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Título original: A Heartless Marriage

Copyright © 1996 por Helen Brooks


Copyright da tradução © 199¨6 por Editora Nova Cultural.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito dos editores.

tradução: Márcia Gimenez


revisão: Projeto Revisoras
preparo de originais: Projeto Revisoras
digitalização: Valeria, Joyce e Ana
capa: Star Books Digital
adaptação para ebook: Star Books Digital

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Brooks, Helen Loucura de Verão [recurso eletrônico] / Helen Brooks [tradução de


Editora Nova Cultural]; Rio de Janeiro: Editora Nova Cultural, 1996.
recurso digital (Julia Verão; 4)

Tradução de: A Heartless Marriage Formato: ePub


Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide
Web
ISBN 978-03-7311-844-1 (recurso eletrônico) 1.Romance de Banca. 2. Livros
eletrônicos.

E-book distribuído sem fins lucrativos


É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou qualquer uso comercial do presente conteúdo
Sinopse
"O Caribe é o melhor lugar para viajar nas férias e cometer loucuras de amor!"
Quando o atraente milionário Raul de Chevnair escolheu Leigh para sua esposa, parecia ter
abandonado a vida de solteirão namorador para sempre. Mas, abandonara mesmo? Mal começara;
sua vida de casado, os antigos hábitos voltaram, e Leigh encontrou-o nos braços de outra mulher...
Isso acontecera cinco anos atrás. Leigh não é mais uma adolescente ingênua, presa aos encantos
do marido. Quando Raul decide recuperar a confiança da mulher, Leigh torna as coisas bem difíceis.
Raul sugere a ela uma viagem ao Caribe, uma segunda lua-de-mel. Mas Leigh precisa de muito mais
que isso para se convencer de que o marido está mesmo decidido a levar seus votos matrimoniais a
sério!
Capítulo 1
— É faz bastante tempo, Leigh. — Como uma carícia, a voz de veludo com ligeiro sotaque
francês fez o sangue de Leigh gelar nas veias. Ela sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde,
mas não se preparara para tal, como não conseguia controlar o tremor que lhe sacudiu o corpo ao
ouvir a inconfundível voz que a tocou profundamente.
— Alô, Raul. — Ela virou-se vagarosamente para encontrar o olhar que um dia tivera o poder de
levá-la às alturas. — Cinco anos já...!
— E dois meses! É isso?
Ele estava atraente como sempre, mais talvez se possível do que na última vez em que o vira. Era
o mesmo homem; contudo..., diferente agora. O intervalo de tempo traçara algumas linhas em volta
de seus olhos. Porém isso não fizera mais do que acrescentar beleza à masculinidade. O nariz
perfeito, o queixo aristocrático, a boca sensual, tudo forneceria inspiração para um maravilhoso
quadro pintado a óleo.
— Viu? Eu me lembro bem — disse ele. — E você, como vai?
— Muito bem. E você? — perguntou Leigh, achando sua pergunta ridícula, como se fossem
amigos distantes renovando um tênue relacionamento, quando, na realidade...
— Eu também estou bem. — Os olhos azuis de Raul fixaram-se no rosto enrubescido de Leigh,
nos lábios suaves, nos cabelos escuros que chegavam até os ombros. — Você deixou crescer os
cabelos. Gosto de como estão agora.
— Obrigada. — Leigh não se sentira tão exposta, tão vulnerável, em anos. Cinco anos, na
verdade. Forçou um sorriso e disse: — Você está na Inglaterra a serviço?
— De certa maneira, sim. — Raul sorriu. — Suponho que possa chamar minha visita de
negócios.
— Oh... — Leigh não sabia o que falar. — Bem... É melhor que eu me vá...
— Ouvi dizer que você estava pintando muito bem. Está tão linda como em anos atrás.
Uma infinidade de vezes ela acordara durante a noite sentindo-se nos braços de Raul, ouvindo-o
dizer que ela era linda! Que era seu tesouro! Que nunca a deixaria.
— Nunca fui linda, Raul — Leigh protestou.
— É linda. Para mim, sempre foi linda.
Leigh aguardara pela oportunidade de comparecer àquela mostra de arte, havia semanas já,
sabendo que muita gente importante, artistas, milionários, iam às exposições de Nigel Blake. Nigel
tinha orgulho das pessoas que frequentavam seus vernissages, o comentário de toda Londres.
— Preciso falar com você, Leigh. — Raul segurou-a pelo braço, e uma perigosa corrente elétrica
percorreu o corpo de Leigh. Ela deu um passo atrás.
— Sinto muito, Raul, mas não quero falar com você.
— Agora não está sendo amável, Leigh. Tenho sido paciente, mas há ainda muitas coisas sobre
as quais temos de conversar. Entende isso, não?
— Como assim? — Leigh fitou-o, atônita com a audácia dele.
— Ora, vamos, vamos. Não achou que ficaríamos sempre vivendo nesse tipo de expectativa,
achou? É claro que imaginou que chegaria o dia em que ajustaríamos nossas contas. — Ele sorriu,
mas com um quê de crueldade.
Uma americana aproximou-se e Leigh ficou radiante com a interrupção. Deu um suspiro de
alívio.
— Leigh querida, como vai? — a mulher disse. E, referindo-se a Raul. — Não é justo
monopolizar todos os homens. Meu nome é Vivien James — Ela apresentou-se, estendendo a mão
a Raul. A modelo de um metro e oitenta de altura chegou bem perto dele, lançando-lhe um olhar
cujo significado homem algum jamais ignoraria. E prosseguiu: — Suspeito que Leigh esteja
escondendo você de nós. Dizem que as mais quietinhas são as piores. — Ela sorriu e acrescentou:
— Não venha me dizer que é um velho amigo de Leigh.
— Nem sonharia afirmar tal coisa — Raul respondeu friamente.
— Não? O que é então?
— Acontece que sou o marido de Leigh.
Raul esboçou um diabólico sorriso de satisfação ao ver a surpresa estampada no rosto bem
maquiado de Vivien.
— Você está brincando! — ela exclamou. — Não acredito. Não pode estar casado com ela.
Leigh vestia-se modestamente, era ligeiramente cheia de corpo, tinha feições suaves, cabelos
castanhos e lisos; enfim, nada nela se comparava em beleza com a atraente modelo.
Leigh corou. Raul pegou no braço dela e disse a Vivien:
— Então, era só isso que você queria saber? — E, numa atitude protetora, levou Leigh para um
canto da sala repleta de gente.
— Deixe-me ir — pediu Leigh. — Por que falou aquilo? E por que está aqui? Não o quero mais
metido em minha vida.
— Sei disso. Mas a verdade é que ainda sou seu marido. E não faça essa cara, não vou magoá-la.
— Não vai me...? O que poderia fazer para me magoar, que já não tenha feito, Raul? Odeio você.
Se fosse um homem decente me teria dado o divórcio tão logo o deixei.
— Eu não queria me divorciar. E por que você não entrou com a ação?
— Por quê? Quer mesmo saber por quê? — Ela encarou-o com firmeza. — Porque não queria
pensar em você, queria tirá-lo de minha mente, queria fingir que você não existia, que nosso
casamento não acontecera. Por isso está aqui agora? Para falarmos sobre o divórcio? Nosso
encontro não foi acidental, foi?
— Não, não foi.
— Como é o nome dela? — Leigh perguntou friamente. — Com certeza Marion não está mais
em sua vida! — Ela fez esforço para pronunciar o nome odiado.
— Não tenho intenção de discutir sobre nossos assuntos particulares aqui. Mas posso me limitar
a dizer que não vim para pedir divórcio. Quando pode sair?
— Quando posso...? Não pense que vou a outro lugar com você! Estou acompanhada.
— Está? — Os olhos brilhantes de Raul a desafiaram. Ele sorriu com sarcasmo. — Achei que
não. Jeff Capstone se encontra na Escócia, não é verdade? Viu? Sei mais sobre sua vida do que
pensa. — Os olhos de Raul não a deixavam nem por um segundo.
— Como ousa? Quem pensa que é? — Leigh não podia entender a razão de tanta insolência.
— Achei que tínhamos estabelecido isso desde o início de nossa conversa. Sou seu marido!
— De nome apenas. — O coração dela começou a palpitar mais forte.
— Estou plenamente preparado para provar isso, se você achar necessário. — Os olhos azuis
tinham uma expressão insultantemente familiar. — Lembro-me de que uma vez nós vivemos felizes
juntos.
— Nós vivemos? Tem certeza de que era em nós dois que você estava pensando? Deve ter
havido tantas mulheres em sua vida, Raul! Duvido que se lembre de cada uma de suas ligações. —
Ela sorriu. Ao menos o atingira, ao menos o ofendera.
— Você nunca foi uma "ligação" minha, Leigh — ele falou furiosamente. — Era e é minha
esposa!
— Foi realmente uma pena você não ter se lembrado disso quando deveria — Leigh contestou.
— Adeus.
Ela deu-lhe as costas e deixou-o, antes de Raul se dar conta do que estava acontecendo. Leigh
atravessou a sala, esperando, a qualquer instante, sentir a mão firme de Raul em seu ombro. Mas
nada aconteceu. Teve vontade de correr e se esconder em algum local onde pudesse chorar por algo
que imaginou haver esquecido. As feridas continuavam vivas como no dia em que tudo se passara.
Mas não permitiria que Raul descobrisse como ainda sofria; não daria a ele essa satisfação. Como
soubera que ela se achava no vernissage? Por que estaria ele lá?
Leigh entrou em outra sala, repleta de membros da alta sociedade londrina.
Quando ela começara a ser conhecida como pintora, dois anos antes, jamais imaginara que
chegaria ao ponto a que chegou. E, quando recebeu um convite para expor no vernissage de Nigel,
não resistiu. Compareceu, e agora pagava por sua vaidade de um modo que nunca sonhara, mesmo
em seus mais terríveis pesadelos.
— Tudo vai bem, querida? — Nigel disse quando passou por ela; mas não esperou pela resposta.
Leigh já estava lá durante duas horas, fora vista pelas pessoas que a interessavam, e agora não
poderia aguentar permanecer nem mais um minuto. Olhou ao redor com cuidado e não viu Raul.
Concluiu que era o momento de fugir. Precisava ir embora!
— Já vai, querida? — Ela acabava de vestir seu modesto casaco, no vestiário onde havia uma
infinidade de agasalhos de pele, xales luxuosos, quando Vivien tocou-lhe o braço com a mão bem
tratada.
— Que belo homem você arranjou, querida — disse.
— Como? — Leigh não gostara nunca de Vivien e, em mais de uma ocasião, convivera com ela
em Londres quando trabalhava como assistente de fotógrafa para ganhar a vida, enquanto
alimentava seu sonho de ser pintora. Encarou a mulher alta, elegante, e declarou: — Não entendi o
que quis dizer.
— Aposto que não. Qual é seu plano, querida? Fiz minhas indagações e descobri que o homem
com quem você falava há pouco era Raul de Chevnair. Não era? Mas não pode esperar que eu
acredite que um playboy milionário como Raul de Chevnair se interesse por uma ninguém como
você, e muito menos que tenha se casado com essa ninguém! — Vivien deixou escapar um sorriso
sardónico.
— Não espero que acredite em nada, Vivien — Leigh disse friamente. — E agora, importa-se de
sair de meu caminho? Vou para casa.
— Importo-me, sim, de sair de sua frente. Não respondeu à minha pergunta, srta. Leigh Wilson!
Senhora de Chevnair não soa bem no seu caso.
— Então, se não acredita no que meu marido acabou de dizer minutos atrás, o problema é seu.
Boa noite, Vivien.
Leigh saiu do vestiário e apoiou-se numa parede a fim de tomar fôlego. Já?! Raul voltara para sua
vida apenas há cinco minutos, e as mulheres já apareciam como abelhas num pote de mel. Mas ele
não voltara à sua vida! Isso não!, Leigh repetia mentalmente com firmeza. Ela não permitiria que tal
coisa acontecesse.
Quando fugiu da vida de Raul, achou que nunca mais seria feliz. E foi o que se passou no início.
Voltou para Londres, escondendo-se no anonimato da grande cidade, incapaz de pensar, de comer,
de dormir, durante semanas. De repente, numa linda manhã de primavera, um raio de sol fez sumir a
teia de aranha de sua cabeça, e a urgência de pintar reaparecera. Conseqúentemente, readquiriu
confiança em si, e iniciou vida nova. Transformou-se em outra pessoa. No decorrer dos anos, viveu
tranquilamente na agradável metrópole, depois da vida cruel nas montanhas. E agora ele voltava! Seu
coração pulsou com violência. Receou desmaiar. Por que, depois de tanto tempo? Ela deixara bem
claro a Raul que tudo entre os dois havia terminado, que tudo fora reduzido a cinzas, que não
sobrara nada. Então, por que voltava ele agora, quando ela se adaptava a uma nova vida?
Leigh retirou-se discretamente do local e criou ânimo ao sentir no rosto o ar quente de verão,
embora esse ar estivesse poluído pela fumaça dos carros; mas não se incomodava com isso, estava
tão acostumada a Londres!
Era uma noite escura, sem luar, e os lampiões lançavam uma luz discreta na elegante avenida.
Achou de repente que deveria ter chamado um táxi.
— Leigh? — Alguém a chamava. Em segundos viu o rosto moreno de Raul. Mas ele não sorria.
— Posso lhe dar uma carona? Por favor, diga sim!
Por favor? Esse não era o Raul que ela conhecia, o Raul com quem vivera durante dezoito
deliciosos meses.
— Não, obrigada — ela respondeu nervosamente. — Não quero ser difícil, mas...
— Nesse caso não seja — Raul interrompeu-a. Aquele, sim, era o Raul que ela conhecia. —
Precisamos conversar, Leigh, e podemos fazer isso agora. Você nunca foi do tipo de adiar situações
desagradáveis. Concorda?
— Acha mesmo essa conversa necessária? — indagou ela. — Nossos advogados não podem
cuidar do caso?
— Não, malditos sejam todos os advogados! Não quero advogados metidos em nossa vida
particular. Agora seja uma boa menina e entre neste carro, assim poderemos conversar enquanto a
levo para casa. Kingston Gardens, não é?
— Como sabe onde moro? — Ela fitou-o, surpreendida.
— Já lhe disse, sei mais sobre você do que imagina. Quer ver? Primeiro, alugou um quarto em
Baron Place; depois, um apartamento com a senhorita... aquela morena... ah, já sei, a srta. Angela
Hardwick; e, nos últimos dois anos, alugou um apartamento só seu, em Kingston Gardens. — Ele
cruzou os braços musculosos.
— Andou me espionando? Não acredito! Como ousou? Como ousou, Raul? Eu...
— Pare de falar e entre no carro. — A paciência de Raul se esgotava.
Ele segurou-a pelo braço e a fez entrar. Leigh sentiu um tremor de apreensão ao longo da
espinha. Ou seria excitação? Mordeu o lábio inferior e odiou-o; porém Raul interpretou essa atitude
como algo diferente.
O interior do luxuoso carro era magnífico. O couro branco do estofamento e o tapete cinza
sugeriam uma experiência sexual sobre rodas, Leigh pensou com malícia.
— Pare com essas rugas na testa. Vai ficar enrugada antes dos quarenta anos, e não pretendo
gastar uma fortuna em operações plásticas quando você ficar velha. Minha mulher tem de envelhecer
dignamente e na hora certa.
— Como? De que está falando, Raul?
— De nós — ele respondeu com desenvoltura. — Estou falando sobre nós.
— Não há nós — Leigh protestou enquanto olhava para as lojas e restaurantes iluminados.
Eles seguiam em alta velocidade. Mas Raul sempre dirigira daquela maneira.
Ela concluiu que errara ao entrar no carro. O corpo musculoso, possante, ali tão perto, lhe trazia
recordações indesejáveis, recordações que a faziam corar. Até o aroma de Raul a perturbava. O
delicioso e caro perfume da loção pós-barba sempre a excitara, quando nos braços dele. Mas estava
imune a Raul agora. Estaria mesmo?!
— Sim, há nós, gatinha. Sempre haverá nós.
— Quero sair desse nós. — Ela rangia os dentes. — Raul, você está me ouvindo?
— Não, querida, não estou.
Leigh fitou-o e se arrependeu. Aquele rosto lhe era tão familiar! Tão dolorosamente familiar!
Esquecera-se de que o marido tinha aspecto tão atraente, tão sedutor. Não era justo um homem
possuir tanto! Não era justo ter tanto magnetismo, tanta vitalidade.
— Estamos quase chegando — ele disse.
Em alguns minutos Raul estacionou o carro numa rua estreita, deserta, pouco iluminada.
Leigh estremeceu. Estava sozinha com Raul, seu marido, o homem que ela conhecia mais
intimamente do que qualquer outro homem do mundo, o homem que quase a destruíra! Estaria
bastante forte para resistir à fascinação do marido? Nunca o entendera bem, e não tinha ideia da
razão pela qual a procurara; mas sentia instintivamente que não fora uma decisão impulsiva.
Não errara em sua impressão inicial de que ele mudara. O velho Raul nunca tivera tanta
determinação no olhar. E, apesar de ser o mesmo, estava... diferente: mais velho, mais ameaçador,
mais perigoso. Leigh preparava-se para o que iria dizer.
— Leigh... — Enquanto pronunciava o nome dela, Raul inclinou-se; com uma das mãos
acariciou-lhe os cabelos sedosos, enquanto com a outra envolvia-lhe a cintura, apertando-a contra
seu peito, no espaço restrito do carro. Isso antes que ela tivesse tido tempo de resistir.
— Não! — Mesmo enquanto recusava o contato de Raul, Leigh sabia que a velha magia estava
presente. Não podia se afastar dele, não tinha para onde ir. O beijou a atingiu em cheio, e uma
sensação violenta explodiu em seu corpo. Tentou reagir, lutar contra o que lhe acontecia, mas Raul
era bem mais forte que ela, e o beijo a conduziu a um território conhecido seu, onde estivera antes
apenas com o marido, com mais ninguém. A estonteante, terrível submissão surgiu, como fénix
renascendo das próprias cinzas, sensual, possante, acelerando sua pulsação.
Leigh mal podia acreditar que sobrevivera sem o toque daquelas mãos durante cinco longos
anos. Tremia incontrolavelmente, com o corpo grudado ao dele, e a excitação óbvia de Raul
conduziu-a ao limiar do êxtase.
Ele parecia também preso à mesma loucura, murmurando palavras incoerentes junto aos seus
lábios, beijando-a no rosto, no pescoço, com os corpos sempre colados, num frenesi emocionante.
— Você é minha — Raul repetia sem cessar, com a voz cheia de uma exaltação que chegava às
raias da loucura. — Ainda é minha, sempre será minha!
Leigh sucumbiu nos braços dele, mas não sem sentir certa humilhação e desânimo por não ter
resistido. Apesar do prazer que experimentava, percebeu que estava rubra de vergonha.
— Não! — ela sussurrou enfim, afastando o rosto do dele. Bateu com o ombro na porta do
carro, e não sentiu dor, como se estivesse anestesiada. Não, isso não aconteceria de novo. Nunca
mais seria levada a tanta loucura, como um robô que só funcionava quando pressionado um botão
pelo dono. Ela era autónoma agora, não precisava mais dele, não precisaria dele nunca mais!
Sobrevivera durante cinco anos, não sobrevivera? Não poderia perder tudo agora. Tinha de lutar!
— Leigh, ouça-me...
— Não! — Ela sabia que estava quase histérica, mas não se incomodava. Tudo o que desejava
era convencê-lo de que a deixasse em paz. Convencê-lo de que tinha sua própria personalidade, e de
que não era um brinquedo para ser usado ao bel-prazer do marido, e quando convinha a ele. — Não
me toque de novo, Raul, e nunca mais. Eu odeio você. E sempre o odiarei.
Ela gritava. E, no espaço fechado do carro, as palavras ricocheteavam contra o metal, de modo
ensurdecedor. Enquanto lutava para abrir a porta, ela não percebeu que Raul voltara ao próprio
assento, no rosto uma expressão dura como pedra, nos lábios um ricto irónico.
— Um simples "não" teria sido suficiente — ele disse com calma. — Não precisava fingir que
estava gostando tanto do que considera uma ofensa. — Raul ria agora.
Com uma energia que não imaginava ter, ela ergueu a mão para esbofeteá-lo. Porém Raul
agarrou-a no ar, com força. O tempo foi suficiente para que Leigh caísse em si da enormidade do ato
que iria praticar. Fechou os olhos, recostando-se melhor, enquanto sentia suas forças se esvaírem,
deixando-a trémula e silenciosa.
— Considere-se uma mulher feliz — Raul disse. — Nenhuma outra mulher no mundo escaparia
disso sem um castigo merecido. Leigh...?
Ela abriu os olhos e lembrou-se de seu último encontro com Raul, como se tivesse acontecido na
véspera: o corpo nu de Marion estendido na cama, em sua cama, as longas pernas, os cabelos
dourados esparramados pelo travesseiro como um véu de seda, os enormes olhos verdes que a
fitaram com expressão de triunfo, quando Marion a viu parada ali na porta, branca como cera. As
roupas da bela modelo estavam espalhadas pelo chão do quarto. Raul então emergiu da porta do
banheiro, e, como não poderia ser diferente a se julgar pelas circunstâncias, completamente nu.
Leigh concluiu o que pretendiam fazer às suas costas.
— Leigh...?
Raul ia começar a falar, porém ela se engolfava ainda na visão da cena dolorosa do marido, no
quarto com Marion, ambos nus. Pensara tanto naquilo durante os cinco anos que se seguiram!
Dissecara os fatos uma infinidade de vezes, talvez vezes demais!
— Leigh? — ele disse pela terceira vez. — Vou levá-la para casa.
Largou-lhe a mão e ela colocou ambas sobre o colo, tal qual uma velha desamparada, como de
fato se sentia. Estava com quase vinte anos quando o deixara, isso depois de dezoito meses de ter
vivido um céu na terra. E mergulhara num vazio indescritível. Mas agora, apenas por um minuto, um
desvairado minuto, esquecera-se daquela noite fatídica. Porém, nunca mais.
Lançou um olhar para Raul enquanto ele manobrava o possante carro para sair da rua estreita e
voltar à avenida iluminada. Dali por diante ela faria com que sua mente governasse o coração. Não
queria mais ser um joguete nas mãos daquele homem, um brinquedinho apenas. Era uma mulher
adulta agora, não uma recém-casada quase menina; organizara a vida conforme os padrões que
desejava, e conseguira sua independência, a coisa mais preciosa que possuía.
Eu detesto você, Raul, ela disse mentalmente, enquanto o carro seguia pelas ruas de tráfego
congestionado; eu odeio você, Raul. Mas... por que então, depois de cinco anos, sentia-se viva de
novo pela primeira vez?
Capítulo 2
Leigh não se conformava com sua fraqueza por ter cedido. Raul estacionou o carro junto ao
bloco de apartamentos onde ela morava, e disse:
— Vou levá-la até a porta.
— Não! — Leigh protestou. — Não, Raul; por favor, não!
— Como você quiser. Então, boa noite. — Ele continuava sentado no carro, observando-a.
— Como? Oh, boa noite. — E.ra assim? Só isso? Depois de cinco anos? O tétrico anticlímax fez
suas pernas fraquejarem.
Ela saiu do carro e Raul partiu no mesmo instante, sumindo rapidamente nas ruas
movimentadas.
No elevador, Leigh teve a impressão de que iria desmaiar. Sentia a vista turva, as pernas bambas.
Pensou na ironia do destino: sair de um carro luxuoso e entrar num apartamento mais do que
modesto. Assim era a vida.
Apesar de tudo ela achou seu apartamento acolhedor. Uma das vantagens de morar no sexto
andar era que podia deixar abertas as janelas que ocupavam quase uma parede inteira da sala. No
verão, o ar fresco e o aroma das flores penetravam livremente. Na minúscula sacada havia alguns
vasos de plantas. Ela usava a sala como um pequeno estúdio, pois a claridade era excelente durante o
ano todo. O reduzido banheiro comunicava-se com o quarto, e a cozinha, por ser também pequena,
não dava o mínimo trabalho à dona da casa.
O mobiliário limitava-se a uma velha porém confortável cadeira de balanço, uma poltrona, uma
cama e um pequeno guarda-roupa. A quase totalidade do dinheiro de Leigh era gasta em telas, tintas
e pincéis que ocupavam, além dos cavaletes, todo o espaço restante. Ela adorava o cheiro de
aguarrás e de tintas. Ficou olhando por um momento o querido domínio, desejando que a paz e a
alegria voltassem ao seu coração. Pintou durante algum tempo, na esperança de que se acalmasse.
Mas não funcionou. Raul destruíra tudo, ao menos por aquela noite. Mas não permitiria que sua
tristeza se prolongasse mais do que isso.
As seis horas da madrugada foi para a cama como estava, e, às oito, pancadas fortes na porta da
frente a acordaram. Achou que poderiam ser ouvidas até o décimo andar.
Ainda com seu guarda-pó de pintora, os cabelos emaranhados, os olhos enevoados pela falta de
sono, abriu a porta.
— Onde esteve o tempo todo? — Raul parecia furioso.
— Como? O que faz você aqui?
— Responda-me antes, Leigh! Liguei para cá durante toda a noite. Primeiro, não obtive resposta;
depois, linha ocupada. O que andou fazendo? Quem estava com você?
— Quem estava... comigo? — Leigh gaguejou.
Raul percorreu o apartamento, examinando cada detalhe, antes de parar diante do cavalete onde
havia uma tela começada.
— Você esteve pintando a noite toda? — perguntou. — Tirou o telefone do gancho porque
queria trabalhar? Menina tola! E se houvesse alguma emergência? E se alguém estivesse tentando se
comunicar com você urgentemente?
— Pare de gritar comigo! — ela protestou. — E pode me dizer o que significa essa sua pergunta
sobre quem estava aqui? Não somos todos como você, Raul! Muitos de nós achamos que há coisas
mais importantes na vida do que essa perseguição para procriar.
— Como? — Raul indagou, surpreendido.
— Você invade minha casa, acusa-me de não sei o quê, e critica meu estilo de vida! Como ousa?
Como ousa? Não se incomodou comigo durante cinco anos, e agora Acha que pode me dar ordens.
Saia daqui. Saia daquil
— Perseguição para procriar! — ele repetiu. — Perseguição para procriar!
Raul caiu na gargalhada, e isso apanhou Leigh de surpresa. Ele ria como sempre rira, com uma
franqueza sem constrangimentos, e com a participação de toda sua bagagem emocional. E isso
apesar de serem apenas oito horas de uma manhã de domingo, quando os vizinhos estariam
pensando... Bem, Leigh não ousou imaginar o que eles estariam pensando.
