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Aulas de literatura (Berkeley, 1980)

Julio Cortázar
(2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018)

Curso de literatura ministrado por Cortázar em Berkeley em 1980. Apresenta a aula e depois as
perguntas dos alunos, sempre muito dinâmico e permeado de exemplos e leitura de trechos de
outras obras para tornar mais claros seus argumentos.

Aulas:

 “O caminho de um escritor”
 “O conto fantástico I: o tempo”
 “O conto fantástico II: a fatalidade”
 “O conto realista”
 “Musicalidade e humor na literatura”
 “O lúdico na literatura e na escrita de O jogo da amarelinha”
 “De O jogo da amarelinha, O livro de Manuel, e Fantomas contra los vampiros
multinacionales”
 “Erotismo e literatura”
 “A literatura latino-americana de nosso tempo”
 “Realidade e literatura”

OS CAMINHOS DE UM ESCRITOR

“não basta ter uma mensagem para fazer um romance ou um conto, porque essa mensagem,
quando é ideológica ou política, um panfleto, um ensaio ou um informativo transmitem melhor.
A literatura não serve para isso. A literatura tem outras maneiras de transmitir essas mensagens,
e pode transmiti-las com muitíssimo mais força que o artigo de jornal, mas para fazê-lo com mais
força tem que ser uma alta e grande literatura” (p. 37)

O CONTO FANTÁSTICO I: O TEMPO

“Ali me dei conta do que me acontecia desde muito pequeno o fantástico para mim não era o que
as pessoas consideravam fantástico; para mim era uma forma de realidade que em determinadas
circunstâncias podia se manifestar. ... Eu aceitava uma realidade maior, mais elástica, mais
expandida, em que tudo cabia” (p. 51)
SOBRE O TEMPO1

Sugestão de contos para leitura (sobre Tempo): “O milagre secreto”, de Borges; “Aconteceu na
ponte do Riacho da Coruja”, de Ambrose Bierce; “A ilha do meio-dia”, de Cortázar.

“O tempo é um problema que vai muito além da literatura e que envolve a própria essência do
homem.” (p. 51)

“O que para o tempo dos soldados havia durado dois segundos, para o tempo nisso que Borges
chama de ‘o milagre secreto’ durou um ano, ele teve um ano de tempo mental para terminar sua
obra” [o tempo interior: segundos no tempo exterior são quase um ano no tempo interior do
personagem] (p. 53)

“A última frase de Bierce é ‘O corpo do executado balançava no extremo da corda’. O mecanismo


do fantástico é muito similar porque, também em sua agonia de homem a quem estão enforcando,
ele viveu a suposta ruptura da corda que lhe permitiu sair em busca de sua família e encontrar
seus entes queridos.” (p. 54) [em seu tempo interior, o personagem acha que escapou e que
reencontrou sua família, isso tudo imaginado nos segundos em que ele caía].

“Escrevi o conto com a impressão, com a sensação de que em algum momento há um


desdobramento do tempo, o que significa um desdobramento do personagem.” (p. 57) [o
personagem vive “duas vidas ao mesmo tempo”; como se fosse uma vida em uma realidade
paralela] “Àqueles que pensem que minha noção do tempo como possibilidade de desdobrar-se e
mudar, alongar-se ou ser paralelo é só uma fantasia de escritor, gostaria de dizer que não é assim”
[e Cortázar lê um trecho de seu conto “O perseguidor” em que explica sua noção de tempo:] “Não
era pensar, acho que já disse a você muitas vezes que eu não penso nunca; estou assim parado
numa esquina vendo passar o que penso, mas não penso no que vejo. Entende? ... Como se pode
pensar um quanto de hora em um minuto e meio?” ... “tenho certeza de que a realidade escapa
dele e deixa nele uma espécie de paródia que Johnny transforma em esperança.”

