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O Hip Hop na cidade de São Paulo: brechas e ambiguidades no

território usado1

André Sanchez Queiroz (Pesquisador do grupo de pesquisa PUC-SP/ CNPq/


CLACSO “Imagens, metrópoles e culturas juvenis”)

Introdução

Este trabalho foi escrito com base na dissertação “Cultura e política no Hip Hop na
cidade de São Paulo: redes, sociabilidades e territórios” (Queiroz, 2019) e procura focar em um
problema principal: quais são as brechas encontradas na atuação político-cultural da rede Fórum
Hip Hop MSP ao contribuir para os usos do território pelo movimento Hip Hop na cidade de
São Paulo?
Essa pergunta foi uma das questões levantadas na dissertação citada, que, por sua vez,
procurou compreender as ações do Fórum Hip Hop com o uso de três grandes categorias (redes,
sociabilidades e territórios [usados]) como uma forma de pesquisar as relações entre cultura e
política presentes no movimento Hip Hop de São Paulo. O movimento Hip Hop, múltiplo e
diverso, foi estudado com enfoque nas narrativas dessa rede cultural para articular as suas
experiências com as categorias de análise que foram levantadas durante o trabalho de campo.
A pesquisa observou ações culturais do Fórum nos territórios periféricos paulistanos
(Cidade Tiradentes, Heliópolis, Nova Cachoeirinha), nos territórios centrais (centro expandido)
e nos mais institucionalizados (Câmara Municipal, Galerias, Centros Culturais, Centros
Esportivos Unificados – CEUs). Foram realizadas cinco entrevistas com três sujeitos de
pesquisa: membros atuantes da rede, artistas que se relacionaram com o coletivo de maneira
menos frequente e artistas que atuam junto ao Fórum de maneira esporádica.

Entrevistas em profundidade
Elemento do
Sigla Zona Bairro Sujeito Gênero Idade
Hip Hop
Membro
R.P. C (Centro) Brás Rapper e MC atuante Masculino 43
Relação menos
B.S. ZL (Zona Leste) Cidade Tiradentes DJ frequente Feminino 35

1
Artigo apresentando no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT17 – Estudos culturais: representações, mídias e
artes.
Ipiranga (Ponte Membro
G. ZS (Zona Sul) Rapper e MC atuante Masculino 37
Preta)
Relação
A.S. ZL (Zona Leste) São Miguel Graffiteira esporádica Feminino 30
B-girl Relação menos
Cidade Tiradentes
N. ZL (Zona Leste) (Breaking- frequente Feminino 20
(Barro Branco)
girl)

Para este trabalho, procura-se tratar das seguintes questões mais específicas: quais as
brechas que o Fórum Hip Hop encontra para propor e garantir políticas públicas para a
juventude do Hip Hop de São Paulo, sem se misturar ao Estado, mantendo distâncias
estratégicas em relação à ele? Pode-se pensar que as demandas de hiphoppers ao Estado se
relaciona ao engessamento nas práticas estéticas e política desse movimento cultural? Como se
negociar e resistir ao Estado que reproduz o genocídio da juventude negra, pobre e periférica,
principal pauta de combate do Fórum?
A rede cultural age nas fronteiras ambíguas para encontrar as brechas de atuação que
não reproduza as relações de poder vigentes. Entre a institucionalização e a autonomia, a falta
de recurso e as possibilidades de fomento estatal, as parcerias com coletivos, movimentos
sociais e organizações não-governamentais, e a negociação e a resistência, o Fórum estabelece
múltiplas frentes de ação para produzir uma diversidade de práticas político-culturais dentro e
fora do movimento Hip Hop com o objetivo principal de combater o genocídio.
Na primeira seção, o Fórum Hip Hop será apresentado antes de trabalhar as questões
propostas na introdução.

Fórum Hip Hop MSP: breve retrato

A rede possui relação orgânica com os territórios em que atua, marca histórica do
próprio movimento Hip Hop e de coletivos juvenis de outras modalidades culturais que são e/
ou atuam nas periferias de São Paulo. Suas ações começaram em 2005, após reunião entre
hiphoppers e a Coordenadoria de Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Cidadania, que procurava encontrar saídas conjuntas para a baixa quantidade de políticas
públicas para a juventude, em especial para a juventude periférica e produtora do movimento
Hip Hop.
A Coordenadoria chamou um fórum para construir, junto ao movimento cultural,
dinâmicas de criação e execução de políticas públicas para a juventude periférica. Aos poucos,
a juventude do Hip Hop que passara a frequentar os fóruns de discussão sobre políticas públicas
perceberam o engessamento das questões ali tratadas e resolveram agir por conta própria.
Somaram-se alguns hiphoppers e passaram a atuar sob a nomenclatura Fórum Hip Hop
Município de São Paulo (MSP). Para focar os objetivos das políticas públicas que seriam
desenvolvidas para a juventude periférica do movimento Hip Hop, foram delineados oito eixos
temáticos de atuação. São eles:

1) difundir o Hip Hop;


2) elaborar políticas públicas de juventude;
3) inserir o Hip Hop como tema transversal da educação;
4) combater a discriminação de gênero;
5) organizar uma agenda do Hip Hop na cidade;
6) combater a discriminação racial;
7) atuar contra a violência policial; e
8) discutir emprego e renda.

