné à ses membres.

136 137
______. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973. Notas sobre três traduções
______. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse: 1964. AFI.
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MARTINS, Evandro Silva. A neologia na literatura: a criação milloriana. In:
ISQUIERDO, Aparecida Negri; KRIEGER, Maria da Graça (Org.) As Ciências A discussão pública das traduções de Freud é, como se sabe, antiga,
do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande, MS: Ed UFMS,
tanto no exterior como no Brasil. Isso tem a ver com a importância da
2004. v. 3. p. 53-64.
obra de Freud para os os interessados de vários campos do conhecimento,
______. A Neologia na Literatura: a Criação Milloriana. In: ISQUIERDO,
Aparecida Negri; KRIEGER, Maria da Graça (Org.) As Ciências do léxico: lexicolo-
desde os psicanalistas e estudiosos de ciências humanas até escritores e
gia, lexicografia, terminologia. Campo Grande, MS: Ed UFMS, 2004. v. 3. p. 53-64. artistas. O debate em torno das traduções de Freud tem a ver também
PÉLISSIER, Yan et al. 789 neologismes de Jacques Lacan. Paris: EPEL, 2002.
com a interpretação de seu legado pelos diferentes leitores e tem a ver
ainda com um traço específico de Freud, que abriga em seu texto elemen-
ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Estruturas Morfológicas do Português. Belo
Horizonte: UFMG, 1998. tos de um amplo leque de discursos: científico, de humanidades, literário
e jornalístico. Essa ambiguidade de tom do texto freudiano, frequente em
REUILLARD, Patrícia. C. R. REUILLARD, Patrícia Chittoni Ramos. Neologismos
Lacanianos e Equivalências Tradutórias. Tese de Doutorado, Porto Alegre, grandes pensadores, se dá por uma mistura bem própria de rigor lógico
UFRGS, 2007. e inventividade, clareza expositiva e elegância formal. Assim, seu texto se
ROUDINESCO, Elisabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um parece bastante com o texto artístico e é talhado, portanto, para provocar
sistema de pensamento. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das discussões em vários planos. Como pensador universal, é mais lido em
Letras, 1994. outras línguas do que em sua própria e é natural, portanto, que o debate
SABLAYROLLES, Jean-François. La néologie en français contemporain: examen du sobre suas ideias envolva o debate sobre sua tradução. Segundo as esco-
concept et analyse des productions néologiques récentes. Paris: Honoré Champion, lhas do tradutor ou do editor, o texto freudiano traduzido irá privilegiar
2000. diferentes elementos do texto original. Com a entrada do corpus freu-
SANDMANN, Antonio José. Formação de Palavras no Português Brasileiro con- diano em domínio público, e a consequente multiplicação de traduções e
temporâneo. Curitiba: Scientia et Labor/Ícone, 1998. retraduções, o debate tende a se tornar mais rico.
______. Morfologia Geral. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1993. Lacan, cuja obra deu uma nova direção à Psicanálise, divide com
______. Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto, 1992. Freud algumas características, que fazem dele mais um parceiro do que
propriamente um discípulo do fundador da Psicanálise. Entre essas

138 139
características, está o seu discurso, que é, assumidamente, o de um mes- parte dos escritos de Lacan teve origem oral, esse leitor costuma ser um
tre. Moustapha Safouan nota, a este respeito: “Na relação com seu público, ouvinte. No entanto, não se trata de um ouvinte convidado, retoricamente,
ele era realmente messiânico. Quando falava com eles, Lacan chamava-os ao diálogo, como em Freud, mas de um ouvinte que ouve a lição do mes-
de discípulos, porta-vozes, e mesmo apóstolos”1 (SAFOUAN, s/d ). Safouan tre. Enquanto Freud procura ser claro, Lacan adota, com frequência, um
explica esse traço de Lacan pela transcendência de sua contribuição para estilo barroquizante, longe da tradição textual hegemônica na França,
a Psicanálise: que tem na clareza um de seus principais princípios. Fazem parte dos
traços barroquizantes de Lacan o gosto do neologismo e dos trocadilhos
Quando ele trabalhava comigo, pessoalmente, eu nunca trabalhei tão
autenticamente com ninguém em minha vida como trabalhei com ele. Mas e as citações múltiplas, entre outras, de textos de Filosofia, Psiquiatria,
quando ele se dirigia a um público mais amplo, ele mudava. Ele tinha uma Literatura e Arte.3
alta estima por sua obra, por suas inovações. De fato, ele introduziu con- Aqui, vou abordar algumas características de três traduções do Livro
ceitos que eram absolutamente novos e esses conceitos se tornaram moeda 3 do Seminário de Lacan, que parece representar uma ruptura em relação
comum. O próprio conceito de Outro como lugar da linguagem e da fala.
Ele estava recriando a Psicanálise e fez disso sua obra de vida. Talvez seja aos dois anteriores. Para Moustapha Safouan, o terceiro seminário difere
preciso essa dimensão narcisística em relação à própria obra para que você dos dois anteriores, em que havia mais proximidade entre apresentador
encontre a energia suficiente e as razões para dedicar a vida a isso. Há pes- e público:
soas que têm o caráter de serem concentradas e dedicadas. E aí você obtém
a dimensão da pregação2 (SAFOUAN, s/d ). Os intercâmbios tão animados entre Lacan e seus ouvintes durante os semi-
nários precedentes faltam, lamentavelmente, aqui. Fato tão mais surpreen-
Assim, Lacan costuma retomar o discurso freudiano, não para invo- dente por seu discurso se dirigir a psiquiatras e psicanalistas. Esta falta se
car uma autoridade, mas para destacar um ponto específico e propor sua explica, sem dúvida, pela extraordinária originalidade das ideias antecipa-
das por Lacan (que só retém, de toda a tradição psiquiátrica, a noção do
interpretação pessoal. Se, na invenção, Lacan se aproxima de Freud, sua automatismo mental, de seu mestre Gaétan Gatian de Clérambault) e que
relação com a linguagem e com o público é diferente. Enquanto Freud seus alunos dessa época (1955-1956) escutavam pela primeira vez, antes que
costuma ser questionado por suas ideias, Lacan costuma ser questionado sua repetição lhes desse uma certeza equivocada.4 (Safouan 2008: 43-57).
pela forma como apresenta suas ideias.
Enquanto Freud se dirige, frequentemente, ao grande público, Lacan Estas três traduções são a tradução para o português, que examinei
se dirige, de preferência, ao analista. Isso tem consequências no uso da mais detalhadamente, e as traduções para o espanhol e para o inglês, que
língua, pois, ao dirigir-se aos colegas de profissão, ele supõe um conhe- serão usadas para colocar em perspectiva internacional as opções da tra-
cimento compartilhado tanto da obra de Freud como da clínica. Dessa dução brasileira.
postura parece derivar a abundância de elipses e de sugestões, que con- O corpus é constituído pelos seguintes textos:
tam com a complementação do leitor para seu entendimento. Como boa Original: LACAN, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan Livre III: Les
psychoses (1955-1956), Seuil, 1981.
1 “In his relationship with this audience, he was truly Messianic. When he talked to them he
called them his pupils, his spokesmen, even his apostles.”
2 “When he worked with me, personally, I’ve never worked more authentically with anybody 3 Ver Le Gaufey, Guy. Index des noms propres et titres d’ouvrages dans l’ensemble des séminai-
in my life than with him. But when he addressed a larger audience he changed. He had res de Jacques Lacan. Paris: E.P.E.L., 1998.
a very high estimation of his work, of his innovations. As a matter of fact, he introduced 4 “Los intercambios tan animados entre Lacan y sus oyentes durante los dos seminarios
concepts that were absolutely new, and they became common currency. The very concept precedentes aquí lamentablemente faltan. Hecho tanto más sorprendente cuanto que
of the Other as the site of language and speech. He was recreating psychoanalysis and he su discurso se dirigía a psiquiatras y psicoanalistas.Esta falta se explica sin duda por la
made it his life’s work. Maybe you need such a narcissistic dimension in relation to your extraordinaria originalidad de las ideas anticipadas por Lacan (quien sólo retiene de toda
work so that you can find the energy and the reasons to devote your life to it. There are la tradición psiquiátrica la noción del automatismo mental, de su maestro Gaétan Gatian
people who have the character of being single-minded and dedicated. And then you get the de Clérambault) y que sus alumnos de esta época (1955-1956) escuchaban por primera vez
dimension of preaching.” antes que su repetición les dé una certeza equivocada.”

140 141
Tradução brasileira: LACAN, Jacques. O Seminário Livro 3 As psicoses. bastante representativo dessa configuração assimétrica entre os sistemas
Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de Aluisio anglo-americano, hispânico (sobretudo argentino) e de língua portu-
Menezes. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. [Primeira guesa (sobretudo brasileiro) na importação de Lacan.
edição: 1985; segunda edição revista 1988. Reimpressões: 1992, 1997.]
Tradução para o espanhol: LACAN, Jacques. Las psicosis, 1984. lacan em geral
Traducción de Juan-Luis Delmont-Mauri y Diana Rabinovich. Barcelona/
O que primeiro chama a atenção de um leitor de Freud quando aborda
Buenos Aires: Paidós, 1984.
os textos de Lacan é a similaridade em termos de ousadia intelectual. Não
Tradução para o inglês: LACAN, Jacques. The Psychoses. The Seminar
por acaso, Lacan ocupa o posto que ocupa entre os psicanalistas. Com
of Jacques Lacan. Edited by Jacques-Alain Miller. Book III 1955-1956.
ele, temos um seguidor de Freud que propõe interpretações e conceitos
Translated with notes by Russell Grigg. London: Routledge, 1993.
novos. A grande diferença está na linguagem utilizada: enquanto Freud
se dirigia a um público amplo, Lacan se dirige sobretudo a seus colegas
A tradução para o espanhol foi publicada em 1984, ou seja, três anos analistas. A diferença de atitude em relação ao público se reflete no tipo
após a publicação na França. Se Freud foi traduzido primeiro na Espanha de língua utilizada: enquanto Freud privilegia, com frequência, a língua
e depois na Argentina, Lacan foi publicado por uma editora espanhola corrente e expressões cotidianas, Lacan se vale de neologismos e jogos de
mas traduzido por psicanalistas argentinos, confirmando o papel de des- palavras ligados a singularidades da língua francesa.
taque que a Psicanálise tem ocupado no país vizinho, tanto no âmbito his- Alain Mouzat, no artigo “A tradução de Lacan, uma operação de
pânico como no âmbito mundial. De fato, os argentinos desempenharam transferência”, publicado em A tradução de obras francesas no Brasil,
um papel relevante na importação das ideias lacanianas no Brasil, como resume as idiossincrasias do texto lacaniano:
mostra Maurício Santana Dias em Em nome do pai: A construção do mito
A obra de Lacan coloca problemas para a tradução. O primeiro deles se
Lacan (DIAS, 2001). impõe, logo de saída, quando se trata de definir o que são os textos originais,
A tradução brasileira, de 1985, é, portanto, a segunda das três, já que o que há para ser traduzido. (MOUZAT 2011: 176)
foi publicada um ano depois da edição argentina, mas antecede a inglesa
Mouzat nota que a obra de Lacan é constituída pelas coletâneas de
em 8 anos. Apesar da conhecida concentração de psicanalistas em Buenos
artigos Ecrits (1966), reunidos por François Wahl e Autres Ecrits (2001),
Aires, essa tradução mostra que os meios psicanalíticos brasileiros estão
reunidos por Jacques-Alain Miller, genro de Lacan, que editou também os
bem sintonizados com os meios psicanalíticos franceses. A segunda edi-
Séminaires. Sobre os Séminaires, proferidos entre 1953 e 1980, primeiro no
ção, de 1988, mostra a preocupação da editora em estar próxima à comu-
hospital Sainte Anne e depois na Ecole Normale Supérieure, diz Mouzat:
nidade lacaniana, ao acrescentar, na página de créditos, a seguinte nota:
“O Editor agradece ao Dr. Jorge de Figueiredo Forbes e à revista Clínica Esses seminários públicos são estenografados em cópias carbono (três); a
Lacaniana pelas correções ao texto da primeira edição brasileira.” partir de certo momento são também gravados em fitas magnéticas e muitos
ouvintes tomam notas que depois passam a limpo. Lacan recusará qualquer
Nos anos seguintes, esse quadro se mantém, com as traduções de publicação dos seminários até 1973, quando Jacques-Alain Miller estabelece
Lacan para o espanhol e para o português brasileiro sendo publicadas o texto do seminário Les quatre concepts fontamentaux de la psychanalyse, o
mais rapidamente e de forma mais completa do que as traduções para o primeiro a ser publicado nas Editions du Seuil, na coleção Champ Freudien,
inglês. No entanto, a indústria editorial de língua inglesa, aliada ao seu fundada por Jacques Lacan, em que ele aparece como autor, com texto esta-
belecido pelo Jacques-Alain Miller (MOUZAT 2011: 177).
sistema acadêmico, faz com que as traduções para o inglês apresentem
algumas vantagens em relação às traduções para o espanhol e para o por- A edição de Jacques-Alain Miller, detentor dos direitos autorais, é
tuguês brasileiro, como veremos na sequência. O Livro 3 do Seminário é bastante contestada nos meios psicanalíticos. Há numerosas transcrições

