Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
território usado1
Introdução
Este trabalho foi escrito com base na dissertação “Cultura e política no Hip Hop na
cidade de São Paulo: redes, sociabilidades e territórios” (Queiroz, 2019) e procura focar em um
problema principal: quais são as brechas encontradas na atuação político-cultural da rede Fórum
Hip Hop MSP ao contribuir para os usos do território pelo movimento Hip Hop na cidade de
São Paulo?
Essa pergunta foi uma das questões levantadas na dissertação citada, que, por sua vez,
procurou compreender as ações do Fórum Hip Hop com o uso de três grandes categorias (redes,
sociabilidades e territórios [usados]) como uma forma de pesquisar as relações entre cultura e
política presentes no movimento Hip Hop de São Paulo. O movimento Hip Hop, múltiplo e
diverso, foi estudado com enfoque nas narrativas dessa rede cultural para articular as suas
experiências com as categorias de análise que foram levantadas durante o trabalho de campo.
A pesquisa observou ações culturais do Fórum nos territórios periféricos paulistanos
(Cidade Tiradentes, Heliópolis, Nova Cachoeirinha), nos territórios centrais (centro expandido)
e nos mais institucionalizados (Câmara Municipal, Galerias, Centros Culturais, Centros
Esportivos Unificados – CEUs). Foram realizadas cinco entrevistas com três sujeitos de
pesquisa: membros atuantes da rede, artistas que se relacionaram com o coletivo de maneira
menos frequente e artistas que atuam junto ao Fórum de maneira esporádica.
Entrevistas em profundidade
Elemento do
Sigla Zona Bairro Sujeito Gênero Idade
Hip Hop
Membro
R.P. C (Centro) Brás Rapper e MC atuante Masculino 43
Relação menos
B.S. ZL (Zona Leste) Cidade Tiradentes DJ frequente Feminino 35
1
Artigo apresentando no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT17 – Estudos culturais: representações, mídias e
artes.
Ipiranga (Ponte Membro
G. ZS (Zona Sul) Rapper e MC atuante Masculino 37
Preta)
Relação
A.S. ZL (Zona Leste) São Miguel Graffiteira esporádica Feminino 30
B-girl Relação menos
Cidade Tiradentes
N. ZL (Zona Leste) (Breaking- frequente Feminino 20
(Barro Branco)
girl)
Para este trabalho, procura-se tratar das seguintes questões mais específicas: quais as
brechas que o Fórum Hip Hop encontra para propor e garantir políticas públicas para a
juventude do Hip Hop de São Paulo, sem se misturar ao Estado, mantendo distâncias
estratégicas em relação à ele? Pode-se pensar que as demandas de hiphoppers ao Estado se
relaciona ao engessamento nas práticas estéticas e política desse movimento cultural? Como se
negociar e resistir ao Estado que reproduz o genocídio da juventude negra, pobre e periférica,
principal pauta de combate do Fórum?
A rede cultural age nas fronteiras ambíguas para encontrar as brechas de atuação que
não reproduza as relações de poder vigentes. Entre a institucionalização e a autonomia, a falta
de recurso e as possibilidades de fomento estatal, as parcerias com coletivos, movimentos
sociais e organizações não-governamentais, e a negociação e a resistência, o Fórum estabelece
múltiplas frentes de ação para produzir uma diversidade de práticas político-culturais dentro e
fora do movimento Hip Hop com o objetivo principal de combater o genocídio.
Na primeira seção, o Fórum Hip Hop será apresentado antes de trabalhar as questões
propostas na introdução.
A rede possui relação orgânica com os territórios em que atua, marca histórica do
próprio movimento Hip Hop e de coletivos juvenis de outras modalidades culturais que são e/
ou atuam nas periferias de São Paulo. Suas ações começaram em 2005, após reunião entre
hiphoppers e a Coordenadoria de Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Cidadania, que procurava encontrar saídas conjuntas para a baixa quantidade de políticas
públicas para a juventude, em especial para a juventude periférica e produtora do movimento
Hip Hop.