Por meio desses oito eixos, o Fórum passou a pressionar os poderes públicos a inserir o
Hip Hop no orçamento municipal e no calendário de eventos oficiais da cidade. Com a criação
de experiência na atuação político-cultural, o Fórum passou a ficar conhecido pela atuação de
seus membros mais conhecidos e parcerias passaram a ser desenvolvidas com diversos sujeitos
de fora e de dentro do movimento Hip Hop: coletivos juvenis de produção cultural, partidos de
esquerda, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, etc.
As ações político-culturais são estabelecidas nas cinco zonas da cidade, por se preocupar
com a cidade de São Paulo como território de ação, e passou a criar alianças com esses sujeitos,
de forma que criam, ao mesmo tempo, redes de sociabilidade2. Coletivos juvenis/ periféricos
menores se articulam de maneira continuada ou temporária junto ao Fórum, participando muitas
vezes da formação identitária desses mesmos coletivos.
A forma de atuação por meio de coletivos, que passaram a se expandir a partir dos anos
90 para alguns autores (D’Andrea, 2013) e a partir dos anos 2000 para outros (Maia, 2014),

2
Sociabilidade é entendida neste trabalho conforme a compreensão de Simmel (2006), de que a criação de
sociabilidade produz uma instância social relativamente autônoma, na qual os indivíduos que ali compartilham
relações se sentem suspensos, mesmo que de forma efêmera, das relações sociais mais gerais. Sociabilidade se
relaciona com o movimento Hip Hop também pelo aspecto lúdico que trazido pelo conceito de Simmel. A
ludicidade é um dos valores históricos desse movimento, conforme os significados delineados pela Zulu Nation,
organização reconhecida internacionalmente como uma primeiras organizações de Hip Hop. Esses valores foram
delineados por um membro do Fórum em entrevista concedida: peace, love, unity and having fun [paz, amor,
unidade e diversão, tradução do autor]. Aqui se trata de uma ampliação conceitual: o Fórum produz redes de
sociabilidade.
pode ser definido como uma atuação mais fluída entre sujeitos que se relacionam por fazerem
parte dos mesmos círculos sociais e por se alinharem ideologicamente. Os membros de
determinado grupo podem sair e entrar em outro e o mesmo sujeito pode estar em diversos
grupos ao mesmo tempo (Ibidem, p. 77). O Fórum, por ser formado por diversos coletivos
menores, cria relações com sujeitos que não são propriamente do movimento Hip Hop e atua
nas diferentes zonas da cidade de São Paulo, compreende-se o Fórum como uma rede cultural.
Essa denominação se aproxima da compreensão que Maia (Ibidem) possui de rede, como um
“coletivo de coletivos”.
Uma rede, nesse sentido, é formada por outros coletivos que escolhem atuar ora de
forma eventual, ora de forma continuada junto a um coletivo maior, que pode possuir maior
força política para pressionar os poderes públicos na formulação e execução de políticas
públicas, por exemplo. A rede pode apresentar certas fraquezas estruturais, como a relacionada
ao cotidiano de produtores culturais, que podem possuir rotinas diversas quanto às necessidades
de trabalho. Muitos(as) escolhem atuar junto aos coletivos de pertença, que possuem relações
mais orgânicas com os territórios onde vivem.
O Fórum Hip Hop passa por situações similares. Nas reuniões semanais, acompanhadas
durante a pesquisa, ações político-culturais mais localizadas, como a participação artística em
um evento com movimento do povo de rua, formação cultural em biblioteca na zona norte, ou
planejamento de um curso de formação popular para combater o genocídio da população negra,
pobre e periférica, financiadas ou não por edital ou fomento conquistado pela rede, são
levantadas para que os(as) hiphoppers presentes naquela reunião possam participar. Ao mesmo
tempo, o Fórum frequenta as reuniões do orçamento geral e específico (da cultura) da cidade
de São Paulo, o que também aproxima seus(suas) principais lideranças a vereadores(as)
ideologicamente mais próximos(as) da centro-esquerda e esquerda.
Apesar de atuar por vezes como um coletivo próprio, contrariando o conceito de um
fórum aberto em rede, sem representação definida, a participação na política institucional visa
à inclusão das políticas públicas de Hip Hop nas pautas da Câmara, como diz R.P, MC
entrevistado e reconhecido como uma das principais lideranças da rede, que vive no centro de
São Paulo:

