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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

A CONSTRUÇÃO POLÍTICO-JURÍDICA DO ESTATUTO DO CIGANO:


ENTRE TEXTOS E TRAMAS

Phillipe Cupertino Salloum e Silva

Rio de Janeiro
2021
Phillipe Cupertino Salloum e Silva

A construção jurídico-política do Estatuto do Cigano: entre textos e tramas

Tese de doutorado submetida ao


Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como requisito para a
obtenção do título de Doutor em Direito,
com área de concentração em Teorias
Jurídicas Contemporâneas.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Eduardo de
Vasconcellos Figueira.
Coorientadora: Profª. Drª. Edilma do
Nascimento Jacinto Monteiro.

Aprovada em 28/07/2021.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira (PPGD/UFRJ – Orientador/Membro


Presidente)

Edilma do Nascimento Jacinto Monteiro (coorientadora - UFRN)

Michel Misse (UFF - Membro externo)

Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer (USP - Membra externa)

Mirian Alves de Souza (UFF - Membra externa)

Martin Fotta (Academia de Ciência da República Tcheca - Membro externo)

Juliana Neuenschwander Magalhães (PPGD/UFRJ - Membra interna)

Rio de Janeiro
2021
CIP - Catalogação na Publicação

Salloum e Silva, Phillipe Cupertino


SS169c A construção político-jurídica do Estatuto do
Cigano: entre textos e tramas / Phillipe Cupertino
Salloum e Silva. -- Rio de Janeiro, 2021.
398 f.

Orientador: Luiz Eduardo de Vasconcellos


Figueira.
Coorientadora: Edilma do Nascimento Jacinto
Monteiro.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade Nacional de Direito, Programa
de Pós-Graduação em Direito, 2021.

1. Questão cigana. 2. Projeto de Lei do Senado n°


248, de 2015. 3. Criação de lei. 4. A normatização da
ciganidade. I. Figueira, Luiz Eduardo de
Vasconcellos, orient. II. Monteiro, Edilma do
Nascimento Jacinto, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
Aos povos ciganos que lutam há séculos pelo
direito de existir.
ABRAÇAR E AGRADECER

É uma grande responsabilidade escrever sobre a produção do direito cigano no Brasil.


O sentimento de indignação e ao mesmo tempo de solidariedade em relação a estes povos tão
injustiçados pela história me trouxeram aqui. Por isso, agradeço a todos e todas lideranças
ciganas que de alguma forma acreditaram nos meus propósitos com este desafio colocado
pelo Doutorado e contribuíram para esta pesquisa. Em nome de Maria Jane, uma guerreira
calin e grande inspiração deste trabalho, que me deu a mão em todo este processo, eu estendo
meu abraço e carinho à todas representações e famílias ciganas brasileiras. Contem comigo
nesta luta.
Ao Seu Wanderley, presidente da “ANEC”, associação que lidera a luta pelo
“Estatuto” no Brasil, junto com dezenas de outras lideranças, registro meu profundo
agradecimento por ter colaborado com esta pesquisa.
Ao professor Luiz, meu orientador, por acreditar em mim em todo caminho percorrido
no Doutorado, um imenso pesquisador antropólogo e jurista, ser humano incrível, que me
inspira como pessoa e profissional. Em seu nome, manifesto minha gratidão a todos
trabalhadores e trabalhadoras do FND/UFRJ.
Meu respeito e admiração por Edilma, grande ciganóloga e antropóloga que como
coorientadora contribuiu imensamente para minha jornada neste Doutorado.
Aos amigos Plínio e Rangel, em nome de vocês, agradeço todos colegas do PPGD,
mestrandos e doutorandos que fazem pesquisas fundamentais para o Brasil.
Foram muitos lugares que passei nestes últimos anos, Rio, Goiás, Paraíba, Bahia,
amigos, amigas e colegas de trabalho que me acolheram. O meu abraço especial à Maysa,
itabunense retada, que neste singelo texto de agradecimento irá representar todos vocês.
Aos colegas, estudantes, amigos e amigas de todas as faculdades que lencionei, minha
gratidão por contribuírem para me tornar professor.
Aos primos, primas, sobrinhos, tios, tias, avós, todos familiares, especialmente, Lay,
Sinho, Tany, Nilson, Soraia, Rosa, Nazir, Nicinha e Analdina (em memória) agradeço a vocês
por sempre terem acreditado em mim.
Por fim, declaro meu respeito e gratidão a todos lutadores e lutadoras do povo
brasileiro que garantiram que eu estivesse aqui usufruindo de uma universidade pública e de
qualidade. Agradeço a todas organizações populares e movimentos sociais, especialmente o
Levante Popular da Juventude, por nunca se cansarem de lutar por um Brasil mais justo e
soberano.
“A tua raça de aventura quis ter a terra, o céu,
o mar. Na minha, há uma delícia obscura em
não querer, em não ganhar… A tua raça quer
partir, guerrear, sofrer, vencer, voltar. A
minha, não quer ir nem vir. A minha raça quer
passar.” - Epigrama nº 7.
Cecília Meirelles
RESUMO

SILVA, Phillipe Cupertino Salloum e. A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano:


entre textos e tramas, 398 p. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade Nacional de Direito,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2021.

O objetivo desta tese foi promover a descrição e compreensão do processo de construção


político-jurídica do Estatuto do Cigano, por meio da etnografia da tramitação do Projeto de
Lei do Senado nº 248, de 25 de abril de 2015 (PLS 248/2015), no Congresso Nacional.
Analisou-se a produção dos direitos ciganos no âmbito do Estado na prática legislativa,
intercalando a perspectiva de descrição densa em Geertz à concepção de poder em Foucault
para produzir conhecimento sobre os jogos de força que vem resultando na constituição do
sujeito cigano e normatizando a ciganidade. A presente pesquisa foi baseada em trabalho de
campo que teve como foco três contextos etnográficos: o funcionamento das instâncias do
Senado Federal relacionadas à tramitação do Estatuto; os discursos e as articulações
envolvendo diferentes lideranças e representações ciganas atuantes na esfera pública, em
espaços que envolvem a construção da política cigana; e, por fim, uma imersão etnográfica
no acampamento cigano da “associação proponente” do PLS 248/2015 para conhecer melhor
o cotidiano e as lógicas da vida Calon. A presente pesquisa possibilitou-me entender que a
trama do “Estatuto” tem como pano de fundo justamente o gerenciamento da alteridade
cigana no Brasil e que as práticas estatais não só versam sobre a produção de leis ou a
definição das políticas públicas, elas também constituem os sujeitos, como acontece com os
ciganos. Concluiu-se que os processos legislativos são produtos e ao mesmo tempo partes de
uma série de fatores conjunturais, disputas políticas e articulações que transcendem o
universo do Estado.

Palavras-chave: Questão cigana. Projeto de Lei do Senado n° 248, de 2015. A normatização


da ciganidade. Criação de lei.
ABSTRACT

SILVA, Phillipe Cupertino Salloum e. A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano:


entre textos e tramas, 398 p. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade Nacional de Direito,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2021.

The purpose of this thesis was to promote the description and understanding of the process of
political and legal construction of the Statute of the Gypsy, through the ethnography of the
processing of the Senate Bill 248, of April 25, 2015 (PLS 248/2015), in the National
Congress. The production of gypsies rights within the State in legislative practice was
analyzed, interspersing the perspective of dense description in Geertz with the conception of
power in Foucault to produce knowledge about the power games that are resulting in the
constitution of the Gypsy subject and norming of gypsyness. The research was based on
fieldwork that focused on three ethnographic contexts: the functioning of the instances of the
Federal Senate related to the processing of the “Statute”; the discourses and articulations
involving different leaderships and “Gypsy representations” acting in the public sphere, in
spaces that involve the construction of Gypsy politics; and, finally, an ethnographic
immersion in the gypsy camp of the “proponent association” of the PLS 248/2015 to learn
more about the daily life and the logic of Calon life. This research allowed me to understand
that the plot of the “Statute” has as its background precisely the management of Gypsy
otherness in Brazil and that state practices not only deal with the production of laws or the
definition of public policies, they also constitute the subjects, as with the gypsies. It was
concluded that the legislative processes are products and, at the same time, part of a series of
conjunctural factors, political disputes and articulations that transcend the universe of the
State.

Keywords: Gypsy issue. Senate Bill 248, of 2015. The norming of gypsyness. Law-making.
RESUMEN

SILVA, Phillipe Cupertino Salloum e. A construção político-jurídica do Estatuto do Cigano:


entre textos e tramas, 398 p. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade Nacional de Direito,
Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2021.

El objetivo de esta tesis fue promover la descripción y comprensión del proceso de


construcción político-jurídica del Estatuto Gitano, a través de la etnografía de la tramitación
del Proyecto de Ley del Senado nº 248, de 25 de abril de 2015 (PLS 248/2015). Se analizó la
producción de derechos gitanos dentro del Estado en la práctica legislativa, entrelazando la
perspectiva de la descripción densa en Geertz al concepto de poder en Foucault para producir
conocimiento sobre los juegos de poder que han ido resultando en la constitución del sujeto
gitano y la normatización de la gitanidad. Esta investigación se basó en un trabajo de campo
que se centró en tres contextos etnográficos: el funcionamiento de las instancias del Senado
Federal relacionadas con la tramitación del “Estatuto”; los discursos y articulaciones que
involucran diferentes liderazgos y “representaciones gitanas” que actúan en la esfera pública,
en espacios que involucran la construcción de políticas gitanas; y, finalmente, una inmersión
etnográfica en el campamento gitano de la “asociación proponente” de PLS 248/2015 para
conocer más sobre la vida cotidiana y la lógica de la vida de Calon. Esta investigación me
permitió comprender que la trama del "Estatuto" tiene como trasfondo precisamente la
gestión de la otredad gitana en Brasil y que las prácticas estatales no solo se ocupan de la
producción de leyes o la definición de políticas públicas, también constituyen los sujetos ,
como con los gitanos. Se concluyó que los procesos legislativos son productos y, al mismo
tiempo, parte de una serie de factores coyunturales, disputas y articulaciones políticas que
trascienden el universo del Estado.

Palabras clave: Cuestión gitana. Proposición Legislativa del Senado 248, de 2015. La
normatización de la gitanidad. Proceso legislativo.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

6CCR - 6ª Câmara de Coordenação e Revisão


ACEC - Associação Ciganas das Etnias Calón
ASAIC- Associação Social Apoio Integral aos Ciganos
AJUP - Assessoria Jurídica Universitária Popular
AGU - Advocacia Geral da União
AMSK - Associação Internacional Maylê Sara Kalí
ANEC - Associação Nacional das Etnias Ciganas
ASCOCIC - Associação Comunitária dos Ciganos de Condado
BA - Bahia
BH - Belo Horizonte
BR - Rodovia federal
CadÚnico - Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal
CONAPIR - Conferência Nacional da Promoção da Igualdade Racial
CONEPIR - Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CNPC - Conselho Nacional de Política Cultural
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CAS - Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal
CCJC - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara de Deputados
CDH - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal
CE - Comissão de Educação, Cultura e Esportes do Senado Federal
CEB - Câmara de Educação Básica
CEDRO - Associação Centro de Estudos e Discussões Romani
CGU - Corregedoria Geral da União
CJU - Consultoria Jurídica da União
Conjuve - Conselho de Juventude do Distrito Federal
CNE - Conselho Nacional de Educação
CNPCT - Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais
CNPIR - Conselho Nacional da Promoção da Igualdade Racial
CF - Constituição Federal
d.C - Depois de Cristo
DF - Distrito Federal
DPU - Defensoria Pública da União
ECA - Estatuto da Criança e Adolescente
ES - Espírito Santos
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos
FHC - Fernando Henrique Cardoso
FND - Faculdade Nacional de Direito
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GDF - Governo do Distrito Federal
GO - Goiás
GPS - Sistema de Posicionamento Global
GT - Grupo de Trabalho
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
MA - Maranhão
MDB - Movimento Democrático Brasileiro
MDH - Ministério dos Direitos Humanos
MEC - Ministério da Educação
MinC - Ministério da Cultura MG Minas Gerais
MMFDH - Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
MPF - Ministério Público Federal
MTE - Ministério do Trabalho e Emprego
NCJ - Núcleo de Cultura Jurídica
PB - Paraíba
PDT - Partido Democrático Trabalhista
PEC - Proposta de Emenda Constitucional
PGR - Procuradoria Geral da República
PI - Piauí
PLC - Proposta de Lei Complementar
PNDH - Programa Nacional de Direitos Humanos
PMDB - Partido Movimento Democrático Brasileiro
PRS - Proposta de Resolução do Senado
PROS - Partido Republicano da Ordem Social
PSB - Partido Socialista Brasileiro
PSC - Partido Social Cristão
PSL - Partido Social Liberal
PSOL - Partido Socialismo e Liberdade
PT - Partido dos Trabalhadores
PV - Partido Verde
RCE - Requerimento à Comissão de Educação do Senado Federal
RICD - Regimento Interno da Câmara de Deputados
RISF - Regimento Interno do Senado Federal
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONG - Organização Não-Governamental
ONU - Organização das Nações Unidas
RJ - Rio de Janeiro
RS - Rio Grande do Sul
RR - Roraima
SDH - Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SF - Senado Federal
SNPPIR - Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SPU - Secretaria de Patrimônio da União UCB União Cigana do Brasil
SUS - Sistema Universal de Saúde
UCB - União Cigana do Brasil
UEFS - Universidade Estadual de Feira de Santana
UEG - Universidade Estadual de Goiás
UEM - Universidade Estadual de Maringá
UFPB - Universidade Federal da Paraíba
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UNEB - Universidade Estadual da Bahia
UNIFIP - Centro Universitário Faculdades Integradas de Patos
LISTA DE PSEUDÔNIMOS

AXY - Associação cigana internacional

Armando Caribé - Assessor parlamentar do Senador Telmário Mota

Jorge Garcia - “Ativista cigano” atuante no Governo Bolsonaro

Laura Gabriela - Servidora pública do MPF

Letícia Carvalho - “Liderança cigana” atuante em conselhos estatais

Margarida Braga - Assessora parlamentar do Senador Paulo Paim

Melissa - Criança cigana do “Acampamento Nova Canãa”

Paula Andrade - Assessora Técnica atuante na liderança do PT no Senado Federal

Susana Novisk - Presidenta de associação internacional cigana

Tiago Pacheco - Assessor parlamentar do Senador Paulo Paim


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Mensagens enviadas para o chat realizado ao longo da transmissão ao vivo da audiência pública do
dia 28 de maio de 2018 sobre o “Estatuto do Cigano”

Tabela 2 - Reportagens da TV Senado sobre os “ciganos” disponibilizadas na plataforma Youtube em abril e


maio de 2018

Tabela 3 - Representações “ciganas” que estiveram presentes nas audiências públicas no Congresso Nacional a
partir de 2011

Tabela 4 - Mudanças na definição de “ciganos” na tramitação do PLS nº 248/2015

Tabela 5 - Lideranças que se identificam como “ciganas” presentes na audiência pública do dia 29/05/2018 na
CDH do Senado Federal

Tabela 6 - A “definição de cigano” nas diferentes propostas de Estatuto

Tabela 7 – Propostas de alterações na redação do art. 4ª e do inciso I do art. 5º

Tabela 8 – Propostas de alterações nas redações dos arts. 10 e 11 do PLS nº 248/2015


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Consulta Pública sobre o PLS 248/2015

Imagem 2 - Votação do PLS 248/2015 na Comissão de Educação, Cultura e Esportes

Imagem 3 - Registro do Acampamento Nova Canãa por satélite

Imagem 4 - Registro do caminho percorrido entre Uruaçu-GO e o Acampamento Nova Canãa

Imagem 5 - Fotografia de Daiane Rocha (representante da ANEC no Conjuve)

Imagem 6 - Audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”

Imagem 7 - Seu Wanderley, Daiane Rocha e Senador Hélio José durante a 7º Reunião Extraordinária da
Comissão de Educação, Cultura e Esporte

Imagem 8 - Senadores Hélio José (esquerda) e Paulo Paim (direita) durante a 15ª Reunião da Comissão de
Assuntos Sociais

Imagem 9 - Trajeto entre o “Acampamento” e o Congresso Nacional

Imagem 10 - Apresentação de “dança cigana” durante o IV CONAPIR

Imagem 11 - Visita do Ministério dos Direitos Humanos ao “Acampamento Nova Canãa

Imagem 12 - Proposta de emenda constitucional apresentada pelo parlamentar constituinte Antônio Mariz
(PMDB)

Imagem 13 - Audiência pública sobre a “cidadania cigana”

Imagem 14 - Apresentação de dança durante a audiência pública sobre a “cidadania cigana” realizada em 2011

Imagem 15 - Participação de Marlete Queiroz em sessão especial do Senado Federal para comemorar o Dia
Nacional da Consciência Negra

Imagem 16 - Audiência pública sobre os “direitos dos povos ciganos” realizada em 12 de dezembro de 2012

Imagem 17 - Audiência pública sobre o PL 7447/2010

Imagens 18 à 20 - Ilustrações presentes em cartilhas do governo sobre as condições de moradia de “famílias


ciganas”

Imagem 21 - Presença de “acampamentos ciganos” no Brasil

Imagem 22 - Presença dos “ciganos” nos municípios brasileiros

Imagem 23 - Presença de famílias ciganas no território brasileiro

Imagem 24 - Registro da participação minha e da liderança Maria Jane na audiência sobre o PLS 248/2015

Imagem 25 - Registro dos integrantes da “ANEC” após votação do PLS 248/2015 na CE

Imagem 26 - Matérias apreciadas por ano da decisão

Imagem 27 - Registro da audiência pública para discutir a extinção de conselhos nacionais pelo governo
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 18

1 - “INSUBMISSOS” 48

1.1 - A questão cigana no Brasil 48


1.1.1 - Sobre o dispositivo 50
1.1.2 - Narrativas sobre o aparecimento dos povos ciganos 52
1.1.3 - As leis “anti-ciganas” 60
1.1.4 - Permanências coloniais 73

2 - “CADÊ NOSSOS DIREITOS?” 89

2.1 - “Um Presente de Deus”: a atuação da ANEC em face do Estatuto 89


2.1.1 - As associações ciganas 100
2.1.2 - Tempo e espaço 105
2.1.3 - Memórias e narrativas 111
2.1.4 - “Invisibilidade” perante o Estado 119
2.1.5 - Os direitos humanos como categoria nativa 127
2.2 - “Nós somos desconhecidos pela própria população” 133
2.2.1 - O processo constituinte de 1987 133
2.2.2 - As audiências públicas realizadas no Congresso Nacional 142
2.2.3 - Pausa para uma análise sobre a construção da mediação 160
2.2.3.1 - O dono da palavra 163
2.2.3.2 - Uma luta de grupos 167

3 - “‌VAI ‌ALÉM ‌DO ‌NOMADISMO”‌ 171 ‌

3.1 - A normatização da “ciganidade” 172


3.1.1 - “Tem pessoas não ciganas que está usurpando o direito dos ciganos” 175
3.1.2 - A legalidade da autodeclaração no Brasil 187
3.2 - A previsão dos direitos fundamentais no PLS 248/2015 200
3.2.1 - As mudanças no projeto de lei 202
3.2.2 - “Além de tudo, somos cidadãos brasileiros” 223
3.2.3 - Os direitos reivindicados 237
3.2.4 - Pausa para uma análise sobre a “ciganidade” 255

4 - “A CAPITAL DAS LEIS” 266

4.1 - O processo legislativo 267


4.1.1 - As audiências públicas 286
4.1.2 - O protocolo de consulta 294
4.1.3 - Os assessores 309
4.1.4 - As votações 324
4.1.5 - Pausa para uma análise sobre a questão do tempo 336
4.2 - As disputas políticas 336
4.2.1 - Identificando as oposições ao PLS 248/2015 336
4.2.2 - O PL 2703/2020 343
4.2.3 - A positivação dos direitos ciganos e o papel do Poder Executivo 353

CONSIDERAÇÕES FINAIS 363


BIBLIOGRAFIA 366

ANEXO A 397
17

Introdução

Em 28 de maio de 2018, quando cheguei ao Centro de Convenções de Brasília,


para participar da Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial,
acompanhando Maria Jane1, liderança cigana2 do estado da Paraíba, o primeiro
estranhamento que tive ao ingressar no salão de entrada foi com a diversidade de cores,
uma quantidade imensa de estampas, chapéus, lenços, saias, turbantes, acessórios,
bandeiras das mais variadas. Como nunca tinha participado de um grande evento
organizado pelo Poder Executivo Federal, minha referência de comparação, que gerou
esse primeiro estranhamento, foram os congressos acadêmicos da área jurídica, em que
predominam uma certa padronização nas vestimentas, ternos, blazers, sobretudo de
cores mórbidas, em tons escuros, que o professor e advogado Luís Alberto Warat
associa ao “processo de pinguinização” pelo qual o jurista passa durante sua formação
profissional3.
No mesmo dia e na manhã seguinte, participei de outras duas importantes
atividades também de âmbito nacional. Refiro-me à audiência pública realizada na sede
da Procuradoria Geral da República, como parte da programação do evento chamado
“Maio Cigano”, organizado pelo Ministério Público Federal; e à audiência pública sobre
o Projeto de Lei do Senado nº 248/2015, que propõe a criação do “Estatuto do Cigano”,
realizada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado
Federal (CDH). Mais uma vez o contraste visual me marcou muito, assim como as
reações dos servidores destas instituições, em especial os olhares e as demais expressões
faciais, ao se depararem com a presença de dezenas de lideranças e “representações
ciganas”4, pessoas que não costumam frequentar aqueles ambientes no dia a dia. Em

1
Adotei nesta tese os nomes reais de algumas lideranças, como é o caso Maria Jane, por entender ser
importante dar visibilidade a estas pessoas que se destacam na luta pelos direitos ciganos no Brasil. Por
outro lado, usei pseudônimos para se referir a outras “representações ciganas” e agentes públicos que
tenham manifestado discursos que possam comprometê-los, ainda que tenham relevância para a presente
pesquisa. Jane é uma interlocutora central para esta pesquisa, que será apresentada mais para frente.
2
Empreguei itálico nas palavras ou expressões que não são próprias da língua portuguesa e para destacar
termos nativos do processo analisado nesta tese.
3
As roupas formais, que se tornam o fardamento do profissional do Direito ou do burocrata estatal, é
apenas um reflexo desse processo. Warat (2007) defende que o processo de ensino das faculdades de
Direito, altamente fragmentado e embasado em “certezas” epistêmicas, fazem a universidades roubarem
do futuro jurista a possibilidade de pensar alternativas para a sociedade, reforçando o véu da ignorância e
a insensibilidade, impondo-lhe um pensamento único como válido e gerando uma postura autômata ante o
Direito, a sociedade e os sujeitos. Portanto, este autor idealizou um movimento que chamou de
“despinguinização dos estudantes e operadores do Direito”, partindo do pressuposto que precisamos de
juristas que entendam de gente ao invés de entender apenas de normas. Tais vestimentas além de
demarcar a diferença, nos distanciam um do outro.
4
Ao longo do texto da tese, adotei as aspas duplas para destacar conceitos que, por acionarem
significações, merecem definições contextualizadas. Frisa-se que em nenhum momento as aspas duplas
foram utilizadas para relativizar o sentido das palavras.
18

ambos eventos, foram narradas situações de violência e de restrições de direitos pelas


quais vivenciam os grupos, famílias e comunidades ciganas no Brasil. A invisibilidade
da questão cigana na esfera pública, a insuficiência de políticas públicas e a ausência de
leis específicas voltadas para este grupo foram os três pontos mais recorrentes nos
discursos dos participantes.

Do objeto à problematização

Nestes três eventos que eu citei, ficou mais evidente que embora a promulgação
da Constituição Federal de 1988 tenha formalmente ampliado o rol de direitos
fundamentais e consagrado a natureza multicultural, assim como a redemocratização do
Estado brasileiro, alguns povos e comunidades tradicionais permanecem com pouca ou
sem visibilidade, continuaram com insuficiente participação nas discussões públicas,
políticas e/ou acadêmicas. Meu interesse na pesquisa direciona-se justamente para um
destes segmentos: os “povos ciganos”.
Em princípio, este interesse foi surgindo entre os anos de 2015 e 2017, quando
acompanhei de perto articulações e eventos públicos que de alguma forma envolviam a
discussão sobre os direitos ciganos5. Inicialmente minha inserção ocorreu em atividades
de âmbito local e regional no estado da Paraíba. Nesta época, a aproximação com a
questão cigana se deu por meio de um projeto de extensão que coordenava e atuava em
parceria com uma associação cigana. Ao ingressar no Doutorado, em 2018,
desloquei-me fisicamente, com mais frequência, para a capital federal, entendendo que
este locus poderia me fornecer uma olhar mais amplo acerca da política cigana no
Brasil. Os três eventos que citei acima foram cruciais para repensar as minhas
possibilidades de investigação, que inicialmente consistia em compreender e analisar a
relação entre o associativismo cigano e os Direitos Humanos.
Nunca tive dúvidas que a minha pesquisa abordaria processos sociais e políticos
envolvendo os “ciganos”, a luta destes povos por direitos, no entanto, eu precisaria
delimitar o que seria investigado exatamente, qual seria o problema da minha pesquisa.
Por um ano, estive presente em diferentes ocasiões e espaços da esfera pública em
Brasília, com a presença de lideranças ciganas, onde estes buscavam a interlocução
com o Estado para discutir políticas públicas e direitos em geral. Seja em atividades
5
Nesta tese, não adoto a expressão “direitos ciganos” no sentido de existir um conjunto de regras e
princípios instituídos de forma autônoma por esta coletividade, que concorrem com as normas estatais. O
sentido aqui mobilizado é em referência à perspectiva dos “direitos humanos dos povos ciganos”, ou seja,
ao conjunto de bens materiais e imateriais reivindicados pelos povos ciganos em face do Estado brasileiro
como indispensáveis para a sua existência digna.
19

ligadas ao Poder Executivo, assim como aquelas ligadas ao Congresso Nacional ou ao


Ministério Público Federal.
Cada uma dessas instituições teria o potencial de fornecer subsídios para
escolher o tema da pesquisa. Todavia, notei que a tramitação do PLS 248/2015 no
Senado Federal me daria mais condições de viabilizar a produção antropológica do meu
objeto de estudo e poder refletir sobre a luta pelos direitos ciganos no Brasil. Optei por
descrever e compreender o processo de construção político-jurídica do Estatuto do
Cigano, tratando-se portanto do objetivo geral desta pesquisa. Trata-se de um projeto de
lei cujo processo legislativo ainda não foi encerrado, sendo a finalidade desta
investigação focar não no seu resultado, mas nas suas discussões, nos caminhos
percorridos para normatizar os direitos humanos dos povos ciganos no Brasil entre os
anos de 2015 e 2020.
Primeiro por ser um processo complexo, uma vez que envolve a “criação de uma
lei” que tem como destinatários povos tradicionais compostos por diversas subdivisões
étnicas, segmentos, grupos e clãs. Segundo por envolver o Estado na prática legislativa,
ambiente que eu tinha até então pouca intimidade. Por fim, pelo fato de ser uma trama
que mobiliza diferentes instituições, assim como pessoas, ciganas ou não, que exercem
papéis e têm formas de atuação distintas em face da elaboração de um marco regulatório
que é inédito.
Em princípio, a hipótese mais ampla que mobilizei para organizar essa tese foi
que a reflexão sobre os direitos humanos dos povos ciganos como se dá hoje não existiu
desde sempre, sendo uma construção social recente e bem datada no Brasil. Ao mesmo
tempo em que notei, por um lado, um aumento de narrativas quanto à desumanização e
objetificação dos “ciganos”, que os posicionam em uma situação de vulnerabilidade,
constatei também a existência de todo um conjunto de atores sociais, coletivos ou
individuais, ONGs, entidades religiosas, organismos estatais, figuras políticas e
intelectuais, que começaram a entrar em conexão e concorrência pela definição e
delimitação de quem são os ciganos, como se deve tratá-los, quais são seus direitos,
quem pode falar por eles, para eles e sobre eles, e qual o papel de cada um destes
agentes em tal dinâmico contexto.
Como podemos perceber, a “existência cigana” no Brasil vem sendo interrogada
e colonizada por um imenso campo discursivo e prático. Toda esta rede de atores,
instituições e saberes parecem trazer consigo a premissa de que é inconcebível - no
sentido de “dever-ser” - pessoas, famílias, grupos ou comunidades reconhecidas como
ciganas permanecerem na exclusão, invísveis aos olhos do Estado e alvos discriminação
20

étnico-racial. E tal premissa é justificada através de várias formas: o respeito às


diferenças, por se tratar de um país multicultural, a universalidade dos direitos humanos,
“ser cigano” como um direito, a responsabilidade dos órgãos públicos e das instâncias
governamentais com a inclusão social e preservação cultural das identidades ciganos, o
racismo e a ciganofobia como práticas juridicamente inaceitáveis e passíveis de
responsabilização penal por crime de preconceito.
Encontrei essas diferentes justificativas nos documentos que fundamentam a
formulação de políticas públicas, reportagens jornalísticas, trabalhos acadêmicos,
protestos e outros discursos públicos, todavia, elas foram inseridas e se tangenciam na
seguinte dialética: a pauta pelos direitos ciganos só existe por que se parte do
pressuposto que estes estão violados, ou seja, que é um direito ser cigano, cabendo o
Estado protegê-lo e a sociedade respeitá-lo, ao mesmo tempo que se considera
inaceitável as vulnerabilidades que este grupo vivencia por conta da sua condição
étnica-racial. Assim, reconhecê-los como sujeitos de direitos e enquanto um campo de
ingerência no âmbito de políticas inclusivas é justamente o postulado e o acordo tácito
capaz de reunir múltiplas e antagônicas vozes que perpassam e emanam do tema.
Segundo Foucault (2001), problematizar é uma maneira de analisar e elaborar os
problemas que a experiência coloca para a ação política em determinada formação
histórica. O exame das problematizações busca indagar a política por aquilo que diz e
faz a respeito dos problemas com os quais é confrontado, busca questões que se
colocam para um determinado campo de relações, como podendo e devendo ser
pensadas. É necessário e imprescindível que os fatores se tornem duvidosos e
dificultosos para que se requeiram intervenções, que assumam formas variadas,
respostas multifacetadas e soluções distintas, para um problema historicamente posto. E
o “problema” aqui colocado foram os próprios “ciganos” e consequentemente a
construção político-jurídica do “Estatuto do Cigano” no Senado. Assim, o objetivo desta
tese não foi o dever-ser do Estado em face da “questão cigana”, constatando sua
ineficiência, tampouco se tratou de defini-la ou extrair alguma verdade que exista por
trás desta experiência. Com efeito, o que problematizei nesta tese foi a produção dos
direitos ciganos, a partir do processo legislativo do PLS 248/2015, em seu campo
imanente de ação para, assim, analisar a qualidade das relações que se estruturam
mediante atores, eventos, rituais e instituições que dão forma a esta questão.
Neste sentido, levantei a seguinte questão como problema de pesquisa: de que
forma o Estado brasileiro, a partir da tramitação do Projeto de Lei n° 248/2015, vem
constituindo a condição política jurídica dos “povos ciganos” e promovendo a gestão da
21

alteridade cigana? Há outras questões acessórias que também contribuíram para abordar
a temática objeto da tese, foram elas: como se deu o aparecimento da “questão cigana”
no Direito e nas práticas estatais? De que maneira surgiu a proposição do “Estatuto do
Cigano” no Senado Federal? Quais são os direitos previstos no PLS 248/2015 e de que
modo contribuem para pensar as identidades, assim como a realidade dos “ciganos”? O
que está por trás da criação de uma lei que tem povos e comunidades tradicionais como
destinatários? De que forma a descrição e análise deste processo legislativo permite
compreender o funcionamento do Senado Federal e ao mesmo tempo identificar os
agentes públicos, assim como as articulações políticas mobilizadas em torno dessa
trama?
Para tanto, mobilizei a pesquisa etnográfica para descrever e compreender os
jogos de poder que envolvem a construção político-jurídica do “Estatuto”, refletindo
como o Estado brasileiro vem se colocando para promover a gestão da diferença cigana.
Por entender, inspirado nas reflexões do pesquisador Luiz Eduardo Figueira, que uma
das contribuições centrais da etnografia no campo acadêmico do Direito, diz respeito a
uma “perspectiva não normativa de fazer pesquisa. A etnografia pensa o direito
enquanto prática social: o que os atores fazem? Como fazem? Quais sentidos atribuem
às suas práticas? Quais categorias e sistemas classificatórios colocam em
funcionamento?” (2019, p. 363).

Do campo à descrição densa

Esta tese foi resultado de uma pesquisa de abordagem etnográfica baseada no


trabalho de campo que realizei durante o Doutorado, que teve como foco três contextos
etnográficos: o funcionamento das instâncias do Senado Federal relacionadas à
tramitação do “Estatuto”; os discursos e as articulações envolvendo diferentes
lideranças6 e “representações ciganas” atuantes na esfera pública, em espaços que
envolvem a construção da política cigana, que não necessariamente estão relacionados
ao processo legislativo em tela; e, por fim, uma imersão etnográfica no acampamento

6
Em artigo científico de minha autoria, em que compartilho quais os caminhos que percorri, ao longo do
Doutorado, para etnografar o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, “interpreto a expressão
‘liderança’ ou ‘liderança cigana’ como uma categoria nativa que é acionada nos espaços onde se dão a
‘luta dos ciganos por direitos’, locus da pesquisa que realizo. É usada tanto pelos ‘próprios ciganos’
atuantes na tramitação do PLS, pelos assessores e parlamentares, assim como nos documentos das atas
das audiências públicas e reuniões ordinárias do Congresso, para se referir às pessoas ‘ciganas’ que estão
à frente dos processos políticos ou atuando como intermediários na relação com a burocracia estatal,
assim como com espaços ‘não-ciganos’” (SILVA, 2020, 109).
22

cigano da “associação proponente” do PLS 248/2015 para conhecer melhor o cotidiano


e as lógicas da vida Calon.
Em princípio, devo ressaltar que outros trabalhos acadêmicos que tiveram como
objeto processos envolvendo os “ciganos” serviram de base para o desenvolvimento
desta tese7. Por outro lado, o caráter inédito do presente objeto de estudo instigou-me a
articular a descrição densa, sobretudo a partir da perspectiva do antropólogo Clifford
Geertz, à proposta foucaultiana de uma analítica do poder, para compreender a
construção político-jurídica do “Estatuto” enquanto uma trama que está imersa num
jogo de forças. Precisaria me afastar de pré-noções, de pressupostos que poderiam
comprometer a análise sobre a produção dos direitos ciganos no Brasil, uma vez que se
está diante de um processo complexo, que envolve ao mesmo tempo o universo do
Estado na prática legislativa e a luta política de povos tradicionais que são compostos
por múltiplos grupos étnicos.
Por meio da abordagem de Geertz, podemos partir da prerrogativa que a análise
da cultura não é “como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado” (1989, p. 4), que parte de fatos
pequenos, micros, assim como das noções de mundo da qual me relaciono, que estão
densamente entrelaçados. A pauta pela criação de um marco regulatório destinado aos
“ciganos” e o próprio processo legislativo em si emergem articulados a uma teia de
valores, de sentidos que são próprios desta trama e que não surgem de forma isolada, se
dão em um contexto particular. Ou seja, estão ligados e simultaneamente são reflexos de
um acúmulo histórico de tradições no campo da política, que muitas vezes transcende o
aspecto institucional, que é instável e está longe de ser um movimento linear.
Os microacontecimentos em torno da emergência do “Estatuto”, assim como as
negociações políticas que o abrangem, foram um dos pontos de partida para interpretar
o processo de produção dos direitos ciganos no Brasil. Não podendo perder de vista que
se está em jogo o estabelecimento de normas e diretrizes que pretendem promover a
gestão da diferença, lidar com a alteridade cigana, de uma forma distinta ao que até
então está posto. Nesse sentido, foi válido acionar o conceito de poder em Foucault uma
vez que para este autor a diferença é produtiva, gera (pre)concepções, denominações,
(novas) distinções e singularizações; produz efeitos e formas de performances.

7
Entre os autores e as autoras que realizaram etnografias acerca de processos envolvendo os ciganos no
Brasil, destaco: Dimitri Fazito de Almeida Rezende, Florência Ferrari, Martin Fotta, Marco Antonio da
Silva Mello, Mirian Souza, Cleiton Maia e Edilma Monteiro. Frisa-se que Luciano Mariz Maia,
Procurador da República e professor universitário, é o primeiro autor brasileiro que abordou a questão
cigana a partir de uma perspectiva jurídica, sobre direitos dos ciganos na legislação brasileira e inglesa em
1995.
23

Para identificar a gêneses das primeiras discussões sobre a criação do “Estatuto”,


de onde partiu esta iniciativa, quem esteve envolvido, em qual contexto foi levantada
esta pauta, precisei articular variados métodos de pesquisa8, selecionar interlocutores, e
de uma certa forma me inserir em espaços que direta ou indiretamente estejam
relacionados à política cigana no Brasil. Em buscas relatos e pistas, a pesquisa de
campo mostrou-me que as narrativas nem sempre coincidiam, embora muitas vezes
tentassem abordar a mesma questão, isto é, quem foi responsável por aproximar o autor
do projeto de lei à matéria abordada na proposição. Os desencontros e as contradições
em si foram dados valiosos, confirmaram a complexidade desta trama que dificilmente
poderia ser entendida por meio de métodos tradicionais de pesquisa.
No início da investigação, trabalhava com o seguinte pressuposto: o PLS
248/2015 decorre da “luta dos povos ciganos por direitos”, enquanto uma massa
homogênea de povos que passaram a entender a necessidade do Estado instituir
instrumentos jurídicos que lhe possam reconhecer enquanto sujeitos de direitos que
demandam políticas públicas específicas. Caí no equívoco de elencar uma hipótese que
restringia minhas percepções sobre a trama, que muitas vezes refletia a minha vontade
de entender o surgimento da pauta pela criação do “Estatuto” como um produto de um
conjunto de reivindicações que simplesmente culminaram na proposição do Senador
Paulo Paim. Até porque esse também era o discurso adotado pelos principais
articuladores deste projeto de lei.
Ao buscar tecer uma teia de informantes a partir do que fui encontrando na
pesquisa de campo, identifiquei a necessidade de levar em consideração diferentes
narrativas, tanto dos parlamentares e das lideranças ciganas que atuam em face desta
agenda, assim como de outros atores sociais. Mas primeiramente eu teria que seguir um
caminho mais óbvio, tendo em vista que a própria justificativa presente no documento
do PLS 248/2015 indica a “ANEC” como a “associação proponente” do projeto lei.
Além de praticamente ser uma unanimidade, entre os relatos obtidos, o papel
desempenhado pelo então subprocurador-Geral da República Luciano Maia para o
avanço e o fortalecimento desta pauta. Mas o que isso tudo significaria? Quais as
implicações teriam para este processo como um todo?
Aos poucos eu fui percebendo que não faria tanto sentido falar em uma “luta dos
povos ciganos por direitos”. Mas o que seria então? Geertz, quando examina os
8
Refiro-me, em especial, à observação participante, à realização de entrevistas semi estruturadas e livres,
e às análises de documentos, inspirado em: Tedlock (2008); Whyte (2005); Cardoso de Oliveira (1996);
Mariza Peirano (2000; 2002; 2012; 2015); Eva Muzzopappa e Carla Villata (2011) e Laura Nader (2020).
Destaco também que a etnografia do professor e pesquisador Luiz Abreu (1999) que envolveu o locus e o
funcionamento do Congresso Nacional foi fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.
24

acontecimentos, os casos, não parte de uma questão abstrata, de um conceito, de uma


generalização, sendo que este foi inicialmente meu erro. “A tarefa essencial da
construção teórica não é codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis
descrições minuciosas; não generalizar através dos casos, mas generalizar dentro deles”
(GEERTZ, 1989, p.18).
Ao dialogar com diferentes lideranças ciganas ou observá-las em eventos
públicos, ligados ou não à temática do “Estatuto”, foi possível constatar que havia um
campo de tensionamento justamente em face da função desempenhada pelos
interlocutores da “ANEC”, em especial “Seu Wanderley”9, seu principal expoente
externo, sendo que os questionamentos quanto a sua legitimidade significaram
oposições ao próprio PLS 248/2015. E quais seriam as razões para estes
questionamentos? Por que haveria discordância e posicionamentos contrários a um
projeto de lei inédito que se propõe a reconhecer direitos e prever políticas públicas
específicas para os povos ciganos?
Foi justamente durante a observação participante que empreendi em um grupo
de Whatsapp que eu fui encontrando algumas respostas para as problematizações
supracitadas. Grupo10 criado em outubro de 2020 pela assessoria do Senador Telmário
Mota, relator da matéria, com a finalidade de envolver lideranças ciganas de diferentes
partes do país, para além do grupo da “ANEC” e seus aliados diretos, buscando ampliar
a base de sustentação política do PLS 248/2015 e traçar estratégias para aprovar o
projeto de lei no Congresso Nacional. Fui adicionado neste espaço na condição de
pesquisador e também para colaborar com as discussões, traduzindo conceitos técnicos
para uma linguagem mais popular, ou esclarecendo como funciona um processo
legislativo em geral.
Ao longo da pesquisa de campo, foi possível perceber que este processo não se
restringe ao que acontece na sede do Poder Legislativo federal. Por outro lado, embora o
locus do estudo seja o Congresso Nacional, assim como outros espaços institucionais
referente à “política cigana” ou até mesmo um grupo de conversas do aplicativo
Whastapp, estes ambientes não são em si os objetos do meu estudo. Como diz Geertz,
“os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças), eles estudam nas
aldeias” (1989, p. 16).
9
“Seu Wanderley” é um interlocutor central para esta pesquisa que logo para frente irei apresentá-lo.
10
Foram adicionadas mais de cem lideranças ciganas e alguns apoiadores da causa a este grupo para
discutir questões relacionadas à tramitação e sobretudo estratégias para aprovar o projeto de lei. Passei a
dialogar diretamente com um dos integrantes do gabinete do Senador Telmário Mota, que além de ter
criado e me adicionado ao grupo de Whatsappp, me convidou também para participar de inúmeras
reuniões privadas para tratar de articulações e ações em prol do avanço da tramitação do PLS 248/2015
no Senado.
25

Acompanhar este grupo, somado às entrevistas, às conversas informais e à


observação participante que realizei em outros ambientes ligados à construção da
política cigana viabilizou a seguinte conclusão: as maiores discordâncias em face do
PLS 248/2015 não eram tanto em relação ao conteúdo do projeto, mas quem estava o
propondo. Ao fato desta articulação ter como referência inicial uma liderança, uma
única organização - posição política que é desejada e disputada por outros atores que se
sentem também legitimados a ocuparem esse espaço. E por ter conseguido envolver e
ampliar as alianças e grupos sociais, ciganos ou não, em torno da base de apoio ao
“Estatuto” proposto pelo Senador Paulo Paim.
Diante da relevância da matéria abordada no PLS 248/2015, que inegavelmente
rompe com anos de indiferença do Estado e daqueles que constroem a agenda
institucional dos Direitos Humanos, dificilmente outras lideranças se manifestariam
expressamente contra esta proposição legislativa. Foram justamente nos detalhes mais
sutis, no não-dito, nos silenciamentos, assim como nos ataques, que fui notando os
questionamentos quanto à legitimidade de “Seu Wanderley” e por tabela contra o
próprio projeto de “Estatuto”.
Inclusive, durante a imersão etnográfica que realizei no acampamento onde está
situada a sede “ANEC”, com objetivo de entender os primeiros passos que levaram à
proposição do PLS 248/2015, que também percebi outras formas de silenciamentos,
levando em consideração as respostas que obtive de seus interlocutores. No sentido de
ausência de referências diretas, só após muitas conversas e sendo indagado, ao trabalho
desempenhado por outras figuras que participaram das primeiras audiências públicas
realizadas no Senado Federal, em 2011 e 2012, para discutir a possibilidade de instituir
uma lei específica para os ciganos, conforme registrado nas “Atas do Senado Federal”.
Como defende o historiador Pollak (1989), o manejo, no sentido não pejorativo, da
memória tem, neste caso, um propósito muito claro, que é disputar a construção das
narrativas e consequentemente das identidades, onde o “não dito” é tão importante
quanto o “dito”.
Levando em conta a análise de documentos oficiais, assim como as entrevistas
ou as conversas informais que tive com outros atores sociais, fica claro que antes do
“Seu Wanderley” diferentes lideranças passaram pelo Congresso Nacional
reivindicando uma “lei específica”. Embora este seja considerado publicamente como a
principal “referência cigana” na interlocução desta pauta no Senado, pelo menos a partir
do ano de 2014 em diante, atuando e conseguindo atrair diversos outros grupos e
segmentos para fortalecer esta empreitada, continuou sendo questionado. A descrição
26

densa contribuiu para perceber que tais alianças e as oposições são volúveis, vai e vem.
E foi justamente aí que busquei entender, atribuir significado às disputas e variações de
narrativas.
Os silenciamentos e o agenciamento da memória, por exemplo, não são
exclusividades de uma ou outra liderança. Observando o contexto em que isso
acontece, é possível afirmar que há sentido, elas denotam as próprias disputas que são
inerentes aos grupos sociais, sobretudo os mais oprimidos, que no caso dos ciganos
acabam concorrendo aos poucos espaços acessíveis de interlocução com a burocracia
estatal, disputa-se tudo.
Como são muitos grupos, diferentes entre si, embora unidos pela identidade
cigana, cada um pode também querer e entender que pode representar melhor a
coletividade. E, acima de tudo, de serem vistos e reconhecidos como uma ou a
referência da “luta cigana por direitos”. A etnografia que empreendi não pretendeu
extrair uma verdade inquestionável sobre as disputas políticas e fragmentações no
movimento cigano, ou querer fazer uma avaliação moral destes conflitos, mas sim
interpretar os seus significados para o processo.
A partir da descrição minuciosa dos jogos de poder que se manifestam em torno
da tramitação do PLS 248/2015, pude constatar primeiramente em geral que não há uma
relação direta entre o Estado na prática legislativa e os povos ciganos. Na verdade, esta
interlocução ocorre através da construção de mediações, envolvendo diversos atores
sociais, especialmente agentes públicos ligados ao MPF e algumas lideranças ciganas11,
sendo, portanto, um processo perpassado por “protagonismos individuais”. Quanto ao
MPF, o que eu descobri na pesquisa de campo é que a relação deste órgão com a agenda
dos “direitos ciganos”, para além do próprio “Estatuto”, não é tanto pela essência da
instituição, por aquilo que está previsto nas leis, mas sim pelo empenho pessoal de
alguns agentes públicos. Até porque a grande maioria dos atores sociais do Sistema de
Justiça não estão envolvidos ou demonstram interesse nesta pauta, na luta pelos direitos
ciganos e políticas públicas, se tratando mais de uma atuação pontual que está ligada a
“protagonismos individuais”.
Quando menciono a presença de “protagonismos individuais” no processo do
“Estatuto” estou entendendo que esta reivindicação e articulação está mais atrelada a
uma mobilização de “grupos” e sobretudo lideranças ciganas, assim como apoiadores
não ciganos, que se aliam e que muitas vezes se distanciam ou se reaproximam, diante

11
De uma certa forma, como pesquisador e apoiador do PLS eu acabei também atuando como
interlocutor.
27

de acordos e laços instáveis. Pois há muita coisa em jogo para além do reconhecimento
formal dos direitos ciganos. A etnografia, portanto, foi fundamental para atribuir
sentidos a esta trama, viabilizada principalmente pela observação participante.