142 143
alternativas disponíveis on-line, o que torna qualquer trabalho com os em Returning to Freud: Clinical Psychoanalysis in the School of Lacon (New
escritos de Lacan uma aventura na crítica genética. Haven: Yale University Press, 1980).5 (LACAN, 1993: vii).
Mouzat faz um histórico das traduções brasileiras de Lacan, obser-
Grigg assinala também a questão das numerosas citações das memó-
vando que os tradutores eram ligados ao movimento analítico, primeiro
rias de Daniel Paul Schreber, origem de conflitos terminológicos pelas
ao Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e depois à Escola Brasileira de
diferentes traduções correntes em inglês:
Psicanálise. Por outro lado, segundo Mouzat, as equipes foram ficando
cada vez mais complexas e o volume de notas foi diminuindo. A tradução deste seminário enfrenta outra complicação, advinda do fato
de que ele trata extensamente das Memórias de um doente dos nervos, de
Screber. Os termos de Schreber foram vertidos de forma diferente na tradu-
a tradução para o espanhol ção inglesa das Memórias, no caso referido na Standard Edition e no artigo
de Lacan “Questão preliminar a todo tratamento da psicose” de Écrits: A
A tradução para o espanhol foi publicada por uma grande editora Selection. Isso, em algumas ocasiões, necessitou explicação, que se encontra
de Barcelona, a Paidós. Um dos dois tradutores, a psicanalista Diana nas notas6 (LACAN, 1993: vii).
Rabinovich, afirma em uma entrevista como se aproximou de Lacan:
Grigg, em artigo na revista Ornicar, considera a questão da oralidade
Mire, yo empecé a leer seriamente a Lacan en el 66, cuando salieron los do texto dos seminários e da ampla variedade do idioleto lacaniano, que
Escritos.Hasta ese momento era muy difícil tener alguna información con-
creta.Yo diría que después del shock inicial – los seminarios no estaban – vi
contém formas populares e eruditas, de diferentes registros e momentos
que respondía a ciertos problemas que yo ya había visto en la clínica. Por eso da história da língua francesa:
me impactó (HERREROS, G.; FERRARI, N; PIETRA, G. & SAUVAL, M).
Os seminários são, no entanto, diferentes, já que, para começar, eles não
foram feitos para serem lidos mas para serem ouvidos. Ademais, os semi-
A prática da clínica e a intimidade com o conjunto da obra de Lacan
nários publicados, organizados por Jacques-Alain Miller, foram editados
pode explicar o projeto tradutório dela e de Juan-Luis Delmont-Mauri, especificamente de modo a tornar uma apresentação oral legível em forma
que produziu um texto consistente em espanhol. Podemos pensar tam- de livro. Isso significou, pelo menos para mim, que a legibilidade dos semi-
bém que a tradução dos dois se beneficiou da tradição de tradução de nários foi considerada bastante por mim ao traduzir Lacan. Tentei reter
Freud para o espanhol. algo da informalidade da apresentação de Lacan, assim como reter algo do
extraordinário leque e variedade de seu uso de língua, do “francês popular”,
no Seminário XX, ao seu interesse nos cantos secretos e abstrusos da histó-
a tradução para o inglês ria da língua, como em sua discussão das “précieuses” no Seminário III. 7
(GRIGG, 2000)
Russell Grigg, psicanalista e professor de filosofia na Deakin
University, Austrália, aborda alguns dos problemas enfrentados em sua 5 I have been mindful of James Strachey’s translations of Freud in the Standard Edition. On
the whole it has been possible to avoid major divergences from Strachey. the two excep-
tradução de Lacan em sua curta “Translator’ s Note” [Nota do tradutor], tions being to render “investissement” as “investment” rather than “cathexis” and “pul-
que antecede o texto do Seminário 3. O primeiro é o problema termino- sion” as “drive” rather than “instinct.” In this I follow the practice adopted by the trans-
lators of Seminars I and II and by Stuart Schneiderman in Returning UJ Freud: Clinical
lógico: Psychoanalysis in the School of Lacon (New Haven: Yale University Press, 1980).
Levei em conta as traduções de James Strachey de Freud na Standard 6 “The translation of this seminar is faced with one further complication arising from the
Edition. fact that it deals extensively with Schreber’s Memoirs of My Nervous Illness. Schreber’s
terms have often been rendered differently in the English translation of the Memoirs, in
No geral, foi possível evitar maiores divergências com Strachey, as duas exce- the Standard Edition case history, and in Lacan’s article, “The question preliminary to any
ções sendo traduzir “investissement” como “investment” em vez de “cathe- possible treatment of psychosis,” in Écrits: A Selection. This has, on a very small number of
occasions, required some explanation, which will be found in the footnotes.”
xis”; e “pulsion” como “drive” em vez de “instinct”. Nisso, eu segui a prática
7 “The seminars are different however since, for a start, they were not delivered to be read but
adotada pelos tradutores dos Seminars I e II e por Stuart Schneiderman
to be listened to. Moreover, the published seminars, edited by Jacques-Alain Miller, have

144 145
Outro ponto importante levantado por Grigg são as frequentes alu- manipulador da sintaxe francesa até os seus extremos limites de diagra-
sões à tradição psiquiátrica francesa: mação frásica”. (Cesarotto 1995: 179).
Ora, no Seminário III, há numerosas alusões à tradição psiquiátrica fran-
cesa, que é amplamente desconhecida no mundo de língua inglesa. Aqui o a tradução para o português brasileiro
tradutor é forçado a assumir o papel de editor, tendo que escolher quando
acrescentar, ou não, uma nota explicativa ao leitor.8 Contrariamente ao que acontece com a tradução para o inglês, na tra-
dução brasileira a presença do tradutor é discreta. Não se sabe exatamente
Finalmente, em artigo publicado na revista Ornicar nº 125, Grigg qual o grau de liberdade de que dispôs o tradutor e até que ponto as deci-
toca na questão do estilo de Lacan: sões tradutórias são opções do tradutor ou do editor. O tradutor, Aluisio
O estilo de Lacan é, pelo menos para mim, uma das dificuldades mais inex- Menezes, possui graduação em psicologia pela Estácio de Sá e graduação
tricáveis para o tradutor, pela simples razão de que o estilo, de fato, não em Português, mestrado em Comunicação e doutorado em Letras pela
funciona bem em inglês. Embora Lacan não tenha obtido prêmios, Prêmio UFRJ, com atuação docente nas Faculdades Integradas Hélio Alonso.
Goethe, ou outro, de Literatura, ele é, entretanto, um tipo de estilista. Em
Sua voz aparece explicitamente apenas nas últimas páginas do livro
seus escritos, ele é frequentemente elíptico e altamente alusivo. Há muitas
referências filosóficas, lierárias, religiosas que estão claramente explicitadas. onde estão as “Notas de Tradução” (363-366) e “Agradecimentos do tra-
Também, seu estilo escrito é altamente formal, estruturado e sintaticamente dutor”.
complexo, criando um efeito maneirista barroco ou rococó.9 (GRIGG, 2000) As “Notas de tradução” recolhem as 37 notas que aparecem no corpo
da tradução e tratam de questões pontuais de língua. No entanto, a nota 4
De fato, embora os neologismos de Lacan tenham chamado mais
é mais extensa e merece um comentário. Trata da espinhosa questão dos
a atenção do público e dos pesquisadores,10 há um Lacan mallarmeano,
pronomes de tratamento no português brasileiro.
como assinala Oscar Cesarotto, retomando uma observação de Jan Miel,
na revista Yale French Studies (36-37, 1966, pp. 110-111): “na esteira de Ao longo da tradução faremos uso de você e tu para traduzir o tu fran-
Mallarmé, Lacan é também um ‘syntaxier’ (um ‘sintaxista’), um exímio cês. Como se sabe, em francês, o registro do tu é antes familiar, íntimo,
ao contrário da distância posta pelo vous (no lugar da segunda pessoa),
que é formal, demarcador de posição na convencionalidade do discurso.
been edited specifically so as to make an oral presentation readable in the form of a book. É bom não esquecer também que o tu, como em português, pode recobrir
This has meant, at least for me, that the readability of the seminars has been an important
o uso bíblico dos mandamentos. O nosso você brasileiro (friso isso porque
consideration in translating Lacan. I’ve tried to retain some of the informality of Lacan’s
presentation as well as something of the extraordinary range and variety in his use of lan- o sistema de pronomes ditos de tratamento no uso português é bem mais
guage, from “le français populaire”, as in “Seminar XX”, to his interest in the arcane and complexo que em francês) açambarca a maior intimidade, a boa distância
abstruse corners of the history of his language, as in his discussion of “les précieuses” in formal e a justa indiferença respeitante da convencionalidade. Nem sempre
“Seminar III.” foi possível manter a equivalência formal do tu (fr.) com o você, reservando
8 “Or in “Seminar III” there are the numerous allusions to the French psychiatric tradition, o tu (port.) somente para as frases de cunho bíblico. As análises pormeno-
which is largely unknown in the English-speaking world. Here the translator is forced to rizadas que Lacan fará mais adiante das frases com tu, por todas as suas
assume the role of editor, having to choose when or when not to add an explanatory note implicações, nos obrigará a uma tradução literal para que não se perca a sua
for the reader.”
minúcia, o que aconteceria se empregássemos você. Em suma, empregare-
9 “Lacan’s style is, for me at least, one of the most intractable difficulties for the translator, for
the good reason that the style doesn’t actually work very well in English. While Lacan never
mos dominantemente o você por princípio, reservando o tu para os casos
won any prizes, Goethe or other, for literature, he is nevertheless a stylist of sorts. In his em que perderemos determinadas explorações que ele fará, ou pelo sentido.
writings he is often very elliptical and highly allusive. There are many philosophical, literary, (LACAN, 1997: 363-364)
religious references that are not clearly spelled out. Also, his writing style is highly formal
and structured and syntactically complex, creating a mannered baroque or rococo effect.”  Na nota 34, Aluisio Menezes observa que “em nosso falar frequen-
10 Entre esses estudos, cabe destacar a tese de doutorado de Patricia Chittoni Ramos Reuillard temente misturamos você e tu”, o que sugere sua opção pela variante do
Neologismos lacanianos e equivalências tradutórias. Disponível em: <http://www.lume.
ufrgs.br/handle/10183/12506>. Acesso em: 15 abr. 2016. Sudeste, em sua versão carioca. Cabe notar que essa variante é a mais

146 147
usada nas traduções brasileiras, entre outras razões, pelo fato de a indús- em sua tese de doutorado sobre as traduções de Lacan para o português
tria editorial do país estar concentrada nessa região, assim como parcela brasileiro. Diz ela sobre o Seminário 3:
importante do poder econômico e político.
Nos cinco casos de derivação abaixo, o tradutor, partindo das regras de
Uma decisão editorial, tomada provavelmente por economia, é a de derivação em língua portuguesa e servindo-se da tradução literal, criou
traduzir as citações em língua estrangeira não das línguas estrangeiras neologismos tal qual Lacan:
mas da tradução francesa. No caso do texto de Schreber, amplamente
Personnaison (derivação): “poderemos na próxima vez examinar o papel da
comentado no livro, isso está explicitado na p. 6: “As referencias à obra do personação do sujeito...” (LACAN, 1985, p. 304).
presidente Schreber, As memórias de um nevropata, são dadas na edição
francesa (Seuil, 1975).” Tutoité (derivação)59: “porque essa destruição [...] se oculta no que chama-
remos de tutealidade” (LACAN, 1985, p. 341).
Cabe notar que a tradução brasileira de Denkwürdigkeiten eines
Nervenkranken de Marilene Carone, intitulada Memórias de um doente Hameçonnage (derivação): “O tu é a anzoleagem do outro na onda da
dos nervos, foi publicada pela Graal em 1984, um ano antes da primeira significação” (LACAN, 1985, p. 337).
edição da tradução brasileira do Seminário 3, que foi publicada em 1985. Séglassien (derivação): “a pequena revolução séglassiana está longe de nos
Como costuma acontecer com traduções de línguas românicas no ter trazido a palavra do enigma, Séglas ficou na exploração fenomênica da
Brasil, o literalismo constitui um dos traços desta tradução, talvez exacer- alucinação...” (LACAN, 1985, p. 34) (Reuillard 2007: 178-179).
bado pela importância que o significante ocupa no pensamento de Lacan.
Essa abertura para o neologismo, mais pronunciada do que as tradu-
Entre os literalismos sem função aparente, está pois que traduzido
ções para o espanhol e para o inglês pode remeter a um traço da cultura
por pois que:
brasileira, observável tanto na incorporação de terminologia recente da
A dimensão da verdade é misteriosa, inexplicável, nada permite decisiva- área tecnológica como na literatura a partir da Semana de Arte Moderna
mente discernir-lhe a necessidade, pois que o homem se acomoda perfeita- de 1922.
mente à não-verdade (p. 245)

O pai é de uma realidade sagrada em si mesma, mais espiritual que nenhuma balanço das três traduções do seminaire 3
outra, pois que, em suma, nada na realidade vivida indica (p. 245)
Como é frequente na história do texto traduzido, as três traduções do
Nos dois casos, a tradução espanhola utiliza simplesmente, no pri- Seminário 3 se complementam, as virtudes de umas corrigindo os proble-
meiro caso pues e no segundo porque: mas de outras. Um traço positivo comum é a ligação dos tradutores com a
La dimensión de la verdad es misteriosa, inexplicable, nada permite captar Psicanálise, sobretudo com a prática clínica, algo central em Lacan.
decisivamente su necesidad, pues el hombre se acomoda perfectamente a la Todas são primeiras traduções do Seminário 3 para as respectivas lín-
no-verdad. guas, o que quer dizer que todas são pioneiras, a seu modo e apresentam
El padre es una realidad sagrada en si misma, más espiritual que cualquier também certas fragilidades encontráveis em primeiras traduções. Nesse
otra, porque, en suma, nada en la realidad vivida indica sentido, a mais frágil é a brasileira, entre outros, pelo tratamento dos tex-
tos citados por Lacan e pelo excessivo literalismo. A de língua inglesa
Como há 135 ocorrências de puisque no original, essa opção literali-
também pede uma retradução, apesar do engajamento do tradutor: é,
zante acaba distraindo o leitor do trabalho significativo sobre a letra efe-
talvez, a menos lacaniana das três traduções, adaptando seu texto mais
tuado por Lacan em outras palavras e expressões.
à tradição psicanalítica anglo-americana, que tem sido objeto de crítica
Por outro lado, um dos elementos positivos desta primeira tradução
consistente nas últimas décadas. A tradução espanhola parece a mais
brasileira é a atenção aos neologismos, como atestou Patrícia Reuillard

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lacaniana e estável das três, beneficiando-se de uma já longa tradição de MURRAY, Martin. Psychoanalysis: Lacanian Theory. Year’s Work in Critical
recepção crítica da Psicanálise, perdendo, no entanto para a brasileira no and Cultural Theory, v. 15 (2007) The English Association; Doi:10.1093/ywcct/
mbm002
quesito inovação linguística: a tradução brasileira, apesar dos problemas
assinalados, é a mais aberta das três aos neologismos e mistura de regis- REUILLARD, Patrícia Chittoni Ramos. Neologismos lacanianos e equivalências
tradutórias. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras.
tros típicas do texto lacaniano.
Programa de Pós-Graduação em Letras, 2007. Disponível em: <http://www.
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Alain Miller, traducción de Juan Luis Delmont-Mauri y Diana Rabinovich.
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Janeiro: Jorge Zahar, 1988. [Primeira edição: 1985; segunda edição revista 1988.
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séminaires de Jacques Lacan. Paris: E.P.E.L., 1998.