A Coordenadoria chamou um fórum para construir, junto ao movimento cultural,
dinâmicas de criação e execução de políticas públicas para a juventude periférica. Aos poucos,
a juventude do Hip Hop que passara a frequentar os fóruns de discussão sobre políticas públicas
perceberam o engessamento das questões ali tratadas e resolveram agir por conta própria.
Somaram-se alguns hiphoppers e passaram a atuar sob a nomenclatura Fórum Hip Hop
Município de São Paulo (MSP). Para focar os objetivos das políticas públicas que seriam
desenvolvidas para a juventude periférica do movimento Hip Hop, foram delineados oito eixos
temáticos de atuação. São eles:
Por meio desses oito eixos, o Fórum passou a pressionar os poderes públicos a inserir o
Hip Hop no orçamento municipal e no calendário de eventos oficiais da cidade. Com a criação
de experiência na atuação político-cultural, o Fórum passou a ficar conhecido pela atuação de
seus membros mais conhecidos e parcerias passaram a ser desenvolvidas com diversos sujeitos
de fora e de dentro do movimento Hip Hop: coletivos juvenis de produção cultural, partidos de
esquerda, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, etc.
As ações político-culturais são estabelecidas nas cinco zonas da cidade, por se preocupar
com a cidade de São Paulo como território de ação, e passou a criar alianças com esses sujeitos,
de forma que criam, ao mesmo tempo, redes de sociabilidade2. Coletivos juvenis/ periféricos
menores se articulam de maneira continuada ou temporária junto ao Fórum, participando muitas
vezes da formação identitária desses mesmos coletivos.
A forma de atuação por meio de coletivos, que passaram a se expandir a partir dos anos
90 para alguns autores (D’Andrea, 2013) e a partir dos anos 2000 para outros (Maia, 2014),
2
Sociabilidade é entendida neste trabalho conforme a compreensão de Simmel (2006), de que a criação de
sociabilidade produz uma instância social relativamente autônoma, na qual os indivíduos que ali compartilham
relações se sentem suspensos, mesmo que de forma efêmera, das relações sociais mais gerais. Sociabilidade se
relaciona com o movimento Hip Hop também pelo aspecto lúdico que trazido pelo conceito de Simmel. A
ludicidade é um dos valores históricos desse movimento, conforme os significados delineados pela Zulu Nation,
organização reconhecida internacionalmente como uma primeiras organizações de Hip Hop. Esses valores foram
delineados por um membro do Fórum em entrevista concedida: peace, love, unity and having fun [paz, amor,
unidade e diversão, tradução do autor]. Aqui se trata de uma ampliação conceitual: o Fórum produz redes de
sociabilidade.
pode ser definido como uma atuação mais fluída entre sujeitos que se relacionam por fazerem
parte dos mesmos círculos sociais e por se alinharem ideologicamente. Os membros de
determinado grupo podem sair e entrar em outro e o mesmo sujeito pode estar em diversos
grupos ao mesmo tempo (Ibidem, p. 77). O Fórum, por ser formado por diversos coletivos
menores, cria relações com sujeitos que não são propriamente do movimento Hip Hop e atua
nas diferentes zonas da cidade de São Paulo, compreende-se o Fórum como uma rede cultural.
Essa denominação se aproxima da compreensão que Maia (Ibidem) possui de rede, como um
“coletivo de coletivos”.
Uma rede, nesse sentido, é formada por outros coletivos que escolhem atuar ora de
forma eventual, ora de forma continuada junto a um coletivo maior, que pode possuir maior
força política para pressionar os poderes públicos na formulação e execução de políticas
públicas, por exemplo. A rede pode apresentar certas fraquezas estruturais, como a relacionada
ao cotidiano de produtores culturais, que podem possuir rotinas diversas quanto às necessidades
de trabalho. Muitos(as) escolhem atuar junto aos coletivos de pertença, que possuem relações
mais orgânicas com os territórios onde vivem.