Da observação participante

Por um vasto período, como pesquisador, mergulhei nesse universo que abarca a
tramitação do “Estatuto”, participando, por exemplo, do dia a dia das discussões do
grupo criado pela assessoria do relator do projeto com a presença de lideranças.
Contudo, como eu já mencionei, minha inserção no campo não ocorreu apenas por
minha condição de acadêmico. Estive também por ser visto como um “aliado”,
simpatizante das causas ciganas, categoria nativa que recorrentemente é adotada por
muitas lideranças para denominar os não ciganos que ajudam e participam de suas lutas
e articulações políticas. Não apenas colaborei em aspectos técnicos, redigindo notas,
cartas ou produzindo materiais para auxiliar na compreensão do PLS 248/2015, como
também tomei uma posição pública, apoiando e defendendo a aprovação do projeto de
lei.
Obviamente que esta postura política de atuar pessoalmente e apoiar o PLS
248/2015 poderia ter repercussões no desenvolvimento da pesquisa. Principalmente por
estar “muito perto”, íntimo em certa medida das disputas de poder que envolvem o
movimento cigano e ter percebido, assim, as oposições ao projeto de lei em tela. Isso
porque meu desafio não foi apenas me aproximar desta trama, praticamente como se
tivesse usando uma lupa microscópica para descrever e detalhar as disputas políticas
que envolvem o processo do “Estatuto”, como também entender os significados desses
conflitos.
Inspirado mais uma vez na perspectiva antropológica de Geertz, ao tentar nesta
tese produzir conhecimento sob o ponto de vista etnográfico, o meu esforço
epistemológico demandava também produzir um deslocamento acerca da trama em
questão, buscando ver como o outro, no caso os atores sociais envolvidos na tramitação
do PLS 248/2015, dá sentido ao mundo, dá sentido à construção político-jurídica do
“Estatuto do Cigano” e ao mesmo tempo dá sentido a si mesmo. Como adverte este
antropólogo, compreender o outro a partir do outro é algo que nunca será completo. O
fato de trabalhar especialmente com a observação participante para gerar dados
etnográficos desafiou-me a buscar um equilíbrio entre a aproximação e o deslocamento
28

para que as reflexões apresentadas na tese não se reduzissem as minhas impressões


pessoais sobre o outro e sobre o processo.
As aproximações e os deslocamentos que geraram, primeiro, alguns
estranhamentos quanto às oposições políticas em torno da pauta do “Estatuto”12, e, em
seguida, atribuição de uma teia de significados sobre as dinâmicas que envolvem o
processo como um todo, também me possibilitaram enxergar que estas disputas políticas
se manifestam acima de tudo em relação à própria “ciganidade”, na caracterização do
que é “ser cigano”. Compreendendo que estas disputas envolvem ao mesmo tempo
delimitar “quem são os ciganos” e “quem pode falar pelos ciganos”. E o maior desafio
para mim enquanto pesquisador, nesse caso, se dá pelo fato de não ser cigano.
Por mais que eu como pesquisador estivesse imerso nesse universo, nunca teria a
mesma experiência dos nativos, isto é, das lideranças e “representações ciganas”.
Inicialmente porque eu não compartilho do seu conjunto de “crenças”, não sendo
possível sentir o mundo como o nativo sente. Se por um lado não posso sentir o mundo
como os “ciganos”, não significa que eu não possa mobilizar os métodos da
antropologia e fazer um esforço cognitivo de entender o ponto de vista deles, indo na
direção do olhar do outro.
De todas as matérias abordadas no projeto de lei, a pesquisa de campo indicou
que o aspecto mais “polêmico”, no sentido ser mais objeto de questionamentos, foi
justamente aquele que trata da definição dos “povos ciganos”, os critérios inseridos no
marco legal em discussão, que será ainda votado pelos Senadores na CDH e em seguida
pelos Deputados.
Em termos metodológicos, a opção de realizar pesquisa empírica, em um
trabalho de imersão etnográfica, deu-se por esta perspectiva ser uma oportunidade de
dar visibilidade às vozes e às atuações dos mais variados atores sociais envolvidos nesta
trama, não apenas os que trabalham no Congresso, como também as pessoas que se
dizem “ciganas” e “não ciganas”, que entram e saem de cena, que compartilham e ao
mesmo tempo disputam espaços políticos, sentidos sobre o que é “ser cigano”, quais são
as suas prioridades, o que deve ser reivindicado em face do Estado, no aspecto mais
geral.
As situações nos quais o trabalho de campo exigiu dedicação no trabalho de
campo, em que tive uma vivência intensa e duradoura, foi privilegiada a observação
participante, que possui suas origens justamente nas pesquisas antropológicas, que

12
Friso que a familiaridade com a trama deu-se sobretudo por esta pesquisa ter sido realizada mediante a
construção de uma rede envolvendo lideranças ciganas, agentes públicos e ativistas.
29

adotaram a etnografia como perspectiva (TEDLOCK, 2008). Esse tipo de investigação,


fundamentado em descobertas no campo, exige a participação do pesquisador no
cotidiano dos processos pesquisados. Por isso a observação participante deve ser
personalizada e multifatorial, implica, necessariamente, um processo longo (WHYTE,
2005).
Nesse sentido, a pesquisa que empreendi significou minha inserção no contexto
da tramitação do “Estatuto”, como já mencionei aqui na introdução, mas também em
outras ocasiões nem sempre relacionadas diretamente ao processo legislativo. Refiro-me
aos ambientes da esfera pública, independentes de serem ligados à burocracia estatal,
que se discutem a política cigana no Brasil, espaços que eu já estava inserido antes de
ingressar no Doutorado. Em todos eles aparece a seguinte questão: a presença de “falsos
ciganos”, pessoas que se passam por ciganas para levar vantagem politicamente. Atores
sociais que são chamados de usurpadores, expressão que nesta pesquisa pode ser
tomada também como uma categoria nativa. Quais os sentidos destas acusações e
relatos quanto à presença de “ciganos usurpadores” apareceram em muitos momentos
ao longo da observação participante relacionados ao processo do “Estatuto”13.
Não foram poucas as ligações e abordagens em privado que eu recebi, de
diferentes lideranças, de distintos segmentos étnicos, que tinham alguma abertura
comigo, me solicitando ajuda para propor mudanças no texto do projeto lei, de modo a
pautar a adoção de critérios mais rigorosos para a identificação dos “povos ciganos”.
Sem adentrar na interpretação dos significados desta reivindicação, que está abordada
no desenvolvimento da tese, é possível dizer preliminarmente que esta preocupação
surge justamente pelo fato de está em vias de ser aprovada uma lei que vai normatizar a
“ciganidade”.
Por isso, nesta pesquisa, eu busquei entender os significados desses
tensionamentos em torno da “ciganidade” e como elas contribuem para refletir sobre a
construção político-jurídica do “Estatuto do Cigano” como um todo. Não se trata de
uma pesquisa acadêmica sobre as minhas impressões acerca destas disputas, mas sim
um trabalho acadêmico que se esforça em interpretar estes jogos, identificando as ações
simbólicas, a cadeia de significados, se esforçando em produzir conhecimento a partir
da alteridade cigana.
Uma vez que um dos maiores desafios deste estudo foi gerar estranhamentos e
familiaridades, a etnografia foi, dessa forma, fundamental para atribuir sentido às ações

13
Por isso foi utilizado a etnografia, porque busquei desobjetivar as pessoas e colocar as relações, ações,
práticas e pensamento como objetos investigativos da pesquisa.
30

sociais que atravessam a tramitação do PLS 248/2015. Buscando não se distanciar tanto
e reproduzir os jargões da Antropologia ou do Direito, ou ficar muito próximo ao ponto
de se confundir com o outro, incorporando simplesmente o ponto de vista das
lideranças que eu tinha mais afinidade ou dos agentes públicos atuantes na trama que se
tornaram meus interlocutores. Sem deixar de traduzir a cadeia de simbologias e
significados que envolvem o processo do “Estatuto do Cigano”.

Das relações de poder

Além da relevância da descrição densa, viabilizada principalmente por meio da


observação participante, a forma como Michel Foucault (1987; 2001; 2009) apreende o
“poder” enquanto uma categoria análica foi crucial nesta pesquisa para perceber que as
disputas em torno da “ciganidade” atravessam todo conteúdo do projeto, inclusive
quando se aborda a questão da educação, da moradia, do acesso à terra, do trabalho, da
cultura e assim por diante. Vai além do dispositivo presente no PLS 248/2015 que tem a
finalidade de estabelecer os critérios para identificar os “povos ciganos”.
A incursão em campo possibilitou-me acompanhar as próprias lideranças
ciganas, inseridas no grupo de Whatsapp criado pela assessoria do Senador relator,
discutindo cada proposta de artigo previsto no PLS 248/2015. Um espaço com a
presença de dezenas de atores sociais debatendo o conteúdo do projeto de lei, o que
deveria continuar, o que poderia mudar, o que deveria ser ajustado.
Em qualquer assunto, ao abordar, por exemplo, qual a melhor redação para
contemplar o direito à moradia ou direito à saúde, sempre se levava em consideração “o
que é ser cigano”, como vivem, quais dificuldades enfrentam por serem povos
tradicionais na sociedade brasileira. Assim notei uma constante negociação que envolve
simultaneamente o que os próprios atores destinatários do projeto entendem sobre si
mesmo, o que é bastante variado e muitas vezes pode levar a um debate infinito, e o que
a sociedade espera da coletividade cigana, que é marcado por uma série de estereótipos
construídos e ressignificados ao longo da história. E foi justamente inspirado na
perspectiva foucaultiana sobre as relações de poder que eu busquei entender esses jogos
de força que abrange a questão da “ciganidade”.
Tomando como base alguns estereótipos relacionados à existência cigana que
aparecem no processo do “Estatuto”, como é o caso do “nomadismo” ou da “vida em
barracas”, que consegui identificar um movimento que pode ser avaliado como
contraditório pelo senso comum. Pois, ao mesmo tempo que busca superá-los, precisa
31

reafirmá-lo, seja atribuindo tais práticas ao passado, como também relacionando ao


próprio presente, para serem vistos e reconhecidos como “ciganos”, como “povos” de
cultura distinta. E que por esta condição demandam um marco regulatório e políticas
públicas específicas. Ao invés de promover uma caça às “contradições” deste processo,
o que poderia me conduzir a julgamentos, que não é o propósito desta etnografia, tentei
entendê-los no corpo do texto desta tese, ressaltando a diversidade de modos da
existência cigana no Brasil.
Ao mobilizar a perspectiva foucaultiana, que entende que não há “poder” sem
“resistência”, e que ao “resistir” se cria o “novo”, fui entendendo aos poucos que o
processo político do “Estatuto” culmina também na constituição do “sujeito cigano”,
que se dá mediante a um impulso dicotômico na qual este experimenta seu processo de
subjetivação, num jogo relacional entre forças e tensionamentos.
Está-se diante de um processo que a todo tempo precisa reafirmar a
“ciganidade”, e por isso, em certa medida acaba sendo inevitável não haver associações
ao “nomadismo”. Ao tentar compreender os sentidos da sua ressignificação, assim como
de outros elementos que são associados aos “ciganos” para estabelecer uma fronteira
identitária, a partir da reflexão em Foucault fui percebendo que tanto no aspecto
discursivo, assim como no âmbito prático, a mobilização da “vida nômade” pode ser
interpretada como uma forma de “resistência”, e não como um mero resultado das
relações entre os “ciganos” e “não ciganos”.
A partir da etnografia do processo de construção do “Estatuto”, ficou evidente
que os “ciganos” não são simplesmente objeto da normatização do Estado na prática
legislativa, estes também concorrem pela definição e pautam “o que é ser cigano”,
embora esta trama ocorra em meio a uma marcha assimétrica, instável e não linear, na
qual terá como resultado a própria produção da “ciganidade”. Trazer Foucault para este
estudo me ajudou a identificar e entender esse campo de forças, sendo que falar em
resistência é sinônimo de falar em criação, percebendo que se está em jogo um novo
olhar sobre a questão cigana no Brasil, ou seja, acerca da gestão da alteridade cigana.
Uma vez que a diferença está atrelada a um processo de subjetivação: ensina modos de
ser e de agir. Portanto a diferença, inclusive cigana, produz e é fruto de relações de
poder.
32

Da colonialidade

Um dos maiores desafios para pensar a “questão cigana” é justamente pelo fato
de se estar diante de variadas possibilidades de alteridade. Não há uma única história,
mas sim variadas narrativas. Ao observar os discursos das lideranças e representações
ciganas de diferentes segmentos étnicos nas audiências públicas que aconteceram no
Congresso Nacional ou em outras instâncias da esfera pública, independente de estar
vinculada à tramitação do PLS 248/2015, percebe-se que é recorrente os relatos de
violência, de discriminação e de vulnerabilidade social envolvendo os “ciganos” no
Brasil. Como traduzir isso para compreender a construção político-jurídica do
“Estatuto”, sem cair em anacronismos que podem nos levar a interpretar a
desumanização que passou os ciganos no passado de forma equivalente ao que ocorre
na atualidade?
Inspirado principalmente nas reflexões do pesquisador Aníbal Quijano, parti do
pressuposto que há uma classificação social com base numa fronteira étnica-racial que
envolve a “ciganidade” que também contribuiu para a consolidação da modernidade e
para a fundação do Brasil enquanto nação. Tornou-se mais sofisticada a repercussão
desse sistema de hierarquias, que nem sempre precisa se valer de instrumentos jurídicos
que criminalizem expressamente a existência e o modo de vida relacionado aos povos
ciganos.
Dessa forma, a concepção de “colonialidade”, enquanto uma categoria analítica
que vem ganhando espaço entre os estudiosos que pensam os direitos humanos na
América Latina, foi acionada nesta tese como uma chave interpretativa para refletir por
quais razões é ainda comum haver não só ouvir os relatos, como a própria ocorrência da
violência em face dos povos ciganos no Brasil. E também entender porque há
lideranças e grupos ciganos, assim como outros atores sociais, que apostam no
“Estatuto” como um mecanismo de reparação histórica e ao mesmo tempo de
neutralização do anticiganismo.
Por trabalhar nesta tese com a etnografia, mobilizei também os estudos
decoloniais para produzir deslocamentos, passando a enxergar coisas que eu não
perceberia adotando uma leitura da realidade a partir do campo dogmático ou puramente
voltados para aspectos normativos, o que é mais comum nas pesquisas jurídicas.
Possibilitando estranhar os usos da positivação do direito, do seu reconhecimento
formal, como um instrumento que seria capaz por si só de colocar fim às
vulnerabilidades sociais que muitos ciganos vivenciam no Brasil. Meu esforço, como
33

pesquisador, não é confirmar a permanência das violações de direitos humanos, da


arbitrariedade e da ineficiência do Estado, mas compreender qual tem sido seu papel em
face da gestão da alteridade cigana.
Na verdade, o deslocamento auxiliado pela concepção de “colonialidade”
possibilitou-me refletir sobre os debates e estudos que envolvem a questão cigana ao
fenômeno jurídico, sendo este um produto cultural, que são também resultados de lutas
e resistências, não um reflexo em abstrato da racionalidade humana14. Traz um acúmulo
histórico de sentidos que colonizaram as formas de produzir o direito e as práticas
estatais.

Estudando “para cima”

Nesta pesquisa, associar o Direito à Antropologia possibilitou jogar luz para


aspectos que na perspectiva dogmática estão mascarados, por exemplo: como de fato se
vota um projeto de lei, uma proposição legislativa de natureza humanitária, destinado a
povos tradicionais? Busquei descrever minuciosamente como funcionam as instâncias
onde o PLS 248/2015 precisa passar para ser aprovado no Senado. Basicamente três, a
Comissão de Educação, Cultura e Esportes, a Comissão de Assuntos Sociais e a
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Contudo, não foi possível
estar presente nas ocasiões em que se votou o “Estatuto” ou em outras ocasiões que esta
proposição legislativa esteve incluída na pauta do dia e acabou não sendo deliberada por
alguma razão15 .
Tratando-se de um trabalho antropológico que interligou diferentes técnicas,
promovi também uma análise etnográfica de documentos e registros audiovisuais
produzidos pelo Congresso Nacional relacionados à tramitação do “PLS”. Para tanto,
levei em consideração os estudos das pesquisadoras Eva Muzzopappa e Carla Villata
por entenderem que
uma análise etnográfica de documentos produzidos por instituições do Estado
deve reconhecê-los, e não como meros dados ou variáveis ​independentes,
como parte de um campo de investigação a partir do qual podem ser
delineados caminhos de pesquisa que permitem, por meio de uma
contextualização completa, explorar os sentidos com os quais foram dotados.
(2011, p. 38, minha tradução)

14
Para compreender o processo de construção político-jurídica do “Estatuto” a partir também de uma
perspectiva decolonial busquei trazer para pesquisa e refletir quem são os sujeitos acionados, em que
contexto estão falando, quais as relações que os levaram a integrar as negociações em torno do PLS, e
como tudo isso se repercute nas dimensões sociais e culturais dos povos ciganos no Brasil.
15
Ao total, ocorreram 15 reuniões extraordinárias da CE, CAS e CDH em que o PLS 248/2015 esteve
incluído na pauta do dia, integrando o conjunto de documentos audiovisuais analisados na presente
pesquisa.
34

A observação direta das reuniões da comissões temáticas, assim como a análise


dos documentos foram fundamentais para descrever e compreender parte do
funcionamento do Senado Federal. Ou seja, como se dá a condução dos trabalhos no
Poder Legislativo, o que acontece nos órgãos colegiados e quem são os atores
envolvidos neste processo de “criação de lei”, em que medida esta dinâmica se
repercute no processo do “Estatuto” como um todo.
Por isso, considerei esta pesquisa uma forma de trabalho antropológico que
também busca “estudar para cima” (studying up), como diz a antropóloga Laura Nader
(2020), por ter implicado numa pesquisa realizada em um ambiente ligado à elite
política do Brasil, o Senado Federal, mediante a adoção dos mesmo métodos, crítica e
relação pesquisador-pesquisado que são mobilizados para estudar os sujeitos “para
baixo” (o exótico, o colonizado, o tribal, o “primitivo”)16. Embora eu tenha dado mais
destaque às articulações políticas das lideranças e “representações ciganas” atuantes na
esfera pública e engajadas nas lutas por direitos, especialmente as movimentações em
torno do “Estatuto”, não ignorei as dinâmicas do Congresso Nacional, em especial
tentando identificar as regras formais e informais que regem um processo legislativo
que tem como destinatários povos tradicionais.
Ainda buscando coletar materiais e produzir dados sobre o processo legislativo
do “Estatuto do Cigano”, no sentido de “estudar para cima”, construí uma rede de
interlocutores envolvendo pessoas que trabalham nas assessorias parlamentares do autor
e do relator do projeto de lei, servidores de carreira do Senado, assim como da 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão da PGR. Nesse sentido, realizei entrevistas
semiestruturadas com esses atores sociais que eu considero estar relacionados às
funções de “bastidores”, assim como também tive conversas informais que me ajudaram
a complementar as informações obtidas na observação participante, na observação
direta e na análise documental.
Ao optar por empreender uma pesquisa etnográfica que aborda a “criação de
uma lei”, não estive interessado em fazer uma crítica, nem apontar erros de como
deveria ocorrer o processo legislativo do “Estatuto”17. Embora fosse da área do Direito e

16
Ou seja, esta pesquisa busca descrever o funcionamento de instâncias relacionadas à elite política, uma
vez que tem em, especial, como locus o Senado Federal, por onde tramita o PLS, e que envolve agentes
públicos que atuam no Poder Legislativo, que podem ser compreendidas como relações “para cima”. E ao
mesmo tempo envolve a atuação de lideranças ciganas neste ambiente e no processo legislativo em tela,
mas que por sua condição social e pelas representações que estão estabelecidas podem ser entendidas
como relações “para baixo”.
17
Motivado pela ponderação do jurista e antropólogo Luiz Eduardo Figueira, busquei também nesta
pesquisa “ser capaz de realizar um deslocamento cognitivo e pensar por meio de uma racionalidade que
35

pessoalmente interessado na política como um todo, até então, tinha pouco


conhecimento acerca das atividades que envolvem o Estado na prática legislativa.
Assim, entre aproximações e deslocamentos, consegui perceber algumas tendências na
tramitação de determinados projetos de lei, especialmente quando estão em comissões
temáticas do Congresso Nacional.
Dessa forma, busquei interpretar os sentidos destas descobertas, como esses
conceitos são mobilizados, para quê, por quê, como elas são operados, entendendo que
“olhar, ouvir e escrever estão desde sempre sintonizados com o sistema de ideias e
valores que são próprios” da Antropologia (OLIVEIRA, 1996, p. 32, destaque do
autor), que também pode servir às pesquisas empíricas do Direito. As “pausas” que
aconteceram na tramitação do “Estatuto”, entre os anos de 2015 e 2020, são tão
importantes quanto os atos em si praticados que geraram movimentos no processo
legislativo em tela.
A descrição densa de uma trama que envolve o Estado na prática legislativa,
“estudando para cima”, foi crucial para problematizar o fator do “tempo” na criação de
uma lei. Entendendo as atividades que acontecem nas comissões temáticas do Senado
como uma modalidade de “ritual”, inspirado nos estudos da antropóloga Mariza Peirano
(2015), ou enquanto “situações sociais”, como sugere o pesquisador Max Gluckman
(1987). Foram justamente nos pormenores mais sutis destas ocasiões solenes que
consegui observar a presença normativas, regras formais e informais, que atravessam a
maioria dos processos legislativos, identificando os “usos do tempo como mecanismo
de poder”, que tem repercussões diretas na construção político-jurídica do “Estatuto do
Cigano”.
A pesquisa permitiu-me vivenciar a materialização do Direito, deixando de
lado, por um instante, o referencial dos códigos e das normas positivadas para explicitar,
como sugere Kant de Lima e Bárbara Baptista (2014), e tentar entender o que de fato
acontece em um processo legislativo e o que está por trás da “criação de lei” no Brasil,
em especial por ter como objeto a gestão da alteridade cigana.

Dos interlocutores da pesquisa

De acordo com Rosana Guber (2001), não é o campo que nos fornece dados,
mas informações que habituamos a classificar como dados. As informações se
convertem em dados no processo reflexivo que ocorre posteriormente a sua coleta.

não reduza a realidade às dualidades conceituais legal-ilegal e constitucional-inconsticional” (2019, p.


362).
36

Primeiramente, o pesquisador registra informações mediante o ver e o ouvir,


“disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico”, ou seja, o
trabalho campo é precedido pela formação teórica que permite transformar “atos
aparentemente tão triviais” em mecanismos potencializadores de reflexão e
questionamentos, tal como sugerido por Cardoso de Oliveira (1996). Todavia, Urpi
Montoya Uriarte (2012, p. 6) adverte que
não se trata de um ouvir qualquer. É um ouvir que dá a palavra, não para
ouvir o que queremos, mas para ouvir o que os nossos interlocutores têm a
dizer. E falamos aqui em interlocutores – não informantes ou entrevistados –
porque a palavra cedida se dá num contexto de diálogo, numa relação
dialógica, e é nesse diálogo que os dados se fazem para o pesquisador. A
relação dialógica só é possível de ser estabelecida no meio de uma posição do
antropólogo entre os nativos: a de observador-participante, que cria
familiaridade e possibilita a “fusão de horizontes” da qual falam os
hermenêutas, condição indispensável para um verdadeiro diálogo.
[...] Após um longo período de confusão e muitas anotações, vem a segunda
fase do trabalho de campo, o da ‘sacada’, isto é, quando começamos a
enxergar certa ordem nas coisas, quando certas informações se transformam
em material significativo para a pesquisa.

A referida “sacada” só pode se desenrolar por meio de um trabalho


antropológico que advém do tempo em campo, não da quantidade de horas, dias,
semanas, finais de semanas, ou meses previamente estabelecidos. Realizar etnografia
demanda, “uma presença contínua em campo e uma atitude de atenção viva”, como diz
Magnani (2009, p. 136). Portanto, é fundamental apresentar na introdução desta tese de
que forma ocorreu a minha inserção e permanência no campo que viabilizou a presente
pesquisa.
Para abordar minha inserção em campo, eu preciso falar, em princípio, quem
foram meus principais interlocutores nesta pesquisa. Foi a partir deles que eu consegui
acessar tanto os espaços vinculados à esfera pública, como os “bastidores” da
construção da política cigana no Brasil. Há uma grande diversidade de atores, ciganos e
não ciganos, relacionados ou não à burocracia estatal, que compõem a trama o
“Estatuto”. Aqui darei ênfase a duas lideranças, Maria Jane e Seu Wanderley, pois, me
possibilitaram ter uma visão privilegiada, quase microscópica, das relações de poder
que envolvem o processo em tela, podendo perceber os conflitos políticos, identificar de
onde vem os tensionamentos e principalmente interpretar seus significados.
Foi no início da minha carreira profissional, quando fui contratado para trabalhar
como professor universitário em fevereiro de 2015, na cidade de Patos-PB, que me
deparei pela primeira vez com a possibilidade de pensar a “questão cigana” a partir dos
Direitos Humanos. Neste contexto laboral, fui surpreendido com uma proposta
apresentada por um conjunto de estudantes do curso de Direito das Faculdades
37

Integradas de Patos, instituição situada no interior paraibano. A proposta que me


fizeram foi voltar a desenvolver um projeto de extensão de assessoria jurídica
universitária popular18 em parceria com a “Associação Comunitária dos Ciganos de
Condado-PB”, a “ASCOCIC”, organização liderada e presidida pela cigana calin Maria
Jane Soares Targino Cavalcanti, que me referi no início da introdução.
Com a autorização da instituição hoje chamada de “UNIFIP”, desenvolvi e
coordenei entre agosto de 2015 e dezembro de 2017, o projeto de extensão intitulado:
“Assessoria Jurídica Universitária Popular, Povos e Comunidades Tradicionais e
Direitos Humanos: acompanhamento aos povos ciganos do município de Condado-PB”.
Não apenas a experiência em si decorrente da parceria entre a “AJUP” e a
“ASCOCIC”19, que me possibilitou conhecer “de perto” a questão cigana, mas
sobretudo devido à relação que passei a ter com Maria Jane, a quem eu considero uma
das principais interlocutoras e responsáveis pela minha inserção no campo de pesquisa.
Durante o Doutorado, continuei acompanhando a militância de Maria Jane,
prestando-lhe assessoria jurídica e política. E o fato dela também atuar em espaços da
burocracia estatal em Brasília, em especial nos ministérios e secretarias relacionados à
pauta dos povos e comunidades tradicionais, proporcionou-me oportunidades de ter
experiências nestes ambientes onde são formuladas as políticas ciganas no Poder
Executivo federal e que me aproximaram dos principais agentes públicos, assim como
de outras lideranças ciganas que atuam em âmbito nacional. Foi a partir dessas
vivências, em que passei a ser identificado amplamente como um “aliado” da “luta
cigana por direitos”.

- Afinal de contas, quem é “Maria Jane”?

Maria Jane, cigana calin, também conhecida entre os seus familiares como
“Xinxinha”, nasceu no ano de 1977 em Condado-PB, filha do Sr. Calon e Dona

18
Como sistematizou Luiz Otávio Ribas, “a assessoria jurídica popular universitária nasce da indignação
ética. Primeiro, com um ensino do direito de estudantes cansados de tanta repetição, de tanta ‘dogmática
ruim’ e de tanta doutrinação. Segundo, indignação com a prática jurídica, com o atendimento nos
escritórios “modelos” muito longe dos ideais de acesso à justiça. Por fim, com a realidade brasileira, em
que a igualdade formal não corresponde aos anseios da utopia estudantil” (2008, p. 93).
19
De forma resumida, entre os anos de 2015 e 2017, o projeto de extensão que coordenei atuou em
relação às demandas jurídicas e políticas da ASCOCIC da seguinte forma: assessorando questões
burocráticas da associação, como a alteração do estatuto, a realização de assembléias entre os associados
e acompanhamentos ao cartório; auxiliando em denúncias de racismo e injúria racial ou acompanhando
audiências públicas convocadas por órgãos públicos para tratar da realidade cigana; e promovendo
atividades de educação em Direitos Humanos nas escolas municipais e estaduais do município de
Condado, assim como na faculdade. Frisa-se que o projeto de extensão que coordenei deu continuidade ao
trabalho desenvolvido pela professora Gilmara Medeiros que precisou se afastar da instituição.
38

Margarida, irmã de George, Júnior, Janete e Suzane, sendo a segunda mais velha.
Casou-se com Antônio aos trezes anos, com quem teve dois filhos, Damião e Indiano
Jhones. Segundo Jane, o casamento foi uma forma na época de ter mais liberdade,
principalmente para acessar à escolarização formal, que era dificultado pelos seus pais.
Em 2020, concluiu a graduação em Pedagogia, embora já trabalhasse profissionalmente
na área de educação, coordenando projetos de alfabetização voltado para pessoas
ciganas e não ciganas da região em que vive, como os projetos “Mova Brasil” e “Brasil
Alfabetizado”. Além de atuar como a principal liderança da comunidade Condado e
articuladora da “ASCOCIC”, trabalha juntamente com seu marido realizando pequenos
negócios de compra, venda e troca, assim como de forma autônoma por meio da prática
do drabe - que significa “ler mão” ou “quiromancia”.
Desde a criação da “ASCOCIC”, em 2010, Jane ocupa a presidência desta
associação, sendo ao mesmo tempo uma referência no município de Condado20,
cumprindo um papel de interlocução com as autoridades locais, nas escolas, postos de
saúde e em face da polícia, assim como atuando em conselhos estatais, isto é, órgãos
colegiados do estado da Paraíba e do Poder Executivo Federal ligados às políticas
públicas de promoção da igualdade racial. Ligada à Igreja Católica, Maria Jane é
também atuante na “Pastoral dos Nômade do Brasil”21.
Por meio da “ASCOCIC”, a partir do ano de 2016, Maria Jane passou a
concorrer e integrar diversos órgãos colegiados do Poder Executivo estadual e federal,
por exemplo: CEPIR-PB; COEPIR-CE; CNPC; CNPIR; e CNPCT. Entre os anos de
2018 e 2019, nos encontramos seis vezes em Brasília, em atividades relacionadas a estes
órgãos colegiados, às articulações do MPF, do Governo Federal, assim como no
Congresso Nacional. Ocasiões que me fizeram ter uma dimensão mais ampla das “lutas
por políticas públicas e pelos direitos ciganos”. Um desses momentos foi crucial, pois
levou-me a modificar radicalmente os rumos da minha pesquisa. Refiro-me à semana
entre os dias 27 a 30 de maio de 2018, quando ocorreram três grandes eventos, como
mencionei no início da introdução.

20
“Cortada pela BR230, Condado, [...] de acordo com o IBGE, sua população estima-se em
aproximadamente sete mil habitantes. Com uma área territorial de 280,913 km², os moradores do local
tem como principais fonte de rendas a pecuária e a agricultura, no entanto, devido aos grandes períodos
de secas, outras atividades vem despertando o interesse, sobretudo, dos mais jovens. Nesse sentido, é
intensa a migração para cidades vizinhas a fim de empregar-se no comércio” (CUNHA; GOLDFARB;
BATISTA, 2014, p. 6).
21
Segundo informações colhidas no próprio website desta organização, “a Pastoral dos Nômades é um
serviço da Igreja Católica Apostólica Romana que se dispõe a atender pastoralmente aos ciganos,
circenses e os parquistas. Em suas atividades e metodologia, a PN caracteriza-se pela busca da encarnação
evangélica e da inculturação, buscando o contato e o convívio com o ambiente nômade, evitando qualquer
forma de paternalismo ou de dominação cultural” (PASTORAL DOS NÔMADES, [s/d]).
39

Outro ponto fundamental das experiências que tive acompanhando Maria Jane
em Brasília foram as “conversas de corredores”, despretensiosas, não intermediadas por
uma entrevista semiestruturada ou por um gravador. Momentos espontâneos que
também me possibilitaram conhecer diferentes atores sociais, ciganos e não ciganos. E
foram neles que me deparei com “pistas”, no sentido de “sacadas”22 e novos
interlocutores que me levaram a ter acesso a informações imprescindíveis para
descrever densamente o processo político do “Estatuto”. Dados não oficiais, que não
estão nos documentos escritos ou audiovisuais, disponibilizados pelo Congresso
Nacional. “Pistas” que anotei no meu “caderno de campo”23, para serem averiguadas em
seguida e, eventualmente, transformadas em dados etnográficos.
Por exemplo, em 9 de abril de 2019, acompanhei Maria Jane na 64ª Reunião
Ordinária do CNPIR. Tratou-se da primeira reunião dos componentes do CNPIR (biênio
2019/2020) no governo Bolsonaro, sendo que o mais importante para minha pesquisa
não foi esta atividade, em si, mas ter ido a ela. Pois, graças a esta oportunidade, eu
conheci o “Acampamento Nova Canãa”, sede da “ANEC”, e pude me aproximar do
principal articulador do “PLS”, “Seu Wanderley”. Isso ocorreu porque Maria Jane
estava acompanhada de uma outra liderança cigana durante o evento que manifestou o
interesse de ir conversar pessoalmente com o presidente da “ANEC”. Aproveitei a
ocasião para ir junto e poder ser apresentado a ele por outros “ciganos”, e não sozinho,
por conta própria. Foi neste momento que solicitei autorização do “Seu Wanderley”
para voltar ao acampamento e poder conversar sobre a proposição legislativa do
“Estatuto”. Jane, que ouviu o meu pedido, endossou: “pode confiar no doutô advogado,
ele é um amigo24 nosso, é de confiança”. Minha solicitação foi aceita, e voltei neste
acampamento 2 meses depois.
Nesta ocasião, quando estava negociando a possibilidade de me inserir no
“acampamento” e me aproximar de “Seu Wanderley”, Maria Jane, com a finalidade
ajudar nesta empreitada, acrescentou também que eu “não me passo por cigano”, que

22
Magnani diz que a “sacada” ocorre na pesquisa etnográfica “em virtude de algum acontecimento, trivial
ou não – só se produz porque precedida e preparada por uma presença continuada em campo e uma
atitude de atenção viva. Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que caracteriza a etnografia, mas a
atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a
pista para um novo entendimento” (2009, p. 136).
23
Na antropologia, o diário de campo se configura como um “instrumento depositário de notas,
impressões, observações, primeiras teorizações, mapas, esboços, desabafos, entrevistas e garatujas de
informantes” (MAGNANI, 1997, p. 8)
24
A categoria nativa amigo, percebida na convivência com os “ciganos” que conheci ao longo da
pesquisa campo, corresponde aos jurons ou gadjo (não-ciganos) que oferecem apoio e auxílio ao “povo
cigano”.
40

não “usurpo a cultura cigana”, e que sempre deixo claro minha condição de juron25,
“homem não cigano”. São informações que buscavam apontar quais as minhas
intenções e qual o papel que exerço nas “lutas ciganas”, ou seja, de apoiador,
pesquisador e advogado, jamais querendo me passar como um “ativista cigano”, que é
uma preocupação de muitas representações e lideranças.

- Afinal de contas, quem é “Seu Wanderley”?

“Seu Wanderley”, como o conheço, é cigano da etnia Calon, principal liderança


da comunidade “Nova Canaã”, território que fica situado na zona rural da região
administrativa de Sobradinho, Distrito Federal, e presidente administrativo da “ANEC”.
Nascido no ano de 1966, natural do estado de Alagoas, é solteiro, evangélico, avô, pai
de seis mulheres adultas, irmão, tio e amigo de muitas pessoas que passam por sua vida.
Compartilho abaixo a descrição de uma das suas filhas, Daiane da Rocha Bim, sobre
“Seu Wanderley”:
Somos 6 filhas: Rosalina, Tatiane, Tânia, Sara, Débora e eu, ele que cuidou de todas nós,
minha mãe foi embora quando minha irmã mais nova (Débora) ainda mamava, nem
andava, e sofremos muito. Mesmo com todos os obstáculos de um homem em cuidar de 6
crianças, todas com menos de 13 anos, Ele nunca nos abandonou, ainda tem a problemática,
que neste tempo quando as mulheres ciganas engravidavam e o sexo da criança era menina
99% eram doadas. Eu mesma ouvir inúmeras vezes dizerem ''dá essas meninas, como vai
cuidar desse tanto de meninas''... Mas meu pai nunca nos abandonou. Sempre nos cobrindo
de carinho e proteção. Tudo nos faltou, mas nunca o AMOR. Passamos por todo tipo de
dificuldades, inclusive lembro-me que ele só tinha um prato de comida, que ele muitas
vezes deixava de se alimentar pra generosamente dividir o pouco que tinha com para cada
uma de nós.
Meu pai é um homem que apesar de não ter conseguido estudar, é um homem muito sábio.
Ele tem leitura de mundo. Ele aprendeu a ler mesmo, foi com a necessidade e a vontade em
aprender com o livro sagrado, a Bíblia, que sempre foi uma forma de nos fortalecer como
cristãos que somos. Como todos os jovens da nossa comunidade cigana sempre diz: -“ nós
conhecemos a palavra de Deus através dos ensinamentos do sr. Wanderley da Rocha”. Ele é
uma liderança reconhecida e respeitada, por onde passa, as pessoas gostam e querem muito
bem ao meu pai, um homem passivo, amoroso , respeitoso. Sempre falando do amor de
Deus em nossas vidas, ele prega a paz e o amor ao próximo. Nossa, se eu for falar aqui
todos os bons exemplos recebidos pelo meu pai e o quanto ele está fazendo falta, é
indescritível. (acervo próprio)26 27

Em entrevista concedida à pesquisadora Maria Clara Ramos da Fonseca Silva


para um trabalho de conclusão de curso de Serviço Social, “Seu Wanderley” indica
“1974” como o ano da chegada dos primeiros membros da comunidade ao Distrito

25
Significa homem “não cigano” na língua falada pelos ciganos Calon do sertão da Paraíba que conheci.
“Seu Wanderley” e seus familiares para se referirem aos “não ciganos” usam a expressão gadjo.
26
A própria Daiane autorizou-me a compartilhar esse trecho, que integra um relatório sobre a atuação
política de Wanderley da Rocha, em documento apresentado para concorrer a uma vaga no conselho de
cultura local.
27
Nesta tese, adotei um recuo diferente, de 2 cm, para as citações diretas manifestadas por lideranças
ciganas ou pelos demais atores sociais que integram o processo analisado.
41

Federal, oriundos de estados como Alagoas, Bahia e Minas Gerais, fixando-se na região
onde atualmente corresponde à região administrativa de Águas Claras e, posteriormente,
viajando pelo país, mas sempre retornando às localidades em torno da capital federal.
As “idas e vindas”, segundo o entrevistado, ocorreram devido às “dificuldades em
acessar bens e serviços públicos em outros estados brasileiros, sendo que foram melhor
acolhidos e reconhecidos pelas autoridades governamentais locais” (2019, p. 53).
Wanderley da Rocha e seus familiares mudaram-se para o “Acampamento Nova
Canãa”, que fica na “Rota do Cavalo”, em “24 de setembro de 2014”, território onde
hoje vivem em torno de 70 pessoas acampadas, entre crianças, adolescentes, adultos e
idosos, pessoas ligadas por vínculos familiares, entre irmãos, primos e sobrinhos.
Trata-se de um terreno de 3,5 hectares que acabou sendo cedido ao grupo, formalmente,
em 2015, pela União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e do
Governo do Distrito Federal, localizado na “Fazenda Sálvia, Lote 274” (SILVA, 2019,
p. 174).
A principal fonte de renda das famílias acampadas advém do trabalho
informal, por meio de vendas e trocas de carros e lotes, pelos homens, e pela
fabricação e venda de artigos de cama, mesa e banho, pelas mulheres. Em
decorrência do tipo de atividade desempenhada, é comum o deslocamento
diário à zona urbana e a outras regiões administrativas do Distrito Federal,
deslocamento este realizado, em geral, por carros entre os homens, e por
ônibus entre as mulheres, todavia, o acesso à rede de transporte público é
precário, as linhas de ônibus disponíveis são escassas, saindo cedo da manhã
e retornando apenas ao fim do dia, por isso, é comum que os/as ciganos/as e
outros/as moradores/as da região solicitem caronas à beira das estradas.
(SILVA, 2019, p. 55)

Ainda sobre sua trajetória, com base nos diálogos que tivemos, especialmente
quando visitei e passei três finais de semana no “Acampamento Nova Canãã”, foi
possível perceber que os primeiros espaços da esfera pública, em âmbito federal, que
“Seu Wanderley” que começou a se inserir enquanto liderança está diretamente
relacionado às primeiras articulações no Congresso Nacional pela criação do
“Estatuto”28. Por exemplo, a audiência pública realizada na Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, para tratar dos “direitos dos
cigano”, em dezembro de 2012; reuniões de trabalho na Secretaria de Direitos
Humanos do Poder Executivo federal, em preparação aos eventos do “Dia Internacional
dos Povos Ciganos” e a “Semana do Maio Cigano”, realizados em 2013; a audiência

28
Ao longo da minha pesquisa, friso que nunca presenciei Wanderley ou Maria Jane se denominarem
liderança. O que há na verdade é o inverso, eles são reconhecidos e chamados dessa forma, sobretudo
externamente em eventos políticos em que há interlocução com a burocracia estatal. Liderança é uma
categoria que se distingue da expressão chefe, como também são vistos e tratados, embora não estejam
totalmente apartadas, uma vez que chefe é uma categoria que aciona um sentido mais interno, indicando
que esta pessoa é uma referência na comunidade e/ou no âmbito das famílias.
42

pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em


22/05/2014, para discutir a “preservação da cultura do povo cigano no Brasil”, ocasião
em que foi representado pela sua filha, Daiane da Rocha. E, a partir do início da
tramitação do “Estatuto do Cigano”, vem participando e articulando eventos direta ou
indiretamente ligados ao processo legislativo do PLS 248/2015.
Embora eu tenha levado em conta a atuação de “Seu Wanderley” como um todo
na sua saga pela proposição e aprovação do “Estatuto” para ser abordada nesta tese, um
dos momento mais marcantes para essa pesquisa foram as experiências etnográficas29
que tive no “Acampamento Nova Canãa”. Em princípio, devo advertir que as
informações que obtive durante as visitas que fiz ao “Acampamento” e que
disponibilizei no corpo do texto em forma de dado etnográfico dizem respeito ao objeto
de estudo desta tese, e não das minhas práticas cotidianas no campo. Além de poder
conversar diretamente sobre o processo legislativo, durante essas experiências, foi
possível ter um pouco de contato com a realidade deste território cigano, das pessoas e
famílias que vivem nele, entendendo melhor os fundamentos e o contexto que levaram à
articulação pela criação do “Estatuto”. Assim como durante minhas vivências na
comunidade cigana de Condado, que também me sensibilizaram quanto à urgência de
políticas públicas, em especial nas áreas de educação, saúde, trabalho, moradia,
segurança, acesso à terra e de enfrentamento à ciganofobia nos meios de comunicação.
Ao total, foram três idas à “sede da ANEC”, duas vezes em junho e uma no
início de agosto de 2019. Nas duas primeiras ocasiões, passei o final de semana
completo (de sábado à segunda-feira) e dormi no “rancho” do Seu Wanderley30. Na
última ocasião, passei apenas uma manhã de domingo. A partir de então nunca mais
paramos de nos comunicar, principalmente para tratar de questões relacionadas ao PLS
248/2015.

29
José Guilherme Cantor Magnani entende ser necessário distinguir “prática etnográfica” e “experiência
etnográfica”, “enquanto a prática é programada, contínua, a experiência é descontínua, imprevista. No
entanto, esta induz àquela, e uma depende da outra [...] podemos postular que a etnografia é o método
próprio de trabalho da antropologia em sentido amplo, não restrito (como técnica) ou excludente (seja
como determinada atitude, experiência, atividade de campo). Entendido como método em sentido amplo,
engloba as estratégias de contato e inserção no campo, condições tanto para a prática continuada como
para a experiência etnográfica e que levam à escrita final” (2009, p. 136).
30
“A comunidade é composta por 14 famílias nucleares e um total de 70 pessoas que vivem em uma área
de 3,5110 hectares” (BRASIL, 2016, p. 12). Em minhas visitas ao acampamento, contei 17 barracas
distribuídas no terreno, sendo que Seu Wanderley dormia sozinho em uma dessas. No espaço (barraca)
onde dormi quando fiquei no “Acampamento”, havia duas camas, uma de casal, que ficava Seu
Wanderley e outra de solteiro, onde fiquei. A maior dificuldade que tive durante minha passagem foi por
conta do frio que senti à noite, pois o material da barraca não contribuiu muito com o isolamento térmico,
sendo que as temperaturas na madrugada giraram em torno de 14 graus e, por alguma razão, a entrada
ficava aberta, circulando ar. Lembrando que “rancho” é uma categoria nativa adotada pelos Calons que
conheci para se referir aos seus locais de moradia.
43

Destaco que minhas experiências etnográficas no “Acampamento Nova Canãa”,


assim como minhas interações com outras lideranças ciganas de diferentes partes do
Brasil que eu conheci por conta da observação participante, foram facilitadas não
apenas, mas sobretudo por conta da minha formação em “Direito”, ou seja, “ser um
doutô advogado”, “homem das letras” ou “das leis”, como fui chamado várias vezes
nestas ocasiões. Aliás, creio que este fator pode ser bem recepcionado em muitos
lugares, não apenas entre os “ciganos”, pois sempre há pessoas que possuem alguma
“dúvida jurídica”31 ou dificuldade de acesso ao Sistema de Justiça. E por mais que eu
não fosse atuar como advogado em nenhuma questão específica, nada me impedia de
orientá-los como proceder em questões judiciais, sendo até uma forma de retribuir pela
oportunidade de acessar informações que necessitava para as minhas pesquisas.
Gostaria de salientar também que ao passo que o meu objeto de estudo tenha
sido em certa medida a gestão da diferença pelo Estado, ou seja, a gestão da alteridade
cigana, as minhas experiências etnográficas com os “ciganos” trouxe para mim a
oportunidade de vivenciar condição de ser o “outro”. Isso ficou mais nítido para mim
durante minhas experiências no “Acampamento”, pois inúmeras vezes tive a impressão
de ser o centro das atenções. Entre dezenas de pessoas Calons, eu era o único juron.
Nesse sentido, não posso deixar de dizer que graças à interlocução,
primeiramente de “Jane”, em seguida “Seu Wanderley, e pela relação de confiança que
foi sendo tecida como ambos, foi possível ter acesso ao que chamo de “bastidores” da
tramitação do PLS 248/2015, espaços físicos ou ambientes virtuais (grupos de
Whatsapp, conferências, reuniões intermediadas por aplicativos como Zoom ou Google
Meet) que envolviam integrantes de órgãos públicos, como o MPF, as assessorias
parlamentares dos Senadores Paulo Paim e Telmário Mota e, residualmente,
representantes das instâncias governamentais. Tratando-se de uma pesquisa
preponderantemente qualitativa, participar de atividades do dia a dia do processo, como
o grupo de Whatsapp, reuniões públicas ou internas com os principais agentes públicos
envolvidos diretamente com o processo do “PLS”, foram fundamentais para viabilizar a
presente etnografia.