“Aqui é que os senhores podem acreditar em mim ou não, mas é isso o que se costuma chamar
um estado de distração e que ninguém sabe bem o que é porque quando somos crianças nossas
mães e nossas professoras nos ensinam que não devemos nos distrair, e inclusive podem até nos
castigar por isso; talvez (sem saber, coitadas) estejam nos privando desde a infância de uma
possibilidade dentro de muitas possibilidades de certo tipo de abertura. ... Através desses estados

1
São duas as concepções de tempo que Cortázar apresenta: 1- o do duplo: o personagem vive outra
vida, como em uma realidade paralela; então o que se abre não é um tempo interior mas sim outra
realidade. 2- tempo interior: que ele chama de “estado de distração”, em que o tempo passado
imaginando algo é muito maior do que o tempo exterior real (ex.: Durante uma hora, imaginar-reviver
um dia inteiro de um passeio que ocorreu há muito tempo e teve uma duração grande).
de distração entra esse elemento outro, esse espaço ou tempo diferente ... o sentimento de medo,
de pânico e de deslumbramento – tudo acontecia ao mesmo tempo – que me ocorreu no dia em
que pela primeira vez estabeleci a relação entre o fato de que havia passado por duas estações de
metrô, de pé entre muitas pessoas, num estado de distração em que havia percorrido uma longa
viagem que tinha feito com um amigo no norte da Argentina no ano de 42, coisas que aconteceram
ao longo de semanas, de meses, detendo-me em detalhes com esse prazer que dá a recordação
quando a pessoa tem tempo e se põe a pensar e está distraída, e de repente o metrô é que se detém
e vejo que devo descer e que se passaram dois minutos. Meu tempo interno, o tempo em que
tudo isso havia acontecido em minha mente, de maneira alguma poderia caber em dois
minutos; não se podia nem sequer começar a contar mesmo que estivesse tentando acelerar o
relato. A mesma mecânica dos contos”2 (p. 65-66)

GERAIS

“Embora possa parecer paradoxal, devo dizer que tenho até vergonha de assinar meus contos,
porque tenho a impressão de que me foram ditados por alguém, de que não sou o verdadeiro autor.
Não quero vir com histórias mirabolantes, mas às vezes tenho a impressão de que sou um pouco
um médium que transmite e recebe outra coisa” (p. 68)

Ideia para exercício de escrita com humor: “Manual de instruções”: “Instruções para subir uma
escada” (p. 171).

“Sempre tive uma grande desconfiança de seguir por uma caminho quando esse se torna fácil.
Lembro-me de que ainda muito jovem li uma frase do escritor francês André Gide que ficou para
mim como um dos conselhos ou das indicações mais importantes que um escritor pode dar a
outro. Gide disse: ‘Não há que aproveitar-se nunca do impulso adquirido’. Parece um paradoxo,
mas a verdade é que, quando se trabalha por longo tempo numa obra e se chega a dominar esse
caminho e essa técnica, existe a tentação de continuar; é o caso de escritores, músicos ou pintores
que, uma vez que encontram uma maneira, se repetem indefinidamente, às vezes ao longo de sua
vida” (p. 208)

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Esse estranhamento, essa passagem misteriosa do tempo, o tempo dilatado no interior no
personagem – esta é a mecânica do conto. Penso que Cortázar acha que o “estado de distração” – que
acho que seja o “flow” – tenha que ser mais vivenciado pois seria uma “abertura” para uma vida mais
plena (em que 1 ano cabe em 1 minuto). Por isso coloca em seus contos.
“O que sucede é que as obras literárias cumprem às vezes destinos muito estranhos, acasos muito
estranhos que escapam completamente a seu autor” (p. 209).

“São as coisas que aprendemos quando terminamos de escrever um livro. ... sabem muito bem
que só mais tarde – às vezes muito mais tarde –, quando tornamos a ler o trabalho que fizemos,
se descobrem elementos” (p. 231-232).

BUSCAR IDEIAS

“Sempre leio essas páginas [seção científica] com muito interesse, porque à minha maneira chego
a compreender algumas coisas que para mim fazem parte do fantástico. ... abre-se um terreno de
incerteza onde as coisas podem ser ou não ser, onde as leis exatas da matemática não podem ser
aplicadas como vinham se aplicando nos níveis mais baixos. ... começa um território onde tudo é
possível e tudo é incerto e ao mesmo tempo há a enorme força dessas coisas que, sem serem
reveladas, parecem estar nos acenando para que possamos ir buscá-las e nos encontremos mais
ou menos no meio do caminho, que é o que está sempre propondo a literatura fantástica.” (p. 71-
72)3