O Fórum Hip Hop passa por situações similares. Nas reuniões semanais, acompanhadas
durante a pesquisa, ações político-culturais mais localizadas, como a participação artística em
um evento com movimento do povo de rua, formação cultural em biblioteca na zona norte, ou
planejamento de um curso de formação popular para combater o genocídio da população negra,
pobre e periférica, financiadas ou não por edital ou fomento conquistado pela rede, são
levantadas para que os(as) hiphoppers presentes naquela reunião possam participar. Ao mesmo
tempo, o Fórum frequenta as reuniões do orçamento geral e específico (da cultura) da cidade
de São Paulo, o que também aproxima seus(suas) principais lideranças a vereadores(as)
ideologicamente mais próximos(as) da centro-esquerda e esquerda.
Apesar de atuar por vezes como um coletivo próprio, contrariando o conceito de um
fórum aberto em rede, sem representação definida, a participação na política institucional visa
à inclusão das políticas públicas de Hip Hop nas pautas da Câmara, como diz R.P, MC
entrevistado e reconhecido como uma das principais lideranças da rede, que vive no centro de
São Paulo:
Nossas ações políticas são mais voltadas para o movimento Hip Hop, as políticas do
Hip Hop da cidade de São Paulo. Então a gente discute. Então a gente não vai em
nenhum momento dialogar com o Estado, com o Parlamento, questões nossas [...] a
gente tenta fazer as coisas mais sérias possíveis, dialogar a política para todos, para a
coletividade (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).
As reuniões semanais da rede ocorrem no centro da cidade às quintas-feiras, apesar de
contribuir para a produção de um movimento cultural nascido nas periferias. A periferização
do centro (Moya, 2011), figuração urbana que São Paulo adotou a partir da década 1990,
apresenta bolsões de urbanização periférica nos lugares historicamente privilegiados da cidade
e contribui para compreender as razões pelas quais a rede se estabelece no território
geograficamente central da cidade. Proliferou-se prédios abandonados e degradados e cortiços,
nos quais, em um deles, ocupado pela União Nacional de Assistência à Moradia (UNAM), o
Fórum realiza suas reuniões, em troca de estabelecer algumas agendas de formação cultural
para os(as) moradores(as) da ocupação.
Além das reuniões próprias da rede, parte significativa da atuação se dá também na
Câmara Municipal, como mencionado acima, que realiza as reuniões de orçamento no meio da
semana em horários de trabalho. Hiphoppers que estabelecem relações com o Fórum foram
ouvidos em entrevista em profundidade e foi relatado que a participação nas reuniões da
Câmara, apesar de serem importantes, apresenta barreiras para a atuação ampla de membros do
movimento cultural Hip Hop de uma forma geral.
B.S., DJ e ativista cultural da Cidade Tiradentes, relata que, além da rotina de trabalho
de muitos(as) hiphoppers, as mulheres do Hip Hop são ainda mais prejudicadas
[...] visualmente as pessoas me veem do Fórum e eu não falo que eu não sou, porque
meu coletivo está presente, mas eu não tenho conseguido participar, porque é isso:
como que é que eu venho de quinta feira, toda quinta feira para o centro? Uma pessoa
que está desempregada, tem filha, que tem uma série de coisas? E isso os manos não
entendem, os caras não entendem [...]. Eu vejo não só eu, mas como muitas mulheres
que gostariam de estar discutindo Hip Hop de uma forma mais política, no sentido de
pensar política pública, como cultura, porque o Hip Hop tá colocado como uma
política de cultura, mas não consegue. Então você vê que majoritariamente nos
espaços que discutem são os homens (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).
[...] recorro a uma [...] teoria das brechas, segundo a qual todo muro, por mais maciço
que pareça, tem sempre alguma brecha que alguém pode aumentar para derrubá-lo.
Para que investigar aquilo em relação que já sei que não posso fazer nada? Penso que
boa parte do fracasso da maior parte das esquerdas vem do fato de que só inoculavam
a desesperança (Martin-Barbero, 2009).