31
Em diferentes momentos que passei na “sede da ANEC”, foi solicitado a mim conselhos na área de
consumo, casamento/separação, como obter registro civil ou se portar diante de uma intimação. Isto é,
questões que estavam além das demandas por políticas públicas. Da mesma forma que nas relações com
os “ciganos” de Condado, ligados à “ASCOCIC”, foram requisitados de mim orientações em questões de
natureza mais individual, que não envolviam questões da associação. Ser útil ou sentir-se assim é
essencial no processo de negociação por informações, pois, é esperado que nós pesquisadores sejamos
indagados por alguns possíveis interlocutores da seguinte forma: “o que ganhamos com a sua pesquisa?”.
44

Dos conflitos políticos

Como diz a antropóloga Carmem Mattos, “a descrição etnográfica depende das


qualidades de observação, de sensibilidade ao outro, do conhecimento sobre o contexto
estudado, da inteligência e da imaginação científica do etnógrafo” (2011, p. 54).
Compreender o contexto em que se dá a construção político-jurídica do Estatuto do
Cigano viabilizou a identificação e tentar compreender os significados destes conflitos
políticos que perpassam esta trama, isto é, as oposição ao PLS 248/2015.
Não foi por acaso que eu destaquei o papel de “Seu Wanderley” e “Maria Jane”
enquanto os principais, e não únicos, interlocutores desta pesquisa. Mas jamais tentando
interpretar os dados etnográficos produzidos como se fosse um deles. De todo modo,
graças a eles foi possível perceber que os conflitos que se manifestam na trama do
“Estatuto” se dão em basicamente dois contextos que não estão desassociados: as
disputas no movimento cigano e no âmbito da macropolítica. Isto porque a atuação
política deles, tanto nos órgãos colegiados, como na articulação do “Estatuto”, é alvo
constante de questionamentos de outras representações.
Em relação ao aspecto “macro”, devo ressaltar que desde maio de 2020 passou a
tramitar um segundo projeto de lei na Câmara de Deputados, de autoria do parlamentar
Filipe Barros (PSL/PR), com o mesmo objeto do “PLS”, ou seja, também propondo a
criação de um “Estatuto”. Não poderia me eximir de interpretar o que essa proposição
legislativa mais recente significa para o processo político analisado. E para isso eu
precisaria detectar quem estaria por trás, por quê, e em quais circunstâncias foi proposto
o “PL 2703/2020”.
Diferentemente da proposição legislativa do Senador Paulo Paim, que indica
expressamente a interlocução da “ANEC”, o projeto de lei do Deputado Filipe Barros
não menciona quem o procurou, quais atores sociais articularam a segunda proposta de
“Estatuto” que passou a tramitar no Congresso Nacional.
Além da observação participante, essencial para descrição etnográfica que
empreendi, mobilizei também o uso do paradigma indiciário proposto por Carlo
Ginzburg (1992) como um método capaz de despertar o meu olhar enquanto
pesquisador para detalhes aparentemente tidos como secundários, mas que poderiam
estar escondendo a chave para entender as disputas políticas que perpassam a trama do
“Estatuto”. E, principalmente, identificar quais lideranças, representações e associações
ciganas estariam em alguma medida envolvidas com a proposição legislativa do referido
deputado.
45

Para poder encontrar as respostas que precisava, até as conversas informais, os


momentos do “cafezinho” ocorridos durante os intervalos dos eventos públicos que
participei relacionados à política cigana como um todo foram centrais para obter e
seguir as pistas que me levariam a praticamente ter a certeza que o “PL 2703/2020” foi
articulado por um ativista que se identifica como cigano e que é ligado ao atual governo
federal. E que a partir de então mobilizou outras representações ciganas, especialmente
as que não são da etnia Calon, para se opor ao PLS 248/2015 e consequentemente
apoiar o projeto do Deputado Filipe Barros.
Por meio também do paradigma indiciário, eu pude validar os dados
etnográficos produzidos de modo a não ser acusado de está promovendo especulações
em face das oposições políticas ao PLS 248/2015. E não apenas descobrir quem está por
trás do “PL 2703/2020”, mas também concluir que diferentemente do discurso público
assumido pela gestão federal entre os anos de 2019 e 2020, o Poder Executivo não tem
promovido esforços para colaborar com a aprovação do projeto de “Estatuto”
apresentado pelo Senador Paulo Paim. Foram justamente nos detalhes mais sutis,
sobretudo nos silenciamentos, no não dito, que cheguei a esta conclusão, uma vez que
não é por acaso que não se menciona a tramitação do PLS 248/2015 durante as
atividades oficiais convocadas pelo governo federal para tratar da política cigana, em
especial por ser um projeto de lei que tramita desde 2015 e que é amplamente conhecido
pelos gestores que atuam na política de promoção da igualdade racial.
Direta ou indiretamente, a tramitação simultânea do “PLS” e do “PL”, que
respectivamente estão ligados a parlamentares que ocupam pólos ideológicos e
partidários opostos, o primeiro à esquerda e o segundo à extrema direita, acaba
refletindo as disputas no campo da macropolítica. Disputas que estão de alguma forma
entrelaçadas às movimentações dos grupos e das lideranças ciganas que atuam na
esfera pública e que também concorrem pela interlocução com o Estado
Concordando com a reflexão de Geertz, a habilidade dos pesquisadores que
trabalham com os métodos da antropologia “de fazer com que levemos a sério o que
dizem” tem menos relação com “o seu olhar fatual ou com ar de elegância conceptual
do que com a sua capacidade de convencer-nos de que o que dizem resulta do fato deles
terem [...] de uma maneira ou de outra, verdadeiramente estado lá”. Portanto, foi no
corpo do texto desta tese que descrevi melhor como este “milagre de bastidor ocorreu”
(1998, p. 207, destaque do autor), em que deixei ainda mais claro minha familiaridade e
intimidade com a trama descrita.
46

Da educação popular

Antes de elucidar como esta tese está estruturada, preciso registrar que as
reflexões de Paulo Freire, na obra “Pedagogia do Oprimido”, foram fundamentais para
pensar a minha atuação profissional e de que maneira eu deveria pautar a minha
aproximação com as lideranças ciganas de modo geral, e não apenas no contexto da
pesquisa de Doutorado. Primeiro, por encarar as experiências com as lideranças como
momentos de mútuo aprendizado e de dialogicidade, ao mesmo tempo sendo
“educandos” e “educadores”, sem estabelecer uma hierarquia entre os saberes. Em
segundo, por concordar que a libertação do estado de opressão é uma “ação social”, não
podendo, portanto, acontecer isoladamente, uma vez que os homens e as mulheres são
“seres sociais” e por essa razão, a consciência e transformação do meio deve acontecer
em “sociedade”. Terceiro, por partir do pressuposto que são os próprios “ciganos” que
devem atuar como protagonistas de suas “lutas por direitos” e no enfrentamento ao
racismo que está entrelaçado à ciganofobia, e não nós pesquisadores ou juristas, pois,
como diz Paulo Freire, “somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os
opressores” (1987, p. 24), em outras palavras, no momento em que os oprimidos se
libertarem, os opressores deixarão de existir, e assim ambos encontrariam a liberdade.
Inspirar-se no pensamento de Paulo Freire para se inserir num campo de estudo
que diz respeito aos ciganos, grupo historicamente oprimido na sociedade, pode ser
compreendida como uma forma de fazer “pesquisa militante”, termo que é utilizado
para
[...] contemplar as linhas de pesquisas associadas a diversas formas de ação
coletiva, que são orientadas em função de objetivos de transformação social.
Nesse sentido, militância seria o compromisso ético e político com a
mudança social e que, por isso, implica posicionamentos e atuações proativas
em várias áreas da vida, como a profissional e a acadêmica, envolvendo a
inserção em espaços coletivos de discussão, articulação e mobilização com
objetivo de viabilizar e potencializar lutas políticas que representem a
construção de uma sociedade mais justa e igualitária. (BRINGEL;
VARELLA, 2016, p. 482)

As reflexões de Paulo Freire, assim como esta perspectiva da “pesquisa


militante” contribuíram acima de tudo para pensar a minha intencionalidade enquanto
pesquisador, pois assumo um lado, não cabendo a mim estar em “cima do muro” em
face dos processos que promovem a desumanização da “existência cigana” na sociedade
e todas as implicações. Por sua vez, assumi também que há limite na minha atuação,
pois não é um estudo em si que vai transformar a realidade, e sim as pessoas que
mudam o mundo. Dessa forma, um dos meus propósitos com esta pesquisa é colaborar
47

para a problematização da realidade e instigar a organização dos próprios “ciganos” a


lutarem pelos seus direitos e contra as opressões.

Da estrutura do texto

Dividi a presente tese em quatro capítulos. No primeiro, intitulado


“Insubmisssos”, refliti acerca do aparecimento da questão cigana no Direito e nas
práticas estatais, situando o leitor acerca das razões e em qual contexto foi apresentado a
necessidade de um marco regulatório de natureza humanitária voltado para os povos
ciganos no Brasil. Em seguida, no capítulo “Cadê nossos direitos?”, descrevi e analisei
como se deu a emergência da proposição do PLS 248/2015 no Senado Federal. No
terceiro capítulo, “Vai além do nomadismo”, busquei compreender de que forma a
construção político-jurídica do “Estatuto” promove a produção da ciganidade. Por fim,
no quarto capítulo, “A Capital das Leis”, busquei identificar e descrever quais as
normativas que têm perpassado a tramitação do “Estatuto” no Senado Federal, de que
forma se dá os usos do tempo como mecanismo de poder, assim como quais os
significados das disputas políticas, inclusive no movimento cigano, que podem ser
percebidas neste processo legislativo.
Nesta tese, etnografar a tramitação do PLS 248/2015 no Senado Federal
correspondeu a uma oportunidade de articular conhecimentos do “Direito” e da
“Antropologia”, admitindo que a “criação de lei” e a “luta pelos direitos ciganos” são
agendas que podem ser de interesse das pesquisas promovidas no campo jurídico32. Ou
seja, descrever densamente um processo que envolve o Estado na prática legislativa, “de
base empírica e calcada no trabalho de campo e na perspectiva comparativa contrastiva”
(LIMA; BAPTISTA, 2014, p. 9), em que fiz um movimento duplo. Refleti sobre a
atuação de grupos, lideranças e associações ciganas no processo do “Estatuto”. E,
simultaneamente, busquei compreender o que está por trás de um processo legislativo,
que tem como destinatário os “povos ciganos”, e que pauta a redefinição das fronteiras
dos direitos humanos no Brasil.

32
“Assim, é somente a partir da conjugação dos diversos tipos de saberes produzidos no campo do Direito
(teóricos e empíricos) que se poderá tentar entendê-lo melhor e, com isso, eventualmente, aprimorar os
seus mecanismos para torná-lo mais transparente. Nesse sentido, como já mencionado, assume
importância o estudo das práticas judiciárias, normalmente relegado pelos juristas, mais preocupados em
manualizar o conhecimento jurídico, uniformizando as suas categorias e normatizando condutas segundo
um conceito idealizado e utópico” (LIMA, 2013, p. 13).
48

Capítulo 1
“Insubmissos”

1.1 - A questão cigana no Brasil

“Eles (os ciganos) chegaram ao Brasil há quase 500 anos e têm poucos direitos
reconhecidos”; essa expressão que destaco é parte do subtítulo de uma reportagem do
programa “Porta Aberta”, que foi produzido e veiculado pela TV Senado no mês de
abril 2018, para abordar e noticiar a tramitação do “PLS 248/2015”1. Em outra
reportagem do mesmo canal de comunicação, em referência a criação do “Estatuto do
Cigano”, exibida pelo “Programa Inclusão”, afirmou-se que “não existem dados
oficiais, mas, segundo relatos, os ciganos são originários da Índia e se espalharam pelo
mundo há cerca de mil anos”2. Cito estas narrativas pois elas informam três questões
abordadas no primeiro capítulo da tese: o aparecimento dos ciganos; a sua presença no
território brasileiro, desde o início da colonização portuguesa, e de que modo essa
trajetória pode ter culminado na tentativa de produção de direitos por meio da
proposição legislativa do Senador Paulo Paim.
O texto inicial do “PLS 248/2015” está acompanhado, formalmente, por uma
“Justificação”, como ocorre, em geral, em todos os projetos de lei submetidos ao Poder
Legislativo. A “Justificação”, que vem após as propostas de matérias legais do “Estatuto
do Cigano”, possui 5 (cinco) curtos parágrafos. Entre eles, aqui, inicialmente, destaco o
que faz referência direta à “história dos ciganos no Brasil”: “Embora os ciganos tenham
chegado ao Brasil, com o precursor João Torres, ainda em 1574, até hoje padecem de
desigualdade material com o restante da população brasileira.” (BRASIL, 2015c, p. 5,
meus destaques).
Neste capítulo, selecionei e analisei alguns elementos discursivos e
não-discursivos, assim como eventos relacionados à “história dos ciganos” no Brasil
que podem ser mobilizados para compreender a necessidade de “um catálogo normativo
de proteção aos direitos”, como informa a “Justificação” do projeto de lei aqui analisado
(BRASIL, 2015c, p. 5). Não haveria proposição de um “Estatuto” se os povos ciganos
não fossem concebidos enquanto uma “questão social”.
Contudo, é impossível trazer com exatidão a trajetória desses “povos” que
chegaram e ocuparam o território brasileiro. A principal razão, conforme ponderado por

1
Refiro-me à reportagem “A cultura cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos” (TV SENADO,
2018a).
2
Refiro-me à reportagem “Povo cigano: a luta para manter a tradição e combater o preconceito” (TV
SENADO, 2018d).
49

diferentes autores brasileiros (TEXEIRA 2008; MOONEN, 2011; GUIMARAIS, 2012),


é que se trata de um “povo” ou um conjunto de “povos” de cultura “ágrafa”, que, em
geral, não registram por escrito suas “histórias”, isto é, suas “memórias” e “trajetórias”
foram e são passadas, entre as gerações, em sua maioria, de forma oral. Por isso, o que
temos de registros escritos sobre os “ciganos”, em sua grande maioria, foram
produzidos pelas pessoas “não ciganas”.
Outra dificuldade para delimitar a “história dos ciganos” no Brasil é que não
existe uma trajetória linear, tampouco há um único “povo”, mas sim diferentes “povos”,
“clãs”, “famílias extensas”, com e, principalmente, sem conexões entre si. Podemos
estar diante, portanto, de uma infinidade de narrativas. Neste sentido, ao invés de adotar
a expressão “história”, optei pelo uso do termo “aparecimento”.
Como a proposta desta tese é descrever e compreender “a construção
político-jurídica do Estatuto do Cigano”, por meio da etnografia da tramitação do “PLS
nº 248/2015” no Senado Federal, foi preciso fazer uma opção metodológica: abordar a
“aparecimento dos povos ciganos”, no Brasil, a partir dos instrumentos normativos,
produzidos durante o período colonial que visaram, direta ou indiretamente, a gestão
desta população. Porém, tais instrumentos jurídicos não podem ser entendidos de forma
isolada pois integram um conjunto heterogêneo de elementos (discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas) que contribuíram para compor o que chamo nesta pesquisa de
“dispositivo cigano”.
Ao identificar e analisar o conjunto de leis, cartas régias, portarias e decretos que
alcançaram os “ciganos”, assim como as “permanências coloniais” na práticas estatais
que continuam atravessando a “existência cigana”, no contexto contemporâneo, é
possível refletir sobre as “Justificações” apresentadas no PLS nº 248/2015 para tentar
introduzir um “Estatuto do Cigano” no ordenamento jurídico brasileiro. Em outras
palavras, como surgiu a “questão cigana”, levando em consideração, principalmente, o
papel das leis mobilizadas para gerenciar este povo tradicional no Brasil, antes e após a
independência.
Denomino o primeiro capítulo de “Insubmissos”3, em referência metafórica aos
ciganos, não no sentido generalizante, em si, mas como um mecanismo interpretativo
que nos propicia refletir sobre a seguinte questão: como, apesar de tudo, os “ciganos”

3
Ao adotar esta expressão, levo em conta os estudos da autora portuguesa Elisa Costa, que defende que
“a insubmissão do Povo Cigano percorreu, em movimento constante, a Época Moderna”, uma espécie de
reação à ordens das classes dominantes “tendentes a modificar hábitos e comportamentos como se fossem
alteráveis por força de leis, na expectativa de uma correcção jamais alcançada” (2005, p. 168).
50

sobreviveram e estão presentes no mundo inteiro como povos culturalmente


diferenciados na sociedade majoritária. A resistência e a “insubmissão” são marcas da
presença dos “ciganos” no Brasil.

1.1.1 - Sobre o dispositivo

Partindo do pressuposto de que os “povos ciganos”, da forma como é


vislumbrado hoje, nem sempre existiu, a pretensão deste trabalho é refletir parcialmente
os jogos de relações que definem este fenômeno enquanto uma questão social. Isto
mediante duas perspectivas fundamentais que serão exploradas neste capítulo: sua
constituição histórica, assim como sua regulação institucional. Para tal, utilizo-me do
conceito foucaultiano de “dispositivo”, de modo a conceber esta realidade como
resultado de correlações dinâmicas entre agentes, discursos, instituições, que
culminaram na proposição legislativa do “Estatuto do Cigano” no Senado Federal.
Seguindo a hipótese anteriormente apresentada na introdução da tese, que os
povos ciganos sempre foram - em diferentes intensidades - um grande domínio de
ingerência pelas classes dominantes, é possível dizer que recentemente - sobretudo a
partir dos anos 2000 - ocorreram mudanças nas formas de conformação deste
dispositivo. Entretanto, o que consiste um dispositivo?
De acordo com o pesquisador Daniel Lucca Reis Costa (2007), o conceito de
“dispositivo” surge na obra de Foucault justamente quando o autor passa a se dedicar à
pesquisa das práticas sociais, deixando de lado a noção anterior - quando pretendia
referir-se unicamente às estratégias discursivas - para o desenvolvimento de um
conceito capaz de lidar ao mesmo tempo com um conjunto de práticas discursivas e não
discursivas. Neste sentido, o dispositivo consiste em, simultaneamente, um mecanismo
analítico, mas também, uma rede de práticas concretas cujas relações “apresentam
racionalidades e inteligibilidades imanentes que o analista deve trazer à tona” (2007, p.
23).
Foucault apresenta dispositivo da seguinte forma:
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos.
Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode
existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode
aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento
que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode
51

ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando−lhe acesso a um


novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos
ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações
de funções, que também podem ser muito diferentes.
Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em
um determinado momento histórico, teve como função principal responder a
uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica
dominante. Este foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de
população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista
achava incômoda: existe ai um imperativo estratégico funcionando como
matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou−se o dispositivo de
controle−dominação da loucura, da doença mental, da neurose. (2001, p. 244)

Para a pesquisadora Judith Revel, “o termo dispositivo designa inicialmente


operadores materiais do poder, isto é, técnicas, estratégias e formas de assujeitar
desenvolvidas pelo poder. [...] mecanismos de dominação. Trata-se tanto de discursos
quanto de práticas, tanto de instituições quanto de táticas instáveis” (2011, p. 2,
destaque da autora).
O dispositivo é compreendido, portanto, como uma rede entrelaçada de
componentes que possui uma gênese histórica, conformando-se enquanto um conjunto
de práticas conectadas por meio de relações de força, no espaço e no tempo. “A
constituição do dispositivo está ligada ao surgimento de uma necessidade histórica
resultante de um acontecimento que se torna objeto estratégico de múltiplos
agenciamentos” (COSTA, 2007, p. 24). E este fato, com o qual o dispositivo aqui
analisado teria de lidar, é justamente o aparecimento dos povos ciganos no campo social
do território do que hoje é chamado de Brasil. Tal acontecimento, a emergência dos
povos ciganos enquanto um domínio próprio de poderes e saberes, as mudanças que
produz e da qual é produto, difundiu-se obtendo repercussão em uma pluralidade de
outros gerenciamentos operantes.
Ao ser questionado se um dispositivo pode ser definido por uma estrutura de
elementos heterogêneos, mas também por um certo tipo de gênese, Foucault afirma que
enxerga dois momentos especiais nesta gênese.
Um primeiro momento é o da predominância de um objetivo estratégico. Em
seguida, o dispositivo se constitui como tal e continua sendo dispositivo na
medida em que engloba um duplo processo: por um lado, processo de
sobredeterminação funcional, pois cada efeito, positivo ou negativo, desejado
ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com os
outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos
heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de
perpétuo preenchimento estratégico. (2001, p. 245)

O dispositivo não se refere a uma causa primeiro, seu preenchimento é sempre


tático, decorrência de infinitas ações que vão conformando-se uma sobre outras e
constituindo entre si correlações de forças e apoios mútuos.
52

Sendo assim, seria um equívoco pensar que exclusivamente a partir de um


acontecimento, neste caso o surgimento dos povos ciganos no campo jurídico, é que seu
dispositivo pôde ser instalado. O que os estudos de Foucault nos revela é que os
enunciados históricos surgem atrelados uns aos outros. É o dispositivo que demanda
uma propagação discursiva e prática de seu alvo. Ele o instiga, interpela, provoca,
obrigando-o a uma existência ativa em relações com outros termos. Enfim, é o
“dispositivo cigano” - o jogo de seus discursos, agentes, instituições e regulamentos -
que define esta realidade. E consequentemente, é apenas a partir deste jogo de forças
que os agentes podem questioná-lo, movê-lo e jogar com ele.
Assim, os ciganos e o seu campo de aparecimento podem ser melhor entendidos
como um dos mais modernos domínios de ingerência e gestão dos grupos
populacionais. A origem da expressão “cigano”, assim como dos grupos populacionais
que passaram a ser identificados como tais, como tratarei no próximo subtópico,
surgiram em um determinado contexto, data e serviu inicialmente a um propósito, que
foi ressignificado ao longo tempo. Significa dizer que o desenvolvimento do próprio
“dispositivo cigano” permanece cumprindo uma função estratégica dominante nas
relações sociais, porém de forma diferente do período colonial. O propósito e a função
estratégica que o “dispositivo cigano” passou a exercer na sociedade brasileira serão
discutidos neste capítulo.

1.1.2 - Narrativas sobre o aparecimento dos povos ciganos

Antes de relacionar a trajetória dos povos ciganos à “história do Direito” no


Brasil, dou destaque, neste tópico, às narrativas que buscam indicar o aparecimento
deste povo tradicional. Por isso, começo citando um episódio do carnaval de São Paulo
do ano de 2020 que abordou a “história dos ciganos” e me despertou alguns
estranhamentos.
Como abordou o sociólogo Roberto DaMatta (1997), o carnaval não se trata de
um simples evento comemorativo. Nele, construímos e renovamos nossa identidade,
enquanto brasileiros, que, assim como o carnaval, é atravessada por uma série de mitos,
em especial, a suposta cordialidade do nosso povo e nossa formação populacional como
um “espetáculo de raças”4. Nesse sentido, DaMatta leva em conta o ritual carnavalesco
4
Esta expressão remete aos estudos da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz que faz alusão a ideia
que foi construída, a partir de vários campos teóricos (medicina, direito, literatura, naturalista etc.), do
Brasil ser um país de raças híbridas que convivem harmonicamente. A autora mostra que este pensamento
foi central para fundamentar a concepção de “democracia racial”, ainda que houvesse uma convivência
entre os pensamentos políticos liberais e as teorias racistas oriundas das várias escolas darwinistas.
53

para tentar compreender a realidade do Brasil, que é marcado por uma intensa
hierarquização das relações sociais.
Em 22 de fevereiro de 2020, a escola de samba “Pérola Negra” abriu o segundo
dia de desfiles no Anhembi, cidade de São Paulo, com um enredo intitulado “Bartali
Tcherain: a estrela cigana brilha na Pérola Negra”. Nas palavras do carnavalesco
Anselmo Brito, responsável pelo enredo, “para o carnaval 2020, a Escola de Samba
Pérola Negra irá trazer um tributo ao povo cigano, um povo repleto de encanto,
mistérios e magia” (meus destaques). Abaixo compartilho o samba-enredo completo:
Sou a força do bem, emoção irradia / A estrela da sorte é a luz e me guia/
Minha Pérola é a escola que eu amo / Joia rara do samba e do povo cigano.

Sou eu filho do oriente/Sob a luz do luar valente / Mesmo perseguido não


irei me curvar/ Carrego meus costumes e heranças / A esperança sempre foi
motivação.

Se a vida insiste em dor e sofrimento/ Levo na bagagem o talento que


condena a inquisição / No velho continente, deixei marcas nessa gente/
Minha cultura aos quatro cantos florescia / Paixão que fez raiz em
Andaluzia.

Gira cigana, saia rodada / O seu bailado, acende a fogueira / Tem castanholas,
violinos e pandeiros / É festa pra dançar a noite inteira.
Na palma da mão destino traçado / Presente e futuro, nos levam ao passado
Energia reluz no cristal / A carta da sorte espanta o mal / Sou um bandoleiro
vagando na vida.

Coberto de ouro, paixão colorida / Nas minhas andanças de longas jornadas /


Cheguei ao Brasil / A terra de encantos mil / Olhai por nós, oh santa sara /
Olhai por nós, salve a cigana Madalena / A nossa voz. (LETRAS, 2020, meus
destaques)

Apresentados como “filhos do oriente”, a referência à Índia tem sido o principal


“evento” inicial, em diferentes fontes escritas, para indicar a suposta origem, o ponto de
partida da diáspora cigana. Contudo, os detalhes desta diáspora inicial são ainda
desconhecidos, com teorias conflitantes (CAIRUS, 2018). Mesmo que este lugar, caso
exista um único, seja a Índia, trata-se de um entre vários em que há registro da
passagem de pessoas ou grupos reconhecidos como “ciganos”, antes de chegar “ao
Brasil”.
O documentário francês Latcho Drom, de 1993, escrito e dirigido por Tony
Gatlif, traz também uma narrativa parecida a que foi levantada pela escola de samba
“Pérola Negra” sobre a jornada dos “ciganos”. Segundo este filme documentário, os
ciganos teriam saído do noroeste da Índia até a Espanha5, passando pelo Egito, Turquia,

5
A mensagem que o documentário “Latcho Drom” ou que o enredo da escola de samba “Pérola Negra”,
transmitem, justamente, a ideia que “os ciganos são sempre estrangeiros, provenientes do Egito, da
54

Romênia, Hungria, Eslováquia e França. Os diferentes povos ciganos destas localidades


que foram retratados no documentário estariam, supostamente, conectados pela música
e pela dança.
A dissertação de mestrado de Mina Girgis (2007) critica a forma como este
documentário retrata a origem dos ciganos na Índia dentro da World Music. Quando se
ignora a contextualização do grupo musical “Divana”, oriundo do Rajastão (norte da
Índia), que é associando superficialmente à “música cigana”, “é alimentando o fogo
desenfreado do exotismo que envolve qualquer coisa cigana no mundo de hoje, e
propagando o mesmo discurso que serviu para desumanizar a comunidade cigana”
(GIRGIS, 2007, p. 104, minha tradução). Apontar uma trajetória linear é um dos
elementos discursivos mais marcantes no “dispositivo cigano”, que, na maioria das
vezes, ao ser mobilizado, busca assujeitar e reduzi-los a uma única identidade,
previsível, estável e restrita.
Para o antropólogo Dimitri Fazito de Almeida Rezende,
Talvez o fato mais importante para a história dos ciganos tenha ocorrido na
fixação de alguns grupos numa região grega denominada Pequeno Egito (ou
monte Gyppe). Posteriormente, ao longo do século XV, muitos ciganos
chegando em solo ocidental passam a afirmar sua proveniência do Pequeno
Egito, que freqüentemente seria confundido pelos europeus com o próprio
Egito. Os nomes gypsies (inglês), gitanos (espanhol), gitan (francês), zingari
(italiano), zigeuner (alemão) e ciganos atestam esta relação e esta
representação fundamental sobre grupos etnicamente distintos. (2006, p. 698)

De toda forma, há uma série pesquisas que sugerem o fato dos “ciganos” terem
migrado do norte da atual Índia, das regiões do Punjab e Rajastão; entre os séculos 6 e
11, teriam cruzado o “Oriente Médio”; chegando na “Constantinopla” por volta do ano
1000 d.C; então, grupos de viajantes teriam se fixado na região do Peloponeso, na
Grécia, no início do século 12 e, por fim, teriam entrado no que se entende, hoje,
enquanto “Europa ocidental” por volta do século 15 (FRASER, 1992).
Segundo um estudo que envolveu institutos de pesquisas biológicas e de saúde
da Espanha, Portugal e Áustria:
Em resumo, nossas descobertas confirmam a alta heterogeneidade genética
dos grupos ciganos, que foi moldada por vários eventos fundadores
combinados com o baixo tamanho efetivo da população, criando um padrão
que imita as rotas migratórias que os ciganos seguiram dentro da Europa.
Mostramos que a maioria das linhagens maternas ciganas são de origem não
européia, apontando para uma mistura limitada com as populações vizinhas.
Finalmente, as informações filografadas fornecidas pelas linhagens femininas
indianas encontradas nos ciganos nos levaram a traçar a antiga pátria dos
ciganos europeus até o estado de Punjab, no noroeste da Índia, confirmando

Grécia, da Índia, da Andaluzia”, cujo o nomadismo é “mais que traço distintivo, é metáfora dos ciganos”
(FERRARI, 2002, p. 38).
55

relatos lingüísticos e antropológicos anteriores. (MENDIZABAL et al, 2011,


p. 9, minha tradução)

Voltando à referência que fiz ao episódio do carnaval de São Paulo, podemos


perceber que o “abre alas” e os demais carros alegóricos da escola de samba Pérola
Negra deram destaque às influências da cultura indiana, assim como fizeram referência
à “Santa Sara Kali” e à dança flamenca, reunindo os elementos mais comuns, que estão
presentes nas narrativas que tratam das supostas características do que se entendem pela
“cultura” ou pelo “povo cigano” no Brasil.
Desde as primeiras audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, em
que se discutiam a “questão cigana”, a partir de 2011, até os eventos mais atuais, entre
2018 e 2020, foi comum notar a presença da “música” ou “danças ciganas”, promovidas
pelas próprias representações “ciganas” ou pelos familiares convidados. Antes, durante
ou após a realização das audiências públicas. Embora seja um mecanismo de
generalização da própria “cultura cigana”, já que não existe uma única “cultura”,
considero ser um importante recurso estratégico para delimitar a condição de povo
tradicional e pautar a necessidade de atenção aos “ciganos brasileiros”, mediante a
previsão de normas protetivas específicas. Todavia, não deixa de ser uma estratégia
inserida na seguinte dialética: ao mesmo tempo que demarca uma diferença, com fins de
reivindicação de direitos, acaba também reduzindo a ela, uma vez que essa redução a
um estereótipo comum é demandado pelo próprio Estado.
Ou seja, para se reivindicar direitos específicos, como ocorre com a tentativa de
criação do “Estatuto do Cigano”, é preciso ser reconhecido como um povo tradicional.
Como ressalta a “Justificação” do PLS nº 248/2015, embora haja registros de “ciganos”
no Brasil desde o século 16, “até hoje padecem de desigualdade material com o restante
da população brasileira” (BRASIL, 2015c, p. 5).
Sem soberania sobre um território específico, no sentido de ter um
“Estado-nação”, os ciganos também podem ser considerados uma minoria étnica em
diferentes partes do mundo6. Especialmente no caso do Brasil, como mencionei no
parágrafo anterior, onde existem registros de pessoas que são identificados e se
identificam como ciganos desde o início da colonização portuguesa, do século 16 em

6
É importante ponderar que em relação ao Estado brasileiro é mais comum traduzir a condição dos
ciganos enquanto um “povo tradicional”, do que relacioná-lo à condição de “minoria étnica”. Uma vez
que “povo tradicional” é a tradução para o português da expressão “povos tribais” adotada na Convenção
nº 169 da OIT, tratado internacional que é aplicado aos povos e comunidades tradicionais, como é o caso
dos povos ciganos. Ao longo da tese, em algumas passagens, usei a expressão “minoria étnica” para se
referir aos ciganos, tendo em vista que esta denominação é também mobilizada por algumas lideranças.
56

diante, período marcado pela intensificação da diáspora dos ciganos da Europa


(FRASER, 1992, p. 14).
Outra menção que se faz na “Justificação” do projeto de lei é ao ano de “1574”,
em que se registrou o suposto fato de “João Torres” e “Angelina” terem sido deportados
para o Brasil, como parte da condenação por simplesmente serem ciganos. Embora
sejam sempre citados como os primeiros ciganos a chegar no Brasil, como é
mencionado em diferentes eventos políticos, textos acadêmicos e na maioria dos
discursos ocorridos durante os eventos políticos institucionais sobre os “direitos dos
ciganos”, Franz Moonen (2011) pondera que não se sabe realmente se eles (“João
Torres” e “Angelina”) embarcaram, sobreviveram a viagem e chegaram ao seu destino.
Além disso, como defende o antropólogo Martin Fotta, “é impossível estimar o
número total de indivíduos exilados como ciganos no Brasil, pois, muitos registros de
navios já foram perdidos” (2019, p. 325). Sobre a emergência dos “ciganos no Brasil”,
este autor argumenta no mesmo sentido suscitado por Franz Moonen, ou seja, embora o
primeiro cigano comumente vinculado por estudiosos ao Brasil seja “João Torres, que
foi expulso para o país em 1574”, não há nenhum “registro que comprove a sua chegada
neste território” (2019, p. 320-321). Levando em consideração fontes documentais do
período colonial, Fotta afirma que
Os nomes dos primeiros ciganos residentes na Bahia vêm dos registros da
Primeira Visita do Santo Ofício (1591–1592). Oito mulheres ciganas figuram
em sete denúncias tanto como acusadas (seis casos) como denunciantes
(cinco casos); outra mulher confessou blasfêmia dentro de um ‘período de
graça’. Dos seis casos em que as ciganas foram acusadas, quatro diziam
respeito a Violante Fernandes, que foi denunciada por várias blasfémias.
Outras mulheres ciganas foram acusadas de feitiçaria, renúncia a Deus ou
negação do Dia do Julgamento. (2019, p. 321)

“Estamos aqui há 444 anos”, afirmou a militante “cigana” Maura Piemonte


durante a audiência pública para discutir o “Estatuto do Cigano”, realizada na Comissão
de Direitos Humanos do Senado, em 28 de maio de 2018, fazendo referência ao ano de
“1574”. Na mesma ocasião e em seguida, Natasha Barbosa, representante da Secretaria
de Promoção da Igualdade Racial, no governo de Michel Temer, sustentou que “muito
antes de 1574, como seja mencionado, em 1534 eles já estavam aqui, e isso foi o
primeiro registro de um jesuíta falando sobre os ciganos aqui” (TV SENADO, 2018b,
meus destaques).
Interpreto que as possíveis dúvidas quanto à veracidade desta informação
compartilhada por Natasha Barbosa, assim como a falta de consenso em relação aos
dados que envolvem o ano de “1574”, como um todo, são parte das narrativas e
estratégias da resistência “cigana”. Esta imprecisão faz parte, inclusive, da própria
57

delimitação da identidade “cigana”, povo associado à ideia de “mistério”, como afirmou


o carnavalesco Anselmo de Brito, da Escola de Samba Pérola Negra. Principalmente por
ser um conjunto de povos de cultura, predominantemente, oral, as diferentes narrativas e
os processos sociais em si que envolvem os “ciganos” são dados de pesquisa tão
importantes quanto a própria exatidão exigida nos estudos historiográficos.
No caso do Brasil, é possível afirmar que há registros de diferentes fluxos
migratórios e de distintos grupos étnicos ciganos nos processos de ocupação territorial.
Como afirmei anteriormente, os primeiros teriam chegado de Portugal, a partir do
século 16, em contexto de rejeição, violência, perseguição e criminalização, por
simplesmente “serem ciganos”. São os casos dos “ciganos” chamados e que se
reconhecem como Calon, grupo étnico mais numeroso do Brasil, cuja origem está
associada à região da Península Ibérica.
Os Calon, cuja língua é o caló, são ciganos que se diferenciaram
culturalmente após um prolongado contato com os povos ibéricos. Da
Península Ibérica, onde ainda são numerosos, migraram para outros países
europeus e da América. Foi de Portugal que vieram para o Brasil, onde
são o grupo mais numeroso. Embora os Calon tenham sido pouco
estudados, acredita-se que não haja entre eles algo que se assemelhe à
complexa subdivisão dos Rom (TEXEIRA, 2008, p. 10, meus destaques).

Segundo Pieroni (2002), os ciganos eram vistos como diferentes por não se
encaixarem no modelo aceito pela metrópole portuguesa, por isso, umas das penas mais
destinadas a este grupo social era o degredo, destarte, muitas pessoas e famílias ciganas
foram sendo trazidas forçadamente para o Brasil. Assim, perseguidos tanto por sua
identidade étnica e cultural, quanto por sua mobilidade e caráter constantemente postos
sob suspeita, os “ciganos” foram objetos de uma severa repressão em Portugal,
potencializado por uma legislação formulada especificamente para coibir o grupo
(MELLO et al, 2009, p. 03)
Os demais grupos étnicos e fluxos de ciganos no Brasil foram de “famílias
oriundas dos Balcãs e da Europa Central, que chegaram ao país no final do século
XIX”, são, em sua maioria, pertencentes ao grupo Roms, que “é dividido em vários
subgrupos (natsia, literalmente, nação ou povo), com denominações próprias, como os
Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara” (TEXEIRA, 2008, p. 10, meus destaques).
Teriam entrado no Brasil não como “ciganos”, mas como imigrantes oriundos da Itália,
França, Alemanha, Grécia, Espanha, atraídos para o Brasil pelo contexto de busca por
melhores condições de vida e oportunidades de trabalho, embora estivessem inseridos
num projeto político de “branqueamento” e “modernização” da recém nação
independente, a partir de meados do século 19.
58

Esse medo do negro que compunha o contingente populacional majoritário


no país gerou uma política de imigração europeia por parte do Estado
brasileiro, cuja consequência foi trazer para o Brasil 3,99 milhões de
imigrantes europeus, em trinta anos, um número equivalente ao de africanos
(4 milhões) que haviam sido trazidos ao longo de três séculos. (CARONE;
BENTO, 2002, p. 12)

Texeira (2008) especula que entre os italianos e alemães que imigraram para o
Brasil, por conta das consequências da Segunda Guerra Mundial, entre as décadas de
1940 e 1950, tenham vindo os Sinti, outro grupo étnico cigano, embora pondere que os
primeiros Sinti tenham chegado também no final do século 19 com os grupos Rom. Sinti
“são chamados Manouch, falam a língua sintó e são numericamente expressivos na
Alemanha, Itália e França” (TEXEIRA, 2008, p. 10).
O fluxo de imigrantes europeus, a partir de 1870 e principalmente após a
abolição da escravidão, em 1888, atraíram “milhares de ciganos Rom não-ibéricos, que
quase nada tinham e nem hoje têm em comum com os ciganos Calon ibéricos e
brasileiros, a não ser talvez a errônea denominação genérica de ‘ciganos’” (TEXEIRA,
2008, p. 48, meus destaques). Este autor acrescenta que não há como saber os números
exatos destes novos imigrantes ciganos Rom por absoluta falta de documentos
históricos.
Segundo o pesquisador Marcos Toyansk Silva Guimarais, “o genocídio
perpetrado pelos nazistas contra os ciganos é ainda amplamente ignorado na literatura
sobre o período da Segunda Guerra e o próprio termo cigano esconde a complexidade e
a diversidade de grupos que mantém traços culturais, interesses e história singulares”
(2012, p. 9, grifo do autor).
A respeito da questão do genocídio, que Marcos Toyansk se referiu, Mirian
Souza pontou que “o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial” se transformou
em um dos eventos-chave da “história dos ciganos, ao lado da emigração da Índia”,
assim como as “perseguições anti-ciganas na Europa durante a Idade Média” (2013, p.
104), por exemplo. Segundo esta autora:
O papel político desses eventos é muito claro entre os agentes políticos que
promovem a identidade roma. [...] O tema do Holocausto dos ciganos, porém,
está muito longe de ser apenas uma questão em torno de compensações
financeiras. Há uma dimensão mais importante, que é o desenvolvimento da
identidade roma na esfera pública. Nas últimas décadas, a perseguição étnica
tem formulado a base a partir da qual a identidade roma pode ser construída.
(2013, p. 106-107)

Resumindo, há três contextos históricos que podem ser considerados


“eventos-chave” da presença cigana no Brasil: a colonização portuguesa, a política de
estímulo à imigração de europeus, a partir do século 19, e o genocídio promovido contra
59

os “ciganos” durante a Segunda Guerra Mundial. Em diferentes medidas, o que todas


elas possuem em comum é o elemento étnico-racial como delineador das políticas
promovidas que contribuíram para as “diásporas ciganas”7.
É importante dizer que as políticas eugenistas não foram exclusividade dos
países europeus alinhados ao fascismo e que muito menos nasceram com o partido
nazista alemão durante a década de 1930. Segundo Salanski, “o termo eugenics foi
forjado em 1883 pelo inglês Francis Galton, primo de Darwin e autor de uma obra
importante sobre as faculdades hereditárias do homem” (2013, p. 170). Galton introduz
o neologismo “eugenics”, definindo-o da seguinte maneira:
a ciência da melhoria das linhagens, que não se limita de modo algum a
questões de cruzamento judicioso, mas que, particularmente no caso do
homem, toma conhecimento de todas as influências que tendem, ainda que
em um grau remoto, a dar às raças ou às estirpes sanguíneas mais
convenientes uma chance maior de prevalecer rapidamente sobre as menos
convenientes (1883, p. 25).

A “eugenia” como teoria científica, que defende a existência de raças superiores,


também foi institucionalizada no Brasil. Podemos citar a Constituição de 1934, que
previa o estímulo à “educação eugênica”, atribuição da união, dos estados e dos
municípios (art. 138); assim como o Decreto-Lei nº 406/1938, que proibiu a entrada de
“indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres” no território nacional (art. 1º, inciso II).
Considerados, inicialmente, vagabundos, avessos ao trabalho, exploradores
da boa fé e ladrões violentos e perigosos, com suas bruxarias e,
posteriormente, indivíduos racialmente impuros e degenerados, tornou-se
possível a plena justificação das perseguições e expulsões, a assimilação ou o
extermínio destes indivíduos indesejáveis, pelas autoridades públicas.
(REZENDE, 2000, p. 103)

Em relação à política de imigração, “a ideia era vedar a entrada de estrangeiros


tidos como impróprios à configuração étnica e eugênica do povo brasileiro”
(GRANGEIA, 2017, p. 21), sendo, portanto, os “ciganos” um grupo considerado
indesejado, ao lado de indivíduos reconhecidos como “vagabundos” e “indigentes”. No
caso do estímulo à “educação eugênica”, como política de Estado8, o historiador Mozart

7
Segundo as antropólogas Jéssica Medeiros e Mércia Batista, “a ideia da diáspora pode de certa forma ser
pensada em relação às populações ciganas, seja se tratando de representação e construção de identidades
coletivas, aproximando-se aqui da questão do nomadismo. Diáspora e nomadismo seriam não só
condições efetivamente experimentadas, como também imagens e retóricas que definiriam as
possibilidades e ação e organização” (2015, p. 207). Estas autoras partem da tese defendida pelo
sociólogo Robin Cohen (1997) que ao adotar o conceito de diáspora se contrapõe aos discursos que o
relaciona a origens fixas, enquanto leva em conta o desejo por um “lar”, o que não equivale ao desejo da
“terra natal” pois, segundo ele, “lar” poderia ser interpretado com o significado de local de origem.
8
Segundo Rezende, “o discurso mitológico-científico tem o poder de dividir socialmente o mundo,
legitimando algumas representações e imagens, e condenando outras. Utilizado como recurso para o
estabelecimento de estratégias e políticas públicas, o discurso mitológico-científico da ciganologia
contribuiu, em alguma medida, para a consolidação das perseguições e exclusões aos ciganos, além da
cristalização e manutenção de muitas de suas imagens deterioradas” (2000, p. 107-108).
60

Linhares da Silva considera como um exemplo do exercício da “governamentalidade


biopolítica, quando o homem brasileiro, o povo, passou a ser pensado na sua condição
de corpo-espécie da população” (2014, p. 900, grifo do autor).
A influência dos movimentos eugenistas no Brasil, percebida na década de 1930,
somadas aos efeitos das políticas coloniais anti-ciganas, como veremos nos próximos
subtópicos, não podem ser ignorados para compreender a construção político-jurídica
do Estatuto do Cigano. Uma vez que o direito e as formas aceitas de sociabilidade são
produtos de processos históricos, é possível dizer que por muito tempo os “ciganos”
foram gerenciados como indivíduos pertencentes a um grupo étnico-racial naturalmente
inferior e oficialmente rejeitados da formação da identidade nacional.

1.1.3 - As leis “anti-ciganas”

A inserção dos “ciganos” no Brasil, assim como nos países colonizadores, foi
marcada por mecanismos repressivos que ainda influenciam na definição de seu status
jurídico-político. Tentar compreender como e quando teriam começado as perseguições
aos “ciganos” e o porquê são questões relevantes para o meu objeto de estudo. Como se
trata de “povos”, em geral, de cultura ágrafa, é a partir da sistematização dos
documentos escritos emitidos por pessoas “não-ciganas”, como as “leis coloniais” e
outras medidas de natureza administrativa, que aqui busco construir uma genealogia
sobre a construção da condição “cigana” no Brasil.
Entre 1526 e 1761, dezenas de leis, alvarás ou cartas régias foram emitidos,
visando, especificamente, as populações “ciganas”. Por isso, cabe analisar as primeiras
informações sobre os “ciganos”, quando eles passaram a ser chamados como tais, a
partir do século 15, marco temporal relacionado ao início da reivindicação da
modernidade eurocentrada9, que permanece mobilizando o “anticiganismo” e as
classificações raciais, em geral, para se reinventar a partir de uma lógica individualista e
excludente.
Segundo Angus Fraser (1992), desde o século 15, a palavra “cigano”, que deriva
da palavra espanhola gitano, assim como a inglesa gypsy, é utilizada como um insulto10.

9
“Modernidade eurocêntrica” no sentido que a história do sistema-mundo
patriarcal/capitalista/colonial/moderno tem privilegiado a cultura, o conhecimento e a epistemologia
produzidos pelo Ocidente, o que ocorre até os dias atuais (MIGNOLO, 2000). Nesse sentido, segundo
Grosfoguel, “o monologismo e o desenho monotópico global do Ocidente relacionam-se com outras
culturas e povos a partir de uma posição de superioridade e são surdos às cosmologias e epistemologias
do mundo não-ocidental” (2008, p. 137).
10
É importante dizer aqui que há registros documentais de lideranças, que se identificam como ciganas e
ligadas à associação “AMSK”, que sugeriram que o marco legal a ser criado deveria ter a denominação
61

Há afirmações que indicam que o termo “cigano” teria sido “registrado pela primeira
vez em português em “A farsa das ciganas” de Gil Vicente” (TEXEIRA, 2008, p. 9), em
1521.Na peça teatral “A farsa das ciganas”, adota-se o uso da figura do “cigano” como
tipo social novíssimo no reino (em 1526), não apenas para retratar os “ciganos”, mas
para abordar parodicamente as táticas da nobreza para se manter no poder, com
casamentos endógenos, num enlace cultural fechado pela consanguinidade e pela
barganha política (NORONHA, 2019).
Entretanto, é possível dizer que o termo “cigano” apareceu em língua portuguesa
antes deste ano, num poema palaciano de Luís da Silveira, intitulado “As Martas de D.
Jerónimo” (RESENDE, 1852). O poema, publicado em 1516, com textos escritos desde
1449, atribuía “o desaparecimento das peles de toupeira (martas) que encurtara as
mangas do casaco de D. Jerônimo de Eça, a um ‘engano’ promovido por um “Çiguano,
ou muy fina feyticeira”. (RESENDE, 1852, p.295-296). Frisa-se que a denominação
“cigano”, atribuída por pessoas “não ciganas”, foram assumidas pelos “ciganos”,
obrigados a se identificarem às autoridades locais (GOLDFARB, 2013), embora “entre
eles a denominação fosse calés (singular caló), e ainda rons ou rones” (RAMOS, 1947,
p. 269, destaque dos autores).
O termo cigano é, na realidade, um estereótipo que incorpora vários
significados e interpretações preconceituosas que, de certo modo, impõem
àqueles assim identificados, determinadas formas de comportamento e
valores. Por outro lado, o termo cigano também não é uniforme ou fixo no
tempo e espaço, pois depende das percepções individuais e coletivas, do
contexto das interações e dos sentidos ou das interpretações elaboradas pelos
atores.(REZENDE, 2000, p. 89, grifo do autor)

Relaciono, neste estudo, a “questão cigana” no Brasil ao conceito de


“colonialidade”, pensado por Quijano (2002), como algo que transcende as
particularidades do “colonialismo” histórico e que não desaparece com a independência
ou com a descolonização. Essa proposta teórica é uma tentativa de compreender a
modernidade “eurocentrada” como um processo intrinsecamente vinculado à
experiência colonial. Essa diferença entre “colonialidade” e “colonialismo” possibilita,
dessa forma, identificar e explicar as permanências nas formas coloniais de dominação,
como a “raça”, mesmo após o fim das administrações coloniais.
Segundo Aníbal Quijano, a história do poder colonial teve duas implicações
decisivas para os povos, de alguma forma, colonizados. O grande número de diferentes
povos, “cada um com sua própria história, linguagem, descobrimentos e produtos

“Estatuto dos Povos Romani” (AMSK, 2013). Resgato também uma ocasião, durante o evento
comemorativo do “Dia Nacional do Cigano”, realizado em 2019, em Brasília, em que chamei uma pessoa
da Sérvia de “cigana” e fui imediatamente repreendido da seguinte forma “cigano não, rom”.
62

culturais, memória e identidade foram despojados de suas próprias e singulares


identidades históricas” (2005, p. 9). A segunda implicação é, talvez, menos “óbvia, mas
não é menos decisiva: sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o
despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não
seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores”
(QUIJANO, 2005, p. 9).
Portanto, o conceito de “colonialidade” está relacionado à defesa da “raça”
enquanto a primeira categoria social da “modernidade”, tecnologia de classificação da
humanidade, que não deixou de existir com a abolição da escravatura no continente
americano ou africano. De acordo com Foucault, o sujeito pode ser “dividido no seu
interior e em relação aos outros. Este processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o
doente e o sadio, os criminosos e os bons meninos” (2009, p. 01, destaque do autor). E
aqui acrescento outras amostras de divisão do sujeito “em relação aos outros” a partir da
categoria raça: branco versus não-branco (negro, cigano, índio etc).
Diante das continuidades nas formas coloniais de dominação, como o conceito
de “colonialidade” propõe, lanço o seguinte questionamento: é possível que a
positivação de direitos, como é o caso do PLS 248/2015, reverta as consequências de
anos de processos coloniais? Ou, nas palavras de Rita Segato:
[...] depois do longo processo de colonização europeia, o estabelecimento do
padrão da colonialidade e o aprofundamento posterior da ordem moderna sob
a condução das Repúblicas – muitas delas tanto ou mais cruéis que o próprio
colonizador de ultramar – poderia agora, subitamente, o Estado retirar-se?
(2011, p. 9, minha tradução).