Nossas ações políticas são mais voltadas para o movimento Hip Hop, as políticas do
Hip Hop da cidade de São Paulo. Então a gente discute. Então a gente não vai em
nenhum momento dialogar com o Estado, com o Parlamento, questões nossas [...] a
gente tenta fazer as coisas mais sérias possíveis, dialogar a política para todos, para a
coletividade (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).
As reuniões semanais da rede ocorrem no centro da cidade às quintas-feiras, apesar de
contribuir para a produção de um movimento cultural nascido nas periferias. A periferização
do centro (Moya, 2011), figuração urbana que São Paulo adotou a partir da década 1990,
apresenta bolsões de urbanização periférica nos lugares historicamente privilegiados da cidade
e contribui para compreender as razões pelas quais a rede se estabelece no território
geograficamente central da cidade. Proliferou-se prédios abandonados e degradados e cortiços,
nos quais, em um deles, ocupado pela União Nacional de Assistência à Moradia (UNAM), o
Fórum realiza suas reuniões, em troca de estabelecer algumas agendas de formação cultural
para os(as) moradores(as) da ocupação.
Além das reuniões próprias da rede, parte significativa da atuação se dá também na
Câmara Municipal, como mencionado acima, que realiza as reuniões de orçamento no meio da
semana em horários de trabalho. Hiphoppers que estabelecem relações com o Fórum foram
ouvidos em entrevista em profundidade e foi relatado que a participação nas reuniões da
Câmara, apesar de serem importantes, apresenta barreiras para a atuação ampla de membros do
movimento cultural Hip Hop de uma forma geral.
B.S., DJ e ativista cultural da Cidade Tiradentes, relata que, além da rotina de trabalho
de muitos(as) hiphoppers, as mulheres do Hip Hop são ainda mais prejudicadas

[...] visualmente as pessoas me veem do Fórum e eu não falo que eu não sou, porque
meu coletivo está presente, mas eu não tenho conseguido participar, porque é isso:
como que é que eu venho de quinta feira, toda quinta feira para o centro? Uma pessoa
que está desempregada, tem filha, que tem uma série de coisas? E isso os manos não
entendem, os caras não entendem [...]. Eu vejo não só eu, mas como muitas mulheres
que gostariam de estar discutindo Hip Hop de uma forma mais política, no sentido de
pensar política pública, como cultura, porque o Hip Hop tá colocado como uma
política de cultura, mas não consegue. Então você vê que majoritariamente nos
espaços que discutem são os homens (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

A sub-representação é uma controvérsia verificada por meio das observações


etnográficas e entrevistas, que se relacionam justamente com as localidades centrais que o
Fórum ocupa para encaminhar seus objetivos. Atuar nas centralidades e nas periferias é uma
tentativa constante do Fórum de dialogar com a diversidade de pautas demandadas pelo
movimento Hip Hop.
Antes de avançar para os usos que o Fórum faz dos territórios paulistanos, que se
relacionam com o diálogo, com a vida cotidiana das periferias e com a resistência ao genocídio,
deve-se conceituar o que se entende por brechas. O que são as brechas que os movimentos
culturais das periferias e coletivos juvenis procuram ao se relacionar com a política? Martín-
Barbero (1987) propõe que a compreensão as dinâmicas culturais e comunicacionais deve
redesenhar os mapas de conceitos, como pensara Williams (2007). O autor defende que se deve
avançar tateando em um mapa noturno, que sirva para “questionar as mesmas coisas –
dominação, produção e trabalho – mas a partir do outro lado: as brechas, o consumo e o prazer”
(Martin-Barbero, 1987, p. 290-1), com relevância para a exploração do viver cotidiano, que dá
sentido à vida dos sujeitos.
Em entrevista, Martin-Barbero (2009) menciona a importância das brechas para a
posição que adota em suas pesquisas:

[...] recorro a uma [...] teoria das brechas, segundo a qual todo muro, por mais maciço
que pareça, tem sempre alguma brecha que alguém pode aumentar para derrubá-lo.
Para que investigar aquilo em relação que já sei que não posso fazer nada? Penso que
boa parte do fracasso da maior parte das esquerdas vem do fato de que só inoculavam
a desesperança (Martin-Barbero, 2009).

Procura-se, neste artigo, compreender as complexidades presentes no percurso da rede


cultural e nas brechas que encontram para negociar e resistir e produzir cultura
inseparavelmente dos processos políticos vivenciados cotidianamente pelos sujeitos. As
contradições e ambiguidades, antes de reduzirem as experiências e narrativas, permitem
expressar a cotidianidade repleta de incerteza, conflito e de jogos contínuos de ganhos e perdas.

Usos do território, usos do Estado

Mesmo em territórios mais centrais e institucionalizados, a prática político-cultural se