E começou a rir junto, como haviam feito tantas vezes no passado. E assim foi até a sra. Billett, a
vizinha ao lado, bater na parede com fúria, e o sr. Silver, morador do andar de cima, quase derrubar
o teto com sua bengala. Então Leigh controlou o paroxismo do riso.
— Oh, Leigh... — Raul sentou-se na única poltrona do apartamento e fitava-a com os olhos
lacrimejantes de tanto rir. — Só você poderia inventar uma expressão como essa. "Perseguição para
procriar"! — Ele inclinou a cabeça, dando outra gargalhada. — Você é única, gatinha, realmente
única.
Por uma razão ou outra, o apelido carinhoso que Raul usara fez com que ambos passassem do
riso ao silêncio, e em segundos.
— Leigh? — Ele fez menção de abraçá-la. — Deixe-me fazer isso, para mostrar que nada
mudou realmente entre nós.
— Não, não, Raul... — Leigh deu um passo atrás, encostando-se contra a parede.
Raul foi ao encontro dela, daquela criaturinha pequena e indefesa, e num movimento rápido
carregou-a nos braços.
— Você tem tinta no nariz e cheira a aguarrás — disse ele, enquanto beijava-lhe suavemente os
lábios, até ela abri-los para protestar. — E é tão linda!
Se aquelas palavras foram o canal para o desencadear de emoções, das ondas quentes de desejo
que surgiram de súbito nela, Leigh não saberia dizer. Mas talvez fosse por ninguém mais lhe haver
dito que ela era linda, ou talvez porque as imagens contra as quais lutara durante a noite inteira
houvessem surgido com todo seu resplendor assim que viu Raul!
O que quer que fosse, Leigh ficou apavorada.
— Ponha-me no chão, Raul. Não quero isso, não quero que você...
Mas outro beijo trouxe de volta recordações que a deixaram sem resistência para lutar. Aquele
era o mesmo Raul, o amante interessado no prazer dela tanto quanto no próprio prazer, que tinha
uma paciência sem limites, incrivelmente carinhoso mas capaz de conduzi-la ao auge da paixão
erótica. Frequentemente achara que poderia morrer em consequência do êxtase violento para o qual
ele a induzia.
Raul fora seu primeiro amor, seu único amor, e constantemente a deliciara unindo ambos os
corpos num delicioso esquecimento de tudo o mais, até ela vibrar e se satisfazer plenamente. Aquele
era o mesmo Raul que ela intencionalmente bloqueara para fora de sua consciência durante anos, na
ânsia de sobreviver, tentando lançar na sombra a brutal traição que presenciara, feita da maneira a
mais cruel possível, e sem o menor remorso ou arrependimento da parte dele.
— Eu desejo você, querida!
Como chegaram à cama, Leigh não saberia dizer. Não entendia como Raul a carregara ao quarto
enquanto ela lutava contra a sedutora fraqueza que invadia seus membros ao menor toque das mãos
dele. Porém, assim que se deitou sobre as cobertas revoltas, usou toda a energia que ainda lhe
restava. Não, aquilo não poderia acontecer de novo.
— Deixe-me em paz, Raul. — Os olhos dela pareciam Maiores à meia-luz do quarto com as
cortinas fechadas. — Não posso...
— Pode, gatinha! Somos casados, Leigh. Você é minha mulher, lembra-se?
Raul afastou uma mecha de cabelos do rosto dela e vagarosamente inclinou-se, beijando-a.
Ele tinha tanta certeza de sua sedução, Leigh dizia a bí mesma, que não duvidava poder com
facilidade romper toda e qualquer resistência, como se os últimos cinco anos não houvessem
significado nada para ele. Por certo não significaram mesmo. Livre, poderia se divertir com qualquer
mulher que o agradasse. Teria Raul notado de imediato que ela abandonara a casa? Notara no
mesmo dia, ou só mais tarde? Leigh tentou reagir, porém seus membros não obedeciam. Quanto a
Raul, pareceu nem ter estranhado a falta de reação dela. Continuou traçando, com os lábios, uma
linha de fogo que ia do rosto ao pescoço, do pescoço aos seios. E Leigh sabia ser uma questão de
minutos para que a chama, que criava vida em seu interior, viesse à tona mais uma vez. Ela apertou
as mãos. Precisava encontrar forças para reagir.
A falta de aceitação dela às carícias chamou enfim a atenção de Raul. Apoiando-se sobre um
cotovelo, fitou-a e perguntou:
— Isso quer dizer que meus beijos não provocam mais nenhum efeito em você?
Leigh corou. A chama de paixão que há pouco se acendera, transformara-se em chama de
agonia. Ela se esforçava agora para esconder sua dor. Sim, Raul não dava a menor importância ao
que acontecera no passado.
— Está me perguntando se seus beijos não provocam mais nenhum efeito em mim? Por que se
interessa tanto em saber? Você quis essa oportunidade para provar que é o maior, não foi? Para
provar que mulher alguma está imune em seus braços? — Felizmente sua dor cedia lugar ao ódio,
Leigh pensou. — Você me irrita, Raul, me irrita com sua arrogância, com seu orgulho de
masculinidade. Somos estranhos um ao outro agora, e sabe disso. Somos apenas duas pessoas unidas
por um pedaço de papel, sem o menor significado.
— Com os diabos que somos estranhos um ao outro. — Ele virou-se violentamente na cama. —
Por isso você insistia tanto num casamento na igreja? Porque nosso casamento não passava de um
pedaço de papel? Não acredito nisso, Leigh. Sabe muito bem que você é minha mulher, minha
mulher aos olhos de Deus e do mundo. — Ele falava agora com voz dura.
— Não...
— Sim, minha preciosa rosa inglesa, você é minha mulher. — Raul levantou-se quando Leigh se
sentou na cama. — Você é minha, e o que é meu continuará sendo meu. — Ele tremia de raiva e de
fria determinação.
— Raul, ouça-me...
— Por que deverei ouvi-la? Você não me ouve; ouve? Não quis escutar minhas razões há cinco
anos, e não as ouvirá agora. O que há com você, Leigh?
— O que há comigo? — A arrogância de Raul foi como uma injeção de adrenalina nela. O rosto
de Leigh queimava com ressentimento e fúria. — Como pode me fazer uma pergunta dessas? Você
não pode ser real, Raul, não pode.
— Tudo o que está dizendo é bobagem. Se não consegue falar coisa com coisa...
— Não consigo falar coisa com coisa?! Posso não estar dizendo o que você quer ouvir, mas é a
pura verdade, de qualquer maneira. — Leigh tinha a voz trémula, e esforçava-se para não chorar.
Não queria de forma alguma que ele a visse debulhada em lágrimas mais uma vez.
Raul fitava-a com insistência. Que homem atraente!
Leigh admitia a si mesma. Tão atraente, tão perigosamente atraente! Mas, o que enxergara nela,
afinal?
Raul balbuciou uma blasfémia; e a expressão de raiva parecia ter sumido do rosto dele quando
disse, com muita suavidade:
— Você, unicamente você, é sua maior inimiga, gatinha. Vivemos tão bem no passado, e éramos
felizes juntos; isso não pode negar, pode? Seu corpo me aceita, cada vez que a toco. Sei que quer
fazer amor comigo, e que luta para não querer. Entregue-se, querida, sabe que a amo, sabe que é
meu único amor.
Atordoada, Leigh não podia acreditar no que estava ouvindo, não podia acreditar que Raul
tivesse a audácia de pronunciar aquelas incríveis palavras em vista do que ele fizera anos atrás.
— Foi você quem me traiu, Raul — protestou Leigh. — E da maneira a mais hedionda possível.
Não pode negar.
— Não posso? — Agora ele revidava com emoção, não mais com raiva. — É claro que não
posso. Tudo ficou decidido por você, não ficou? Isso naquela noite, há cinco anos, quando não tive
permissão de me explicar. Lembra-se?
— Ora, ora. Suponho que se você me encontrasse em nossa cama com outro homem, não se
sentaria conosco amigavelmente para ouvir explicações. Nas circunstâncias em que tudo aconteceu,
só havia uma interpretação possível. Admita!
— Você me fatiga, Leigh!
— Eu fatigo você? — Depois de falar, ela reconheceu que estava repetindo sempre a mesma
coisa, como um papagaio, e confessou: — Bem, talvez seja verdade o que diz. Mas não sou tola e
nem vou fingir que sou. Marion andava atrás de você havia semanas já, e com seu conhecimento.
Acredito que as coisas não aconteceram antes por ser ela a mulher de seu melhor amigo, e por eles
estarem hospedados em nossa casa. Você traiu seu melhor amigo e me traiu. E com quem? Com
uma insignificante... — Leigh suspirou e cobriu-se melhor na cama. Estava gelada e exausta,
completamente sem energia. — Enfim, considero tudo acabado; nada mais me interessa agora.
Talvez possamos ser amigos um dia.
— Não quero sua amizade. Quero muito, muito mais que isso, ou nada, absolutamente nada.
— Então será nada — ela respondeu devagar, olhos nos olhos. Os dele agora pareciam ainda
mais azuis.
— Acha mesmo? — Raul falava com voz gelada. — Diga-me, minha Leigh, o que espera que vá
acontecer no futuro? Espera mesmo que ficarei sempre em segundo plano, como um animal
castrado?
— Não espero nada. Nunca esperei, e continuo não esperando. Não de você. Pensei que tivesse
entendido isso depois de todo o tempo que se passou, sem nos vermos, sem um saber do outro.
— É aí que você se engana — disse ele calmamente, tomando a direção da porta, os enormes
ombros eretos, a cabeça erguida. — Engana-se redondamente.
— Não pode me deixar em paz, Raul...?
— Não, não posso. Nunca mais a deixarei só. Temos coisas a decidir, arranjos a fazer. Mas você
recusa conversar. E reconheço que seria impossível agora, com essa sua atitude agressiva.
— Nada do que você pudesse dizer me convenceria, e... — Raul interrompeu-a:
— Já lhe dei o tempo que me pediu, no dia em que abandonou nossa casa. Dei-lhe chance para
transformar em realidade seu sonho de artista, oportunidade para se realizar como pessoa; mas isso
não significa que deixarei que qualquer outro homem tome meu lugar. Está me entendendo, Leigh?
— Os olhos dele expeliam faíscas. — Se eu a tivesse forçado a ficar comigo, você nunca saberia o
que poderia ter conseguido na vida com seu próprio esforço, nunca teria certeza se o amor que
nutria por mim era verdadeiro, ou se não passava de uma espécie de prisão, atada em cadeias ao meu
lado.
Leigh fitou-o silenciosamente, enquanto procurava entender o que ele lhe dizia.
— Nunca estive muito longe de você durante todos esses cinco anos — Raul prosseguiu. —
Sabia exatamente o que estava fazendo, com quem se envolvia, quem via e quando via. E não
tolerarei que continue vendo esse tal de Jeff Capstone. Estou sendo claro?
Leigh não conseguia falar, ainda não podia entender o sentido do que ouvia...
— Voltarei amanhã e lhe direi como espero que se comporte. Até logo, Leigh.
— Raul!
No instante em que ela encontrou energia para falar, a porta já havia sido fechada com a
violência de um rojão caindo no pequeno apartamento. E, enquanto saía da cama para segui-lo, o
rosto em brasa, enroscou um pé nas cobertas e caiu. Quando enfim chegou à porta, era tarde
demais. O velho elevador já descia em sua marcha lenta. Raul se fora.
Leigh fechou a porta. Continuava furiosa, mas também considerava-se injustiçada. Tudo fora
como se estivessem falando do casamento de outras pessoas! Ela rangeu os dentes. Abandonara
Raul porque o encontrara no quarto com outra mulher. Fim de história! O que quisera ele dizer com
a conversa de que apenas dera tempo para ela se realizar como pessoa? E Raul... a seguira?! Tivera a
audácia de segui-la!
Leigh preparou uma xícara de café para fazer algo com suas mãos trémulas. Foi para a sacada e lá
saboreou o líquido fumegante, olhando para os tetos das casas e para o céu muito azul.
Caso entrassem em contato de novo, e quando isso acontecesse, insistiria no divórcio. Ela
fechou os olhos. Precisava romper com todos os elos que ainda os uniam. Na verdade, deveria ter
feito isso anos atrás. E por que não o fizera? Ela abriu os olhos, mas não via nada; usufruiu por
minutos o ar quente de verão. Convenceu-se enfim de que adiara o pedido de divórcio não porque
não queria pensar em Raul, mas porque não ousava pensar em Raul. Tinha medo!
Ela afastou da testa uma mecha de cabelos e tomou mais um gole de café, deixando que o
líquido quente traçasse uma linha de fogo em sua garganta. Nos áureos anos em que ela e Raul
viveram juntos, sonhara com um casamento permanente, sonhara com filhos, com netos. Leigh
sorriu com amargura. Mas fora um sonho impossível, e precisava desistir de seu casamento antes
que esse mesmo casamento a destruísse por completo. Não fora uma verdadeira união. Não, a vida
dela junto a Raul não fora uma verdadeira união de marido e mulher.
Leigh recostou-se contra a grade de ferro da sacada, agora ligeiramente aquecida em
consequência do calor de um dia de verão. A dor se apoderava de sua mente. A fortuna de Raul
permitira que tivessem tido uma longa lua-de-mel. Primeiro, passaram alguns meses na linda casa
dele no Caribe; em seguida, oito semanas na pitoresca villa da Grécia; e após um longo e calmo
cruzeiro de iate, chegaram à casa que Raul considerava seu lar, no sul da França, para lá morarem.
Tudo se passara como num ato mágico, como milagre. Nada fora real, na opinião de Leigh. Vida
real consistia em trabalho, em solicitude, em amor, tudo com uma mistura de prazer e sofrimento.
No caso deles fora só prazer. E o casamento terminou.
Quando Leigh virou-se para entrar na sala, notou um pequeno tentáculo de erva daninha num
dos vasos de planta num canto da sacada. Considerou aquilo uma intrusão simbólica, um aviso do
reaparecimento de Raul em sua vida. Quando arrancou a erva daninha da terra negra, sacudiu a
cabeça em desespero, ao mesmo tempo em que rompia num pranto copioso que lhe queimava os
olhos. Não conseguia mais se conter. Tudo acabara. Tinha de acabar.
Capítulo 3
— Sra. de Chevnair? — O joveiri entregador, em pé do lado de fora da porta, estava quase
totalmente escondido atrás do enorme buque de rosas vermelhas que tinha nas mãos. — Sra. Leigh
de Chevnair?
— Sim — Leigh respondeu, sonolenta. Ser acordada AS nove horas da manhã de uma segunda-
feira, quando não dormira a noite toda, era penoso; e ter de encarar seu status de mulher casada, era
mais penoso ainda para um começo de semana.
— Achei que eu estava com o endereço errado, pois no cartão da porta está escrito Leigh Wilson
— o rapaz disse, Franzindo a testa. — Enfim, não é de minha conta o que ta ou não escrito. Meu
trabalho é entregar as flores.
— E não é mesmo de sua conta o que está escrito na porta. — Leigh respondeu. Ela em geral
não era assim agressiva, pensou com tristeza, enquanto relutantemente pegava as flores que só
poderiam ter sido enviadas por uma única pessoa. Não havia cartão, apenas a gravura do uma
gatinha presa ao enorme laço de seda na base do buque. A gatinha tinha olhos enormes.
Leigh pôs as flores na pia da cozinha. Tomou banho o se vestiu com movimentos vagarosos. As
recordações que a atormentaram a noite inteira continuavam tão vívidas quanto a luz do dia. E,
enquanto penteava os cabelos diante do espelho, examinava-se com cuidado pela primeira vez em
meses. Seu rosto era gracioso, mas não lindo, ela refletiu com certa amargura. Os enormes olhos
castanhos e os cabelos ondulados eram bonitos, porém nada fora do comum. Apesar de seu corpo
arredondado e estatura baixa, na primeira vez em que a vira Raul a achara linda, conforme declarara
centenas de vezes.
Leigh chegou mais perto do espelho para ver se descobria o que ele enxergara de tão especial.
Mas, após alguns minutos, sacudiu a cabeça, dando-se por vencida. Nada!
Oh, Raul...
— Não, nada disso — ela falou a si mesma, em voz alta. — Tudo está acabado! Vou me dedicar
ao trabalho e ser uma grande artista.
Essas considerações só concorreram para deixá-la ainda mais deprimida. Após alguns minutos
resolveu sair a fim de dar um passeio. Precisava pensar, e não poderia fazer isso sentindo o aroma de
cinquenta ou mais rosas em seu minúsculo apartamento.
— Fugindo? Outra vez?
O sol iluminava a frente do edifício. Momentaneamente cega, pois saíra da escuridão de um
corredor, Leigh ergueu a cabeça e assustou-se com o riso sardónico e ao mesmo tempo feliz de Raul.
Ele não tinha direito a esse ar de tanta felicidade. Vestido simplesmente, com jeans e camisa azul de
algodão, estava... maravilhoso. Mas o homem não era dela. Nunca mais seria dela.
— Saí para dar um passeio... caso você não se oponha — Leigh disse ironicamente. — Estarei de
volta daqui a uma hora mais ou menos.
— Miau... — Raul tocou-lhe a face gentilmente, com a ponta do dedo. — Minha gatinha está
brava hoje. — Ele sorriu. — Acho que vou dar o passeio com você. Preciso de exercício...
Aí Leigh protestou energicamente, e Raul comparou-a a uma gata mostrando as unhas.
— Calma, gatinha, calma. Não tenho culpa se me apaixonei por você no primeiro instante em
que a vi.
Ele passou o braço em volta dos ombros dela. Duas mulheres bonitas e bem vestidas, na calçada
do lado oposto, lançaram um olhar invejoso. E Leigh ouviu a mesma coisa que ouvira tantas vezes
no passado, quando na companhia de Raul:
— Deus, que homem! E que faz ele com essa mulher?
— Lembra-se de quando a conheci? — Raul perguntou, rindo muito, pois também ouvira o
comentário. — Em St. Tropez?
— É claro que me lembro — respondeu Leigh, com certo constrangimento. — Minha prima e
eu fazíamos parte de uma excursão barata, e você estava num iate com Lorde Qualquer Coisa. E
logo começou a se exibir na praia, para todas as mulheres.
— Eu não me exibi! Apenas joguei futebol com um grupo de amigos, só isso. E você na ocasião
não era tão adulta a ponto de não poder se sentar no meu colo, gatinha. Concorda? E a menina que
não ousava sair da sombra do guarda-sol de praia, com o jornal enterrado até o nariz, chamou minha
atenção. A única coisa que pude ver foram seus joelhos. Apaixonei-me por eles. E depois..., daí para
cima... apaixonei-me por tudo.
— Raul!
— Ora, mas é verdade! E então, quando transformei a crisálida em borboleta, sentime como se
estivesse arrancando um bebê do berço.
— Não estava — Leigh protestou, indignada. — Eu tinha dezoito anos quando nos
conhecemos, e você só vinte e cinco. Não era um Matusalém, afinal de contas.
— Ah, mas você não passava de um bebê no referente a amor, a sexo. E como aprendeu
depressa! E convença-se de uma coisa, Leigh, será minha para sempre. Sabe disso, não?
— Como são seus o iate e o carro? — Ela falava com um tom de voz gelado. — Algo para ser
usado quando necessário ou conveniente, e depois para ser posto de lado ou esquecido, quando uma
mulher mais bonita aparecer em seu caminho? Talvez outra Marion?
— Fala essas coisas mas não acredita nelas — Raul disse, parando à entrada de um pequeno
parque. — Casamentos são para sempre. E nunca houve um divórcio em minha família.
— E isso tudo o que importa a você? A reputação de sua família?
Raul acalmou a ira de Leigh beijando-a na boca.
— Não! Não quero que me beije nunca mais — ela protestou.
— Decidi que esse é o único meio de lidar com você, gatinha teimosa. Já lhe dei tempo para se
realizar, para se estabelecer em seu trabalho. Senti que eu precisava fazer isso. Agora está na hora de
você voltar para mim.
— Deve estar louco, Raul! — Ela o fitava, atónita. — Não voltarei!
— Esse tal de Jeff Capstone, tem alguma coisa a ver com sua decisão? — ele indagou friamente
enquanto, segurando-lhe o braço, a fazia sentar a seu lado em um dos bancos do parque. O toque
das mãos dele fez com que seu sangue corresse nas veias com mais força.
— Minha vida pertence só a mim. Não sou mais sua propriedade.
— Propriedade? Que palavra horrível para nosso relacionamento, gatinha. Possuí-la como você
me possui, isso é outra coisa. E é apenas o que desejo. Mas a palavra propriedade refere-se somente
a objetos, não a pessoas.
— Nossa união está acabada, Raul.
Leigh fechou os olhos, esperando pela explosão. Mas, afora um crispar de dedos, não houve
outra reação da parte de Raul. Ele continuou observando-a, o que a deixou furiosa, achando que o
que dissera não o abalara.
— Gostou das rosas? — perguntou ele como se nada de anormal estivesse acontecendo.
— São lindas! — Leigh sorriu nervosamente. — Você deve ter comprado a loja inteira. — O que
Raul esperava que ela dissesse?
— Uma rosa para cada mês em que estivemos separados. Como pretende me convencer de que
está inflexível na ideia de que nosso casamento acabou? — indagou ele calmamente. — Sinto que
você ainda me deseja no terreno físico, e também sei que não teve relação nenhuma com outro
homem durante os cinco anos em que ficamos separados. Acredito em seu controle. Contudo, ainda
me deseja. Concorda?
Essa mudança repentina de Raul a preocupava. Na véspera ele estava raivoso, impulsivo. Agora,
calmo. O que viria depois? Leigh não confiava nele. Confiara um dia, e via agora aonde essa
confiança a levara!
— Tenho uma sugestão a lhe fazer, e gostaria que a examinasse com muito cuidado — ele
continuou falando, sempre com muita calma. — Você me conhece, Leigh, e sabe que não desisto
facilmente. Minha proposta é que volte a morar comigo durante três meses. Isso não a obrigará a
fazer o que não deseja, nem física e nem socialmente. Entende? Se, depois desses três meses, você
puder me dizer friamente que ainda quer o divórcio, prometo que providenciarei um, imediatamente.
Dou-lhe minha palavra de honra.
— E se eu não puder lhe dizer? — Leigh procurou esconder o tremor de sua voz, sorrindo.
— Nesse caso, voltará a ser minha mulher em toda a extensão da palavra.
— Isso é ridículo. — Ela levantou-se, as mãos na cintura, o olhar faiscante. — Não preciso
disso! Estivemos separados durante cinco anos. Posso conseguir um divórcio agora, com ou sem seu
consentimento.
— Talvez... sim — ele sorriu, um sorriso gelado. — Talvez não. Veremos. O problema é que eu
não ficaria satisfeito com sua resposta já, uma resposta precipitada; preciso saber se está
absolutamente decidida. Só então a deixarei em paz.
Leigh levou alguns minutos para interpretar bem o que Raul lhe propunha. Depois disso, viu-se
tomada de pânico.
— Você quer dizer...
— Que continuarei vigiando seus passos? Sim. Sem a menor dúvida.
Ele a chantageava, Leigh pensou. Ele usava de artifícios. Esse fora o comportamento de Raul
desde o início das conversações. Mas continuaria sendo? Ela fitou-o, desanimada, e se deu conta de
que não conhecia mais o marido. Não, não o reconhecia. O charmoso companheiro, o playboy da
alta sociedade com quem se casara, sumira. Sem dúvida sumira. O antigo Raul era arrogante às vezes,
mimado, acostumado a ver todos os seus desejos realizados. Jamais usaria de artifícios para
conseguir alguma coisa. Porém, de contrapartida, o homem que a encarava no momento parecia...
perigoso. Leigh rememorou o que acontecera nos dois últimos dias. De caso pensado Raul a
conduzira à cama, na esperança de que, assim, ela voltaria aos seus braços sem problemas. Mas... por
que a quereria ele? Por quê? Leigh não conseguia se comparar a nenhuma das beldades que o
perseguiam, com as quais Raul mantinha contato diário, sendo que a maioria delas não tinha
escrúpulos. Por que a desejaria Raul, afinal? . A resposta, quando lhe veio à mente, não causou
surpresa. Descobrira a verdade, e era exatamente o que havia imaginado há tempos. Ela consistia
num desafio para Raul, pois nunca alimentara o ego do marido, como o faziam as outras mulheres.
No dia em que se conheceram, foi ele quem se interessou por ela, apesar da beleza das outras
mulheres que o cercavam. Leigh cuidara para não demonstrar interesse algum. Mas, o que a irritava
acima de tudo, era o fato de Raul não aceitar um divórcio porque mancharia o nome de sua família!
Que absurdo! Que ousadia a dele!
E agora? O que iria ela fazer? Teria de aguentá-lo espionando sua vida, durante anos? Para
sempre, talvez? Seria absolutamente necessário haver um rompimento definitivo a fim de que ela
pudesse sobreviver. Que tal tentar o que Raul propunha?
— Ok, Raul, você venceu. Viverei em sua companhia no espaço de tempo de três meses, mas só
três meses. Porém garanto que não vai gostar.
— Gostarei.
— Contudo, quero sua palavra de que após esses três meses o divórcio será um fato consumado.
Nada de desculpas, nada de demoras.
— Dou-lhe minha palavra, gatinha.
— E não tentará nunca mais ter contato comigo? Nunca mais, Raul?
— Nunca mais. — A voz dele era quase um lamento, e Leigh pediu a Deus que lhe desse forças
para resistir.
— Tem certeza de que vai cumprir seu juramento? Fazer um acordo agora daria no mesmo e
seria bem mais fácil — Leigh propôs calmamente. Ela não sabia de onde lhe vinha tanto sangue-frio,
mas deu graças aos céus por isso. Porém sangrava em seu interior.
— Tenho certeza de que vou cumprir meu juramento. — Os olhos dele pareciam duas brasas.
A caminhada de volta ao apartamento de Leigh foi feita no mais absoluto silêncio. Um silêncio
tão vibrante que chegava a ser ensurdecedor, ela pensava. Dessa vez não houve braço em torno de
seus ombros, nem reminiscências do passado. Raul agia como se não estivesse consciente da
presença dela. Quem sabe não precisasse dela... Talvez nunca tivesse precisado...
Quando pararam à porta do edifício, as mãos nos bolsos do jeans, os olhos quase opacos, ele
disse:
— Entrarei em contato com você, para os arranjos e tudo o que for necessário.
— Ok. — Leigh desejou ardentemente passar os dedos nas rugas em volta dos lábios dele. E
ficou horrorizada por ter essa tentação, e pela dificuldade que sentiu em controlá-la.
—Você vai precisar comunicar a alguém sua mudança? Aquela sua tia, que assistiu ao nosso
casamento, por exemplo? — perguntou ele.