Embora Quijano dê ênfase aos “índios” ou aos “povos trazidos forçadamente da


futura África como escravo”, aqui defendo que os “ciganos” também foram e ainda
estão inseridos nas formas coloniais de dominação, processo que é central para a
constituição do Estado-nação, do Sistema de Justiça e das subjetividades estabelecidas
como padrão na contemporaneidade. Em Portugal, no século 16, a categoria “ciganos”
emerge de variadas fontes: “comerciantes estrangeiros às vezes acusados de
comportamento fraudulento; vagabundos (vadios) sem emprego estável; ou homens
desgovernados que ganharam a vida através da negociação ou roubo [...] O termo
cigano começa a denotar hábitos específicos e um modo de vida” (FOTTA, 2019, p.
322, destaque do autor).
Para a pesquisadora portuguesa Elisa Costa (2005), o papel do “povo cigano”
enquanto elemento colonizador, por consequência, construtor do Brasil, não vem sendo
tido na devida conta pela historiografia. Nesse sentido, a pesquisadora Florência Ferrari
sugere que as representações brasileiras sobre os ciganos não podem ser entendidas de
63

forma particularizada, uma vez que se defrontavam com outras análogas, provindas de
distintos lugares e períodos históricos. Isto é, fazem parte de “uma matriz de longa
duração que remontava ao início da Idade Moderna na Europa” (2002, p. 22, grifo do
autora).
Segundo Ferrari, relacionar os ciganos à “adivinhação, roubo de criança, compra
e venda de cavalos, espetáculos de música e dança, negócios escusos, uso de ouro” está
presente tanto em “obras literárias européias como em brasileiras” (2002, p. 22). Aqui,
nesta tese, compreendo que estas representações presentes na literatura foram
potencializadas e, ao mesmo tempo, incorporadas pelos instrumentos jurídicos que
visaram, direta ou indiretamente, os grupos identificados e que se identificavam como
“ciganos”, sobretudo, século 16 em diante. Tanto as narrativas da literatura como as leis
destinadas, direta ou indiretamente, aos ciganos compõem essa rede complexa e
heterogênea de elementos que integram o “dispositivo cigano”. Por isso, não podem
estar desassociados.
A partir da etnografia da tramitação do Projeto de Lei do Senado n° 248/2015,
notei que os episódios ou as narrativas de expulsões, extermínios, matanças,
difamações, calúnias e injúrias envolvendo os “ciganos”, por sua condição étnica-racial,
não ficaram no passado. São uma realidade. Por isso, é possível afirmar, concordando
com Marilena Chauí, que é um equívoco supor que o autoritarismo é “um fenômeno
político que, periodicamente, afeta o Estado”, pois, na verdade, a sociedade brasileira “é
autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político”
(2000, p. 94).
Por outro lado, a mobilização da “questão cigana” pelo Estado brasileiro, nas
últimas décadas, atrelado à retórica da inclusão social e de um país “multicultural”,
contribui para o fomento do que Chauí chama de “mito fundador”. Segundo Natasha
Barbosa, representante do governo federal na pasta da promoção da igualdade racial,
durante a audiência no Senado, em maio de 2018, “o sangue cigano corre nas veias de
todos os cidadãos da nossa nação” (TV SENADO, 2018b).
A ideia de “nação brasileira” está permanentemente sendo constituída. E para
isso, segundo a filósofa Marilena Chauí, alguns mitos são construídos e ressignificados,
representam narrativas compostas “por soluções imaginárias para tensões, conflitos e
contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”
(CHAUÍ, 2000, p. 5-6), têm por função denegar a violência em nossa sociedade,
essencialmente autoritária.
64

Natasha Barbosa: Nós temos que lembrar que desde então, os ciganos, os quilombolas,
negros, todas essas comunidades estão em nosso sangue, então é um compromisso que
eu acho que ter para além das políticas públicas, ela tem que ser pessoal e aqui eu acho que
a criação do Estatuto e todos os outros avanços que nos promovemos aqui, mas em especial
o avanço do estatuto, fique sinalizado não como uma política de governo, porque essas
políticas não podem parar daqui para o fim das eleições, mas ela são políticas, o Estatuto do
Cigano, ele realmente tem que ser uma política de Estado. (TV SENADO, 2018b, meus
destaques).

Entendo que a narrativa da “mistura harmônica de raças” , que vem sendo


mobilizada também a partir da “questão cigana”, é um desses mitos. Para a autora
Marilena Chauí, “fundação” se refere a um momento passado imaginário, tido como
instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo. É limitado falar
que os “ciganos” apenas participaram da formação cultural do Brasil, por exemplo, pois
remete a ideia de uma história propriamente dita, encerrada.
O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e,
em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do
ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda
os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se
acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente
acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações
produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. É
exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente.
(CHAUÍ, 2000, p. 7).
Nesta tese, parti do pressuposto que a “questão cigana” se iniciou desde as
primeiras interações dos “ciganos” nos territórios brasileiros, contexto da colonização e
que teve como marco inicial a política de degredo, desde a Península Ibérica e
especialmente de Portugal, assim como o nomadismo forçado dentro do próprio
território brasileiro; e que permanece, até o presente momento, sob novas roupagens.
Hoje, no Brasil, há a pretensão de instituir um estatuto (lei ordinária) para os
“ciganos”, contudo esta proposta não é inédita, apenas sua finalidade humanitária. Não
se pode esquecer que por séculos vigorou “leis anti-ciganas” emitidas no Reino de
Portugal, entre os séculos 16 e 18, com a pretensão de administrar, controlar e
exterminar os “ciganos” e a forma de vida a eles relacionados.
Como mencionei anteriormente, citando o pesquisador Fraser, os registros
documentais e da literatura da época apontam que a primeira “onda cigana” na Europa
Ocidental, a partir dos anos iniciais do século 15, “aparentemente era composta por
indivíduos relativamente bem comportados, cujos líderes se apresentavam não apenas
com títulos de nobreza, mas também com nomes cristãos - André, Antônio, Francisco,
65

Miguel, Thomás e outros” (MOONEN, 2011, p. 28). Por apresentarem nomes cristãos,
“salvo-condutos” e cartas de apresentação (que correspondem, mais ou menos, aos
passaportes da atualidade), emitidos por reis e papas, como o imperador católico
Sigismundo (1410-1437) e do papa Martinho V (1417-1431), as pessoas reconhecidas
como “ciganas” foram, inicialmente, bem recebidas pelas autoridades civis e
eclesiásticas. Contudo, estes documentos deixaram “de ter valor, em toda a Europa
Ocidental, a partir do final do século 16, e com eles desaparecem também – por serem
agora inúteis - os líderes ciganos com reais ou falsos títulos de nobreza” (MOONEN,
2011, p. 31).
As primeiras referências aos “ciganos” em Portugal aparecem no final do século
15 e logo começa também a perseguição a eles, sendo a partir do ano de 1526 em diante
proibida a entrada desta população e decretada a expulsão, entre outras penalidades,
daqueles que já se encontravam no país, sendo o Brasil um dos destinos para o degredo
(COSTA, 2005).
Pieroni afirma que em Portugal “uma das primeiras medidas adotadas para
resolver o desconforto social causado pelos ciganos, foi decretado por D. João III, no
ano de 1535. [...] ciganos estrangeiros foram expulsos, os nacionais proibidos de usar
suas vestimentas e de dedicar-se à ociosidade e à vagabundagem” (1991, p. 220) Este
autor acrescenta que foi “apenas no final do século 17 que nós conseguimos ver o exílio
generalizado de ciganos para o Brasil” (1991, p. 231), no entanto, em ambos lugares,
“apesar do tom imperativo e da severidade das leis, as medidas judiciais não
conseguiram fazer com que os ciganos desaparecessem, como tem sido a intenção deles
desde a lei de 1537 ”(1991, p. 237).
Segundo a estudiosa portuguesa Elisa Costa (2005), no artigo “Contributos
ciganos para o povoamento do Brasil (séculos 16-19)”, é possível afirmar que as
punições aos “ciganos” começaram desde cedo. A autora pondera que se está diante de
um povo de cultura oral, e que não há documentos escritos pelos próprios “ciganos”,
por isso, a legislação específica produzida no decurso do tempo em Portugal,
semelhantes a outros sistemas normativos no continente europeu, é a única fonte com
carácter sistemático disponível.
Percebe-se que a maioria das “faltas que lhes foram imputados são tão-somente
formas de expressão da sua cultura e tradições, cuja perpetuação em nada tinha a ver
(conforme ainda hoje sucede) com a área geográfica em que estavam a viver” (COSTA,
2005, p. 154). Por exemplo, a Lei de 28 de Agosto de 1592 estabelecia penas aos
“ciganos” que, dentro de 4 meses não saíssem de Portugal ou “se não se avizanhassem
66

nos Lugares sem andarem vagabundos, não podem andar, nem estar ou viver mais em
ranchos, ou Quadrilhas, tudo sob pena de morte natural”.
Em 24 de maio de 2019, durante evento de comemoração ao “Dia Nacional do
Cigano”, organizado pelo governo federal, em parceria com o MPF, Aline Miklos, que
se identifica e é identificada como cigana da etnia Kalderash, pesquisadora em história
da arte, afirmou que ao longo da colonização do Brasil, três condutas, associadas aos
ciganos, foram tipificadas enquanto crimes: andar/morar em grupo, falar a própria
língua ou vestir-se de forma diferente do padrão. “Urgia mudar os comportamentos
sociais diferenciadores a fim de tornar os ciganos iguais à restante população” (COSTA,
2005, p. 155). Conforme destacou Elisa Costa, as legislações específicas no período
colonial tinham como alvo:
[...] a itinerância praticada sempre em grupo (e, ao atraírem gentes
não-ciganas causavam ainda mais temor logo, eram vistos como uma ameaça
redobrada), vestirem traje de ciganos (ou seja de maneira diferente),
conversarem na sua própria língua, designada por geringonça nos
documentos (trata-se do dialecto caló, falado na Península Ibérica, sendo a
língua denominada romani), a leitura da sina pelas mulheres (referida como
buena-dicha na documentação da época), fingirem saber feitiçarias, a prática
de furtos insignificantes, esmolarem sem a necessária, quiçá indispensável
autorização, ou apenas a circunstância de serem ciganos (“giciano”,
egipciano, egitiano ou egiciano são as formas como surgem referidos).
(COSTA, 2005, p. 155)

Embora os documentos oficiais portugueses, a partir do século 16, ordenassem


aos ciganos saírem do país, estes não tinham para onde fugir, pois Portugal só tem
limites terrestres com a Espanha, onde também eram perseguidos. Por essa razão, a
partir de 1649, foi intensificada as ordens de deportação dos “ciganos” em direção às
colônias ultramarinas. Contudo, parece que estas medidas tiveram pouca eficácia, pois,
em 1694, outro documento emitido pelo rei informa “que os ciganos nascidos neste
Reino continuam em seu usos e delitos, sem tomarem gênero de vida nem ofício de
possam sustentar-se, vivendo arranchados e juntos em quadrilhas, trazendo os mesmos
hábitos e trajes de ciganos, sem terem domicílio certo ...” (COELHO, 1995, p.
219-220).
Pieroni defende que “o exílio permitiu que a antiga Metrópole se livrasse de seu
contingente populacional considerado inútil e perigoso e, ao mesmo tempo ofereceu à
alma pecadora a possibilidade de se purificar de seus pecados” (1993, p. 127).
Ao contrário da Espanha e de outros países europeus que previam a pena de
morte, Portugal parece ter evitado ao máximo a aplicação desta pena, embora estivesse
prevista, preferindo o banimento dos “ciganos” para suas colônias ultramarinas
67

(MOONEN, 2011), o que não deixa de ser cruel pois se tratava um caminho sem volta,
em que famílias, casais, filhos eram separados.
Nesse sentido, segundo o pesquisador Bill M. Donovan, “talvez a repressão mais
severa tenha ocorrido em Portugal, onde a Coroa tentou sistematicamente cercar e banir
famílias ciganas das colônias estrangeiras na África e na América” (1992, p. 33). Este
autor argumenta que as condições sociais e econômicas do Brasil colonial mudaram as
categorizações portuguesas dos ciganos como desviantes sociais. Os limites sociais
foram fundamentalmente mudados na colônia, já que os escravos africanos substituíram
os ciganos como a camada mais marginalizada e mais perigosa da sociedade
luso-brasileira.
Fotta afirma que as fontes revisadas até agora tratam “da criminalização e
controle dos ciganos, como representantes de um povo indisciplinado, de estilos de vida
indesejáveis e costumes estranhos, tudo o que poderia ser eliminado com a assimilação
deles, através do emprego, sedentarização e desmanchando as comunidades” (2019, p.
328). Por outro lado, este autor defende que um olhar mais atento nas interações
cotidianas dos ciganos, durante os tempos coloniais, revela uma mais positiva, embora
ambígua, inserção no tecido social brasileiro.
Apesar do status de marginais, os ciganos brasileiros permaneceram em uma
situação melhor que os ciganos europeus, que continuaram a enfrentar a
opressão étnica. A tensão social criada pela escravidão criou o espaço social
para que os ciganos brasileiros atinjam uma permanente, embora tênue,
acomodação com o resto da comunidade branca até a época da
independência. (DONOVAN, 1992, p. 47)

De toda forma, fazer referência ao casal “João Torres” e “Angelina”, como os


primeiros “ciganos” a entrarem no Brasil, em 1574, ou qualquer outra data mais antiga,
é comum entre as narrativas que abordam a participação dos “ciganos” no processo de
fundação do Brasil, como abordei no segundo subtópico deste capítulo. Com base nas
“leis coloniais” produzidas entre o século 16 e 18, a deportação em massa de “ciganos”
portugueses para o Brasil, como uma política de Estado, provavelmente, se iniciou – ou
se intensificou - a partir de 1686, pois, nesse ano houve dois documentos emitidos pelo
rei de Portugal, informando que os “ciganos” deveriam ser degradados para o
“Maranhão”, uma região distante dos principais portos da colônia e das áreas de
exploração da atividade mineradora.
É possível afirmar que o processo de construção político-jurídica do “Estatuto do
Cigano” no Brasil acaba sendo mobilizado como uma forma de reposta às
representações negativas historicamente aprimoradas que induzem uma permanente
68

desconfiança em relação a população “cigana”, pois são recorrentes na atualidade as


narrativas que relacionam a vivência “cigana” a episódios de violência e discriminação.
A respeito da construção destas representações, Rezende afirma que
as imagens sobre os ciganos são o resultado de manipulações e disputas entre
atores (ciganos ou não) no campo de forças simbólicas, onde discursos e
práticas se formam e se fundem, possibilitando a percepção e categorização
do mundo social, onde atores rotulados como ciganos ocupam um espaço
socialmente estigmatizado, correspondente às relações de poder. (2000, p. 90)

A delimitação da identidade do colonizador, ser civilizado, sedentário, associado


à condição branca, precisou ser construída em contraposição a outras identidades,
tratadas como naturalmente inferiores, “a codificação das diferenças entre
conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta
estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a
outros” (QUIJANO, 2005, p. 227). Uma diversidade de culturas e identidades presentes
nos continentes hoje conhecidos como “África” ou “América” foram reduzidos a uma
única identidade, respectivamente, negros e índios; da mesma forma as pessoas
conhecidas como “ciganas”.
A colonização dos territórios hoje conhecidos como “América” ou “África”, a
partir do século 15, não significou apenas a invasão de territórios e a sua exploração
econômica. Para a história da humanidade, o colonialismo eurocêntrico representa o
maior processo de tortura, genocídio e etnocídio que ocorreu no mundo; atingiu, de
forma distinta, os mais diversos territórios e grupos populacionais subjugados e
classificados racialmente como inferiores (índios, negros, ciganos etc), como também
diferentemente os homens e as mulheres.
Os alvarás e outros documentos de natureza normativa emitidos pelo rei
português e demais autoridades, cujas as atuações influenciaram na gestão do território
brasileiro, revelam fortes indícios que a colonização perpassou também sobre o controle
dos corpos das mulheres ciganas, assim como ocorreu com as demais mulheres,
especialmente as não-brancas. Há diferentes leis produzidas a partir do século 16 que
previam punições e tratamentos distintos aos homens e mulheres “ciganas”.
Neste sentido, é importante contextualizar o surgimento destas “leis
anti-ciganas". De acordo com Rezende:
A condenação moral dos ciganos como indivíduos perversos, hereges e
selvagens e, conseqüentemente, a suposição de banditismo, violência e
vagabundagem tomou contornos definitivos ao longo dos séculos XVI e
XVII, graças à incorporação dessas representações populares sobre os
ciganos pela literatura e caracterizações artísticas do início da Idade
Moderna. (2000, p. 97, meu destaque)
69

Segundo Elisa Costa (2005), o agravamento das penas, que foi acontecendo a
partir do século 16 adiante, tinha relação direta com a condição de “insubmissos” dos
ciganos. Preconizou-se, em especial, a separação das famílias, tudo o indica com a
intenção de os exterminar apesar de tal não estar explícito nos textos do corpus
legislativo, excepção feita às duas leis que lhes impuseram a pena máxima. A integração
a ser preterida em favor da exclusão e, de certa maneira, da reclusão eis como pode ser
caracterizado este período.
O ‘modo de vida cigano’ era, portanto, associado, visto como práticas sociais
desviantes, tipificado como conduta criminosa, objeto de punição, do
controle externo, “como tudo aquilo que não devemos ser”. As leis do
período colonial não buscavam, portanto, apenas determinar como os
“ciganos” e as “ciganas” deveriam se comportar para serem aceitos, mas,
acima de tudo definir qual comportamento padrão que deveria ser seguido na
sociedade. (COSTA, 2005, p. 156)

Por exemplo, o “Alvará régio de 20 de Setembro de 1760” impôs aos homens


“ciganos” o trabalho como soldados ou em obras públicas e que as mulheres “ciganas”
deveriam viver recolhidas em casa e se ocupar dos mesmos ofícios que seus pais. As
políticas “anticiganas” pretendiam regular os comportamentos da generalidade das
pessoas punidas com tal condenação. Além disso, é possível deduzir que muitas
mulheres ciganas, não todas, foram deportadas para o Brasil com fins reprodutivos,
como parte do projeto colonizador, vivenciaram uma dupla opressão, como os homens
“ciganos”, por conta da sua condição étnica, e por serem mulheres.
Se é possível afirmar que, em diferentes sociedades, havia hierarquia e relações
de gênero como relações de poder e prestígio desigual “com a intervenção colonial
estatal e a imposição da ordem da colonial / modernidade, essa distância opressiva se
agrava e amplifica. Ocorre uma mutação sob o manto de uma aparente continuidade”
(SEGATO, 2003, p. 25).
A normatividade rígida de gênero, centrada na reprodução e na domesticidade e
feita como ideal civilizatório contra os males de uma interação “desviante” em termos
de gênero e sexualidade, como se buscou com as leis coloniais visando as mulheres
ciganas, faz parte do arsenal racista da “colonialidade” e, uma vez imposta como ideal e
parâmetro de relações, modifica as conformações das formas de relações entre os
colonizados, reforçando estruturas e hierarquias de gênero que tinham outras dinâmicas
(SEGATO, 2003).
A significativa presença de mulheres que se identificam e são identificadas
enquanto “ciganas” em ambientes públicos, como se dá na tramitação do PLS nº
248/2015 e realizando funções econômicas e política autônomas, práticas
70

historicamente associadas aos homens, vão de encontro às normativas sociais que


delimitam os papéis a serem cumpridos pelos homens e pelas mulheres. Inclusive
desmistifica a construção que se dá nos imaginários sociais de que as mulheres
“ciganas” cumprem apenas papéis submissos ou secundários em suas respectivas
famílias, ao mesmo tempo, que são consideradas agressivas quando circulam em
ambientes externos, igualmente perigosas, como os homens “ciganos” são tratados.
Os preconceitos e estereótipos racistas e ciganofóbicos aos quais essas mulheres
são submetidas são sempre produzidos por marcas de gênero e por conotações
fortemente sexualizadas (REA, 2017). As representações “cigana misteriosa” e
“feiticeira” podem ser percebidas na emblemática expressão “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada” (1994, p. 32), descrição de Machado de Assis sobre a Capitu, personagem
de Dom Casmurro, uma das obras mais influentes da literatura brasileira, escrita no final
do século 19. Capitu, assim como as idealizações sobre as mulheres “ciganas”11, é o
oposto da mulher frágil, previsível e inocente, características que ainda buscam definir
os padrões femininos no contexto atual.
De modo geral, conforme destacou Rezende,
As representações sobre os ciganos continuaram através dos romances
picarescos dos séculos XVII e XVIII e, mais recentemente, nos romances do
período romântico do século XIX, revelando novos atributos e redefinindo
outros. A representação do cigano passa a incorporar de vez a imagem do
indivíduo anti-social e imoral, ao mesmo tempo que representa
romanticamente o aventureiro, amante inveterado e boêmio [...] Muitas das
representações coletivas que fundamentam as relações entre ciganos e
não-ciganos, atualmente, foram elaboradas a partir dos discursos
acadêmicos e científicos desenvolvidos desde o período renascentista..
(2000, p. 98-99, grifo do autor)

É importante também destacar, nesta tese, a interpretação que a pesquisadora


Florencia Ferrari (2006) fez acerca da apropriação da “figura do cigano” na construção
da identidade da nação brasileira. Um dos tipos sociais brasileiros que foram
fomentados pelas teorias, literárias e/ou científica, a partir do século 19, é a figura do
“malandro”12. E, como observou Ferrari, na representação da “malandragem cigana”,
isto é, “o cigano pode ser pensado como um análogo do malandro, um intermediário
específico da sociedade brasileira” (2006, p. 86). Todavia, embora esta autora tenha

11
Ao levar em conta as representações que Victor Hugo construiu em relação à figura de “Esmeralda” e
que Mérimée produziu em relação à Carmen, ambas personagens ciganas, Ferrari percebeu nestas obras
“a distinção entre as representações feminina e masculina dos ciganos; de um lado a sedução,
explicitamente aquela em que se encanta mas não se entrega, e também próxima à representação da
prostituta; e de outro, a ‘malandragem’ no negócio” (2006, p. 85). Em outras palavras, observa-se que o
uso da “cigana” como metáfora, isto é,” como linguagem para falar de um certo ‘tipo de mulher’” (2006,
p. 142, grifo do autor).
12
Segundo DaMatta, a representação social que criamos do “malandro” que se trata de um “ser deslocado
das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente
avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” (1997, p. 276).
71

sugerido que a “imagem do cigano” apresente um valor nacional próprio, por outro
lado, reconhece haver uma ambigüidade e uma plasticidade nesta representação13.
Na verdade, Ferrari propõe que o “cigano” pode ser “apropriado para pensar a
identidade brasileira”, para além da “representação universal do estrangeiro genérico, e
mostrar como o elemento estrangeiro pode ser realocado e ganhar novas significações,
passando a fazer parte de um novo universo simbólico local” (2002, p. 87). A
ambiguidade a que se referiu dá-se justamente pelo fato de que ao se aproximar a
“figura do cigano” aos “elementos nacionais” não torna esta população “menos
suscetíveis de preconceitos e medidas sociais efetivas em seu cotidiano”. É por conta
disso que Ferrari ressaltou que “o mapeamento do imaginário é uma maneira poderosa
de mostrar como foi se criando, e a força que resultou ter, um determinado conjunto de
ideias sobre os ciganos, por meio das quais o Ocidente continua operando até os dias
atuais no cotidiano com eles”(2002, p. 88).
De toda forma, não é possível mensurar, exatamente, em que medida foram
eficazes as diversas leis, alvarás, cartas régias, visando especificamente a população
“cigana”, promulgadas ao longo dos séculos, que visavam tanto os homens como as
mulheres. Leis que previam medidas distintas para os “ciganos” e as “ciganas”.
Embora não estivesse explícito nos textos das leis e ordenações, o objetivo dessa
produção intensa produção legislativa era separar as famílias “ciganas”, assim como
criminalizar, mudar e extinguir os comportamentos associados aos “povos ciganos” no
Brasil, assim como nos demais territórios colonizados por Portugal. Não apenas os
“ciganos”, mas aqueles ou aquelas pessoas que se unissem ou manifestassem traços
comportamentais “ciganos” também foram alvos do controle social nas leis do período
colonial.
Inspirado nos estudos de Foucault, é possível dizer que este conjunto de leis
“anti-ciganas” tinha como principal alvo a “liberdade”. São reflexos de políticas que
expressam “o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros,
quando o caracterizamos como ‘governo’ dos homens, uns pelos outros” . Este autor
ainda pondera que “o poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto ‘livres’ –
entendendo-se por isto sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo

13
Segundo Rezende, as opiniões expressas nas enciclopédias e nos dicionários, conceituando
negativamente o cigano, foram uma das principais formas de divulgação do conhecimento a partir do
século XVIII. Tratado como “conhecimento legítimo”, influenciou na formação dos “homens cultos,
autoridades e políticos e, finalmente entre aqueles das classes menos favorecidas que começavam a ter
acesso a um sistema de educação formal” (2000, p. 99). Ao meu ver, além das enciclopédias e
dicionários, as obras literárias também contribuíram para a formação educacional das classes e das elites
dirigentes, influenciando, assim, na elaboração políticas e das leis brasileiras, que incorporaram e
reproduziram as representações criadas sobre os “ciganos”.
72

de possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de


comportamento podem acontecer” (FOUCAULT, 2009, p. 12).
Tais políticas coloniais revelam, portanto, um campo de tensão que tinha como
principal motor a insistência dos “ciganos” em auto determinarem a forma como
querem viver, a maneira como se vestir, se comunicar, sobretudo por adotar uma
linguagem própria, como morar, como buscar a sobrevivência, ou seja, como se
organizam e se pautam enquanto coletividade distinta da sociedade majoritária e que
resistem às tentativas de sujeição. A tentativa de exercício do poder tinha como intuito a
gestão da diferença, buscando, na verdade, não conviver com ela, mas sim aniquilar a
liberdade dos “ciganos”, a sua existência enquanto um povo distinto.
Nesta pesquisa, a possibilidade de mobilizar a perspectiva foucaultiana, que
parte do pressuposto que “o poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto
‘livres’”, dá-se porque trabalho com a tese que os “ciganos” são marcados pela
“insubmissão”, interpretando suas existências como uma forma de resistir às tentativa
de discipliná-los e sujeitá-los ao padrão colonial de sociabilidade. Em outras palavras,
interpreto que as “leis” e “políticas anti-ciganas” foram um dos mecanismos acionados
para o exercício do poder justamente porque havia resistência dos “ciganos”, que para
existir precisa se pautar na liberdade. Pensar desta maneira é compreender os“povos
ciganos” não apenas enquanto sujeitos vitimados pela ação do poder de forma passiva,
mas que também conseguem organizar estratégias de resistência, que vão desde a
preservação da sua linguagem própria, das movimentações entre os territórios e até
mesmo a atualização de suas narrativas e mitos.
Não somente as tentativas de sujeição, como também as respostas em forma de
resistência integram o “dispositivo cigano”. Não obstante, se os mecanismos de controle
e criminalização não cessaram, embora tenham sido ressignificados, significa dizer que
a “insubmissão” e a resistência podem sim ser vislumbradas como uma das marcas dos
povos ciganos ao longo do espaço e do tempo.
Fotta defende que “o contexto colonial e pós-colonial está subjacente às
semelhanças e diferenças no tratamento e é central para a compreensão da posição dos
ciganos no Brasil” (2019, p. 317). As relações de poder no Brasil são atravessadas pelo
racismo e pelo anticiganismo, que, por serem estruturais, não precisam de leis
expressas, como ocorreu durante o período colonial. “O fim do status de Brasil colonial
não significava o fim das relações coloniais” (FOTTA, 2019, p. 317).
Por outro lado, a presença de famílias ciganas em quase todos estados e em
diversos municípios brasileiros confirma que houve um permanente processo de
73

resistência, que as políticas “anticiganas” do período colonial não foram plenamente


eficazes, mas certamente produziram efeitos determinantes na delimitação das
identidades e representações ciganas. Como afirmou Rezende, “se pudéssemos traçar
uma característica cultural comum aos chamados ciganos esta seria sem dúvida sua
resistência às pressões externas das sociedades em que vivem” (2000, p. 55). Como já
foi dito aqui, após a independência ou com o advento das ideais liberais-republicanas no
Brasil, não cessaram as políticas “anticiganas”, pelo contrário, se reinventaram, a partir
de novas roupagens, como são percebidos nos registros jornalísticos e nas obras
científicas sobre os “povos ciganos” século 19 em diante.
É por esta razão que o conceito de “colonialidade” é adotado, nesta tese,
especialmente no próximo tópico, como uma das chaves interpretativas para refletir
sobre a permanência de práticas discriminatórias e racistas contra a população cigana, o
que muitas vezes são associadas ao passado. Parto da hipótese que tais permanências
têm motivado a tentativa de aprovação do “Estatuto do Cigano”, como um instrumento
de afirmação de direitos e, ao mesmo tempo, de reparação histórica.

1.1.4 - Permanências coloniais

A criação do “Estatuto do Cigano”, como propõe o Projeto de Lei nº 248/2015,


apresenta uma perspectiva absolutamente oposta ao conjunto de leis produzidas no
período colonial. Esta proposta parlamentar busca incentivar, organizar e implantar
políticas públicas “pró-ciganas”, com fins humanitários. É possível um instrumento
normativo (ou seu conjunto), por si só, modificar a realidade marcada pelo
“anticiganismo”? Em outras palavras, o direito positivado pode reverter a exclusão
social em que se encontra os “povos ciganos” no Brasil, após séculos de perseguições e
discriminações, que não cessaram? Pode apagar do imaginário social as representações
construídas e ressignificadas com o tempo sobre os “ciganos”?
Compreendo que o PLS nº 248/2015 se apresenta na condição de “carta de
direitos”, pois, é mobilizado como um instrumento de “correção moral”, de “reparação
histórica” e, ao mesmo tempo, de “intervenção estatal” em face das diversas realidades
que se encontram os povos ciganos brasileiros, em diferentes graus e formas de
exclusão, como, por exemplo, o alto índice de analfabetismo pela dificuldade de acesso
à escolarização formal, famílias vivendo em condições precárias de moradia ou com
74

dificuldades de acesso ao Sistema Universal de Saúde (SUS)14. “Correção moral”, neste


caso, consiste em enfrentar a discriminação racial e o “anticiganismo” por meio do
direito positivado e mediante a previsão de penalidades para quem cometer o “crime de
preconceito”. A “reparação histórica”, pois, se acredita que, por meios dos direitos
humanos, é possível reverter os efeitos de séculos de políticas coloniais “anticiganas”.
E, por fim, “intervenção do Estado” na medida que está estabelecido a necessidade de
ações, políticas públicas de todos entes federativos para promover a inclusão social dos
“ciganos”.
Natasha Barbosa, representante da SEPPIR no governo Temer, durante a
audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”, realizada no Senado Federal, em 28 de
maio de 2018, defendeu que intervir na situação dos “ciganos” no Brasil deve ir
[...] muito além dessa questão de classificação entre nômades, seminômades e itinerantes,
essa questão que traz justamente do preconceito [...] além dessa questão cultural, vai muito
além de saias das mulheres, vai muito além dos homens que tem as suas vestes, que eles
comercializam produtos, vai muito além disso. Nós sabemos que eles também enfrentam
preconceitos, eles enfrentam violações de direitos, e é pra isso que tentamos articular
em forças com todos os representantes a situação de unir os esforços das instituições,
das representações, da sociedade civil e governamentais dos três poderes, para que nós
consigamos avançar em todas essas políticas, para que se volte em prol dos nossos
povos ciganos, e falo nossos porque enquanto cidadã, eu coloco todos aqui nesse
grande bojo que é a nação brasileira. (TV SENADO, 2018b, meu destaque)

Seja os relatos que ouvi durante as audiências públicas realizadas no Congresso


Nacional, seja por conta da minha prática enquanto advogado popular de uma
associação civil “cigana” com atuação local, regional e nacional, desde 2015, posso
afirmar que as perseguições e a discriminação em face dos ciganos não cessaram no
Brasil. Portanto, para mim, está muito evidente a necessidade de políticas públicas e de
um marco legal protetivo para os “ciganos” que vivem no Brasil, diante do que chamo
de “permanências coloniais”. Contudo, esta minha perspectiva, assim como das
lideranças ciganas que atuam na tramitação do “Estatuto do Cigano”, defendendo a
necessidade políticas públicas para os ciganos, não é unanimidade.
O site do Senado Federal, por meio de uma consulta pública sobre o PLS
248/2015, que cria o “Estatuto Cigano”, está promovendo uma enquete que pergunta:
“você apoia essa proposição?”. Há duas possibilidades de resposta: sim e não. Até o dia
03 de junho de 2021, 122 participantes da enquete responderam “sim” e 72 participantes
“não”.

14
Destaquei essas três questões (saúde, educação e moradia) por serem recorrentes nas falas das
lideranças ciganas durante os eventos realizados no Congresso Nacional.
75

Imagem 1 - Consulta Pública sobre o PLS 248/2015

Fonte: Senado Federal (BRASIL, 2021).

A audiência pública realizada no dia 28 de maio de 2018, no Senado Federal,


para discutir a proposição do “Estatuto do Cigano”, foi transmitida ao vivo na TV
Senado, e também na internet, com possibilidade de interação por meio da participação
dos telespectadores. O vídeo completo, que possui 2 horas, 19 minutos e 12 segundos,
está disponível na plataforma do Youtube e também no site da instituição.
Na descrição do vídeo “Estatuto do Cigano - TV Senado ao vivo - CDH -
29/05/2018”, no site da plataforma do Youtube, é estimulado a participação das pessoas
da seguinte forma: “envie comentários ou perguntas por meio do Portal e-Cidadania e
do Alô Senado, pelo número 0800 612211” (TV SENADO, 2018b). Ao assistir a
audiência, é possível visualizar as mensagens que foram enviadas durante a transmissão
ao vivo por pessoas cadastradas no site do YouTube, perfis que interagiam entre si por
meio de um “chat”. Algumas das perguntas e comentários foram lidos pelo Senador
Paulo Paim durante a audiência.
Na “tabela 1”, abaixo, reproduzo, na ordem, todas as mensagens que foram
enviadas ao longo da audiência pública do “Estado do Cigano” que ocorreu no
Congresso Nacional:
76

Tabela 1 - Mensagens enviadas para o chat realizado ao longo da transmissão ao


vivo da audiência pública do dia 28 de maio de 2018 sobre o “Estatuto do Cigano”
Perfis Conteúdo das mensagens
Cristian Souza Nossa o nivel dos nosso congressistas - estatuto
do cigano??? que outra M vão inventar!!!????
Alug & Tok Stúdios CRIADORES DE ABSURDOS
FANTASIADOS DE BONZINHOS!!!!
Alug & Tok Stúdios CANALHAS!!!!
Alug & Tok Stúdios FECHEM ISSO PELO AMOR DE DEUS! !!
Alug & Tok Stúdios CIGANOS TEM HISTORIAS HORRIVEIS
PELO BRASIL.
Alug & Tok Stúdios Metodologia absurda COMUNISTA! !!!
Alug & Tok Stúdios Sou homem branco pobre magro e nao tenho
lei pra MIM?
Alug & Tok Stúdios CIGANO VAI TER MAIS DIREITO QUE
EU????
Cristian Souza Só esse senadorzinho para inventar esse tipo de
coisa.
lc A exterminadora do futuro. direitos humanos é uma roubada.
lc A exterminadora do futuro. se n fosse agora um dia seria por causa do PT
lc A exterminadora do futuro. mas esse PT deveria varrer rua.
lc A exterminadora do futuro. Vai se lascar cigana. trabalhar e tomar banho
Wictor Pazini esse pais e piada estatuto do cigano? Kkkk
lc A exterminadora do futuro cigano quer tomar banho
lc A exterminadora do futuro É por isso q tem um monte de garotos pelas
ruas filhos sem leis
lc A exterminadora do futuro Quer ter 10 filhos cada pobre
Wictor Pazini esse Paulo Pain da o brioco
lc A exterminadora do futuro 15 anos já é a metade do tempo do Brasil né ?
kkk
Pequeno Ponei cade o estatuto do boleiro , eu que jogo futebol
tambem tenho meus direitos
lc A exterminadora do futuro Tem que fazer barraco pra aprovar kkkk
lc A exterminadora do futuro pequeno sou guitarrista preciso do dia nacional
dos guitarristas
Josiel Samatine caramba é muita comemoração nesse país
falido
lc A exterminadora do futuro . Josiel vamo comemorar a falência
Josiel Samatine falência si continuar nas maos desses políticos
Edilson Bueno indiginos?? os verdadeiros brasileiros
JR é sério isso? estatuto do cigano?
Nilton Francisco estatuto dos ciganos ,,, tomem vergonha na
cara de vcs !!!!!!!!!
JR querem dividir o país a todo custo, e quanto
mais dividido melhor para os políticos
Rejane Tristão pior que é!
Thel L. CIGANEI, TO NO SITE ERRADO...FUI!
JR cigano, negro, branco, é tudo brasileiro,
pessoal.
JR mas qual o problema dos ciganos? não
conseguem trabalhar?
JR esperar do governo? querem treta?
JR Tinha que ser coisa do paim
JR não votar no paim para ele poder viajar o brasil
no ano que vem, com o dinheiro DELE, não
com o nosso
JR se tem uma etnia que precisa de ajuda, que
temos a tal dívida histórica, são os indígenas
77

JR não duvido que daqui a algum tempo estejam


discutindo o estatuto do bolivariano
JR tem que se tornar o país do TRABALHO.
parem de arrumar coisa para mamarem nas
tetas do governo
Rejane Tristão @Jr Se continuar do jeito que está quem vai
precisar de ajuda humanitária somos nós
JR É patético...gastando nosso dinheiro com uma
coisa dessas
Rejane Tristão É verdade
Rejane Tristão E isso porque o Brasil está pegando fogo
Eder Jacinto e verdade isto esta acontecendo
Cristian Souza Já vi que será criado algum orgão(fundação,
estituto...) para onerar ainda mais o estado...
JR o nosso lema para os próximos anos deveria
ser: BRASIL, PAÍS DO TRABALHO
Eder Jacinto por isto que em outubro de 2018 vou pescar o
mês todo
Rejane Tristão Com certeza é só isso que sabem fazer
JR pessoal quer emprego... e na realidade o que
tem de sobra é oportunidade de TRABALHO
Eder Jacinto parem agora
Cristian Souza Tem um estilo de vida diferente - Ok nada
contra. O problema é o contribuinte ter que
pagar por isso!!!
Fonte: TV Senado (2018).

Ao compartilhar as mensagens acima, não quero induzir que elas representam o


pensamento médio dos brasileiros, ou seja, que refletem como a população em geral
compreende a proposta de “Estatuto do Cigano”. Por outro lado, essas mensagens
revelam a continuidade de estigmas e representações sobre os ciganos que foram tecidas
ao longo dos últimos séculos e que são ressignificadas a todo momento; “sujos”,
“perigosos”, “que não trabalham”, que está inserido num contexto maior das diferenças.
O ataque ao reconhecimento do diferente e seus direitos.
Se a criminalização da condição cigana foi realizada durante séculos (16-18) por
meio de leis específicas, hoje, a classificação e o controle social externo, que igualmente
criminaliza condutas e conhecimentos relacionados aos “ciganos”, não precisa de leis,
está inserido nas práticas sociais, independe de normas jurídicas expressas ou dos
aparelhos repressivos estatais, no seu exercício do monopólio da violência. Isto
corrobora com uma das teses centrais da teoria foucaultiana a de que o poder não tem
um titular, e por essa razão, todos são passíveis ao mesmo tempo de sofrer e também de
exercer sua ação, como pode ser percebido no caso do chat da transmissão ao vivo da
audiência pública.
Devo ressaltar que eu estive presencialmente nesta audiência pública, e me
recordo do exato momento que o presidente da mesa, o Senador Paulo Paim, que
também é autor do PLS em discussão, dedicou um momento do evento para anunciar a
78

sua transmissão ao vivo na plataforma digital do Youtube e na TV Senado e para


selecionar um dos comentário do chat para ser lido em voz alta. Como se pode perceber
ao analisar a “Tabela 1”, todos comentários são em tom de crítica à criação do
“Estatuto” e mesmo assim o parlamentar não apenas expôs um deles durante a audiência
pública, como também retrucou diretamente os argumentos, fazendo um contraponto,
como uma forma de dar satisfação aos telespectadores. Ficou evidente que nesta
situação da audiência pública, o poder não foi exclusivamente exercido por aquele que
detinha poder político, no caso o Senador, mas este exercício teve que ser negociado e
reativado, inclusive com os espectadores.
Levando em conta a tramitação do “Estatuto do Cigano”, é possível dizer que a
própria lógica que fundamenta a convocação de uma audiência pública para discutir um
“projeto de lei” com os destinatários da proposição é um reflexo que este processo é
perpassado por múltiplas negociações, entre os parlamentares que precisam deliberar
sobre a matéria, entre estes e os “ciganos”, como também com os “não ciganos” e assim
por diante. Portanto, não existe uma situação estática e universal no âmbito das relações
de poder, mas na verdade um jogo de força e resistência.
Estas mensagens do chat da audiência pública dizem mais respeito a quem as
enunciaram do que aos próprios “ciganos”, mas, também qual o papel do Estado em
relação ao gerenciamento dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. E quanto a
isso, há uma disputa de significados e de quais são as funções que o Estado deve
desempenhar em face das desigualdades e das questões sociais, culturais e econômicas
em geral. As mensagens com conteúdo “anticigano” e racista estão entrelaçadas, direta
ou indiretamente, à ideologia do “anti-Estado”, no seu aspecto social e solidário.
A proposição do “Estatuto do Cigano”, a partir de 2015, ocorre num contexto de
ascensão de uma agenda política conservadora, pró-austeridade e neoliberal, ao mesmo
tempo em que há um crescimento de grupos e movimentos de extrema-direita, que
atuam intensamente na internet, quando há debates políticos. O geógrafo Flávio Ribeiro
de Lima afirma que a “ascenção da extrema direita no Brasil” é também caracterizada
pelo “o aprofundamento da hierarquização e da marginalização dos grupos (classe, raça,
gênero), o que tende a potencializar a inferiorização de mulheres, negros, LGBTQ,
indígenas, sem-terra, sem-teto e outras minorias” (2019, p. 212).
“Atualmente a internet e por consequência as redes sociais são os principais
meios para propagar o discurso de ódio” (NANDI, 2018, p. 37), em que grupos ou
movimentos de extrema direita buscam disputar seus ideais e mais adeptos, em qualquer
ambiente cibernético onde houver debate político. Por trás dos discursos de ódios de
79

conteúdo racista em debates políticos, como a criação de uma lei voltada para um povo
tradicional, milita-se pelo fim das políticas afirmativas, como as cotas, defende-se a
ampliação das desigualdades e manutenção dos privilégios, ao invés pautar-se mais
direitos e o enfrentamento às injustiças sociais.
Como se pode observar na “tabela 1”, não há nenhuma mensagem positiva ou
solidária à “luta dos ciganos por direitos” manifestada no chat da audiência pública do
“Estatuto” transmitida na plataforma do youtube pela TV Senado. O conteúdo destas
mensagens indica, no Brasil, que “já existe uma certa desinibição” na propagação de
discursos de ódios, “principalmente na esfera da Internet” (ANEZ; COSTA, 2019, p.
206).
Isto é, em contraponto a perspectiva de solidariedade por trás da proposição do
“Estatuto do Cigano”, em que se demanda ações e intervenções (positivas) estatais na
promoção de direitos, interpreto que os comentários do chat, em sua maioria,
prevalecem “o ódio como afeto político” (CASTELO BRANCO, 2019). Ou, como
adverte Walter Benjamin (1994) sobre uma das marcas fundamentais dos autoritarismos
políticos15, há um processo de estímulo às massas expressarem seu ódio, mas não
reivindicar direitos.
As políticas eugenistas dos séculos 19 e 20 ou as formas como os ideais racistas
e/ou ciganofóbicos se manifestam na atualidade são, em diferentes medidas, expressões
das “permanências coloniais”, ou seja, da “colonialidade do ser”, “ do saber” e “do
poder”, em que a “raça” ou a “etnia”, que continuam como mecanismo de classificação
social, que desumanizam, desprezam os conhecimentos e as organizações políticas dos
povos e grupos sociais tratados como “inferiores”, como é o caso dos “povos ciganos”
na relação com a sociedade brasileira.
Por isso, é importante refletir o papel constitutivo da “colonialidade” na ideia do
moderno. Como afirma Mignolo, “a colonialidade do poder abre uma porta analítica e
crítica que revela o lado mais escuro da modernidade e o facto de nunca ter existido,
nem poder vir a existir, modernidade sem colonialidade” (MIGNOLO, 2003, p. 633).
Para Fanon (1975), a modernidade não era senão uma outra expressão da
modernidade/racismo, a vil segregação e a pretensão de superioridade da Europa sobre
todos os outros povos da Terra.
A necessidade de mobilização de leis anti-ciganas revela uma das
especificidades das relações de poder. De acordo com Foucault, o poder não é “da

15
A ponderação de Walter Benjamin se dá diante da iminência da chegada do partido nazista ao poder na
Alemanha, em que a instrumentalização do ódio, como, por exemplo o antisemitismo e anticiganismo,
foram mobilizados para realizar políticas eugenistas e genocidas, entre as décadas de 1930 e 140.
80

ordem do consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade,


transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns (o que não
impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista
e se mantenha)” (2009, p. 11). É fundamental, portanto, pensar o “anticiganismo” em
face das relações de poder como efeito de um consentimento anterior ou permanente;
jamais, por sua própria natureza, enquanto manifestação de um consenso.
O aparecimento e a intensificação de políticas “anticiganas” coincidem com o
contexto de profundas transformações no mundo, no aspecto dos costumes, na política,
na mundialização da racionalidade econômica e dos padrões culturais. Ou seja, ocorre
simultaneamente à ascensão da modernidade “eurocentrada”, que é ao mesmo tempo
racista e “anticigana”.
Como ressaltou a pesquisadora Florencia Ferrari, “o Ocidente é pensamento,
produto do contato com os ciganos e definido por oposição a eles” (2002, p. 22, grifo do
autor). Compreender as permanências coloniais e a estruturação da modernidade a partir
da concepção “eurocêntrica” não pode desprezar o papel das representações construídas
em torno dos ciganos nos últimos séculos. Estas construções foram incorporadas e,
simultaneamente, potencializadas não apenas pela literatura, como abordou Ferrari, mas
também pelos próprios instrumentos jurídicos, em abstrato, como também nas práticas
estatais a partir das revoluções liberais16.
Segundo Nobert Elias (1990), é no século 16 em diante que teria se desenvolvido
o conceito de civilização, de civilidade, dentro da perspectiva de “homem civilizado”
em contraponto ao “incivilizado”, contexto que está relacionado também a um aumento
“da pressão que as pessoas exercem reciprocamente”, o controle social torna-se mais
imperativo.
No uso cotidiano da linguagem, o conceito de civilização é, muitas vezes,
despido de seu caráter originalmente processual (como derivação do
equivalente francês “civilizer”). Contudo, para realmente pesquisar o
processo civilizador é necessário saber a que elementos comuns não-variáveis
dos seres humanos, assim como a que elementos diversos variáveis, o
conceito de civilização se refere. A coação social à /auto-coação e a
apreensão de uma autoregulação individual, no sentido de modelos sociais e
variáveis de civilização, são universais sociais. (ELIAS, 1990, p. 21-22,
destaque do autor)

16
“Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da
análise. A “egopolítica do conhecimento” da filosofia ocidental sempre privilegiou o mito de um “Ego”
não situado. O lugar epistémico étnico-racial/sexual/de género e o sujeito enunciador encontram-se,
sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistémico étnico-
-racial/sexual/de género, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um
conhecimento universal Verdadeiro que encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o
lugar epistémico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do
qual o sujeito se pronuncia” (GROSFOGUEL, 2008, p. 119).
81

O que o autor citado acima sugere é que as relações que o processo civilizador
encerra podem ser pensadas em diversos universos sociais. Ainda aceitando as
profundas implicações históricas do conceito com a realidade da Europa, berço da
palavra e da ideia de “civilização”, podemos nos voltar para as noções de regulação
social e auto-regulação como instrumentos relevantes na compreensão do
comportamento social, em se delimita uma nova fronteira social: “ser civilizado” e “não
ser civilizado”. Fronteira que também se vale da manipulação do “anticiganismo”.
Embora Elias faça o rastreamento histórico do termo “civilização” e dos sentidos
que o envolvem, sua teorização acerca do processo civilizador demanda outras
contextualizações. É importante lembrar que a “ideia de raça, em seu sentido moderno,
não tem história conhecida antes da América” (QUIJANO, 2005, p. 117), cuja
colonização se intensificou, de fato, a partir do século 16. A “raça” e a “identidade
racial” foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da
população, seja a partir da América (e depois Ásia, África e Oceania), mas também
dentro Europa, onde, por exemplo, diferentes povos passaram a ser reduzidos a uma
única identidade: gypsies, gitanos, ciganos etc.
Nesse sentido, o “anticiganismo”, o “ser cigano” como “tudo aquilo que não
devemos ser”, o oposto de civilizado, ideia que está ainda presente na sociedade
brasileira, assim como em outras partes do mundo, é parte do processo civilizador, que,
por longos períodos, especialmente entre os séculos 16 e 18, precisou mobilizar
instrumentos de regulação social, mediante coerção externa, como a lei, para combater
práticas (viver em comunidades, famílias extensas, andar e morar em “bando”),
comportamentos (usar trajes “diferentes” e viver de trocas) e conhecimentos (as
linguagens chamadas de “geringonças”, quiromancia e a cartomancia) associados aos
povos ciganos. Buscou-se não apenas criminalizar a existência cigana e assimilá-los à
sociedade majoritária, como também naturalizar nas relações sociais hábitos e costumes
opostos aos praticados pelos ciganos.
Os relatos obtidos da pesquisa de campo sobre a tramitação do “Estatuto do
Cigano” são fontes que indicam a continuidade de práticas violentas em face dos
“ciganos”, sejam exercidas por “autoridades” da burocracia estatal, sejam por pessoas,
em geral, da sociedade. Estes relatos revelam ainda que muitos ciganos temem serem
identificados como tais e por esse motivo optam por esconder ou reduzir a sua
“ciganidade”. Embora não haja mais, no Brasil, leis específicas criminalizando a
identidade e cultura cigana, como ocorreu, principalmente, no período colonial, esta
população ou o que ela representa continua sendo alvo de regulação social. E as formas
82

de controle social não deixam de ser atravessadas pelo “Direito” ou pelo “aparato
estatal”.
Segue abaixo alguns desses relatos emitidos por representações ciganas durante
a audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”, em 28 de maio de 2018 (TV
SENADO, 2018):
Luiz Bruno: Estou aqui representando os ciganos do Maranhão, só que lá está tendo muito
preconceito, queria passar para Secretaria de Igualdade Racial, você sabe que o cigano vive
de comprar, vender e trocar, né? Mas eu tenho um filho mais velho [...], ele está sendo
abordado duas três vezes pela polícia lá quando sai pra fazer uma troca, fazer uma
venda, pra isso aí eu queria pedir uma providência à igualdade racial, os direitos humanos e
o senador Paulo Paim. O filho dele tão passando fome, que ele não pode mais sair pra
vender um carro, pra trocar, pra comprar, porque tá sendo abordado, tem dia que está sendo
abordado três vezes ao dia, e eu tô aqui a fim de declarar para todas as autoridades de
competência a esse fim de ver, dar uma intervenção nessa polícia de lá, nessa Justiça do
Maranhão, lá do Alto do Parnaíba do Maranhão. (meus destaques).