dá por meio do uso dos elementos culturais constitutivos do movimento Hip Hop: o rap, o
breaking, o graffiti e o DJ. Os elementos possuem organicidade com os territórios periféricos
(Gomes, 2008), já que dialogam com o combate às desigualdades, à violência, ao racismo e ao
genocídio e possuem matrizes culturais encontradas nas manifestações culturais dos povos da
diáspora africana (Osumare, 2015) – povos historicamente marginalizados e que habitam, em
sua maioria, as periferias da cidade, territórios que possuem desigualdades em termos de acesso
a serviços públicos de qualidade, à infraestrutura adequada e a empregos em lugares próximos
da cidade.
Para se compreender os processos culturais e políticos experenciados pelas
movimentações reticulares do Fórum Hip Hop na cidade de São Paulo, no entanto, não se deve
atentar somente ao território em si, mas nos usos do território (Santos, 2000). Em meio a
ambiguidades e controvérsias, como o Fórum encontra as brechas para garantir o acesso da
juventude nas políticas públicas da cidade? Como procura se afastar das lógicas políticas
institucionais, que pode engessar a atuação político-cultural da rede, mas garantem ao mesmo
tempo acesso à juventude periférica?
As políticas públicas de Hip Hop, conforme demandado pelo próprio movimento, e
levado em diante pelo Fórum são: o Mês do Hip Hop - desenrolar da lei da Semana do Hip
Hop; construção de novas Casas de Hip Hop e manutenção das existentes, como um
equipamento para prática dos quatro elementos e para construção de memória do movimento
em São Paulo; e o Território Hip Hop, que se assemelha ao Programa Vocacional ao buscar a
“instauração de processos criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas”
(São Paulo, 2015). O Fórum, ao mesmo tempo, pressiona os poderes públicos para a efetivação
dessas políticas e também participa ativamente desses processos como membros do movimento
Hip Hop.
O Mês do Hip Hop, evento de maior relevância para o movimento paulistano, ocorre
todo mês de março, preferivelmente no dia 21, o Dia Internacional de Luta contra a
Discriminação Racial. A organização do evento requer que o movimento Hip Hop comece
reuniões e demais preparações já no ano anterior. O Fórum procura fazer com que suas reuniões,
ora no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha, ora no CEU Heliópolis e até
mesmo nas salas de reunião da Câmara Municipal e da Galeria Olido, sejam ao mesmo tempo
reuniões para que a rede possa: relatar todo o processo de demanda do movimento aos poderes
públicos naquele ano; ler, interpretar e transmitir o conteúdo de documentos, como a própria
lei que cria institucionalmente o evento; e sugerir planos de trabalho, como a organização de
reuniões descentralizadas em cada região para que se coletem os(as) prováveis participantes do
evento.
O Mês procura movimentar todos os territórios considerados periféricos na cidade de
São Paulo (desde as múltiplas centralidades periféricas às periferias das bordas da cidade).
Podem ocorrer shows de rap, live paints de graffiti, competições e/ ou apresentações de dança,
discotecagem e oficinas dos quatro elementos para jovens, adolescentes, crianças e demais
faixas etárias. Outros eventos podem ainda acontecer, como parte da produção de Hip Hop,
como produção de memória e de conhecimento sobre o movimento cultural, materializado por
meio de rodas de conversa e debates sobre temas que atravessam suas lutas: combate ao racismo
e a opressão de gênero; sexualidade; formas de organização do Hip Hop; políticas públicas;
genocídio da juventude pobre, preta e periférica.
Todo o processo é marcado por diversos conflitos, tanto de dentro quanto de fora do
movimento Hip Hop. As próprias reuniões do Mês podem desencadear brigas anteriores,
produzir questionamento de legitimidade de quem fala e defende as pautas, manifestações
individuais longas, confusão com listas de inscritos(as), definição de microempresas para
representar artistas, definição de cachês, etc., o que contribui para a lentidão da organização.
G., MC e rapper da zona sul, em entrevista concedida à pesquisa, cita a dificuldade que a rede
encontra para organização o evento e para acessar as políticas de cultura:

Políticas públicas de cultura é de difícil acesso, porque tem várias questões ali, que a
gente não pode afirmar, mas que simplesmente acontecem, que é privilegiar quem é
mais próximo. Mas é o jogo político também. E é muito difícil você consertar isso.
Tem uma política pública para o Hip Hop da cidade de São Paulo que chama Semana
do Hip Hop. E no texto da lei da Semana do Hip Hop que os movimentos sociais e o
movimento Hip Hop elabora o evento, e o governo só executa. Até isso tá difícil,
porque o Estado, ou seja, a Prefeitura de São Paulo, a Secretaria de Cultura de São
Paulo, é mais fácil eles fazerem o jeito deles, sem precisar ouvir ninguém, sem
precisar acatar. Mês do Hip Hop, porque expandiu, o movimento se reuni, rola uma
chamada geral que cola quem for, assim como no [...] Fórum Hip Hop MSP, cola
quem quiser, quem for do Hip Hop, e a gente faz junto a parada. Já tá rolando há
vários anos já. Desde 2007. É uma política pública importante, porque serve como
uma mostra de Hip Hop na cidade inteira (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Como citado por G., a garantia de uma execução democrática do evento por parte da
Secretaria de Cultura demanda vontade política do governo eleito naquele determinado ano. Ao
menos dois acontecimentos importantes, relatados e analisados com mais detalhes em Queiroz
(2019), foram representativos desse conflito. O governo João Dória/ Bruno Covas, ainda em
curso, desarticulou o movimento por meio da “cadeira do Hip Hop”, criada pela Secretaria
como uma demanda do movimento. Além dessa desarticulação, o Mês do Hip Hop 2019 foi
reduzido a uma seleção restrita de artistas para participarem de um “chamamento público”,
sendo que a organização e execução ficam a cargo do movimento Hip Hop. A Secretaria deve
meramente colaborar com o movimento para realização da política pública3.
As incertezas quanto à efetivação das políticas públicas de Hip Hop representam o nível
de reconhecimento que o Hip Hop possui enquanto movimento cultural estabelecido na cidade
de São Paulo. É certo que, na cena de cultura de periferia (Tommasi, 2013), o movimento
cultural é visto como constituidor de uma hegemonia dentro desse cenário, principalmente no
que diz respeito à inserção em políticas públicas, inserção massiva e midiática e presença na
produção acadêmica nos últimos anos (Borelli et al., 2012). A hegemonia, entendida como um
processo incerto e de dominação incompleta, que abre frestas para emergência de novos atores
(Williams, 2000), no campo específico da cultura de periferia, expressa, no entanto, uma força
relativamente frágil.