Políticas públicas de cultura é de difícil acesso, porque tem várias questões ali, que a
gente não pode afirmar, mas que simplesmente acontecem, que é privilegiar quem é
mais próximo. Mas é o jogo político também. E é muito difícil você consertar isso.
Tem uma política pública para o Hip Hop da cidade de São Paulo que chama Semana
do Hip Hop. E no texto da lei da Semana do Hip Hop que os movimentos sociais e o
movimento Hip Hop elabora o evento, e o governo só executa. Até isso tá difícil,
porque o Estado, ou seja, a Prefeitura de São Paulo, a Secretaria de Cultura de São
Paulo, é mais fácil eles fazerem o jeito deles, sem precisar ouvir ninguém, sem
precisar acatar. Mês do Hip Hop, porque expandiu, o movimento se reuni, rola uma
chamada geral que cola quem for, assim como no [...] Fórum Hip Hop MSP, cola
quem quiser, quem for do Hip Hop, e a gente faz junto a parada. Já tá rolando há
vários anos já. Desde 2007. É uma política pública importante, porque serve como
uma mostra de Hip Hop na cidade inteira (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).
Como citado por G., a garantia de uma execução democrática do evento por parte da
Secretaria de Cultura demanda vontade política do governo eleito naquele determinado ano. Ao
menos dois acontecimentos importantes, relatados e analisados com mais detalhes em Queiroz
(2019), foram representativos desse conflito. O governo João Dória/ Bruno Covas, ainda em
curso, desarticulou o movimento por meio da “cadeira do Hip Hop”, criada pela Secretaria
como uma demanda do movimento. Além dessa desarticulação, o Mês do Hip Hop 2019 foi
reduzido a uma seleção restrita de artistas para participarem de um “chamamento público”,
sendo que a organização e execução ficam a cargo do movimento Hip Hop. A Secretaria deve
meramente colaborar com o movimento para realização da política pública3.
As incertezas quanto à efetivação das políticas públicas de Hip Hop representam o nível
de reconhecimento que o Hip Hop possui enquanto movimento cultural estabelecido na cidade
de São Paulo. É certo que, na cena de cultura de periferia (Tommasi, 2013), o movimento
cultural é visto como constituidor de uma hegemonia dentro desse cenário, principalmente no
que diz respeito à inserção em políticas públicas, inserção massiva e midiática e presença na
produção acadêmica nos últimos anos (Borelli et al., 2012). A hegemonia, entendida como um
processo incerto e de dominação incompleta, que abre frestas para emergência de novos atores
(Williams, 2000), no campo específico da cultura de periferia, expressa, no entanto, uma força
relativamente frágil.
3
Lei municipal nº 14.485/2007, inciso LIX do artigo 7º. Disponível em: <
http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-20000-de-19-de-julho-de-2007>. Acesso em 14 nov. 2019.
A voluntariedade da Secretaria de Cultura para alterar as regras de organização do
evento – mesmo com as denúncias no Ministério Público realizadas pelo Fórum –, mostra como
a hegemonia é efêmera e constituída principalmente em momentos de estabilidade nos
investimentos públicos culturais. A constante instabilidade nas relações com o Estado faz esvair
a possibilidade de uma hegemonia continuada, na qual os(as) hiphoppers parecem emitir ruídos
(Rancière, 1996). Ações como essa, própria do liberalismo, procura expulsar o “político”,
constituído pela dimensão conflituosa e plural da vida social (Mouffe, 2015).
A participação relativamente mais frequente do movimento Hip Hop em políticas
públicas podem indicar ainda dois processos: engessamento estético e político do movimento,
que acompanhou as políticas de reconhecimento social (Macedo, 2016) e ações conservadoras
do movimento Hip Hop; e a percepção, por parte do Estado neoliberal, de que a cultura e, mais
especificamente, o Hip Hop pode solucionar os problemas da crescente desigualdade
econômica e social, provocados pelo neoliberalismo (Yúdice, 2004).