Maria Jane: aqui nós não somos individuais, a luta é uma só, a perseguição da polícia é a
mesma, o não atendimento da saúde é a mesma, da educação, é uma luta de todos [...]
Porque o estatuto é a nossa raiz, é a nossa base, é o que a gente vai ter pra dizer, ‘aqui oh no
nosso estatuto’, igual tem lá na Constituição, né? De 1988. Entendeu? (meus destaques).

Lú Ynaiah: Existe uma forma dizer ‘eu não quero vocês (ciganos) aqui’. Existe a outra
forma que eu faço o quê? Eu faço batida policial três vezes, eu não garanto a mínima
condição, eu não garanto a questão o do território, porque eu vou dizer que cigano adora
em carroça, de preferência carroça estourada, com lona furada, tá? (meus destaques).

Maura Piemonte: [...] quando um cigano nosso chega no município e tenta acampar, sobra
pra ele a periferia e a beira de estrada. É logico que ele vai ser fedido, é logico que ele tem
muito problema de saúde. [...] A SPU, além do seu Wanderley que vive, tem uma
comunidade que cedeu o espaço aqui em Brasília, que é o Elias, uma denúncia anônima que
veio de São Paulo, a polícia invadiu a comunidade dele e arrebentou tudo. Ele já tinha
tenda escola, ele tinha banheiro, água. Até hoje, nada mudou, ele foi embora, mudou
para Goiás e não consegue voltar porque está ameaçado pela polícia porque se ele entra lá
eles morrem. E quando um acampamento nosso é invadido, a gente não tem como ir na
delegacia. (Meus destaques)

Ao falar em “colonialidade” ou “permanências coloniais”, defendo que a


categoria mental “raça”, que também classifica a “ciganidade”, é ainda acionada para
definir os padrões de poder, de subjetividade e de conhecimento. Os relatos das
lideranças durante a audiência pública apontam que os “ciganos”, no imaginário social,
ainda são vislumbrados como o oposto de “civilizado”, sujeitos naturalmente
“inferiores”, “perigosos”, “trapaceiros”, “violentos”.
Acontece que o aprimoramento do “dispositivo cigano” no Brasil é, sobretudo,
marcado pela própria negação do racismo que esta população vivencia. Goodman e
Rowe, pesquisadores em psicologia discursiva, destacam uma questão primordial para
entender esse processo de negação, é fato que os conceitos de “preconceito” e “racismo”
são frequentemente usados “de forma intercambiável com poucas tentativas de
desambiguação” (2015, p. 34, minha tradução). Estes autores concluem que o
preconceito em face dos “ciganos” não é negado, mas apresentado como um resultado
83

inevitável, dadas as ações dos próprios ciganos17. Isso acontece num contexto em que há
uma hierarquia de preconceitos, em que apenas o “racismo” é considerado como algo
extremo demais para ser admitido, enquanto alguns “preconceitos”, como ocorre em
oposição aos “ciganos”, é visto como “aceitável”.
Embora o papel da polícia seja recorrente nos relatos das lideranças durante a
audiência pública, a violência em face das populações “ciganas”, por exemplo, não é
uma prática exclusiva desta instituição e, também, não precisa ser legitimada com base
em leis específicas. Pelo contrário, decorre da própria permanência e ressignificação da
categoria mental “raça” que gera o “anticiganismo”, como uma das expressões do
racismo, articulada a outros marcadores sociais, como a classe e o gênero. “As
instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2018 p. 36, grifo do
autor).
O ativista espanhol “cigano” Valeriu Nicolae compreende o “anticiganismo”
como um tipo específico de ideologia racista, uma ideologia de superioridade racial, que
está interconectada com outros tipos de racismo.
O antigitanismo em si é um fenômeno social complexo que se manifesta
através da violência, discurso de ódio, exploração e discriminação, em sua
forma mais visível. O preconceito contra os ciganos vai claramente além dos
estereótipos racistas que os associam a traços e comportamentos negativos. A
desumanização é o seu ponto central. Os ciganos são vistos como menos que
humanos; que são menos que humanos, são percebidos como seres que não
têm direito moral de usufruir de direitos humanos iguais aos do restante da
população (NICOLAE, 2016, p. 79).

A invisibilidade ou até mesmo a negação da própria “existência cigana” no


Brasil, quanto a sua contribuição para a fundação deste país, dificulta o reconhecimento
do “anticiganismo” como um problema social. Há particularidades no “anticiganismo”,
da mesma forma que em relação ao racismo enfrentado pela população negra, assim
como pelo racismo vivenciado pelas populações indígenas. Porém, o mecanismo de
“empobrecimento” é comum a todas estas populações para a estruturação do racismo
brasileiro, o que fortalece o discurso de “inferioridade cultural” ou o baixo nível cultural
das suas tradições.
O fato de ser identificado como cigano ou cigana, por algum traço físico,
vestimenta ou outra característica, expõe esta pessoa ou grupo a situações de
intolerância, discriminação, violência. Compartilho abaixo o “relato pessoal e pedidos
às autoridades” de Maria Jane, conselheira nacional do CNIPR (2019-2020), que integra
uma carta reivindicativa intitulada “Povo cigano do Brasil – Racismo, Competição,

17
O estudo de Goodman ocorreu a partir de uma análise em fóruns de discussão (na internet) sobre os
ciganos no Reino Unido em grupos de facebook.
84

Perseguição, Violência e Apoderação da cultura de um povo tradicional”, escrita em


abril de 2019:
Maria Jane: [...] Vi de tudo no meio do nosso povo cigano: invasão nos nossos ranchos
ciganos, violências como batidas, jogarem nossos homens dentro de carros de polícia para
pagarem pelo que nem sabiam, depois de muito sofrerem nas mãos de tais que saltavam
nossos homens ciganos.
Mulheres ciganas serem despidas, também crianças (minha mãe e meu irmão) por policiais,
por estarem em feiras aqui na Paraíba em busca de sustento, e por notícia na feira de roubo
ser pegos para dar conta do roubo que nem sabiam que se passava. (ASCOCIC, 2019)

O relato acima se aproxima do testemunho dado por Seu Wanderley da Rocha à


TV Senado, para a reportagem “A cultura cigana e a luta pelo reconhecimento de
direitos”, uma série de materiais que foram divulgados antes da realização da audiência
pública sobre o “Estatuto do Cigano”, publicada em 23 de abril de 2018 na plataforma
Youtube:
Seu Wanderley: [...] as pessoas, por racismo e preconceito não nos dá oportunidade até
mesmo na hora de nós trabalhar com nossas vendas, nossas senhoras, as mulheres, não
podem vender o pano de prato vestida tipicamente nós não temos renda. Se ela
esconde sua cultura e sai lá vendendo ela vende mais, simplesmente falta de interesse do
próprio Estado de reconhecer uma nação, de saber que nós somos eleitores porque nós
contribuintes, pagador de impostos.

Seu Wanderley é presidente da ANEC, associação que propôs a criação de um


“Estatuto Cigano”, por isso, um dos nossos principais interlocutores desta pesquisa
sobre a tramitação do projeto, como foi apresentado na introdução desta tese. Nas suas
palavras, em reportagem para a emissora de comunicação institucional do Senado
Federal, antes da proposição do estatuto, “tudo para nós foi invisível, violação de
direitos humanos em todas as áreas. Nós nos envergonhamos bastante de estar em pleno
século XXI diante de tantas leis que assegura direitos de igualdade racial de toda nação,
com os tratados internacionais que nós tem” (TV SENADO, 2018e).
Como foi discutido neste capítulo, o “aparecimento dos ciganos” no Brasil é
atravessado por políticas de controle social, que não se limitaram ao período colonial.
Neste sentido, é fundamental pensar o “anticiganismo” inserido nas relações de poder,
tendo como um ponto de partida as formas de resistência, como sugere Foucault.
[...] para compreender o que são as relações de poder, talvez devêssemos
investigar as formas de resistência e as tentativas de dissociar estas relações.
[...] tomemos uma série de oposições que se desenvolveram nos últimos anos:
oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, da
psiquiatria sobre o doente mental, da medicina sobre a população, da
administração sobre o modo de vida das pessoas. [...] - São lutas que
questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser
diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente
individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que
quebra sua relação com os outros, fragmenta a vida comunitária, força o
indivíduo a se voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um
modo coercitivo. (2009, p. 04)
85

Dizer que o “anticiganismo” pressupõe que a “existência cigana” é questionada e


combatida de inúmeras formas na sociedade pode até parecer redundante, mas não é se
levarmos em conta as relações de poder, tendo como pressuposto a relutância e a
persistência das pessoas que se identificam e são identificadas como ciganas em não
sucumbir ao padrão posto. A teoria foucaultiana nos ajuda a perceber que há um
movimento duplo, que ataca e simultaneamente gera uma resistência. Ou seja, as
investidas para controlar, disciplinar e exterminar os “ciganos” só ocorre porque há uma
“insubmissão” destes, que resistem, na medida que lutam para continuar a viver
enquanto tal. Uma vez que “ser cigano” se trata de uma classificação externa, que o
objetifica, que busca romper sua relação com os outros, o desmembrando da vivência
pública, ao mesmo tempo ratifica a luta destes pelo direito de ser diferente.
Por exemplo, o ”nomadismo”, que é interpretado pelo senso comum enquanto
um elemento que é inerente à “condição cigana”, não pode ser visto apenas como uma
imposição aos “ciganos” por serem perseguidos e vitimados pelo preconceito. Na
verdade, o que há é um jogo duplo, pois o deslocamento no espaço pode igualmente ser
encarado como uma resposta, isto é, como um mecanismo de resistência, ao passo que
os “ciganos” se recusam a incorporar as normativas externas que pretendem alcançá-los,
sendo o movimento entre territórios uma forma de resistência, e não somente uma
imposição. Da mesma forma que as habitações improvisadas, isto é, viver em “tendas”,
“barracas”, que o imaginário popular costuma atribuir como algo natural aos “ciganos”,
podem também ser vislumbradas como mais um instrumento de resistência, pois
viabiliza a itinerância quando lhe é imperativo e em consequência poder continuar
(re)xistindo enquanto “ciganos”.
Portanto, não é exagero afirmar que a presença, em si, dos “ciganos”
corresponde a uma forma de resistência na atualidade; ainda mais se levarmos em
consideração aqueles que vivem em comunidade ou famílias extensas, que continuam se
comunicando por meio da sua própria linguagem, mediante o uso de suas vestimentas,
assim como outros elementos diacríticos associados às culturas e às identidades ciganas.
Isto porque, como foi exposto neste capítulo, não foram poucos os mecanismos de
repressão mobilizados para converter as condutas sociais diferenciadoras com o objetivo
de transformar os ciganos como as demais pessoas da sociedade majoritária.
A colonialidade, conforme sustenta Quijano, manifesta-se sobretudo no campo
poder, portanto, na condição de categoria analítica, pode ser pensada juntamente com os
estudos de Foucault. Dos três tipos de lutas apontados por este autor, dois têm potencial
de contribuir para as formas de resistência cigana, as que são “contra as formas de
86

dominação (étnica, social e religiosa); [...] ou contra aquilo que liga o indivíduo a si
mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de
subjetivação e submissão)” (2009, p. 05). Por isso, defende que “o principal objetivo
destas lutas é atacar, não tanto ‘tal ou tal’ instituição de poder ou grupo ou elite ou
classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder” (2009, p. 05).
Portanto, é fundamental refletir em que medida a proposição legislativa do
“Estatuto”, no caso o PLS 248/2015, constitui uma das formas de resistência às relações
de poder que são perpassadas pelo anticiganismo. O “dispositivo cigano” não é
conformado apenas pelos mecanismos de dominação, mas também pelas variadas
formas de resistência, que não se limitam aos instrumentos institucionais, como um
projeto de lei, mas que envolvem também as negociações no âmbito das relações sociais
em que os “ciganos” estão inserido.

***

No primeiro capítulo, a reflexão sobre as “leis anti-ciganas” foi um dos pontos


de partida para compreender o “dispositivo cigano” e como estes elementos repercutem
no status político jurídico dos povos ciganos no Brasil, que é alvo do projeto de lei em
análise nesta tese. Por outro lado, a presença cigana neste território, desde o século 16,
nos forneceu o seguinte dado: sempre existiu resistência, em diferentes intensidades, às
tentativas de sujeição, apagamento e aniquilamento cultural.
Ao longo do período colonial, a função estratégica do “dispositivo cigano” foi
justamente o de promover a identificação deste “outro” indesejado, que corresponde ao
oposto do que se esperava das populações governadas pelas classes dominantes. Mas
não apenas tinha o intuito de classificar, de diferenciar, mas acima de tudo controlar,
segregar e por fim extinguir a sua existência, os convertendo ao que se passou a
entender enquanto civilizado. Portanto, é possível dizer que tal dispositivo foi
aprimorado para operar nas relações sociais como um todo, ou seja, visando igualmente
as pessoas identificadas como ciganas e sobretudo as “não ciganas”.
Os mecanismos de dominação que compõem o “dispositivo cigano” não se
restringem às leis ou às decisões regulamentares. Engloba também outros elementos,
discursivo e não-discursivos, formulações científicas, proposições filosóficas,
instituições privadas ou públicas, isto é, um conjunto heterogêneo de técnicas,
estratégias e formas de assujeitar desenvolvidas pelo poder. Tanto as leis anti-ciganas,
assim como uma passagem literária que reproduzem estigmas relacionados à existência
87

cigana são partes do “dispositivo cigano”, contribuem para o gerenciamento da vida em


sociedade. Envolvem ao mesmo tempo elementos discursivos, a partir do que é
anunciado, propagado publicamente, executado nas políticas estatais e nas práticas
sociais em geral. Assim como está presente nas práticas não-discursivas, na medida em
que tem o propósito de inibir comportamentos, formas de organização e de
conhecimentos relacionados aos ciganos
Portanto, a partir da noção foucaultiana de “dispositivo”, intercalando com os
estudos decoloniais, refleti como o “cigano”, ao fornecer um lugar do “outro” no
processo civilizatório e de conformação da modernidade ocidental, é ao mesmo tempo
reconhecido e constituído como uma figura que remete ao exótico, atrelado a uma
perspectiva folclorizada, estando também ligado ao lugar do perigo, da malícia, do
criminoso nato, que acaba naturalizando e justificando, assim, o “anticiganismo” na
sociedade em geral.
Por outro lado, no interior de um universo dissolvido pelo desconhecimento
quanto às vulnerabilidades sociais dos “ciganos”, certa realidade começou a ser
recortada, delimitada e ganhar contornos mais nítidos, o que pode ser percebido nas
articulações pela criação do “Estatuto”. E, neste processo, passaram a ganhar atributos
específicos, sendo identificados como uma classe de sujeitos que podem ser abarcados
também por políticas inclusivas e pela agenda dos direitos humanos, por se tratar de um
“povo tradicional”, o que não desfaz automaticamente outros aspectos a eles
relacionados que os objetificam e desumanizam, uma vez que são reflexos da própria
colonialidade. Foi em torno destes sujeitos que se passou a colocar uma série de
questões, que foram se unificando e conformando relações sociais, indicando modelos
de sociabilidade, articulando referências de identidade esperadas e modos de
reconhecimento público.
Todavia, a definição dos “ciganos”, quando pensada a partir do Direito e das
práticas estatais, inevitavelmente demanda uma categoria única, em que
simultaneamente permite estabelecer um campo de problematização em que convergem
motivações e atores variados, mas que está imerso na própria contradição pela qual foi
estruturada, visto que sua unidade se coloca como um estereótipo que termina por
produzir algo como um desconhecimento sobre sua própria realidade diversa.
Ainda que na condição de projeto de lei, desta vez de natureza humanitária, a
iniciativa de criação de um “Estatuto”, por si só, já transmite a natureza dinâmica e
promove transformações no “dispositivo cigano”. Uma vez que vem mobilizando uma
série de instituições, órgãos, regras, narrativas, atores e movimentações que contribuem
88

para a construção político-jurídica do sujeito de direito cigano. Esta trama oferece,


portanto, condições para vislumbrar a realidade dos povos ciganos enquanto uma
“questão social” e não apenas de polícia, como ocorreu historicamente.
Com a proposição do “Estatuto”, enquanto um marco regulatório a ser
incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, fica evidente o processo de
ressignificação do “dispositivo cigano”, que continua a exercer uma função estratégica,
tanto em face desta coletividade, assim como em relação à sociedade como um todo.
Tendo em vista que se passa a apresentar uma ideia de sociedade que é supostamente
pautada no pluralismo, no multiculturalismo, que precisa de amparo estatal para o
reconhecimento e para a proteção desta diversidade. Porém, trata-se de uma disputa em
face do “dispositivo cigano”, que por meio de seus múltiplos elementos e técnicas ainda
opera ingerências em face da existência cigana, a partir das fronteiras étnico-raciais que
legitimam a brutalidade policial, a segregação socioespacial e a discriminação.
A proposta de “Estatuto” é ao mesmo tempo uma resposta e um produto do
“dispositivo cigano”. Soma-se aos mecanismos institucionais, físicos e administrativos e
estruturas de conhecimento que fortalecem e mantêm o exercício do poder dentro do
corpo social. Ao longo dos anos, com as mudanças na sociedade, deflagradas pelas
transformações no modo de produção e nas formas de Estado, inevitavelmente ocorreu
uma ressignificação do “dispositivo cigano”, correspondendo a uma atualização do
controle social sobre os corpos, sobre os comportamentos, sobre a circulação no espaço,
sobre a definição do que é conhecimento, do que é civilidade.
Como foi discutido neste capítulo, a introdução do “dispositivo cigano” parece
estar estreitamente ligada à emergência do padrão de modernidade eurocentrada, ao
colonialismo, ao próprio surgimento do “Estado-Nação”. Se este “dispositivo” por um
longo período foi aprimorado e operado para gerir os ciganos a fim de extingui-los por
meio da assimilação, assim como para promover a gestão sobre a sociedade como um
todo, buscando produzir indivíduos homogeneizados, nos últimos anos a concepção de
diversidade racial e étnica incorporada à gramática estatal e à perspectiva dos Direitos
Humanos passam a mobilizar a diferença cigana e disputar este “dispositivo” a partir de
uma nova perspectiva. Não necessariamente para extinguir a existência cigana, mas
pelo contrário, que esta esteja condicionada à tutela estatal.
No próximo capítulo desta tese, dediquei-me a descrever e analisar como se
deram as primeiras negociações pela criação do “Estatuto do Cigano” no Senado
Federal.
89

Capítulo 2
“Cadê nossos direitos?”

Durante algumas visitas e experiências etnográficas que realizei no


“Acampamento Nova Canãa”, uma expressão manifestada por um dos chefes de família
chamou-me a atenção: “cadê nossos direitos?”. A pergunta, em tom de reivindicação,
que escolhi para denominar o segundo capítulo desta tese, manifesta um sentimento e ao
mesmo tempo uma narrativa que é recorrente entre lideranças ciganas que atuam na
interlocução com o Estado brasileiro: a ausência de instrumentos jurídicos, com
previsão de políticas públicas, destinados aos povos ciganos.
Neste sentido, busquei descrever, no segundo capítulo, o percurso inicial do
Projeto de Lei n° 248/2015 para compreender a construção político-jurídica do
“Estatuto do Cigano”. Na primeira parte, refleti sobre o papel desempenhado pela
Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC) na proposição do PLS 248/2015. Na
segunda parte, identifiquei como surgiram as primeiras discussões sobre os “direitos
ciganos” no Congresso Nacional, que antecederam e, ao mesmo tempo, levaram à
proposição do projeto de lei pelo Senador Paulo Paim.

2.1 - “Um Presente de Deus”: a atuação da ANEC em face do Estatuto

Como já foi dito anteriormente na introdução da tese, a maioria das informações


formais relacionadas à proposta de criação do “Estatuto do Cigano”, o PLS 248/2015,
estão disponibilizadas em um website específico do Senado Federal. No documento que
dispõe sobre o Projeto de Lei nº 248/2015, optou-se por informar expressamente na
“Justificação” não apenas o contexto e as razões para a proposição deste marco legal
protetivo, mas, sobretudo quem foi a “associação proponente”. Vejamos:
Cumpre-nos, assim, apresentar este projeto de lei, proposto pela Associação
Nacional das Etnias Ciganas (ANEC), nos moldes do Estatuto da Igualdade
Racial, como uma forma de, enfim e definitivamente, assegurar a igualdade
de oportunidades à população cigana residente no Brasil. O projeto abrange
um catálogo de direitos voltado justamente para a solução dos problemas
vivenciados particularmente por tal população. (BRASIL, 2015c, p. 5, meu
destaque)

A descrição do processo legislativo em tela não passa apenas pelo o que


acontece no ambiente parlamentar, no que está disponibilizado no website do Senado
Federal, ou pelas informações fornecidas pelo senador Paulo Paim e por sua assessoria.
Antes de tudo, devemos levar em consideração o papel da ANEC nesta tramitação,
90

associação que é citada diretamente na “Justificação” como a propositora do PLS n°


248/2015.
Além de ser citada no próprio projeto de lei como a associação propositora, os
integrantes da ANEC foram mobilizados para participar da gravação de alguns materiais
audiovisuais produzidos pelo canal de comunicação do Senado Federal. As reportagens
e os programas elaborados pela TV Senado, no mês de abril e maio de 2018, quatro ao
total, que envolveram a temática dos “ciganos”, foram disponibilizados na plataforma
Youtube. Estes materiais fazem alusão ao “Dia Nacional do Cigano”, comemorado
oficialmente no dia 24 de maio, e, principalmente, fazem referência à tramitação do
“Estatuto do Cigano”.

Tabela 2 – Reportagens da TV Senado sobre os “ciganos” disponibilizadas


na plataforma Youtube em abril e maio de 2018

Título da Duração Número de Curtidas Participação de


reportagem visualizações integrantes da
ANEC

Estatuto garante 3 minutos e 16 254.423 3 mil reações Sim


inviolabilidade das segundos visualizações positivas e 139
casas dos ciganos e negativas
transferência
de escolas

Entrevista: as 6 minutos e 35 351 visualizações 21 reações Não


dificuldades, os segundos positivas e 3
estereótipos e negativas
racismo
enfrentados pela
minoria cigana

Povo cigano: a luta 27 minutos e 6 6.592 visualizações 152 reações Sim


para manter a segundos positivas e 5
tradição e combater negativas
o preconceito

A cultura cigana e 13 minutos e 2 1.189 visualizações 50 reações Sim


a luta pelo segundos positivas e
reconhecimento de nenhuma negativa
direitos
Fonte: TV Senado (2018a; 2018b; 2018d; 2018e).

A produção e a disponibilização pública de reportagens sobre a “luta dos povos


ciganos por direitos”, ocorreu também anteriormente à realização da audiência pública
sobre o “Estatuto do Cigano”, em 28 de maio de 2018. Trata-se, portanto, de um
indicativo que a tramitação do PLS n° 248/2015 não ocorre apenas no aspecto formal,
91

isto é, no âmbito das votações que se dão nas comissões temáticas e nos plenários do
Congresso Nacional, nas negociações entre os parlamentares ou nas audiências públicas
realizadas para discutir a proposta em questão. Interpreto que um dos motivos para a
produção dessas reportagens se dá justamente pelo fato deste projeto de lei prever
direitos específicos para os “ciganos”, povos tradicionais cuja realidade é pouco
conhecida pela sociedade majoritária. Pode ser interpretado como uma maneira de
prestar contas à população acerca das iniciativas que tramitam no Senado Federal,
esclarecendo quem são os ciganos e por que estes demandam um “Estatuto”.
É importante destacar que três, das quatro reportagens, tiveram a participação de
Seu Wanderley, um das principais referências externas da ANEC, e seus familiares, para
falarem sobre a proposição do “Estatuto”, sobre a vida dos “ciganos”, as demandas
reivindicativas, assim como sobre os aspectos gerais do que se entende ser a “cultura
cigana”. A exceção é a entrevista “As dificuldades, os estereótipos e racismo
enfrentados pela minoria cigana”, concedida pelo Procurador da República Luciano
Maia, conhecido por ser um dos primeiros intelectuais do campo jurídico e integrantes
da Administração Pública a atuarem em prol dos “direitos ciganos”.

Imagem 2 – Votação do PLS 248/2015 na Comissão de Educação, Cultura e


Esportes

Fonte: acervo de Werus & Lara Sociedade de Advogados (2018).

Os materiais audiovisuais produzidos pela TV Senado dão destaque aos atores


“ciganos” envolvidos na proposição do PLS n° 248/2018 e ao mesmo tempo os
mobilizam como exemplos de “ciganidade”, pois, exibem e dão destaques na
reportagem a elementos que coincidem com as representações sobre este povo
92

tradicional, presentes no imaginário social: a música, a dança, a moradia em barraca, a


leitura de mão, as vestimentas coloridas etc.
Nesse sentido, no início do ano de 2019, buscando compreender melhor como se
iniciou a tramitação do PLS nº 248/2015, planejei visitar o “Acampamento Nova
Canãa”, que está situado no Sobradinho, região administrativa do Distrito Federal, para
conversar com os integrantes da ANEC sobre o processo legislativo do “Estatuto do
Cigano”1. Ao total, fiz quatro visitas, tendo dormido no acampamento em duas ocasiões.
A primeira visita ocorreu no início de abril de 2019, ocasião em que acompanhei
outras lideranças ciganas, Maria Jane, Maura Piomente2 e Maurício de Castro Cristo3,
que foram visitar e conversar com Seu Wanderley4. Durante esta visita, pedi para
“Jane”, como a chamo, perguntar ao Seu Wanderley se haveria problemas passar alguns
dias em seu acampamento para conversar sobre o “Estatuto do Cigano”, proposta que
foi aceita imediatamente. Frisa-se que as demais vivências, fui desacompanhado5.
Antes ir ao “Acampamento Nova Canãa”, para dormir pela primeira vez,
elaborei alguns questionamentos que pudessem guiar meu diálogo com os integrantes da
ANEC sobre a tramitação do “Estatuto do Cigano”6. Fiz contato com Seu Wanderley
por telefone, uma semana antes de minha ida, que me autorizou a visitá-lo e passar o
final de semana. Todavia, não tinha certeza de nada, se poderia dormir os três dias,
como planejei, se teria acesso às informações desejadas, se poderia gravar em algum
momento as conversas. Não quis criar expectativas, pois, os únicos contatos diretos que
tive com Seu Wanderley ocorreram durante a visita ao seu acampamento, como me
referi no parágrafo anterior, e durante o evento do “Dia Nacional do Cigano”,
organizado pelo MMFDH e em parceria com a PGR, no dia 24 de maio de 2019,
quando trocamos breves cumprimentos.
Embora estivesse permeado por incertezas, dúvidas, timidez e uma certa
ansiedade de como seria recebido, a recepção de Seu Wanderley e seus familiares foi

1
Frisa-se que minha aproximação com as principais lideranças desta associação, assim como a inserção
na pesquisa de campo, está descrita na introdução desta tese.
2
Maura Piemonte organiza-se por meio do Centro de Estudos e Discussão Romani (CEDRO. Juntamente
com seu marido, “Carlos Calon, com quem exerce e compartilha sua liderança, passou a representar o
segmento cigano em órgãos colegiados nacionais a partir da década de 2010.
3
Maurício de Castro Cristo é presidente da Federação Nacional das Associações dos Direitos e Leis
Romani e União dos Ciganos do Brasil (Fendruci), que atua regionalmente no estado do Paraná.
4
Estas lideranças, assim como eu, estávamos em Brasília por conta da 64ª Reunião Ordinária do
Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial (CNPIR), realizada no dia 9 e 10 de abril de 2019
(primeira reunião que ocorreu no governo Bolsonaro). Maria Jane é conselheira titular do CNPIR
(2019-2021), e sempre me convida para acompanhá-la nestas reuniões, em que tento ir sempre que posso.
5
Na segunda e terceira visita, respectivamente, em junho e julho de 2019, passei um final de semana
completo; sendo que nosso último encontro, em setembro de 2019, passei apenas uma manhã no
Acampamento.
6
No segundo final de semana que passei neste acampamento, não elaborei perguntas prévias.
93

extremamente calorosa e respeitosa. É importante ressaltar que a minha relação anterior


com outras lideranças ciganas foi decisivo para que eu me inserisse nesse campo de
pesquisa, como abordei na introdução desta tese7.
Na minha segunda ida ao “Acampamento Nova Canãa”, cheguei por volta das
15 horas, do dia 16 de junho de 2019, um sábado, após 4 horas de viagem.
Desloquei-me em carro próprio e percorri aproximadamente 270 km, saindo da cidade
de Uruaçu-GO, guiado pelos caminhos apontados pelo Google Maps. Por sugestão do
Seu Wanderley, coloquei como destino final o “Condomínio Serra Verde - Sobradinho”,
pois seu rancho ficava situado nesta área. Não saberia chegar sem a ajuda do GPS, pois,
quando fui pela primeira vez estava de carona. Optei pelo trajeto mais rápido, sugerido
pelo aplicativo, o que me fez dirigir pela BR 080 e pala DF 206 (estrada do Distrito
Federal), quando fui surpreendido por uma estrada estreita de terra, não asfaltada. Uma
“surpresa” pois não havia conferido anteriormente as condições desta pista, queria
apenas chegar o mais rápido possível e aproveitar o dia. Esta estrada passava ao lado do
Parque Nacional de Brasília e por sorte neste dia estava pouco movimentada.
Ao chegar na entrada que dava acesso ao “Condomínio Serra Verde”, liguei para
Seu Wanderley e perguntei como poderia encontrar o “Acampamento Nova Canãa” e
ele respondeu: “pergunte a qualquer pessoa na rua onde mora os ‘ciganos’”. Desliguei o
celular e perguntei a uma das crianças que brincavam na rua de terra. Elas me olharam,
e, com a mão, apontaram para direção do “Acampamento”.

Imagem 3 - Registro do Acampamento Nova Canãa por satélite

Fonte: (PINEL; PERPÉTUO; RESES, 2019, p. 148).

7
Eu tinha noção que o fato de ser juron/gadjon, ou seja, um pessoa não-cigana, poderia gerar,
automaticamente, desconfianças. Por outro lado, sabia também que ser amigo de pessoas Calons de outras
partes do Brasil poderia contribuir para que eu pudesse me aproximar dos integrantes da “ANEC”,
conversar com eles sobre o projeto de lei, dormir no acampamento, participar, por um curto período da
rotina, do rancho de Seu Wanderley.
94

Imagem 4 – Registro do caminho percorrido entre Uruaçu-GO e o


Acampamento Nova Canãa

Fonte: Google Maps (2020).

Ao chegar no “Acampamento”, desloquei-me diretamente ao rancho do Seu


Wanderley. Lá estavam reunidos alguns integrantes de sua família fazendo um
churrasco. Neste momento conheci os demais irmãos de Seu Wanderley e alguns de
seus sobrinhos. Havia 7 pessoas ao total. Apresentei-me e, imediatamente, passei a ser o
centro das atenções, por ser uma novidade naquele momento e também creio pelo fato
de dizer que sou “advogado”, além de pesquisador e professor. Por isso, as primeiras
conversas envolveram temáticas relacionadas ao mundo jurídico. Fui chamado, diversas
vezes, de “homem das letras” e “homem das leis”, por Seu Jeferson e Seu Batista,
irmãos de Seu Wanderley, que também se apresentaram como presidentes da “ANEC”.
Nas palavras de Seu Jeferson, a ANEC é a “única associação brasileira com três
presidentes”.
Em seguida, com o fim do churrasco e após longas conversas sobre diferentes
assuntos, não apenas envolvendo questões do Direito, solicitei ao Seu Wanderley uma
oportunidade para poder gravar nosso diálogo sobre a tramitação do PLS nº 248/2015.
Ele concordou e nos afastamos das demais pessoas que estavam no churrasco para
conversar com mais calma8.

8
Embora eu soubesse que, ao gravar nossa conversa, as informações compartilhadas sobre o “Estatuto do
Cigano” não seriam as mesmas, caso eu não estivesse gravando, pois é comum manifestarmos receios
com conversas que são gravadas, entendia ser necessário pelo menos uma vez ter o diálogo gravado para
ser fiel às palavras das lideranças da ANEC sobre a tramitação do projeto de lei.
95

Aproximava-se ao entardecer daquele sábado, uma tarde que começou


ensolarada, mas que passou a ficar fria e nublada, as temperaturas começaram a cair,
ficando abaixo da casa dos 20 graus, como um típico dia de outono no cerrado e no
planalto central.
Também participaram desta conversa, em que fui autorizado a gravar, Seu
Jeferson e Seu Batista, irmãos mais velhos de Seu Wanderley, que juntos integram a
diretoria da ANEC. Conversamos em frente à barraca de Seu Wanderley, sentados em
cadeiras de plástico que estavam organizadas em círculo. Antes de começarmos nosso
diálogo, Seu Wanderley passou um café em sua cozinha e distribuiu para nós três, que
aguardávamos o preparo da bebida.
No total, nosso diálogo foi permeado por 14 perguntas, a maioria não estavam
planejadas. Havia elaborado apenas alguns questionamentos, justamente para direcionar
nossa conversa, como, por exemplo, “como surgiu a ideia de propor o ‘Estatuto do
Cigano’”; “o que o estatuto propõe de direitos que é importante para o povo cigano”; e
“quem são os parceiros da ANEC nesse processo legislativo”. Em geral, Seu Wanderley
foi o principal interlocutor da conversa que gravei, respondendo a maioria indagações9.
Segue abaixo, na íntegra, o diálogo que tive com Seu Wanderley, Seu Jeferson e
Seu Batista:
Eu: Como surgiu a ideia de propor o “Estatuto do Cigano”?

Seu Wanderley: Olha aí, inicialmente é um prazer estar com doutô Phillipe, neste
momento, aqui em Brasília. Hoje é dia dezesseis, dos seis de dois mil e dezenove. Quero
informar que estou aqui com meus irmãos, neste momento, fundadores da ANEC, no ano
de 2011. A Associação Nacional das Etnias Ciganas do Brasil, a ANEC, foi fundada e
constituída no ano de 2011, porque nós ciganos entendemos que também somos
cidadões de direitos e deveres, comum a todos, iguais a todos. E nós observou grande
dificuldade de acesso às políticas em todos os estados, principalmente, nos municípios,
grandes dificuldades. Muito racismo, preconceito. E Deus agora diante de toda uma
nação (cigana)10, levanta um pequeno grupo pra ser escolhido para construir a
primeira “Associação Nacional das Etnias Ciganas” para que através dessa fosse
levada a proposta da constituição do “Estatuto dos Povos Ciganos”, documento este
que abre portas de acesso aos direitos de igualdade racial dos povos que teve o grande
trabalho de ter ajudado bastante o Brasil, que venho pra cá na época da colonização. Nós
ajudamos o Brasil em vários sentidos, uma cultura milenar, muito rica, viemos aqui
contribuir com o Brasil, economicamente, humanamente, socialmente, em vários os
sentidos ou em todos os sentidos.

9
Noto que Seu Wanderley ocupa o papel de interlocutor externo nas atividades que ocorrem no âmbito da
burocracia estatal, sendo este que fala preferencialmente nas audiências públicas ou nas entrevistas em
nome da ANEC. Creio que deve existir entre um combinado os irmãos Wanderley, Jeferson e Batista.
Afirmo isto, pois, em diversos momentos em que passei no acampamento, todos irmãos fizeram questão
de ressaltar que não há diferença entre eles, que os três são igualmente importantes, tanto, que falaram
mais de uma vez que a ANEC é a “única associação brasileira que possui três presidentes”.
10
Rezende identificou, em sua pesquisa, que a expressão “Nação Cigana” é “narrada por diferentes vozes,
uma polifonia inventiva que elabora símbolos e representações diversas. São as vozes de ciganos, gadjé,
ciganólogos, Roma, Calons, kalderash, matchuanos etc” (2000, p.117).
96

Certo então. Entendemos que o Estatuto do Cigano daria a oportunidade de igualdade


racial para todos os povos ciganos, incluindo todas as etnias no Brasil, né? E servindo
também como modelo para os demais países do nosso globo terrestre. Eu e meus
irmãos, esses homens aí de garra, que tem a coragem de enfrentar, mas que tivemos
algumas resistências no começo para a construção da associação, mas pela fé, sabendo que
era Deus que estava ali com nós, nos ajudando a construir esse trabalho. Nós não
desistimos!

Por isso hoje é 2019, já temos passado por 2 comissão de aprovação lá do Estatuto no
Senado Federal. Agora estamos em fase terminativa para a terceira comissão. E sabendo
que essa vitória é do povo cigano do Brasil, que a honra e glória pertence ao nosso Deus.

Eu: Quem foram os parceiros nessa trajetória, que atuaram junto com a ANEC para
a aprovação do Estatuto?

Seu Wanderley: Olha, na verdade, tivemos aí, levamos a proposta da construção do


Estatuto no ano de 2015 ao senador. Achamos o senador Paim.

Eu: Como foi escolhido ele?

Seu Wanderley: Deus escolheu ele. Assim como escolheu a ANEC. Porque nada é por
acaso. Por ele ser um homem muito respeitado, Deus escolheu logo aquele, porque
sabia que o pedido dele no Senado para o presidente da Câmara seria aceito, que fosse
proposto esse projeto de lei, PLS 248/2015, que cria o “Estatuto do Cigano”. Então foi
escolhido, o autor da lei, e também foi escolhido o Senador Hélio José, como relator da
lei, do projeto de lei, que avançamos bastante no período da relatoria do Senador
Hélio e passamos por duas comissão. Graças a Deus estamos em fase terminativa. A
Comissão de Educação do Senado, a Comissão de Assuntos Sociais. E agora estamos
em fase terminativa.
Então, nós fizemos isso por entender que somos humanos iguais a todos, e sem esse
Estatuto as portas de igualdade racial estaria fechada para os ciganos, principalmente na
área do estudo. Então nós não concordamos com isso. Deus tem levantado nossa
comunidade para tá levando aí essa grande oportunidade de espaço aberto para o povo
cigano do Brasil, dando direito de igualdade racial.

Eu: O que o estatuto propõe de direitos que é importante para o povo cigano? Ele é
pensando para quem? Para a ANEC? Ou para todos?

Seu Wanderley: Deus o livre, a ANEC só foi escolhida por Deus pra levar a proposta que
está no Senado. A proposta é para todo o Brasil e todas as etnias. Tudo bem que somos
todos ciganos, mas somos diferenciados. A gente pensou em colocar todas as etnias, dentro
dessas etnias, que elas se fizessem presente na construção desse documento, para que elas
mesmo se expunhessem às demandas que eles tem, porque nós temos a mesma luta, mas as
demandas são diferentes. Ela vem englobando todas as demandas e toda a diversidade
cultural do povo cigano do Brasil. Moradia, regularização fundiária, bolsa na área de
estudo, o racismo e o preconceito, sobretudo, ser jogado por terra, ter a oportunidade de
levar às escolas, para conversar, desfazer; as empresas ser obrigada a contratar o povo
cigano, para não precisar se esconder. Tudo, você entendeu? Educação, saúde, moradia, e
direito de igualdade racial em todos os sentidos. Engloba várias políticas que nunca
tivemos acesso.

Eu: Hoje, o projeto, o que está acontecendo? Como o senhor avalia a tramitação?

Seu Wanderley: Doutô Phillipe, na verdade, é como eu estava falando com meu irmão. A
gente merece ter avançado mais, porque é 500 anos de invisibilidade. Mas, como o projeto
é colocado no senado em 2015 e estamos em 2019, passamos por duas comissões e estamos
em fase terminativa, agradecemos de coração trabalho do Senador, do autor e do relator da
lei, de todo o Senado, de todas as parcerias, Ministério Público Federal, os Direitos
97

Humanos, vários senadores de diversos partidos, indiferente de partido, mas como Senador
e autoridade, trabalhando para a aprovação nessas duas comissões que já passamos. E agora
outros parlamentares da Câmara Federal, que já se posicionaram a favor dessa lei.

Eu: Como é que o senhor vai lá no Congresso? Marca reunião?

Seu Wanderley: Olha, pra ser sincero, somos muito bem aceito lá no Senado, em qualquer
gabinete, somos muito bem recebidos pelos assessores, pelas autoridades parlamentares.
Enfim, quando a gente precisa nunca encontramos dificuldades. As vezes com aquele
negócio de agenda demora um pouco para atender a solicitação, somos sempre bem
recebidos, principalmente pelo autor da lei, PLS 248/2015, Senador Paim, que é um homem
de grande responsabilidade em tudo que faz, e tem se colocado como autor da lei, em favor
de um projeto de lei, que será constituído em breve, com fé em Deus, e será assinado pelo
presidente para ser transformado em lei. Muito justo, de uma nação inteira que
simplesmente visa ser vista com igualdade racial e sair da invisibilidade.

Eu: A ANEC foi criada para propor o “Estatuto do Cigano”?

Seu Wanderley: Ela foi criada simplesmente com o fim e o propósito de levar a
construção do Estatuto, por entender que o Estatuto engloba todos os pedidos e demandas
que os ciganos vêm enfrentando ao longo da sua história no Brasil.

Eu: Por que vocês vieram morar em Brasília?

Seu Wanderley: Quando ela (a ANEC) foi criada, em 2011, estávamos em Planaltina.
Porque nós morando no Goiás, até pegar um ônibus, pra vim para um evento, teria
dificuldade, porque teria que atravessar o estado, seria burocrático. Como aqui é a
capital das leis e o nosso foco é o Senado Federal, a Câmara, o Estatuto, o Congresso
nacional, nós viemos para Brasília, entendendo que aqui seria mais viável, que nós teria
mais oportunidade de avançar realmente nas políticas, e sobretudo, na aprovação do
Estatuto.

Como unir o povo cigano de uma só vez? Num só propósito? Se estão divididos, se
estão um para um lado, e para outro? A gente não conhece todo mundo, mas sabe que
uns moram num lado, outros moram em outro. Como a gente vai conseguir reunir todo
mundo numa luta conjunta, visando um mesmo objetivo? Aí surgiu a grande necessidade
da construção do Estatuto, porque unido, o povo cigano do Brasil, lutando por um só
objetivo, nós temos mais chances, mais oportunidades, de ser aprovado, de ter força
para lutar, uma nação inteira junta. Graças a Deus, de 2011 à 2019, tem 8 anos já de
associação, a gente conseguiu criar em alguns estados, a ANEC. O nosso objetivo é que
todos os ciganos, de todas as etnias, junte-se a nós, juntos somos mais fortes, queremos
parceiras, com o mesmo pensamento.

Sede matriz em Brasília! O que queremos deixar bem claro nesta tese é que esta associação
não foi criada pra que ficasse na frente das outras. Foi porque Deus escolheu ela pra ser a
associação das etnias ciganas no Brasil, sem excluir nenhuma etnia.

Eu: Como a história do Estatuto não pode ser separada da história da ANEC, me fale
um pouco da história desse lugar que nós estamos aqui (o acampamento Nova
Canãa)?

Seu Wanderley: Então esse lugar aqui, terra Nova Canãa, como tá na internet, na
mídia é o Primeiro uso de terra, concessão gratuita, do governo federal, se
aproximando 500 anos de ciganos aqui no Brasil, segundo os relatos, que chegamos em
1574, primeira terra, exclusiva, especificamente do governo federal para o povo
cigano. E nosso sonho aqui é construir o primeiro espaço de resgate da cultura cigana
neste país, de pesquisa, tendo um centro de capacitação para jovens e adultos, né, para
98

todo cigano do Brasil. Que esse espaço seja um espaço de porto seguro dos ciganos no
Brasil. Que sirva de valorização do cigano na capital federal e para o Brasil inteiro. É
a primeira vez na história, na capital federal, memorial, centro de resgate, e também
de pesquisa da cultura cigana no país.

Eu: Vocês vieram para cá quando?

Seu Wanderley: Chegamos aqui em 2014, em Brasília, tivemos uma transição até chegar
aqui. Mas chegamos até aqui, pelo governo federal. Hoje é 2019, estamos aí, com fé,
esperança, de dias melhores.

Eu: Seu Jefferson, o que o Estatuto representa para o senhor, qual o papel que ele vai
ter na história?

Seu Jefferson: Doutô Phillipe, boa tarde, sou Jefferson da Rocha, presidente executivo da
ANEC. O Estatuto nos dá segurança e respeito. É direito, né? Aí é onde vai gerar políticas
públicas específicas para nós ciganos. Não só aqui em Brasília, mas também em todo
Brasil, e no mundo. Esse documento vem para nos fortalecer, que nem os negros, que
nem os índios, que nem os quilombolas. Enfim, políticas públicas é o que a gente espera,
pelo governo, pela sociedade, pelo mundo. Que nós somos cidadãos, com os mesmos
direitos iguais. Nossas crianças estudam aqui em Brasília, somos respeitados. Nós, em
muitos lugares aí no interior do Brasil, continua as mesmas perseguições, as mesmas
coisas ruins contra o povo cigano, como antigamente. Nós estamos aqui em Brasília na
capital da república, juntamente Deus primeiramente, com nossa família, buscando direito
de igualdade racial, para que nosso povo, acorde e saiba que os direitos deles também
existe, como qualquer cidadão comum. E é muito importante o Estatuto para nós. A
criança tem estatuto. O índio tem. A polícia tem. A cidade tem. O idoso tem. E nós
ciganos somos uma NAÇÃO não temos estatuto, isso é vergonha, sinceramente.
Porque somos contribuintes e somos eleitor. Merecemos ter respeito. Nós queremos ser
reconhecido. Queremos ser reconhecido.