3
Lei municipal nº 14.485/2007, inciso LIX do artigo 7º. Disponível em: <
http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-20000-de-19-de-julho-de-2007>. Acesso em 14 nov. 2019.
A voluntariedade da Secretaria de Cultura para alterar as regras de organização do
evento – mesmo com as denúncias no Ministério Público realizadas pelo Fórum –, mostra como
a hegemonia é efêmera e constituída principalmente em momentos de estabilidade nos
investimentos públicos culturais. A constante instabilidade nas relações com o Estado faz esvair
a possibilidade de uma hegemonia continuada, na qual os(as) hiphoppers parecem emitir ruídos
(Rancière, 1996). Ações como essa, própria do liberalismo, procura expulsar o “político”,
constituído pela dimensão conflituosa e plural da vida social (Mouffe, 2015).
A participação relativamente mais frequente do movimento Hip Hop em políticas
públicas podem indicar ainda dois processos: engessamento estético e político do movimento,
que acompanhou as políticas de reconhecimento social (Macedo, 2016) e ações conservadoras
do movimento Hip Hop; e a percepção, por parte do Estado neoliberal, de que a cultura e, mais
especificamente, o Hip Hop pode solucionar os problemas da crescente desigualdade
econômica e social, provocados pelo neoliberalismo (Yúdice, 2004).
Neste último, Yúdice (Ibidem) argumenta que esse uso da cultura, por parte das
instituições privadas e públicas, passou a ser uma tendência dos países que sofrem com as
consequências sociais devastadoras das políticas neoliberais, e tentam atenuar essas
consequências com o uso conveniente da cultura. A cultura atua no tecido social danificado
pelo neoliberalismo e é usada como um curativo para o crescimento das desigualdades
econômicas, a criminalidade e a falta de mecanismos de participação política. O discurso
neoliberal de corte de gastos é, para o autor, paradoxalmente o que significa a permanência da
cultura nos orçamentos públicos e demais possibilidades de investimento privado.
O engessamento das práticas estéticas e políticas e o conservadorismo do Hip Hop estão
associados. A tendência à transformação do movimento, que presencia o surgimento de novos
sujeitos, novas formas e conteúdos artísticos, faz com que alguns membros do movimento
procurem “resgatar as origens”, “resgatar os jovens do funk” e de “quando o Hip Hop era
combatente”. Em uma reunião semanal do Fórum, os hiphoppers que ali frequentavam
relataram que, nas eleições de 2018, viram parceiros do movimento que votaram no candidato
de extrema direita, vertente política que historicamente persegue grupos considerados, nas
relações de poder, minoritários.
As práticas do movimento, por outro lado, não demonstram uma renovação ampla de
uma modalidade cultural que possuía capilaridade entre as juventudes periféricas da década de
1990 e 2000. As mudanças de consumo musical das juventudes, que passaram do rap para o
funk, por exemplo, demonstram o que Macedo (2016) chamou de esgotamento estético. A
criminalização antes feita pelo Hip Hop, de que se tratava de uma cultura “de bandido”
(Teperman, 2015), passa a ser feita ao funk, visto a constante tentativa de deputados estaduais
e federais entrarem com ações de criminalização do funk.
O Fórum Hip Hop emerge, nesse contexto de contradições, como uma rede que procura
se apropriar de todas as possibilidades que se abriram desde o surgimento do movimento Hip
Hop. O Fórum procura manter os significados que fizeram com que o Hip Hop surgisse,
principalmente o de oferecer aos corpos marginalizados modos de identificação e de produção
subjetiva, que indicam alternativas de vida. As políticas públicas podem ser um dos
mecanismos para que as juventudes negras, pobres e periféricas saiam das estatísticas
(Racionais MC’s, 1997) e se tornem artistas e/ ou produtores culturais.
Por meio das ações junto ao Estado, mas sem se misturar a ele, sem entrar “nos
esquemas”, como R.P. menciona em entrevista, há possibilidades de conseguir recursos para
intervenção nos territórios periféricos. A rede é um espaço aberto de discussão, mas ao mesmo
tempo desenvolve ações próprias e independentes, junto aos membros que mais frequentam as
demais práticas da rede – membros que podem alternar em um determinado período. A relação
entre um fórum e um coletivo independente, com imagem própria, é uma relação criticada por
B.S., que identifica que “o Fórum é um espaço, não é um coletivo, é um espaço aberto e a ideia
é que outros coletivos participassem”, enquanto R.P. menciona a importância da realização de
eventos junto à rede:

Você vai fazer evento nos bairros e tal, para não ficar no discurso. Muita gente fala
que é de periferia, mas os caras nem sabem o que é [...]. As pessoas estão lá, você está
dando acesso às informações qualificadas, porque são debates qualificados. E aí você
faz os entretenimento, as festas com os artistas. É que a gente não consegue dar
continuidade né, faz uma vez e tal, você vai fazendo. Não está formado em lugar só.
Mas o impacto é daquele momento, sempre é receptivo. É dialogar com a gente
mesmo (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Para manter a distância relativa das ações exclusivamente proporcionadas pelo Estado 4
e agir cultural e politicamente nos diferentes territórios da cidade, o Fórum procura articular