— Minha tia morreu no ano passado. — A filha da tia Jess era sua única parenta viva, mas Leigh
perdera todo e qualquer contato com ela logo após seu casamento. — Cuidarei de tudo, Raul, estou
acostumada.
— Eu sei. — Leigh assustou-se com a expressão dos olhos de Raul. Revelavam perigo. — Tenha
seu passaporte em ordem. Voaremos para a França depois de amanhã.
— Raul... — A frieza de Raul a apavorava.
— Prometeu, não? Tenho sua palavra.
Ele foi embora abruptamente, como um enorme felino, com a cabeça erguida e os ombros
eretos. Leigh mordeu o lábio, em pânico. Não devia ter concordado com aquele esquema fora de
propósito. Significava três meses de sofrimento, e seu trabalho de pintora sofreria... Francamente,
não seria nada interessante se ausentar de Londres no momento. Por que não pensara nisso ao
aceitar o pedido de Raul? Ela fechou os olhos por segundos, desesperada.
Havia apenas entrado no apartamento quando o telefone tocou.
— Esqueci-me de mencionar uma coisa. — Era a voz de Raul, sem entusiasmo, mas cortês. —
Pagarei o aluguel de seu apartamento por três meses. Adiantadamente. Ok?
— Ok, e obrigada.
Leigh fez uma pausa. Não sabia o que dizer. E o telefone foi desligado do outro lado, com um
firme clique. Ela olhou para o inofensivo aparelho, cheia de ódio. Tudo fora tão súbito, tão
esmagador, tão louco... tão igual ao próprio Raul...! Passou em seguida uma vista d'olhos ao redor do
pequeno apartamento. Não havia muito a embalar. Seus trajes constavam, quase todos, de jeans e
camisetas, com exceção de uma toalete que reservava para festas mais elegantes. Lembrou-se da
enorme fogueira que fizera de suas roupas e pertences antes de sair da mansão de Raul, naquela
noite que marcaria sua vida para sempre. O céu se iluminara a quilómetros de distância! Raul não
estava em casa, havia ido levar Mar ion e o marido ao aeroporto, e Leigh nunca soubera o que se
passara entre os dois — ou os três? —, naquele dia. Saíra antes que ele voltasse, desaparecendo na
noite silenciosamente, e sem deixar pista.
Resolveu dar uma sacudidela mental, dizendo a si mesma: "Chega, Leigh. Faça o que tem de
fazer. Excursões ao passado são sempre penosas".
Raul fez mais um telefonema tarde da noite, dando detalhes sobre os arranjos, com voz fria e
precisa, sempre em seu tom autoritário. Leigh procurou se manter calma, mas quase explodiu
quando desligou o telefone; sentia-se impotente e frustrada. Porém, acima de tudo, sentia uma dor
profunda que a assustava. Não queria se esquecer de tudo o que aprendera no decorrer dos últimos
cinco anos, não queria fraquejar agora que Raul estava presente. Ele era tão energético, tão
persuasivo!
Mas não era mais a criatura dependente como fora aos dezoito anos de idade, perdida de amor,
adorando o homem sedutor e atraente, e mal acreditando em sua sorte por havê-lo conquistado.
Agora era independente, podia dirigir sua própria vida como bem entendesse. E mais ainda...
Contudo... não conseguia impedir a mente de voltar aos canais que ela fechara há anos. Pensava
em Raul, no homem de olhar carinhoso levando-lhe o café na cama no dia de seu aniversário.
Pensava em Raul, no homem duro, seguro, invencível, mas tão afetuoso com ela que às vezes a fazia
perder o fôlego com suas carícias.
Leigh continuou com esses pensamentos indo e vindo em sua mente. Tentou uma conversa
íntima consigo mesma durante horas, procurando raciocinar com clareza. Enfim, à meia-noite, caiu
na cama, exausta. Exaurira tanta energia emocional durante o dia todo que esperava dormir
imediatamente. Mas, assim que se deitou no quarto escuro e quente, uma suave brisa entrou pela
janela aberta e acariciou-lhe o rosto escaldante, e sua mente traidora prosseguiu com as mesmas
artimanhas.
Ela sentia as mãos de Raul ao longo de seu corpo todo, os lábios percorrendo-lhe a pele... Cada
contorno do corpo firme mas ao mesmo tempo suave e fulgurante dele amoldava-se ao seu,
satisfazendo a necessidade devoradora que ele lhe despertava.
Leigh contorceu-se na solidão de sua cama, sentindo uma onda de sensações quentes varrendo-
lhe o corpo. Jogando as cobertas para o ar, num movimento brusco, levantou-se, decidida a passar
mais uma noite ao lado do cavalete de pintura. E jurou em voz alta:
— Nunca voltarei a você, Raul!
Enquanto mergulhava o pincel na tinta, percorreu o pequeno apartamento com o olhar. Tinha
tudo o que desejava, ali, junto dela. "Eu tenho", disse a si mesma com convicção. Sim, tinha
segurança, ordem, paz, e controle absoluto sobre seu destino, sendo ele bom ou mau. Mas seria
bom, sem dúvida! Faria com que fosse bom. Sacudiu a cabeça, resolutamente. Os próximos três
meses não seriam fáceis, mas viveria dia a dia, aceitando o que surgisse, porém saindo de cada dia
com a mente e o coração intatos. E, no fim dos três meses, estaria livre, realmente livre. Nada a
magoaria de novo como a traição de Raul, e esperava que nada mais viesse da parte dele, para
magoá-la. Não tinha coisa alguma a perder, mas tudo a ganhar.
Seu único cuidado seria ficar sempre atenta ao menor gesto de Raul, lembrar-se o tempo todo de
que o odiava. Não poderia, em momento nenhum, descuidar de suas defesas. E isso não iria ser
assim tão difícil... Ou seria?
Capítulo 4
O dia seguinte foi, sem a menor dúvida, um caos para Leigh. A mala ainda por fazer, arranjos de
última hora, vários momentos de aflição, e tudo enfatizado por uma sensação mórbida de ter pisado
sem cuidado numa armadilha de aço, extremamente perigosa.
Ela não queria ir à França! Não queria viver com Raul! Não queria morar no mesmo planeta de
seu traidor e insinuante marido, e menos ainda na mesma casa! Mordia o lábio inferior enquanto
imaginava um meio de escapar. Mas não encontrou nenhum. Suspirou, desanimada. Como sempre,
Raul manobrara a situação em seu favor.
No outro dia, a manhã já ia alta quando a esperada pancada na porta do apartamento fez seu
coração saltar. Arregalou os olhos, apreensiva. Lá estava Raul! Ele não mudara de ideia. Mas... teria
ficado desapontada se ele tivesse mudado de ideia? Teria? Irritada consigo mesma, abriu a porta à
segunda pancada. Se pretendia sobreviver nos próximos três meses, com o cérebro intato, teria de
abafar esses seus pensamentos ridículos tão logo surgissem.
— Tudo pronto? — ele indagou, sorrindo com ar conciliatório quando seus olhos depararam
com uma enorme mala e velha mochila que continham quase toda a fortuna de Leigh. — Não
mudou de ideia?
A pergunta fora proposital, Leigh pensou, admitindo que Raul queria puxar briga. Ela correu os
olhos vagarosamente pelo corpo enxuto do marido, que vestia jeans preto e camisa esporte.
Entendia por que motivo ele chamava a atenção de todas as mulheres, de nove a noventa anos. Um
dia achara que ele não era vaidoso. Não achava mais agora! Tudo não passara de fachada, como suas
ternas palavras e promessas de amor eterno.
— Mudei de ideia mil vezes — Leigh respondeu, não retribuindo o sorriso. — E isso faz alguma
diferença?
— Não! — Um lampejo gelado surgiu de repente nos olhos azuis. — Mas, em vez de chorar,
tente relaxar, Leigh. Se vamos passar os próximos três meses num estado de guerra, ao menos ria de
vez quando em quando. Isso tornará essa injustificada hostilidade mais fácil de se aguentar.
— Injustificada?! — Leigh quase gritou. — Não entendo como ousa dizer tal coisa quando...
— Posso dizer isso porque não ando por aí de olhos e ouvidos fechados ao que se diz, provando
se estou ou não errado — ele respondeu calmamente. — Sou um ser humano razoável, Leigh,
sempre pronto a aceitar que posso cometer erros, que sou tão capaz de errar como qualquer outro
homem.
Leigh arregalou os olhos. E protestou, incrédula:
— Você é? Aceita que possa errar? Nunca antes admitiu que estivesse errado em toda sua vida,
Raul.
— Possivelmente por nunca ter errado até a presente data — ele retorquiu suavemente, mas
inclinando a cabeça de maneira arrogante.
Leigh estava a ponto de explodir quando notou um esboço de sorriso nos lábios do marido. Ela
conhecia aquele sorriso! E como conhecia! Raul procurava obter uma reação da parte dela, e uma
reação violenta. Quantas vezes, no passado, a conduzira à beira da loucura com argumentos
ridículos, até cair na gargalhada, tomá-la nos braços, e cobri-la de beijos. Pedindo desculpas e
acariciando-a, levava-a à submissão.
Naquele momento, contudo, o fogo que ele tentava atear foi abafado com a água gelada das
recordações. Leigh afastou-se e, erguendo a mão, apontou para a mala, segurando as lágrimas.
— É melhor você entrar — ela disse. — Não tenho força para carregar isso.
— Leigh? — Raul segurou-lhe o braço enquanto fechava a porta com o pé. — Sei que você não
confia em mim, provavelmente desejaria nunca ter me conhecido, mas não pode ao menos tentar
fazer com que meu plano dê resultado? Você não me está concedendo uma chance.
— Não quero lhe conceder chances — ela respondeu com honestidade. Não ousaria, sua mente
completou com ênfase. Era verdade. As feridas ainda não estavam cicatrizadas.
— Não acredito. — O olhar de Raul a queimava. — Você me pertence, Leigh, e eu te desejo.
Nenhum outro homem pode conduzi-la ao auge do prazer como eu posso; Não há escapatória para
você.
— Não. Não concordo que nenhum outro homem possa me satisfazer. Quando você quebrou
os votos matrimoniais, quebrou esse elo que nos unia. Não quero voltar à mesma vida, tudo está
acabado, Raul, acabado! — Leigh rezava para que ele não percebesse seu tremor. — Não preciso
mais de você.
— Não? Estou tentado a lhe provar que está errada; quer que eu prove já? — Ele fez uma pausa
ameaçadora. — Mal posso esperar, gatinha. — Raul afagou-lhe os cabelos. — Você parece a velha
Leigh, com esse rabo-de-cavalo, sabe? A velha Leigh que eu conheci em St. Tropez. Durante algum
tempo você usou o cabelo bem curto. Lembro-me.
— A velha Leigh morreu, Raul — ela respondeu com cuidado para não se trair, pois sentia-se
moralmente fraca. — E uma mudança de penteado não pode trazê-la de volta. E agora, vamos? —
Leigh ergueu a cabeça num gesto de desafio, mas tinha os olhos anuviados.
— Sim, vamos, minha Leigh — ele concordou. — Mas antes quero saber... e esse tal de Jeff?
Entrou em contato com ele? Contou-lhe que eu ia levá-la de volta à França?
Raul não disse que a tirara de Jeff, mas Leigh conseguiu ler nas entrelinhas, entendeu a alusão.
Encarou o marido antes de responder. Reconhecia que o humilhara há cinco anos, fora a única
mulher que o abandonara, que abandonara o grande Raul de Chevnair. Mas, durante longos meses e
anos, não olhara para outro homem, recusara todos os avanços masculinos, chegando quase a ser
rude. Mas Jeff... Jeff havia sido diferente. Era gentil, bondoso, despretensioso... O relacionamento
entre os dois começara como amizade, e assim permanecera, pelo lado dela. Porém sabia que, para
Jeff, ela significava mais do que uma simples amiga. Jeff tornara isso bem claro, várias vezes nos
últimos meses, aceitando as amáveis recusas com bom humor e compreensão, mas continuando as
investidas com uma tenacidade que a surpreendia. Raul devia saber de alguma coisa, imaginava. Ele a
fitava no momento, parecendo ler algo em seu olhar.
— Não posso culpá-lo, Leigh — Raul prosseguiu, numa voz desprovida de emoção, fria —, mas
não haverá jamais uma oportunidade de ele encostar um dedo em você.
— Como? — Leigh estava furiosa. — Não sabe nada sobre nós, Raul, e não cabe a você decidir.
Meus amigos são de minha conta, e...
— Não quando eles se interessam por você como Jeff se interessa. Você é minha mulher, e não
se esqueça disso nunca.
— Não seja ridículo! Você não sabe de nada. E, por favor, não faça deduções que não possa
provar.
— Devia me conhecer melhor do que isso, Leigh. — Ele ergueu a pesada mala com uma das
mãos. — Tornei bem claro para Jeff que você era minha. Por sua causa essa providência de minha
parte se fez necessária.
— Como assim? — Ela encarou-o, ressentida. — Você nem ao menos conhece Jeff. Como
pôde...? — Leigh parou abruptamente. Havia qualquer coisa nas profundezas daqueles olhos azuis
que a deixou desconfiada. — Esteve com ele, por acaso?
— Naturalmente — Raul respondeu friamente, enquanto abria a porta com a mão livre, e a fazia
passar na frente. — Por acaso, hospedei-me no mesmo hotel de Jeff na Alemanha, na semana
passada. Tivemos uma longa conversa..., longa e interessante, sobre a mulher que ele deixara na
Inglaterra, e que acontecia ser minha mulher. Jeff foi muito franco. — Havia evidente hostilidade na
expressão do rosto de Raul.
— Ele sabia quem você era? — Leigh achou que iria desmaiar.
— Claro que sabia. Raul de Chevnair não se esconde nas sombras. Disse-lhe que desejava me
entender com ele em terreno neutro. Quis saber quais eram as intenções que tinha a respeito da
mulher sobre a qual falávamos, e Jeff se abriu, sem constrangimentos. É um bom rapaz. Em outras
circunstâncias, poderíamos até ser amigos.
— Você poderia ser amigo dele? — O protesto de Leigh foi violento e espontâneo. — Raul, não
posso acreditar...
— Jeff tornou bem claro que pretende se casar com você. Naturalmente sabe disso, não, Leigh?
Ele também explicou que não é correspondido como desejaria, que você o considera apenas um
bom amigo. É verdade?
— Você... — Leigh não conseguiu dizer uma única palavra mais.
Estaria ela louca? Estaria ele louco? Estaria aquilo tudo acontecendo? Ou seria produto de sua
imaginação? Era mesmo verdade o que Raul lhe contava, que ameaçara o único amigo que ela
possuía no mundo? Sim, era verdade. Raul estava lá, em carne e osso! E, oh, como o odiava naquele
momento!
— O que você disse a Jeff? — Ambos já estavam fora do apartamento, e Leigh recusou andar
até o elevador. — Você o ofendeu?
— Se eu...? — Raul pôs a mala no chão e carregou-a nos braços antes que ela se desse conta do
que se passava.
— Quer saber se eu o ofendi? Oh, acredite-me Leigh, Jeff foi embora são e salvo. Você é minha.
Agora ele sabe disso. Sabe que você é uma de Chevnair!
Raul beijou-a selvagemente, devorando-lhe os lábios com paixão violenta, sem ternura, com uma
fome no olhar que a aterrorizou pela ferocidade.
Enquanto Leigh esperneava no colo de Raul, o elevador chegou. Voltando ao normal, ele a pôs
no chão e apanhou a mala. Entraram no elevador. O que estava ela fazendo?, Leigh se perguntou. O
que estava fazendo? Jamais deveria ter concordado com tamanha loucura!
O trajeto ao aeroporto, onde se encontrava o avião particular de Raul foi feito em silêncio, um
silêncio gelado cheio de tensão, que fez Leigh sentir-se desorientada e um pouco tonta. Um não
olhou para o outro e ela só imaginava como iriam aguentar os três meses juntos. Todo o plano de
Raul fora uma loucura. Ele a quisera de volta porque a considerava propriedade sua. Tudo estava
sendo tão cruel, tão irreal, tão desumano!
— Vamos começar de novo, Leigh? — ele lhe perguntou enfim, ao estacionar no aeroporto.
Com as mãos no volante, fitava-a com olhar velado. — Não era assim que eu desejei que fosse.
— Não? Como exatamente imaginou que fosse essa... reunião experimental?
Raul acariciou-lhe os cabelos antes de responder:
— Como eu imaginei que fosse? Achei evidente que, uma vez amadurecida, tendo organizado
sua própria vida sozinha, você consideraria essa reunião como deveria ser considerada. Achei que
tinha crescido o suficiente para ver como as coisas são agora, e talvez para ter coragem de penetrar
na área proibida que você mesma isolou em sua mente. Achei que tinha crescido o suficiente para ter
coragem de abrir portas trancadas, de talvez admitir que havia coisas que você não poderia ter
entendido no passado, sentindo-se como se sentia; coisas que não poderia ter aceito, dadas as
circunstâncias do momento.
— Por coisas devo entender que se refere a Marion? — Leigh ainda tinha dificuldade em
pronunciar aquele nome. Talvez sempre fosse ter.
— Sim. Foi exatamente o que eu quis dizer. Você está mais velha agora, mais segura de si
mesma, satisfeita com seu potencial em produzir. Pode ser generosa e abrir o coração de novo.
E aceitar a outra mulher? Oh, não! De forma alguma!, Leigh pensou. Lágrimas quentes brotaram
em seus olhos, e ela virou a cabeça, olhando pela janela do carro.
— Ser generosa? — repetiu. Fechar os olhos para os romances do marido, era isso? Raul por
acaso quisera dizer, com a palavra "generosa", permitir que ele tivesse algum divertimento
extraconjugal? Como pagamento por ela ter tido a felicidade de se casar com ele? Raul nunca a
amara. Não poderia tê-la amado, para lhe propor tamanho absurdo. — Não aceito nada do que está
dizendo. — Não ia chorar, Raul não poderia saber como ele a estava fazendo sofrer.
— Então, tudo será muito triste. Esperei que você tivesse crescido espiritualmente, Leigh, que
tivesse se encontrado afinal. Ficando independente de mim, poderia ter sido possível ver claramente
como eu sou. Nunca na realidade me conheceu.
— Mas testemunhei o suficiente.
Leigh teve vontade de gritar, de lhe dizer que ele jogara fora algo precioso, insubstituível, que seu
coração ainda sangrava com perda tão irreparável. Mas não disse nada.
Continuou sentada, fazendo todo o esforço possível para odiá-lo. Sem sucesso, contudo. Achou
que o conhecia bem, mas não o entendia. Seus mundos eram tão diferentes! Ela adoraria não se
importar com o que Raul fizesse, porém concluiu ser impossível. A ideia de outra mulher nos braços
dele, de lábios femininos pressionando-lhe os lábios num ato de amor, a deixava doente. Não falou
mais nada. Raul pôs o carro em movimento até o local onde se encontrava o mecânico de bordo.
— Sr. de Chevnair? O avião está pronto, esperando pelo senhor. — O rapaz apontou para um
jato a alguns metros de distância. — Lindo avião, senhor.
— Não é mesmo? — Raul sorriu com satisfação pelo entusiasmo do mecânico. — Já o tenho há
alguns anos, mas voa tão bem que detesto pensar em trocá-lo.
A viagem à França ocorreu sem contratempos. Leigh pensava no que sempre fora a vida de Raul.
O que sabia ele sobre esperar numa fila durante horas, na chuva, por um ônibus que nunca chegava?
Ou comer sanduíches de pão com queijo semanas a fio, a fim de economizar dinheiro para comprar
tintas? Ou lutar para conseguir pagar o aluguel quando uma comissão atrasava? Ela suspirou. Mesmo
antes de sua mãe morrer, quando tinha apenas dezesseis anos, já se acostumara a viver com muito
pouco. O pai sumira de casa logo após seu nascimento e, embora a mãe trabalhasse, nunca houve
dinheiro bastante para as despesas indispensáveis, isso sem falar no luxo. Ela suspirou mais uma vez.
Não era de surpreender o mundo de Raul ter sido tão fascinante para uma tímida garota de dezoito
anos, que nunca fora beijada!
Pierre, o homem-faz-tudo de Raul, esperava-os no aeroporto na França, e sorriu de prazer
quando viu Leigh emergir no terminal.
— Sra. de Chevnair! — exclamou. — Estou muito feliz em ver que decidiu nos fazer uma visita,
madame. Colette e Suzanne lhe desejam boas-vindas.
— Obrigada, Pierre. Como vai todo mundo?
— Sempre na mesma, madame. Nada mudou. Colette está um pouco mais gorda, só isso. —
Colette, a mulher de Pierre por trinta anos já, era bastante gorda há cinco anos quando ela
abandonou Raul. Leigh imaginava como estaria agora.
— Vamos? — Raul apareceu ao lado dos dois, sério, reservado, e não pela primeira vez Leigh
refletia sobre a mudança no homem com quem se casara há cinco anos. O que acontecera para
mudar o despreocupado, jovial, alegre Raul, transformando-o no homem que ele era agora? Teria
sido por sua causa? Não! Leigh abandonou logo essa ideia como ridícula. Raul mal notara sua saída
da casa e, com certeza, no espaço de alguns dias, mantivera o mesmo estilo de vida. Qualquer outra
mulher ocupara seu lugar. E daí...? Não, não queria se preocupar com a vida que Raul levara depois
de sua retirada, Leigh dizia a si própria, enquanto seguia ao lado dos dois homens na direção do
carro de luxo que os aguardava. Não podia ficar imaginando coisas justamente agora, quando
precisava de calma mais do que nunca.
A França continuava linda e sedutora como sempre. O campo, cheio de flores, era perfumado.
Tudo estava igual como deixara, há cinco anos. Ela sentiu um nó na garganta. Haviam sido tão
felizes um dia! Amara tanto seu marido! Olhou para Raul, e teve vontade de saber em que pensava
ele. Lembrava-se de como tinham corrido por aqueles campos, nos arredores da pequena aldeia de
Ste. Maxime, molhando os pés quentes nas águas do Mediterrâneo, e apreciando, nas lagoas de
Camargue, os elegantes flamingos vermelhos, os patos e gansos. Não, ela não poderia aguentar viver
três meses com aquelas recordações.
— Não falta muito para chegarmos — comentou Raul, com ar indiferente. — Houve algumas
mudanças em casa depois de sua saída. Construí um lago artificial na propriedade. Há flamingos e
pavões passeando pelos gramados. Mas nunca imaginei que pavões fizessem tanto barulho. Entoam
um canto choroso, como se pudessem adivinhar o que estava acontecendo dentro de mim.
— Raul... — Leigh encarou-o, atónita.
— Desculpe, desculpe. Sei que não devo fazer comentários desse tipo para não... irritá-la. É
necessário que eu prossiga com a imagem de marido que você criou para mim: homem sem coração,
namorador... Certo? Mas, e o nosso casamento, Leigh, como foi desde o início? Dei-lhe a impressão
de que era um homem frio, cruel? Assim me enxergou o tempo todo?
— Não quero me lembrar de nada do que aconteceu no passado. Viverei aqui dia a dia, a partir
de hoje.
— É uma boa medida a sua, porém até um certo ponto. — Raul tomou-lhe a mão, e Leigh
sentiu tremores subindo pelo braço, chegando até o ombro. — Mas nosso passado deveria ser usado
para enriquecer nosso futuro; do contrário, estaremos perdidos.
— Não tinha ideia de que você havia se transformado num filósofo depois que o deixei — Leigh
sussurrou, enquanto tentava liberar sua mão. Por que permitia ela que Raul a afetasse tanto?
— Eu também cresci um pouco, Leigh — Raul disse calmamente, levando os dedos dela aos
lábios, um a um, para depois passar a língua pela palma da mão. — Não poderíamos ficar correndo
pelos campos a vida toda, poderíamos?
Leigh sentia-se hipnotizada, drogada pela presença do marido, ali tão perto. Raul largou-lhe a
mão e sentou-se ereto em seu lugar.
— Mais cinco minutos e chegaremos em casa — ele disse, num tom de voz normal.
Contudo, as referências ao passado perturbaram-na mais do que ela desejaria que tivesse
acontecido, embora não pudesse explicar por quê. Repetia a si mesma que os dois se haviam
transformado em pessoas diferentes.
Os velhos tempos eram velhos tempos, tinham acabado para sempre.
Enquanto o poderoso carro subia a colina nas proximidades da mansão, ela ia se lembrando de
cada detalhe. Chegaram enfim aos enormes portões de ferro, e entraram na aléia ladeada de
pinheiros.
Leigh mal pôde respirar quando viu de novo a casa onde morara, tão familiar e ao mesmo tempo
tão estranha agora.
O pai de Raul a construíra vinte anos antes, meses antes de ele e sua jovem esposa morrerem,
deixando o filho órfão aos doze anos de idade. Uma tia velha mudara-se para o château e lá vivera,
até Raul atingir os dezoito anos.
A casa fora construída aos moldes de um castelo medieval, cercada de pinheiros, com uma
infinidade de lindas é floridas primaveras que subiam pelos muros, dando à enorme mansão mais
suavidade. Leigh lembrou-se de ter ficado extasiada quando viu pela primeira vez a casa de Raul.
— Minha casa teve saudades de você, Leigh. — A voz dele era suave, e tinha um calor que a fez
se emocionar.
Onde fora parar seu orgulho? ela pensou. Raul talvez a quisesse fisicamente, mas nem sabia o
sentido da palavra "amor".
Assim que o carro parou junto aos degraus de mármore da entrada, Leigh notou uma estátua de
mulher, de linhas graciosas, no mesmo lugar onde um dia ela queimara todos os seus pertences, na
noite da fuga. Olhou para Raul, esperando uma explicação. Mas ele nada disse. Perguntaria ao
marido em outra ocasião. Enfim, Raul sempre gostara de colecionar obras de arte.
Colette apareceu logo, estendendo os braços à patroa.
— É tão bom vê-la de novo, madame — disse. — Muitas vezes desejamos que a senhora
estivesse ainda aqui.
— Obrigada, Colette. — Leigh estava o tempo todo consciente da presença do vulto avantajado
de Raul ao seu lado, com os braços cruzados e um sorriso sardónico.
— Oh, Oscar...! — ela exclamou de repente, quando um lindo gato pulou em seus braços. —
Oscar se lembra de mim! — disse ela ao marido. — Veja, ele não se esqueceu de mim, Raul!
— Naturalmente que não se esqueceu. Você o conquistou, Leigh. Ele é mais seu do que meu.
Oscar sentiu muito sua falta.
— Sentiu, Oscar?! — Leigh exclamou, enquanto seus olhos enchiam-se de lágrimas, lágrimas há
muito contidas.