Seu Wanderley: O maior papel do estatuto é o reconhecimento. Queremos o


reconhecimento, reconhecimento do Estado. Não queremos dinheiro. Queremos o
reconhecimento de uma nação que tá aqui no Brasil como ser humano igual a todos.
Assim como tá na Constituição Federal que a lei é igual para todos, que todos somos
iguais perante a lei, isso que a gente quer, ser igualado, iguais perante a lei.

Eu: O que significa Estatuto para vocês?

Seu Wanderley: Na verdade a definição de Estatuto dos Povos Ciganos é um documento


que nos dá o direito de igualdade racial e acesso aos direitos de políticas públicas em todos
os sentidos. E também nos dar o reconhecimento de uma nação e conseguimos a
responsabilidade do Estado em favor nosso. Porque a partir do momento que o documento
for assinado pelo presidente o Estado tem uma grande responsabilidade com a nação
cigana, em documento, porque é lei, o que antes não existia. Então Estatuto é direitos e
deveres dos ciganos no Brasil. Estatuto significa direitos e deveres.

Eu: Existe outro “Estatuto Cigano” no mundo?

Seu Wanderley: Na verdade, nunca soubemos em lugar nenhum do mundo que existe
um estatuto cigano. Na verdade, os direitos dos ciganos é violado não só no Brasil,
como no mundo inteiro. Queremos ser modelo. Porque a partir do momento que aqui em
Brasília, Brasil, os ciganos conseguir um Estatuto, nós vamos usar ele como modelo para
outros países também construir um Estatuto para os ciganos de lá.

Eu: Por que esse acampamento, esse rancho aqui é um modelo?


99

Seu Wanderley: É por ser o primeiro na história cigana, pelo governo federal,
especificamente, esse é o modelo, porque foi o primeiro em toda história do governo
federal específico para os ciganos.

Seu Jeferson: E sermos a Associação Nacional das Etnias Ciganas, que é nosso povo
que está aguardando tudo isso, depois de muitos anos, quando começou o mundo,
doutor, os ciganos já nasceram sem direitos. Sabendo que nossos direitos existe, só que
tá lacrado. Nós tamos em Brasília, na capital da república, para quebrar o lacre. Nós
quer saber os direitos e deveres.

Seu Batista: O direito da gente tá sendo violado, há muitos anos nós temos o nosso
direito e nós não sabe onde ele tava, tá entendendo? E agora estamos na capital da lei,
cadê os nossos direitos? Montamos a Associação Nacional, graças a Deus. Não temos
ajuda de governo, não temos ajuda de ninguém, contamos com nossas pernas,
entendeu? Nós vai divulgar o trabalho com o nosso dinheiro, quando nós vai numa reunião
é com o nosso dinheiro, você entendeu? Nós ainda estamos na capital forçando resolver
esse problema nosso, com fé em Deus, doutor, e com as autoridades de Brasília, nós vai
fazer valer o nosso direito, do nosso Estatuto, da nossa igualdade racial, como cidadão.
Somos tudo igual, quando morre, o caixão é o mesmo, o cemitério é o mesmo, a terra é a
mesma, com todo respeito da palavra. Por que tanto preconceito com os ciganos? Se não vê
um cigano estupar, não vê na televisão que o cigano tá matando, assaltando banco? Veja se
o senhor vê história de cigano na televisão aí, de roubo de banco, de lavagem de dinheiro,
até porque os ciganos era pra ter mais respeito pelas autoridades. Com fé em Deus
chegamos lá.

Eu: Qual o papel de uma liderança na luta dos ciganos?

Seu Wanderley: Porque na verdade doutor, estava comentando ontem, estamos aqui desde
ontem, graças a Deus, conversando, aprendendo um com o outro. A vida é cheia de
aprendizagem, ninguém sabe tudo, cada um sabe um pouco. E tem o segredo pra viver
feliz. Inicialmente o segredo de viver e ser feliz é ter temor à Deus, e o amor à Deus, acima
de tudo, e ao próximo, assim como a si mesmo. E a partir desse momento você vai começar
ver o mundo maravilhoso. Vai acordar de manhã cedo, olhar para o mundo, e ver uma coisa
linda. Minha filha leu hoje a mensagem do livro de Mateus, se o olho da gente for bom, o
nosso corpo todo é bom, tem luz. Entendeu? Então, doutor, graças a Deus, eu entendo
assim oh. O verdadeiro líder cigano ou não cigano, em qualquer área, ele tem que ter dentro
dele a estrutura de amor, porque a partir do momento que ele tem amor dentro dele, ele se
importa com o povo, ele sabe quando o povo precisa de água, quando precisa de comida,
quando o povo está passando por luta, por perigo, ele conhece, se agonia, não fica em paz.
Ele não fica longe do povo. O verdadeiro líder não deixa o povo na batalha, ele tá lá
dentro junto com ele (risos) ele não fica longe do povo de jeito nenhum, ele tá lá, na frente
do povo, graças a Deus, você entendeu? Então o verdadeiro líder tem um coração aberto a
tal ponto, Deus o livre, de enfrentar uma batalha lá na frente pra defender o seu povo.
Então, graças a Deus, eu entendo assim, eu Wanderley, sou um cigano, da etnia Calon,
semi-analfabético, com 53 anos de idade, to morando aqui em Brasília já há bastante
tempo. Ando em Brasília desde o ano de 77, e toda vida gostei de Brasília e viajei para
outras partes do Brasil. Agradeço de coração a oportunidade de poder fazer algo no sentido
de líder, liderar determinadas situações. Então, meu irmão, Deus ter dado oportunidade de
ter dentro do coração essa preocupação com a fome, com o medo, das lutas do nosso povo
cigano. E diante disso, queria eu, Wanderley, ter condição de poder ajudar todos esses no
momento certo. Mas sempre tem o Deus, todo poderoso, que tá nos ajudando, tem nos
ajudado, jamais vai nos abandonar. E através desse Deus rico ele tem nos dado a esperança,
paciência, e uma estabilidade de compreensão, de segurar esse tempo perdido, 500 anos
vivendo as margens da sociedade, mas que está agora chegando o tempo da bonança, a
tempestade já passou, mas agora é a bonança. (risos) tá certo, meu irmão? Graças a Deus.
100

O diálogo acima, assim como as outras conversas que tive durante a experiência
etnográfica no “Acampamento Nova Canãa”, registradas no diário campo,
possibilitaram-me reunir uma série de informações que são fundamentais para
interpretar e descrever a genealogia do processo de tramitação do Projeto de Lei nº
248/2015.
Neste sentido, busquei, nos cinco subtópicos abaixo, destacar alguns pontos que
me chamaram atenção no diálogo transcrito, são eles: o papel das associações civis
ciganas; a noção de tempo e espaço (no sentido territorialidade); as narrativas e as
memórias acionadas pelos respectivos interlocutores da ANEC para justificar a
necessidade de um “Estatuto”; como esses interlocutores enxergam o papel do Estado
em face da questão cigana no Brasil; e como se dá a categorização dos “direitos
humanos”.

2.1.1 - As associações ciganas

Para diferentes grupos sociais, como os povos tradicionais identificados como


“ciganas”, a criação de associações civis tem sido um importante instrumento para
organizar lutas por direitos, reivindicando-se espaços na sociedade e pressionando o
Estado em prol de políticas públicas. Segundo Maria da Glória Gohn, essas
modalidades de organizações sociais surgem a partir dos anos 1980, entre outros
motivos, para defender os “direitos civis e atuar em áreas onde o Estado é incipiente”
(2000, p. 21).
Frans Moonen (2013a) destaca o surgimento de associações ciganas em
diferentes partes do Brasil, a partir das décadas de 1980 e 1990, como um fenômeno que
foi impulsionado pela redemocratização do Brasil, com fim da ditadura militar e,
sobretudo, diante promulgação da Constituição Federal de 1988. Frisa-se que a
“liberdade de associação” foi recepcionada por esta Carta Política, como um direito
fundamental, mediante o artigo 5°, incisos XVII e XVIII11.
No Brasil, a primeira ONG cigana foi o Centro de Estudos Ciganos, no
Rio de Janeiro, criado em 1987 por um pequeno grupo de ciganos e
não-ciganos, e presidido pelo músico cigano Mio Vacite. Foi extinto em
1993, mas já em 1990 o dissidente Mio Vacite tinha criado a União Cigana do
Brasil, que existe até hoje. Apesar do nome, é uma ONG familiar e não
representa todos os ciganos do Brasil. Depois surgiram outras ONGs
ciganas: Associação de Preservação da Cultura Cigana, no Paraná;

11
Vejamos o que diz cada um destes dispositivos constitucionais: “é plena a liberdade de associação para
fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar” (inciso XVII); “a criação de associações e, na forma da lei, a
de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”
(inciso XVIII).
101

Associação Brasileira dos Ciganos no Paraná; Centro de Estudos e Resgate


da Cultura Cigana, em São Paulo; Coletivo de Ciganos Calon do Brasil, em
São Paulo; Phralipen Romani – Embaixada Cigana do Brasil, Associação de
Apoio e Divulgação da Cultura Cigana de Ribeirão Preto. Recentemente
surgiram a Associação Cigana da Etnia Calon do Distrito Federal, o Centro
Calon de Desenvolvimento Integral, em Sousa/PB, a Associação dos Ciganos
de Pernambuco, no Recife, além de outras ONGs mais.
Como na Europa, quase todas estas ONGs são do tipo “de uma pessoa”
ou ‘de uma família’ só, embora costumem acrescentar, além de parentes,
também os nomes de alguns amigos, ciganos ou não-ciganos (MOONEN,
2013a, p. 135, meus destaques)

Em diversos momentos no “Acampamento Nova Canãa”, foi manifestado, por


seus integrantes, o fato da “ANEC” não ser apenas uma associação que representava um
grupo, uma família específica ou os ciganos da etnia Calon, mas, sim, “os ciganos de
todo o Brasil”, “os ciganos de todas as etnias”. Esta representatividade se expressa,
segundo eles defendem, por adorem na razão social da “ANEC” a expressão “Etnias
Ciganas”. Por isso destaquei de negrito o seguinte trecho do diálogo transcrito: “E Deus,
agora, diante de toda uma nação (cigana), levanta um pequeno grupo pra ser escolhido
para construir a primeira ‘Associação Nacional das Etnias Ciganas’ para que através
dessa fosse levada a proposta da constituição do ‘Estatuto dos Povos Ciganos’”.
As minhas experiências em espaços em que atuam lideranças e associações
ciganas, que começaram em 2015, permite-me perceber que realmente é comum ouvir a
reivindicação do “pioneirismo” ou de estar falando “em nome de todos ciganos”, como
mencionou Frans Moonen (2013a). Interpreto estas falas, das diferentes organizações
que conheci, como reflexo de uma estratégia, que consiste em: obter o reconhecimento
da sociedade, enquanto um povo tradicional, que atua de forma coletiva; e que, ao
mesmo tempo, busca acessar espaços de negociação por direitos, no âmbito da
burocracia estatal. Trata-se, em outras palavras, de uma busca por legitimidade, no
sentido de reconhecimento.
E que espaços seriam estes que se busca ter legitimidade? Por exemplo, os
conselhos de Estado, que reservam vagas para representantes da sociedade civil. São,
em geral, espaços consultivos, que existem no âmbito municipal, estadual e federal. Na
esfera nacional, ou seja, da União, posso citar como exemplo o CNPIR12 e CNPCT13,
que contam com representantes do “segmento cigano”.

12
O Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), órgão consultivo e deliberativo, foi
instituído pela Lei n° 10.678, de 23 de maio de 2003, que reserva uma “cadeira” para o “segmento
cigano”, que concorre a vaga por meio de convocatória em edital público.
13
O Poder Executivo, por meio do Decreto presidencial n° 8.750, de 9 de maio de 2016, instituiu também
o “Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais”, órgão colegiado de caráter consultivo,
integrante da estrutura do Ministério dos Direitos Humanos” (art. 1°); possibilitando aos “povos ciganos”
concorrerem a uma vaga do conselho, e dando a estes “direito a voz e a voto” (art. 4º, § 2º, inciso IV).
102

Até o ano de 2020, a ANEC nunca compôs conselhos da esfera federal, mas, por
sua vez, integrou conselhos do Distrito Federal, como é o caso do Conselho de
Juventude do Distrito Federal (Conjuve-DF).
Por outro lado, embora seja comum as associações ciganas serem organizadas
em torno de vínculos familiares, como é o caso da “ANEC”14, entendo que esse fato não
reduz ou anula a legitimidade dessas “organizações” para atuar pelos direitos de “toda
uma nação”, como diz Seu Wanderley ou Seu Jeferson para se referir à condição dos
ciganos no Brasil. O que deve importar é a realidade, o que estas “associações” fazem
de fato em prol da coletividade cigana, qual a repercussão política de suas ações no
cenário local, regional ou nacional. Pois, é como revela a expressão comum no ambiente
de militância marxista: “a prática é o critério da verdade” (PEIXOTO, 2018, p. 218). A
prática da “ANEC” a posiciona como uma entidade cuja atuação tem repercussão em
todo território brasileiro e não o fato de adotar a expressão “nacional”.

Imagem 5 – Fotografia de Daiane Rocha (representante da ANEC no


Conjuve)

Fonte: acervo da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (2015)15.

14
O funcionamento social do Acampamento “Nova Canãa”, assim como constatou Virginia dos Santos
(2002) em relação aos grupos ciganos que vivem no município de São Paulo, de maneira geral, tem como
base fundamental a coesão de seus indivíduos, a qual é nitidamente maior entre os indivíduos de uma
mesma família - laços consangüíneos de parentesco. Para esta autora, quando se analisam os moradores
das “ruas ou bairros ciganos”, percebe-se que esses moradores geralmente pertencem a um mesmo grande
grupo e que agrupados espacialmente, podem manter mais facilmente seus traços culturais comuns e
manter mais coesa sua específica organização social.
15
Segundo a reportagem “Juventude que sonha – Daiane Rocha, divulgada em 24/08/2015, no website da
Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, Daiane, que é secretária-geral da ANEC e filha de
Seu Wanderley, é “a primeira conselheira de origem cigana do Conselho de Juventude do Distrito
Federal” (DISTRITO FEDERAL, 2018).
103

Ou seja, a própria proposição do “Estatuto do Cigano” no Senado é um


indicativo que a atuação da “ANEC” transcende o âmbito familiar, vai além das
fronteiras do “Acampamento Nova Canãa”. Caso seja aprovado, como disse o próprio
Wanderley, “daria a oportunidade de igualdade racial para todos os povos ciganos,
incluindo todas as etnias no Brasil, né? E servindo também como modelo para os
demais países do nosso globo terrestre”.
Além do Brasil, com a aprovação do “Estatuto do Cigano”, podemos ter um
exemplo de marco protetivo para todos os países que possuem povos ciganos? Essa
dimensão global, tanto da existência cigana, como da repercussão da sua luta por
direitos, é manifestada expressamente no discurso de Seu Wanderley. Quando perguntei
sobre a existência de “Estatutos Ciganos” em outros países, foi respondido: “nunca
soubemos em lugar nenhum do mundo que existe um Estatuto Cigano. Na verdade, os
direitos dos ciganos é violado não só no Brasil, como no mundo inteiro. Queremos ser
modelo”.
É inegável o papel de Seu Wanderley enquanto a principal liderança cigana no
processo de tramitação do PLS n° 248/2015. É ele que aparece, com destaque, nas
entrevistas na TV Senado. Da mesma forma que durante a audiência pública sobre o
“Estatuto do Cigano”, estando posicionado no centro da mesa do evento, ao lado do
Senador Paulo Paim e sendo o primeiro convidado cigano a se pronunciar. Além disso,
ficou evidente que praticamente todos os ciganos que também sentaram na mesa foram
escolhidos por Seu Wanderley, enquanto os demais ciganos presentes sentaram na
plateia do auditório da Comissão de Direitos Humanos.

Imagem 6 - Audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2018a).


104

Da esquerda para a direita, compuseram a mesa da Audiência Pública sobre o


“Estatuto do Cigano” as seguintes pessoas, conforme registrado na imagem acima:
Sandra Lucero; José Willamis Alves da Silva; Wanderley da Rocha; Paulo Paim
(senador); Omar Ivanovichi; Luis Bruno de Morais e Mio Vacite16. No início de seu
discurso, em agradecimento às pessoas presentes, Seu Wanderley menciona o fato de
não poder convidar todos os ciganos presentes para sentar na mesa da audiência pública:
[...] sinceramente meu coração se explode de alegria neste momento, tenho muito a
agradecer a Deus, por essa grande oportunidade e quero também, né, cumprimentar o nosso
ilustre senador com ótimo dia, em nome de quem cumprimenta aqui toda essa mesa
brilhante de autoridade cigana das diversidades do nosso estado. Quero desde de já
ressaltar a todos os ciganos que não estão aqui, mas você está aqui porque nós estamos
ai, nós estamos junto a nossa luta é a mesma que afeta meu irmão. Não consegui
escrever vocês todos para nós está todo mundo aqui mas a importância de vocês aqui
seria indispensável, ta certo? Muito obrigado por ter vindo. (TV SENADO, 2018, meus
destaques)

A partir da leitura do trecho acima destacado, é possível notar o cuidado e a


delicadeza de Seu Wanderley com as demais pessoas ciganas sentadas na plateia da
audiência, espaço que, de uma certa forma, possui menos destaque comparando com
quem senta na mesa do evento17. Por outro lado, acredito ser válido destacar um
estranhamento que tive assim que me deparei com a composição da mesa da audiência:
a não presença do conselheiro Carlos Calon e das conselheiras Maria Jane e Maura
Piemonte, representantes do segmento cigano no CNPIR e no CNPCT.
Não me cabe fazer especulações se esta ausência dos respectivos conselheiros
nacionais na mesa foi ou não intencional. O que este fato revelou foi sobre o poder de
Seu Wanderley em definir quem sentaria à mesa, é um reflexo do agir político, que é
permeado por escolhas. Como diz Foucault (2016, p. 21) “o poder não se dá, nem se
troca, nem se retorna, mas que ele se exerce e só existe em ato”, decorre de uma relação
de forças e poderes. A ANEC não precisa estar em conselhos federais para se
referenciar como uma entidade de atuação nacional, assim como seu poder em indicar
quem senta ou quem não senta na mesa da audiência não decorre de nenhum status
formal, seu poder se manifesta em atos, nas ações. O que a legitima enquanto tal é
justamente a articulação do PLS 248/2015.

16
Darei mais atenção no quarto capítulo à descrição desta audiência pública, para compreender melhor a
construção político-jurídica do “Estatuto do Cigano”.
17
Foi esclarecido pelo Senador Paulo Paim, no início da audiência, que as pessoas sentadas na mesa da
teriam o direito de falar por 10 minutos. Quando foi aberta a possibilidade das pessoas da plateia falarem,
que deveriam se inscrever anteriormente, o Senador estabeleceu que os participantes poderiam falar por
no máximo 5 minutos.
105

Portanto, a “ANEC”, enquanto uma associação civil formalmente constituída,


pode ser entendida como um instrumento de luta, pois vem garantindo e legitimando o
acesso de Wanderley da Rocha e sua família em espaços da burocracia estatal18, na
condição de interlocutores no Senado Federal, e, assim, ser reconhecida como uma das
peças chaves da luta dos ciganos por direitos no Brasil.
Por outro lado, o trabalho de campo revelou-me que a presença da “ANEC”
disputa poder com outras associações, anteriormente existentes, que predominavam no
Congresso Nacional. Na verdade, a posição ocupada pela “ANEC” é objeto de
questionamentos e tensionamentos de outras associações e lideranças que pleiteiam
também esse lugar de interlocução com o Estado, como ocorre no Poder Legislativo
Federal.

2.1.2 - Tempo e espaço

Ao acessar o website do Senado Federal, é possível obter as informações oficiais


sobre a tramitação do PLS nº 248/2015. Isto é, quando foi proposto, o que ocorreu
desde o dia que foi protocolado, como se deu suas movimentações processuais e
votações.
Quando optei por etnografar o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, que
é o objetivo geral da tese, precisei levantar alguns questionamentos, que transcendem as
informações formais disponibilizadas pelo Senado Federal. Por isso, para entender
quando começou as movimentações para incluir o “Estatuto do Cigano” no
ordenamento jurídico brasileiro, uma das primeiras perguntas que me veio à mente foi:
como se deu a escolha do Senador Paulo Paim para ser responsável pela proposição do
“Estatuto do Cigano”? Quando indaguei Seu Wanderley sobre essa questão, este
respondeu atribuído à “Deus”, enquanto uma providência divina que os uniu.
Segundo as informações disponíveis no website da Agência Senado, “o autor,
Paulo Paim (PT-RS), disse que teve a ideia de apresentar o projeto após uma audiência
pública em que representantes dos povos ciganos lamentaram a falta de atenção do
Estado. - São povos invisíveis – apontou o senador” (2018)19. Analisando os registros

18
De alguma maneira a presença da “ANEC” nesta posição de articulação legítima também os ciganos
Calon de modo geral. Isso porque, embora seja o grupo étnico mais numeroso no país e há mais tempo
neste território, as primeiras lideranças ciganas atuantes como interlocutoras em face da burocracia
estatal eram pertencentes à etnia Rom, como é o caso, por exemplo, de Cláudio Ivanovitch, Miriam
Stanescon e Mio Vacite.
19
No próximo tópico deste capítulo, abordarei sobre a audiência pública que o Senador Paulo Paim
mencionou na referida afirmação, que o levou a propor o projeto.
106

das audiências públicas anteriores à proposição do PLS 248/2015, nota-se a presença de


outras “representações” e lideranças ciganas, que igualmente reivindicavam a criação
de um “Estatuto”, o que pode significar, na verdade, que foi o referido parlamentar que
escolheu os integrantes da ANEC para atuarem como interlocutores da proposição
legislativa.
No vídeo “A cultura cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos”, gravado
pela TV Senado e disponibilizado na plataforma do Youtube, Seu Wanderley descreve
como seu a iniciativa de propor o “Estatuto do Cigano”. Vejamos:
Entendendo que a ANEC tinha autonomia de voz de levar a proposta da criação do estatuto
dos povos ciganos no senado, foi o que nos levou a ir e encontramos o ilustre senador Paulo
Paim, senador da república, que nos recebeu com toda firmeza de um homem capaz,
entendendo a necessidade dos povos ciganos sair da invisibilidade, que foi o pedido que
eu fiz pra ele: ‘Oh doutor, nós precisamos simplesmente ser visível’. E o PLS 248/2015,
projeto de lei do senado que cria e regulamenta o estatuto do cigano, dando dignidade e
igualdade racial. [...] Um povo que vive às margens da sociedade, massacrado, a vida
inteira e, no entanto, como cidadão comum merecemos os mesmos direitos que os outros,
somos filhos de deus (apontando pra cima). Nós não queremos dinheiro, não queremos
nada disso, meu deus, nós queremos só acessar o direito de igualdade racial.

Nos diálogos que tive com Seu Wanderley, por outro lado, não houve menções
às audiências públicas que ocorreram antes de abril de 2015, mês e ano em que o “PLS”
foi proposto. Inclusive, fiz indagações diretas a estes eventos durante a minha passagem
pelo “Acampamento Nova Canãa” e não obtive respostas. A impressão que tive é que,
para estes interlocutores, as movimentações pelo “Estatuto do Cigano” se iniciaram com
a criação da ANEC, em 2011, depois, com a mudança do grupo para Brasília, em 2014,
com a instalação do “Acampamento Nova Canãa”, em junho de 2015, e, posteriormente,
com a proposição formal do projeto de lei no Senado Federal. Em outras palavras, não
houve referências dos interlocutores da “ANEC” aos eventos que ocorreram no
Congresso Nacional, entre 2011 e 2015. Por isso, o não dito é igualmente revelador.
Como já foi mencionado na introdução desta tese, é importante ressaltar que a
tramitação do PLS nº 248/2015 se iniciou com a sua submissão no Senado Federal, em
29 de abril de 2015. Desde então, o “Estatuto do Cigano” foi discutido e aprovado por
duas comissões temáticas do Senado Federal. Na 7ª Reunião Extraordinária da
Comissão de Educação, Cultura e Esporte, realizada em 27 de março de 2018, foi
aprovado o relatório do senador Hélio José (Partido MDB), favorável ao projeto. Na 15ª
Reunião da Comissão de Assuntos Sociais, realizada em 9 de maio de 2018, também foi
aprovado o relatório do senador Hélio José. Após a aprovação do Projeto de Lei
248/2015 nestas comissões temáticas, este projeto foi encaminhado à Comissão de
107

Direitos Humanos e Legislação Participativa, onde aguarda a sua deliberação20. Todas


estas ocasiões foram citadas diretamente pelo Seu Wanderley em nossos diálogos.

Imagem 7 – Seu Wanderley, Daiane Rocha e Senador Hélio José durante a


7º Reunião Extraordinária da Comissão de Educação, Cultura e Esporte

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2018b).

Imagem 8 – Senadores Hélio José (esquerda) e Paulo Paim (direita) durante


a 15ª Reunião da Comissão de Assuntos Sociais

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2018f).

20
Durante o exame de qualificação da tese, a Profa. Dra. Mécia Rejane fez as seguintes provocações: por
que o projeto de lei, que foi proposto em 2015, só foi votado na primeira comissão em 2018? O que
aconteceu durante 2015 e 2018? O que aconteceu a partir de 2018 para que a votação na terceira comissão
não tenha ocorrido? Estas provocações serão refletidas no último capítulo da tese, “Capital das Leis”, em
que abordarei as correlações de força e a conjuntura política que a tramitação do “Estatuto do Cigano” é
atravessada.
108

Além disso, ao longo do diálogo que foi transcrito, assim como em outros
momentos em que conversei com os interlocutores da “ANEC”, as trajetórias desta
associação e do “Estatuto do Cigano” são entrelaçadas, como se constituíssem uma
única história. Nas palavras de Seu Wanderley, “a ANEC foi fundada e constituída no
ano de 2011, porque nós ciganos entendemos que também somos cidadões de direitos e
deveres, comum a todos, iguais a todos. [...] Ela foi criada simplesmente com o fim e
o propósito de levar a construção do Estatuto” (meus destaques).
Percebo ainda que é muito comum os interlocutores associarem o surgimento da
“ANEC”, do “Estatuto do Cigano”, assim como sua relação com os senadores Paulo
Paim ou Hélio José à ideia de destino, aos poderes divinos, à vontade de Deus. Esta
forma de narrativa, de associação ao divino, também foi percebida pela pesquisadora
Maria Patrícia Goldfarb (2010) quando buscou compreender como os “ciganos” mais
velhos, que vivem no município de Sousa-PB, enxergam o passado e interpretam o
surgimento do grupo.
Como nos mostra Max Weber (1982, p. 222, destaque do autor), os “ciganos”
vivem o presente explorando o passado, o que permite um senso de dignidade, “nutrido
pela crença numa missão providencial e por uma crença numa honra específica perante
Deus”, isto é, de um “povo escolhido”. Por isso, em relação às narrativas sobre o porquê
de os “ciganos” serem nômades, Goldfarb percebe que
[...] o passado fornece um status diferenciado, através dessa ideia de destino,
que produz uma ‘estimativa positiva’, que determina certa ‘honraria’ ao povo
cigano, visto aqui como um povo escolhido. Assim, o fato de serem
‘mensageiros’ ou ‘peregrinos’, tal como fora Jesus, explica a própria
constituição histórica do grupo. A peregrinação relaciona-se com o passado
de nomadismo, a vida sofrida, a tradição. Já o fato de serem mensageiros de
Deus explica a capacidade de vidência e os sentimentos de dignidade, que se
relacionam com uma positivação do seu status social. (2010, p. 169,
destaque da autora)

Inclusive, o próprio nome escolhido para denominar o acampamento, “Nova


Canãa”, vem de “Canãa”21, que, conforme abordado pela bíblia, trata-se da “terra
prometida”, um lugar de fartura, comparada aos desertos circundantes, “onde corre leite
e mel”, que foi reservado a um “povo escolhido”. Portanto, o acampamento, a
associação e a família de Seu Wanderley, de acordo as próprias narrativas dos
interlocutores, são o lugar e o grupo que Deus, assim como o destino, reservaram para
cumprir uma missão: de lutar pela aprovação do “Estatuto do Cigano”, de representar

21
Canãa é a antiga denominação da região correspondente à área do atual Estado de Israel (inclusive as
Colinas de Golã), da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, de parte da Jordânia (uma faixa na margem oriental
do Rio Jordão), do Líbano e de parte da Síria (uma faixa junto ao Mar Mediterrâneo, na parte sul do
litoral da Síria), conforme os versículos da bíblia de Números (34:1-15) e Deuteronômio (3:8), do Antigo
Testamento.
109

toda uma “nação cigana”, para batalhar pelo fim do sofrimento que este povo vivencia
há séculos.
Entendo ser necessário destacar que esta narrativa do “povo escolhido” e da
“terra prometida”, manifestada pelos interlocutores em suas falas, está associada
também ao fato do “Acampamento Nova Canãa” ser um dos primeiros espaços
concedidos pelo Estado brasileiro para famílias e grupos “ciganos” construírem suas
moradias. Como afirma Seu Wanderley,
[...] esse lugar aqui, terra Nova Canãa, como tá na internet, na mídia, é o primeiro uso de
terra, concessão gratuita, do governo federal, se aproximando 500 anos de ciganos aqui
no Brasil, segundo os relatos, que chegamos em 1574, primeira terra, exclusiva,
especificamente do governo federal para o povo cigano. (meus destaques)

Essa “concessão gratuita” foi formalizada no dia 24 de junho de 2015,


aproximadamente dois meses após o início da tramitação do PLS n° 248/2015. Nas
palavras de Pinel, Perpétuo e Reses, se tratou de “um ato histórico e inédito”, pois, “o
Governo do Distrito Federal (GDF) e o Governo Federal” assinaram o “Termo de
cessão de imóvel que beneficia duas comunidades ciganas do Distrito Federal” (2019, p.
147). Ou seja, a família de Seu Wanderley é uma das duas famílias contempladas pela
concessão. Por isso, o principal interlocutor da “ANEC” ressalta o caráter histórico da
medida, ao afirmar que foram necessários quase cinco séculos para que os primeiros
“ciganos” que vivem no Brasil tivessem formalmente o acesso à terra por meio de uma
política pública.
Frisa-se que essas terras foram doadas pela União, durante o primeiro ano do
segundo mandato da Presidenta Dilma Rousself, em 2015, ao Governo do Distrito
Federal, que repassou para os ciganos contemplados o termo de posse, por dez anos,
podendo ser renovado por igual período22.
De acordo com o Relatório de Visita Técnica “Território Calon no Distrito
Federal”, produzido pelo Ministério das Mulheres da Igualdade Racial, da Juventude e
dos Direitos Humanos sobre o Acampamento “Nova Canãa”:
A comunidade de Etnia Calon, representada pela ANEC – DF e cuja
liderança atual é o Sr. Wanderley da Rocha, tem origem no sertão da Bahia.
A partir de 1974 ganha mobilidade por Goiás e pelo Distrito Federal, com
paradas mais frequentes nas imediações de Brasília, tais como Samambaia,
Águas Claras e Sobradinho, tendo acampado nessas áreas ao longo de 40
anos.
Em 2014, a comunidade decide se fixar no DF, ao se instalar em um terreno
em Santa Maria, quando passa a receber assistência do GDF e do Governo
22
Segundo o Processo nº 04991.001186/2014-63 , instaurado pela Secretaria do Patrimônio da União
(SPU), a regularização fundiária para fins de moradias em áreas ocupadas por comunidades tradicionais,
como é o caso dos povos ciganos, está regulamentado e fundamentado no artigo 1º, inciso I, da Portaria
de nº 232/2005 do Regimento interno da SPU, na Lei 12.288, de 20 de junho de 2010, e na Política
Nacional do Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, estabelecida pelo
Decreto 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2015b).
110

Federal em ações para atenuar a situação de vulnerabilidade social das


famílias. (2016, p. 10)

Por isso que é importante destacar que o “Acampamento Nova Canãa” é um dos
espaços centrais para compreender a tramitação do PLS nº 248/2015, foi citado na
audiência pública do dia 29 de maio de 2020, assim como nas reportagens produzidas
pela TV SENADO. A área destinada à família de Seu Wanderley é de 3,5110 hectares,
em que vivem “aproximadamente 18 famílias, sendo composta por 70 pessoas”
(PINEL; PERPÉTUO; RESES, 2019, p. 148). Fica situado a aproximadamente 32 km
do Congresso Nacional, como pode ser visualizado na imagem abaixo:

Imagem 9 – Trajeto entre o “Acampamento” e o Congresso Nacional

Fonte: Google Maps (2020).

Mudar-se para a “Capital das Leis”, em 2014, e estar “perto” do Congresso


Nacional, como se referiram os interlocutores, pode ser interpretado parte da estratégia
da luta por direitos, pela aprovação do “Estatuto do Cigano”. Todavia, como se refere a
Nota Técnica supracitada, a região do Sobradinho é uma das rotas e espaços de pousos
destes interlocutores desde a década 1970.
A relação da família de Seu Wanderley da Rocha com a região do
Sobradinho-DF fez-me recordar da dissertação de mestrado da antropóloga Jamilly
Rodrigues Cunha. Esta pesquisadora destacou, em etnografia sobre a construção e
efetivação do “primeiro centro de tradição cigana do país”, instalado no município de
Sousa-PB, que os ciganos que vivem nesta localidade, apesar de indicarem a década de
1980 como o período de “fixação” no local, a relação com este espaço “não se inicia aí,
111

ademais, eles próprios nos informaram que a cidade sempre esteve na rota de parada do
grupo, sobretudo, pelo fato de que ali existia apoio e se tinha proteção” (2015, p. 23).
A territorialidade dos “ciganos” que vivem no “Acampamento Nova Canãa”
pode ser compreendida “através da apropriação espacial, processando no espaço
construções simbológicas, representadas pela lógica da utilização enquanto instrumento
de sobrevivência e materialização das necessidades” (MACHADO; SOUSA;
ALMEIDA, 2011, p. 4). De acordo com estes autores, por ter práticas supostamente
nômades23, a territorialidade cigana é “construída cotidianamente, não obedecendo
necessariamente uma fixação no espaço. Dessa forma os ciganos constantemente faziam
a transformação de espaços em territórios próprios” (2011, p. 4)24.
Segundo Virgínia dos Santos (2002), para o “cigano”, a utilização de um espaço
traduz suas concepções humanas, culturais, materiais e filosóficas, com base em
concepções arquitetadas e abstratas de espaço e territórios adquiridos, tendo um valor
social definido pelo grupo. De toda forma, é importante compreender que “os ciganos
formam uma comunidade imaginada, a partir de um estilo cultural singular, que une
simbolicamente aspectos essencialistas e epocalistas em uma forma de comunhão e de
solidariedade, objetivada na relação entre parentesco e espaço” (REZENDE, 2000, p.
86).
Nesse sentido, noto que as narrativas dos interlocutores da “ANEC” ou do
“Acampamento Nova Canãa” refletem suas concepções sobre si próprios e sobre sua
relação com o mundo, tanto no aspecto temporal, como espacial, na medida que
entrelaçam as suas respectivas trajetórias ao percurso do “Estatuto do Cigano”. São
narrativas que representam a construção da memória coletiva/familiar, e,
consequentemente, da identidade do grupo, como abordarei no próximo tópico.

2.1.3 - Memórias e narrativas

Neste subtópico, opto por discutir a forma como as memórias dos interlocutores
do “Acampamento Nova Canãa” sobre o “Estatuto” são levantadas e de que maneira

23
Embora os interlocutores da ANEC tenham constituído (fixado) suas moradias no “Acampamento Nova
Canãa”, entendo que não é adequado chamá-los de “sedentários”, ou, simplesmente de “nômades”.
Primeiro, por se tratarem de classificações externas, atribuídas por pessoas “não-ciganas”, e não pelos
próprios “ciganos”. Também não é adequado, pois, como pesquisador, tive apenas quatro experiências
etnográficas neste acampamento. Contudo, nestas ocasiões, notei que alguns integrantes da associação
circulam constantemente em estados vizinhos ao Distrito Federal, especialmente Minas Gerais, onde tem
relações de negócio e vínculos familiares. Voltarei a abordar a questão do “nomadismo” no terceiro
capítulo desta tese.
24
A pesquisa de Machado, Sousa e Almeida levou em consideração a territorialidade dos os ciganos que
vivem na região de Piomonte da Chapada Diamantina (cidade de Jacobina-BA).
112

contribuem para a delimitação da identidade do grupo e do seu papel em face da


proposição do PLS nº 248/2015. Além disso, selecionei e dei destaque a duas narrativas,
de diferentes lideranças, que dizem representar distintos segmentos étnicos ciganos,
sobre como teria surgido o “Estatuto do Cigano”.
Ressalto que, quando fui ao “Acampamento Nova Canãa”, pela segunda vez,
para passar o final de semana, já havia feito um levantamento e estudado todos
materiais disponíveis, nos websites do Congresso Nacional, sobre a tramitação do PLS
nº 248/201525. O mesmo fiz em relação a todas as audiências públicas que aconteceram
no Congresso Nacional, antes de 2015, em que se discutiram os “direitos” e a
“cidadania cigana”, assim como os eventos sobre “povos e comunidades tradicionais”
que contaram com a presença de lideranças ciganas.
Esta pesquisa prévia que realizei teve um papel fundamental para as minhas idas
ao “Acampamento Nova Canãa”, pois, me possibilitou formular as perguntas dos
diálogos que teria durante a vivência, assim como comparar e integrar as narrativas e as
memórias dos interlocutores da “ANEC” às informações sobre o “Estatuto do
Cigano”26. Assim, foi possível notar nas lembranças de uns e de outros interlocutores
não apenas narrativas explícitas, mas também zonas de sombra, silêncios e “não-ditos”.
Ao retornar aos registros do meu caderno de campo, que comecei a escrever a
partir de maio de 2018, me deparei com a seguinte a anotação: “esse Estatuto aí foi
escrito por uma cigana de espírito que saiu criando associações pelo Distrito Federal e
pelo estado de Goiás” (meus destaques). Esta afirmação foi feita por Letícia Carvalho27,
uma das lideranças ciganas que atuam na relação com a burocracia estatal28, durante o
IV CONAPIR, que ocorreu em Brasília, entre os dias 28 de maio e 01 de junho de 2018.
Creio ser necessário também resgatar uma resposta que obtive, por e-mail, de
outra liderança cigana, quando solicitei a esta realizar uma entrevista sobre o processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”29. Esta solicitação deu-se por sugestão de Luciano
Maia, em uma rápida conversa que tivemos no aeroporto de Brasília, em abril de 2019,

25
Como esclareci na introdução, este levantamento consistiu em ler as atas das reuniões e das relatorias
sobre o projeto de lei; assistir as votações que ocorreram nas Comissões temáticas, assim como a
audiência pública e as reportagens da TV Senado, sendo que todos estes materiais audiovisuais foram
transcritos.
26
Durante a observação participante em eventos políticos do Congressos ou nos espaços promovidos
pelos Conselhos Nacionais, foi possível conhecer e conversar com outras lideranças ciganas,
informalmente, e, nestes diálogos, foi possível ouvir alguns posicionamentos sobre a proposição do
“Estatuto do Cigano”.
27
Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento da tese.
28
Para o propósito desta tese, não é necessário informar o nome desta liderança.
29
O e-mail que enviei, 9 de maio de 2019, fez a seguinte pergunta à ”representação cigana”: “A senhora
estará em Brasília dia 24 de maio? Eu irei participar do evento organizado pelo PGR em comemoração ao
Dia Nacional do Cigano. Se a senhora puder, podemos conversar antes ou depois do evento”.
113

ele voltando para João Pessoa e eu indo para o Rio de Janeiro30. “Você precisa conversar
com a Susana Novisk sobre a tramitação do PLS, ela tem muitas informações sobre o
projeto”31, aconselhou o Procurador da República. Então, segui o seu conselho e o
solicitei uma entrevista.
Segue abaixo a resposta que tive de Susana Novisk, no dia 10 de maio de 2019:
Grata pelo contato. Infelizmente o mês de maio é bastante corrido. A equipe da
AXY/Brasil32 estará em ações municipais e estaduais e eu estarei em agenda fora do país.

A tramitação do PLS 248 é um dos maiores desafios e palco de inúmeras preocupações.


Sem adentar muito, ele viola a escuta qualificada e portanto a convenção 169/OIT.
Empobrece a discussão, porque é raso e visivelmente construído por gadjos especialistas
no que supostamente se acredita ser o melhor para os coitadinhos. Nada muda na história.

A última versão é tão desatualizada na qual se afirma ter atendido os pedidos e floreios do
MPF em relatório, que nos dá uma sensação muito ruim e dúbia sobre os organismos de
defesa e proteção deste país.

Desde os primeiros dias desta versão, até hoje, fomos a primeira organização a alertar os
erros grotescos iniciais, e inúmeros e mail, as comissões e afins foram enviados.

Oficios de ministérios atestando a necessidade de melhora e escuta, até a o documento


entregue ano passado no Maio Cigano/2018, onde conclamamos o cumprimento da
convenção 169 da OIT. Nada mudou, a não ser linhas desatualizadas - ex. saúde e
educação.

A ilusão permeia as ditas autoridades, num raso e parco acolhimento, sem levar em conta
por exemplo o amplo contexto do mundo do trabalho, suas realidades de fronteira e
território dentre outras.

O analfabetismo Phillipe, neste caso é também funcional e político, enquanto o poder


público tenta recuperar a imagem as custas dos ciganos para cobrir a enorme inoperância
em relação as minorias nesse país.

Sabemos que não teremos como trabalhar esse estatuto enquanto mecanismo de direito
efetivo. Quantos somos? Como criar um estatuto sem o mínimo?

Aos ciganos místicos, será aplicado o estatuto, a Romà seguirá a parte, tenho certeza disso.
Será papel sem eficiência, mais um para o senador dos estatutos. O mecanismo de um
estatuto em sí é de extrema relevância, caso tivesse sido feito com respeito, coragem e
dignidade. Não nos esqueçamos do avanço contra a romá pelos partidos de direita nos dias
atuais, Itália, Espanha, Bélgica e outros.

Por outro lado, penso e creio que seu senso crítico estará afiado e atendo. Espero e faço
votos que sim.

Grande abraço e boa sorte, ficamos em contato. (Meu acervo, destaques da informante)

A resposta à solicitação de entrevista, por e-mail, assim como a fala da liderança


cigana durante o IV CONAPIR, em conversa informal, convergem para a mesma
informação: o projeto de lei apresentado ao Senado foi supostamente pensado por

30
Esta sugestão se deu após eu falar que estava planejando passar alguns dias no “Acampamento Nova
Canãa”.
31
Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento da tese.
32
Adota-se um pseudônimo por entender não comprometer o desenvolvimento da tese.
114

“ciganos de espírito” ou “gadjos especialistas”33. E o que essa afirmação (insinuação)


significa? O que ela quer dizer?
Quando se fala em “ciganos místicos”, “ciganos de espíritos” ou “gadjos
especialistas”, deve-se observar o contexto e quem pronunciou. Neste caso, são
lideranças ciganas que, além de lutarem por direitos e políticas públicas, disputam
também o protagonismo desta luta. Por isso, interpreto as expressões “gadjos
especialistas”, “ciganos místicos” ou “ciganos de espíritos” como uma forma e tentativa
de deslegitimar a proposição do PLS nº 248/2015, pois, conforme essas narrativas, o
“Estatuto”, que tramita no Senado, teria sido pensado e formulado por pessoas que “não
são ciganas de verdade”. Inclusive, a troca de mensagens que tive por e-mail diz isso, de
forma expressa, embora com outras palavras: que o projeto de lei foi produzido por
“gadjos especialistas” e que seus destinatários serão os “ciganos místicos”34.

Imagem 10 – Apresentação de “dança cigana” durante o IV CONAPIR

Fonte: acervo do portal jornalístico do IESB (2018).