4
Nessas ações, desconsidero a “cultura dos editais” para se produzir cultura no Brasil como uma forma de ação
exclusivamente estatal. Uma questão estrutural nas políticas culturais brasileiras é justamente os entraves para
financiamento não só de eventos localizados, mas de processos culturais e artísticos. As leis de incentivo, como
Lei Rouanet e Lei do Audiovisual, conhecidas também como “leis do mecenato” (Porto, 2009), são as fontes de
financiamento da cultura que movimentam maiores recursos e que dependem da relação relativamente próxima
entre artistas e produtores culturais e empresas de médio e grande porte. Essa necessidade por uma relação mais
aproximada acaba excluindo àquelas produções que as empresas não gostariam de financiar. Os grupos de
produção cultural, no entanto, possuem demanda por recursos públicos. Em São Paulo vemos duas conquistas,
além das específicas do Hip Hop, para o movimento cultural das periferias de um modo geral: Lei de Fomento à
Cultura da Periferia (criada em 2016, com participação do Fórum Hip Hop em protestos na rua e pressão na
Câmara) e o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI – criado em 2003), que procuram dar mais
autonomia para grupos atuarem e executarem os recursos.
diversos coletivos, que possuem relações com seus territórios de pertença. Nessa articulação,
seja por meio de recursos vindos de editais, seja por meio da participação mais autônoma de
seus principais membros e participantes, o Fórum aciona os coletivos que possuem relações
mais próximas com a rede para realizar algum evento ou atividade cultural em determinado
território.
No evento Hip Hop Politicamente, realizado em abril de 2018 no CEU Heliópolis, como
um dos eventos da agenda do Fomento à Cultura de Periferia, o Fórum pretendia usar um espaço
do CEU para realizar oficinas dos quatro elementos do Hip Hop com adolescentes e jovens da
região. Um dos entrevistados, G., mora em um bairro periférico do Sacomã, vizinho à
Heliópolis. Outros coletivos e artistas foram chamados para participar do evento: A.S.,
graffiteira, entrevistada por essa pesquisa, participou do evento; grupo Pânico Brutal, integrante
do coletivo Perifatividade; Alma Sobrevivente, dupla de MCs, que G. faz parte; Nando,
membro do Coletivo Força Ativa da Cidade Tiradentes e também um dos membros mais
atuantes do Fórum, para fazer um debate sobre política pública; e o Sarau Letra Preta, também
da Cidade Tiradentes e formado pelas mediadoras de leitura da Biblioteca Comunitária Solano
Trindade.
As articulações acionam diversos pontos, ou nós, da criação cultural e política em um
amplo movimento reticular, que faz circular relações contíguas, afetos, renda, informação e
experiência. Por meio dessas ações, a rede contribui para os usos dos territórios periféricos e
para resistir à precarização da vida e sua última consequência, o genocídio orquestrado por
séculos de mortes sistemáticas da população negra. Por meio de processos pedagógicos de arte-
educação, produção de conhecimento sobre os elementos do Hip Hop, associados aos territórios
periféricos, o Fórum, reconfigura suas fronteiras, possibilidades, formas de luta e recria os
sentidos atribuídos à vida cotidiana dos sujeitos que dialoga.
As políticas públicas passam a ser usadas como artes de fazer e como práticas de
apropriação de uma lógica externa para funcionamentos próprios (Certeau, 2014), que fazem
com que a vida cotidiana seja mobilizada não como senso comum e monotonia, mas como
formada por pequenos gestos realizados pelas classes marginalizadas podem conter pequenas
revoltas e ações igualmente políticas:

[...] mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes [...] indígenas usavam as
leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas pela força ou pela
sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras
coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformando-as [...],
mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de regras, costumes ou convicções
estranhas à colonização da qual não podiam fugir. Eles metaforizam a ordem
dominante: faziam-na funcionar em outro registro (Certeau, 2014, p. 89).

Astúcia, conversão, funcionamento em outro registro, metáfora: formas de linguagem e


de expressão cultural que permitem aos coletivos e redes negociarem, se apropriarem de editais
e políticas públicas para resistirem e abrirem, aos poucos, as rachaduras no muro do
neoliberalismo, das desigualdades, da violência e do genocídio.