Neste último, Yúdice (Ibidem) argumenta que esse uso da cultura, por parte das
instituições privadas e públicas, passou a ser uma tendência dos países que sofrem com as
consequências sociais devastadoras das políticas neoliberais, e tentam atenuar essas
consequências com o uso conveniente da cultura. A cultura atua no tecido social danificado
pelo neoliberalismo e é usada como um curativo para o crescimento das desigualdades
econômicas, a criminalidade e a falta de mecanismos de participação política. O discurso
neoliberal de corte de gastos é, para o autor, paradoxalmente o que significa a permanência da
cultura nos orçamentos públicos e demais possibilidades de investimento privado.
O engessamento das práticas estéticas e políticas e o conservadorismo do Hip Hop estão
associados. A tendência à transformação do movimento, que presencia o surgimento de novos
sujeitos, novas formas e conteúdos artísticos, faz com que alguns membros do movimento
procurem “resgatar as origens”, “resgatar os jovens do funk” e de “quando o Hip Hop era
combatente”. Em uma reunião semanal do Fórum, os hiphoppers que ali frequentavam
relataram que, nas eleições de 2018, viram parceiros do movimento que votaram no candidato
de extrema direita, vertente política que historicamente persegue grupos considerados, nas
relações de poder, minoritários.
As práticas do movimento, por outro lado, não demonstram uma renovação ampla de
uma modalidade cultural que possuía capilaridade entre as juventudes periféricas da década de
1990 e 2000. As mudanças de consumo musical das juventudes, que passaram do rap para o
funk, por exemplo, demonstram o que Macedo (2016) chamou de esgotamento estético. A
criminalização antes feita pelo Hip Hop, de que se tratava de uma cultura “de bandido”
(Teperman, 2015), passa a ser feita ao funk, visto a constante tentativa de deputados estaduais
e federais entrarem com ações de criminalização do funk.
O Fórum Hip Hop emerge, nesse contexto de contradições, como uma rede que procura
se apropriar de todas as possibilidades que se abriram desde o surgimento do movimento Hip
Hop. O Fórum procura manter os significados que fizeram com que o Hip Hop surgisse,
principalmente o de oferecer aos corpos marginalizados modos de identificação e de produção
subjetiva, que indicam alternativas de vida. As políticas públicas podem ser um dos
mecanismos para que as juventudes negras, pobres e periféricas saiam das estatísticas
(Racionais MC’s, 1997) e se tornem artistas e/ ou produtores culturais.
Por meio das ações junto ao Estado, mas sem se misturar a ele, sem entrar “nos
esquemas”, como R.P. menciona em entrevista, há possibilidades de conseguir recursos para
intervenção nos territórios periféricos. A rede é um espaço aberto de discussão, mas ao mesmo
tempo desenvolve ações próprias e independentes, junto aos membros que mais frequentam as
demais práticas da rede – membros que podem alternar em um determinado período. A relação
entre um fórum e um coletivo independente, com imagem própria, é uma relação criticada por
B.S., que identifica que “o Fórum é um espaço, não é um coletivo, é um espaço aberto e a ideia
é que outros coletivos participassem”, enquanto R.P. menciona a importância da realização de
eventos junto à rede:
Você vai fazer evento nos bairros e tal, para não ficar no discurso. Muita gente fala
que é de periferia, mas os caras nem sabem o que é [...]. As pessoas estão lá, você está
dando acesso às informações qualificadas, porque são debates qualificados. E aí você
faz os entretenimento, as festas com os artistas. É que a gente não consegue dar
continuidade né, faz uma vez e tal, você vai fazendo. Não está formado em lugar só.
Mas o impacto é daquele momento, sempre é receptivo. É dialogar com a gente
mesmo (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).