150 151
Tradução, ética e política Gostaríamos de colocar em questão esta ideia geral e bastante difun-
dida, para mostrar que antes de Lacan, em pelo menos um texto publi-
Ernani Chaves cado na França, a tradução de Trieb por “pulsion” – ou melhor, do adjetivo
substantivado Triebhaft por “pulsionnel” – já existia. Trata-se da versão
francesa do famoso texto de Walter Benjamin: A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica. Isso me dará a oportunidade para colocar a
questão das relações entre tradução, ética e política.
Este texto de Benjamin possui quatro versões, escritas entre 1935 e
1939: três delas em alemão e mais uma, a versão francesa, traduzida por
Pierre Klossowski. Com um detalhe importantíssimo: esta versão fran-
cesa foi a única publicada enquanto Benjamin ainda vivia, no número de
1936, da “Revista de Pesquisa Social”, órgão de divulgação das pesquisas
realizadas pelo famoso “Instituto de Pesquisa Social”, cujo diretor, à época
já no exílio americano, era Max Horkheimer. Na ocasião – detalhe impor-
Em seu conhecido livro sobre a questão da tradução de Freud, Paulo tante – Benjamin vivia em Paris como exilado sem pátria, pois já havia
César de Souza considera a tradução francesa de Trieb por “pulsion” perdido a cidadania alemã, por ser judeu e de “esquerda”.
como uma resposta a uma “’biologização’ injustificável” que a tradução Deixemos de lado, as diversas vicissitudes por que passaram os
inglesa do mesmo termo por “instinct” provocou.1 Tal resposta, continua textos de Walter Benjamin escritos no exílio, em especial, as frequentes
este autor, passou a ser adotada também “nas outras línguas latinas em polêmicas com Adorno. Deixemos de lado, especialmente, as polêmicas
que se traduziu (ou retraduziu) a obra de Freud”, para concluir que: “é em torno do texto ao qual nos referimos, e que foi objeto de farta docu-
significativo o fato de ‘pulsão’ ter vindo a predominar na psicanálise fran- mentação e infindáveis comentários.2 Em todas as versões de seu ensaio,
cesa, sob a égide de Jacques Lacan”. As traduções, seja a inglesa de James Benjamin mantém e desenvolve uma ideia que surgiu alguns anos antes,
Strachey, sob o comando de Ernest Jones, seja a francesa, coordenada por em 1931, em “Pequena história da fotografia”. Neste texto, ele propôs o
Jean Laplanche et al., estariam, assim, dependentes das perspectivas teó- conceito de “inconsciente ótico” (Optische-Unbewussten) a partir de uma
ricas e do ambiente cultural de onde surgiram. comparação com o “inconsciente pulsional” (Triebhaft-Unbewussten) da
Sabemos que o próprio Freud, em uma célebre carta, legitimou a tra- Psicanálise.
dução inglesa. O interessante é que, em geral, se lê esta carta de forma O enjeu da argumentação é o seguinte: interessado em compreender
inteiramente descontextualizada: se aceita, sem mais, a “sinceridade” de as profundas mudanças introduzidas na percepção humana pelos avan-
Freud, ignorando as circunstâncias fartamente documentadas na histó- ços da técnica, Benjamin procura mostrar a diferença, na relação entre
ria da psicanálise, que quase sempre o levavam a “agradar” os britânicos. homem e natureza, entre a percepção sensível, em especial a visão, e esta
Deixa-se inteiramente de lado o modo pessoal com que Freud conduziu mesma percepção a partir das transformações por ela sofridas, devido a
a “política” no interior da associação psicanalítica por ele criada. Uma determinados aparatos técnicos, em especial o fotográfico. A percepção
aliança que, não podemos deixar de reconhecer, o salvou num momento
extremamente delicado, desde a anexação da Áustria pela Alemanha em
2 Refiro-me, por exemplo, aos comentários e à documentação que se encontram no volume
1938. Com isso, as leis antijudaicas vigentes na Alemanha passaram a 1-3 dos GesammelteSchriften, de Walter Benjamin. Ou ainda, à correspondência entre
valer automaticamente na Áustria. Benjamin e Adorno, recentemente publicada em português, pela Editora da Unesp. Enfim,
a edição crítica específica deste texto, organizada por Detlev Schötker, e publicada pela
1 As palavras de Freud. O vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999, p. 16. Suhrkamp, em 2009.

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sensível, diz ele, percorre os espaços naturais, guiada pela consciência. A mais com a fotográfica. Benjamin repete, praticamente, as mesmas pala-
percepção por meio da técnica, por sua vez, percorre os mesmos espaços vras de “Pequena história da fotografia”: “Vom Optisch-Unbewussten
inconscientemente, ou seja, enquanto no primeiro caso o olhar é guiado erfährt er erst durch sie, wie von dem Triebhaft-Unbewussten durch die
por quem olha, pelo “sujeito da consciência”, no segundo, o olhar não é Psychoanalyse”.
mais o do sujeito, mas o da câmara, a qual por meio de suas funções de “A obra de arte...” foi o primeiro texto de Benjamin publicado no
ampliação e redução trabalha independentemente do olho e para além Brasil. Mas, foi apenas em 1985, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet,
ou aquém dele, isto é, como se fosse “inconsciente”. Daí, por exemplo, a da primeira versão do ensaio para o volume inicial das Obras Escolhidas
“inquietante estranheza” que pode tomar conta de nós, quando estamos publicadas pela Brasiliense, que estamos diante da tradução do triebhaft
diante de nossas fotografias antigas, uma vez que ao mesmo tempo, nos como “pulsional”. O leitor apressado é levado a atribuir a escolha do tra-
reconhecemos e nos desconhecemos nelas. Ou ainda, quando nos sur- dutor às mudanças ocorridas na recepção brasileira da Psicanálise, em
preendemos com o que vemos numa fotografia, que “trai” inteiramente dois aspectos bem precisos: a ampla divulgação entre nós do Vocabulário
nossos objetivos conscientes e pré-determinados. da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, que consagrava o termo “pulsão”,
Benjamin retoma e amplia as relações que o próprio Freud fizera assim como a expansão das escolas lacanianas no Brasil e sua presença
em passagem célebre do capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, entre cada vez maior nos meios acadêmicos. Neste sentido, Paulo Cesar Souza
o funcionamento do inconsciente e o de certos aparatos técnicos como tem razão ao relacionar tradução, perspectivas teóricas e contextos cultu-
o telescópio, o microscópio e o aparelho fotográfico. O caráter “metap- rais. Mas, não será este o princípio e o problema de toda e qualquer tra-
sicológico” deste capítulo nos instrui o suficiente para entendermos que dução? De minha parte, prefiro atribuir a posição de Rouanet a um fato
esta comparação coloca em primeiro plano não o caráter mecânico desses bem simples: profundo conhecedor da obra de Benjamin, ele optou pela
aparelhos, mas sim seu caráter dinâmico, isto é, a relação estabelecida tradução pela qual o próprio Benjamin já havia optado.
entre eles e o seu operador, seja um cientista, um técnico ou um fotó- A tradução de Klossowski para a versão francesa do ensaio sobre a
grafo. Benjamin amplia a posição de Freud em dois aspectos: primeiro, obra de arte é bem clara: “C’est elle qui nous initie à l’inconscient opti-
por uma redução paradoxal, mas necessária, uma vez que se refere ape- que comme la psychanalyse à l’inconscient pulsionnel” (“É a câmara que
nas à máquina fotográfica, isso porque um de seus objetivos é proble- nos inicia ao inconsciente ótico como a psicanálise ao inconsciente pul-
matizar a questão do “rosto” humano, mostrando a passagem da ideia sional”). Com isso, já podemos então ver que Pierre Klossowski, com a
de “retrato” (Porträt) para a de “imagem” (Bild); segundo, porque para anuência de Benjamin, traduzia “Triebhaft” por “pulsionnel”. A documen-
ele o funcionamento do “olho” da câmera obedece inteiramente ao apa- tação, à qual podemos ter acesso hoje em dia, confirma que embora o tra-
relho, independente do operador, para mostrar o caráter de autonomia balho de tradução tenha sido penoso para ambos, Benjamin deu seu aval
que adquirem nossas invenções técnicas. Isso nos permite compreender, à tradução de Klossowski. Trata-se de uma situação bem diferente da que
em toda sua extensão e radicalidade, as palavras com as quais ele encerra envolvia Freud e seu tradutor inglês. Digo isso porque é possível objetar
seu argumento: “Von diesem Optisch-Unbewussten erfährt er erst durch à minha posição, o fato de que Benjamin também poderia ter aceitado a
sie, wie von dem Triebhaft-Unbewussten durch die Psychoanalyse” (“É, tradução de Klossowski porque sua condição de expatriado não lhe dava
antes, por meio da fotografia, que ficamos sabendo do inconsciente ótico, muita margem de manobra. Ou ainda, porque precisava do auxílio finan-
da mesma maneira que, por meio da Psicanálise, ficamos sabendo do ceiro como colaborador, que recebia do “Instituto de Pesquisa Social” e
inconsciente pulsional”). que era fundamental para sua sobrevivência mínima naquela época.
Esta ideia é retomada por Benjamin no ensaio sobre a obra de arte, Em que a posição de Benjamin era diferente? Por que, ao contrá-
em todas as suas versões. A questão é a mesma, só que agora a com- rio de Freud, estamos mais seguros, neste caso específico, de sua “sin-
paração se dá entre o olho humano e a câmara cinematográfica e não ceridade”? Vou justificar minha posição apresentando dois motivos: 1)

154 155
enquanto a recepção francesa da psicanálise na época oscilava entre a restrições uma das afirmações mais importantes de Michel Foucault
recepção literária e no campo das artes em geral (o surrealismo como o em páginas decisivas do primeiro volume da História da Sexualidade,
maior exemplo) e a psiquiátrica – estou aceitando aqui a tese de Elisabeth segundo a qual a psicanálise só pôde se constituir em efetiva resistência
Roudinesco em seu estudo sobre a história da psicanálise na França - ao nazismo, justamente por opor-se às teorias da degenerescência. Ora,
Benjamin vinha de outra discussão, daquela que ele partilhava com os o imensurável valor dessa resistência é incompatível com a tradução de
membros do “Instituto de Pesquisa Social”, principalmente com Adorno Trieb por instinto.
e Horkheimer, qual seja, de que a Psicanálise era uma arma importante e Todos sabem que Benjamin formulou uma complexa teoria da tra-
decisiva no combate ao positivismo que tentava dominar a própria filoso- dução. O que o seu assentimento à tradução desta passagem de seu texto
fia, por meio, por exemplo, do Círculo de Viena ou ainda no combate às destaca explicitamente nesta complexidade é, nos parece, a relação entre
filosofias da existência (Heidegger e Jaspers, por exemplo, na Alemanha). tradução, ética e política. Do ponto de vista ético, isso significa não ape-
Estas críticas se encontram bem colocadas na aula inaugural de Adorno nas que não se pode traduzir de qualquer jeito, mas que o ponto de par-
na Universidade de Frankfurt, em 1931, intitulada “A atualidade da filo- tida de toda e qualquer tradução é a renúncia a qualquer pretensão de
sofia”, largamente inspirada, como sabemos, em Walter Benjamin; 2) reproduzir fielmente uma língua numa outra, renúncia a uma espécie de
Benjamin tomou conhecimento da teoria freudiana muito cedo, desde a identificação primária, que revelaria, entre outros, uma relação da ordem
época da universidade, de sua participação no Movimento de Juventude, do ideal, sagrada, com o texto a ser traduzido. Mas, esta posição ética se
antes da Primeira Guerra; na época de seu doutorado na Universidade de complementa necessariamente com outra, que é política, ao supor que
Berna, na Suíça, frequentou seminários sobre Freud e a partir de 1928, seu uma tradução não pode ser indiferente ou neutra em relação aos contex-
interesse pela psicanálise não só aumentou, como também começou a se tos, dos quais ela não é apenas dependente, reprodutora, mas também
cristalizar em alguns ensaios importantes, seja nas suas reflexões sobre contra os quais ela pode resistir e se posicionar.
Proust (Além do princípio do prazer, dizia ele, era um comentário indis- E, qual é o “nosso” contexto, o que nos assola e bate diariamente
pensável à Recherche proustiana) ou ainda naquelas sobre os brinquedos a nossa porta, invade nossas casas e se instaura no nosso cotidiano? É
e jogos infantis. Em outras palavras, Benjamin tinha plenas condições de um contexto cada vez mais neuronal, cognitivo, biologizante, normativo
avaliar o sentido que o Trieb freudiano poderia ter numa língua, a fran- na medida em que explícita ou implicitamente se refere a uma ordem
cesa, que ele conhecia muito bem. que é da “natureza”, contexto de esvaziamento de qualquer subjetividade.
Reunindo esses dois aspectos, poderíamos dizer que em última ins- Um contexto em que uma teoria do psiquismo passa a ser vista como
tância, a psicanálise colocava em jogo, de um modo bastante radical, a uma espécie de estágio pré-científico a ser definitivamente superado pelas
própria ideia de filosofia e com isso, os seus alicerces antropológicos. A conquistas da ciência, a única verdadeira, a que comprova, trata e cura.
concepção freudiana de inconsciente se tornava, desse modo, um cami- Nesta perspectiva Trieb por “pulsão” não é apenas uma tradução válida e
nho fértil para o entendimento das profundas transformações sofridas legítima em relação ao contexto teórico, mas continua cumprindo muito
pela percepção humana num mundo cada vez mais dominado pela téc- bem sua função de resistência, em um contexto político que procura sem-
nica, contribuindo de maneira decisiva para os processos de “desaura- pre desqualificar a psicanálise. Não apenas o texto freudiano, a teoria,
tização”, cuja análise foi uma das tarefas fundamentais da atividade de mas igualmente sua prática, sua intervenção institucional, sua inserção
Benjamin como crítico da cultura nos anos 1930. Vou ainda mais longe: nas lutas no interior das discussões sobre as políticas públicas para a
para Benjamin, não se tratava apenas de uma escolha teórica, mas saúde ou ainda nos fóruns importantes de discussão da violência urbana,
conectada com um preciso contexto político, o da ascensão do nazismo. sexual, sem contar, evidentemente, as relativas à saúde mental e ao uso de
Familiarizado com a teoria freudiana da sexualidade, tal como os “Proust- drogas. O objetivo último deste combate é, sem dúvida, eliminar o que
Papiere” claramente mostram, Benjamin poderia muito bem aceitar sem insiste em resistir, ou seja, a “pulsão”.