Ela o encontrara em um de seus solitários passeios ao longo da costa, algumas semanas depois
do casamento, enquanto Raul se ocupava do esqui aquático. Leigh ouvira um gato miar, e logo em
seguida se horrorizara ao ver um saco de plástico boiando. Sem se importar com a roupa de praia
caríssima que usava, entrou na água, apanhou o saco e abriu-o. Dentro havia um gatinho enlameado,
tão novo que mal podia andar. Ela chamou Raul e ambos voltaram à casa imediatamente a fim de
dar de comer ao frágil animalzinho. Durante três dias e três noites Leigh alimentou-o com conta-
gotas até ele poder comer sem o auxílio de ninguém. O gato transformou-se logo num enorme
animal, de pêlo lustroso, devotado a ela. Raul insistia que era um mestiço de gato com tigre.
— Eu tive saudades de você, Oscar — ela disse ao ouvido do bichano, aninhando-o com
carinho junto ao peito.
— Será que vou ficar reduzido à condição de precisar ter inveja de um gato? — queixou-se Raul,
enquanto entravam na casa. — Colette preparou um almoço para nós; prefere comer no terraço?
— Tudo bem, se você também preferir.
Leigh sonhara tantas vezes com aquela casa, depois que saíra de lá! Via-se percorrendo todos os
elegantes cómodos, sempre procurando com ansiedade por um vulto alto, agarrando-se em portas
fechadas que recusavam se abrir, encontrando obstáculos pelo caminho, até finalmente acordar,
banhada em suor e tremendo incontrolavelmente. Após muitos meses os pesadelos foram sumindo
aos poucos, e só então ela adquiriu certa paz. E, com a paz, a aceitação.
Leigh almoçou com Raul no terraço, de onde a vista era espetacular.
— Eu havia me esquecido completamente de como Colette era boa cozinheira. — Eles haviam
acabado de comer. — Eu estava acostumada a omeletes e torradas no almoço, apenas isso.
— Verdade? — Raul disse, encarando-a com expressão indecifrável.
— É verdade. — Leigh riu nervosamente. — Depois de algumas semanas aqui, comendo esses
deliciosos pratos feitos por Colette, engordarei alguns quilos na certa.
— Não faça isso! — Raul pediu.
— Não faça o quê?
— Não estrague seu corpo. Gosto de você como é. — Ela forçou um sorriso.
Era o que Raul dissera muitas vezes no passado. Que a adorava do jeito que ela era, que não
podia aguentar as louras esqueléticas que comiam só alface para não engordar, tornando infelizes os
que as rodeavam, por causa do mau humor. E ela acreditara no marido! No entretanto, vira Marion
na cama, o corpo perfeito da modelo, nua. E não teve dúvida de que Raul amava Marion, tanto
quanto a esquelética loura o amava.
Raul pareceu ter acompanhado a mudança de expressão no rosto da mulher; e disse:
— Não me lembro de ter me queixado de seu corpo no passado.
— Claro, pois você não tinha a mínima dificuldade ou constrangimento em variar sua dieta.
— O que quer dizer com isso agora? — Raul fitou-a com irritação.
— Bem, não era o caso de você ter de se contentar com uma mulher assim como eu, ou nada.
Era? Talvez eu fosse apenas algo para variar.
— Um minuto, Leigh. Estou cansado dessas suas insinuações, comparando-me a um garanhão
com somente uma ideia na cabeça, a de dormir com todas as mulheres do mundo, e com você em
particular. O que pensa que eu sou, Leigh?
— Garanto que não vai querer ouvir o que penso que você é. Fez-me vir aqui, por isso aqui
estou. Porém, sob protesto, lembra-se? Pelo que concluí, foi pura chantagem o que usou, e quanto
mais depressa acabarmos com essa farsa, melhor, se quer saber a verdade. Se preferir que eu me vá
agora, lhe ficarei grata.
— Oh, não, amor. Não é o que eu quero. Tenho outros planos em mente para você. Querendo
ou não querendo, tem de ficar aqui o tempo combinado.
Leigh olhou para o homem que roubara seu coração um dia, e que a transformara num ser vazio,
sem esperanças no futuro, quando estava com apenas dezenove anos de idade. Olhou com tristeza
para o homem que reaparecera em sua vida cinco anos mais tarde, quando ela finalmente conseguira
pôr de lado o passado. Fora suicídio ter voltado àquela casa. Raul ainda tinha o poder de magoá-la
com apenas algumas palavras. Ele era um enigma, um enigma perigoso, cruel, sem coração, com
tantas facetas de personalidade que a deixava aturdida.
— Muito bem, então seja como você deseja, Raul. Tudo o que venha a acontecer será de
responsabilidade sua, exclusivamente sua. Apenas não se esqueça de que não sou mais a adolescente
com sonhos na cabeça, que você conheceu e entendeu muito bem. Cresci desde então, e esta Leigh
aqui não é um brinquedinho que olha para você com adoração. Tenho minhas próprias ideias, e
pretendo segui-las.
— Não me recordo de você ter me olhado com adoração. E, mais ainda, essas suas ideias
próprias sempre existiram. E, quanto a ser um brinquedinho... — Ele sorriu, descrente. — Ninguém,
em sã consciência, poderia acusá-la de ser um brinquedo, Leigh.
Ela encarou o marido, espantada com a aparente calma dele após a irritação de minutos antes,
quando se sentira insultado. Leigh não conseguia ler, naqueles frios olhos azuis, nada que revelasse
os sentimentos dele. Raul sempre tivera a capacidade de se transformar, de repente, de um homem
carinhoso em um homem de gelo, e vice-versa, Leigh refletia amargamente; era outro dos pequenos
atributos que sempre funcionavam em seu favor.
— Não sou mais sua mulher, Raul — ela'disse calmamente. — Não aqui, não na Inglaterra, não
em qualquer outro lugar do mundo.
— Não? Veremos, minha gatinha, veremos.
Quando Leigh saiu do terraço, com as pernas bambas e o rosto afogueado, se perguntava se Raul
havia percebido de quanto esforço ela necessitara para mentir. Considerava-se ainda mulher dele,
sempre seria mulher dele. Por quê? Não saberia responder. Apenas sabia, com tristeza, quase com
dor, que Raul, como sempre, manobrara tudo conforme desejara. Jeff não passava de um amigo,
nada mais que isso; e agora que ela vira Raul de novo, tinha certeza de que estava destinada a viver
sozinha. Levaria a sério seus votos matrimoniais, sempre seria de Raul, nas profundezas de sua
mente. E, quando ele se casasse de novo, como provavelmente aconteceria, o último ferrolho de sua
vida solitária seria colocado definitivamente.
Capítulo 5
— Você gostaria de se refrescar, dando um mergulho na piscina? — Raul perguntou a Leigh.
Ela resolveu aceitar, achando que, uma vez tendo de passar três meses juntos, seria interessante
concordar com alguns convites.
— Gostaria — ela respondeu, tentando se manter indiferente.
— Venha comigo então, querida. Vou levá-la ao seu quarto, caso tenha se esquecido do
caminho. — Ele segurou-a pelo cotovelo e conduziu-a às escadas em caracol. Leigh teve vontade de
dizer-lhe que largasse de seu braço, mas não quis dar a Raul a satisfação de ele ver como podia ainda
magoá-la.
— Os aposentos de madame. — Ele abriu de par a par a porta bem diante deles, e convidou-a a
entrar.
Mas, assim que deu o primeiro passo, Leigh estremeceu, protestando:
— Oh, não, Raul, oh, não... Se não me falha a memória, esse quarto é seu. Quero meu próprio
quarto. Estou sendo clara?
— Gatinha, gatinha... Você sempre dormiu aqui. Estes aposentos são seus.
— Mas seus também. E, de forma alguma, vou dormir na mesma cama sua, Raul. Se é isso que
tem em mente, esqueça.
— Tenho tantas coisas em mente — ele murmurou, enquanto com os olhos a despia —, e todas
elas deliciosas!
— Sei disso, mas são necessárias duas pessoas querendo a mesma coisa para que esse seu desejo
se transforme em realidade.
— Oh, quanto a isso concordo — Raul retorquiu. — São necessárias duas pessoas. E pensar que
nós fizemos, o que estou pensando agora, tão bem no passado... não foi?
— Fizemos, é a palavra certa. E não se esqueça disso. — Raul lhe pareceu de repente tão grande,
tão poderoso!
Ele observava-a; os vívidos olhos azuis tinham um quê travesso, malicioso; ele conservava as
mãos nos bolsos do jeans; e o ar era displicente. Em outros tempos, Leigh cairia nos braços dele,
como qualquer mulher o faria... Mas agora não confiava mais na mensagem que o corpo de Raul lhe
enviava eloquentemente. Ele não a amava, a queria só porque acreditava não ser desejado. Porém,
Leigh não se considerava mais aquela idiota, não importando quão forte pudesse ser a tentação.
— Quero um quarto só para mim, Raul — ela insistiu, desviando o olhar, com medo de ceder à
tentação. — Quero mesmo; do contrário, irei embora já.
— O que Colette e os outros empregados dirão? — Raul perguntou meigamente. — Ficaram
encantados com sua volta. E não têm ideia de nosso... plano.
— Não? E por que não?
— Porque, embora eu confie em Colette e em Pierre, são franceses demais para guardar um
segredo. E Suzanne não é como os pais, é uma faladeira. Não quero que nossa vida íntima seja do
domínio público, não quero que toda St. Tropez comente sobre nós. Você quer?
— Nossa vida, Raul, é nossa, não é da conta de ninguém mais. E, se alguém quiser especular
sobre os arranjos quanto aos quartos, o problema é desse alguém. Não posso controlar a vida dos
outros e nem me preocupo com isso. — Leigh o encarava com a cabeça erguida.
— Então, minha gatinha, você cresceu mesmo! Isso é bom. Gosto de ver a mulher independente
em que se tornou, minha Leigh... Desde que se lembre de que, no final, será minha.
— Não sou sua, pertenço a mim mesma, Raul, e...
— Não me faça provar o que estou dizendo, Leigh. Ambos sabemos que tenho poder para isso.
— Vou ou não vou ter meu quarto? — Ela procurava se controlar, sentindo já sua falta de
resistência ao charme do marido. — Bem? — Como poderia aguentar o desafio sexual, se Raul
começasse a fazer amor com ela ali mesmo?
— Sim, terá seu quarto. Aliás, já está esperando por você.
— Verdade? Nesse caso por que...?
— Não pode me condenar por tentar — ele explicou, com ar divertido. — Havia uma pequena
chance de você dizer "sim", não havia?
— Canalha! Você é o homem mais convencido, mais traidor que já conheci. Por que me casei
com uma criatura assim? Nunca vou saber!
— E eu gostaria de fazê-la se lembrar por quê. — Raul sorriu e ela corou. — Mas as coisas boas
vêm quando se tem paciência de esperar. Muito bem, a estas horas acho que Suzanne já arrumou
suas coisas.
Raul segurou-a pelo braço e levou-a a uma suíte na frente da sua.
Enfim sozinha, Leigh começou a andar de um lado para o outro, no luxuoso quarto. Se algum
empregado a observasse, a acharia louca, considerando-se que Raul estava no quarto ali perto.
Cinco minutos mais tarde, de biquini e uma toalha nas costas, ela saiu do quarto. Não viu Raul
em parte alguma, pelo que ficou sumamente grata. De repente, achou que seu biquini estava
provocante demais, e lamentou não ter comprado um maio tradicional. Mas ninguém, ninguém
mesmo, usava maio de uma só peça naquela região. Ela desceu as escadas e foi ao jardim.
A casa havia sido construída na fralda de uma colina, com vista magnífica para o mar e para
floresta. O ar-quiteto procurara tirar o máximo da localização privilegiada, isso tanto na planta da
construção como no jardim de vários patamares. Tal qual no passado, Leigh parou por segundos sob
o sol" ardente de verão, olhando para os gramados muito verdes e para a piscina olímpica,
convidativa. Aquele lugar maravilhoso fora seu lar durante dezoito magníficos meses, e ela sentira
muita falta de tudo aquilo ao voltar a Londres, cidade cinzenta, barulhenta, suja. Mas precisava ter
cuidado. Não podia se apaixonar pelo local novamente.
Oscar apareceu a seus pés, talvez para fazê-la se lembrar dos velhos tempos, e também para
torná-la consciente das semanas de agonia que ele passara depois da partida de sua ama. Sim, Leigh
sabia que Oscar sofrera, mas não podia se esquecer de que ela estava lá para uma breve visita apenas,
um interlúdio em sua vida trabalhosa; nada mais que isso. Precisava lutar contra a insidiosa atração
que sentia pelo marido, e pelo lugar.
— Você ganhou de mim, gatinha; chegou antes. — A voz de Raul soou bem atrás dela.
Leigh virou a cabeça e viu-o, em todo o esplendor de sua masculinidade, vestindo um reduzido
calção.
— Vamos dar um mergulho? — ele convidou-a. Havia qualquer coisa de zombaria na suavidade
da pergunta. O olhar de Raul dissecava sua mente, tentando descobrir-lhe as emoções. O que
poderia significar aquele olhar? Seria suficiente para uni-la a ele de novo, ou não passaria de mera
atração animal o que Raul experimentava no momento?
— Venha — ele repetiu, tomando-lhe a mão com firmeza, mas sem emoção; aparentemente, ao
menos.
A água gelada em contato com a pele escaldante deu a Leigh uma sensação deliciosa. Ao
mergulhar, ela relaxou rapidamente. Sempre fora exímia nadadora, e agora tentava acompanhar o
ritmo das braçadas de Raul; conseguiu, mas não sem esforço.
Ele fitou-a por um segundo enquanto nadavam, com ar de aprovação e um sorriso nos lábios.
— É uma prova de competição? — perguntou, num tom de caçoada.
— Se quiser chamar assim...
Leigh não retribuiu o sorriso, e ele riu.
— Vamos então — desafiou-a.
Quando Raul aumentou a velocidade da corrida, Leigh pôs toda sua energia para acompanhá-lo.
Não sabia bem o porquê, mas achou que era de vital importância aceitar o desafio. Eles nadaram
lado a lado perfazendo quatro vezes o comprimento da piscina, e só depois disso Raul tomou a
dianteira. Leigh sentiu que seus músculos pediam repouso.
— Você é ainda uma nadadora de primeira categoria — disse ele, saindo da piscina e ajudando-a
a sair também. — Possuo uma vantagem, gatinha, nado todos os dias e penso que você não tenha
ido com muita frequência a um clube.
— Não. Jeff e eu costumávamos ir um domingo sim, um domingo não, mas... — ela parou
abruptamente, achando que falara sem pensar. — Quer dizer...
— Não precisa continuar. — Os olhos dele escureceram enquanto apontava para uma chaise-
longue. — Deite e relaxe. Você parece cansada.
Raul estava furioso, muito irritado — ela conhecia os sinais —, mas controlava as emoções de
um modo que o velho Raul jamais fizera. Leigh podia sentir o olhar penetrante do marido ao se
acomodar na chaise-longue. Mas não a tocou, pelo que Leigh foi sumamente grata.
— Você usa "isso" quando nada com ele? — Raul indagou de repente.
Leigh estava de olhos fechados, mas sentia um olhar penetrante examinando-a dos pés à cabeça.
Embaraçada e com medo, ficou incapaz de se mover.
— "Isso" o quê? — perguntou, sentindo um nó na garganta. Depois respirou fundo e disse: —
Oh, o biquini? Não, comprei-o especialmente para vir aqui. Meu velho maio não combinaria bem
neste local, não acha? — Ela tentou rir, mas nenhum som saiu de sua garganta seca.
— Pobre coitado... Você deve fazer da vida dele um inferno.
— Não faço coisa nenhuma: — Leigh ergueu o corpo e protestou, indignada: — Somos amigos,
nada mais que amigos. Amigos nadam juntos, comem juntos, e... e fazem muitas coisas juntos.
— E mesmo? E pretende me dizer que não sabe o que deveria fazer com ele além de nadar e
comer? Gosta de agir assim? Gosta de mantê-lo em cordéis, como se ele fosse um fantoche? Ou de
balançar o que é bom na frente dele, para depois...?
Leigh ergueu a mão com o fim esbofeteá-lo, porém* Raul segurou-lhe o pulso, apertando como
aço.
— Oh, não, gatinha, não de novo. Mais uma vez seria realmente demais. — Raul sacudiu-a com
gentileza e a pôs de pé. — Que tipo de homem é ele, afinal? Permite que você o conduza pelo nariz
como um touro castrado? Não tem orgulho de si próprio? Não insiste em algo mais?
Leigh percebeu que Raul fazia aquilo para provocá-la, para ser cruel.
— Não, não insiste! — ela gritou, pois seu controle chegava ao fim. — Jeff é um cavalheiro e
amigo, duas qualidades que você não tem, no referente a mulheres. Ele não faria nada que me
magoasse, sempre põe meus sentimentos acima dos dele. Jeff é...
— Um tonto — Raul terminou por ela, os olhos azuis exprimindo intensa satisfação.
Leigh, ao contrário, ficou furiosa consigo mesma. Percebeu, tarde demais, que o marido a
provocara com segunda intenção. Queria ouvir de sua boca que a amizade com Jeff era apenas
platónica, pois, até aquele instante, não acreditara totalmente nisso. E ela caíra no engodo. Como
sempre, aliás.
— Há momentos em que tenho ódio de você, Raul. — Leigh sacudiu os ombros, embora ele
ainda a mantivesse presa pelo braço.
— Não, você não tem ódio de mim. Você me ama. Sempre me amou, e vai continuar me
amando sempre. Se eu não acreditasse nisso, não a teria deixado ir. Há muitos Jeffs pelo mundo, e
você é por demais... vulnerável. Mas seu amor por mim tem sido como... — Ele fez uma pausa,
procurando a palavra certa.
E Leigh terminou, com convicção:
— Um cinto de castidade?
— Leigh! — Raul ficou chocado. Murmurou qualquer coisa em francês e colocou um dedo nos
lábios dela. — Eu estava procurando uma expressão mais bonita — disse, agora com olhar
divertido. — Mas, pensando bem, viria a dar no mesmo.
— Você está errado, Raul, não o amo como pensa. — Ela não podia fraquejar.
— Eu a conheço melhor do que você mesma, Leigh. — De mãos dadas, eles caminhavam agora
pelo gramado.
— Por exemplo, a saída de seu pai da casa, quando você nasceu, a afeta no momento. E ainda
não aceita esse fato. Estou certo?
— O que é isso afinal, um curso de psicanálise barata? — Leigh sentia que seu coração batia com
mais violência, e não sabia se era por causa das palavras de Raul, ou da proximidade do corpo dele,
seminu. Mas, qualquer que fosse a razão, se perturbava.
— Psicanálise barata? Cinco anos sem minha mulher? Psicanálise barata? Psicanálise de preços
extorsivos, acho.
— E minha ausência pesou tanto assim para você? — Leigh indagou. — Realmente pesou? Com
certeza havia dúzias de mulheres que adorariam ficar em sua companhia, e isso o ajudaria a afastar a
mente de mim. — Ela largou a mão de Raul. — Aonde está me levando?
— Quero lhe mostrar o lago. Mas não mude de assunto. Na verdade, não confia em homens,
confia, Leigh? Seu pai destruiu algo vital em você. — Raul tomou-lhe a mão outra vez.
— Ora, isso não é certo. Não é. -— Mas, por que estariam falando sobre seu pai?, refletia. Ela
própria sempre evitou pensar no pai.
— Não estou certo? — Raul aproximou-se mais, segurando-a pela cintura, e Leigh sentiu algo
como uma corrente elétrica percorrendo-lhe o corpo.
Ele abriu um portão que comunicava com outro patamar do jardim. Subiram alguns degraus e
chegaram ao local onde havia um pequeno lago cujas águas brilhavam à luz do sol da tarde. Leigh
não conseguiu esconder uma exclamação de prazer:
— Que lindo! — Fitou-o, mas se arrependeu. Havia um calor nos olhos de Raul que revelava
com clareza que não estava indiferente à proximidade dela. E, mais ainda, o reduzido calção não
concorria em nada para esconder quanto a desejava naquele instante.
— Você é que é linda! — Raul a fez parar quando chegaram à beirada do lago. Um bando de
flamingos debandou, em impressionante protesto. — Não imagina como senti sua falta, Leigh. Foi
um tempo tão longo...
Enquanto falava, ele a conduzia a um pequeno pavilhão de madeira construído na outra
extremidade do lago, cujo teto em espiral e janelas em arco lembravam uma capela.
— Raul, não...
A voz de Leigh soou fraca, quase um sussurro. Raul escorregava os dedos pelo ventre e braços
nus dela, acordando assim o desejo em cada lugar onde tocava. Da curva dos seios foi ao contorno
dos quadris, beijando-a na boca ao mesmo tempo, e criando uma necessidade que Leigh não
conseguia mais esconder.
Ela se esquecera por completo da habilidade do marido na arte do amor, um perito em
sensualidade, que sabia tocar, que sabia beijar...
— Venho sonhando em ter você em meus braços outra vez — sussurrou ele, com voz rouca. —
Toque-me, querida, abrace-me, faça com que eu saiba que me deseja também. — Raul encostou o
corpo no dela, quase selvagemente.
— Não...
Mesmo protestando, Leigh envolveu-lhe o pescoço com os braços e comprimiu seu corpo no
dele. O tempo, o presente, o passado, o futuro, tudo se mesclou. A realidade agora resumia-se
apenas em dois corpos unidos, na boca de Raul devorando a sua.
Ser abraçada assim de novo pelo marido, sentir o desejo dele, a necessidade dele por ela, tudo
enfim, era como voltar ao lar depois de longa e dificultosa jornada, era como encontrar um oásis em
meio a interminável deserto. Percebeu que seu corpo queria muito satisfazer a necessidade física de
Raul, queria lhe dar conforto. Consolo? Prazer? Mas, por quê? De qualquer maneira, ela não tinha
condições de racionalizar, não ousaria...
Percebeu que o marido a conduzia para o pavilhão, mas sem separar os lábios dos dela.
Cuidadosamente, fechou a porta e baixou as cortinas, sempre segurando-a firme nos braços, e
sentindo o corpo dela tremer convulsivamente.
E foi só quando a fez deitar no tapete que cobria o quente chão de madeira, que Leigh se deu
conta de que seus seios estavam descobertos. E, no instante em que Raul, com os lábios, descrevia
uma linha de fogo sobre sua pele quente, ela concluía que, se não parasse com aquilo, seu último
resquício de resistência sumiria. De fato, não queria ser apenas outra entre as mulheres de Raul,
diferente apenas por causa de uma aliança de ouro na mão esquerda. Além disso, de que teriam
adiantado as longas noites em claro, todo seu sofrimento, a angústia,
chegando a imaginar que iria ficar louca...? Nada mudara. Raul não a amava, essa era a verdade
pura e simples.
— Raul, não posso!
Ao se liberar dos braços dele, fitou-o, e enxergou um rosto tenso, cheio de desejo. Estremeceu.
Quantas vezes havia pensado que aquele desejo era só para ela?
Apesar da intensidade de sua excitação, Raul não fez o menor esforço para retê-la. E, por
momentos, o som de sua respiração ofegante encheu a pequena sala, enquanto lutava para se
controlar.
— Eu quero você, Leigh. — A voz dele soou grave e muito estranha. — E não venha me dizer
que não sente o mesmo por mim. — Raul concentrou o olhar nos seios de Leigh, nos mamilos
túrgidos pela necessidade. E ela viu então que o marido estava ciente do desejo que a consumia. —
Qual é o impedimento para o nosso amor?
A genuína perplexidade expressa pela pergunta de Raul fez com que, de repente, a ira de Leigh
voltasse com todo o vigor.
— Qual é o impedimento? — Ela não podia acreditar que Raul tivesse coragem de lhe fazer
aquela pergunta. A imagem de Marion surgiu tão real, como se a mulher estivesse presente.
— Somos casados — acrescentou ele, num tom de voz seco, que rasgou os ultra-sensíveis
nervos de Leigh, como arame farpado. — Ou será que se esqueceu de que somos casados?
— Não, não me esqueci — ela respondeu, tensa, recolocando a parte de cima do biquini no
lugar. — Como poderia ter me esquecido do maior erro que cometi em minha vida?
Se Leigh não estivesse tão furiosa, teria notado a emoção sombria estampada no rosto de Raul.
Mas, naquele preciso momento, ela lutava para se dominar, humilhada e desesperada. Queria odiá-lo,
queria lembrar-se da empedernida crueldade que os separara durante cinco longos
anos. Mas, para sua vergonha e horror, sabia que Raul estava com a razão. Ela o amava, e muito.
— Você quis realmente dizer isso? Que seu casamento comigo foi o maior erro de sua vida,
Leigh?
A emoção aparente na voz de Raul fez com que ela o fitasse, mas não conseguiu ler, nas feições
duras do marido, nada que lhe dissesse em que realmente estava ele pensando. O homem ali
presente poderia ser um estranho em vez de um marido seu de quase sete anos. Esse pensamento
provocou em Leigh um violento ataque de histeria, que a obrigou a tomar a direção da porta. Mas...,
pensando bem..., quantas vezes se aninhara naquele peito de músculos rijos, quantas vezes dormira
com a cabeça no ombro e o corpo curvado nas costas dele?! Maldito homem! Maldito homem!
— Essa discussão toda não nos leva a nada, Raul — ela disse, com a garganta apertada. Ao abrir
a porta, parou no limiar por um breve segundo, virou-se para encará-lo, procurando por o quê? Nem
ela mesma sabia. Mas o rosto que a fitou não lhe proporcionou consolo; na verdade, era a máscara
de um demónio cheio de ira e de desejo frustrado, com olhos em chama que gelaram seu sangue em
vez de aquecê-lo. — Tudo está acabado, Raul. Você sabe que tudo está acabado!
Capítulo 6
Leigh tentava voltar ao interior da casa vagarosamente, quando, na realidade, queria correr para o
próprio quarto e lamber suas chagas, como. um animalzinho ferido. Sabia que algo desagradável iria
acontecer, que uma confrontação seria inevitável. Mas não esperara que fosse tão rapidamente e nem
de forma tão violenta. Estava atordoada demais para chorar, embora o nó da garganta estivesse se
tornando intolerável.
Sentiu a mão de Raul em seu braço tão logo atingiu o portão que separava os dois patamares do
jardim. Ela puxou o braço, como se o toque a queimasse, e fitou-o com olhar selvagem mas também
cheio de dor.
— Você vai ter de conversar comigo — ele disse, enquanto a encarava com frieza. — Não sei o
que está pensando, mas pretendo descobrir.
— Deixe-me em paz, Raul, por favor. — Leigh não se deu conta de que tremia. Como as pernas
não pudessem mais sustentá-la, caiu no chão. Raul carregou-a. — Largue-me! — ela gritou, furiosa.
— Fique quieta, Leigh. Você está me fazendo perder a paciência. E, caso tenha se esquecido de
como sou quando perco a paciência, vai se lembrar logo; não estou longe disso.