Para manter a distância relativa das ações exclusivamente proporcionadas pelo Estado 4
e agir cultural e politicamente nos diferentes territórios da cidade, o Fórum procura articular
4
Nessas ações, desconsidero a “cultura dos editais” para se produzir cultura no Brasil como uma forma de ação
exclusivamente estatal. Uma questão estrutural nas políticas culturais brasileiras é justamente os entraves para
financiamento não só de eventos localizados, mas de processos culturais e artísticos. As leis de incentivo, como
Lei Rouanet e Lei do Audiovisual, conhecidas também como “leis do mecenato” (Porto, 2009), são as fontes de
financiamento da cultura que movimentam maiores recursos e que dependem da relação relativamente próxima
entre artistas e produtores culturais e empresas de médio e grande porte. Essa necessidade por uma relação mais
aproximada acaba excluindo àquelas produções que as empresas não gostariam de financiar. Os grupos de
produção cultural, no entanto, possuem demanda por recursos públicos. Em São Paulo vemos duas conquistas,
além das específicas do Hip Hop, para o movimento cultural das periferias de um modo geral: Lei de Fomento à
Cultura da Periferia (criada em 2016, com participação do Fórum Hip Hop em protestos na rua e pressão na
Câmara) e o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI – criado em 2003), que procuram dar mais
autonomia para grupos atuarem e executarem os recursos.
diversos coletivos, que possuem relações com seus territórios de pertença. Nessa articulação,
seja por meio de recursos vindos de editais, seja por meio da participação mais autônoma de
seus principais membros e participantes, o Fórum aciona os coletivos que possuem relações
mais próximas com a rede para realizar algum evento ou atividade cultural em determinado
território.
No evento Hip Hop Politicamente, realizado em abril de 2018 no CEU Heliópolis, como
um dos eventos da agenda do Fomento à Cultura de Periferia, o Fórum pretendia usar um espaço
do CEU para realizar oficinas dos quatro elementos do Hip Hop com adolescentes e jovens da
região. Um dos entrevistados, G., mora em um bairro periférico do Sacomã, vizinho à
Heliópolis. Outros coletivos e artistas foram chamados para participar do evento: A.S.,
graffiteira, entrevistada por essa pesquisa, participou do evento; grupo Pânico Brutal, integrante
do coletivo Perifatividade; Alma Sobrevivente, dupla de MCs, que G. faz parte; Nando,
membro do Coletivo Força Ativa da Cidade Tiradentes e também um dos membros mais
atuantes do Fórum, para fazer um debate sobre política pública; e o Sarau Letra Preta, também
da Cidade Tiradentes e formado pelas mediadoras de leitura da Biblioteca Comunitária Solano
Trindade.
As articulações acionam diversos pontos, ou nós, da criação cultural e política em um
amplo movimento reticular, que faz circular relações contíguas, afetos, renda, informação e
experiência. Por meio dessas ações, a rede contribui para os usos dos territórios periféricos e
para resistir à precarização da vida e sua última consequência, o genocídio orquestrado por
séculos de mortes sistemáticas da população negra. Por meio de processos pedagógicos de arte-
educação, produção de conhecimento sobre os elementos do Hip Hop, associados aos territórios
periféricos, o Fórum, reconfigura suas fronteiras, possibilidades, formas de luta e recria os
sentidos atribuídos à vida cotidiana dos sujeitos que dialoga.
As políticas públicas passam a ser usadas como artes de fazer e como práticas de
apropriação de uma lógica externa para funcionamentos próprios (Certeau, 2014), que fazem
com que a vida cotidiana seja mobilizada não como senso comum e monotonia, mas como
formada por pequenos gestos realizados pelas classes marginalizadas podem conter pequenas
revoltas e ações igualmente políticas:
[...] mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes [...] indígenas usavam as
leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas pela força ou pela
sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras
coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformando-as [...],
mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de regras, costumes ou convicções
estranhas à colonização da qual não podiam fugir. Eles metaforizam a ordem
dominante: faziam-na funcionar em outro registro (Certeau, 2014, p. 89).
5
Segundo o Anuário de Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FÓRUM..., 2020), 50% da população carcerária é
formada por jovens, enquanto 66,7% é formada por pessoas negras.