156 157
Les écrits de Freud avant et après leur entrée dans engagées sur les éléments de style, le vocabulaire, la terminologie, les ana-
logies, le rapport aux autres langues de spécialités etc.
le domaine public – parcours des traductions en L’objectif principal du présent travail est de s’inviter dans ce débat
europe et en Amérique du Sud1 pour faire ressortir certaines questions de “circuits de passages entre les
langues” par rapport aux traductions et aux lectures de Freud, et ce à par-
Pedro Heliodoro Tavares tir de chacune des langues les plus influentes de la psychanalyse: l’alle-
mand, l’anglais, le français, l’espagnol et le portugais du Brésil. Quelles
conséquences ont eu les avancées et les reculs liés à la réception de l’œuvre
freudienne dans chacune de ces langues et de ces cultures? Comment se
sont-elles influencées mutuellement dans la réception de cet auteur en
Europe occidentale et dans les Amériques?
Dirigeant actuellement avec le psychanalyste Gilson Iannini une
nouvelle collection brésilienne intitulée Œuvres incomplètes de Sigmund
Freud,2 j’aimerais m’attarder sur les pôles de ce “circuit de langues”: la
langue de départ, l’allemand et la langue pour laquelle nous traduisons,
le portugais du Brésil. Mais il ne s’agit en aucun cas de laisser de côté les
contributions fondamentales des trois autres langues qui ont fortement
Si l’approche de Sigmund Freud sur les rapports de la sexualité au
influencé la réception de Freud en Occident: chronologiquement, il y a
corps et à la culture a marqué un tournant dans les conceptions sur la
d’abord eu la version anglaise d’Ernest Jones, grand politicien de la psy-
subjectivité, c’est seulement après un retour sur son œuvre, à partir d’une
chanalyse après la mort de Freud, et de James Strachey, sorte de “saint
lecture en langue étrangère, qu’un autre aspect a été mis en lumière: le
Jérôme” de l’œuvre freudienne avec sa traduction judicieuse et l’élabora-
langage. Avec Freud, la clinique médicale du regard sur le corps est deve-
tion de la Standard Edition. Parallèlement mais avec une répercussion
nue une clinique de l’écoute du discours. Ses trois travaux fondateurs
postérieure en Amérique du Sud, la version française de pionniers tels
Traumdeutung, Psychopathologie de la vie quotidienne et Le mot d’esprit
que Marie Bonaparte et plus tard du grand responsable de la relecture
et ses rapports avec l’inconscient – mettaient déjà l’accent sur l’expérience
de Freud en allemand, Jacques Lacan. Sans oublier les lexicographes de
du langage et la représentation dans la formation et la transformation
la psychanalyse: Jean Laplanche et Jean-Bertrand Pontalis, le premier
du subjectif; toutefois, c’est avec la relecture proposée par Jacques Lacan,
étant l’un des principaux traducteurs français. Et la dernière mais non
basée sur des travaux de linguistes tels que Saussure, que ces éléments
la moindre, la version castillane. Dans la mesure où les Brésiliens ne dis-
vont occuper le devant de la scène.
posaient que de traductions indirectes (via l’anglais ou le français) et de
Bien des choses ont déjà été dites et pensées autour de l’expérience
qualité discutable au cours du XXe siècle, la lecture des textes freudiens
du langage dans les propositions fondatrices de la psychanalyse. Mais
dans la langue sœur, le castillan, s’est avérée fondamentale – que ce soit à
avec l’entrée de l’œuvre de Freud dans le domaine public et les nouvelles
partir de l’édition espagnole de Lopéz-Ballesteros y de Torres ou de l’édi-
propositions de traductions apparues depuis 2010, le débat est relancé
tion argentine d’Etcheverry.
sur les éléments langagiers présents dans ses écrits. Des discussions sont
Nonobstabnt un siècle de retard, le lecteur brésilien a aujourd’hui
simultanément accès à de nouvelles versions traduites directement de
1 Trabalho apresentado no dia 07 de dezembro de 2014 no Espace Analytique - Association
de Formation Psychanalytique et de Recherches Freudiennes no âmbito do evento D’une tra-
duction à l’autre: transferts de langue, em Paris. 2 Titre original: Obras incompletas de Sigmund Freud.

158 159
la langue d’origine, l’allemand. Les nouveautés dans ce domaine ne se saisie donnée de ses propositions. Évidemment, les “œuvres complètes”
limitent pas au Brésil, elles concernent également les deux langues les d’un auteur qui a produit intensément jusqu’aux derniers moments de
plus influentes sur la scène psychanalytique: l’anglais et le français. En sa vie ne pouvaient être que posthumes. Dans le cas du créateur de la
Angleterre, la maison d’édition Penguin Books offre depuis 2001 de nou- psychanalyse, cette initiative a pris forme cinq jours après sa mort. En
velles traductions sous la direction d’Adam Phillips. La proposition vise septembre 1939, Ernest Jones invite James Strachey, journaliste qualifié
à souligner la valeur littéraire des textes freudiens afin de s’éloigner des et littéraire, à traduire les Gesammelte Schriften [Écrits réunis]. Débute
excès technicistes de la fameuse Standard Edition de James Strachey. À son alors la première entreprise qui, quinze ans plus tard, en 1954, va devenir
tour, la Standard Edition est en phase d’actualisation par le “neuropsycha- la première traduction de la totalité des écrits dits “psychologiques”: The
nalyste” sud-africain Mark Solms, chargé de la Revisited Standard Edition. Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
En France, la version très critiquée des Presses Universitaires de Même si la traduction espagnole de Lopéz-Ballesteros y de Torres avait
France (PUF) est à l’origine de l’apparition asystématique d’une série de déjà utilisé le terme “Œuvres complètes”, les nombreuses lacunes (incom-
versions alternatives publiées par quatre grandes maisons d’éditions: plétude et absence de rigueur) de cette version et son influence beaucoup
Éditions du Seuil, Garnier-Flammarion, Gallimard, Petite Bibliothèque moins marquée l’ont reléguée au second plan par rapport au projet de
Payot et Cerf. (Roudinesco, 2010). Jones et Strachey.
En Allemagne, Ilse Grubrich-Simitis – spécialiste reconnue des L’héritière Anna Freud s’est jointe à Jones en tant qu’éditrice. En
manuscrits freudiens et collaboratrice fondamentale de la principale cédant son nom “si freudien”, elle a “officialisé” l’organisation de la
édition disponible, Gesammelte Werke – mènerait un projet d’Édition Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Il
Historico-Critique des œuvres complètes en allemand (HANNS, 2003). faut savoir qu’Anna Freud a également été coresponsable de l’organisation
Globalement, la traduction d’un auteur aussi diversifié que Freud des Gesammelte Werke [Œuvres Réunies] – l’ensemble le plus complet des
tend à privilégier un recoupement de réception: théorico-clinique, médi- œuvres de Freud dans la langue d’origine et d’abord publié en Angleterre,
co-scientifique, philosophico-épistémologique, littéraire-essayiste etc. Si où il s’était exilé et a vécu jusqu’à sa mort.
l’allemand de Freud est limpide et facilement accessible, sa maîtrise de la En France, la princesse Marie Bonaparte jouissait d’un nom (et d’un
langue et l’emploi précis de ses potentialités ont ironiquement engendré des titre) encore plus puissant que celui d’Anna Freud, qui lui a permis d’exer-
difficultés particulières pour ses traducteurs: les difficultés à retransmettre cer une grande influence politique au-delà des sociétés psychanalytiques.
aux lecteurs d’autres langues l’association entre la rigueur conceptuelle et Cette centralisatrice du mouvement psychanalytique français a réussi à
l’habileté quasi poétique d’un écrivain talentueux. De façon étonnante arracher Freud des mains des nazis et à l’envoyer à Londres. Elle aurait
pour son époque et ses moyens d’expression, Freud a toujours vu dans l’es- certes préféré l’accueillir dans son pays, mais cela n’aurait pas été prudent:
thétique une alliée de la raison et jamais une ennemie pour la construction la menace d’occupation qui planait sur la France s’est concrétisée moins
de son œuvre écrite; en définitive, une proposition difficile à traduire. d’un an plus tard. Entre-temps, la princesse et d’autres freudiens fran-
çais revendiquaient une situation de leadership dans la politique du freu-
les traductions anglaises de strachey à phillips disme, mais le manque d’unité qui caractérisait les traductions françaises
reflétait aussi l’absence d’une politique cohérente, magistralement exercée
Rares sont les accès aux œuvres d’un auteur ou d’un intellectuel par Ernest Jones de l’autre côté de la Manche (STEINER, 2000).
envisagés comme un ensemble intégré et organisé, comme dans le cas de Cela n’est pas seulement dû à la capacité de Jones à concilier des mou-
Sigmund Freud. Celui qui recherche un texte freudien se tourne rarement vements opposés dans son pays, mais aussi à son rôle de promoteur prin-
vers une publication isolée mais pratiquement toujours vers un tome de cipal – avec Anna Freud – de la psychanalyse au sein de la plus grande
la collection de ses œuvres (dites) complètes, organisées à partir d’une puissance émergente de l’après-guerre: les États-Unis (idem). Freud ne

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cachait pas son antipathie pour ce pays et doutait qu’il puisse de fait S’ils étaient parfois de fervents critiques de Strachey, Laplanche,
accueillir sa doctrine. En faisant de lui le plus pop des intellectuels à tra- Bourguignon et Cotet – les coordinateurs des Œuvres Complètes de
vers Hollywood, les États-Unis ont finalement été les grands responsables Sigmund Freud – Psychanalyse – regretteront pourtant de ne pas en avoir
de la banalisation et de la distorsion de ses thèses révolutionnaires. un dans leurs rangs. En formant leur grande équipe française d’experts, ils
disaient espérer avoir “constitué sous la responsabilité de trois directeurs
Il est vrai que si les critiques à l’encontre de Strachey ont tardé à appa- une sorte de ‘Strachey collectif ’” (LAPLANCHE, COTET & BOURGUIGNON,
raître, la publication de Freud and man’s soul [Freud et l’âme humaine], de 1989 p. 101). En plus, l’apparat éditorial du traducteur anglais (Notes, pré-
Bruno Bettelheim, a entraîné une averse de protestations qui s’est rapide- faces, index, glossaires) a été partiellement ou totalement utilisé par la
ment transformée en un déluge. Soudain, on venait de trouver le coupable plupart des traducteurs d’autres langues européennes modernes.
de tous les égarements de la psychanalyse développée à partir de la lecture En réalité, plusieurs décennies avant le petit (mais retentissant) livre
de Freud en anglais et, surtout, de la psychanalyse “psychiatrique adap- de Bettelheim, curieusement publié seulement après la mort d’Anna Freud,
tative” (ou “théologico-rassurante”) diffusée aux États-Unis. Il est impor- Jacques Lacan est devenu le grand critique de la traduction anglaise et de
tant de souligner que même si Freud s’est positionné contre l’assimilation ses influences dans le milieu français. Celui qui s’est opposé personnelle-
de la psychanalyse à la médecine, jusqu’à aujourd’hui elle n’est quasiment ment et très tôt à l’autorité institutionnelle de Jones fut aussi le premier
exercée que par des médecins dans ce pays – une condition imposée par grand critique de la traduction qu’il dirigeait.
des associations nord-américaines dites “officielles” de formation de psy- C’est d’ailleurs Lacan qui est à l’origine de ce qui allait devenir le point
chanalystes. le plus critiqué de la version anglaise: la traduction de Trieb par instinct. Il
Strachey, le traducteur anglais, est injustement devenu un bouc se trouve que sa traduction est particulièrement difficile dans les langues
émissaire. Inévitablement sans doute, sa traduction est le fruit de certains romanes des pays où les idées de Freud ont été les plus diffusées. Ce qui
choix et en ce sens elle n’est pas à l’abri des critiques et des remises en surprend, c’est que le débat intense ait eu lieu à partir de la traduction de
cause. Néanmoins, ses détracteurs semblent souvent oublier que la dette Strachey: en effet, le mot Trieb est traduit par un terme étymologique-
du freudisme envers son traducteur anglais est largement supérieure aux ment adéquat et satisfaisant: drive.
éventuelles fautes et erreurs qu’il a pu commettre. À vrai dire, l’opinion de Traduire par instinct ce que Freud (1914/2013) avait qualifié de
Strachey était très souvent ignorée et rejetée par Ernest Jones, “ambassa- Grenzbegriff (concept-limite, concept-frontière) entre le somatique et le
deur” de la psychanalyse dans le monde anglo-saxon. Nous y reviendrons. psychique est d’autant plus problématique qu’il le prive de ce caractère
Dans le cas de ce traducteur, la carrière intellectuelle d’un homme singulier de limitrophe. Le concept est ramené à la biologie pure et aux
brillant a été mise au service de l’organisation, de la présentation (dans sciences naturelles. Or, c’est un chemin que les lectures de Freud à partir
des préfaces de grande qualité) et de la traduction soignée de l’œuvre du de l’anglais semblent avoir indiqué.
père de la psychanalyse. Bien que pionnier en la matière, il s’est rarement La position de Lacan peut paraître extrême et quasiment éloigner
trompé dans sa traduction. En réalité, il a opté pour un type de traduction le rapport du Trieb à certains aspects biologiques-corporels qu’il pos-
qui n’était pas à l’abri de reproches et qui a notamment été accusée de sède réellement, cependant elle est une réaction aux excès de scientifi-
laisser dans l’ombre la richesse du texte original au profit d’une prétendue cité incités par la lecture psychanalytique diffusée en Angleterre et aux
clarté objectiviste. États-Unis. Cette lecture est le résultat de la traduction que Jones, le
grand ambassadeur sur ces terres, a supervisé avec ses critères tant par-
“Le problème est que la synthèse froide de Strachey rend parfois Freud con-
cis et abstrait, précisément dans les contextes où son ambiguïté se rapproche ticuliers. Strachey était le traducteur, mais le dernier mot et la décision
de nos problèmes réels et qu’elle est donc cliniquement utile” (ORNSTON, finale étaient toujours de Jones. Si Lacan prône la nécessité d’un “retour à
1992 p. 24). Freud”, de reprendre l’essentiel de sa découverte par la voie du symbolique