Ela relaxou contra o peito nu de Raul. Não quis fazer escândalo por causa dos criados, em
especial de Suzanne. Ninguém na casa deveria perceber nada do que se estava passando. Contudo,
teve enorme prazer em sentir o corpo quente de Raul contra sua pele, apesar de todos os
desentendimentos e dissabores.
— Eu posso andar — ela disse enfim ao marido.
— Duvido. Você ia desmaiar a meus pés — Raul insistiu enquanto subia as escadas, os degraus
de dois em dois, como se carregasse uma pluma.
Quando chegou ao quarto dela, abriu a porta com o pé e colocou-a na cama, o rosto rígido mas
o humor sob controle.
— Sugiro que durma um pouco antes do jantar — ele disse antes de se retirar.
— Sinto muito o que houve, Raul — Leigh sussurrou. As lágrimas corriam-lhe agora livremente
pelas faces. — Eu nunca deveria ter vindo para cá. Foi um terrível erro. Sabia disso, e consenti que
você me convencesse.
Raul virou-se, os olhos pegando fogo. E falou, com voz exasperada:
— Você é um demónio de mulher. Não tive um minuto de paz desde o dia em que a conheci.
E ele se foi, antes que Leigh tivesse chance de responder. De qualquer modo, ela não saberia o
que dizer. Não apanhara bem o sentido do que Raul dissera; porém, apesar da confusão mental,
sentiu-se confortada. Encolheu-se na cama e tentou dormir. Estava exausta, dolo-ridamente exausta,
por causa das emoções conflitantes e do medo que a dominava. Medo de que sucumbisse mais uma
vez à atração magnética do marido, medo de que essa fraqueza a tornasse cega à futilidade de se
envolver com ele, medo de seguir o coração em vez de seguir o cérebro.
Raul tentava voltar à vida com arrogante desconsideração pelos seus sentimentos, Leigh refletia,
mas apenas cuidando das próprias emoções; e isso após um silêncio chocante de cinco longos anos.
Homem algum no mundo teria a insolência de exigir o que Raul exigia. E ela concordara com essa
exigência! Por que a desejaria Raul agora? Por que agora, depois de todo esse tempo? Teria a atual
namorada se cansado dele? Leigh fechou os olhos, as lágrimas continuando a correr pelo rosto. Ou,
quem sabe, ele desejara uma troca, entediado das atraentes mulheres que invadiam as praias do sul da
França? Qualquer que fosse a razão, ela estava tendo o que merecia. Ou quase.,. Após alguns
minutos, com as pernas e braços pesados, adormeceu e sonhou com o marido. Acordou
murmurando o nome dele.
— O jantar está do seu gosto?
Leigh parou de saborear os deliciosos pratos que haviam sido postos na mesa, e deparou com o
olhar sombrio de Raul, fixo nela, cheio de uma sensualidade que fez, sua pulsação aumentar.
— Está, obrigada — ela respondeu. Se tudo pudesse ser do seu gosto, como era aquele jantar,
sua vida lá seria um paraíso, pensou. ,
Nunca se sentira tão confusa, tão desnorteada, e positivamente tão furiosa, em toda sua vida,
Leigh refletia com tristeza. E tudo por sua culpa! Ela olhou mais uma vez para o marido que comia,
parecendo muito satisfeito. Com certeza, nada seria suficiente para alterar o apetite de Raul, um
homem que não tinha remorsos, que não tinha consciência.
— Não está com fome, Leigh? — Os vívidos olhos azuis fixaram-se na mulher mais uma vez,
agora cheios de censura, ao deparar com o prato quase cheio. — Colette fez o jantar de acordo com
seu gosto. Ela vai ficar muito desapontada se você não comer. Entende, não?
— É que eu... — Leigh parou abruptamente. O que lhe estaria acontecendo? —... eu tive um dia
muito penoso — ela terminou. — Viagem, e tudo o mais.
— Ah, entendi, tudo o mais — A expressão de Raul era de irritação. — Você quer dizer, a
natação, o exercício? Mas o exercício deveria aumentar seu apetite.
— Possivelmente.
— Mais vinho? Isso ao menos você pode ingerir sem muito esforço.
Raul serviu-a do vinho da preferência dela. Leigh achou que o marido fazia o jogo do gato e do
rato!
Tudo aquilo era uma loucura, refletia, em desalento. E pensar que se tratava de seu primeiro dia
com Raul! Teria ainda outras doze semanas até o fim do sacrifício, e quase já se entregara sem
restrições. Ela corou e baixou a cabeça depressa, deixando que o manto de seus cabelos louros
cobrisse-lhe o rosto. Graças a Deus insistira em ter o próprio quarto; ao menos havia um lugar na
casa onde poderia se trancar.
— Por que resolveu deixar crescer os cabelos? — ele perguntou, depois que Colette retirou os
pratos, sendo que o de Leigh estivesse quase cheio. Comiam a sobremesa agora. — Você fica muito
bem com os cabelos longos.
— Quis variar — ela apenas disse.
— Variar? Achei que detestava cabelos compridos. Muito trabalho, você costumava dizer.
Insistia em tê-los bem curtos.
— Mudei de ideia acerca de muitas coisas desde que o deixei, Raul. Quis ter um aspecto
diferente, agir diferentemente, ser diferente. Não queria saber de nada que me fizesse lembrar dos
velhos tempos.
— Mas não pode continuar fugindo a vida toda, Leigh. — Raul tinha o olhar estranhamente
amável, o que a irritou mais do que o frio ceticismo. Não queria, por nada no mundo, que o marido
tivesse pena dela! Ergueu a cabeça e reagiu, como se aquilo fosse a gota d'água. E explicou
calmamente:
— Você me entendeu mal. Parei de fugir há muito tempo. Tenho meu trabalho, meus amigos...
— Pelas feições de Raul, Leigh adivinhou que ele pensava em Jeff. Pobre Jeff, tinha a culpa de tudo,
quando sempre estivera presente nos momentos de necessidade, para lhe dar ajuda. — A mudança
de penteado foi um incidente apenas.— Em seguida ela acrescentou, sem nem mesmo saber por
quê: — Jeff gosta de meus cabelos assim, do contrário eu os teria cortado há mais tempo.
— Que atenciosa! — Raul sussurrou com sarcasmo. Leigh alegrou-se com isso. Preferia o
antagonismo à gentileza do marido. Não tinha defesas contra a última. — Não me lembro de você
ter dado tanta consideração a minhas opiniões. — Raul parecia furioso.
—Não se lembra? Bem, acho que ambos temos recordações diversas dessa nossa vida passada.
Foi há tanto tempo, de qualquer maneira! Somos pessoas diferentes agora.
— Você já me disse isso várias vezes — ele protestou secamente. — Exceto em uma coisa não
somos diferentes. Isso, ao menos, continua sendo o mesmo.
Leigh baixou a cabeça, de propósito. Gostaria muito de poder negar a atração física que sentia,
mas não conseguiu.
— Que barulho é esse?, — Raul indagou de repente.
— Um gemido? Aposto que é o maldito gato. Onde está ele? Em baixo da mesa?
— Oh, Raul, deixe-o em paz. Oscar não está causando problemas, não se moveu desde que
começamos a comer.
— Leigh! — A palavra foi um misto de censura e aviso.
— Você sabe muito bem que não permito que Oscar entre na sala de jantar. Não gosto de
animais onde há comida.
Ele ergueu a pesada toalha de renda e espiou embaixo da mesa. Lá estava Oscar, enrodilhado aos
pés de Leigh, como um guardião peludo.
— Animal idiota! — Raul esbravejou, mas Leigh percebeu que não com a mesma fúria do
passado. Lembrou-se de como Oscar costumava fugir dele, apavorado. — É a primeira vez que esse
maldito gato entra na casa nestes últimos cinco anos. Você é má influência. Essa coisa aí não sabe
que é um gato. Devo considerar a intromissão dele como rotina, durante os próximos três meses?
Era aquela um tipo de aceitação que Raul não teria feito no passado; e, por instantes, Leigh não
conseguiu responder. Apenas fitou-o com olhar esperançoso.
— Sim? Oscar pode ficar comigo dentro de casa, então? — ela enfim perguntou.
— E depois? E quando você for embora de novo? Não terá remorsos? Eliminará o pobre animal
de sua vida, como fez antes?
Raul fez a pergunta referindo-se não apenas a Oscar, e Leigh sentiu-se incapacitada de responder
durante alguns segundos. Depois disse:
— Posso levá-lo à Inglaterra comigo. A quarentena...
— A quarentena o matará. Sabe como ele detesta ficar preso.
De fato. Se a lembrança do saco de plástico permanecia enterrada no subconsciente de Oscar,
Leigh não saberia dizer, mas a verdade era que o pobre animal ficava demente quando confinado em
lugar pequeno.
— Bem... — Ela sacudiu os ombros. — Acho que posso escondê-lo de um jeito ou de outro.
Raul não gostou da resposta, claro. Eles terminaram a refeição sem falar. O único som que se
ouvia era o da respiração ritmada de Oscar.
— Gostaria de dar um passeio antes de dormir? Você na sua cama e eu na minha, naturalmente.
— Raul tentava uma aproximação.
Tinham acabado de tomar café, e o silêncio continuava tenso. Por mais íntimo e perigoso que
aquele passeio pudesse ser, pelos jardins perfumados da mansão, sob o céu estrelado, Leigh achou
que qualquer coisa seria preferível a ficar sozinha com seus pensamentos. Embora esforçando-se, a
imagem do Raul daquela tarde, seminu, tão viril, tão cheio de vida, tão sensual, não lhe saía da
mente.
— Sim, eu gostaria de dar um passeio — Leigh respondeu. Ela tirou os pés cuidadosamente de
sob o gato, que rosnou em veemente protesto.
— Você parece saber tudo sobre o que fiz nos últimos cinco anos — disse Leigh depois de
haverem caminhado em silêncio durante alguns minutos. Raul não tentou tocá-la, conservava as
mãos nos bolsos da calça como se não ousasse confiar em si. E tinha uma expressão distante. — E
sua vida como foi, Raul?
— Oh, fiz uma coisa aqui, outra coisa lá. — Ele sorriu. — Executei alguns negócios arriscados.
Mas nada muito perigoso.
— Negócios? -— Leigh encarou-o, surpreendida. Durante os dezoito meses em que viveram
juntos Raul só procurara o prazer; nunca, nunca mesmo, trabalhara. — Você quis dizer que se
ocupou pessoalmente de negócios?
— Sim, foi isso que eu quis dizer. E algo tão surpreendente assim?
— Bem, é — Leigh respondeu com mais sinceridade do que tato. — Sabe... você nunca... Nunca
pensei...
— Que eu fosse capaz de fazer dinheiro? Só de gastar? Nunca pensou que, talvez, eu estivesse
arranjando tempo para dedicar a você? Que eu" estivesse pondo o trabalho em segundo plano?
— Não, nunca pensei. — Ela segurou-lhe o braço com força e insistiu: — Foi o que você fez,
Raul?
— Sim, foi o que eu fiz.
— Mas, por quê?
— É óbvio, não? Eu não conseguia me separar de você nem por um minuto.
Embora achando que ele não falava sério, Leigh sentiu o pulso acelerar. Se ao menos aquilo
pudesse ser verdade, ela pensava com tristeza, talvez seu casamento ainda tivesse uma chance.
— Não vai me contar por que fez isso? — ela insistiu, enquanto continuavam com a caminhada,
Oscar seguindo-os como um cachorro fiel aos donos.
— Acabei de lhe contar. Diga-me, Leigh, como pode explicar esse sentimento que persiste em
continuar entre nós dois? — A voz dele era fria e parecia vir de longe.
Leigh olhou para o marido, e disse a si mesma: o que ele quer ouvir não pode ser a verdade.
— Atração física — ela respondeu sem preâmbulos. — Nada mais, nem menos.
— Ah, entendo. E você chegou à conclusão por si mesma, ou o estimado Jeff lançou essa pérola
de sabedoria em sua mente receptiva.
Raul estava tomado de forte emoção. Furioso à menção do nome de Jeff, reagia sem controle. E
isso a deixou irritada.
— Não vou continuar falando com você nessas condições — ameaçou ela. Mas, quando se virou
para desistir do passeio, Raul agarrou-lhe o braço de tal forma que chegou a machucá-la.
— Com os diabos que vai embora. Fiquei quieto durante cinco anos, mas agora acabou. Quando
quero que você fale, você vai falar.
— Tática de valentão? — ela perguntou com voz gelada. Sua recusa daquela tarde deixara-o
furioso. Raul não estava acostumado a ser rejeitado; sem dúvida, fora a primeira vez em toda sua
vida.
— Valentão ou não valentão, quero uma resposta, qualquer que seja — ele gritou.
— Entendo. — Leigh ergueu a cabeça e deu a resposta: — Tudo bem. Acontece que nunca
discuti com Jeff sobre nossa vida em comum, se é o que está sugerindo, ou sobre qualquer outro
assunto de nosso casamento. Como já lhe falei, preferi fingir que você nunca fizera parte de minha
vida.
— Você na verdade é uma... — Ele parou de súbito, quando dois olhos escuros o fitaram
firmemente. — Quer dizer que não admite que uma forte emoção nos uniu?
— Já lhe falei. Sexo. Houve apenas sexo de sua parte. — Desesperadamente, Leigh rezava para
que ele negasse o que ela acabara de afirmar.
— Ah, sei, entendo — Raul resmungou. — Então, que tal você aproveitar este lugar para gozar
umas férias?
— Férias? Obrigada, agradeço por essas férias. Deixe-me ir embora. — Leigh esperava que a voz
não a traísse, que o marido não percebesse como suas mãos tremiam. — É evidente que seu plano
não vai funcionar, e eu...
— Pela última vez, Leigh, e insisto, pela última vez, você ficará aqui pelo tempo combinado.
Pode não ser o que deseja que seja, pode nem mesmo ser o que eu desejo que seja, mas não haverá
possibilidade de você quebrar nossa combinação. Apenas aceite que estamos presos um ao outro,
ok? Serão apenas doze semanas, afinal. Não se trata de uma vida inteira. E haverá compensações...
Não pode negar que gostou desta tarde, antes de termos chegado a uma desnecessária parada.
Leigh ficou rubra ao se recordar de como se entregara facilmente à paixão. Era bem de Raul
fazê-la se lembrar de situações humilhantes! Ele poderia ao menos fingir ser um cavalheiro, e
esquecer-se do episódio daquela tarde!
— Então, você realmente pretende continuar com sua farsa? — ela perguntou, no mesmo
instante em que o grito fúnebre de um pavão ecoou no ar.
Raul apertou as pálpebras; se por causa de suas palavras, ou do gemido lamentoso da ave, Leigh
não teve certeza.
— Mais do que nunca — ele afirmou. — Eu tinha me esquecido de como era delicioso o gosto
de seu corpo...
Leigh deu um passo atrás. Mas, dessa vez, Raul não a segurou, nem a tocou. Observou-a com
olhar torturado, enquanto ela o fitava com uma mistura de perplexidade, medo, e raiva; raiva por
causa de sua fraqueza quando se tratava do marido.
— Estou com frio, Raul. Quero voltar para a casa.
Raul ficou onde estava, parado como uma estátua, sempre com as mãos nos bolsos. Leigh achou
que ele parecia terrivelmente só. Talvez fosse sua imaginação, talvez ele não estivesse na verdade só,
mas teve uma vontade imensa de atirar-se nos braços do marido, de satisfazer-lhe os desejos, de
submeter-se à vontade dele. Porém logo se deu conta de que aquele era Raul, o mesmo Raul.
Amargas recordações do passado forçaram-na a mudar de ideia. Seria suicídio emocional aproximar-
se do marido de novo, confiar nele, colocar sua vida nas mãos de homem tão pouco confiável.
Fez um enorme esforço para se afastar, a cabeça erguida e as costas eretas. Não, não poderia
arriscar subjugar-se mais uma vez à excruciante agonia que sofrera quando o deixara. O que quer que
acontecesse entre os dois nas próximas semanas, ela procuraria conservar intata aquela pequena
parte de si mesma, que mantinha escondida. Precisava ter cuidado para que Raul não a persuadisse
de que o branco era preto, e de que o preto era branco. Seria esse o único meio, de seu
conhecimento, para sobreviver. E queria a todo o custo sobreviver. Saíra ilesa do pior da tragédia,
construíra uma nova vida sozinha, e tinha de ser o suficiente para sobreviver. Tinha de ser.
Capítulo 7
As duas semanas seguintes foram para um misto de dor e prazer, de descoberta e de afirmação
de coisas meio esquecidas. Descobriu, por exemplo, que era uma delícia estar na companhia de Raul
mais uma vez, rir com ele, falar com ele, dividir a mesa com ele, mas não a cama.
Tudo era quase como fora nos primeiros dias, antes de se casarem. Mas pairava sempre no ar a
certeza de que aquilo iria acabar. E, lentamente, embora tentasse em contrário, ela o desejava cada
dia mais. Tentara se esquecer das pequenas e grandes amabilidades de Raul, amabilidades que talvez
— talvez...? — ele não tivesse tido com mais ninguém; mas, no momento, essas amabilidades
povoavam-lhe a mente, tardando sua resolução.
Ela fitava-o agora ali a seu lado, de olhos fechados e corpo relaxado, deitado num tapete
estendido junto ao carro. Se ao menos ela pudesse permanecer imune! Suspirou enquanto percorria
com os olhos o rosto bronzeado, a boca sensual, o queixo forte do marido. Na realidade, não podia
culpar as mulheres por acharem-no atraente, e talvez fosse demais pedir a um homem como aquele
para ser fiel, quando tinha tanto a oferecer. Ela sorriu e desviou o olhar para as montanhas a
distância.
Haviam levado tudo para um piquenique naquela manhã. Após haverem estacionado o carro em
lugar adequado, passearam pela floresta. O mar, o céu, as montanhas verdejantes, e os vales
satisfaziam qualquer ser humano. Ela sentiria falta de tudo aquilo quando partisse para Londres de
novo. Mas tinha de partir. Não havia outra escolha.
— Você não descansou nem um pouco nestes dias? — Raul lhe perguntou, observando-a
atentamente.
— Claro! Estou gostando de minhas férias.
— Suas férias? — Ele ergueu-se, apoiando-se num cotovelo, com a testa franzida. — E como
está considerando esta temporada?
— Bem, e não são férias? — Leigh mal podia encará-lo.
— Concordamos...
— Sei com o que concordamos! Você está constantemente me fazendo lembrar.
Havia algo na voz de Raul que Leigh não conseguiu analisar. Mas, quando ele se aproximou
mais, viu, pela expressão do rosto, que lutava para controlar suas emoções. Mas o controle de aço
cedeu. Raul então tomou-a nos braços, como um amante senhor de si mesmo e da mulher. Um beijo
despertou de imediato um desejo ardente em Leigh, um desejo impossível de esconder.
Ela teria dado tudo na vida para resistir às investidas do marido. Mas sentia-se incapaz. Um
pequeno contato apenas fora suficiente para desencadear imediata e terrível reação. E o contato
funcionou como um verdadeiro tóxico devastador, que teve o poder de excitá-la. Resistir a Raul teria
sido impossível como viver sem respirar.
— Tão deliciosa e tão feroz...! — ele sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto afagava os ombros nus,
expostos à carícia do sol ardente.
Beijou-a mais uma vez, um beijo demorado agora, um verdadeiro convite para que Leigh abrisse
os lábios; o que ela fez com perfeita aceitação e prazer evidente. Raul aproximou-se mais, moldando-
a em seu corpo, enquanto com as mãos brincava com os cabelos de seda de sua mulher, num toque
sensual e quente. A respiração dele se acelerava à medida que Leigh se movia, grudada ao seu corpo.
O sol quente aquecia-os, e o aroma de verão os inebriava, enquanto as mãos de Raul moviam-se
ao longo do corpo de Leigh, voltando depois para os seios, onde se demoravam em suaves carícias.
Ela queria mais, muito mais; porém, mesmo assim, encontrou forças para se afastar.
— Você pode ir me pegar um copo de vinho, por favor? — ela pediu, com voz trémula.
— Sua diabinha! — Raul sorriu, os olhos brilhantes. — Sabe exatamente a que estado me reduz,
não sabe? — Ele levantou-se e foi até a cesta de piquenique que estava sob a sombra de um
majestoso cedro. Inclinou-se e encheu duas taças de vinho.
Leigh olhou para trás e entendeu o que Raul quisera dizer com "a que estado me reduz". O jeans
justo revelava. Mas não achou o comentário nada animador. Entendeu que despertara no marido o
poder de domínio que ele possuía, de conquistador, cuja finalidade, no momento, talvez tivesse sido
para Raul provar que ela era igual a qualquer outra mulher, pronta a se submeter ao seu charme
masculino. Apenas isso. Nada de amor, no verdadeiro sentido da palavra.
O sol era uma bola incandescente no límpido céu azul. Leigh fechou os olhos, sentindo uma dor
profunda. Por que as coisas tinham de ser daquele jeito? Por que Raul não haveria de ser diferente?
Por que não a amava como amava...? Tentou desviar a mente da imagem de Marion.
— Pronto! — Raul ajoelhou-se ao lado dela, e ofereceu-lhe a taça de vinho. Tocou-lhe o braço
de leve. — Você parece uma gata em teto de zinco quente.
— Falando em gatos... — Leigh sorriu. — Não vi Oscar esta manhã.
— Acho que ele encontrou uma amiguinha. Ao menos esse instinto permanece intato em Oscar!
Nas últimas manhãs ele tem voltado para casa com um aspecto diferente.
— Ah, sei. — Leigh sorriu e ficou surpreendida de ver como era fácil rir, apesar de as lágrimas
estarem prestes a rolar. Ela não sabia por que estava com tanta vontade de chorar. E murmurou: —
Assim será mais fácil quando eu tiver de ir embora; ele nem vai notar.
— Ele vai notar, sim. — Havia algo na voz de Raul que fez com que Leigh o fitasse. Sentiu
naquele instante que começava a mergulhar no abismo negro de novo.
— Não me olhe desse jeito, Raul. Não quando... — Ela parou abruptamente. Quase disse, "não
quando está mentindo". Mas isso seria revelador demais.
— Por quê? Não quero ouvi-la falar em partir, não quero que vá embora, Leigh.
— Por favor, Raul. — Não percebia o marido que aquilo tudo a estava matando? Ela tomou
mais um gole de vinho e acrescentou: — Não estrague este momento delicioso!
— Precisamos conversar seriamente algum dia, Leigh. Há coisas que tenho de lhe contar, coisas
que você não teria aceitado antes, mas...
— Não! — Raul por certo queria lhe contar detalhes sobre seu romance com Marion, ela
imaginou. E talvez sobre outros romances? Não poderia aguentar, não naquele instante, não nunca.
— Por favor, Raul, não!
Ela não tinha ideia de como sua súplica fora convincente. Raul fitou-a e apertou a taça de vinho
com tanta força que a quebrou. Foi como uma pequena explosão no silêncio da mata.
— Maldição! — Ele olhou com surpresa para os cacos de vidro espalhados pelo solo.
— Raul! — Leigh tomou-lhe a mão nas suas e tirou pequenos pedaços de vidro grudados na
pele. — Você está bem, Raul?
— Acho que sim. Venha cá. — Ele conduziu-a para longe dos restos de vidro e do vinho que
caíra no gramado rodeado de margaridas e ranúnculos. — Gosto de vê-la como um anjo de
bondade. — Beijou-a. — Mas, na verdade, gosto de você de qualquer jeito. É uma mulher deliciosa;
sabe disso, não?
A respiração de Raul ficou ofegante, e Leigh pôde perceber que ele a desejava muito; porém
limitou-se a beijá-la, não indo além disso. Mas não impediu que ela começasse a se sentir como se
estivesse em outro planeta, onde não havia nada além do sol, do aroma da grama fresca, do perfume
das flores, e... de Raul.
— Raul? — Ela sabia que iria se arrepender daquilo, sabia que provavelmente passaria o resto da
vida tentando se recuperar de novo, mas, naquele instante, tudo o que importava era Raul, seu
marido, e que ficara sem ele por muito tempo já. — Beije-me, beije-me, Raul.
— Leigh? Sabe o que está dizendo? Você é tão deliciosa, não posso aguentar mais sem...
— Beije-me.
Raul então beijou-a na boca, com uma intensidade que a deixou sem fôlego. Os lábios dele
pegavam fogo, e Leigh abandonou todo o controle. Sacudia o corpo como se estivesse febril.
— Minha querida esposa...
Ela rezou para que Raul dissesse que a amava, mesmo sabendo que não era verdade. Mas Raul a
beijava de novo, e com mãos mágicas acariciava-lhe o corpo todo, até ela chegar a ponto de achar
que morreria por causa da necessidade que se transformava agora em dor física.
Inclinou o corpo. E, quando seus dedos roçaram os cabelos emaranhados de Raul, quando sua
boca provou-lhe a carne quente, foi como se os anos não houvessem passado, e os dois fossem
apenas Leigh e Raul outra vez, jovens e desesperadamente apaixonados um pelo outro.
No primeiro instante de posse, Raul deu um grito de exultação e de triunfo, que ecoou pela
floresta. E então o corpo dele começou a se mover num ritmo crescente, até atingir o clímax; em
seguida os dois ficaram imóveis, um nos braços do outro, o rosto de Leigh pressionado contra o
pescoço de Raul, o queixo dele encostado no macio colchão de seda dos cabelos castanhos da
mulher.
A quietude era completa, com exceÇão do pio dos pássaros nos galhos das árvores que cercavam
o pequeno vale, e do zumbido das abelhas ocupadas em tirar o pólen das minúsculas flores. O sol
ainda brilhava no céu; a grama, sob seus corpos cansados, estava quente como um cobertor; e, pela
primeira vez depois de cinco anos, Leigh adormeceu nos braços do marido.
Quando abriu os olhos, ainda atordoada, deparou com Raul apoiado num cotovelo, fitando-a.
— Boa tarde, sra. de Chevnair — ele disse com suavidade, inclinando-se para beijar-lhe os lábios
entreabertos.
— Raul! — Leigh olhou ao redor e ele sorriu, satisfeito.
— Esperei mesmo que você dissesse meu nome. Não gostaria que acordasse com o nome de
outro homem nos lábios.
— O que eu fiz, Raul...? — Ela falou sem pensar. E Raul respondeu, com um sorriso:
— O que a maioria dos casais faz, penso. — Ele divertia-se com o espanto de Leigh. — Não
assuma esse ar tão trágico, somos casados, estamos dentro da lei, de qualquer maneira.
O ar divertido dele a ofendeu. Achou que o marido tratava muito sem emoção o que acontecera.
— Nós nos conhecemos há aproximadamente sete anos — Raul continuou, sem se dar conta do
efeito que suas palavras descontraídas exercera em Leigh —, e estamos casados há seis anos e meio.