Essa aliança é uma fonte de trocas, apoios e experiências entre movimento Hip Hop e
as mulheres periféricas que sofrem com a realidade de violência das periferias. As Mães, que
sempre se manifestam com falas impactantes, transmitem esse sofrimento e reelaboram o luto
de forma conjunta a demais movimentos, coletivos e grupos universitários. G. e B.S. levantam
como o genocídio atinge diversas áreas da vida das vítimas. Combater o genocídio também é
pensar no cuidado às famílias, que são profundamente afetadas pelo assassinato e injustiça
provocadas pelo Estado.
Na verdade uma pessoa que morre numa família média, você desequilibra totalmente
aquela família, economicamente, emocionalmente. O genocídio é isso, você adoece,
você mata sonhos, você mata oportunidades, você mata possibilidades do próprio bem
estar. Tem o lance na saúde também, tem umas coisas curiosas para a gente tentar ver
de forma bem factual o racismo, nos vários campos de atividade humana (G. - ZS -
rapper, entrevista concedida).
O Fórum tem discutido muito essa coisa do genocídio contra a juventude negra e fala
muito da importância das Mães de Maio, das Mães da Zona Leste, mas a maioria
dessas mulheres são mulheres negras, que moram na periferia e que também está numa
condição de vida... a gente tem perdido muitas mães, militantes, devido a condição
mesmo de fazer tanta luta, de perder a saúde, porque perde mesmo. Você perde um
filho e você vê um parente seu preso, você anula aquela vida para viver em prol
daquela luta, em prol da luta do outro (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).
A luta por meio das manifestações culturais do Hip Hop nos territórios periféricos pode
ser uma saída. Outro evento acompanhado por esta pesquisa, o Cidade Tiradentes Sitiada, que
ocorreu em maio de 2018 na Praça Multiuso próxima ao Terminal de Ônibus do distrito,
pretendia resistir à violência policial que ocorria nas madrugadas do bairro (como mencionado
por Tito, membro do Força Ativa e do grupo de rap Fantasmas Vermelhos). Mais uma vez o
Fórum se preocupou com a produção dos quatro elementos do Hip Hop por meio de pocket
shows, apresentações de breaking, discotecagem, oficinas de graffiti e o Sarau Letra Preta.
Entre uma música e outra, palavras de ordem eram usadas para contextualizar outras pessoas,
que saíam do Terminal e passavam ao redor da praça, e criticar a polícia militar e os governos
estadual (comandante da polícia militar) e municipal (que indicou o subprefeito que identificou
os lugares onde aconteciam bailes funk para a polícia intervir).
Diversas rodas lúdicas se formaram para a cypher (roda de breaking), para o freestyle
de rimas entre os MCs ali presentes e para o Sarau. A ocupação dos espaços públicos são táticas
residuais (Williams, 2000) de pessoas negras, em que, desde a abolição, são produzidas
sociabilidades de resistência, musicalidades e expressões culturais (Azevedo; Silva, 1999). As
práticas político-culturais contemporâneas, protagonizadas por redes e coletivos, possui
semelhanças com os resíduos das práticas de ocupação de espaços públicos:
Por meio das redes de sociabilidade – e nem sempre articulados a projetos
institucionais – alguns coletivos juvenis se tornam atores sociais, participam e
intervêm em processos dentro de suas próprias comunidades, assim como nos espaços
públicos das cidades em que residem. Alteram e transformam as estruturas e
características originais dos cenários urbanos pela ação da música, do teatro, de
leituras e narrativas, dança e arte popular urbana, como graffitis, pixações [...] entre
alternativas de participação que adquirem um caráter político por sua intencionalidade
e pelas formas por meio das quais se apropriam dos espaços públicos, transformando-
os, mesmo que efemeramente, em “lugares seus” (Borelli; Rocha; Oliveira, 2009, p.
42-3).
Considerações finais
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Renato Souza de. Juventude e participação: novas formas de atuação juvenil na
cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Ciências
Sociais, Departamento de Antropologia, Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2009.