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et de la culture en rapprochant davantage la psychanalyse des lettres et peut-être, une tendance inconsciente à se mettre à l’abri du choc affectif que
des sciences humaines que des sciences naturelles, il ne faut pourtant pas Freud aurait voulu provoquer. (idem, p. 46)
oublier que sur ce point Strachey était un grand représentant de l’avant- De même que la transformation de l’âme (Seele) en esprit (mind)
garde esthétique et intellectuelle de son époque, plus proche des lettres dans un processus de “scientifisation” de la pensée freudienne, Strachey a
que de la science positive. fini par changer les verbes utilisés au présent par Freud par des verbes au
Avec Virginia et Leonard Woolf et son frère le grand écrivain Lytton passé, plus communs dans la prose scientifique américaine et britannique.
Strachey, James Strachey dialoguait avec un des plus grands mouvements Conséquemment, sa pensée pensante paraît être davantage une pensée pen-
d’avant-garde littéraire de son temps: le Bloomsbury Group. Fasciné par sée si chère aux formulations et démonstrations de postulats scientifiques
les écrits freudiens, il avait demandé à Jones comment faire pour devenir (MAHONY, 1987). Fortement marqué par la fluidité et le devenir, le vocabu-
analyste. Pour toute réponse, ce dernier lui a suggéré d’étudier la méde- laire freudien (Vorgang, Trieb, hervorziehen, etc.) si conforme à sa technique
cine (!). “Après trois semaines à ‘disséquer des pattes de grenouille’, dixit de la libre association et de l’attention (également) flottante (gleichschwebende
Alix Strachey, son épouse et compagne dans la traduction du psychana- Aufmerksamkeit) perd de sa vivacité dans la traduction anglaise.
lyste, il a abandonné et choisi un chemin plus direct: il a écrit une lettre Les avantages de la terminologie classique utilisée dans la Standard
à Sigmund Freud” (SOUZA, 1989, p. 84). Dans cette lettre, il demande au Edition seront défendus par son véritable concepteur, Ernest Jones, dans
maître viennois de le prendre en analyse. C’est ce qui se produira quelques un ouvrage au titre suggestif: Glossary for the use of translators of psy-
mois plus tard et qui l’amènera à s’installer pour un temps à Vienne avec cho-analytical works [Glossaire pour les traducteurs d’œuvres psychana-
sa femme. lytiques]. Son argument principal était que ce manuel permettrait au lec-
Lorsque Lacan et Bettelheim – parmi beaucoup d’autres – critiquent teur de faire l’économie de “connotations accessoires [...] inévitables dans
la traduction de Strachey, ils devraient certainement prendre en compte une langue parlée” (apud SOUZA, p. 99). Voici quelques exemples de la
ces informations. Bettelheim soutient la thèse selon laquelle Freud a uti- terminologie classique suggérée par Jones et adoptée par Strachey:
lisé en allemand des termes du langage quotidien pour donner au lecteur
plus d’implication, de proximité et de “vitalité”. En privilégiant les langues • Parapraxis (παράπραξις) pour Fehlleistung (acte manqué);
classiques (grec et latin) pour ses concepts fondamentaux, la traduction • Anaclysis (ανάκλισις) pour Ahnlehnung (étayage);
officielle anglaise donnerait au contraire la primauté à l’érudition et à
• Cathexis (κάθεξις) pour Besetzung (investissement/occupation);
l’intellectualisation. Né à Vienne en 1903, soit trois ans après la première
publication de Traumdeutung, Bettelheim a grandi au milieu des avancées • Ego pour Ich (Moi);
des idées freudiennes. Lors de séjours en Angleterre et aux États-Unis, il a • Id pour Es (Ça).
été très surpris de voir que les écrits freudiens y avaient une connotation
aussi techniciste: “Les étudiants [américains] voyaient la psychanalyse Les deux catégories de critiques mentionnées sont assurément
comme un système purement intellectuel – un jeu ingénieux et excitant – convergentes. Si Bettelheim met l’accent sur un “scientifisme” forcé,
et non comme l’acquisition d’insights sur le moi (...), qui étaient potentiel- Lacan y voit les risques d’une confusion entre la doctrine freudienne et
lement et profondément perturbateurs” (BETTELHEIM, 1982, p. 19). Pour une science naturelle et techniciste. Plutôt que de défendre la clarté et
ce contemporain de Freud, le caractère non équivoque des concepts, les sciences créent un jargon
avec les termes gréco-latins, une langue d’initiés qui éloigne le public pro-
[...] il ne faut probablement pas chercher l’explication ni dans une malignité fane et est réservée à un cercle restreint de savants introduits à de tels
ni dans une négligence de la part des traducteurs. On peut y voir un désir
délibéré de maintenir Freud strictement dans le cadre de la médecine et, “mystères”. Rien n’indique que Freud, qui valorisait tellement la connais-
sance populaire, littéraire et anthropologique, ait choisi par hasard une

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terminologie accessible pour traiter du psychisme présent en nous tous et étaient psychanalystes et d’autres philosophes ou germanistes, chacun a
dans la vie quotidienne. traduit les termes d’une manière différente.
Si l’Angleterre est la première à avoir “standardisé” Freud, il n’est pas Suite à cela, Édouard Pichon a constitué entre 1927 et 1928 une
surprenant que les premières démarches contraires soient parties de là: Commission pour l’unification du vocabulaire psychanalytique fran-
omettre de Freud toute la précision et la standardisation pour donner çais au sein de la Société Psychanalytique de Paris (SPP); l’objectif était
la priorité au versant littéraire. C’est ce qui a lieu depuis 2001 avec un de “débarrasser la psychanalyse de son prétendu caractère germanique
ouvrage commandé au psychanalyste et écrivain Adam Phillips par la tra- (Kultur) en la faisant passer par le filtre de la civilisation française”
ditionnelle maison d’édition Penguin Books. (Roudinesco et Plon, 1997, p. 762). L’une des plus grandes controverses
La terminologie s’est donc radicalisée de manière intentionnelle vers concerne d’ailleurs la traduction du titre de l’essai Das Unbehagen in der
la faute d’unité et de systématisation. Comme l’observe Frankland, le tra- Kultur [Malaise dans la civilisation]. Le malaise se trouve-il dans la culture
ducteur responsable de la traduction des articles les plus théoriques de ou dans la civilisation? S’il n’est pas possible de le situer avec certitude,
Freud (articles de Métapsychologie), il s’agissait plus d’une réforme sur le c’est parce qu’il se manifeste dans la transposition entre les deux [cultures
plan “de la syntaxe que du vocabulaire en tant que tel” (FRANKLAND in ou civilisations]. Comme on le verra, un tel artifice a été critiqué par les
FREUD, 2001). Graham Frankland est professeur de littérature allemande traducteurs plus récents. Ils dénoncent la mauvaise habitude française de
à l’Université de Liverpool et sa thèse, intitulée Freud’s Literary Culture, vouloir avant tout franciser le génie étranger des auteurs traduits, des sup-
porte sur les aspects littéraires de l’écriture freudienne. posés barbares qui devraient être civilisés.
De son point de vue, modifier la deuxième topique par rapport aux Mais revenons-en au problème de dispersion. Pour tenter d’y remé-
termes choisis par Strachey (Id, Ego et Superego) ne faisait pas de sens dier, Pichon a proposé une réinvention révolutionnaire, et pour le moins
puisque les termes avaient déjà été incorporés à la culture générale des créative, de la terminologie freudienne: par exemple, il proposait de tra-
anglophones. Par contre, il préfère investment à cathexis (Besetzung), psy- duire libido par aimance, Ich par actorium et Es par pulsiorium. Cependant,
che à mind (Seele), slips à parapraxis (Fehlleistung) et sans aucun doute il faut rendre à César ce qui revient à César: c’est Pichon lui-même qui a
drive à instinct (Trieb). Quant à Joyce Crick, la traductrice de Der Witz suggéré le fameux Ça pour Es. Une fracture est donc apparue entre la
und seine Beziehung zum Unbewussten [Le mot d’esprit et ses rapports avec Commission et la SPP: “Pichon pensait à une véritable conceptualisation
l’inconscient], elle a préféré charge pour Besetzung. Enfin, Louise Adey et ne traduisait aucun texte, tandis que Marie Bonaparte traduisait des
Huish, la traductrice du cas de L’Homme aux rats, a élu voyeurism plutôt textes sans proposer aucune réflexion conceptuelle” (idem). La malédic-
que l’étrange scopophilia utilisé par Strachey pour Schaulust. tion babélique était lancée entre les Gaulois.
C’est sur la base d’une telle situation que l’influence de Lacan va opé-
les traductions françaises: rer un changement de cap décisif dans le milieu psychanalytique fran-
de marie bonaparte à jean laplanche çais. Il ne propose rien de moins que le “retour à Freud”, c’est-à-dire un
retour vers le texte d’origine tout en s’appuyant sur la linguistique struc-
“La situation de la France est unique au monde” (Roudinesco et turale de Ferdinand de Saussure. Partant de là, le langage et la rigueur
Plon, 1997, p. 762). Les premiers traducteurs – Ignace Meyerson, Paul signifiante acquièrent un statut majeur pour la psychanalyse en France
Jury, Blanche Reverchon-Jouve et surtout la princesse Marie Bonaparte et dans la francophonie. Au lieu d’une lecture de Freud dans le contexte
– ont produit de belles traductions, pourtant il faut regretter l’énorme dis- de la psychologie et la psychiatrie, il est lu avec les savoirs se référant au
persion ou le manque de systématisation dans le choix des termes fran- symbolique et au langage (linguistique, sémiologie, ethnologie structura-
çais pour les concepts freudiens. Dans la mesure où certains traducteurs liste, philosophie, littérature etc.). À partir de cette troisième génération

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de psychanalystes français, Lacan devient assurément la figure la plus renferme une terminologie et des concepts qui reflètent les idées des
influente en matière de diffusion d’une nouvelle terminologie. intellectuels français en vogue à l’époque. La traduction est empreinte des
C’est à ce moment qu’est lancée l’idée d’une sorte de dictionnaire appropriations lacaniennes de la linguistique de Saussure, elle se distingue
de concepts sur le même modèle que le célèbre Vocabulaire de philoso- de par sa “fidélité au signifiant” en superposant le conceptuel au style de
phie d’André Lalande, un exemple classique de la rigueur intellectuelle l’auteur. Pour ces auteurs/traducteurs, “l’exactitude implique [expressé-
française. Accepté par la célèbre maison d’édition Presses Universitaires ment] le refus de l’enjolivement ou de la réparation” (ibidem).
de France, ce projet de grande envergure débute avec Daniel Lagache Si les trois coordinateurs signent les directives du projet ainsi que
mais il sera mené à bien par Jean Laplanche et Jean-Bertrand Pontalis. le volume additionnel intitulé Traduire Freud où tous les critères sont
Paraphrasant l’ouvrage de Lalande, le dictionnaire lancé en 1967 reçoit présentés et défendus, Laplanche est la figure centrale de l’idéologie sous-
le titre de Vocabulaire de la psychanalyse. Les auteurs ont en commun jacente. Déjà coauteur du Vocabulaire de psychanalyse qui a su s’imposer
d’avoir été analysants et élèves de Jacques Lacan, ainsi qu’une formation avec succès, Laplanche va récolter les lauriers pour son rôle de respon-
en philosophie. sable de la standardisation de la terminologie freudienne en France et à
Jean-Bertrand Pontalis possède déjà une solide expérience dans la l’étranger. Il convient de rappeler que ce dictionnaire n’est pas seulement
traduction de l’œuvre freudienne. Face à la situation française des traduc- devenu un ouvrage de référence et de centralisation du vocabulaire psy-
tions, il a traduit, fait traduire, retraduire ou réviser pour Gallimard des chanalytique sur le sol français, mais aussi dans la plupart des langues
textes fondamentaux tels que: Trois essais sur la théorie sexuelle, La ques- dans lesquelles il a été traduit. En effet, en plus des définitions et des inser-
tion de l’analyse profane et Moïse et la religion monothéiste, inclus dans la tions, il fournit le terme original en allemand ainsi que des suggestions
collection Connaissance de l’inconscient. Il s’agit de traductions de qualité, terminologiques pour l’espagnol, l’anglais, l’italien et le portugais.
réalisées par de grands connaisseurs de la langue allemande, des concepts Plutôt que l’adaptation à la culture, ou plus précisément à la “civili-
freudiens et, bien sûr, de la langue française. sation”, cette publication vise délibérément la récupération de la “germa-
Pour sa part, Jean Laplanche semble vouloir répéter la prouesse de nité” du texte freudien. C’est pour cette raison que ses auteurs s’appuient
Lalande; et en luttant pour la libération de la psychanalyse des griffes de la sur les travaux de l’éminent théoricien de la traduction, Antoine Berman,
médecine, il paraît vouloir la rapprocher du champ de la philosophie. Au qui présente dans L’épreuve de l’étranger une excellente étude sur les tra-
final, c’est lui qui sera responsable de la publication – tardive et donc très ductions faites par les auteurs du romantisme allemand. Ces derniers cri-
attendue – des œuvres complètes de Sigmund Freud: les premiers volumes tiquaient profondément les traductions “à la française”. Schlegel est même
des Œuvres complètes de Sigmund Freud – Psychanalyse sont publiés à par- allé jusqu’à affirmer:
tir de 1989 par les Presses Universitaires de France; en somme, la première
“C’est comme s’ils [les Français] désiraient que chaque étranger, chez eux, dût se
version unifiée des œuvres psychanalytiques de Sigmund Freud en langue conduire et s’habiller selon leurs mœurs, ce qui entraîne qu’ils ne connaissent à
française. Il s’agit d’un travail de traduction sans doute inédit, effectué par proprement parler jamais d’étrangers” (apud BERMAN, 1984 p. 62).
une grande équipe sous la houlette de trois personnes: un psychanalyste
de formation philosophique (Jean Laplanche), un psychiatre et neuros- L’intention des traducteurs semble louable quand, en défense de
cientifique (André Bourguignon) et un germaniste (Pierre Cotet). Sans la “rigueur conceptuelle”, ils ont veillé à se détacher de telle ou telle
parler de la précieuse collaboration de François Robert pour la formu- école psychanalytique ou orientation théorique, de reproduire le texte
lation d’un glossaire de la terminologie freudienne de pas moins de 200 et uniquement le texte, au plus proche de l’original: “Rien que le texte
pages et 5 000 concepts (BOURGUIGNON et alii, 1989). impliqu[ait] l’exclusion de toute contraction ainsi que de toute dilution ou
Fortement influencée par la lecture de Jacques Lacan, même si ulté- commentaire” (idem, p. 15). En conséquence, ils ont fait en sorte de tou-
rieurement Laplanche prend ses distances de son analyste, cet ouvrage jours rechercher en français un terme unique et analogique à l’original en