Resistência ao genocídio: relação entre cultura e política

Como anunciado no início deste artigo, o genocídio da juventude negra, pobre e


periférica é uma das questões combatidas arduamente pelo Fórum, vista como um projeto do
Estado brasileiro ao usar sua força armada contra sua própria população. Trata-se de uma
questão transversal para as periferias urbanas, que não só representa a morte física de jovens e
adolescentes, principalmente negros(as), mas também uma morte simbólica: de sonhos,
expectativas e projetos de vida. A morte sistemática de adolescentes e jovens transborda a morte
física também por atingir os familiares dos que são assassinados pelo Estado.
O que pode fazer, criar e agir uma rede, ou coletivo de produção cultural, para combater
esse projeto histórico? Uma das ações do Fórum, além do atravessamento dessa pauta nas
produções artísticas de seus membros e frequentadores, e ser uma questão discutida também
nos eventos que procura articular os quatro elementos do Hip Hop, é a realização de cursos de
formação popular. A intenção é circular o debate e atingir outros lugares que não o
exclusivamente ocupado pelo movimento Hip Hop. Na luta contra o genocídio, como um
fenômeno amplo, que se manifesta em diversas dimensões sociais, o Fórum procura estabelecer
parcerias e alianças com movimentos negros, movimentos do povo de rua, movimentos
ambientalistas e indígenas, sindicatos, ONGs, partidos políticos e universidades para
transgredir as fronteiras do debate público e colocar racismo e genocídio como políticas de
morte.
Segundo os membros do Fórum, entre eles G. e R.P., o Fórum e o Hip Hop possuem
papel fundamental na introdução do debate sobre genocídio na cena pública. Em suas
manifestações públicas e imagéticas (o slogan “Contra o genocídio da população preta, pobre
e periférica” está na identidade visual da rede) a discussão e a resistência ao genocídio estão
introduzidas como pano de fundo, não só em manifestações nos territórios institucionalizados,
mas também nos eventos realizados nas periferias, por meio da produção cultural de Hip Hop
e pelo incentivo ao debate.
Em agosto de 2018 o Fórum produziu o curso popular “Da eugenia ao genocídio” com
o objetivo de compreender a história e o funcionamento do genocídio na sociedade brasileira,
e desmascarar o mito da democracia racial. O curso foi composto por cinco aulas, que previam
trabalhar os seguintes temas e áreas do conhecimento: pedagogia, eugenia e genocídio
(educação); território usado e existência (geografia); história da eugenia no Brasil (filosofia/
história); racismo nas instituições do estado brasileiro (direito); dívida pública e políticas
sociais (economia). O combate ao genocídio deve ser feito por meio de múltiplas frentes e esse
conceito precisa ser pensado em suas múltiplas manifestações.
Nos intervalos das aulas, o microfone estava aberto para quem quisesse “fazer umas
rimas” no freestyle. Sem muitos habilitados, o DJ do evento fez discotecagens entre um MC e
outro. Os elementos do Hip Hop se articulam com as pautas e os modos de combate por se
constituírem como uma intervenção relativamente agressiva e provocativa, como defende
D’Alva (2014).
O curso iniciou com a conceituação das diferentes formas que o racismo atua na
sociedade. “Raça” é visto como um significante flutuante, no sentido dado por Hall (1994 apud
Guimarães, 1995), que pode assumir significados distintos em espaços e tempos diferentes, já
que se trata de uma categoria relacional e histórico e que não é fixa (Almeida, 2018). O
significado mais usado pelo Fórum é o de racismo institucional, ao pensar a baixíssima presença
de pessoas negras nas instituições públicas, entre elas o poder judiciário, que julga os jovens
(muitas vezes negros5) presos injustamente, e que se expressa também na seletividade da ação
policial e nas relações sociais silenciosas.
A ação policial é a responsável por tirar as vidas de milhares de jovens todos os anos no
Brasil. Uma das consequências dessa ação truculenta e genocida da política militar brasileira é
o surgimento do movimento de mães, que fazem do luto uma luta de resistência e de
reivindicação de justiça pela morte de seus filhos. Um desses movimentos, o Movimento das
Mães em Luto da Zona Leste, participa continuamente de ações culturais, debates, rodas de
conversa, presença em manifestações próprias das Mães e presença também em eventos que
têm como objetivo a produção dos quatro elementos do Hip Hop produzidos ou que contam
com a participação de membros do Fórum.

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Segundo o Anuário de Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FÓRUM..., 2020), 50% da população carcerária é
formada por jovens, enquanto 66,7% é formada por pessoas negras.
Essa aliança é uma fonte de trocas, apoios e experiências entre movimento Hip Hop e
as mulheres periféricas que sofrem com a realidade de violência das periferias. As Mães, que
sempre se manifestam com falas impactantes, transmitem esse sofrimento e reelaboram o luto
de forma conjunta a demais movimentos, coletivos e grupos universitários. G. e B.S. levantam
como o genocídio atinge diversas áreas da vida das vítimas. Combater o genocídio também é
pensar no cuidado às famílias, que são profundamente afetadas pelo assassinato e injustiça
provocadas pelo Estado.

Na verdade uma pessoa que morre numa família média, você desequilibra totalmente
aquela família, economicamente, emocionalmente. O genocídio é isso, você adoece,
você mata sonhos, você mata oportunidades, você mata possibilidades do próprio bem
estar. Tem o lance na saúde também, tem umas coisas curiosas para a gente tentar ver
de forma bem factual o racismo, nos vários campos de atividade humana (G. - ZS -
rapper, entrevista concedida).