Já era tempo...
Notou que Leigh sentava-se num movimento rápido que o alertou ao fato de que alguma coisa
estava errada, e sua voz morreu na garganta quando viu o rosto pálido e o olhar sombrio da mulher.
— Vamos, vamos, Leigh — ele disse após alguns minutos. — Você sabe muito bem que desejou
tudo o que houve. — Raul tocou-lhe a face, mas Leigh virou a cabeça, cega à ternura expressa nos
olhos do marido. — Está por acaso arrependida do que fez? — ele perguntou, agora friamente.
Por que Raul não dizia que a amava?, Leigh refletia, com os pensamentos descontrolados. Dizer
não significaria que realmente a amava. Mas seria bom assim mesmo. Dizer que ela não era apenas
outra mulher entre as muitas que teve desde que o deixara. "Diga^-me, diga-me isso, Raul".
— Leigh?
— E melhor voltarmos — ela sugeriu, ao se levantar num movimento rápido. — Chegaremos
tarde para o jantar.
— Jantar? — Havia uma nota de incredulidade na voz de Raul e, encarando-o, Leigh percebeu
que ele estava furioso. — Voltou a ser a mulher feita de gelo?
— Raul, por favor... — Ela se considerava culpada de tudo. Afinal, o seduzira, e sabendo como
significava pouco para o marido. Mas..., bem no fundo de seu subconsciente, sentia que tudo estava
sendo bom demais para ser verdade. — Isso não devia ter acontecido, Raul.
— Com os diabos que não devia! Você é minha mulher! Você é minha!
— Pertenço a você, é isso? E que tal as outras? E Marion? Ela pertence também a mais alguém, a
seu amigo! Como pode ter dois símbolos de mulher em sua vida?
— Olhe aqui... — Raul deu um passo à frente e Leigh recuou.
— Não me toque! — ela disse.
— Isso é ridículo, Leigh! Grotesco! Quer voltar para casa? Pois bem, vamos voltar.
Ele apanhou a cesta de piquenique e o cobertor, e foi para o carro, sem mais uma palavra. Leigh
hesitou. Em seguida, recolheu todos os cacos de vidro até ter certeza de que o gramado ficara limpo.
Depois foi também para o carro, com a garganta apertada e o coração pesado. Raul a aguardava,
encostado no carro.
— Dê-me isso — falou, tirando os pedaços de vidro das mãos dela e jogando-os num pequeno
saco de lixo, sem dizer mais nada. Deu partida no carro e puseram-se a caminho.
— Raul? Quero voltar para minha casa, na Inglaterra.
— Você está em casa! Está em sua casa, Leigh! E é onde vai ficar, pelo menos nas próximas
semanas. Entendeu?
— Entendi. Mas o que se passou há pouco não significou nada. Entendeu!
Raul dirigia pela estrada cheia de curvas, quase mecanicamente, tal qual um robô.
— Você me entendeu, Raul? — ela perguntou de novo. — Foi apenas um ato físico, nada mais.
— Um lapso físico? Sim, entendi.
Leigh esperava por mais algumas palavras, mas Raul concentrou-se no trajeto. Ela não tinha ideia
de como iria aguentar as outras dez semanas, vendo-o todos os dias, sem possibilidade de tocá-lo
ou... Afastou os pensamentos com desoladora firmeza.
— Iremos para Kuana depois de amanhã. Ficaremos lá uma semana; ou duas, talvez.
Kuana... A ilha de Raul, onde o sol brilhava com intensidade todos os dias, o lugar idílico em que
haviam passado a lua-de-mel, no meio das palmeiras e passeando pelas areias brancas. Mas também
o lugar que lhe traria recordações fadadas ao esquecimento!
— Não quero ir a Kuana — ela disse categoricamente. — Vá você, se quiser. Eu fico aqui.
— Você vai comigo. A maioria das mulheres daria a vida para passar duas semanas no Caribe.
Nenhuma pensaria, como você, que eu lhes estava sugerindo trabalhar nas minas de sal da Sibéria.
— Mas eu não quero ir. No nosso acordo não havia nada sobre o Caribe e...
— Nosso acordo tornava bem claro que você voltaria a morar comigo durante três meses.
Aonde eu for, minha mulher irá. Mas, afinal, o que há de errado com Kuana, Leigh?
Havia um brilho nos olhos de Raul que mostrava claramente a Leigh que ele sabia a razão da
recusa em voltar à pequena ilha encantada, uma jóia encravada num mar de turquesa. Sabia que
Leigh receava o poder sensual da atmosfera do Caribe.
Uma onda de orgulho a fez erguer a cabeça e dizer:
— Tudo bem, tudo bem, se for o que você quer... Achei que tinha negócios que o prendiam
aqui.
— Talvez eu tenha negócios fora também — ele respondeu, com um brilho no olhar por causa
da capitulação de Leigh. — Tenho trabalho na ilha.
— Mas não há lá um gerente para cuidar de tudo? — Ela referia-se a Augustus, o homem que
governava a pequena ilha com eficiência, quando Raul não estava presente. — Tenho certeza de que
Augustus...
— Leigh! — Raul deu um soco no painel e declarou: — Vou partir em trinta e seis horas, e você
irá comigo. Chega de discussões.
— Ok. Chegavam em casa.
— Dê-me força, mulher. — Ele fechou os olhos por um instante, antes de abrir a porta do carro.
Ajudou-a a descer, e disse: — Não me olhe desse jeito, gatinha. Quero apenas...
O que Raul queria, Leigh nunca soube, pois naquele preciso momento Colette apareceu dizendo
que ele estava sendo chamado ao telefone. Era um telefonema interurbano. Foi outra coisa que a
intrigou. O Raul que ela conhecia nunca tivera paciência nem habilidade para gerir os vastos
negócios que herdara do pai. Ou ao menos assim ela pensara. Haveria outras coisas sobre Raul que
não conhecera no marido de apenas dezoito meses? Poderia muito bem haver coisas desse tipo, que
ela desconhecia.
Achou que precisava mantê-lo a distância até partirem para Kuana. E não foi difícil, pois Raul a
evitou o tempo todo, para surpresa sua. Imediatamente depois do jantar daquela mesma noite,
desapareceu no escritório com uma enorme pasta, e trancou-se lá também em grande parte do dia
seguinte. Ela devia ter ficado contente, mas irritou-se ainda mais.
Sofria desesperadamente pela falta da companhia do marido, do calor do olhar, do toque das
mãos, da força da emoção que a assustava às vezes. Seu corpo ainda doía em consequência dos
frémitos do amor, e suas noites ficaram repentinamente longas e frias.
"Isso não pode continuar assim, Leigh" ela disse a si mesma uma noite, enquanto se enxugava
antes de vestir a simples e velha camisola, e entrar embaixo das cobertas. Raul lhe comprara peças de
lingerie na primeira semana de sua chegada, porém ela, teimosamente, pusera de lado as caixas que
continham lindas camisolas, sutiãs, e calcinhas de seda. Achava que o velho algodão serviria muito
bem para a finalidade.
Ficou deitada na escuridão, o rosto em brasa devido aos pensamentos que lhe enchiam a mente.
Talvez Raul se cansara do jogo que o entretinha. Talvez saciara seu desejo naquela tarde do
piquenique, e não precisava mais dela. Cansara-se dela? Talvez...
Isso era bom, não era? Exatamente o que desejara tanto!, disse a si mesma.
Uma noite, depois de mais ou menos duas horas de se revirar na cama, remoendo suas ideias,
resolveu ir à piscina. Meia hora de exercício físico seria salutar. Por certo a ajudaria a dormir. No
momento sentia-se presa a emoções conflitantes.
Vestiu um robe sobre a camisola, pegou o biquini e uma toalha. Poderia se trocar na beirada da
piscina. A essa hora da noite não haveria ninguém por lá, e sua necessidade de respirar o ar fresco
era premente.
A enorme mansão estava mergulhada no mais absoluto silêncio. Caminhando com cuidado
devido à escuridão, desceu as escadas e deu um suspiro de alívio quando chegou ao jardim. Os
ladrilhos do piso conservavam ainda o calor do dia. Correu até a enorme piscina, silenciosa e negra
sob o céu de breu.
Acabara de tirar a camisola e estava nua; se preparando para pôr o biquini, quando uma voz de
homem se fez ouvir a seus pés, apavorando-a.
— Vou ficar terrivelmente desapontado se souber que fez isso outras vezes enquanto eu estava
sozinho em minha cama.
— Raul! O que faz você aqui?
— Não é evidente? Não conseguia dormir e achei que algumas braçadas na piscina acabariam
com meu excesso de... energia. Usufruía um abençoado sossego quando uma ninfa apareceu no
meio da noite, destruindo todo meu trabalho. Vai entrar? — As palavras de Raul fizeram o sangue
ferver em suas veias, e Leigh não sabia ao certo se era por excitação ou medo.
— Meu biquini... — Ela apontou para os dois pedacinhos de pano jogados na beirada da piscina.
— Não se preocupe com isso — ele disse. — Não será necessário agora.
— Raul...
Leigh hesitava entre vestir o robe e voltar à casa, ou entrar na água ao lado dele. Decidiu pela
segunda opção. Inclinou-se para pegar o biquini quando um puxão vigoroso no tornozelo a fez cair
em cima da cabeça de Raul. Ambos desapareceram sob as águas e ela ficou logo consciente de dois
braços musculosos que a seguravam, enquanto emergia à procura de ar, um momento mais tarde.
— Não pus meu biquini — disse. E se deu conta imediatamente de que não era a única pessoa
nua na piscina.
— Eu sei. — A voz de Raul exprimia maldosa satisfação. — Legal, não acha?
Qualquer resposta que Leigh pudesse ter dado teria se perdido na pressão da boca de Raul contra
a sua, do tórax dele contra seus seios macios. Leigh gemeu de prazer mas achou que precisava parar
com aquilo, e logo!
— Vamos apostar uma corrida? — ela sugeriu.
— Bem, sei de coisas mais agradáveis como passatempo. Mas, se você insiste...
Raul venceu a corrida facilmente, e esperou-a na outra extremidade da piscina. Leigh observava-
o, fascinada, e sentiu uma onda de desejo. Por que voltara ele à sua vida para atormentá-la daquele
jeito?
— Costumávamos fazer isso nos velhos tempos. — A voz de Raul era suave e sedutora. Leigh
corou. — Só nós dois na água morna e no escuro, lembra-se?
— Lembro-me.
— É como se nunca tivéssemos nos separado, gatinha.
— Como se nunca tivéssemos nos separado? — Leigh repetiu.
Ela saiu da piscina depressa e vestiu o robe. Como se nunca tivéssemos nos separado! E os anos
vazios em que lutara sem ele, e a agonia das noites solitárias... Sem dúvida Raul ocupara o tempo
adequadamente!
Ele seguiu-a, e agora falava-lhe ao ouvido.
— Senti muita falta de você, Leigh. E sabe disso, não?
— Não acredito. Estamos fazendo teatro, nós dois juntos. Não podemos fingir que os cinco
anos não existiram, Raul! Foram reais. Cada um deles. Vivemos sem contato, sem nenhuma
comunicação.
— Então ouça-me com atenção agora. — Raul estava com aspecto magnífico. Parecia uma
estátua de bronze, com a água escorrendo pelos cabelos e pelo corpo, os olhos brilhantes. — Você
não quis me ouvir na noite...
— Não! Não quero ouvir nada nem agora, Raul. Estou vivendo bem sozinha no momento, e
nada do que possa me dizer irá fazer diferença.
— Vivendo bem? É esse o nível de vida que pretende manter pelo resto de sua existência? Não
quer mais, Leigh? Você tem apenas vinte e cinco anos, não é uma velha satisfeita com a bengala ou a
cadeira de rodas. Por que tem tanto medo de falar comigo, de ouvir o que tenho a lhe dizer? Por que
se sente tão ameaçada?
Leigh não respondeu. Saiu correndo como se tivesse asas nos pés; entrou no quarto e trancou a
porta.
— Não — ela repetiu em voz alta, falando consigo mesma. No chuveiro, esfregou a pele para
tirar toda e qualquer lembrança do que se passara na piscina. "Não posso permitir que uma coisa
dessas aconteça de novo". Não tinha medo de ouvi-lo, não se sentia ameaçada. Mas não via motivo
para explicações, era tudo.
Recordou-se de repente do dia em que fizera doze anos. Perguntara pelo pai, com a perversidade
característica das crianças, e insistira no interrogatório até a mãe sucumbir, desolada. A mãe lhe
contara então, friamente, que quando sua gravidez fora confirmada, ele fugira com uma garçonete de
um bar da cidade. Voltara semanas mais tarde, arrependido e cheio de promessas, para fazer a
mesma coisa três outras vezes, antes de desaparecer definitivamente, cinco semanas após o
nascimento da filha.
— Era de esperar — a mãe dissera, conformada. — Todos os meus amigos insistiram que nossa
união não poderia durar. Seu pai era um homem atraente demais, cheio de amor pela vida para ficar
preso às leis que governam os homens comuns.
— Não! — Leigh protestara com veemência. — Ele era seu marido, meu pai; devia ter ficado
conosco. Eu o odeio!
— Não fale assim! — a mãe a repreendera.
E agora Leigh lembrava-se muito bem de que, quando a mãe a censurara, ela na verdade amava o
pai, não o odiava. E durante muitos anos continuara amando-o. Que ridículo! Que crime prender-se
a alguém sem valores morais, e transformá-lo num deus, vivendo no mundo ilusório da imaginação.
Muito mais tarde, no dia de seu casamento, ela olhara para a mãe e fizera uma promessa
silenciosa de que nunca, nunca, cairia em outra desilusão. Poderia ser doloroso, mas encararia os
fatos de sua vida com frieza, sendo ela a conquistadora, e não a conquistada.
— E fiz isso, Raul — sussurrou, ao sair do chuveiro enrolada na toalha. — Fiz isso!
Quando eles chegaram ao Caribe, Raul lhe disse, sorrindo:
— Augustus preparou uma festa para nos receber. — Leigh sorriu mas não falou nada. Desde o
desembarque no aeroporto, depois de uma viagem de dez horas, estava tensa, pois tudo era
recordação.
Olhava agora para Raul, sentado na popa do barco que os levaria à ilha de sua propriedade. Os
dois haviam sido tão felizes anos atrás, quando ela pela primeira vez estivera no local! Amavam-se
tanto! Mas tudo acabara, Leigh dizia a si mesma.
Assim que desembarcaram, foram rodeados pelos habitantes locais. As mulheres, graciosas,
estavam bem vestidas. Os homens, altos, fortes, tinham aspecto atraente. Leigh viu muitos rostos
familiares. Sentia-se com dezoito anos de novo, perdidamente apaixonada pelo sedutor marido que
só tinha olhos para ela.
— Sra. Leigh. — O austero Augustus era todo sorrisos ao tomar-lhe a mão nas suas. — Já faz
bastante tempo!
Foram as mesmas palavras que Raul pronunciara três semanas atrás — só três semanas? —
quando surgira ao lado dela como um fantasma do passado, e a trouxera de volta à realidade, num
gesto que poderia ser comparado a um verdadeiro solavanco.
— Alô, Augustus. — Leigh sorriu ao velho amigo. — Como vai Maya?
— Muito bem. Nosso quarto filho nasceu ontem à noite, por isso ela não está aqui agora. Mas
mandou um abraço.
— Quarto filho? Você tem andado ocupado, Augustus!
— Dois meninos e duas meninas. Bom, não acha?
— Muito bom. Maya está em Teryan, suponho. Quando voltará para casa?
Teryan era uma aldeia da ilha mais próxima, e seus habitantes tinham orgulho de possuir um
hospital bem equipado, embora pequeno.
— Não, não, sra. Leigh. — Augustus sorriu. — Não foi necessário.
— Verdade?
Mas, continuar conversando, foi impossível, pois Raul quis levá-la à praia, junto ao mar cor de
turquesa e às palmeiras cujas folhas balouçavam à brisa suave. O es-petáculo era lindíssimo. Leigh
adorara sua visita ao Caribe seis anos e meio antes. O exótico cenário tropical, o incrível pôr-do-sol,
as noites tranquilas estariam sempre guardados em sua memória, como um oásis imaculado onde ela
poderia voltar sempre, sem dor; nada destruiria a pura recordação daquele mágico lugar.
— Vamos? — disse Raul, apontando para um pequeno jipe que os aguardava na estrada de terra.
— Achei que você gostaria de se refrescar, depois da viagem. Sim?
— Sim, por favor.
Eles seguiram. Leigh olhou para o marido e achou que havia algo estranho no ar. Raul parecia
excitado, apreensivo talvez, sobre alguma coisa; mas não podia imaginar o que fosse.
Esperava ver logo a casa da fazenda que fora construída pelo avô dele, havia sessenta anos. Por
ocasião de sua primeira visita, surpreendera-se com a arquite-tura antiga. Jamais imaginara poder ver
tanto luxo na ilha de Raul.
Quando a casa surgiu ao longe, Leigh constatou ser a mesma, porém... diferente. Mas não
conseguia dizer no que constava essa diferença.
— Entre — Raul disse ao estacionar junto aos degraus da porta de entrada. — Quero que se
encontre com uma pessoa.
Quando ele abriu a porta, Leigh deu uma exclamação de surpresa:
— Raul?! — Havia uma fileira de camas brancas no que fora antes uma opulenta mansão. — O
que significa isso? O que você fez? — Antes que Raul tivesse tempo de responder, ela gritou: —
Maya! — Viu a mulher de Augustus na extremidade da sala, com um pequeno berço ao lado. — Oh,
Maya...! — Foi para bem perto dela com os braços estendidos, e abraçou o vulto estendido na cama.
As duas mulheres haviam sido muito amigas há seis anos e meio, e Leigh ficou encantada ao vê-la
novamente.
— Sra. Leigh! — Maya exclamou. — Veja minha pequena Tamal! Não é linda?!
— Seu bebê é lindo. — Leigh examinava o minúsculo rosto que já mostrava sinais da beleza da
mãe. — Tamal é linda mesmo.
— Como vai você, Maya? — Raul indagou gentilmente.
— Muito bem, obrigada.
Ao fazer menção de sair, ele foi rodeado por algumas pessoas que lhe agradeceram pelo
benefício que fizera à pequena ilha, criando um hospital. E Maya foi a mais enfática de todos os
presentes, pois não precisara ir a Teryan.
— Quando você fez isso? — Leigh perguntou ao marido, depois que já estavam na rua. — E
por quê?
— Quando? Há quatro anos. Ao menos foi a época em que se iniciaram as conversações. Tudo
caminha bem mais devagar aqui, por isso os dois primeiros filhos de Maya nasceram em Teryan. E
por quê? Sabe por quê? Devia se lembrar, Leigh.
Ela encarou-o surpresa, sem responder.
— Você mencionou — Raul prosseguiu —, quando estivemos aqui em nossa lua-de-mel, que era
uma pena não haver recursos médicos na ilha. Recorda-se? Então, admiti que estava certa. Eu devia
ter pensando nisso muito antes. Construí uma pequena casa para minhas permanências na ilha. É
meu lar agora. Por que tanta surpresa, Leigh? — ele indagou, ao ver a cara de espanto da mulher. —
Valorizei suas ideias é opiniões no passado, como as valorizo agora. Você disse que eu recebia muito
dessa gente, e que dava muito pouco de volta. E tinha razão.
— Raul...! — Leigh achava incrível o que constatava. De fato, ela fizera um pequeno comentário,
mas nem sonhara que o marido a levaria tão a sério. — Sabia que você estava ansioso para me
mostrar alguma coisa!
—Ansioso para lhe mostrar a realização de suas ideias. Prestou atenção no nome do hospital?
— O nome? — ela repetiu.
Raul então apontou a enorme placa na porta do hospital: Casa de Saúde Leigh de Chevnair.
— Está contente? — ele perguntou, e Leigh fez um sinal afirmativo com a cabeça. — Muito
bem, então. Quis que você constatasse minha conversão com seus próprios olhos.
— Por que não me disse nada antes, Raul?
— Porque queria ver a expressão de seu rosto ao visitar o hospital — ele respondeu, com toda a
naturalidade.
— E viu? Nesse caso, se tudo o que me disse é verdade, por que motivo não foi atrás de mim
antes? — Tratava-se de um grito vindo do coração, e Raul o reconheceu como tal.
— Porque suas declarações naquela noite em que foi embora, até um certo ponto eram
verdadeiras. — Ele não a tocou, pelo que Leigh ficou sumamente grata.
— Eu a sufocara com minha fortuna, com meu estilo de vida. Concorda? Eu a transportara a um
país de fadas; mas, no processo, sua identidade ia se perdendo aos poucos. Senti que tinha de lhe dar
tempo, ou você viria a me odiar um dia. Precisava se encontrar, Leigh, encontrar a si própria. Era
um bebê quando a conheci, e não foi justo meu procedimento. Confesso.
Quereria ele se referir ao romance com Marion?, Leigh se perguntava. Houve outras mulheres?
Seria aquilo tudo um preâmbulo para o próximo passo? Se fosse, ela não poderia aguentar, tinha
absoluta certeza disso.
— Que tal irmos à casa nova agora, Raul? — ela sugeriu. — Estou com uma terrível dor de
cabeça, e exausta também.
Raul suspirou e ambos entraram no carro. Enveredou por uma estrada estreita e, a alguns metros
da areia, Leigh viu uma casa cercada de hibiscos nos três lados, e com primaveras vermelhas
cobrindo os muros; forneciam brilhante contraste junto ao verde da vegetação.
No interior, os móveis de junco, e os tapetes rústicos que cobriam o assoalho, eram ao mesmo
tempo acolhedores e confortáveis. Havia dois dormitórios, ambos com cama de casal e armários que
iam do chão ao teto, com uma penteadeira embutida para economizar espaço. Leigh adorou tudo e
achou que, se tivesse ela mesma decorado o local, não seria diferente e nem melhor. A casa, arejada e
clara, era charmosa e ao mesmo tempo cómoda. íntima, na verdade íntima demais, talvez. Ela
franziu o sobrolho.
— Ocupe o quarto que preferir, Leigh — disse Raul. — Qualquer um dos dois é bom para mim.
— Ok.
Ela foi para a sala e deparou logo com uma fotografia, já conhecida sua. Sentiu um frio
percorrer-lhe a espinha. Era a foto do casamento. Lá estava uma jovem Leigh, radiante, vestida de
noiva, e Raul ao seu lado. Ele fitava-a com adoração. Como tudo era passageiro!, pensou. A vida, o
amor, tudo, tudo. Mas não podia se esquecer de que o único motivo pelo qual estava lá era para que
ambos concordassem que os três meses de vida juntos haviam sido um fracasso. Serviriam ao menos
para convencer Raul de que estavam separados para sempre. E agora isso se fazia mais imperativo
que nunca. Por quê? Porque, embora Raul pudesse acolhê-la e largá-la a seu bel-prazer, ela não
poderia fazer o mesmo. Não aguentaria.
Capítulo 8
O tempo corria rápido. O sol começava a brilhar bem cedo pela manhã, animando-os a
aproveitar as praias. Eles nadavam nas águas cristalinas e exploravam os recifes de coral, onde os
peixes corriam desafiando os nadadores, como se dissessem: peguem-nos se puderem. E, nas longas
noites, tomavam seus drinques ao luar, sob as palmeiras. Mas Leigh achava que vivia um tempo
emprestado.
Raul não fora mais ao quarto dela depois de ter sido rejeitado no dia da chegada, e Leigh passava
a maior parte das noites acordada, sofrendo com o calor úmido e pegajoso.
Raul se conservava a distância, no rosto uma verdadeira máscara sarcástica. E a conversa entre os
dois limitava-se quase sempre a assuntos enigmáticos, confusos. Isso a tornava cada vez mais tensa.
Ela sentia-se incapaz de aguentar a tortura de vê-lo todos os dias tão perto, mas ao mesmo tempo
tão longe. Sabia que Raul a desejava, via fome nos olhos dele, mas lhe parecia que o marido
conseguia abafar esse desejo com um mínimo de esforço. Ela vivia como se estivesse junto a uma
bomba prestes a explodir, pois tinha de encarar o fato de que o passado — Marion —, precisava ser
esclarecido para depois ser levado ao esquecimento. Raul tornara a insistir nisso dezenas de vezes.
Leigh lançou um olhar ao marido, deitado ao lado dela, estirado como um gracioso animal na
areia alva, muito fina, seminu. E o desejava. Sim, o desejava. Naquele exato momento precisava dele.
Raul era vigoroso e sedutor, mas infinitamente perigoso, e ela odiava sua própria fraqueza; contudo...
ainda o desejava. E havia algo além disso. Estava certa de que o Raul-que um dia conhecera era uma
pálida imagem do homem que agora era. Os vastos negócios que ele controlava com tanta sabedoria,
o cuidado que tinha com o povo da pequena ilha, sua força..., sua energia... Estaria o marido com a
razão por não ter se comunicado com ela durante cinco . longos anos? Será que ela precisava mesmo
dar um passo à frente e crescer, a fim de poder vê-lo claramente, como ele era na realidade?
— Não! — Leigh falou em voz alta. Raul fitou-a, intrigado.
— Não? — O sorriso sumiu dos lábios dele quando notou a expressão estranha dos olhos da
mulher. — O que há de errado? Confie em mim, Leigh, conte-me. — Ele chegou mais perto e
tomou-lhe uma das mãos. Sua nádega firme contra a dela fez o desejo de ambos aumentar.
— Nada. — Leigh olhou para os lindos olhos azuis, e logo corrigiu o que falara: — Não, não é
"nada', é "tudo"! Eu não devia ter vindo aqui, Raul, não devia ter ouvido você.
— Engana-se. Minha ilha tem o poder de eliminar o verniz superficial e trazer à tona todas as
profundezas escondidas. Concorda? É difícil fingir, em especial a si mesma, numa atmosfera simples
como esta. Você precisava vir aqui, minha Leigh. Não poderia me aceitar, se não tivesse vindo.
— E acha que vou aceitá-lo agora? — Ela ergueu o queixo, de maneira hostil.
— Não ainda, mas vai — ele respondeu, com uma segurança que a enfureceu. — Sou o único
homem do mundo que você amará.
A arrogância absoluta de Raul a fez corar de ódio.
— Não pode negar isso, minha Leigh — ele acrescentou. — Você me amou anos atrás, e
continua me amando agora. É simples como dois mais dois são quatro.
— Nada é simples entre nós, Raul, e o homem que conheci há anos não é o homem que você é
agora. Você está diferente, Raul, e eu também. Talvez nada tenha sobrado do velho Raul e da velha
Leigh.
— Bobagem — ele protestou. — Está falando bobagem, porque não deseja encarar a verdade.
Não somos tão diferentes, apenas um pouco mais velhos e mais sabidos. Pode me ver com mais
clareza agora, não? Por isso está me punindo? Está me castigando porque não entro nos moldes em
que me colocou?