O CONTO REALISTA

“estou convencido de que o conto realista que vai se fixar em nossa memória é aquele em que o
fragmento de realidade que nos foi mostrado vai de alguma maneira muito além da História e da
própria história que conta. Ir além pode significar muitas coisas: pode significar uma descida em
profundidade à psicologia doa personagens. Pode-se mostrar realisticamente o comportamento e
a vida deum casal ou de uma família, mas o conto chegará a tornar-se inesquecível quando,
além do que nos foi contado, o que ocorre no conto nos permita entrar no espírito, na psicologia,
na personalidade profunda dos integrantes do conto e que não necessariamente se explica no conto
mesmo. ... O conto realista é sempre mais do que seu tema.” (p. 142)

3
Ler “matérias” buscando “sinais” para compreender seus questionamentos do momento (como
exercício de escrita criativa e de imaginação ativa). Lei da incerteza = chegar ao limite do racional.
COMO RESOLVEU PROBLEMAS NA ESCRITA

“De repente me dei conta de que era uma bobagem tentar introduzir os elementos de informação
política dentro do corpo do romance porque isso evidentemente esfriava o conteúdo dramático
direto: os personagens podem fazer comentários num romance sobre o que está sucedendo na
realidade vivida, mas o centro do romance não pode ser isso, porque – volto a dizê-lo –, se o
elemento histórico se superpõe ao literário, o literário sai perdendo, e vice-versa” (p. 258). [como
Cortázar resolveu o impasse de apresentar ou não o cenário político: recortes de notícias de jornal;
comentários de personagens]

EROTISMO E LITERATURA

“Em linhas gerais, gostaria de lhes recordar que, quando lemos a literatura clássica, podemos
verificar muito facilmente o seguinte: na literatura do chamado paganismo – quer dizer, as
literaturas que precedem ao momento em que o cristianismo domina o mundo ocidental, a
literatura grega e a latina ou romana, fundamentalmente – o erotismo não constituiu nunca um
desses temas que é preciso tratar com cuidado, um desses vocabulários sobre os quais antes de
escrever é preciso refletir. Para os pensamentos grego e latino, a atividade erótica humana se
situava exatamente no mesmo nível que qualquer das outras atividades, fazia parte da
integralidade do ser humano; com diferenças de matiz, fundamentalmente não havia qualquer
hesitação, qualquer pôr entre parênteses, qualquer tabu, qualquer proibição muito manifesta” (p.
270).

“quando muitos escritores de romance ou de conto entram numa etapa na qual há episódios de
tipo erótico, cria-se uma espécie de bloqueio mental que vem do passado, da noção de tabu, de
proibição; no fundo, da noção de mal” (p. 272)

“Entre erotismo e pornografia há uma diferença capital: a pornografia na literatura é sempre


negativa e desprezível no sentido de que são livros, ou situações de livros, escritos
deliberadamente para criar situações eróticas que provoquem no leitor determinada excitação ou
determinada tendência; em contrapartida, o erotismo na literatura significa o fato de que a vida
erótica de alguém é tão importante e tão fundamental como sua vida mental, intelectual e
sentimental. ... enquanto a pornografia aponta sempre de alguma maneira para o comercial, a criar
sensações de tipo carnal que nada têm a ver com o verdadeiro erotismo” (p. 273).
A LITERATURA LATINO-AMERICANA DE NOSSO TEMPO

“Quando um escritor responsável dá o máximo de si como criador, tudo o


que escrever será uma arma neste duro combate que travamos dia a dia” (p.
312)

“...o grande e belo paradoxo está em que quanto mais literária é a literatura, se posso dizê-lo
assim, mais histórica e mais operante se torna” (p. 313)

REALIDADE E LITERATURA

“todo labor literário e artístico implica uma luta permanente contra um sentimento, uma suspeita
de luxo, de surplus, de evasão de uma responsabilidade mais imediata e concreta” (p. 319)

“... tento mostrar os possíveis valores que podem resultar da literatura do exílio, em vez de
inclinar-se perante o exílio da literatura, como esperaria o inimigo” (p. 321)

“É então que convém lembrar que os traumas de todo tipo foram sempre uma das razões capitais
da literatura, e que superá-los mediante uma transmutação em obra criadora é o próprio do escritor
de verdade” (p. 322).

“... praticamente todos os escritores latino-americanos, vivamos ou não em nossa casa, somos
escritores exilados” (p. 325)

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