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allemand, en donnant au lecteur la possibilité d’interpréter à sa manière plus critiqués et objets de la plus grande résistance; ils signalent des choix
sa saisie conceptuelle. inusités face à certaines utilisations “consacrées” depuis plusieurs généra-
Ils vont toutefois essuyer de violentes critiques pour ne pas tenir suf- tions dans le milieu francophone:
fisamment compte du non-isomorphisme lexical entre les langues alle-
Souhait pour traduire Wunsch, au lieu de désir, fantaisie pour Phantaisie,
mande et française. L’exemple le plus marquant est celui du terme Angst, au lieu de fantasme, trait d’esprit pour Witz, au lieu de mot d’esprit, négation
traduit invariablement par angoisse y compris dans les cas où il équi- pour Verneinung, au lieu de dénégation, souvenir-couverture au lieu de sou-
vaudrait clairement à peur ou anxiété. Pour leur défense, ils affirmaient venir-écran et mise à mort du père au lieu de parricide.
que Freud avait opéré une distinction conceptuelle entre Angst, Furcht
(peur) et Schrek (frayeur) dans Au-delà du principe du plaisir (Jenseits des On ne peut ignorer que ces traducteurs avaient en leur faveur la pos-
Lustprinzips). C’est vrai. Mais le fait est que cette distinction n’a pas été sibilité de consulter le “traducteur” Freud, dont les options de jeunesse
faite dans plusieurs des textes antérieurs (et même postérieurs), ce qui pour la traduction (français-allemand) de Charcot et Bernheim mon-
a conduit des lecteurs à penser que quelqu’un qui souffrait d’Angst vor traient bien ce qui était le plus fidèle à l’esprit de l’auteur. À cela s’ajoute
Hunden souffrait d’une angoisse des chiens, alors qu’en réalité il avait peur une autre grande critique: le recours – si lacanien – aux néologismes
des chiens. quand le lexique français ne réussissait pas à reproduire terme à terme les
Le vrai problème est peut-être ailleurs. Convaincus que le style et le pensées de Freud exprimées en allemand. Les exemples les plus extrêmes
vocabulaire freudiens avaient subi les influences de différentes langues sont peut-être désirance pour Sehnsucht (nostalgie/désir) ou désaide pour
telles que les variantes viennoises de l’allemand, le français, le yiddish, Hilflösigkeit (détresse/désarroi). Finalement, en donnant la primauté à la
le latin et même des jargons de la médecine et d’autres savoirs, ils en fidélité Laplanche et son équipe ont fini par faire de l’œuvre de Freud,
sont arrivés à une conclusion discutable: Freud ne devait pas seulement auteur si accessible dans le texte original, quelque chose de difficile à lire
être traduit comme un auteur de langue allemande, il devait aussi l’être en français.
comme quelqu’un qui a créé le “freudien”, une langue à part. Ainsi, ces
traducteurs se considéraient comme des “freudologues” plutôt que des les traductions en castillan: espagne et argentine
psychanalystes, germanistes ou simplement traducteurs. L’affirmation a
C’est en Espagne qu’est né le premier projet de traduction des Œuvres
choqué et continue de choquer tous ceux qui ont accès au texte original,
Complètes. Il s’agit de la traduction intitulée Sigmund Freud – Obras com-
une si belle représentation de la prose la plus authentique et la plus acces-
pletas, publiée par la maison d’édition Biblioteca Nueva et réalisée par
sible en langue germanique.
le traducteur espagnol Luís López-Ballesteros y de Torres. Promue par
Au lieu de faire aller Freud vers le lecteur français profane et ordi-
l’éminent philosophe et humaniste José Ortega y Gasset, la première ver-
naire, ses traducteurs semblent avoir voulu créer une langue pour les ini-
sion a été élaborée entre 1922 et 1938 (Villareal in Orston, 1992), à titre
tiés: le freudien. Rappelons que la genèse formelle de la langue utilisée par
d’œuvre pour la culture.
Freud pour exprimer ses idées est justement liée à la traduction de la Bible
López-Ballesteros y de Torres est le premier à avoir réussi à retrans-
de Luther. Ironiquement, ceux qui soutiennent que Freud avait “l’inten-
mettre dans la traduction la qualité littéraire et le plaisir de lire Freud;
tion d’être le fondateur d’un mouvement pour lequel son œuvre jouerait le
un plaisir qui est d’ailleurs le même que celui recherché par exemple
même rôle de ciment qu’a le texte sacré pour une Église” (Bourguignon et
aujourd’hui dans les nouvelles traductions anglaises de la maison d’édi-
alii, p. 7) disent avoir adopté une “position anticléricale” dans leur travail
tion Penguin Books, sous la coordination d’Adam Phillips. Toujours est-il
de traduction. Et pourtant, ce travail ne semble lisible que pour les initiés
que le résultat aurait été grandement apprécié par l’auteur traduit, qui a
à cause de critères discutables, qu’ils soient considérés sacrés ou profa-
tenu à le faire savoir dans une lettre rédigée dans la langue du traducteur.
nateurs. Roudinesco et Plon (p. 763) nous donnent un aperçu des cas les

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De fait, son travail est remarquable; mais comme tout pionnier en eu le privilège de pouvoir compter sur le travail d’essais-erreurs et d’er-
matière de traduction d’un auteur, il était forcément plus vulnérable aux reurs-réussites des premiers traducteurs en castillan. Mais pas unique-
critiques. En proposant de publier les œuvres dites “complètes” d’un ment. Elle a bénéficié aussi, et peut-être surtout, des systématisations de
auteur au summum de son activité intellectuelle, López-Ballesteros y de Strachey et du déjà célèbre Vocabulaire de la psychanalyse – qui a aussi
Torres et Ortega y Gasset vont connaître le même sort que Faust. López- servi de base à la traduction française coordonnée par son coauteur
Ballesteros y de Torres a traduit ce qui était disponible entre 1922 et 1933, quelques années plus tard.
cependant il ne disposait pas de tous les premiers écrits ni de ceux qui Par rapport à Strachey, la publication argentine s’est approprié de
allaient certainement apparaître plus tard. Très incomplète et imprécise, l’ensemble du matériel de la Standard Edition, avec laquelle elle est com-
c’est seulement entre 1952 et 1956 que cette version sera finalement révisée parée point par point. Leandro Wolfson (idem) décrit le processus dans
et amplifiée par l’argentin Ludovico Rosenthal pour la maison d’édition un article qui rend hommage à la mémoire de son confrère José Luis
argentine Santiago Rueda (Villareal in Orston, 1992). Etcheverry: Etcheverry traduisait le texte d’origine (Gesammelte Werke)
Rosenthal a ainsi défini le travail de traduction: “Une entreprise rare- tandis que Wolfson, responsable de la traduction des notes et des préfaces
ment réalisée dans l’histoire des livres – c’est-à-dire publier l’œuvre d’un de Strachey, comparait ensuite le texte en espagnol à celui du texte en
auteur de façon plus complète dans la traduction que dans la langue origi- anglais, et suggérait très souvent des révisions ou des discussions. Toute
nale” (Rosenthal apud Villareal, 1992 p. 148). N’oublions pas qu’en 1955 les dissonance par rapport au texte de Strachey était donc intentionnelle,
compilations en allemand étaient encore très déficitaires et que la célèbre argumentée et fondée par Etcheverry. Ainsi, les ouvrages ont reproduit
publication anglaise n’a été achevée que dix ans plus tard, en 1967, peu de l’organisation chronologique et l’apparat éditorial de l’édition anglaise tout
temps avant la mort de Strachey. juste achevée.
S’agissant de la traduction d’un work in progress dont l’objectif était de Cela étant dit, on pourrait croire que Strachey a été la principale réfé-
rendre accessible l’auteur traduit, le manque de rigueur conceptuelle était rence terminologique pour les solutions en castillan. Certaines options
prévisible. Non seulement ce fut le cas – il n’y a aucun type d’uniformisa- montrent au contraire que le Vocabulaire de psychanalyse de Laplanche
tion terminologique –, mais en plus il existe des oublis (dans des passages et Pontalis a exercé une influence encore plus grande. À titre d’exemples,
plus complexes), des erreurs et même des inversions de sens dans certains angustia (angoisse) est utilisé pour Angst, moción (motion) pour Regung,
passages. Ironie du sort, la plupart de ces aspects seraient peut-être passés pulsión (pulsion) pour Trieb, investidura (investissement) pour Besetzung
inaperçus sans le magnifique travail de continuation de Rosenthal. ou encore cultura (culture) pour Kultur.
Curieusement, le même parallèle existe entre les choix de López-
Tant de corrections ont provoqué en Argentine, pays très soucieux Ballesteros y Torres et Rosenthal et l’édition anglaise de Strachey: à l’excep-
de la rigueur épistémique de la psychanalyse, un débat sur l’importance tion du cas d’angustia ou miedo (anxiety) pour Angst, impulso (impulse)
d’une nouvelle version. En un temps record, entre 1978 et 1982, José Luis est utilisé pour Regung, instinto (instinct) pour Trieb, catexia (cathexis)
Etcheverry est parvenu à produire pour la maison d’édition Amorrortu pour Besetzung et civilización (civilisation) pour Kultur. Plus qu’une
une traduction de qualité; sans les excès et les inflexibilités de la version simple coïncidence, il s’agit très certainement du résultat du prestige dont
française, très respectueuse de la fidélité terminologique mais sans lais- jouissaient déjà les premières traductions anglaises de Freud sur le plan
ser de côté certains aspects stylistiques (Wolfson, 2006). C’est sans aucun international avant même la publication de la Standard Edition. Avant la
doute la version la plus consultée au Brésil par ceux qui étudient Freud et publication anglaise, le Glossary d’Ernest Jones (1924) était déjà connu et
qui ont trouvé une forme de consolation dans la langue voisine. influent dans le milieu.
Considérée par beaucoup comme la version la plus complète et la Cette dernière observation s’avère très importante pour expli-
plus rigoureuse des œuvres de Freud, cette publication d’Amorrortu a quer certaines discussions sur la nécessité de libérer l’intellectualité