ALMEIDA, Silvio. O que é o racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando,
2018.
AZEVEDO, Amailton Magno Grillu; SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Os sons que vêm
das ruas. In: ANDRADE, Elaine N. de (org). rap e educação, rap é educação. São Paulo:
Summus, 1999.
BORELLI, Silvia Helena Simões (et. al). Grupos juvenis, novas práticas políticas, ações
culturais e comunicacionais em São Paulo. In: ALVARADO, Sara Victoria; BORELLI, Silvia
Helena Simões; VOMMARO, Pablo A. (coord). Jóvenes, políticas y culturas: experiencias,
acercamientos y diversidades. Buenos Aires: CLACSO, 2012.
BORELLI, Silvia Helena Simões; ROCHA, Rosamaria Luiza de Melo e OLIVEIRA, Rita de
Cássia Alves. Jovens na cena metropolitana: percepções, narrativas e modos de comunicação.
São Paulo: Paulinas, 2009.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2014.
D’ALVA, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. São Paulo:
Perspectiva, 2014.
D’ANDREA, Tiarajú Pablo. Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia
de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
FELTRAN, Gabriel de Santis. Desvelar a política na periferia: histórias de movimentos sociais
em São Paulo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário brasileiro de
segurança pública. São Paulo, 2020.
GOMES, Carin Carrer. O uso do território paulistano pelo Hip Hop. Dissertação (Mestrado em
Geografia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Geografia,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. Novos Estudos, nº
43. São Paulo: nov., 1995.
MACEDO, Marcio. Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica
(1983-2013). In: KOWARICK, Lúcio; FRÚGOLI JR., Heitor (org.). Pluralidade urbana em
São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos sociais. São Paulo: Editora 34; FAPESP,
2016.
MAIA, Harika Merisse. Grupos, redes e manifestações: a emergência dos agrupamentos
juvenis nas periferias de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de
Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Pontifícia Universidade Católica. São Paulo,
2014.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, [1987]2000.
MARTÍN-BARBERO, Martín. Jesús Martín-Barbero: As formas mestiças da mídia.
[Entrevista concedida a] Mariluce Moura. Pesquisa Fapesp, 163, p. 10-15, set. 2009. Disponível
em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/as-formas-mesticas-da-midia/>. Acesso em: 14 nov.
2020.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios: revista do ppgav/ eba/ ufrj, Rio de Janeiro,
n. 32, dez., 2016. Disponível em:
<https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169>. Acesso em: 14 nov. 2020.
MOUFFE, Chantal. Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
MOYA, Maria Encarnación. Os estudos sobre a cidade: quarenta anos de mudança nos olhares
sobre a cidade e o social. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo:
Novos Percursos e Atores: Sociedade, cultura e política. São Paulo: 34, 2011.
OSUMARE, Halifu. “Marginalidades conectivas” do Hip Hop e a Diáspora Africana: os casos
de Cuba e do Brasil. In: AMARAL, Mônica de; CARRIL, Lourdes. O hip-hop e as diásporas
africanas na modernidade: uma discussão contemporânea sobre cultura e educação. São
Paulo: Alameda, 2015.
PORTO, Marta. Cultura e Desenvolvimento em um quadro de desigualdades. Salvador:
Secretaria de Cultura/ Fundação Pedro Calmon, 2009.
QUEIROZ, André Sanchez. Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo: redes,
sociabilidades e territórios. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de
Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Pontifícia Universidade Católica. São Paulo,
2019.
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, 2000.
SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
TEPERMAN, Ricardo Indig. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo:
Claro Enigma, 2015.
TOMMASI, Livia de. Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agir
político. Política & Sociedade, Florianópolis, Vol. 12, nº 23, jan./abr., 2013. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-
7984.2013v12n23p11/24752>. Acesso em: 14 nov. 2020.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. Barcelona: Ediciones Peninsua, 2000.
______. Palavras-chave. São Paulo: Boitempo, 2007.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.