— Não sei de que está falando.
Leigh recusava enxergar a menor sombra de verdade no que Raul falava.
Ele não discutiu mais. Olhava agora para o mar, que adquiria um tom rosado à medida que o sol
começava a se pôr no horizonte. E o canto suave de um pássaro tropical denotava o fim do dia.
Logo mais, a escuridão cairia com alarmante rapidez.
— Não há dúvida de que eu mudei em parte, Leigh — ele enfim continuou —, pois segui suas
sugestões e tornei as pessoas aqui mais felizes. Nega isso também?
— O quê? Oh, sim, é verdade. E fico contente de que os tenha ajudado.
— Eu também estou contente. — Ele tocou-lhe os lábios com a ponta do dedo, contornando-
os. — Tão linda e tão assustada!
— Assustada? Com medo de você? Não seja assim convencido, Raul.
— Nesse caso, por que fugiu de mim nessas três semanas, gatinha? Você me deseja, sabe que me
deseja. Por que nega a nós dois esses momentos mágicos do paraíso?
— Não desejo você, Raul — ela replicou friamente, enquanto um calor violento fez com que seu
sangue corresse mais depressa nas veias. — Quando vai entender que não resta mais nada entre nós,
exceto...
— Isto?
Raul deitou-se em cima dela antes que Leigh se desse conta do que acontecia. O ódio brilhou em
seus olhos. Ela achou que precisava resistir, queria resistir, mas o toque de Raul era poderoso.
Músculos de ferro agarraram-na de tal forma que ela se sentiu sem forças para reagir. Raul beijou-a
com fúria.
— Como pode falar em ir embora, em me deixar mais uma vez? — ele murmurou num misto de
ternura e ódio, enquanto a apertava contra sua nudez. — Não a deixarei ir! — Beijou-a novamente,
não lhe dando chance de protestar. E ela se entregou sem relutância aos braços do marido. — Está
me ouvindo, Leigh? Você me deseja. Não pode negar.
Raul continuava acariciando-a, beijando-a, até destruir todo o controle ainda existente nela. E,
quando Leigh ficou desvairada, atordoada pelo desejo, ambos subiram às alturas. Em seguida, ele
segurou-a com força contra a parede protetora de seu tórax, acariciando-a até os dois começarem a
respirar regularmente. Leigh percebeu então que ele dormia.
A areia estava quente e o céu estrelado. Raul acomodara-se melhor, pondo a cabeça no ventre da
mulher. Murmurava o nome dela enquanto dormia.
Por que razão aquele momento, após tantos outros de intimidade, de atos de amor, haveria de
ser o último dente da engrenagem de sua mente a se ajustar, revelando a verdade, Leigh não saberia
dizer. Mas, naquele instante, percebeu que nunca deixara de amá-lo, nem por um segundo. Seu amor
por Raul era inevitável como respirar, e necessário enquanto vivesse. Ela havia sido de Raul desde o
primeiro instante em que pusera os olhos nele, e teve a impressão de que seria dele até o dia de sua
morte. Mas só percebera tudo com clareza naquele momento. Raul era seu destino e não havia
escapatória.
Leigh ficou imóvel, recordando-se da última conversa que tiveram. Era evidente, precisava
admitir agora, que o ato de magnanimidade de Raul com os moradores da ilha a perturbara. Sentia-se
sem forças para lutar contra homem tão generoso. Amava-o, mas de forma alguma poderia ser sua
esposa de novo. Se cedesse, isso daria a Raul o poder de que necessitava para magoá-la mais uma
vez, e ela não sobreviveria após outro holocausto como o de cinco anos atrás. Pensando bem,
quando, em que momento, em que dia, Raul lhe dissera que a amava? Nunca! Quando lhe dissera
que as outras mulheres não significavam nada para ele? Nunca!
Lembrou-se de Marion nua, na cama. Sua raiva, sua fúria impotente, ainda estavam vivas na
mente como se tudo tivesse acontecido na véspera. Talvez algumas mulheres conseguissem perdoar
uma traição — sua mãe conseguira — porém ela sabia não ter essa grandeza de alma. O que Raul
fizera uma vez, poderia fazer muitas outras vez.
— Leigh? — Seus pensamentos tormentosos deviam ter se comunicado a Raul de um jeito ou de
outro através do sono, pois ele abriu os olhos sonolentos e fitou-a, sentando-se num movimento
rápido quando viu lágrimas correndo-lhe pelas faces. — Leigh, o que há? — Tomou-a nos braços e,
por segundos, ela adorou estar no colo do homem que amava, de seu marido, de seu amante, de
tudo. — O que há de errado, Leigh?
Quando Raul se moveu alguns centímetros para vê-la melhor, Leigh fechou os olhos depressa,
receando que eles revelassem o que lhe ia na alma. Raul não podia saber. Não podia saber nunca.
— Não sei o que há de errado — ela respondeu. — Tudo é tão lindo aqui! Sou uma tola mesmo.
Raul aceitou a explicação, embora Leigh soubesse que ele adivinhara haver algo mais. E, quando
mais tarde, após o jantar, lhe pediu para voltarem à França, ele não acreditou que o motivo
apresentado fosse mesmo aquele: que tinha saudades de Oscar, achando que alguma coisa havia
acontecido com o coitadinho.
Ao saíram da ilha, bem tarde na manhã seguinte, o sol brilhando, o mar muito azul e as areias
brancas, os habitantes acenando adeus, Leigh sentiu um quê de arrependimento. Talvez devesse ter
ficado um pouco mais lá com Raul, naquele mundo perfeito, idílico, irreal. De qualquer maneira,
seria uma lembrança que levaria consigo para animá-la em sua vida futura, sem Raul. Olhou para ele,
sentado na proa, com ar remoto, frio. Não, não seria interessante ter ficado um pouco mais na ilha.
Poderia se trair facilmente lá, onde o ar vinha carregado de amor, onde se respirava amor. Talvez
fosse perigoso demais.
— Um vintém por seus pensamentos — ele disse, sentando-se mais perto dela. Seu corpo estava
quente. — O que está se passando nessa linda cabecinha, sra. de Chevnair?
— Nada de muito especial. — Ela sorriu com discrição, pois o braço em volta de sua cintura a
apertava como um cinto de aço.
— Não estou com nenhuma doença infecciosa, Leigh — ele disse friamente ao notar que a
mulher se esquivava. — E tenho certeza de que ninguém faria objeção a um homem abraçando sua
esposa em público.
— No meu caso, talvez a esposa faça objeção. — Leigh respondeu com calma; mas, no mesmo
instante em que as palavras saíram de seus lábios, achou que cometera grave erro.
Raul recuou como se ela o houvesse agredido fisicamente. Seu olhar tornou-se duro, o rosto
mais uma vez adquiriu a máscara sarcástica.
— Acho que já aguentei bastante — ele falou devagar, e afastou os braços do corpo de Leigh,
como se esse mesmo corpo lhe causasse repulsa. — Você pode se considerar feliz por não estarmos
sozinhos, caso contrário eu ficaria tentado a lhe dar o tratamento que merece.
— Oh, sim? — Apesar de a ira do marido ser violenta, Leigh ficou enormemente grata pelo fato
de a ternura ter sumido do olhar dele. Podia lidar muito bem com o ódio, com a fúria de Raul, mas
aquele olhar carinhoso, embora imaginasse não ser sincero, ainda tinha o poder de seduzi-la. — E o
que precisamente você faria? — perguntou.
— Eu a poria em meu colo, gatinha, com seu lindo traseiro nu virado para o ar, e a faria
conhecer a autoridade de minha mão. Nunca aprovei que se batesse em criança, mas posso agora ver
que há certas vantagens, se não para a criança mas certamente para aliviar a irritação do adulto. —
Ele sorriu, satisfeito, ao notar a expressão de ultraje furioso no rosto de Leigh. — Você se comporta
muito mal às vezes; sabe disso, não?
— Eu me comporto mal? Não sei como tem coragem de falar isso. Foi você quem destruiu
nosso mundo, quem nos separou, se bem se lembra, entregando-se a um romance barato, e nem sei
se pela primeira vez. E tem coragem de me acusar de me comportar mal?
Leigh teve consciência, ao explodir com essa acusação, de que não agira bem. Contudo, tanto a
imagem de seu pai como a de Raul emaranhavam-se em sua mente naquele preciso instante, de um
jeito que ela não conseguia separar as duas. Quis ferir, quis destruir de propósito a magia das últimas
três semanas passadas na ilha encantada, e ao mesmo tempo traiçoeira. Ela não conseguira vencer
sua fraqueza, não conseguira lutar contra a sedução do marido. Seria por causa da ilha...? Sem
dúvida! Mas... seria mesmo?
— Não vou nem me dar ao trabalho de me defender por acusação tão ridícula — ele respondeu
friamente —, em especial porque sei que você não quis dizer o que disse. Está agindo como uma
criança, Leigh. Por favor, controle-se. — Ele deu-lhe as costas, em orgulhosa desaprovação.
A repreensão fora feita sem ódio e com uma frieza que abafou as chamas da fúria de Leigh num
segundo. A que Raul a reduzia? Ela afundou-se no assento duro do barco, fechou os olhos para se
proteger contra sol e ao mesmo tempo para não ver o rosto de traços rígidos de Raul. Havia passado
com ele agora já quase cinco semanas, e seu mundo fora reduzido a frangalhos. Deu um longo
suspiro enquanto a brisa suave refrescava-lhe o rosto em brasa. Quebrara todas as promessas que
fizera a si mesma, em relação a Raul; permitira que ele invadisse seu corpo e sua mente; ficara
reduzida ao tipo de megera que sempre abominara. E o que ganhara? Como reagira o marido a tudo
isso?
Leigh arriscou lançar um olhar ao vulto distante, teso, sentado a alguns passos de distância dela.
E enxergou um rosto controlado, frio, enigmático como sempre! Teve vontade de gritar! Respirou
mais algumas vezes para se acalmar e, quando arriscou fazer o mesmo pela segunda vez, viu que
Raul tinha os olhos fixos nela, mas de maneira estranha, examinando-a lentamente. Percebeu que o
marido não estava tão controlado como quis parecer.
— Bem? — ele perguntou sem emoção. — Importa-se em me dizer qual o motivo de toda
aquela cena de há pouco?
— Não vou dizer nada — Leigh respondeu no mesmo tom da pergunta, sem emoção. — Não
vou dizer.
— Como assim? Não foi apenas um pedido.
— Eu sei. — Ela retrucou com uma serenidade que estava longe de ter. — Mas a resposta
continua sendo "não".
Raul fitou-a demoradamente, sacudiu a cabeça, e disse, com voz seca:
— Mulheres! E nós é que somos chamados de sexo desumano! Ok. Continue com seu jogo,
gatinha.
Enquanto o barco prosseguia cortando as claras águas do mar, Leigh tentava controlar o pânico
que aos poucos se apoderava dela. Jurou que lutaria contra a obsessão que tinha pelo marido, e que
venceria. Sim, lutaria, pois achava necessário; mas, oh... Sentiu lágrimas quentes de comiseração de si
própria, no canto dos olhos, prontas a escorrer. Como gostaria que as coisas fossem diferentes!,
pensou.
Capítulo 9
— Leigh? Está pronta? — Raul cha-Imou-a do lado de fora do quarto, uma fração de segundo
após ter batido na porta.
Leigh suspirou ao se olhar no espelho. Não queria ir à festa. Por que concordara em ir? Raul não
a pressionara, de qualquer maneira. Orgulho? Ela examinou com cuidado a imagem da mulher pálida
refletida no espelho, e colocou um pouco de ruge no rosto. O orgulho vem sempre antes da queda.
Não teria surpresa se esse ditado provasse ser verdadeiro, naquela noite.
— Leigh?
— Estou indo.
Ela lançou um último olhar ao espelho e achou que havia feito o melhor que podia. Prendera os
cabelos na nuca, o que enfatizava seus enormes olhos castanhos. E o vestido de seda lilás era chique,
da última moda, e ficava-lhe muito bem. Suspirou mais uma vez. Enfim, Raul sabia que não se casara
com uma loura tipo Marilyn Monroe.
Leigh achava que, no decorrer dos anos, perdera a suavidade do olhar que fazia qualquer homem
sentir-se imediatamente superprotetor ao seu lado; achava que perdera aquele toque de
vulnerabilidade feminina, sutil-mente sensual. Mas, ao abrir a porta e encarar Raul, viu que se
enganara.
— Você está linda, gatinha.
O elogio concorreu para colorir um pouco mais suas faces. Ela se comparou então a uma
adolescente por ocasião do primeiro encontro.
— Obrigada — disse.
Leigh tinha absoluta certeza de que Raul não mentia. Mas nunca pudera entender a fascinação
que sentia por ela; contudo, não duvidava que fosse uma fascinação autêntica. Ele realmente a
achava linda, embora sua possante masculinidade fizesse qualquer mulher brilhar, quando ao seu
lado. Nos velhos tempos ela se sentira muito especial, mulher de muita sorte... Mas afastou o
pensamento, e sorriu.
— Você também está bonito, Raul.
"Bonito" era pouco para Raul. Ele era fantástico, incrivelmente fantástico. Sem dúvida haveria
dúzias de mulheres, na festa, ansiosas em lhe fazer elogios. Assim fora no passado. Leigh lançou
mais um olhar ao corpo esbelto do marido, de terno escuro e camisa azul que lhe adicionava brilho
ao olhar. Sim. Nessa noite sem dúvida o mel iria ao encontro das abelhas.
— Leigh, querida!
A enorme mansão estava feericamente iluminada. Raul mal estacionara o carro, a anfitriã foi ao
encontro deles.
— Janice! — Leigh abraçou a amiga, sorrindo.
Ao menos Janice não mudara. A linda ruiva nunca usara de artificialidades como a maioria das
amigas. Era impulsiva, sem tato às vezes e, aos olhos de Leigh, muito sincera.
— George disse que você viria, mas eu não acreditei — Janice falou com espontaneidade. Mas
depois, dando conta de sua imprudente observação, percebendo pelo rosto tenso de Raul, cobriu a
boca com a mão e disse depressa: — Sinto muito, Leigh, Raul... George me preveniu para não
mencionar sua saída ou sua volta... — Ela calou-se, vendo que a emenda saíra pior que o soneto. —
Quer dizer...
— Entendemos o que você quis dizer, Janice — Raul interrompeu-a, pegando Leigh pelo braço
e oferecendo o outro braço à dona da casa —; digamos, entendemos, apesar do que disse.
— Oh, Janice, tive tantas saudades suas! — Leigh confessou com calor. — Você era a única
pessoa com quem eu podia me abrir. E isso não mudou nada quanto a mim. — Após uma pausa,
Leigh indagou com cuidado: — Sempre o mesmo grupo?
Ela não perguntara a Raul se Marion estaria presente. Iria, naquela noite, se defrontar com alguns
fantasmas do passado? Ou talvez com algumas bruxas?
— Mais ou menos o mesmo grupo — Janice respondeu, entrando na casa com eles. —
Conversaremos mais tarde — disse ela, tocando no braço de Leigh num gesto de encorajamento,
antes de sumir em meio à multidão barulhenta.
As festas dos Sance eram famosas. Leigh olhou para o cenário muito conhecido seu, do passado.
Sim, era igual. As mulheres, ricamente vestidas; os homens, conquistadores como sempre.
No início de sua vida de casada ela se encantara com tudo aquilo. Mas, mesmo antes de Marion e
o marido chegarem ao local à procura de uma casa para passar as férias, ela já se havia cansado das
reuniões sociais daquele tipo. Excetuando-se Janice, George, e alguns casais mais idosos, todos eram
falsos, cheios de si, tão... cansativos. Sim, essa era a palavra certa: cansativos.
— Raul, querido... — Mão delicada, de unhas longas e vermelhas, tocou o ombro dele. Uma
loura, com um vestido branco exageradamente justo, aberto dos lados até as coxas, sorria sedutora
para Raul. — Você está tão delicioso que desperta em qualquer mulher o desejo de devorá-lo,
querido. Como teve coragem de sumir por tanto tempo? — Ela acariciou sugestivamente a face de
Raul.
— Foi difícil, Karen — ele respondeu com ironia, o que pareceu suficiente para cortar a
conversa ousada da loura, que partiu à procura de outro homem. Leigh percebeu que a mulher
corara.
Técnica semelhante Raul repetiu várias vezes durante a noite toda, com diferentes representantes
do sexo feminino.
Na realidade, Leigh reconheceu que o marido não incentivava as aproximações, mas estas
aconteciam de qualquer maneira, deixando-a sofrer de ciúmes. Com gostaria de pairar acima desse
sentimento detestável. Contudo, em especial naquela noite, cada sorriso de mulher para Raul,
embora suave, cortava-lhe o coração como faca afiada.
Seria por imaginá-lo naquele meio antes de sua volta da Inglaterra? Ou pelo fato de as mulheres
serem tão atraentes? Ou, quem sabe... porque ela o amava muito?!
— Quer dançar? — Raul envolveu-lhe a cintura com o braço, cuidadosamente afastando-a do
grupo onde ela conversava. E levou-a à pista de dança no jardim, sob as árvores.
A orquestra executava uma música romântica. Era uma noite quente, com perfume de rosas no
ar, e havia lanternas espalhadas por entre as árvores e arbustos. Raul segurou-a nos braços e
dançaram, um bem junto do outro, ele com a cabeça apoiada no topo da de Leigh.
— Você não parece estar se divertindo muito, gatinha — disse. Leigh não conseguiu responder.
O som do coração dele palpitando, grudados um no outro como dançavam, tinha o poder de
intoxicar. — Leigh? — A voz de Raul era persistente. — Não precisamos ficar, sabe, não? Podemos
sair agora. Essas festas são sempre a mesma coisa e já satisfizemos George e Janice por termos feito
o esforço de comparecer. Acho que o sacrifício foi reconhecido e apreciado.
— Você por acaso não gosta dessas reuniões? — ela perguntou em tom irónico, apreensiva por
Raul ter lido em seu olhar o desencanto pela festa, e esperando que ele não adivinhasse a principal
razão desse desencanto. Com todas aquelas mulheres perseguindo-o, ela achou que o marido não
precisava de mais alimento para o ego, o que aconteceria se confessasse seu ciúmes.
— Eu não gosto de festas.
— Não gosta?
— Não particularmente. Aliás, acho que nunca apreciei esse tipo de festa — ele falou devagar.
— Uma reunião como esta é interessante, mas muito de vez em quando, para saber das novidades e
realizar alguns negócios. Nada mais.
— Só? — Ela parou de dançar. — Raul, você adora festas, não negue. Nos velhos tempos íamos
a algo assim a cada dois ou três dias, e...
— Isso fiz para você, Leigh. — Raul falava friamente, sem emoção.
— Ora, vamos — ela disse, fitando-o atentamente para ver se o marido estava brincando. Mas
não estava. Os frios olhos azuis não demonstravam ironia. — Não espera que eu acredite nisso, não
é verdade?
— Francamente, Leigh, não me importo se acredita ou não. Pensei, realmente esperei, que
depois de todo esse tempo você estivesse mais madura para ver as coisas sob meu ponto de vista ou,
ao menos, para estar aberta a fim de me dar uma chance. Mas fechou essa sua mente — concorda?
—, para tudo que fosse referente a mim. Como pensa que me senti logo que nos casamos? Ali estava
a mulher com que sonhei toda minha vida, jovem e dolorosamente inocente. Quis lhe dar o mundo,
mostrar-lhe as coisas que não eram de seu conhecimento. Talvez tenha errado por me devotar tão
exclusivamente a você; mas, sem dúvida, paguei caro por esse pequeno erro!
— Raul! — Eles não estavam nem ao menos fingindo que dançavam. E, quando Raul ficou
consciente dos olhares que lhes lançavam, levou-a para um canto discreto do jardim e sentaram-se
num banco. — Raul, não entendo o que...
— Fique quieta, Leigh. Pensei que você me conhecesse, pensei que soubesse quanto a quero,
mas depois daquele pequeno incidente com Marion... — Ela ergueu a mão para esbofeteá-lo, porém
Raul segurou-a e prosseguiu, com os olhos brilhantes de ódio. — Ouça-me. Já ouvi todos os seus
insultos durante as últimas semanas; agora ouça-me, mulher! Depois daquele incidente... ridículo, me
dei conta de que a havia envolvido o tempo todo em algodão, conservando-a tão junto a mim que a
impedi de crescer. Não lhe dei espaço para ter ideias próprias, para fazer suas decisões acerca das
pessoas e da vida. Você precisava se encontrar, organizar seus pensamentos deturpados,
especialmente pelo fato de seu pai haver abandonado o lar.
— Não quero ouvir isso. — Raul agarrou-lhe ambos os braços com tanta força que ela achou
que teria manchas roxas no dia seguinte.
— Por isso deixei-a ir durante algum tempo, pois sabia que nosso amor era bastante forte para
aguentar a separação até o dia em que você estivesse pronta. Mas nunca ficou pronta, não é mesmo?
Quando saiu de nossa casa naquela noite, não pensou mais em nós; acertei? Não pensou sobre o
caso, não se perguntou se estava errada, não teve a menor dúvida acerca de...
— Claro que pensei em nós — ela protestou, furiosa. — Durante semanas a fio não parei de
pensar, chegando a ponto de recear ficar louca. Não podia imaginar que você tivesse feito o que fez,
em nossa própria casa. Não podia imaginar que quisesse destruir tudo... — Um soluço a obrigou a
interromper o que dizia.
— Por que não me deixou explicar? — indagou ele rudemente.
— Porque não havia nada a ser explicado. Você por certo achou que, amando-o como eu o
amava, eu passaria por cima do que houve? Não posso. Verdadeiramente, não posso.
— Não, Leigh, não achei. Mas, uma coisa vou lhe dizer, se viesse a saber que você dormira com
outro homem, eu o mataria.
— Como pode dizer isso quando...
— Quando o quê? — ele interrompeu-a ferozmente. — Não fiz nada de que possa me
envergonhar, durante os dezoito meses em que vivemos juntos.
— Você... Não quero ouvir mais coisa alguma!
Leigh levantou-se antes que Raul percebesse sua intenção e, ignorando a ordem de ficar onde
estava, ela correu para o interior da casa, não parando nem para respirar, até chegar ao vestiário,
felizmente vazio naquele instante. Sentou-se numa banqueta e encostou a cabeça quente no espelho,
incapaz de acreditar no que Raul dissera. Como pudera ele dizer que não se envergonhava de havê-la
traído? Ou melhor, que não a traíra? Quanto tempo ficou ali sentada, não saberia dizer. Mas, em sua
mente, rememorava a conversa. E, dissecando as palavras de Raul, concluiu que ela fora precipitada
em seu procedimento, que errara fugindo tão abruptamente. Estava na hora de conversarem sobre o
assunto, embora o resultado pudesse ser doloroso. Antes de abandonar o marido, deveria ter
examinado os fatos. Seria o único meio de realmente poder começar uma nova vida.
Ergueu a cabeça quando duas mulheres bem vestidas, perfumadas, pintadas em exagero,
entraram no vestiário. Enquanto refrescava o rosto com borrifos de água, ouviu a conversa das duas.
— Querida, fiquei tão surpreendida em vê-lo aqui esta noite — uma delas disse. — Ele teve uma
vida reclusa nestes últimos anos. Mas continua fantástico! Que perda, não acha, viver sozinho
quando poderia dar tudo o que tem a alguma felizarda? — As duas riram.
— Ele vive com alguém, Anna? — a outra perguntou.
— Não tenho ideia, querida. Por que pergunta? Está com más intenções?
— Anna...! Claro que não, sou uma mulher casada, Santo Deus!
— Isso nunca a segurou antes. Mas não teria chance, querida, esqueça esse homem. Há dúzias de
mulheres atrás dele, durante anos, mas não conseguem nada. Ouvi dizer que se casou uma vez,
porém o casamento não deu certo. E ele continua preso ao antigo amor. Terrivelmente romântico,
não acha? Ronald está convencido de que tudo não passou de uma manobra dele para fazer as
mulheres brigarem por sua causa, todas querendo fazer-lhe companhia na cama. Mas, pelo que
sabemos, nunca houve a menor sombra de escândalo. Oh... bem... — Anna terminou de pintar os
lábios. — A ex-mulher dele deve ser louca, é tudo o que posso dizer.
— Sem dúvida. Dizer adeus a Raul de Chevnair...
Leigh ficou transtornada. As duas saíram do vestiário, sem olhar na direção dela. "Raul"? Leigh
disse em voz alta. Ajudem-me, alguém me ajude! Ela teve a impressão de que iria morrer, de que se
afogava ali naquele ambiente perfumado. Nunca se sentira tão confusa nem tão assustada em toda
sua vida. Teria mesmo cometido um erro há cinco anos? Um colossal, monstruoso erro?
"Não!" Ela o vira! Naquela noite ela o vira com seus próprios olhos. Contudo... o que
exatamente vira? Vira Marion na cama, e Raul saindo do banheiro. Ambos nus. Fora isso que vira.
De súbito, achou que não poderia ficar ali na festa, nem mais um minuto. Se Raul não quisesse
sair, ela tomaria um táxi e voltaria à casa.
Quando entrou no salão, onde agora muitos pares dançavam, divisou Raul conversando com
algumas pessoas. Ele viu-a. Cuidadosamente, mas com determinação, tirou um par de braços
femininos que lhe envolviam o pescoço. Uma série de recordações, que Leigh afastara durante anos,
voltou-lhe à mente. Incontáveis vezes acontecera o mesmo no passado; incontáveis vezes, com frio e
silencioso autodomínio, ele se afastara das mulheres que o perseguiam; na realidade, na noite
anterior à que ela encontrara Marion e Raul juntos no quarto, Raul repelira a sexy loura exatamente
da mesma maneira como fizera minutos atrás.
Porém, na noite fatídica, áo vê-los nus no quarto, perdera a cabeça e concluíra que tudo fora
combinado anteriormente. Mas talvez, apenas talvez...
Os olhos dela e os de Raul se cruzaram, ele numa extremidade e ela na outra da sala barulhenta.
Raul parecia furioso.
— Eu gostaria de ir para casa — Leigh disse tão logo ele chegou perto. — Você não precisa ir,
naturalmente. Se prefere ficar...
— Não seja ridícula. Espere aqui um pouco — Raul ordenou friamente. — Direi a Janice que
vamos embora.
Ao vê-lo caminhar, de cabeça erguida, Leigh sentiu que chegara o momento de terem uma
decisão final. Sua recusa em ouvi-lo havia sido, sem dúvida, a gota d'água que transbordara o copo já
cheio. Fora o xeque-mate do relacionamento. Vendo-o de volta, o rosto de pedra, concluiu que o
próximo passo precisaria ser o seu.