172 173
sud-américaine de l’influence colonialiste dans le cas de la psychana- ______. Obras completas. Tradução de José Luis Etcheverry. 25 volumes. Buenos
lyse. Ceux qui recourent aux deux versions en espagnol pour échapper Aires: Amorrortu Editores, 1985.
aux influences des “nations dominantes” ne doivent pas oublier que la ______. Obras completas. Tradução de Luis Lopez-Ballesteros y Torres. 3 volu-
première a bénéficié de la version anglaise, et la deuxième non pas de mes. Madri: Biblioteca Nueva, 2002.
la version française (qui est postérieure), mais du dictionnaire français ______. Obras Psicológicas de Sigmund Freud. 35 volumes (em elaboração).
“standardisant” publié quelques années auparavant par un de ses organi- Tradução Coordenada por Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
sateurs. ______. Œuvres complètes - Psychanalyse. Direção de Jean Laplanche. 20 volu-
En guise de conclusion, nous constatons que le lecteur de langue mes. Paris: Presses Universitaires de France, 1988-2004.
espagnole a la chance de pouvoir comparer une version de grande qualité ______. Sobre a Concepção das Afasias – um estudo crítico. Tradução Emiliano de
Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
avec une autre d’une grande rigueur conceptuelle. Ce n’est sans doute pas
un hasard si la communauté de langue castillane qui est la seule à dispo- ______. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund
Freud. 24 volumes. Londres: The Hogarth Press, 1974.
ser de deux versions de la quasi-totalité de l’œuvre de Freud soit celle qui
compte aujourd’hui le plus de productions, de discussions et d’avancées HANNS, Luiz Alberto. Uma nova tradução brasileira das obras de Freud. Trabalho
apresentado em Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de
dans le cadre de la psychanalyse. D’un autre côté, penser sur les contribu-
Janeiro. Disponível em: <http://egp.dreamhosters.com/encontros/mundial_rj/>
tions des versions anglaises et françaises à ces deux versions espagnoles 30 de outubro a 02 de novembro de 2003.
nous autorise à penser qu’il en sera peut-être de même avec les futures MAHONY, Patrick. Freud as a Writer. Nova Iorque: Yale University Press, 1987.
traductions très attendues en langue portugaise directement du texte
ORSTON, Darius Gray (Org.) Traduzindo Freud. Tradução de Cristina Serra. Rio
d’origine en allemand. de Janeiro: Imago, 1992.
ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera
references bibliográficas Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BERMAN, Antoine. L’épreuve de l’étranger - Culture et Traduction dans l’Allemagne ROUDINESCO, Elisabeth. Freud: Une passion publique. in Le Monde disponível
Romantique. Paris, Gallimard, 1984. em <www.lemonde.fr> Edição de 8 de janeiro de 2010.
BETTELHEIM, Bruno. Freud and man’s soul. Nova Iorque: Knopf, 1983. SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud: O vocabulário freudiano e suas
versões. São Paulo: Ática, 1999.
BOURGUIGNON, André et. al. Traduire Freud. Paris: PUF, 1989.
STEINER, Riccardo. It is a New Kind of Diaspora: Explorations in the Sociopolitical
FREUD, Sigmund. As Pulsões e seus destinos (Edição bilíngue). Tradução Pedro
and Cultural Context of Psychoanalysis. Londres: Karnac Books, 2000.
Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
VILLAREAL, Inga. As Traduções de Freud para o espanhol. In: ORSTON, Darius
______. Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados (Edição bilíngue). Gray (Org.) Traduzindo Freud. Trad. Cristina Serra. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Tradução Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
WOLFSON, Leandro. Translating Freud - A Historical Experience. in Translation
______. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Journal. Volume 10 Número 4. ISSN 1536-7207. Disponível em: <http://transla-
Freud. 24 volumes. Direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. tionjournal.net/journal>. Acesso em: out. 2006.
______. Freud – The New Translation. Edição coordenada por Adam Phillips.
(em elaboração) Londres: Penguin Books, 2001.
______. Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet. 19 volumes. Frankfurt am
Main: Fischer Verlag, 1999.
______. Obras completas. 20 volumes (em elaboração). Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

174 175
A atualidade de Freud e um novo modo Edition, que havia estabelecido um padrão internacional. Também Bruno
Bettelheim, autor de Freud e a alma humana, exerceu grande influência
de traduzi-lo nesta discussão. Ambos consideravam a terminologia “medicalizada” e
Luiz Alberto Hanns estranha à linguagem original freudiana – mais ligada à experiência coti-
diana e afetiva. De fato, termos como “catexia”, “estase”, “epistemofilico”
são de difícil compreensão, ao contrário dos termos coloquiais utilizados
no original alemão, respectivamente “preenchimento de energia”, “acú-
mulo de tensão”, “prazer de conhecer/aprender”.
Ao longo dos anos 80 e 90 também outros autores se ocuparam do
tema da tradução levando a um movimento de revisão das traduções nos
diversos idiomas.

terminologização ou estilo literário?


Se de um lado houve um consenso em “desmedicalizar” a linguagem
um renovado interesse por freud psicanalítica, não se formou um consenso quanto ao que colocar em seu
lugar. Substituir a terminologia por termos coloquiais de fácil compreen-
Após duas décadas de Freudbashing (jogar pedras em Freud), as são, tal como fazia Freud em alemão? Ou adotar uma nova terminologia
teorias freudianas voltaram nos últimos dez anos a ser objeto de grande mais de acordo com os critérios psicanalíticos atuais?
interesse. Neurocientistas têm retomado sua teoria e diversas áreas das Phillips, que coordenava uma nova tradução na Inglaterra, fez uma
ciências humanas (passada a contrarreação à “invasão psicanalítica”) opção radicalmente literária. Delegou a tarefa de tradução a diferentes
acabaram por incorporar conceitos freudianos. Igualmente no campo da tradutores literários não especializados em psicanálise. Cada um com
saúde mental, vários países europeus e estados americanos passaram a autonomia para seguir critérios pessoais e estilísticos, sem preocupação
autorizar a psicanálise nos serviços públicos de saúde. Assim, não é de se em padronizar a linguagem e a terminologia entre os diversos livros de
estranhar que também a tradução de suas obras desperte interesse. Freud. Buscava-se um texto mais fluido, embora mais impreciso e de
menor utilidade para os estudiosos da psicanálise.
por que a celeuma sobre as traduções? Laplanche, que na França também participou da coordenação de
uma nova tradução, fez uma opção igualmente radical, mas em direção
Desde os anos 70 Freud é o autor de língua alemã cuja tradução é a contrária. Adotou um rigoroso código de tradução com um glossário ter-
mais debatida. O curioso é que, em geral, Freud escrevia de modo aces- minológico a ser seguido à risca. E a construção de frases e figuras de lin-
sível visando à divulgação da psicanálise. Por que então a celeuma sobre guagem usadas por Freud foi preservada da maneira mais literal possível,
sua tradução? ainda que em francês resultasse num texto “estrangeiro” e não aclimatado.
Em parte porque sua obra não é apenas lida, mas estudada. Não só Não haveria espaço aqui para comentar as diversas traduções exis-
por psicanalistas, mas também por filósofos, semioticistas, críticos de arte tentes em língua espanhola, italiana, francesa, inglesa e as novas ora em
etc. Mas a celeuma também tem a ver com um debate dos anos 70 e 80 curso no Brasil. Mas de modo geral podemos dizer que as traduções
para o qual dois autores em especial contribuíram, Lacan e Bettelheim. acabam por se situar do ponto de vista estilístico em algum ponto entre
Lacan criticava a terminologia psicanalítica adotada pela Standard Phillips e Laplanche, ou seja, entre aclimatar Freud no novo idioma ou

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mantê-lo “estrangeiro”. Quanto à terminologia, atualmente prevalecem médio em alemão para construir sua articulação teórica, e justamente
duas vertentes: uma leitura de influência lacaniana e laplanchiana, que é esta rede semântico-conceitual se perde na tradução.
de cunho filosófico-semiótico, e outra da psicanálise inglesa que enfatiza A palavra “decepção”, em alemão, se designa por outro termo,
o cunho instintual-impulsivo dos processos psicológicos. Enttäuschung, vocábulo pouco usado por Freud e geralmente empregado
Mas, como tentarei demonstrar por meio de um exemplo a seguir, no contexto do fracasso da alucinação. Este tipo de distorção causado
estas diversas estratégias de tradução não atentam para algo, a meu ver pelo deslizamento ao longo da polissemia da palavra frustração (de “blo-
fundamental no texto freudiano: que em Freud a semântica e a teoria queio” para “decepção”) tem implicações decisivas na compreensão do
estão estreitamente ligadas por meio de conotações e redes semântico- processo de etiologia das neuroses e na prática clínica.
-teóricas. Para Freud (e aliás também para Melanie Klein) a Versagung (“frus-
Como espero que fique claro, graves perdas de sentido e equívocos tração” no sentido de “impedimento”) é o desencadeador da neurose e
de entendimento ocorrem quando se desconsidera estas redes e a cono- não um efeito dela! A clínica de Freud não visava aumentar a tolerância à
tação das palavras. Além disso, se perde a “atmosfera” do texto freudiano. “frustração” na acepção de Enttäuschung, mas manter o paciente em pri-
vação, sob “frustração” na acepção de Versagung, para que, ao contrário
o caso do termo “frustração”: de aprender a “tolerar a decepção-amargura”, o paciente entre em estado
um equívoco semântico-teórico de Drang (palavra que embora mal-traduzida por “pressão” significa algo
como “ânsia”, “afã”) e busque novos caminhos de dissolver sua tensão libi-
Freud utiliza ao longo de toda sua obra repetidamente a palavra dinal. Para que aprenda a viver num mundo cheio de impedimentos aos
Versagung, que significa “impedimento”, “bloqueio”, “solapamento”. seus desejos.
Ocorre que Versagung tem sido traduzido para o espanhol por frustra- A ideia era que o paciente aprendesse a conviver com o impedimento,
ción, para o inglês por frustration, para o francês por frustration e para o jamais com a frustração. Veremos a seguir que, para Freud, conviver com
português por “frustração”. E por que? os impedimentos da vida exige aprender a processar a tensão mental-
Tomemos o caso do português. Certamente a escolha por “frustrar” mente através da Verarbeitung (termo mal traduzido por “elaboração”).
se justifica pelo fato do termo ter a acepção de “bloquear” ou “impedir” Novamente um problema de polissemia e conotação, pois o sentido de
(por exemplo, “conseguir frustrar as intenções do inimigo”). Todavia, “elaboração” em português equivale mais ao de Bearbeiten (trabalhar em
quando lido no contexto psicanalítico nota-se uma tendência de leito- cima de algo, refinando-o), mas em alemão Verarbeiten se refere a “pro-
res, mesmo de especialistas em Freud, compreenderem o termo “frustra- cessamento”, “transformação” enfatizando a mudança e a digestão, e não a
ção” na sua outra acepção, a de “decepção” ou “estado de amargura”, ou complexificação implícita em “elaborar”). Às vezes se emprega em alemão
ainda “expectativa insatisfeita”. Portanto, “frustração” tem duas acepções, verarbeiten para expressar algo como “preciso ainda “digerir” (dissecar,
e o tradutor visava a primeira (impedimento), mas o contexto freudiano remoer, entender, reacomodar), por exemplo, “preciso ainda digerir esta
induz à segunda (decepção). Ao desconsiderarem os efeitos da polissemia nova situação”.
no contexto em que o termo frustração aparece em Freud, os tradutores Portanto, na Versagung (impedimento), trata-se justamente do
involuntariamente têm provocado um equívoco na grande maioria dos contrário da “tolerância à decepção”! O intento de Freud é de promo-
leitores e estudiosos do texto freudiano, causando alguns mal-entendi- ver a circulação das pulsões para evitar que frente ao impedimento
dos fundamentais. Mas não se trata só de uma palavra isolada, a questão, (Versagung, parte essencial da vida em cultura) ocorra o efeito da decep-
como tentarei demonstrar a seguir é que tem se desconsiderado toda a ção/frustração (Enttäuschung) como estado permanente. Freud busca
rede de termos interligados a Versagung que Freud utiliza. Ele se servia aumentar a “capacidade de lidar com o impedimento (Versagung)” por
das conotações e conexões entre termos, facilmente percebidas pelo leitor meio da Verarbeitung (processamento psíquico interno), o oposto do

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que geralmente é entendido pelos autores que discutem o conceito de Também internacionalmente tem sido esta a opção, discharge (inglês),
Versagung (mal compreendido como frustração)! descarga (espanhol), décharge (francês). A tradução é infeliz porque estes
Para Freud não seria possível o organismo conviver com a “frustra- termos tendem a ser entendidos como “descarga rápida” (rajada ou dis-
ção”. Quem conhece o termo pulsão (Trieb) em alemão sabe que seria paro). Mas Abfuhr, em alemão, se refere a uma descarga ou retirada lenta
uma contradição lógica, esperar que o paciente aprenda a frustrar suas e processual (“levar embora”, “esvaziamento”, “escoamento”). Freud na
pulsões. Freud explica que toda pulsão (Trieb) se articula do corpo para verdade fala em innere Abfuhr (retirada ou escoamento interno).
a psique na forma de Drang (“ânsia”, “afã”, mas mal traduzido por “pres- As implicações teóricas e clínicas destas diferenças de tradução de
são”). O Drang (ânsia) é considerado por Freud a essência da pulsão termos como “pressão”, “descarga” e “estase” não são poucas. Envolvem
(Trieb), é ela que transforma então a “necessidade” (Not, ανάγκη, ananke) toda a concepção da circulação pulsional, a qual, em Freud, é justamente
em objeto (desejo) de uma ação concreta ou mental. o contrário da descarga como “rajada”. Este tema liga-se à teoria freudiana
Uma leitura dos casos clínicos e escritos técnicos de Freud, onde da saúde psíquica, a qual se refere à Verarbeitung interna (que como vimos
se trata da Versagung (impedimento) permite visualizar bastante bem não é uma “elaboração”, mas um processamento, uma transformação),
a estratégia clínica freudiana. Freud menciona em inúmeros artigos ao isto é, Freud argumenta que uma circulação pulsional-afetiva-imagética
longo de sua obra que o paciente adoece sempre devido a uma Versagung é possível quando o cérebro e seus neurônios reconectam os estímulos e
(impedimento de satisfazer suas pulsões, ânsias, desejos). Neste contexto reformulam o significado transformando uma situação rígida de neurose
é importante diferenciar Versagung de Enttäuschung, a ideia de Freud não sem saída, em alternativas flexíveis. Ao mudar o jeito de interpretar as
é que após tanta “frustração” o paciente esteja tão devastado emocional- situações de vida, o paciente pode reconectar sentidos e tornar possíveis
mente que não tenha condições de prosseguir e adoeça psiquicamente. “escoamentos internos” (innere Abfuhren), isto é, novos pensamentos e
Sua ideia é que por não poder vivenciar suas pulsões ele adoeça, pois ao novas conexões que tornam a mesma situação agora “escoável” e, por-
não ter como vivenciar e escoar suas “necessidades psíquicas” essenciais, tanto, mais aceitável.
as pulsões, ele fica inundado de energia não escoada e entra em angústia. Ao se traduzir Freud seguindo os padrões internacionais obtém-se
E qual a solução freudiana para este processo natural e cotidiano? A clí- uma trama semântico-teórica esquisita, pobre de sentido, de difícil enten-
nica de Freud visa a que o paciente aprenda a achar novos caminhos sob dimento, e, mais grave, equivocada. A trama seria: uma Frustração gera
estado de privação, uma vez que na vida somos constantemente privados uma Estase e uma Pressão visando à Descarga interna obtida então por
de realizar nossos desejos. uma Elaboração. Enfim, uma frase incompreensível, que precisa então ser
O argumento de Freud é que o ser humano é constantemente impe- interpretada e explicada por especialistas.
dido de satisfazer as pulsões e se não dispuser de recursos psíquicos para Perde-se toda uma rede semântico-conceitual que, na verdade, se
buscar outras formas de circulação pulsional, ele sucumbirá à “estase” refere ao fato de que: quando ocorre um Impedimento à circulação de
(que em alemão corresponde a Stauung, melhor traduzido por “acúmulo/ uma pulsão (necessidade psíquica, desejo) gera-se um Acúmulo de ten-
inchaço” de tensão). Ao ficar “inchado de energia não escoada”, se pro- são e uma consequente intensa Ânsia por Escoar a Tensão/pulsão acu-
duz um Drang (em português traduzido por “pressão”, em inglês por pres- mulada, o que se consegue dissolvendo a energia acumulada por meio
sure, em espanhol por presión, em francês por pression e em italiano por do Processamento mental das ideias e emoções. Como se nota, nossa
pressione, mas que significa “ânsia”, sensação que articula corpo e psique, segunda trama é bem diferente da primeira e, tal como em alemão, ela é
entre a necessidade e o anseio). Esta “ânsia” que não encontrará vias de mais compreensível e rica de sentidos.
saída, resultará depois em angústia. Em alemão esta segunda rede é semântica e conceitual. Semântica
A saída deste circuito infernal, muitas vezes denominada por Freud porque os termos têm uma continuidade e nexos semânticos entre si, por
de Abfuhr, em português infelizmente tem sido traduzida por “descarga”. exemplo, Drang e Trieb, como se pode constatar em dicionários de alemão,