O Fórum tem discutido muito essa coisa do genocídio contra a juventude negra e fala
muito da importância das Mães de Maio, das Mães da Zona Leste, mas a maioria
dessas mulheres são mulheres negras, que moram na periferia e que também está numa
condição de vida... a gente tem perdido muitas mães, militantes, devido a condição
mesmo de fazer tanta luta, de perder a saúde, porque perde mesmo. Você perde um
filho e você vê um parente seu preso, você anula aquela vida para viver em prol
daquela luta, em prol da luta do outro (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

A luta por meio das manifestações culturais do Hip Hop nos territórios periféricos pode
ser uma saída. Outro evento acompanhado por esta pesquisa, o Cidade Tiradentes Sitiada, que
ocorreu em maio de 2018 na Praça Multiuso próxima ao Terminal de Ônibus do distrito,
pretendia resistir à violência policial que ocorria nas madrugadas do bairro (como mencionado
por Tito, membro do Força Ativa e do grupo de rap Fantasmas Vermelhos). Mais uma vez o
Fórum se preocupou com a produção dos quatro elementos do Hip Hop por meio de pocket
shows, apresentações de breaking, discotecagem, oficinas de graffiti e o Sarau Letra Preta.
Entre uma música e outra, palavras de ordem eram usadas para contextualizar outras pessoas,
que saíam do Terminal e passavam ao redor da praça, e criticar a polícia militar e os governos
estadual (comandante da polícia militar) e municipal (que indicou o subprefeito que identificou
os lugares onde aconteciam bailes funk para a polícia intervir).
Diversas rodas lúdicas se formaram para a cypher (roda de breaking), para o freestyle
de rimas entre os MCs ali presentes e para o Sarau. A ocupação dos espaços públicos são táticas
residuais (Williams, 2000) de pessoas negras, em que, desde a abolição, são produzidas
sociabilidades de resistência, musicalidades e expressões culturais (Azevedo; Silva, 1999). As
práticas político-culturais contemporâneas, protagonizadas por redes e coletivos, possui
semelhanças com os resíduos das práticas de ocupação de espaços públicos:
Por meio das redes de sociabilidade – e nem sempre articulados a projetos
institucionais – alguns coletivos juvenis se tornam atores sociais, participam e
intervêm em processos dentro de suas próprias comunidades, assim como nos espaços
públicos das cidades em que residem. Alteram e transformam as estruturas e
características originais dos cenários urbanos pela ação da música, do teatro, de
leituras e narrativas, dança e arte popular urbana, como graffitis, pixações [...] entre
alternativas de participação que adquirem um caráter político por sua intencionalidade
e pelas formas por meio das quais se apropriam dos espaços públicos, transformando-
os, mesmo que efemeramente, em “lugares seus” (Borelli; Rocha; Oliveira, 2009, p.
42-3).

Essas relações de apropriação visam transformar o lugar institucionalizado em espaço


historicizado e praticado, onde passam a existir fluxos que se relacionam com as dimensões
existenciais do cotidiano, como defende Certeau (2014). Essa transformação de lugar (inerte e
institucionalizado) em espaço (praticado) é uma característica marcante do movimento Hip
Hop, reproduzido pelo Fórum Hip Hop.

Considerações finais

As resistências, negociações, ações institucionais voltadas para políticas públicas e as


ações que procuram intervir no cotidiano das periferias se dão por meio da ressignificação e
apropriação das relações de poder para usos próprios, encontrados pelo Fórum Hip Hop. A
ocupação dos espaços públicos, a produção de um movimento cultural resistente e hegemônico
nas periferias, a produção de conhecimento, a pressão aos poderes públicos e a relação ora
conflituosa, ora amistosa entre membros do Fórum e membros de dentro e de fora do
movimento Hip Hop são algumas características relevantes para se compreender as ações dessa
rede de produção cultural.
O que parece ser levantado como uma aporia, de difícil relação prática não só para os
coletivos juvenis/ periféricos, mas também presente na história dos movimentos sociais
(Feltran, 2004), as seguintes questões apresentam novos problemas com o decorrer da história
de movimentações, agrupamentos e coletivos: se institucionalizar ou manter a originalidade
com as organicidades das periferias? Como receber financiamento do Estado e continuar com
independência em relação a ele?
Conforme analisado pela rede de produção cultural Fórum Hip Hop, essas questões
ganham outros contornos: a ação cultural se expressa por uma fluidez relativa na articulação
em rede com outras modalidades culturais, criando ao mesmo tempo uma diversidade de
relações entre sujeitos que ou produzem cultura, ou produzem resistência política e àqueles
sujeitos produzem cultura e política ao mesmo tempo, como faz parte dos coletivos de produção
cultural na periferia. A aproximação de coletivos que possuem pautas mais fragmentadas, se
comparados aos movimentos sociais, financiados por políticas públicas específicas, é também
um fenômeno recente, assim como a inserção de movimentos culturais da periferia no
orçamento público de São Paulo.
Os próprios significados de cultura e política parece se cruzarem com novas
intensidades, com importância para os usos do território como constituintes de processos
identitários e a presença do corpo na ocupação dos espaços públicos. Por um lado, a cultura não
deve ser vista somente como alta cultura, ou como lugar de produção de um espírito elitista,
mas como modo de expressão das contradições de outras classes sociais e grupos
marginalizados e os modos pelos quais expressam seus imaginários, sonhos e ludicidade; e, por
outro lado, política não vista como a política institucional que procura aprisionar a cultura como
um campo produtor de políticas culturais inertes, mas que traga o significado do “político” e a
dimensão conflituosa da vida para que seja possível repensar os limites e potencialidades da
política institucional, criando novas institucionalidades (Almeida, 2009).

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