Ora, quem seria a “cigana de espírito” que a informante “Letícia Carvalho”,


durante o IV CONAPIR, se referiu? Ela existe ou existiu de fato? Quem são os “gadjos
especialistas” que “Susana Novisk”, representante da “AXY”, indicou como sendo

33
Como será esclarecido no terceiro capítulo, falar em “cigano de espírito” ou “cigano místico” aciona a
seguinte significação: trata-se de pessoas que reivindicam “ser cigana” por uma ligação espiritual, e não
por descender de famílias ciganas, ter descendência cigana. Frisa-se que “gadjo”, em algumas línguas
ciganas, significa “pessoa não cigana”.
34
A normatização do “ser cigano”, ou seja, quem são os possíveis destinatários do PLS n° 248/2015 e
quais os parâmetros para identificar quem é “cigano” será discutido no terceiro capítulo.
115

responsáveis pela proposição do “Estatuto do Cigano”? Certamente, as diferentes


interlocutores estão se referindo a mesma pessoa, “Marlete Queiroz”, a primeira
presidenta da “ANEC” e que também contribuiu para a fundação da “ACEC-DF”35.
Durante o diálogo que gravei com os interlocutores da “ANEC”, não foi feita
nenhuma menção à “Marlete Queiroz”. Lembro-me que estranhei o fato, pois, já sabia
da sua existência. Por isso, fui tomado pela seguinte dúvida: devo ou não devo
perguntar quem é “Marlete” e qual papel desempenhou na “ANEC”, assim como para a
proposição do “Estatuto do Cigano”? Meu receio, no momento, era gerar algum tipo de
constrangimento, perder o acesso e o contato com os interlocutores, caso se sentissem
incomodados com o questionamento. Afinal de contas, era minha primeira vez
dormindo no “Acampamento Nova Canãa”. Por isso, guardei essa dúvida, que também
era uma curiosidade, para a próxima visita e vivência.
Um mês e meio depois, no final de julho de 2019, na minha segunda vez
dormindo no rancho de Seu Wanderley, finalmente perguntei sobre “Marlete”. Era
minha última noite no “Acampamento”, me senti mais seguro e à vontade para
conversar sobre essa pessoa que aparece nos registros audiovisuais da TV Senado e que,
possivelmente, foi citada por duas diferentes “representações ciganas”, “Susana
Novisk” e “Letícia Carvalho”. Estávamos, no momento, eu, Seu Wanderley, Seu Batista
e Seu Jefferson, conversando sobre a tramitação do “Estatuto”. Falei, discretamente, que
vi registros de “Marlete” participando de uma audiência pública ocorrida no Senado e,
então, perguntei “quem seria ela”. Após meu questionamento, notei que eles, os irmãos,
se olharam, não falaram imediatamente, até que Seu Wanderley se pronunciou,
explicando quem era “Marlete Queiroz”.
De maneira muito objetiva, Seu Wanderley informou que “Marlete Queiroz” foi
a primeira presidente da “ANEC”, que inicialmente foi muito importante para a sua
família, pois ninguém tinha conhecimento de como poderia criar uma associação, entre
outras burocracias. Seu Wanderley afirmou, de forma muito sutil e cordial, que não
houve grandes problemas com “Marlete” para ela sair da diretoria da “ANEC”, que
apenas não fazia sentido tê-la na presidência, uma vez que ela não é integrante da sua
família, mas sim uma parceira. Em nenhum momento também foi dito que “Marlete”
era ou não era “cigana”. Por outro lado, os três interlocutores fizeram questão de
ressaltar, mais de uma vez, que a ideia de propor o projeto foi deles, e não de “Marlete”,

35
Como veremos no próximo tópico, Marlete Queiroz aparece no primeiro registro audiovisual
disponibilizado pelo Congresso Nacional sobre eventos que tratavam sobre os direitos ciganos, em 2011.
116

embora tivessem tido ajuda, de outras pessoas, na produção do texto da lei. Encerramos
o assunto e não voltamos mais a falar de “Marlete”.
Se eu não mencionasse a existência de “Marlete”, provavelmente, nenhum dos
três interlocutores teriam falado sobre ela. Digo isso, pois, depois da conversa que
tivemos sobre “Marlete” nada mais foi falado sobre essa pessoa. O silêncio sobre ela já
era um dado para mim, que foi quebrado, uma única vez, por conta da minha pergunta.
A memória não é constituída apenas pelo que optamos lembrar, pelo que é dito
ou anunciado, mas, também pelo que se opta por esquecer, pelo “não-dito”. E é a partir
da memória e de como a construímos que se estabelece as identidades. Nas palavras de
Michael Pollak, a memória é um “elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si” (1992, p. 204).
Como diz Michael Pollak, em outra obra,
As fronteiras desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo e o
reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões
e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser
punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos.
(1989, p. 8, destaque do autor)

Pollak defende que “a memória é seletiva”, nem tudo fica gravado, nem tudo
fica registrado, sendo que as preocupações do momento constituem um elemento de
estruturação da memória. Dessa forma, ao concluir que a memória “é um fenômeno
construído”, este autor quer dizer que “os modos de construção podem tanto ser
conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui,
relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”
(1992, p. 203-204).
Segundo Rezende, a etnicidade cigana
permanece imersa nas experiências cotidianas dos atores e nas memórias
de um passado submerso que emerge reinterpretado e atualizado a todo
momento. No contexto do contato cultural vemos a etnicidade operando
em toda sua magnitude, instilando vigorosamente sentimentos e sentidos
nos discursos e práticas, através dos mitos de origem e experiências
pessoais das tradições culturais como a língua, as vestimentas, o
nomadismo, o parentesco etc. (2000, p. 72, grifo do autor)

Por isso, interpreto que o que estava em jogo para os interlocutores da “ANEC”,
durante nossas interações, era a identidade do seu grupo e a narrativa que
reivindicavam: os “pioneiros”, os “escolhidos de Deus” e os responsáveis por realizar a
117

missão divina de “aprovar o Estatuto do Cigano”, para o bem de “toda uma nação”; por
isso, criaram a “ANEC” e se mudaram para “Capital da Leis”.
Todavia, como sustenta Pollak, “a construção da identidade é um fenômeno que
se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros” (1992, p. 204). Este autor ressalta que a memória e identidade podem
perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser entendidos como
essências de uma pessoa ou de um grupo.
Cada um, com suas memórias e experiências privadas, poderá chegar a
elaboração de respostas a partir da ressignificação das memórias [...] toda
memória é contemporânea porque é produzida no presente, e sempre
conflitiva em sua evocação, pois seleciona e esquece algo em sua
interpretação do passado. [...] entende-se que é a partir das disputas e dos
conflitos, que essas memórias podem continuar sendo produzidas. (BRITO,
2020, p. 78-79)

Portanto, a seletividade da memória acontece porque fazemos memória no


presente, e a fazemos porque buscamos sentido no presente. Se, por um lado, os
interlocutores da “ANEC” não mencionaram a existência de “Marlete”, exceto quando
questionados por mim, por outro lado, as informantes “Susana Novisk” e “Letícia
Carvalho” também não emitiram nenhum elogio ou consideração positiva sobre o
“Estatuto do Cigano”, assim como sobre o esforço e o engajamento de Seu Wanderley,
que, desde 2015, tem atuado em diversos espaços do Congresso Nacional e da PGR. Ao
contrário, se referiram aos integrantes do “ANEC” como pessoas que foram
manipuladas por “ciganos de espírito”, sem autonomia, ou, como analfabetos
“funcionais” e “políticos”.
Destaco que tomei conhecimento que “Susana Novisk” chegou a protocolar no
MPF documentos manifestando ser contrária ao projeto de lei apresentado pelo Senador
Paulo Paim e solicitando que o órgão tomasse providências no sentido de recomendar
ao Congresso Nacional a não aprovação do PLS, o que aconteceu. Segundo as duas
lideranças ciganas que me informaram tal fato, que são dois estados diferentes, assim
como de grupos étnicos distintos, “Susana” sempre fez oposição ao projeto desde do dia
que foi protocolado no Senado Federal e além disso é uma pessoa que tem costume de
não apoiar ou colaborar com projetos ou iniciativas em que sua associação não esteja no
centro das articulações.
Portanto, noto e interpreto que há uma disputa de narrativa entre as diferentes
lideranças ciganas sobre a tramitação do PLS nº 248/2015. Assim, como defende
Pollak, “se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros,
118

isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”
(1992, p. 204).
Realizar esta etnografia, inspirado sobretudo na perspectiva de descrição densa
em Geertz (1989), como aqui me proponho, demandou identificar possíveis
interlocutores e, em seguida, selecioná-los e interpretá-los, adotando a análise
antropológica como forma de produzir conhecimento.
Selecionar e dar ênfase a alguns interlocutores não se tratou de uma escolha
neutra, pois, essas opções delinearam a rede de significados, que, no caso desta tese,
contribuíram para compreender a luta pelos direitos ciganos a partir da tramitação do
PLS 248/2015. Por isso, optei por entrevistar, apenas, os integrantes da “ANEC” sobre o
“Estatuto do Cigano”, o que foi feito durante as minhas visitas ao Acampamento Nova
Canãa. Quando advirto que a seleção dos interlocutores não foi neutra, considero a
afirmação de Cardoso de Oliveira quando diz que há um:
sistema conceitual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já,
em uma primeira instância, construídos pelo observador desde o momento de
sua descrição, guardo entre si uma relação dialética. São inter-influenciáveis.
O momento de escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete, faz
com que aqueles dados sofram uma nova refração, uma vez que todo o
processo de escrever, ou de inscrever as observações no discurso da
disciplina, está contaminado pelo contexto do being here [...] pelo ambiente
acadêmico” (1996, p. 27, destaques do autor).

Quanto aos demais (possíveis) interlocutores, como, por exemplo “Letícia


Carvalho” e “Susana Novisk”, optei por levar em consideração suas respectivas
performances espontâneas36, nos espaços da burocracia estatal, onde realizei a pesquisa
de campo, por meio da observação participante. Isto é, obtive informações sobre o
processo do “Estatuto do Cigano” sem a intermediação de entrevista. Pois, são
lideranças ciganas, que, embora, não atuem, no sentido de militar, diretamente no
processo legislativo aqui etnografado, são igualmente interessadas nele, por
reivindicarem serem ativistas pelos “direitos ciganos”, assim como destinatárias do
“Estatuto”, caso aprovado.
Nesse sentido, ao contrapor as narrativas dos diferentes interlocutores sobre o
processo legislativo do “Estatuto”, posso interpretar e produzir conhecimento sobre a
luta pelos direitos ciganos, que é perpassado por uma série de disputas políticas. Ao
36
Com a finalidade de descrever “densamente” a tramitação do PLS n° 248/2015, levo também em
consideração as performances espontâneas, de alguns outros atores, ciganos e não ciganos, que
participaram de atividades relacionadas ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, como foi o caso
da audiência pública, em maio de 2018, assim como durante as votações das comissões especiais do
Senado. Espontâneas uma vez que a contribuição desses atores para essa pesquisa não ocorreu por meio
de uma entrevista, assim como pelo fato de não saberem necessariamente que eu estava naquele espaço
também na condição de pesquisador.
119

longo da pesquisa etnográfica, fui percebendo que as oposições ao “PLS” diziam mais
respeito a quem pode ou deve dizer quais são os direitos dos povos ciganos e não tanto
em relação ao conteúdo da proposição legislativa do Senador Paulo Paim37.
Por fim, é necessário discutir nos próximos subtópicos como os interlocutores da
“ANEC” compreendem o papel do Estado e como categorizam os “direitos humanos”.

2.1.4 - “Invisibilidade” perante o Estado

A reivindicação de uma lei específica, como pleiteia os integrantes da “ANEC”


em sua luta para aprovar o “Estatuto” pode ser percebida como uma disputa sobre qual
o papel do Estado em face das demandas dos “povos ciganos”. É uma luta travada,
sobretudo a partir da tentativa de convencimento dos atores institucionais envolvidos no
processo legislativo, em entenderem o porquê deste povo tradicional exigir políticas
públicas e direitos específicos. Reivindicam que o Estado não se abstenha, não ignore a
realidade dos “povos ciganos”. Resumindo, nas palavras de Seu Wanderley, durante o
programa “A cultura cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos”, da TV Senado:
[...] nós queremos só acessar o direito de igualdade racial. Isso tá escrito mas não está
valendo para nós! Não está valendo, a gente gostaria que fosse válido trocar as palavras
por ação, nós agora, o povo cigano, estamos pedindo às autoridades competentes que faça
valer nossos direitos, saber eles já sabem, as leis já existe. Por favor, não fiquem
acomodados, entenda que nós também, olha, quanto anos de vida sofrida as margens da
sociedade, meu deus, o que que é isso? Assim que eles tirarem um tempo de meia hora para
ouvir a verdade do que o povo cigano vive no Brasil. Os direitos dos povos ciganos estão
violados. Nós precisamos de mais segurança, de mais proximidade política. A minha
satisfação de ir lá é falar para o mundo nós ciganos nascemos para o Estado. (2018a, meus
destaques)

Em primeiro lugar, é preciso dizer que como não existe uma única identidade
cigana, também não há uma única realidade, e, consequentemente, uma exclusiva
percepção sobre o papel do Estado em face do que seriam os “direitos ciganos”. Não
cabem generalizações ou essencializações. Todavia, se levarmos em consideração os
registros das discussões ocorridas no Congresso Nacional sobre os “direitos” e a
“cidadania” cigana, é possível identificar que diferentes pessoas relatando a ocorrência
de discriminação racial, miséria e exclusão social, para indicar a vivência deste povo
tradicional no Brasil, como mecanismo estratégico para cobrar ações concreta dos
Poderes Públicos.
Por sua vez, dou destaque a interpretação apresentada por Florência Ferrari sobre
como os ciganos Calons percebem o “Estado”. Segundo esta pesquisadora, é possível
argumentar que, do ponto de vista de um calon,

37
Exploro as disputas políticas e as oposições ao “PLS” no tópico “5.2” no último capítulo desta tese.
120

o gadje, ou o brasileiro, está em continuidade conceitual com o Estado. O


Estado não é percebido como uma organização transcendente e abstrata; ele
aparece unicamente na figura de pessoas concretas – os gadjes com os quais
se relacionam. É verdade que a polícia tem uma posição diferenciada – pois
possui o monopólio ‘legítimo’ da força –, mas ela é, antes de tudo, um gadje.
A relação dos calon com o Estado é elaborada sob o idioma da alteridade;
fala-se dele como gadje. O Estado é o ‘outro’. (2010, p. 298, destaque do
autor)

Levando em conta a argumentação acima, se por um lado os ciganos não se


enxergam como parte do “Estado”, como estes poderiam pleitear, portanto, políticas
públicas e o reconhecimento de direitos específicos, como ocorre na tramitação do PLS
248/2015? Não busco, aqui, invalidar ou questionar as conclusões apresentadas pela
pesquisadora, pois, ao meu ver, elas fazem sentidos em face dos grupos ciganos Calons
que Florência Ferrari fez etnografia, assim como diante do recorte temporal (período)
que foi analisado38.
De todo modo, embora as identidades e as realidades dos ciganos no Brasil
sejam variadas, a aprovação de uma lei, como é o caso do “Estatuto”, por envolver
normas de natureza geral e abstrata, acaba demandando generalizações. Isto é, além da
realidade desta população precisar transparecer uniforme, é necessário também
apresentar o “Estatuto” como uma demanda coletiva, desejada por todos os ciganos.
Segue abaixo um trecho da resposta de Seu Jefferson, quando questionado sobre
o que o Estatuto representa para ele e qual o papel do projeto tem na história. E, em
seguida, compartilho um trecho da participação de Sandra Lucero39, durante a audiência
pública sobre o “Estatuto do Cigano”, realizada em maio de 2018.
Seu Jefferson: Nós, em muitos lugares aí no interior do Brasil, continua as mesmas
perseguições, as mesmas coisas ruins contra o povo cigano, como antigamente. [...]. E é
muito importante o Estatuto para nós. A criança tem estatuto. O índio tem. A polícia
tem. A cidade tem. O idoso tem. E nós ciganos somos uma NAÇÃO não temos
estatuto, isso é vergonha, sinceramente. Porque somos contribuintes e somos eleitor.
Merecemos ter respeito. Nós queremos ser reconhecido! Queremos ser reconhecido! (meus
destaques).

Sandra Lucero: A tradição dos ciganos é muito rica, já está há a mais de 1500 anos
sofrendo racismo, preconceito, sendo expulso, sem direito à escola, saúde. [...] mas que

38
Frisa-se que Florência Ferrari aborda as relações dos ciganos com o Estado sem necessariamente
apresentar a demanda criada pela agenda do “Estatuto”. Segundo a antropóloga Edilma Monteiro (2019),
existem ciganos que desejam ter essa relação com o Estado e ciganos que não desejam, como percebeu
em sua pesquisa de doutorado, que precisou levar em conta o tempo todo essas negociações de quando
para os ciganos era “interessante” se expor a querer aproximação com os jurens (não-ciganos). Para esta
pesquisadora, que trabalhou com dois contextos etnográficos diferentes no estado da Paraíba, os “ciganos
de Mamanguape” não gostam da visita do Estado, enquanto os de “Sousa” se prepararam com o melhor
que tem para aguardar estas visitas. Esse debate e cenário demonstra que é fundamental partir do
pressuposto quanto à diversidade dos povos ciganos, e que mesmo que haja os que não querem este
diálogo com o Estado, os seus direitos precisam estar assegurados como cidadãos brasileiros e enquanto
povos tradicionais.
39
Sandra Lucero é uma liderança cigana do estado do Ceará, que foi convidada por Seu Wanderley para
sentar à mesa da audiência pública.
121

já vivemos nesse sofrimento, nessa desigualdade, há muito tempo. Olha, os ciganos que
estão aqui, se você parar para pensar, que agora o nosso estatuto está sendo feito,
diferente de outras etnias, como índio, como quilombola. Não tô aqui sendo contra que
nós somos amigos, que cada um precisa dos seus direitos, o sol nasce para todos, mas só
agora, graças ao Senador Paulo Paim, que nosso estatuto sendo feito, só agora ele está
sendo criado. (TV SENADO, 2018, meus destaques)

É possível perceber uma semelhança entre o discurso de Seu Jefferson e Sandra


Lucero na forma como o “Estatuto do Cigano” é reivindicado. Ambos expõem a
permanência da violência contra os “ciganos”, assim como a ausência de uma “lei” para
esta minoria, enquanto outras minorias étnicas dispõem de normas específicas.
“Somos a minoria mais perseguida do Brasil”, afirmou uma outra liderança
cigana, que não me recordo o nome, durante o IV CONAPIR. É importante registrar
que, ao longo da audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”, dezenove menções
foram feitas às palavras “invisibilidade” ou “invisível”, para se referir à condição do
cigano no Brasil. Priscila Godoy defende que a “invisibilidade” é a palavra-chave para
entender o cigano na sociedade brasileira (2016, p. 9). Por isso, falar e insistir na
“invisibilidade”, assim como nas permanências das “perseguições”, por exemplo,
podem ser interpretados como recursos estratégicos que buscam sensibilizar as pessoas,
em geral, para levar em consideração a realidade dos “povos ciganos”40.
Florencia Ferrari faz uma importante ponderação sobre a questão da
“invisibilidade”, em sua tese de doutorado. Segundo esta autora, a imagem da
“invisibilidade” é normalmente acionada por ativistas (não apenas ciganos) no contexto
político de reivindicações em face do Estado, na busca pelo reconhecimento de direitos
“e a consequente assistência aos ‘vitimados’, ‘despossuídos’, ‘abandonados’ pelos
poderes públicos” (2010, p. 296). Esta autora ponderou haver, entre os ciganos Calons,
outro sentido em torno da expressão “invisibilidade” para além da questão do “descaso”
do governo, ou seja, “como um mecanismo político estratégico para lidar com o
Estado”. Ferrari identificou que a “invisibilidade calon” poderia estar ligada à “sua
organização social e intencional”, como um mecanismo de autodefesa41.
De toda forma, a reivindicação do “Estatuto do Cigano” dá-se, justamente, pela
sensação de existir uma “violação de direitos” e uma “invisibilidade” desta condição. É
como também afirmou Seu Batista, durante o diálogo que tivemos no “Acampamento
40
A narrativa da "invisibilidade” é um dos principais elementos discursivos que compõem o “dispositivo
dos ciganos”.
41
“Um líder calon mostrou-se contra a ideia de um ‘censo’ cigano, alegando que ‘é melhor os gadjes não
saberem’; ‘essa é a defesa da gente’. Tornar os Calon ‘visíveis’ pode ter um efeito contrário ao almejado
pelo bem intencionado ativista não-cigano” (FERRARI, 2010, p. 296). No terceiro capítulo, retomarei a
questão “censo”, pois, diferentemente da perspectiva trazida por Ferrari, tratou-se de uma reivindicação
apresentada por diferentes lideranças ciganas atuantes no Congresso Nacional em torno das negociações
pela criação do “Estatuto do Cigano”, assim como está presente no próprio texto do projeto de lei.
122

Nova Canãa”: “O direito da gente tá sendo violado, há muitos anos nós temos o nosso
direito e nós não sabe onde ele tava, tá entendendo? E agora estamos na capital da lei,
cadê os nossos direitos?” (meu destaque).
O problema não é a previsão de instrumentos legais e de equipamentos públicos
específicos para outras minorias sociais e étnicas. A questão que muitas lideranças
levantam é a ausência de uma lei específica ou um órgão público específico voltado
para os “povos ciganos”. Por isso, há essa permanente sensação de “invisibilidade”, por
mais que nos últimos anos houvesse uma maior aproximação com o Estado. Ao insistir
na ocorrência da “violação de direito”, assim como na “invisibilidade”, busca-se chamar
atenção para um movimento de resistência, que luta pela causa cigana e, que, ao mesmo
tempo, reivindica políticas públicas.
Vale a pena compartilhar um registro, que fiz no meu caderno campo, de uma
colocação da liderança cigana Maria Jane, durante o IV CONAPIR: “se temos a
FUNAI para os amigos indígenas, se temos a Fundação Palmares para os amigos
quilombolas, cadê a fundação dos ciganos? Por que a gente não tem nosso órgão?”.
Em diversos momentos, durante minhas experiências no “Acampamento Nova
Canãa”, Seu Wanderley compartilhou uma pretensão que tem, em face da ausência de
um órgão ou um espaço nacional específico, direcionados ao povo cigano. Este, assim
como Seu Jefersson e Seu Bastita, sugerem a criação de um espaço que seria chamado
“centro de resgaste da cultura cigana”.
Não é possível dizer que Seu Wanderley estava reivindicando, explicitamente,
um órgão como a FUNAI e ou como a Fundação Palmares, como afirmou a liderança
cigana Maria Jane. Todavia, interpreto que suas pretensões se aproximam, pois,
reivindicam a criação de uma estrutura nacional voltada para os “ciganos”, com apoio e
financiamento do Estado, diante da ausência de qualquer órgão ou patrimônio público
voltado especificamente para este povo tradicional42.
Além do fato da “ANEC” ser a associação proponente do PLS nº 248/2015,
interpreto que a mobilização da realidade do “Acampamento Nova Canãa”, que aparece
em três, das quatro reportagens produzidas, em 2018, pela TV Senado, se dá também
por ser uma tentativa de ilustrar a suposta realidade geral dos povos ciganos no Brasil,
sobretudo levando em consideração os elementos presentes no imaginário social.

42
Digo isso porque me recordo que, após a gravação do diálogo, continuamos conversando sobre esse
espaço ou centro de “resgate da cultura cigana”. Os três irmãos mostraram-se bastante empolgados com
essa ideia. Seu Jefferson, inclusive, disse que já tinha a “planta” do que seria esse centro, apontava para
uma direção e dizia que seria o “estacionamento”, em outra direção para indicar os “dormitórios” para os
ciganos que precisassem estar em Brasília, e assim por diante.
123

Para se ter uma noção mais detalhada das condições do “Acampamento Nova
Canãa”, compartilho, abaixo, alguns trechos do “Relatório de Visita Técnica Território
Calon do Distrito Federal”, publicado em 10 de maio de 2016 (BRASIL, 2016a, p.
16-20). Vejamos:
Condições de acesso à água: As famílias fazem uso de uma caixa d’água,
situada no seu território, mas que é de propriedade do condomínio vizinho.
Em época de seca, o fornecimento de água não é suficiente para a demanda
de abastecimento do acampamento cigano e do condomínio provocando
escassez total de água. Há apenas uma torneira na localidade e não há sistema
de distribuição de água para todas as moradias.

Condições de serviços de saúde e saneamento básico: Existiam banheiros


químicos no local que haviam sido cedidos pelo GDF, mas que foram
retirados. Os banheiros químicos eram compartilhados por 70 pessoas e a
manutenção era precária. Isto implica em dificuldades no asseio das mulheres
e crianças, ocasionando problemas de saúde. Não há esgotamento sanitário e
coleta de lixo no local. A comunidade destacou a importância do Posto de
Saúde da Rota do Cavalo que também atende a comunidade cigana, mas
comunicaram que tiveram a informação de que o referido posto deverá ter
suas atividades suspensas. Desse modo, solicitaram ajuda do MS para uma
articulação junto à Secretaria de Saúde do DF a fim de resolver tal situação.
Foi verificado foco de mosquito da dengue.

Condições de moradia: As famílias estão distribuídas em 15 tendas, cada


tenda abriga mais de uma família. As temperaturas no acampamento são
extremas – excessivo calor durante o dia, o que impacta na temperatura do
interior das barracas, e muito frio com ventos fortes durante a noite. Algumas
das tendas foram doadas pela Defesa Civil, em colaboração com a Secretaria
Executiva do MDS, e apresentam lonas grossas que protegem o interior da
moradia. A liderança local informou que para normalizar a situação das
famílias seria necessário mais 10 tendas do tamanho 10x10, do modelo
cedido pela Defesa Civil. Para além disso, a liderança informou que a
comunidade tem interesse em construir casas de alvenaria e ambientes
coletivos para cozinha e para o uso da comunidade.

Educação: Segundo a liderança, as crianças em idade escolar estão


matriculadas e utilizam transporte escolar fornecido pelo GDF. Ainda é alto o
índice de jovens e adultos que não sabem ler e escrever na comunidade.

Imagens 9 a 12 – Registros do relatório do Ministério dos Direitos Humanos


124

Fonte: acervo do Governo Federal (2016, p. 16-21).

Minha vivência no “Acampamento Nova Canãa”, em junho e julho de 2019, me


possibilita afirmar que os diagnósticos e as demandas apresentadas pelo relatório
supracitado continuam atuais43.

43
Destaco duas questões que me marcaram durante as experiências etnográficas. A dificuldade para
dormir, por conta do frio, mesmo que estivesse numa cama confortável e com cobertores grossos,
fornecidos pelo Seu Wanderley, não eram suficientes para mim, baiano acostumado com o calor, poder
pegar no sono (as temperaturas giravam em torno dos 14º graus durante a madrugada). E o banheiro, pelo
que eu notei, havia apenas dois para todo os moradores do local, eram as únicas instalações com parede
de alvenaria, contudo, sem teto, com os canos à mostra e sem azulejos.
125

Como disse Seu Jefferson, durante o nosso diálogo que foi gravado, “os ciganos
já nasceram sem direitos. Sabendo que nossos direitos existe, só que tá lacrado, nós
tamos em Brasília, na capital da república, para quebrar o lacre. Nós quer saber os
direitos e deveres” (meus destaques). É inegável que os interlocutores da “ANEC”
defendem que o “Estatuto do Cigano” pode ser uma ferramenta fundamental para
concretizar os “direitos dos ciganos”. Todavia, creio ser importante destacar que Seu
Wanderley, em diferentes momentos em que conversamos, advertiu que o “Estatuto” é
só começo e não será suficiente sem ações concretas dos governantes.
Com base nas narrativas dos interlocutores, que compartilhei nos parágrafos
acima, faço, aqui, algumas propostas de reflexão: como seria possível mobilizar forças
para reivindicar políticas públicas por meio da ideia abstrata que os direitos humanos
são inerentes a todos? Como pleitear atenção especial aos “ciganos”, na atualidade, sem
haver previsão expressa a este povo tradicional nas leis brasileiras? Bastaria a
“positivação de direitos” para resolver a “questão cigana” no Brasil?
Creio que as teorias críticas44, que refletem os direitos humanos, são as
perspectivas mais adequadas para responder às propostas de reflexão que fiz acima e
interpretar como os interlocutores aqui selecionados compreendem o papel do Estado
em face da questão cigana. Afinal de contas, as teorias mais tradicionais restringem-se a
reproduzir uma perspectiva “positivista” ou “universalistas” dos direitos Hhmanos.
Enquanto a vertente da teoria crítica, que me filio, para pensar o objeto de estudo desta
tese, busca pensar os direitos humanos como produtos culturais, como conquistas
históricas, os quais advêm das lutas sociais e a das reivindicações dos sujeitos de
direito45.
Partindo da análise da crítica ao “universalismo”, temos a ideia de que os
direitos humanos não podem ser compreendidos sem conceber o contexto cultural em
que estão inseridos.
É infelizmente evidente que a forma ocidental de lutar pela dignidade
humana, ou seja, pelos direitos humanos, nada diz sobre as formas imanentes
e concretas de existência dos seres humanos, que aparentemente são
proporcionadas pela arte de magia dos direitos que os textos internacionais e
nacionais proclamam. O prestígio atinge o seu auge quando se afirma que os
direitos humanos são as diretrizes universalmente aplicáveis a toda a
humanidade. Ou, por outras palavras, encontramos normas, regras e
declarações que parecem funcionar por si próprias sem necessidade de ter em

44
De acordo com Wolkmen (2017), não existe um direito crítico ou um direito dogmático, o que existe é
um Direito interpretado sob um ponto de vista dogmático ou crítico.
45
Tomo como base algumas premissas inspiradas nos estudos do autor espanhol Joaquin Herrera Flores
(2009), que são: a contraposição à concepção universalista de direitos humanos, a contrariedade a razões
transcendentais para explicação dos mesmos, a ideia de que estes estancam-se e realizam-se pela sua
positivação, e a descontextualização ou ahistoricidade.
126

consideração os contextos de onde necessariamente surgem e nos quais


devem ser aplicadas. (FLORES, 2009, p. 208)

Herrera Flores parte de uma crítica a essa concepção abstrata de direitos, na qual
o ser humano e seu contexto social não são levados em conta. Este autor, portanto,
defende a necessidade de que os sujeitos, a quem esses direitos positivados são
destinados, tenham conexão com a realidade em que estão inseridos. Além disso, essa
compreensão de que os direitos humanos estão postos e já estancados nas leis, é uma
especial preocupação de quando se critica a compreensão “positivista” de direitos, pois,
uma vez positivado, não há mais o que se avançar. Como afirmou Seu Wanderley, “a
aprovação do Estatuto é só o começo”.
Sem contextualizar, sem trazer a história dos processos de afirmação de direitos,
estes podem ser vislumbrados como “dádivas”, como uma simples concessão das
classes políticas, ou enquanto “um presente de Deus”, expressão que ouvi ser afirmada
diversas vezes pelos interlocutores da “ANEC”. Todavia, esta ideia de “um presente de
Deus”, anunciada pelos interlocutores aqui selecionados, é em relação à proposta do
projeto de lei, isto é, em face do fato da associação poder intermediar a submissão do
“Estatuto” no Senado. Ou seja, é uma providência divina poder representar “toda uma
nação cigana” na luta pela aprovação do primeiro “Estatuto do Cigano” do Brasil e do
mundo.
Como já foi dito no tópico “2.1.2”, associar a ideia do “Estatuto” a “elementos
divinos” faz parte da própria narrativa desses sujeitos ao buscar o reconhecimento do
grupo enquanto um “povo escolhido”. Por outro lado, mesmo reivindicando esta forma
narrativa, percebo que estes interlocutores não ignoram a necessidade da luta coletiva e
de ações concretas para transformar este “presente de Deus” em realidade.
Nesse sentido, entendo, como concluiu Manuel E. Gándara Carballido, que a
validação final de qualquer teoria crítica, está nas mãos dos protagonistas das lutas. Nas
palavras deste autor, “eles são chamados a fazer a verdadeira reinvenção de direitos, no
âmbito de sua busca por condições de vida decentes” (2015, p. 35). O papel dos
estudiosos, adeptos das teorias críticas, como é meu caso, “é lançar algumas
provocações para incentivar essas lutas. O que será, apenas as lutas dirão. Mas a
incorporação do pensamento crítico pode animar e aprimorar esses processos” (2015, p.
35).
A luta dos ciganos por direitos não é exclusiva da “ANEC”, ou das lideranças
que entram e saem de cena nos espaços do Congresso Nacional ou da burocracia estatal.
E muito menos estão restritas aos ambientes institucionais. Todavia, é inegável a
127

representatividade dos integrantes da “ANEC”, pois, a realidade desses sujeitos


consegue traduzir o porquê de se incluir um “Estatuto dos Ciganos” no ordenamento
jurídico brasileiro.

2.1.5 - Os direitos humanos como categoria nativa

A discussão acerca dos direitos humanos possibilita acionar diversos


significados, pois, há um campo de disputa em torno da sua natureza, do seu conceito,
de quem são seus sujeitos, quais bens devem ser tutelados e, finalmente, qual o papel do
Estado em vista da busca pela sua efetivação.
O processo legislativo do “Estatuto do Cigano” indica que o Estado deve exercer
um papel ativo em face da realidade da minoria étnica objeto do projeto de lei.
Associando à perspectiva das “gerações de direitos”, a ideia do PLS nº 248/2015 estaria
ligada às segundas e terceiras dimensões, pois versam sobre direitos sociais, culturais e
acerca da autodeterminação. Todavia, por refletir uma ótica evolucionista46, esta
perspectiva é incapaz de traduzir e pensar a “questão cigana” no Brasil47.
No subtópico anterior, busquei interpretar como os interlocutores, selecionados
para descrever a tramitação do PLS nº 248/2015, vislumbram o papel do Estado em face
das suas demandas. Ativam memórias de sofrimento48, falam em episódios de
perseguições e violências do passado, que permanecem no presente, assim como
manifestam a frustração de se sentirem “invisíveis”; interpretado como um recurso
estratégico mobilizado para que estes episódios e elementos deixem de acontecer. Ou
seja, defendem que seus “direitos” estão “violados” e, por isso, demandam “ações”
concretas, a serem adotadas pelas “autoridades”.

46
Destaco, neste sentido, o caráter segregador que sugere a superação de etapas, insuflando uma falsa
ordem, progresso e evolução dos Direitos Humanos. Douzinas refere-se a esta divisão como uma
proliferação aparentemente incontível com a realidade. Segundo este autor, os Direitos Humanos
diversificaram-se de direitos civis e políticos, ou “negativos”, da “primeira geração”, associados ao
liberalismo, para direitos econômicos, sociais e culturais, ou “positivos”, da “segunda geração”,
associados à tradição socialista, e, finalmente, para direitos de grupos e de soberania nacional da “terceira
geração”, associados ao processo de descolonização. A primeira geração, ou direitos “azuis”, é
simbolizada pela liberdade individual; a segunda, ou direitos “vermelhos”, por reivindicações de
igualdade de garantias a um padrão de vida decente, ao passo que a terceira, ou direitos “verdes”, pelo
direito à autodeterminação e, tardiamente, pela proteção ao meio ambiente (DOUZINAS, 2009, p. 127).
47
Pensar os direitos humanos como etapas traduz a interpretação que alguns autores, como Bobbio,
atribuíram ao processo de reconhecimento de direitos humanos, levando em consideração, teoricamente, a
experiência de alguns países europeus e de pessoas de determinadas, para criar um preceito generalizante
sobre um fenômeno que não alcançou simultaneamente todos os seres humanos, sobretudo, os “povos
ciganos”.
48
Aryadne Bittencourt Waldely, que desenvolveu uma pesquisa de inspiração etnográfica sobre os
pedidos de refúgio no Brasil, concluiu que “ainda que as dinâmicas do processo de elegibilidade ativem a
memória do sofrimento, muitos refugiados mantêm suas estratégias para não torná-lo presente, pelo
próprio êxodo” (2016, p. 127)
128

Por um lado, ao longo da pesquisa de campo, notei que os direitos humanos são
mobilizados no sentido de “violação de direitos”, ou, sintetizando, nas palavras de Seu
Wanderley, “direitos de ter direitos, simplesmente”. Aqui, o uso da palavra direitos
humanos está associada à ideia de acesso à terra, moradia adequada, educação, trabalho,
saúde, segurança, igualdade racial etc. Esta forma de mobilização se aproxima das
categorias analíticas, e, consequentemente, minhas, enquanto pesquisador, pois, também
penso os “direitos humanos” como um instrumento que possibilita acessar uma vida,
concretamente falando, mais digna.
Por outro lado, percebi, entre os interlocutores, que há uma categorização,
específica, acerca dos direitos humanos, que difere das minhas. Noto que os direitos
humanos podem ser vistos também como uma “categoria nativa”, diante da forma que é
acionado. É uma expressão mobilizada no sentido de uma “entidade”, uma “estrutura”
ou um “órgão” que está disponível para ampará-los em caso de “violência” e também
como uma ponte para acessar “direitos” e políticas públicas49.
Ressalto que interpretar os direitos humanos como uma categoria nativa
decorreu de uma “sacada” etnográfica que tive, que só foi possível devido ao tempo que
tive em campo e por conta da minha formação teórica. Segundo Urpi Montoya Uriarte,
“a nossa formação nos familiariza com as sacadas que tiveram todas as outras gerações
de antropólogos prévias à nossa, com o qual aprendemos a ver” (2012, p. 7, grifo do
autor). Esta autora acrescenta que
a nossa formação também consiste em, mediante a leitura de textos
etnográficos múltiplos, aprender a ver pessoas, não indivíduos, pessoas com
nomes, com posições, detentores de palavras, de saber. Somos igualmente
ensinados a diferenciar a coisa do significado, o feito do dito, o emic
(categorias do pesquisador) do etic (categorias do nativo). (URIARTE, 2012,
p. 7)

Destaco, abaixo, um trecho da segunda parte da resposta de Seu Wanderley à


pergunta que fiz, no diálogo gravado, sobre qual seria “o papel de uma liderança na luta
dos ciganos”. Na resposta, o interlocutor, além de ter elencando os atributos que
entendem ser indispensáveis a uma liderança50, cigana ou não, fez questão de
exemplificar uma situação de violência policial, envolvendo um grupo de ciganos, em
que foi convocado a atuar enquanto liderança. Interpreto o fato de Seu Wanderley trazer

49
Estas pontes seriam, por exemplo, as comissões de Direitos Humanos da Câmara ou do Senado,
responsáveis por todas as audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, que discutiram
diretamente os “direitos ciganos”. Assim como, as secretarias de estado (municipais, mas, principalmente
estaduais/distritais e federais), geralmente, relacionadas com pastas que trabalham com políticas de
promoção da igualdade racial ou dos direitos humanos.
50
Destaco, aqui, quatro pontos que Seu Wanderley indicou como fundamentais para qualquer liderança:
ser movido pela “estrutura de amor”; se importar com o povo; não ficar longe do povo; e não deixar o
povo na batalha, devendo estar ao seu lado.
129

à tona um episódio de violência, envolvendo outra comunidade cigana, em que atuou à


distância para resolver a situação, como uma forma de informar sua condição de
liderança, que atua nacionalmente, e não só para sua família ou associados da “ANEC”,
e também sua condição de “homem de honra” e “leal” ao povo cigano.
Trata-se de um episódio que deixou mais evidente que os direitos humanos pode
também ser interpretado como uma “categoria nativa”, pois, é acionado no sentido de
“órgão”, “entidade” que dará suporte a um determinado grupo diante de uma ameaça.
Vejamos:
Seu Wanderley: ‘- Olha, por favor, fulano, aqui pertinho de mim, uma mortandade de
ciganos, a polícia matando tudo, estou desesperado.’
O que esse cigano fez? Desligou e ligou pra quem? Para Seu Wanderley.
- Wanderley, meu primo, me ajuda, está acontecendo agora uma mortandade de ciganos,
aqui, na cidade, Deus tenha misericórdia. E, por favor, você está aí em Brasília, faça
alguma coisa!
- Pode deixa, primo.
O que é que eu faço? Ligo para o Secretário Juvenal Araújo, secretário de Direitos
Humanos da Secretaria da Presidência da República, secretário especial, era um dia
de domingo. Eu liguei, não atendeu. Depois ele me ligou de volta.
- Doutor, queria primeiramente pedir desculpa ao senhor por ligar justamente num dia
desse, mas é um motivo justo.
- Não tinha que ser amanhã, tinha que ser agora. Por isso o senhor me ligou.
Falei, falei, contei toda a história. Imediatamente, doutor, esse homem ficou usado por
Deus, interferindo imediatamente na cidade, com a Segurança Pública, entraram em
contato com o Estado, e barraram os policiais. Chegaram 2 mil assinaturas do povo
cigano, na SEPPIR, pode se informar lá com o secretário Juvenal Araújo, chegou 2 mil
assinaturas, eu tava nos grupos de ciganos, e contei tudo que estava acontecendo.
- Liguem no telefone do secretário, olha, por favor, liguem, liguem, liguem para os
direitos humanos, o DISK 100!
[...].
- Peço apoio de vocês, povo cigano, não vamos nos acovardar, vamos fazer valer nossa
voz!
2 mil assinaturas! Os direitos humanos barrou a matança dos ciganos. No áudio, um
policial falou, um rapaz que mora lá falou, que eu cheguei a ouvir
- Ué, os ciganos não é tão valente? Já está procurando os Direitos Humanos?
Ou seja, os Direitos Humanos da presidência da república atuou em cima da hora,
senão, já estariam indo atrás dos ciganos na cidade, a polícia do cerrado, da caatinga, em
combio indo para o lado da cidade e região toda atrás de cigano. Foi quando os Direitos
Humanos da Presidência da República barrou todo mundo em nome de Jesus, amém?
(meus destaques)

Como é possível perceber, Seu Wanderley narrou uma situação de “violência


policial” para responder meu questionamento sobre o que ele entendia ser o “papel de
uma liderança”. Não questionei diretamente sobre os “direitos humanos”, embora
tivesse surgido na resposta, o que me fez despertar um estranhamento. Não só no
diálogo gravado, como também em outros momentos que passei no “Acampamento
Nova Canãa”, quando se falou que “o pessoal dos direitos humanos esteve aqui”, “a
gente entrou em contato com os direitos humanos”. Da mesma forma que por outras
pessoas, como, por exemplo, na audiência pública do Senado sobre o “Estatuto”,
quando Luiz Bruno, representação cigana do estado do Maranhão, após narrar também
130

uma situação de violência policial, disse: “eu queria pedir uma providência à igualdade
racial, aos direitos humanos e ao senador Paulo Paim” (meu destaque).
O fazer etnográfico possibilitou-me reconhecer, aqui, os direitos humanos como
categoria nativa. De acordo com Mariza Peirano, a etnografia não é apenas uma
metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida [...] No fazer
etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências
empíricas e nos nossos dados” (2012, p. 3). É importante dizer que a teoria e a prática
são inseparáveis, pois o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria.
Constatar os direitos humanos enquanto uma “categoria nativa” pode até parecer
óbvio, pois, esta expressão é percebida em outros espaços, e, anunciada por outras
pessoas que não estão relacionadas à “questão cigana”. Acontece que, mesmo
reconhecendo como “categoria nativa”, o sentido empregado não se dá de forma isolada
do mundo, ocorre justamente na troca, principalmente no contato com os espaços
“não-ciganos”.
Como disse no início deste subtópico, na sociedade, em geral, a palavra “direitos
humanos” está relacionada a diferentes significados. Contudo, o que mais se aproxima
da categoria dos nativos é a ideia de apoio aos mais excluídos, aquilo que irá fazer
“valer os direitos”, acessar as políticas públicas. A apropriação de uma linguagem
própria da cosmologia não-cigana, como acontece com os direitos humanos, pelos
interlocutores ou por outras lideranças ciganas, é inevitável, pois não há mundos
paralelos, estamos interconectados. No caso de algumas lideranças, é possível dizer que
essa mobilização se deu, justamente, diante da aproximação com órgãos do Estado,
como é o caso do processo legislativo do “Estatuto do Cigano”.
131

Imagem 10 – Visita do Ministério dos Direitos Humanos ao “Acampamento


Nova Canãa em junho de 201651

Fonte: acervo do Governo Federal (BRASIL, 2016a).

Não há como se falar em “direitos humanos” sem luta, sem resistência,


individual, mas, sobretudo, coletiva. É possível afirmar, ainda, que não haveria proposta
de “Estatuto do Cigano”, que representa uma pauta de alcance nacional na luta por
direitos, sem a atuação de diversas pessoas que, inclusive, antecederam a “ANEC” ou
Seu Wanderley na interlocução com o Estado brasileiro.
Os “direitos ciganos” são construídos, não são um dado, não está num cofre
trancado à espera de quem o abra. Trata-se de um processo. Um processo que demanda
lutas, que não são espontâneas, que não ocorrem por acaso. Exigem organização, que
podem se dar de inúmeras formas, em coletivos, de maneira comunitária, em
movimentos sociais, em associações etc. A pesquisa de campo deixou-me claro
justamente isso, o quanto é importante a atuação das organizações e dos interlocutores,
que são chamados, aqui, de lideranças, o que não significa que as lutas sejam
dependentes destas pessoas ou vinculadas à constituição de um “CNPJ”.
Portanto, os “direitos humanos”, que viabilizam o discurso de proteção aos
povos ciganos, são processos de luta e resistência (HERRERA FLORES, 2009). O
acesso a uma forma de vida mais digna, sem violência, sem discriminação, sem ser

51
No centro da imagem, entre Seu Jefferson (esquerda) e Seu Wanderley (direita), está o secretário da
SEPPIR, Juvenal Araújo, que integrava a equipe dos MDH do governo Temer. Com a mudança na gestão
do governo federal, ele passou a ser secretário do Distrito Federal, no governo de Ibanês (MDB).
132

perseguido, representa a busca pela construção de direitos, que é disparado pela própria
luta, institucional ou não. O que faz a resistência pela tramitação do “Estatuto” é a
construção de processos de luta. As dores das violências sofridas ou causadas pela
frustração de se sentirem invisíveis não se afastam da memória, mas os sujeitos têm a
potência de tensionar a ontologia sobre as formas de vida52.
No sentido institucional, é necessário dizer que a luta dos povos ciganos por
direitos não iniciou com a tramitação do PLS n° 248/2015. No caso do Congresso
Nacional, identifiquei, desde 2011, a presença de “associações”, lideranças ciganas e a
realização de audiências públicas, em que se pauta os “direitos” ou a “cidadania
cigana”, o que foi demonstrado no tópico “2.2”. Esse mapeamento foi fundamental para
compreender a tramitação do “Estatuto do Cigano” e a sua trajetória inicial, pois revela
os primeiros espaços de negociação pela produção dos direitos dos povos ciganos que
ocorreram na esfera do Poder Legislativo.

52
Voltarei a aprofundar a análise sobre os “direitos humanos” no subtópico “2.2.3”.
133

2.2 - “Nós somos desconhecidos pela própria população”

Formalmente, a tramitação do “Estatuto do Cigano” iniciou-se em 29 de abril de


2015, quando foi proposto o PLS nº 248/2015 pelo Senador Paulo Paim, no Congresso
Nacional. Todavia, a pesquisa de campo revelou-me que há uma trajetória anterior a
este marco temporal, pois, antes de 2015, ocorreu outros esforços, no âmbito do Poder
Legislativo, em que se discutiu, especificamente, as possibilidades de reconhecimento
dos “direitos ciganos” no ordenamento jurídico brasileiro. Por isto, foi fundamental
rememorar quais foram as articulações realizadas antes de 2015 que podem ter
influenciado a proposição do “Estatuto do Cigano”.
Por isso, preciso fazer algumas ressalvas sobre quais são as articulações prévias
que me referi no parágrafo anterior. É importante dizer que o PLS 248/2015 não
corresponde à primeira proposição legislativa com a finalidade de reconhecer e prever
direitos para os povos ciganos. Por uma questão metodológica, busquei apenas tratar
dos esforços no âmbito legislativo e que foram realizados na esfera federal, ou seja, no
Congresso Nacional. Isso significa que não abordei nesta tese, por exemplo, os
processos que levaram à aprovação das leis municipais ou estaduais que instituíram
datas comemorativas em memória e em alusão aos “ciganos”, pois, embora sejam
importantes marcos da luta por direitos, possuem alcance local ou regional.

2.2.1 - O processo constituinte de 1987

Em 29 de maio de 2018, manhã em que foi realizada a audiência pública sobre o


“Estatuto do Cigano” no Senado Federal, encontrei-me com Maria Jane para irmos
juntos a este evento. No dia anterior, Jane, como costumo chamá-la, convidou-me para
que eu pegasse uma carona com ela e aproveitasse para tomar café no hotel em que se
encontrava hospedada. Cheguei às 6:30, a van que ficou de buscá-la estava marcada
para chegar às 07:30. Dirigi-me ao salão de refeições e de longe pude avistar minha
anfitriã, pois o brilho e colorido de suas vestimentas se destacavam naquele espaço de
cores mórbidas.
Enquanto tomávamos café, conversamos sobre diversos assuntos, pois, havia 4
meses que não nos encontrávamos, desde que me mudei para o Rio de Janeiro, em
março de 2018, por conta do início das aulas do doutorado. Um dos assuntos
chamou-me a atenção: a tentativa de incluir os “ciganos” na Constituição Federal de
1988.
134

Estávamos dialogando sobre a proposição do PLS nº 248/2015, quando Jane


comentou: “não é a primeira vez que o povo cigano tenta ser reconhecido, o tio do
Doutor Luciano (Antônio Mariz) bem que tentou incluir os ciganos na Constituição,
mas não conseguiu”. Como foi a primeira vez que ouvi falar sobre este assunto, anotei a
informação no meu caderno de campo, para poder, assim que pudesse, investigar essa
história nos “anais” da Assembleia Nacional Constituinte. E de fato encontrei um
registro desse episódio. Vejamos abaixo:

Imagem 11 - Proposta de emenda constitucional apresentada pelo


parlamentar constituinte Antonio Mariz (PMDB).

Fonte: Anais da Assembleia Nacional Constituinte (1987, p. 1568).