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são continuidades, Abfuhr e Verarbeitung se ligam conotativamente. E Sobre os autores e organizadores
como estes, há diversos outros exemplos de termos centrais na teoria psi-
canalítica que ao serem traduzidos de modo tradicional, ignorando-se as
redes semântico-teóricas, perdem nexos fundamentais. Recompor esses
nexos torna o texto alemão fluido, e a teoria mais imediata e compreen-
sível. Muito disto pode ser obtido também em português, desde que se
tenha uma estratégia de tradução adequada.

uma nova estratégia de tradução


Daí nossa opção ao realizar uma nova tradução dos textos de Freud
para o português foi inovar, introduzindo uma estratégia ainda não uti-
lizada em nenhuma tradução disponível: contemplar estes nexos entre
semântica, conteúdo teórico e estilo, para restaurar estas redes semântico-
-conceituais. Claire Gillie – Psicanalista, membro de Espace Analytique (França), respon-
Buscamos um texto mais fluido e aclimatado que tivesse para o lei- sável por cursos na Universidade de Paris 7, Denis Diderot, no Departamento
tor brasileiro exatamente o mesmo grau de facilidade e inteligibilidade de “Estudos Psicanalíticos”. Musicóloga, Doutora em Antropologia
que Freud tem em alemão, e que ao mesmo tempo restaurasse os nexos Psicanalítica, defendeu uma tese de doutorado sob a orientação de Markos
entre as ideias e termos tal como há em alemão. Os detalhes mais técnicos Zafiropoulos e Paul-Laurent Assoun. Pesquisadora associada no Laboratório
de como o fizemos estão minuciosamente descritos na apresentação do do CRPMS (Centro de Pesquisa Psicanálise, Medicina e Sociedade) da
nosso primeiro volume, mas espero que o exemplo acima tenha dado ao Universidade Paris 7. Trabalha atualmente na tradução de obras de Freud
na coleção Psicanálise e Religião (Cerf), dirigida por Paul-Laurent Assoun.
leitor ao menos um vislumbre dos efeitos que esta estratégia produz no
texto final. Christian Ingo Lenz Dunker – Psicanalista, Professor Titular do Instituto
E para não engessar o texto, criamos um extenso corpo de notas de de Psicologia da USP (2014). Obteve o título de Livre Docente em Psicologia
final de capítulo, que servem aos estudiosos para elucidarem significados Clínica (2006) após realizar seu Pós-Doutorado na Manchester Metropolitan
implícitos e se informarem de atuais alternativas de tradução que encon- University (2003). Possui graduação em Psicologia pela Universidade de
trarão em outras traduções. São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Experimental (1991) e doutorado
Aos interessados em ler nossa tradução sugerimos que primeiro em Psicologia Experimenta (1996) pela Universidade de São Paulo (1996).
leiam o texto sem consultar as notas, para se deixarem levar pela prosa Atualmente é Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo
e tom de Freud e se impregnarem das tramas semântico-conceituais que Lacaniano e professor Associado do departamento de Psicologia Clínica da
Universidade de São Paulo. Tem experiência na área clínica com ênfase em
percorrem o texto como uma melodia. Somente aos estudiosos e interes-
Psicanálise (Freud e Lacan), atuando principalmente nos seguintes temas:
sados em maior aprofundamento teórico, sugerimos depois reentrar no
estrutura e epistemologia da prática clínica, teoria da constituição do sujeito,
texto consultando as notas, que esmiúçam alternativas e conexões.
metapsicologia, filosofia da psicanálise, ciências da linguagem. Coordena, ao
lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr,. o Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. 

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Elizabeth Robin Zenkner Brose – Possui graduação em Português e Inglês atua no Departamento de Teoria Literária e Literaturas (TEL), na área de
-Línguas e Literaturas pela Universidade Metodista de São Paulo (1986), Literaturas de Expressão Francesa.
mestrado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (2001), doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Luiz Alberto Hanns – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005) e doutorado com está- São Paulo(1993), graduação em Administracao pela Escola de Administração
gio “sauduíche” na Universität zu Köln (2003). Tem experiência na área de de Empresas de São Paulo(1980), mestrado em Psicologia (Psicologia
Letras, com ênfase em Literatura, atuando principalmente nos seguintes Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(1998) e douto-
temas: literatura brasileira, literatura contemporânea, literaturas lusófonas, rado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica
narrativa e Pepetela. Autora do livro Máscaras de múltiplas faces e coautora de São Paulo(1998). Atuando principalmente nos seguintes temas:Tradu-
de Leitura e literatura: teoria e prática. ção, Conceitos, Terminologia. Coordena a coleção Obras Psicológicas de
Sigmund Freud para a Editora Imago. Autor do Dicionário Comentado do
Emiliano de Brito Rossi – Pós-Doutorando em Estudos da Tradução junto Alemão de Freud (Imago).
ao PPGET/UFSC, fomentado por auxílio da CAPES. Doutorado em Letras
na Área de Língua e Literatura Alemã pela Faculdade de Filosofia, Letras Marcelo Jacques de Moraes – Professor de Literatura Francesa na
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. Doutor em
Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem expe- Letras Neolatinas pela UFRJ (1996), fez estágios de pós-doutorado na França
riência docente nas áreas de Estudos da Tradução, Língua Alemã, Psicanálise em 2003 (Paris VIII) e em 2010 (Paris VII). Tem inúmeros artigos publicados
e Psicologia Social. Tradutor e Psicanalista. Desenvolve pesquisas nas seguin- no Brasil e na França, e seu trabalho tem como objetos privilegiados a tradu-
tes áreas: Estudos da Tradução, Filosofia, Psicanálise e Psicologia. ção literária e a poesia francesa moderna e contemporânea.

Ernani Chaves – Professor Associado IV da Faculdade de Filosofia da Marcus Coelen – possui uma venia legendi em Filologia Românica e
Universidade Federal do Pará. Professor permanente do Programa de Pós- Literatura Geral e Comparada pela Universidade Ludwig-Maximilian (LMU)
Graduação em Antropologia e Colaborador no Programa de Pós-Graduação de München (2013), doutorado em Estudos Literários pela Universidade
em Psicologia, ambos na UFPA. Neste último, é Coordenador Associado do Europea Viadrina, Frankfurt/Oder, Alemanha e um Diplôme d’Études
PROCAD-Novas Fronteiras, realizado em conjunto com a UFS e a UFRJ. Pós- Approfondies (D.E.A.) em Literatura Geral e Comparada pela Sorbonne-
Doutorado na Universidade Técnica de Berlim e na Bauhaus-Universität, de Nouvelle (Universidade Paris 3) (1995). Foi professor convidado na
Weimar, na Alemanha. Foi Pesquisador Visitante na Universidade Técnica de Universidade Bar-Ilan, Israel, na UFMG e na USP. Desde 2013, é Privatdozent
Berlim. É Membro da Nietzsche-Gesellschaft (Naumburg/Alemanha) desde pela LMU München. Publicou, dentre outros, livro sobre Proust e Kant em
1990, do GT Nietzsche da ANPOF e é um dos Editores da revista Estudos 2006, pela editora Fink (München, Alemanha) e edições de obras de Maurice
Nietzsche. Foi Membro do Comitê Assessor de Filosofia/Teologia do CNPQ Blanchot, em 2007, 2010 e 2012, pela editora Diaphanes (Zürich/Berlim).
entre julho de 2011 e junho de 2013, tendo sido o Coordenador do referido
Maria Rita Salzano Moraes – Docente do Departamento de Linguística
Comitê no período de novembro de 2013 a junho de 2014.
Aplicada (DLA), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP,
Junia Barreto – Possui graduação em Psicologia – especialidade Psicologia Campinas, São Paulo. Doutora em Linguística (UNICAMP). Tese de
Clínica pela Faculdade de Ciências Humanas-FUMEC, graduação e mes- Doutorado: Materna/Estrangeira: o que Freud fez da língua (UNICAMP, 1999).
trado em Lettres Modernes – Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Pesquisadora do Centro OUTRARTE – (Estudos entre Psicanálise e Arte) IEL
doutorado em Estudos Literários (UFMG) e doutorado em Littérature et – UNICAMP. Coorganizadora de De um discurso sem palavras (Mercado de
Civilisation Françaises (Paris III). Pós-doutoramento no Laboratoire LIRE da Letras, 2012 – Coleção TerramaR). Traduziu: “Além do princípio de prazer”,
Université Lyon 2 e do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS). “À guisa de Introdução ao Narcisismo” e Pulsões e Destinos da Pulsão”, volu-
Atualmente é professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB), onde mes 1 e 2 de Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Escritos sobre a Psicologia

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do Inconsciente. Coordenação da tradução Luiz Alberto Hanns. Rio de Freud” (Ed. Autêntica). Autor de “Versões de Freud” (7Letras, 2011), “Fausto
Janeiro: Imago Editora, 2004 e 2006. e a Psicanálise” (Annablume, 2012), “Freud & Schnitzler” (Annablume, 2007)
e coorganizador de “Tradução e Psicanálise” (7Letras, 2013). Tem conside-
Maurício Eugênio Maliska – Psicanalista, membro e atual presidente de rável experiência como psicanalista e professor de Psicologia. Atualmente é
Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, mestre e doutor em pesquisador visitante no Zentrum für Literatur– und Kulturforschung – ZfL
Linguística pela UFSC, com estágio de doutorado na Université Paris VII, pro- (BPE-FAPESP) em Berlim – Alemanha.
fessor de Psicanálise no curso de Psicologia e no Programa de Pós Graduação
em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina Walter Carlos Costa – Estudou filologia românica na Katholieke Universiteit
(UNISUL). Leuven, Bélgica, tem doutorado sobre as traduções de Borges para o inglês
pela University of Birmingham, Reino Unido, e pós-doutorado pela UFMG.
Patrícia Chittoni Ramos Reuillard – Bacharelado em Letras (francês/ale- é professor do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da
mão) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1983), Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisando literatura hispano-a-
Mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande mericana (sobretudo a obra de Jorge Luis Borges), Literatura Comparada
do Sul (1992), Doutorado-sanduíche pela Université de Paris III – Sorbonne e Estudos da Tradução (especialmente a conexão entre literatura traduzida
Nouvelle e Doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande e literatura nacional). Foi Presidente da ABRAPT (Associação Brasileira de
do Sul (2007). Professora-adjunta do Departamento de Línguas Modernas Pesquisadores em Tradução) na gestão 2010-2013. Esteve em colaboração
do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua técnica no Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do
nas áreas de Tradução, Terminologia e Língua Francesa, na Graduação e na Ceará de 2013 a 2016. Atua na PGET (UFSC) e na POET (UFC).
Pós-Graduação, nos seguintes temas: tradução – teoria e prática, língua fran-
cesa, terminologia e lexicografia (neologia lacaniana). É pesquisadora e vice-
-coordenadora do Grupo de Pesquisa TERMISUL – Projeto Terminológico
Cone Sul. Vice-líder do Grupo de Pesquisa do CNPq TERMISUL. Tradutora
de língua francesa.

Paulo Sergio de Souza Jr. – Tradutor e psicanalista. Pós-doutorando junto


ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Linguística pelo Instituto de
Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp,
2012). Selecionado pelo Grupo Coimbra [Bélgica], atuou como professor-as-
sociado junto à Facultatea de Litere da Universitatea Alexandru Ioan Cuza
[Romênia] em 2009. Em 2013, foi tradutor residente pelo programa Univers
do Institutul Cultural Român – ICR, em Bucareste. Tem interesse nas áreas de
Tradução, Clínica Psicanalítica, Teorias Linguística e Literária, atuando nos
temas: Teorias e Práticas de Tradução; Psicanálise, Escrita e Interpretação;
Linguística e Poética; Literaturas do Leste Europeu.

Pedro Heliodoro Tavares – Professor da Área de Alemão do DLM-FFLCH-


USP. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia (Université Paris VII), Doutor
em Literatura (UFSC). Pós-Doutorado e Estudos da Tradução (PGET-UFSC).
Coordena com Gilson Iannini a coleção “Obras Incompletas de Sigmund

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