Naturalmente que poderia voltar à Inglaterra e esquecer-se de que um dia fora uma mulher
casada. Ela sacudiu a cabeça ao absurdo do pensamento. Ou poderia ressuscitar sua dor e desolação,
pedindo-lhe que contasse tudo sobre o caso de Marion. Apenas não sabia se iria aguentar o que teria
de ouvir.
E, por acaso, tem algo a perder, Leigh?, ela se perguntou mais tarde, quando já no carro, indo
para casa. Nada poderia ser pior do que os quadros que tivera pintados na mente nas primeiras
semanas de agonia, logo após a separação.
Respirando fundo, perguntou ao marido:
— Raul, o que exatamente aconteceu naquela noite com Marion?
Um ligeiro movimento de lábios de Raul foi a única coisa que confirmou a Leigh ter sido ouvida.
Mas ele continuou com as mãos firmes no volante, os olhos na estrada.
— Por que isso agora? Venho tentando lhe contar há semanas. Por que agora? — ele enfim
perguntou.
— Não sei. Ainda quer me explicar?
Raul ficou quieto por minutos, e um misto de medo e desespero tomou conta dela.
— Sim, quero lhe explicar, Leigh. Esperei cinco anos para fazer isso. Não fui à cama com
Marion. Não a convidei para ir a meu quarto. Não tinha ideia de que ela estava lá, até sair do
banheiro. Na verdade, você a viu antes de mim. Essa é a verdade. Agora depende de você decidir
sobre nossas vidas.
Leigh levou algum tempo para absorver as palavras de Raul. E, quando isso aconteceu, sentiu um
vácuo dentro de si. A explicação dada fora a última coisa que esperara ouvir, mas a voz dele viera
carregada de inconfundível honestidade. Inconfundível? Leigh mordeu o lábio. Cuidado, mulher,
cuidado!, uma voz interior a aconselhava.
— E o que aconteceu depois que eu fui embora?
— Imediatamente após sua saída conversei com Paul sobre o assunto. E foi o fim de nossa velha
amizade. Penso não ser necessário lhe dizer, mas ele me culpou de tudo. Achou que eu seduzira sua
mulher. Levei-os ao aeroporto e, quando voltei, procurei você por toda parte, durante dois dias e
duas noites sem parar, e não a encontrei.
— Oh, Raul... Então fui eu a razão que o levou à Inglaterra, seis semanas passadas?
— Claro! Deixei-a lá o tempo máximo que pude aguentar. Aquele Jeff! Ele precisava reconhecer
o próprio lugar.
A arrogância de Raul não a irritou como no passado.
— Por que esperou tanto, Raul, se o que disse é verdade? E, se sabia onde eu estava, por que não
foi antes falar comigo?
— Já lhe disse, Leigh. Lembra-se do que me acusou na noite em que partiu?
— Não! Não me lembro de quase nada depois de ter visto você e Marion no nosso quarto, não
até eu acender a fogueira. É isso!
— Você disse que eu a considerava um animalzinho de estimação, uma boneca, meu
brinquedinho — ele respondeu com amargura.
— Eu estava magoada, Raul...
— Mas falou o que pensava, minha Leigh. Disse que tinha capacidade de se tornar uma grande
artista, que desejava ter um ideal na vida, que não podia viver à minha sombra, que valia dez das
lindas mulheres como Marion.
— Eu disse? Falei mesmo tudo isso? — Apesar da gravidade da situação, Leigh não pôde deixar
de sentir prazer ao constatar que uma quase menina de dezenove anos não fora tão idiota como suas
lembranças lhe diziam.
— Então, dei-lhe tempo, meu amor.
Deveria acreditar nele?, Leigh se perguntava. Ela queria. Oh, como queria!
Raul estacionou o carro. E, antes mesmo de desligar a chave do contato, falou com voz grave:
— Nunca houve ninguém mais em minha vida desde o dia em que a conheci. Você encheu meus
dias e minhas noites, mesmo depois de ter ido embora. Nunca mais houve ninguém em meu coração
ou em minha cama, minha gatinha inglesa. Eu te amo, Leigh. Entende isso? Você é o ar que respiro.
— Mas, Raul... — Ela não conseguia pensar, não conseguia funcionar, quando o marido a fitava
daquele jeito, o lindo rosto brilhando de desejo, e a voz profunda carregada de paixão ardente.
— Acredita em mim, querida?
— Quero acreditar. Mas não sei...
— Então deixe-me mostrar-lhe, amor.
Ele beijou-a na face, e Leigh entreabriu os lábios instintivamente, para recebê-lo. Raul acariciou-
lhe o corpo todo, acendendo chamas por onde seus dedos passavam. Não tinham feito amor desde a
noite da ilha, e Leigh ardia de desejo pelas carícias tão familiares...
— Venha! — Raul tirou-a do carro e carregou-a para o antigo quarto dos dois, que ele ainda
ocupava. Leigh tremia incontrolavelmente quando chegaram ao lado da cama, com um misto de
desejo confuso, de alegria dolorosa, e de um atordoamento estranho. Raul pareceu entender seus
temores, pois usou de uma gentileza que a emocionou.
— Você é o meu amor, meu único amor... — A voz de Raul era doce contra a pele dela e,
enquanto a despia, lentamente, foi como se fossem recém-casados e estivessem juntos pela primeira
vez. —Você é linda, tão linda...
E, quando Raul uniu-se a ela na cama, beijando-a, os corpos unidos, Leigh passou os braços em
torno do pescoço dele, e em seguida deslizou os dedos pelos cabelos de Raul, que continuou
beijando-a até fazê-la vibrar de prazer.
— Quero amar você, protegê-la, pelo resto de minha vida, amor — ele sussurrou, afagando-lhe
os cabelos de seda. — Minha fome por você me consome. Como pôde pensar que eu faria qualquer
coisa para magoá-la? Eu te adoro, minha doce gatinha.
O tempo perdeu todo o sentido naquela noite, enquanto eles se perdiam na louca paixão igual à
do passado, ambos dando e recebendo, até ficarem plenamente satisfeitos, agarrados, entrelaçados
em íntimo repouso. Adormeceram assim.
Era manhã quando Leigh acordou, lembrando-se instantaneamente de onde estava. Raul ainda
dormia a seu lado.
Durante muito tempo ela fitou-o, rememorando a conversa que tiveram.
Acreditava nele? Sim, acreditava. Acreditava quando Raul estava a seu lado, quando podia tocá-
lo. Mas isso não seria suficiente para reconstruir suas vidas. Tinha de ter certeza, absoluta certeza, e
precisava ficar sozinha para pensar, sem a sensual presença do homem que a confundia.
Ela saiu da cama com cuidado, vestiu-se depressa e foi dar um passeio.
Ouviu Colette falando na cozinha. Oscar foi ao seu encontro, tendo voltado àquela hora de suas
noitadas. Ela não queria falar com ninguém no momento.
Tinha a mente bem clara enquanto caminhava pelos gramados, sentindo o aroma de uma
infinidade de flores, sob um céu claro e brilhante. Sua decisão estava feita. Não era surpresa. Isso
acontecera no instante em que Raul lhe explicara as circunstâncias do caso Marion. Ela precisava
apenas de tempo para se reajustar, para confiar nele completamente.
Amava-o. Leigh abraçou a realidade que tentara abafar durante tanto tempo. Acreditava na vida
novamente, vivia de novo, olhava para o futuro, agora enriquecido com a presença dele, talvez de
filhos... de netos...
Acreditava no marido que dissera não ter havido mais ninguém em sua vida além dela. Nem
todos os homens eram como seu pai, e Raul não poderia ser responsável por possuir uma atração
devastadora. A conversa que tiveram no início da vida de casados voltou-lhe à mente com clareza.
Ela havia acabado de dizer que o amava, e Raul tomara-lhe a mão, beijando-a. E agradeceu-lhe.
— Obrigado? — Leigh rira.
— Por que está me agradecendo?
— Por você me amar pelo que sou internamente — ele respondera com calma. — É a única
mulher conhecida que procurou ir além de minha aparência externa e de minha riqueza. Se eu ficar
pobre amanhã, ou desfigurado, sei que me amará da mesma forma. Verdade, Leigh?
Ela fitara-o, surpreendida.
— Claro. E sabe disso!
— Sim, eu sei. — Ele sufocara-a de beijos. — Às vezes não posso acreditar que você seja real, e
por certo não a mereço.
Oh, Raul... A maravilhosa convicção de que ela estava agindo acertadamente a deixou tranquila.
Nunca mais duvidaria de Raul; nunca mais haveria motivos para isso.
O sol, uma bola enorme suspensa no céu muito azul, brilhava bem mais alto quando ela voltou
para casa. Cantarolava. Depois de toda sua desolação, das lágrimas, de dias e noites de solidão, eles
enfim haviam se encontrado de novo. Tudo não passara de um erro, um terrível engano, mas
poderiam recuperar o tempo perdido. Tinham o resto da vida para isso, afinal.
Oscar aquecia-se ao sol, sobre uma mureta perto da casa. Leigh parou um segundo a fim de
acariciá-lo.
— Está com fome, querido? — perguntou. — Vamos entrar para você comer alguma coisa.
No hall, ela se encontrou com Suzanne.
— Madame — Passou despercebida a Leigh a voz de apreensão da empregada.
— Oscar está com fome, Suzanne — disse Leigh. — Meu marido já desceu?
— Sim... Não...
Leigh ouviu então a voz de Raul vindo do escritório, grave e baixa, e uma risada de mulher.
— Suzanne? — Ela encarou a empregada, e o sangue gelou-lhe nas veias. Não, não podia ser.
Muitas mulheres tinham o mesmo timbre de voz. — Quem está na sala com o sr. de Chevnair?
— Madame... — Suzanne deu um passo à frente, com os braços estendidos, e parou. —
Madame...
— Tudo bem, Suzanne. — Ela não iria querer a ajuda da empregada, que parecia transfigurada.
Fez esforço para entrar no escritório.
A porta estava aberta e Leigh viu tudo. Ficou horrorizada. Raul tinha os olhos fixos em Marion.
Esta, na ponta dos pés, beijava-o. Eram um par perfeito, dois maravilhosos espécimes da raça
humana. Leigh parou de respirar por causa da imensa dor que sentira no peito.
Como saiu da sala, não saberia dizer. Suas pernas tremiam tanto que acreditou que não seriam
capazes de man-tê-la de pé. Passou por perto de Suzanne, ainda no hall, e saiu. Apanhou a bolsa no
lugar onde a deixara na noite da véspera, juntamente com as chaves do carro, que Raul também
deixara lá, quando a carregara para o quarto.
Oscar seguiu-a. Sem pensar uma segunda vez, Leigh pôs o gato no assento traseiro do carro,
sentou-se na direção, e saiu da vida de Raul. Definitivamente, jurou a si mesma.
Capítulo 10
— Louisa? Você está bem? — Quando Leigh saiu do pequeno banheiro nos fundos da casa, pela
terceira vez em quinze minutos, deparou com Michelle no hall, esperando por ela, com os gordos
braços cruzados sobre os fartos seios.
— Estou bem. — Leigh sorriu. — Apenas tenho sentido um pouco de náusea nas últimas
semanas. Está pior hoje. Estranho, meu estômago é geralmente bom, mas... — Ela sacudiu os
ombros.
A velha senhora ajudou-a a subir as escadas conduzindo-a ao quarto que Leigh dividia com
Oscar, e que ao mesmo tempo servia de estúdio.
— Sente-se, Louisa. — A mulher a fez sentar-se na cama, lançando um olhar a Oscar, estirado
sobre as cobertas. — Quero que me ouça um minuto, filha. — A velha senhora sentou-se ao lado de
Leigh. — Você nos disse, quando chegou aqui, que seu marido havia morrido recentemente. Foi
isso? — Leigh fez um sinal afirmativo com a cabeça. — E que precisava ter umas férias para se
recuperar. Quanto tempo...? Quanto tempo viveu sozinha, sem seu marido?
— Quanto tempo? — Leigh fitou a mulher, aterrada. Ao fugir de casa, há seis semanas, ela
pretendera ir para o interior; mas perdera-se na escuridão da noite, incapaz de se concentrar no que
quer que fosse; enxergava em sua frente apenas a imagem de Raul e Marion juntos. Fora ridículo sair
de casa daquele jeito, ela reconhecia agora, indo parar numa aldeia de pescadores, tendo apenas
Oscar como companhia.
— Quanto tempo? Não muito tempo..., apenas algumas semanas — Leigh enfim respondeu.
Ela olhava para a mulher, cujo rosto inexpressivo escondia um coração de ouro.
Michelle estava sentada com o marido, Henri, e com outros pescadores locais, numa praça da
aldeia, bebendo o último copo de vinho antes de ir para a cama, quando Leigh chegara, indagando se
conheciam um lugar onde ela poderia passar a noite.
Os homens sacudiram a cabeça, sussurrando qualquer coisa entre si, por certo criticando os
caprichos da nova geração.
— Não a esta hora da noite — um deles dissera, com ar reprovador.
Porém Michelle fitara o marido sorrindo, e sugerira:
— Temos um quarto a mais. Por uma noite, não há problema, e é muito tarde agora para você
encontrar abrigo.
Uma noite se transformara em muitas noites, e o casal idoso se satisfizera com a explicação de
Leigh de que a morte do marido, e sua necessidade de sair da casa durante algum tempo, a obrigara a
dar aquele passo.
Michelle não se encantara muito com Oscar. Mas o gato adorara estar na casa de um pescador,
roubando pedaços de peixe sempre que possível.
Leigh sentira-se meio perdida, vivendo cada dia achando que seria o último na casa de Henri e
Michelle, e dormindo à noite com Oscar a seus pés. O gato parecia muito contente por ter a amada
dona só para si. E Leigh abençoara o impulso que a fizera trazer Oscar consigo. O animal
concorrera para conservar sua mente sã.
— Louisa, ouça-me! — Segurando-lhe as mãos, Michelle perguntava: — Você está esperando
um filho?
— Um filho?
Leigh fitou a velha senhora com olhar vago. Ela lhe dera um nome falso na chegada,
apresentara-se como Louisa Chambers. E, acabado o dinheiro, começara a pintar a fim de pagar as
dívidas. Surpreendera-se ao ver como suas pinturas eram apreciadas pelos turistas que visitavam a
pequena aldeia de pescadores. Mas... um filho?
— Michelle...
— Seu marido morreu, querida, mas lhe deixou algo. Terá um filho dele para confortar sua
viuvez, sua solidão.
— Não pode ser!
Pensando bem, Leigh lembrou-se de que não prestara muita atenção em seu ciclo menstrual,
devido aos problemas que tivera e que enchiam sua mente. E, para culminar, o maior dos problemas,
o choque de ter visto Marion com o marido mais uma vez. Porém..., um filho? Devia ter sido
concebido naquele dia do piquenique na floresta. Seriam, então, quase três meses de gravidez.
— Não está contente, Louisa?
Leigh preocupou-se com Michelle, que a observava atentamente, e deu-se conta de que precisaria
lhe contar toda a verdade. Agora não poderia mais esconder.
E contou, incluindo seu verdadeiro nome. Ao terminar, Michelle ficou em silêncio durante longo
tempo, e depois aconselhou-a:
— Esse homem, seu marido, precisa saber. Ouviu?
— Não, Michelle. Por favor, não. Se me prometer guardar segredo, contarei o resto da história
agora mesmo. Deveria ter feito isso há muito, de qualquer maneira. Abusei da confiança de vocês.
— Leigh, Leigh... — Michelle segurou-lhe ambas as mãos. — Tem minha palavra, filha, de que
guardarei segredo. E você continuará aqui por enquanto. Não está em condições de ir a parte
alguma. Mais tarde pensará melhor, e decidiremos sobre o que fazer. Antes de tudo, precisa
consultar um médico. Entende, não? E tem de comer, minha filha, está tão magra! — Magra?
Depois que Michelle saiu do quarto, Leigh olhou-se no espelho. De fato, estava esquelética.
Outra coisa em que não prestara atenção, ao seu aspecto físico. Não comera quase nada nos últimos
dias, imaginando que a náusea que se intensificava a cada dia fosse em razão do stress por que
passara, e ainda passava. Pela primeira vez na vida sentia-se assim! Mas, um filho! Contudo, à medida
que a ideia adquiria forma, uma alegria imensa ocupava o lugar do choque e da surpresa. Um filho de
Raul! Instintivamente ela colocou a mão sobre ventre. Deveria ter admitido essa possibilidade, mas
evitara pensar no caso. Todavia... seu filho nunca teria um pai! Em compensação teria uma mãe que
o amaria por dois, ela arguia mentalmente. O casamento com Raul estava terminado, total e
irrevogavelmente terminado. Isso apesar de nunca poder deixar de amá-lo. Teria o filho de ambos.
Seria interessante contar a ele, apesar de tudo? Não ainda. Talvez nunca!
Três semanas mais tarde, por insistência de Michelle mais do que por qualquer outro motivo,
Leigh foi com a velha senhora ao médico na aldeia vizinha, guiando o carro de Raul cuidadosamente.
Não dirigira mais desde o dia de sua chegada. Sofreu ao pensar em Raul, por causa do carro, mas a
alegria de ter uma nova vida dentro de si povoava-lhe a mente com planos e ideias.
Quando saiu da sala de consultas, deparou com Michelle fitando-a ansiosamente.
— Então, Leigh? — Michelle perguntou. — O que há?
— O médico acha que são gémeos. Se meus cálculos estiverem certos, não há dúvida. São
gémeos, ou darei à luz um elefante.
— Leigh, você precisa contar tudo a seu marido. — Michelle parecia aflita. — Se não por
motivos emocionais, ao menos para que ele providencie um lugar para você viver com seus filhos,
e...
— Não, Michelle, tudo vai dar certo. Dê-me apenas algum tempo.
— Estou preocupada com você, minha filha. Como vai conseguir as coisas de que necessita?
— Conseguirei bem melhor do que se tornar a ver Raul. — Uma tristeza profunda anuviou os
olhos de Leigh, ao pronunciar o nome do marido. — Por favor, Michelle, chega!
O trajeto de volta à casa foi feito em silêncio. Leigh dirigiu-se imediatamente ao próprio quarto,
e passou o resto do dia pintando. Eram aquarelas inspiradas em paisagens marítimas.
Ao cair da tarde, resolveu tomar um banho. Estava exausta.
O dia fora quente, um dos últimos do verão. As noites, mais frescas, anunciavam o início do
outono. Ela vestiu uma camisola de algodão que Michelle lhe emprestara, escovou os cabelos e
alimentou Oscar com os restos de peixe que Michelle guardara para ele. Em seguida sentou-se ao
lado da janela para apreciar o anoitecer. O céu foi ficando escuro e sombras enchiam o pequeno
quarto.
Durante as últimas semanas, Leigh treinara a mente para não pensar em Raul. Era o único meio
de se afastar dele, de não sonhar com ele, de não ouvir-lhe a voz, e... de não sentir tremores no
corpo.
A porta se abriu de repente. E, quando ela virou-se para ver quem era, duas imagens a deixaram
perplexa. Raul, enorme e com expressão furiosa, no batente da porta, e, atrás dele, um vulto
pequeno, com ar apreensivo, que sacudia os braços nervosamente. Michelle.
— Raul...?! — Leigh exclamou, enquanto Michelle sumia de vista.
— Quem mais você esperava? Procurei-a por toda a França durante dois meses, mulher! Que
jogo é esse seu agora? Eu não sabia se estava viva ou morta. Quando Suzanne me contou que você
saíra de casa estonteada, parecendo que ia desmaiar, eu... Diabos, Leigh! — Ele praguejou qualquer
outra coisa em francês. — Como pôde me deixar assim?
Leigh ficou estática, não sabia o que dizer.
— Bem? O que me diz? — Raul acrescentou.
Ela levantou-se e deu alguns passos pelo quarto, como uma autômata, os olhos muito abertos e
o rosto pálido como cera. De súbito sentiu uma forte tontura que ia aumentando aos poucos, e caiu
no chão, com um gemido.
Lutou para voltar a si durante algum tempo, mas logo viu-se envolvida em completa escuridão.
Raul chamou-a pelo nome, desesperado. Quando ela recuperou a consciência, estava deitada na
cama, com as mãos nas de Raul, e ele ajoelhado a seu lado.
— Leigh? — Ela nunca o vira assim, durante todo o tempo em que o conhecera. — Leigh, você
pode me ouvir? Fale alguma coisa, querida. — As mãos de Raul tremiam violentamente. E a angústia
expressa nos olhos dele forçaram-na a falar.
— Raul? — Leigh tentou se mover, mas era como se tivesse chumbo nos membros. — Como
você soube que...?
— Michelle — ele respondeu antes que ela terminasse. Depois carregou-a no colo, sentando-se
na beirada da cama. Puxou a colcha e cobriu-lhe o corpo trémulo. Com um suspiro de alívio,
perguntou: — Como pôde fazer isso comigo? Fiquei quase louco.
— E como eu poderia... — Agora a raiva lhe dava forças para lutar contra os braços que a
seguravam.
— Não, por favor. — Raul encarou-a, e Leigh viu tanta tristeza nos olhos dele, como nunca vira
em nenhum ser humano. E isso destruiu todo seu ódio como um choque elétrico. — Michelle
entrou em contato comigo hoje. Descobriu meu endereço pela chapa do carro. A polícia a procurava
há semanas já. Ela me contou que você estava aqui, mas eu não sabia que... — Ele colocou a mão no
ventre da mulher. — Quando Suzanne a viu saindo de casa com Oscar, concluí que você não partira
da França, por causa dele. Imaginei que não arriscasse a quarentena.
— E Marion? — Leigh perguntou, hesitante. Receava a resposta.
Sentiu de repente uma náusea violenta e pediu a Deus que nada acontecesse naquele instante,
não naquele instante.
— Você me viu com Marion? Imaginei, quando Suzanne me contou que saíra de casa como
um...
— Com licença, Raul, preciso ir ao banheiro... — ela disse e pulou do colo dele. Desceu as
escadas correndo para ir ao banheiro nos fundos da casa. Ficou embaraçada ao perceber que o
marido a seguia. Ao sair do banheiro, fraca e cansada, ia caindo no chão quando Raul a carregou de
volta ao quarto. De lá ele chamou Michelle, gritando.
— Isso é normal? — perguntou, enquanto punha Leigh na cama, preocupado. — Ela está muito
magra. É normal?
— Mais do que normal — Leigh respondeu com voz fraca, da cama. — Por acaso, há gémeos
em sua família, Raul?
— Gémeos? — ele repetiu, olhando para o ventre dilatado da mulher, com uma mistura de
medo e surpresa. — Gémeos? — Leigh pensou que nunca fosse vê-lo tão descontrolado. Fitou-a
como se se tratasse da coisa mais surpreendente que já vira. — Tem certeza? — Raul insistiu,
entendendo tudo.
— Mais ou menos. — Ela tentava ser natural, mas sua voz trémula destruiu o efeito desejado. —
Gémeos ou...
— Ou o quê? — Raul interrompeu-a com firmeza.
— Três ou quatro.
— Não brinque! — Assim que Michelle saiu do quarto, ele fechou a porta e ajoelhou-se perto da
cama. — Ouça-me — disse —, quando você me viu com Marion... — Leigh levantou a mão para
protestar, mas Raul segurou-a e tampou-lhe a boca. — Quando você me viu com Marion, ela fora à
nossa casa para falar com você e explicar-lhe tudo.
— Explicar?
— Eu não a vira, tampouco Paul, desde o dia em que os levei ao aeroporto. Mas, pelo visto, eles
acabaram comprando uma casa em La Rochelle. Marion soube, através de uma amiga comum, que
você havia voltado, e quis pedir desculpas a nós dois, em especial a você, e dizer que o que sentira
por mim fora apenas um entusiasmo de momento, mas que amava Paul. O marido ficara do lado
dela, claro, mesmo depois de saber a verdade contada pela própria Marion. Uma "loucura de verão",
foi como Marion descreveu o incidente. — Raul encarava Leigh com fome no olhar, difícil de
esconder. — Marion queria contar-lhe a verdade pessoalmente, pois vivera todo esse tempo
atormentada' pelo remorso por ter destruído nosso casamento.
— Bom — Leigh respondeu, mas não muito convicta quanto à veracidade dos fatos. Não
ousava acreditar. Simplesmente não ousava.
— Em que momento você nos viu? — Raul perguntou, receoso.
— No instante em que ela o beijava. — Leigh não tirou os olhos do marido, observando-lhe a
expressão.
— Foi o beijo de uma amiga, um gesto, um agradecimento por eu ter consentido em vê-la —
disse Raul. — Marion achou que não seria recebida.
Leigh olhava para o marido, em silêncio. Seu coração começou a disparar. Não de novo,
pensava. Não poderia passar por tudo aquilo de novo.
— Eu te amo, Leigh. Não existe mulher alguma no mundo para mim, além de você. Não me
interesso por ninguém mais, ninguém mais. Não posso lhe explicar adequadamente como me sinto,
e acho que nunca poderei. Mas, sem você, não há nada para mim. A única coisa que me conservou
vivo durante todos esses anos foi sua imagem esculpida em minha mente e no meu jardim. — Ele
sorriu. — Passei horas olhando para aquele estúpido pedaço de mármore.
— Para o quê? — Leigh encarou-o, estupefata.
— Para a estátua. Deve ter percebido. A estátua. Não sabia que era você?
— Eu? — Leigh sentou-se vagarosamente na cama. A estátua, a linda estátua, erigida no jardim,
como uma fénix renascendo das cinzas no lugar onde ela queimara suas ligações com aquele homem.
— É linda...
— Mas não se compara com o original — ele balbuciou com voz rouca.
— Eu não sou bonita, Raul — Leigh insistiu, recusando reconhecer que algo ameaçava explodir
dentro de si, transformando sua vida num paraíso. — E nunca fui bonita. Mas agora... — Ela
colocou a mão sobre o ventre, onde batiam dois corações infantis.
Raul não falou, porém as lágrimas que lhe corriam pelo rosto diziam tudo. E, naquele segundo,
Leigh entendeu. Raul era dela, total e completamente dela, e para toda a eternidade. Aliás, sempre
fora. E, quando ela se atirou nos braços do marido, todas as suas dúvidas, todos os seus pavores do
passado sumiram, como por encanto.
— Ame-me — Leigh sussurrou junto ao ouvido dele, enquanto segurava-lhe o rosto úmido com
ambas as mãos, beijando-o. — Agora!
— Mas... e os bebês...? — Raul apontou para o ventre de Leigh. Contudo, logo depois
pressionou seu corpo contra o dela; separava-os apenas o tecido fino da camisola de algodão.
— Os bebês têm de se acostumar desde já que têm um papai e uma mamãe terrivelmente
apaixonados — Leigh murmurou. — Portanto, precisam se adaptar a isso desde o início.
E assim foi.

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