A “Emenda 1P14984-3”, apresentada pelo parlamentar paraibano Antônio Mariz


(PMDB/PB)53, faz uma referência indireta aos “ciganos”, relacionando-os ao

53
O pesquisador Franz Moonen, por meio do artigo “Ciganos Calon no Município de Sousa/PB (1993 -
2011)”, refletiu como se deu a aproximação do político paraibano Antônio Mariz com a “causa cigana”
(2013, p. 23).
135

“nomadismo”. Segundo a justificativa da emenda, os “ciganos” são “um dos grupos


sociais mais perseguidos e discriminados na sociedade brasileira”. O “nomadismo” é
descrito como um “traço fundamental dos ciganos”, pois estes “circulam por todo
território nacional”. Ou seja, a “condição cigana” e o “nomadismo” são tratados como
sinônimos54.
Como podemos observar, ao analisar a Constituição Federal de 1988, a proposta
do deputado Antônio Mariz não foi incorporada ao texto constitucional originário,
promulgado em 5 de outubro de 1988, pois não há nenhuma referência à palavra
“nomadismo”, como sugerido pelo parlamentar constituinte. Ou seja, significa que a
“Emenda 1P14984-3” não foi aprovada pelo plenário da Assembleia Nacional
Constituinte. Da mesma forma que os processos constituintes derivados, que ocorreram
posteriormente, por meio de projetos de emendas, também não incluíram,
expressamente, a “questão cigana” entre os dispositivos constitucionais.
Em 18 de setembro de 1995, o senador Eduardo Suplicy (PT/SP) fez um
pronunciamento no plenário do Senado Federal em que homenageou o Senador Antônio
Mariz, por conta do seu papel durante o impeachment do presidente Collor. Na ocasião,
fez referência indireta à “Emenda 1P14984-3”, ao afirmar que Antônio Mariz “em seu
Estado (Paraíba), deu especial atenção a um grupo de trabalhadores ciganos, chegando a
redigir uma emenda à Constituição em que propunha política nacional de proteção aos
trabalhadores nômades” (BRASIL, 1995).
Friso que os detalhes do processo de proposição da “Emenda 1P14984-3” (como
ela foi proposta, como a ideia chegou ao deputado Antônio Mariz, o porquê de não ter
sido aprovado) não são objetos do meu estudo, na presente tese. Inicialmente, o que
importa, aqui, é verificar uma pista dada pela liderança Maria Jane, isto é, identificar os
primeiros esforços, no ordenamento jurídico brasileiro, para reconhecer os “direitos
ciganos”. Isto é, embora a ideia do “Estatuto do Cigano” possa ser considerada inédita,
pois propõe a criação de uma lei ordinária específica, não é a primeira articulação
realizada no âmbito do Poder Legislativo federal para reconhecer, expressamente, os
“direitos ciganos”.
A ocorrência da referida “emenda”, por si só, nos permite dialogar com algumas
críticas recorrentes entre estudiosos constitucionalistas que pensam a América Latina
54
Em relação às populações ciganas que passaram a residir no município de Sousa, Franz Moonen indica
que “o processo de sedentarização iniciou em 1982” (2013, p. 4). Sobre estes ciganos Calons,
relacionados ao território de Sousa, indica-se, também, para aprofundamento, as pesquisas etnográficas:
“Memória e etnicidade entre os ciganos Calon em Souza-PB” (2014), de Maria Patrícia Lopes Goldfarb;
“Os Calon do município Sousa-PB: dinâmicas ciganas e transformações culturais” (2012), de Robson
Araújo de Siqueira; “‘Olhe nosso centro! Aqui somos todos ciganos’: construções identitárias e dinâmicas
políticas entre os ciganos de Sousa-PB” (2015), de Jamilly Rodrigues da Cunha.
136

acerca dos limites do processo constituinte brasileiro e sobre a suposta natureza


multicultural da nossa carta política. Estes apontamentos podem nos ajudar a entender,
em certa medida, a relação entre a natureza da Constituição Federal e a falta de menção
à “questão cigana”. Para isso, apresento, aqui, algumas provocações reflexivas: quem
pôde participar da Assembleia Nacional Constituinte? Como este processo foi
convocado? Havia algum parlamentar constituinte cigano?
A justificativa da emenda, por si só, já nos permite responder parcialmente às
provocações que fiz no parágrafo acima. O texto de justificativa da emenda indicou que
os “ciganos” raramente exerciam o “direito ao voto”, pois eram-lhe negados por não ter
uma residência fixa, e, consequentemente, careciam também de “representação política,
e daí deflui o silêncio sobre o estado de injustiça a que estão hoje condenados. Esta
emenda quebra o silêncio e quer ser o primeiro passo contra essa injustiça” (meus
destaques).
Significa que o parlamentar Antônio Mariz, durante o processo constituinte,
tentou representar os interesses dos “ciganos”, de forma indireta, da mesma forma que
hoje tenta o Senador Paulo Paim, ao propor o PLS n° 248/2015. Afirmo de maneira
“indireta”, porque ambos não são “ciganos”, mas sim simpatizantes ou amigos, como os
interlocutores costumam chamar aquelas pessoas que que contribuem para a causa sem
serem “ciganos”. Além disso, destaco que desde a promulgação da Constituição Federal
de 1988 não há registros de representações ciganas eleitas no Congresso Nacional, nem
nas Assembleias Legislativas ou Distrital.
É inegável que a promulgação da Constituição Federal de 1988, também
conhecida como “Constituição Cidadã”, seja um divisor de águas na história política do
Brasil, pois consagrou o processo de redemocratização do país, que viveu uma ditadura
civil-militar entre 1964 e 1985, e recepcionou uma robusta carta de direitos civis,
políticos, sociais, culturais e ambientais. Nas palavras de Antônio Wolkmer, a carta
política promulgada em 5 de outubro de 1988, “não obstante manter ainda certo perfil
republicano liberal, analítico e monocultural, foi a mais avançada, relativamente a
qualquer outro momento da história brasileira” (2010, p. 151).
Levando em consideração os processos políticos dos países da América Latina,
pode-se afirmar que o constitucionalismo do final do século 20 foi resultado e
influenciado por dois fatos históricos significativos da época: “a crise política e de
direitos humanos decorrente das ditaduras e governos autoritários, e a crise econômica
relacionada a com a compilação de programas de ajuste fiscal, característica da década
de 1990” (GARGARELLA, 2014, p. 269). Em linhas gerais, as novas Constituições,
137

como a brasileira, trouxeram os compromissos sociais dos documentos anteriores e, ao


mesmo tempo, mantiveram a tradicional estrutura do poder verticalizado. Ou seja,
Gargarella defende que os países latino-americanos têm governos bastante diferentes
convivendo com Constituições cada vez mais generosas em matéria de direito, o que o
permite afirmar que a maquinaria do poder pode recepcionar, sem maiores problemas,
as diferentes mudanças que ocorrem na sessão dos direitos.
O que há em comum entre a crítica de Gargarella, ao adotar a expressão “sala de
máquinas” e Wolkmer, ao adjetivar o perfil da Constituição de 1988 de “monocultural”?
Por exemplo, a Constituição Federal de 1988, por meio do parágrafo único do
artigo 215, reconhece que o Estado deve proteger “as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional”. Por outro lado, segundo Catherine Wash,
[...] o reconhecimento e respeito à diversidade cultural convertem-se numa
nova estratégia de dominação, a que aponta à criação de sociedades mais
eqüitativas e igualitárias, senão ao controle do conflito étnico e a conservação
da estabilidade social com o fim de promover os imperativos econômicos do
modelo (neo-liberalizado) de acumulação capitalista, agora fazendo “incluir”
os grupos historicamente excluídos a seu interior. Sem dúvida, a onda de
reformas educativas e constitucionais dos anos 90 – as que reconhecem o
caráter multiétnico e plurilingüístico dos países e introduzem políticas
específicas para os povos indígenas e afrodescendentes-, são parte desta
lógica multiculturalista e funcional; simplesmente emendam a diferença ao
sistema e modelo existentes. (2009, p. 5)

A novidade da Constituição Federal de 1988 é a tutela formal da “diversidade


cultural”, o que nunca ocorreu nas cartas políticas anteriores. Por outro lado, na prática,
este reconhecimento não garante aos grupos étnico-raciais historicamente
subalternizados a condição de sujeitos de direitos e muito menos a prioridade da pauta
da “diversidade cultural” nas políticas estatais nos âmbitos locais, regionais e federal.
Quando Wolkmer afirma que a Constituição de 1988 tem um perfil “monocultural” é
pelo fato deste instrumento normativo não garantir mecanismos que promovam a
autonomia e a participação direta das minorias étnico-raciais nas instâncias de tomadas
de decisões que definem as prioridades do Estado, havendo a preponderância da
condição de objeto das políticas públicas. Ou seja, o texto constitucional brasileiro não
rompeu com a matriz colonial do poder – a qual Quijano tem chamado de
“colonialidade do poder”55.

55
Segundo Wash, colonialidade do poder “refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação
social baseado na categoria de “raça” como critério fundamental para a distribuição, dominação e
exploração da população mundial, no estilo, lugar e rols da estrutura capitalista-global do trabalho,
categoria que – por sua vez – altera todas as relações de dominação, incluindo as de classe, gênero,
sexualidade, etc. Este sistema de classificação fixou-se na formação de uma hierarquia e divisão de
identidade racializada, com o branco (europeu ou europeizado masculino) por cima [...]” (2009, p. 9).
138

Além disso, é necessário destacar que a gestão da tutela da “diversidade


cultural”, assim como das “políticas de promoção da igualdade racial” não são
uniformes ou estáveis, uma vez que variam conforme os governos que são eleitos
periodicamente, conforme advertiu Gargarella.
Para entender e ilustrar melhor a afirmação do parágrafo anterior, podemos citar
o fato do governo federal, a partir do ano de 2019, adotar as expressões “Brasil acima de
todos” ou “somos uma só nação” como emblemas oficiais do país, reforçando a ideia de
um Estado “monocultural”. Esta concepção ficou ainda mais evidente durante uma
reunião ministerial que foi realizada em 22 de abril de 2020, quando o então chefe da
pasta da educação fez a seguinte declaração: “odeio o termo povos indígenas, odeio
esse termo. Odeio. O povo cigano. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer,
sai de ré…” (CNN, 2020, meus destaques). Friso que nesta ocasião nenhum dos
ministros presentes, assim como o próprio chefe do poder executivo refutaram ou
manifestaram qualquer tipo de discordância com a referida declaração. Da mesma forma
que integrantes do governo em cargos de direção que se identifica como “indígena” ou
“cigano” também não se manifestaram publicamente contrários à declaração do ministro
da educação.
Destaco uma outra situação, desta vez envolvendo um evento político para
discutir os direitos ciganos e que contou com a presença de representantes do governo
federal e das assessorias dos parlamentares envolvidos na tramitação do PLS 28/2015.
Trata-se do “Encontro dos Povos Ciganos: Resistência e Direitos de um Povo Milenar”,
realizado em 20 de agosto de 2020, que reservou um momento para Seu Wanderley
abordar a tramitação do “Estatuto”. O fato desta liderança ter adotado a expressão
“somos uma nação dentro da nação” para se referir a condição dos “ciganos”
incomodou uma das autoridades presentes, que o repreendeu, de forma pública,
afirmando que no Brasil “só existe uma nação”. Por isso interpreto que a defesa da ideia
do Brasil ser um país “monocultural” não surgiu em 2019, com o início do governo
Bolsonaro, mas que se fortaleceu com ele uma vez sendo institucionalizado.
Como afirmou Gargarella, os processos constituintes tenderam a deixar intocada
a “sala de máquinas da Constituição, isto é, a área da Constituição em que se define
como vai ser o processo de tomada de decisões democráticas. É como se organização do
poder continuasse diretamente vinculado aos grupos mais próximos com o poder
dominante” (2014, p. 333-334, destaque do autor). Em outras palavras, quando
Gargarella afirma que as novas constituições não alteraram a “casa da máquinas”, este
autor se refere aos dispositivos da carta política que tratam da forma como se dão as
139

composições dos poderes e, consequentemente, as tomadas de decisões, principalmente,


quais são as prioridades do Estado em relação às políticas públicas. No caso do Brasil,
abriu-se poucos espaços para os grupos que foram e são historicamente excluídos
pudessem se inserir nos processos políticos e ocupar espaços de poder.
A própria forma como a Assembleia Nacional Constituinte foi convocada
privilegiou as classes dominantes que sempre ocuparam e hegemonizaram a cena
política brasileira. Segundo Florestan Fernandes, que participou da elaboração da
Constituição Federal de 1988, uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva teria a
virtude de acelerar “os ritmos da transformação, encolhendo as distâncias existentes
entre o Estado e a nação. Todavia, esse caminho foi cortado tortuosamente pelos donos
do poder, movidos pela ideia de que segurando as pontas podem controlar o processo
histórico” (2014, p. 22, destaques do autor).
Isto é, não houve uma convocatória exclusiva para participar do processo
constituinte originário, prevendo critérios que possibilite trazer os mais diversos
segmentos sociais, raciais e étnicos do Brasil para participar da elaboração da carta
política, que significava a refundação do Estado e do nosso pacto civilizatório. Pelo
contrário, o processo constituinte trouxe parlamentares eleitos em 1984, com as regras
eleitorais estabelecidas pelo regime civil-militar. Inviabilizou-se uma composição de
fato representativa da sociedade brasileira56.
Nas palavras de Florestan Fernandes, uma das anomalias que interferiu
negativamente na produção da Assembleia Nacional Constituinte foi “sua assimilação
ao padrão de funcionamento da Câmara dos Deputados, do Senado e do Congresso
Nacional”. Este autor reforça que aqueles que lutaram por uma ANC exclusiva,
autônoma e soberana tinham razão. “Esse era o único caminho pelo qual se poderia
selecionar constituintes, não deputados e senadores” (2014, p. 214).
Albert Nogueira Fernandez sustenta que o Poder Constituinte, pela via
reformista, é ingênuo e inviável, pois só mudam as elites dominantes. Para este autor,
um Poder Constituinte emancipatório não se trata apenas de “uma convocação de uma
assembleia, mas um processo que se inicia com uma reforma (cultural) no sentido
weberiano do término, feita desde a autogestão e fora da esfera do Estado, para somente
depois, poder conformar uma nova forma de organização política” (2012, p. 176-177,
destaque do autor).

56
Em 1987, ano em que se iniciou a Assembleia Nacional Constituinte, “os negros (pretos e pardos)
representavam aproximadamente 46% do contingente populacional pátrio, entretanto foram eleitos apenas
11 representantes negros de um total de 559 membros, ou seja, 2% dos constituintes” (CNTS, 2018).
140

Quanto ao reconhecimento dos direitos culturais, a Constituição brasileira de


1988 é considerada um marco na América Latina. Segundo Raquel Farjado (2011), o
Brasil faz parte da primeira geração de países, no continente americano, a reconhecer a
diversidade cultural57. Todavia, este reconhecimento não é acompanhado da garantia da
autonomia aos diferentes povos e nações que compõem a sociedade brasileira. De
acordo com Raquel Farjado (2011, p. 8), os povos indígenas são reconhecidos apenas
como “culturas diversas”, no caso do Brasil, e não como nações ou nacionalidades
originais com autodeterminação. Por exemplo, não se prevê reserva de vagas, a partir de
critérios étnico-raciais, para a composição do Congresso Nacional ou dos Tribunais
superiores58.
De todo jeito, apesar dos avanços consagrados na Constituição Federal de 1988,
o modelo de democracia representativa e liberal, em vigor no Brasil, tem sido
insuficiente para garantir a participação direta dos grupos sociais e étnicos
historicamente subalternizados, como é o caso dos povos ciganos, na política
institucional. Isto é, a promulgação da Constituição de 1988 não suprimiu a grande
barreira que há para se eleger, por exemplo, Deputado Federal ou Senador da
República59; reconhece direitos culturais, todavia não dá autonomia às minorias étnicas,
que permanecem tuteladas pelo Estado, sobretudo no acesso à terra, e que cujas
políticas variam conforme os governos.
Por outro lado, em relação às pautas identitárias, é importante ressaltar que as
pressões dos movimentos sociais e das organizações populares contribuíram para que
ocorressem alguns avanços nos espaços da burocracia estatal, principalmente a partir do
início do século 21. “A resposta mais efetiva por parte da gestão do governo Lula às
demandas do Movimento Negro e da organização de mulheres negras foi a criação da
Secretária Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) em 21 de março de 2003”

57
Raquel Farjado identifica a existência de três ciclos, de natureza pluralista, nos processos de reformas
constitucionais, a partir da década de 1980: o ciclo do constitucionalismo multicultural (1982-1988); o
ciclo do constitucionalismo pluricultural (1989-2005) e o ciclo do constitucionalismo plurinacional
(2006-2009). Segundo esta autora, neste ciclo, as constituições introduzem o conceito de diversidade
cultural, o reconhecimento da configuração multicultural e multilíngue da sociedade, o direito - individual
e coletivo - à identidade cultural e alguns direitos indígenas específicos. Entretanto, as constituições deste
ciclo, como a brasileira, não chegam a fazer um reconhecimento explícito do pluralismo jurídico (2011, p.
3).
58
Os integrantes dos Tribunais Superiores do Judiciário (incluindo o Tribunal Constitucional
Plurinacional) são eleitos por sufrágio direto (artigos 182, 183, 188, 188, 194, 197), assim como a
possibilidade da eleição de representantes e parlamentares dos territórios autônomos indígenas por meio
de seus usos e costumes (artigo 11). Da mesma forma, está prevista uma cota mínima de deputados
pertencentes aos povos originários, no sentido de compor a Assembleia Plurinacional (artigo 146)
(BOLIVIA, 2009).
59
“Dentre as 1.626 vagas para deputados distritais, estaduais, federais e senador, apenas 65 foram
preenchidas por candidatos que se autodeclaram pretos nas eleições 2018. Eles são 4% dos eleitos neste
ano, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)” (GELAPE; DANTAS, 2018).
141

(RIBEIRO, 2014, p. 233). Contudo, o pesquisador Siqueira avalia que a criação do


SEPPIR não necessariamente significou avanços na questão cigana.
Através da publicação do Programa Brasil Sem Racismo, da aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial e da criação do SEPPIR, o governo brasileiro
avança no dever de garantir condições iguais de desenvolvimento para negros
e brancos. O mesmo, porém, não se aplica aos Calon, já presente no Brasil
desde a segunda metade do século XVI. É notório que o principal órgão
federal, incumbido de gerar soluções para os problemas que dizem respeito à
diversidade étnica do nosso país, é politicamente limitado diante dessa
diversidade. (SIQUEIRA, 2013, p. 93)

De todo modo, a Secretária Especial de Promoção da Igualdade Racial


(SEPPIR), criada em 2003, trata-se do primeiro órgão brasileiro, com status de
ministério, voltado para o enfrentamento do racismo estrutural. E é neste contexto, em
que o Brasil passou a ser governado por forças políticas de centro-esquerda, até meados
de 2016, período em que foram criados novos conselhos de Estado, com possibilidade
participação de grupos da sociedade civil60. O CNPIR, criado em 2004, e o CNPCT,
criado em 2013, são dois exemplos de conselhos que possibilitam a participação de
“representações ciganas”.
A abertura de canais de diálogo com setores populares, na esfera do Poder
Executivo, repercutiu no Poder Legislativo. Uma prova disso são as audiências
públicas realizadas no Congresso Nacional, nas últimas duas décadas, para se discutir os
mais variados temas, como, por exemplo, os direitos dos povos ciganos. “As
conferências nacionais de políticas públicas impulsionam a atividade legislativa do
Congresso Nacional, fortalecendo, assim, através de uma prática participativa e
deliberativa, a democracia representativa no Brasil” (POGREBINSCHI; SANTOS,
2011, p. 299).
Por isso, buscando entender melhor a trajetória inicial do PLS n° 248/2015, irei
resgatar, no penúltimo subtópico deste capítulo, os primeiros debates, com a presença de
lideranças ciganas, que teriam acontecido no Poder Legislativo, para se discutir direitos
deste povo tradicional. Espaços que antecederam e que podem ter influenciado a
propositura do “Estatuto do Cigano”, que ocorreu em abril de 2015.
Portanto, arrisco afirmar que é nos conselhos de Estado e nas audiências
públicas que as representações ciganas, assim como outros povos tradicionais,
conseguem se inserir, minimamente, nos espaços da política institucional, ainda que
com muitas limitações. Parafraseando o escritor João Cabral de Melo Neto (1986), as

60
“A gestão Lula criou novos conselhos nacionais de políticas públicas e fortaleceu aqueles criados
anteriormente. Além disso, foram realizadas mais de 70 conferências nacionais em suas duas gestões”
(ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014, p. 325).
142

audiências públicas e os conselhos são as partes que lhes cabe neste latifúndio que é a
política brasileira.

2.2.2 - As audiências públicas realizadas no Congresso Nacional

Os espaços políticos que os “povos ciganos”, em geral, dispõem para apresentar


suas demandas estão praticamente restritos aos conselhos de Estado, nas esferas
municipais, distritais, estaduais ou federais, assim como limitados às audiências
públicas que, eventualmente, são convocadas por órgãos públicos ligados à burocracia
estatal. Isso porque há uma grande barreira, que não é necessariamente física, para se
fazerem representar, de forma direta, nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A representação política de pessoas ou organizações “ciganas” no Estado vêm
sendo, portanto, materializada por meio de espaços intermediários, que cumprem um
papel de interlocução, isto é, uma ponte entre as minorias étnicas, por exemplo, e os
poderes públicos. A previsão de conselhos, assim como a realização de audiências
públicas e conferências são importantes instrumentos de participação popular, mas que
também apresentam limites, pois não são todos e todas que podem ter ou têm acesso.
Nos casos dos conselhos, é preciso concorrer para ser eleito e então integrar o
órgão colegiado uma vez que possui “cadeiras” limitadas por segmento. No caso da
participação em audiências públicas, de uma certa forma, é necessário ser conhecido ou
próximo das autoridades que a organizam para então ser convidado. Nem os conselhos,
nem as audiências públicas, em si, são objetos diretos do meu estudo nesta pesquisa de
doutorado. Todavia, levo em consideração os eventos ou ocasiões que me ajudam a
descrever e compreender o processo legislativo do PLS nº 248/2015.
Nesse sentido, ao longo da pesquisa, foi possível identificar os primeiros
espaços, realizados no Congresso Nacional, em que se discutiram os “direitos ciganos”.
Ocasiões que influenciaram o Senador Paulo Paim a propor o “Estatuto do Cigano”.
Como abordei no subtópico “2.1.2”, o próprio parlamentar, autor do PLS 248/2015, se
referiu à realização de audiências para indicar como se aproximou desta pauta.
Além das audiências públicas realizadas para discutir, diretamente, os “direitos
ciganos”, é possível identificar outros eventos, desta natureza, que contaram também
com a presença de lideranças ciganas, para tratar de temáticas relacionadas aos “povos
e comunidades tradicionais”.
Vejamos a tabela abaixo:
143

Tabela 3 – Representações ciganas que estiveram presentes nas


audiências públicas no Congresso Nacional entre 2011 e 2020

Audiências públicas Data de realização

Audiência pública sobre a “cidadania cigana” realizada na 25 de maio de 2011.


Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa
(CDH) do Senado.

Audiência pública sobre o “Direitos dos Povos Ciganos” 12 de dezembro de 2012.


realizada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa (CDH) do Senado.

Audiência pública para discutir a aplicação da Convenção 23 de abril de 2013.


nº 169 da OIT na Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa (CDH) do Senado.

Audiência pública para discutir a aplicação da Convenção 14 de outubro de 2013.


nº 169 da OIT na Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa (CDH) do Senado.

Audiência pública para discutir Projeto de Lei (PL) 23 de abril de 2014.


7447/2010 na Comissão de Direitos Humanos e Minorias
da Câmara dos Deputados.

Audiência pública para discutir políticas públicas para 22 de maio de 2014.


preservação da cultura do povo cigano no Brasil na
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados.

Audiência pública para discutir o Projeto de Lei do Senado 29 de maio de 2018.


nº 248/2015 na Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa (CDH) do Senado.

Audiência pública para discutir as políticas de 17 de junho de 2019.


desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades
tradicionais na Comissão de Integração Nacional,
Desenvolvimento Regional e da Amazônia da Câmara dos
Deputados.

Como se pode perceber, antes do ano de 2015, quando o PLS n° 248/2015


foi submetido ao Congresso Nacional, ocorreram seis audiências públicas, com a
presença de lideranças ciganas. Destes eventos, apenas três versaram, diretamente,
sobre a “questão cigana”, sendo que em duas reuniões públicas o Senador Paulo Paim
esteve presente, na condição de presidente das audiências públicas, enquanto a atividade
da Câmara de Deputados, realizada em maio de 2014, foi presidida pela parlamentar
Erika Kokay61.

61
Frisa-se que esta parlamentar é autora do “PL nº 7.774/2014”, que dispõe sobre “sobre a inviolabilidade
do domicílio da população cigana” (BRASIL, 2014d). Além desta proposição legislativa, há também o
“PL nº 3.547/2015”, de autoria do deputado Helder Salomão (PT/ES), que tem como finalidade “incluir a
História e Cultura Cigana no currículo oficial da rede de ensino” (BRASIL, 2015a). Ambos os projetos
não foram votados.
144

Em 19 de maio de 2011, o senador Paulo Paim requereu a realização de


audiência pública “a fim de debater a importância da cidadania cigana”62. A audiência
pública, solicitada no requerimento, ocorreu em 25 de maio de 2011, um dia após ser
comemorado o “Dia Nacional do Cigano”.
Houve duas reportagens, produzidas pela agência de comunicação do Senado
Federal, que noticiaram a realização da audiência pública sobre a “cidadania cigana”.
Estavam intituladas: “Paim quer que Congresso Nacional aprove o Estatuto dos
Ciganos” e “Ciganos terão projetos de lei em defesa de seus direitos”, ambas publicadas
no dia 25 de maio, mesmo dia em que ocorreu o evento. Vejamos algumas imagens
publicadas nas reportagens:

Imagem 12 – Audiência pública sobre a “cidadania cigana”

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2011b).

As reportagens supracitadas registraram a presença do deputado federal


Domingos Dutra (PT-MA), da deputada federal Erika Kokay (PT-DF), da Senadora Ana
Rita (PT-ES), e de representantes da Coordenação para Assuntos de Igualdade Racial
(Copir) do Distrito Federal, assim como da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir) do Governo Federal. Além disso, estas notícias destacaram,
expressamente, a presença de Jonatas Alexandre Lima de Oliveira e de Marlete
Queiroz63; ambos são indicados como representantes da Associação Cigana das Etnias

62
Trata-se do Requerimento à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa nº 65 de 2011.
63
Embora Jonatas e Marlete sejam indicados como representantes da ACEC-DF, não é possível afirmar
que sejam também ciganos da etnia Calon. O site escavador informa que Jonatas Alexandre Lima de
Oliveira é historiador que atua, principalmente, com os ciganos e suas representações sociais. Disponível
em: <https://www.escavador.com/sobre/6969148/jonatas-alexandre-lima-de-oliveira>. Acesso em 02 jun.
2020.
145

Calons do Distrito Federal, e, de acordo com as imagens do evento, estavam sentados na


mesa da audiência pública. Todavia, não há menções, nas reportagens, aos nomes e às
participações das pessoas registradas na “Imagem 12”, três homens que usavam chapéus
de estilo cowboy, que são típicos dos ciganos Calons da região Centro-Oeste, e uma
mulher de cabelos loiros.
Imagem 13 – Apresentação de dança durante a audiência pública sobre a
“cidadania cigana”

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2011c).

Imagem 14 – Participação de Marlete Queiroz em sessão especial do Senado


Federal para comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra

Fonte: acervo do Senado Federal (2010).

Ao pesquisar as expressões “Marlete Queiroz”, “ciganos” e “Senado”, no site de


busca da Google, é possível encontrar o registro da sua participação na sessão especial
146

do Senado Federal para comemorar o “Dia Nacional da Consciência Negra”, evento que
foi realizado no dia 19 de novembro de 2010. A reportagem da Agência Senado informa
que “Marlete Queiroz” é “representante da comunidade cigana”. Destaco, aqui, alguns
elementos do discurso de “Marlete”, presentes na notícia, que também foram
recorrentes nas audiências públicas realizadas no Senado, a partir de 2011: a
invisibilidade dos povos ciganos, a dificuldade para obter a certidão de nascimento; e a
ausência de menção à etnia cigana no senso realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
Não tenho informações como “Marlete Queiroz”64 foi convidada para fazer parte
da sessão especial do Senado em homenagem ao “Dia Nacional da Consciência Negra”,
em novembro de 2010, assim como da audiência pública sobre a “cidadania cigana”,
realizada em maio de 2011. Tentei contato com ela, em abril de 2019, por meio de
mensagem no aplicativo Whatsapp, contudo, não obtive respostas. Por isso, cabe-me
especular que sua participação na sessão especial, em novembro de 2010, tenha
influenciado a realização, no ano seguinte, da primeira audiência pública realizada no
Congresso Nacional para discutir, diretamente, a “questão cigana”.
As informações disponibilizadas pelos Anais do Senado Federal, referente a
julho de 2011, fizeram um balanço das atividades realizadas no primeiro semestre.
Destacou-se a realização da audiência pública sobre a “cidadania cigana”, realizada na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Vejamos:
[...] iniciamos um ciclo de audiências públicas sobre o tema que incidem
diretamente sobre o interesse da sociedade, de todo o povo brasileiro.

[...] Também, Sr. Presidente, outro exemplo é o caso dos ciganos, que vivem
às margens do poder público, numa situação quase de invisibilidade, e
desprotegidos pela lei.

A partir da reunião que tivemos, surgiu a proposta, inclusive, de uma


legislação que proteja efetivamente a nação cigana. Avançamos e, com a
Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial, vamos
realizar, inclusive, a Conferência Cigana (2011c, p. 531-532, meus
destaques).

Em outro trecho desses “Anais”, é relatado qual a função das audiências públicas
realizadas no Congresso Nacional, e, mais uma vez, é feito referência a “questão
cigana”, sobre a necessidade de aprovação de uma legislação protetiva específica, assim

64
Marlete Queiroz criou um canal na plataforma Youtube chamado “Primeira Cigana Tagana Vale do
Amanhecer” em que narra a sua biografia de forma entrelaçada à entrada e vivência nesta religião.
Segundo o Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, trata-se de uma “uma religião
espiritualista cristã, criada para abrigar a Doutrina do Amanhecer, fundada em 1959 pela médium
clarividente Tia Neiva” (UNICAP, 2013).
147

como é anunciada a realização da Conferência Cigana, a ser realizada pelo Governo


Federal65.
O objetivo dessas Audiências não é, simplesmente, apresentar os problemas.
É, sim, buscar soluções e dar encaminhamentos concretos às demandas
apresentadas.

E, isto, sem dúvida, nós estamos fazendo.

[...] Pois bem, a partir da reunião que tivemos, surgiu a proposta de criação
do Estatuto dos Ciganos, com regras, deveres, direitos e obrigações.
A Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial realizará,
no início de 2012, a Conferência Cigana, para ouvir as demandas dos povos.
(2011c, p. 536, meus destaques)

Nota-se que as audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, além de


discutir temáticas que, em geral, são consideradas relevantes para a sociedade brasileira,
também tem um propósito encaminhativo, isto é, ser propositiva e garantir a
concretização das demandas que foram apresentadas. Além disso, observa-se, também,
uma relação de proximidade entre o Senador Paulo Paim e o Poder Executivo, tendo em
vista que este parlamentar integra o partido que governava o país em 2011.
É importante registrar que um dia após a realização da audiência pública sobre a
“cidadania cigana”, a senadora Ana Rita, em 26 de maio, registrou, em seu
pronunciamento no plenário do Senado Federal, que o Brasil, desde 2006, comemora o
“Dia Nacional do Cigano”, destacando que a data “foi instituída em 2006, por meio de
decreto do nosso Presidente Lula, que reconheceu a importância da contribuição da
etnia cigana no processo de formação da história e da identidade cultural brasileira”
(BRASIL, 2011e).
Ao longo do pronunciamento, a senadora Ana Rita também fez um breve relato
da audiência pública realizada no dia 25 de maio de 2011, destacando algumas
demandas específicas dos povos ciganos, nas áreas de saúde, moradia e educação, e, por
fim, fazendo referência, explícita, a necessidade de uma lei específica.
Senadora Ana Rita: Ontem, a Comissão de Direitos Humanos do Senado realizou uma
audiência pública sobre a cidadania cigana, e fiquei impressionada com a falta de acesso
desse povo às políticas públicas. É um segmento da sociedade que ainda merece uma
atenção especial e que se encontra bastante esquecido. A realidade dos ciganos foi
apresentada em números a nós, Parlamentares: grandes índices de analfabetismo, falta de
acesso à saúde e falta de higiene e estrutura nos acampamentos.

O preconceito e a discriminação também foram citados como barreiras para essas


comunidades. Com a audiência pública, conseguimos agendamento de duas reuniões entre
representantes dos ciganos e da Coordenação para Assuntos de Igualdade Racial – Copir do

65
O documento “Brasil Cigano - Relatório Executivo I Semana Nacional dos Povos Ciganos 20 a 24 de
maio de 2013” registrou que “em 2012, o Dia Nacional do Cigano foi celebrado com a realização da
Plenária: “Políticas Públicas e Povos de Cultura Cigana”, ocorrida no dia 25 de maio de 2012, no Rio de
Janeiro” (BRASIL, 2013, p. 9).
148

Distrito Federal e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir do


Governo Federal.

Também foi sugerida, foi determinada, por parte da população cigana, a elaboração de um
texto a ser apresentado por uma entidade nacional representativa dos ciganos como
sugestão para um possível projeto de lei que defenda os direitos dessa população.

A lei que for apresentada aqui, se for aprovada pelo Congresso Nacional, terá o nome
de Esmeralda, em homenagem a uma criança cigana que sonhava um dia frequentar
uma escola. É um começo, Srª Presidente, um caminho para mais justiça social para o povo
cigano. (2011, p. 483-484, meus destaques)

A partir de pesquisas no website do Senado Federal, assim como na plataforma


Youtube, pude encontrar registros sobre a audiência pública sobre o “Direitos dos Povos
Ciganos”, realizada na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa
(CDH) do Senado, em 12 de dezembro de 2012.
O senador Paulo Paim, por meio do “Requerimento Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa n° 135, de 2012”, solicitou a realização de
“audiência pública para debater a situação dos povos Rom, Calon e Sinti, os assim
chamados ciganos”. Segundo os Anais do Senado Federal, esta audiência pública “foi
requerida pelo Procurador Federal dos Direitos Humanos do Cidadão Adjunto, Dr.
Luciano Mariz Maia” (BRASIL, 2012b, p. 958). Nas palavras do Senador Paulo Paim:
[...] o Dr. Luciano se reuniu comigo e falou da necessidade de debatermos o problema por
que passa a comunidade cigana em todo o Brasil. Inclusive ele me apresentou uma
minuta de um anteprojeto que já havíamos discutido entre nós, que seria
apresentar-mos um estatuto para o povo cigano, devido à invisibilidade – principalmente
a Marlete me falou diversas vezes – que existe sobre o tema. Isso foi fruto de uma
audiência pública. Eu disse que, de minha parte, não daria problema algum, era só a minuta
chegar a minhas mãos que eu mandaria para o corpo técnico do Senado, transformaria num
anteprojeto, a comissão debateria, seria aprovado e começaria a tramitar na Casa. [...]
sairmos com o encaminhamento de efetivamente termos uma legislação clara, nítida,
transparente, que atenda o interesse do povo cigano.

[...] Em maio do ano passado, realizamos aqui nesta Comissão outra audiência para tratar
da situação do povo cigano. Aí nós sugerimos inclusive a ideia do estatuto, uma lei que
determinaria os direitos e garantias individuais e coletivas do povo cigano, que
avançaria naturalmente no reconhecimento de uma legislação clara e transparente. O
estatuto teria, conforme entendimento, o nome que assim a comunidade entendesse
mais adequado. Alguém levantou até que poderia ter o nome de Esmeralda, em
homenagem a uma pequena criança que tinha o sonho, eu diria inusitado, de
frequentar a sala de aula. Sonhar com o direito legítimo garantido pela Constituição. É
um sonho bonito de alguém que criou na memória um mundo especial, de alguém que
mentalizou os desenhos em uma folha de caderno, que aqui me foi apresentada a
Esmeralda. Ela imaginava poder pegar o ônibus, chegar à escola, abraçar os coleguinhas,
enfim, ter o direito a uma vida normal como toda criança em qualquer parte do mundo.

Claro, aqui estamos discutindo o sonho da Esmeralda no Brasil. Ela só queria ter direito de
aula, como as outras suas coleguinhas. Em relação a tudo isso que ela escreveu, a intenção
era botar o nome da lei, uma vez aprovada, de Lei Esmeralda. Há alguns que não
entendem a importância de uma audiência pública. Naturalmente os que não
entendem é porque não têm compromisso com os movimentos sociais. (2012b, p. 958,
meus destaques)
149

O trecho acima trata-se da transcrição dos discursos realizados no início da


audiência pública sobre os “direitos dos povos ciganos”, em dezembro de 2012. Pode-se
perceber que foi mencionado a realização da audiência pública sobre a “cidadania
cigana” e, principalmente, ao que parece ser o principal encaminhamento da atividade
realizada em 2011: a criação de um estatuto para o povo cigano. Esta legislação teria o
nome de “Lei Esmeralda”, em homenagem a uma criança que sofreu racismo no
ambiente escolar, segundo foi relatado durante a audiência pública de 2011. Por fim, o
senador Paulo Paim ressaltou a importância das audiências, tratando-se de um
“compromisso com os movimentos sociais”.
É importante ressaltar que há um dado extremamente importante que foi
compartilhado pelo parlamentar no início do seu discurso, o fato do Procurador da
República Luciano Maia ter apresentado “uma minuta de um anteprojeto” para a criação
de um “estatuto para o povo cigano”. Todavia, não é possível afirmar que o
“anteprojeto” apresentado pelo integrante do MPF seja o mesmo ou tenha relação com a
proposição da “ANEC”, que se transformou no PLS 248 em abril de 2015.
Segundo as informações disponibilizadas pelos Anais do Senado Federal,
estiveram presentes e se pronunciaram na audiência pública de 2012, representando o
Governo Federal: Paul Israel Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária, do
Ministério do Trabalho e Emprego; Letícia Miguel Teixeira, Gerente Substituta da
Diretoria de Política de Acessibilidade e Planejamento Urbano, e César Ramos, da
Secretaria de Habitação, ambos do Ministério das Cidades; Macaé Maria Evaristo dos
Santos, Diretora de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações
Étnico-Raciais, do Ministério da Educação (MEC); Ione Maria de Carvalho, Secretária
da Cidadania e Diversidade Cultural, do Ministério da Cultura; Silvany Euclênio Silva,
Secretária de Políticas para Comunidades Tradicionais, da Seppir; e Anna Flávia
Schimitt, representando o IBGE66.
Também estiveram presentes a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) e o
senador Wellington Dias (PT/PI); membros do Ministério Público Federal, Luciano
Mariz Maia, da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, e Aurélio Virgílio Veiga Rios, da
6ª Câmara - Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais; professores
universitários, Iara Menezes Lima, Professora de Direito da UFMG, e Rosângela
Azevedo Corrêa, Professora da Faculdade de Educação da UnB; representante do
governo do Distrito Federal, Patrícia Maria de Lira Ahualli, Diretora de Comunidades

66
Diferentes participantes da audiência pública fizeram menções positivas à atuação da Ministra dos
Direitos Humanos, Maria do Rosário.
150

Tradicionais do DF; e o Padre Wallace do Carmo Zano, dirigente da Pastoral dos


Nômades. Com exceção do senador Wellington Dias, todos e todas estas pessoas que
foram mencionadas discursaram durante a audiência pública.
É importante frisar que as representações “ciganas” estavam em menor
quantidade durante o evento, levando em consideração o número de gadjo ou juron que
participaram, assim como ocorreu também na audiência pública de 2011. Estiveram
presentes e fizeram falas, durante a audiência pública de 2012, as seguintes lideranças e
representações que se identificam e são identificadas como ciganas: Claudio Domingos
Ivanovitch, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana de Curitiba,
Elisa Costa, presidente da AMSK, Lucimara Cavalcante, da AMSK e da Associação
Internacional da Cultura Romani; e, novamente, Marlete Queiroz, representando a
ACEC-DF. Foi registrado, ao final da audiência, que Carlos Amaral, da Associação
Guiemos Kalon, embora tivesse sido convidado, não conseguiu participar do evento,
tendo enviado as demandas do seu grupo.
Nos parágrafos abaixo, dou destaque às participações e aos discursos que são
relevantes para a construção da presente tese. Isto é, das representações ciganas e dos
atores estatais, que se destacam na interlocução entre os ciganos e o Estado.
Após a abertura do Senador Paulo Paim, que presidiu a audiência pública, o
primeiro a discursar foi o Procurador da República, Dr. Luciano Mariz Maia, que
iniciou sua fala narrando como se deu a sua aproximação com a “causa cigana”.
Vejamos:
[...] Eu também contei ao Senador (Paulo Paim) que foi um Senador da República, um
Senador da minha terra, a Paraíba, o Senador Antonio Mariz quem me provocou para
iniciar uma atividade com relação aos ciganos. Eu, como Procurador da República na
Paraíba, em 1991, iniciei um processo de defesa dos direitos dos índios potiguara e, com o
êxito de uma ação devolvendo aos índios as terras, ele disse: “Olha, eu tenho um recado dos
ciganos para você”. “Pois não”. “Há quem defenda negro, há quem defenda índio, há quem
defenda homossexual, mas não há quem defenda cigano”. Eu digo: “E o que é que se há
defender com relação aos ciganos?.

[...] Junto com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, nós fizemos
um esforço na organização da Conferência Nacional de Direitos Humanos para inserir a
pauta cigana. Mas como o outro projeto do programa de direitos humanos já vinha quase
todo pronto, não foram aceitas as sugestões de mudança no texto para a inclusão dos
ciganos. Frans Moonen e o Cláudio Ivanovitch participaram desse esforço de inclusão dos
ciganos no Programa Nacional de Direitos Humanos I. Não é porque não tivesse havido um
esforço para inclusão. É que o formato já estava todo pronto, carimbado. Aí daria tempo,
mudar o carimbo e botar outras pautas de reivindicação. Mas insistiu-se e no Programa
Nacional de Direitos Humanos II já começou a constar da pauta os ciganos. (2012b, p.
961-962)

O discurso do Procurador da República Luciano Maia foi o mais longo da


audiência pública, tendo sido o primeiro e o último convidado a se pronunciar durante o
evento. O procurador fez uma espécie de depoimento pessoal sobre suas vivências com
151

os povos ciganos, destacando situações das comunidades Calons que vivem no


município de Sousa-PB; sobre suas tentativas de interlocução com governo federal e a
ONU, durante a gestão de FHC; sobre episódios comuns de preconceito; sobre a
relevância e a diversidade étnica-cultural dos ciganos no Brasil; e acerca da
insuficiência de pesquisas do IBGE sobre a presença dos ciganos no país, indicando a
subnotificação dos dados oficiais.
O senhor Claudio Ivanovitch, que discursou em seguida, iniciou seu
pronunciamento na língua romani, que não foi traduzido na transcrição dos Anais do
Senado Federal. Ao longo do seu discurso, abordou a trajetória de sua família, assim
como da associação que criou; fez críticas ao governo federal; narrou dificuldades com
a prestação de contas de um evento que organizou, com recursos no estado do Paraná; e
exigiu que os materiais didáticos e obras literárias, que fazem menções negativas aos
ciganos, fossem retirados de circulação. Compartilho, abaixo, dois trechos do discurso
de Claudio Ivanovitch que são relevantes para esta tese. Vejamos:
[...] está aí depois a criação da Seppir, onde achávamos que a Seppir seria a nossa “Casa
Civil”, aonde iria emanar todas as demandas que a gente colocava. Ledo engano; ledo
engano. A Seppir para os ciganos é completamente dispensável.
[...] Então, eu acho que se é o caminho, vamos fazê-lo, mas estatuto eu discordo,
porque eu prefiro a Constituição. Se é o caminho o estatuto, vamos fazê-lo. (2012,
p. 964, meus destaques)

Antes de passar a palavra para a próxima convidada, Marlete Queiroz, o Senador


Paulo Paim respondeu às ponderações que Cláudio Ivanovich fez à possibilidade de
criação do “Estatuto”. Segue abaixo:
Entre uma das citações que o Dr. Cláudio fez, foi a questão de ter ou não ter o
Estatuto. Eu deixo para a reflexão de vocês, porque ele deixou uma opinião. A
constituição existe, mas já tem o Estatuto do Negro, que está sendo fundamental para a
comunidade negra e é casualmente de minha autoria. Há o Estatuto do Idoso,
fundamental para os idosos e, casualmente de minha autoria. Há a política de
salário-mínimo; casualmente ajudei em toda a montagem dela. O que eu quero dizer, Dr.
Cláudio, é para que todos reflitam. A Constituição, é claro, é o arcabouço geral, como é
a Convenção da ONU de diversos temas, por exemplo, do Estatuto da Pessoa com
Deficiência. Eu sou o autor do Estatuto em debate e alguns falam: “Mas a Convenção
do Estatuto...A Convenção é universal; o Estatuto baliza a legislação no País. Por isso,
quero deixar para reflexão. Eu sei que o senhor está flexível a essa discussão e já disse
aqui, tanto que ele disse: ‘Não, se tiver de ter o Estatuto, vamos para o Estatuto. Mas
que faça e seja executado.’ Então eu deixo para reflexão de vocês essas preocupações.
(2011, p. 965, meus destaques)

Após o comentário do senador Paulo Paim, Marlete Queiroz fez seu


pronunciamento. Destaco, aqui, que embora tenha sido indicada, no início da audiência
pública, como representante da ACEC-DF, esta afirmou também representar a “Ananke,
que é a Associação de Guarulhos”; “a Cedro, de Peruíbe”; “a UCIRN, do Rio Grande do
Sul”; “a Associação das Mulheres Ciganas”; a “Anec, que é de Brasília” e ressaltou que
o pesquisador “Frans” a passou um e-mail pedindo que o representasse. Segundo
152

Marlete, essas organizações formam “uma Rede que é chamada Sujeito de Direitos”
(2011c, p. 966). Pela primeira vez, é feito menção à “ANEC”, associação que aparece
como propositora do PLS nº 248/2015.
Marlete Queiroz abordou também diferentes assuntos, entre eles, a
predominância do analfabetismo67 entre as comunidades Calons, indicando o índice de
98%, que foi questionado por pessoas na plateia; a falta de registro civil entre muitos
ciganos, o que dificulta acesso aos hospitais; a falta de políticas públicas específicas; e a
inconsistência nos dados que informam a quantidade de ciganos no Brasil, afirmando
ser um “mito esse censo”68. No momento que fez críticas aos dados do IBGE, Marlete
foi interrompida por Lucimara Cavalcanti e Elisa Costa, ambas do AMSK, que
afirmaram ter contribuído para a “Pesquisa Básica de Informações Municipais”.

Imagem 15 –Audiência pública sobre os “direitos dos povos ciganos”


realizada em dezembro de 2012

Fonte: acervo do Senado Federal (BRASIL, 2012d)69.

67
Mirian Souza identificou, ao analisar e comparar a atuação de duas lideranças ciganas diferentes, que
no caso de Mirian Stanescon, seu discurso colabora “para a construção de uma representação pública dos
ciganos, na qual a pobreza e, consequentemente, o analfabetismo são tratados como um grande problema
entre eles (motivo pelo qual argumenta ter sido a primeira mulher cigana a se tornar advogada no Brasil”
(2013, p. 236-237).
68
A pesquisadora Edilma Monteiro compartilhou em sua tese de doutorado uma fala de um cigano Calon
que questionou esta relação da etnia ao analfabetismo. “Ao tratar dessa questão, o Calon traz para o
conhecimento que ‘não somos alfabetizados a partir dos parâmetros educacionais do grupo da sociedade
envolvente, pois a nossa educação é oral’- ele ainda ressalta, ’nossa educação não tem grafia, parte de
outras formas de aprendizagem’” (2019, p. 312).
69
No centro da fotografia está o senador Paulo Paim, que presidiu a audiência pública, e, ao seu lado
esquerdo está o Senhor Claudio Domingos Ivanovitch.
153

Em relação ao “Estatuto”, Marlete Queiroz contextualizou o porquê da


necessidade deste instrumento jurídico, que, de uma certa forma, também foi uma
refutação ao posicionamento de Claudio Ivanovitch. Vejamos:
Então, é claro que o preconceito tem de ser combatido contra todos os ciganos que
carregam esse estereótipo de ladrão, mas as políticas públicas têm de chegar aos ranchos.
As políticas públicas têm de chegar aos ciganos calons. A fome, a miséria, o descaso, a
falta de humanidade. Lá em São Paulo, vi uma Kali morrer por diabetes, porque não tinha
condições de ter insulina, porque no lugar onde ela estava não tinha energia. Então, é
preciso um estudo, sim, para que se forme esse estatuto, para que ele alcance esse
povo, por que, se ele não servir a esse povo, vai servir para quem? (2012e, p. 969, meu
destaque)

Após Marlete Queiroz, Ione Maria de Carvalho, representante do MinC, fez seu
pronunciamento e, em seguida, foi passada a palavra à deputada Erika Kokay, que fez
referências diretas à necessidade de um “Estatuto”. Vejamos:
[...] Por fim, queria concluir apenas dizendo da necessidade de que nós possamos, a
Câmara e o Senado, fazer a discussão do Estatuto e contemplar a questão fundiária,
que não significa a modificação da forma de ser. Como os ciganos falam: “Nós queremos
continuar comercializando, queremos continuar andando pelo mundo, mas nós queremos
que as nossas crianças tenham um espaço para que elas possam ir para a escola, tenham um
espaço para que elas possam se sentir pertencentes e ter um futuro que não seja o
casamento.” Por isso, Senador, eu concluiria, dizendo da importância e da necessidade para
o próximo ano nós realizarmos uma série de seminários de discussões temáticas a fim de
que possamos, a partir daí, criar as condições para o estatuto dos povos ciganos, enfim,
contemplar uma comunidade que é invisibilizada e, quando é vista, é vista
invisibilizada pelo Estado Democrático de Direito, pela noção de humanidade, pela
noção de solidariedade, é vista, via de regra, com os olhos da discriminação, com os olhos
da violência policial, da brutalidade que, muitas vezes, se expressa, mediante o Estado,
numa violência institucional, que precisa ser reconhecida para que possa ser desconstruída.
(2012e, p. 974-975, meus destaques)

Por fim, destaco o discurso de Elisa Costa, presidente da AMSK. Antes do seu
pronunciamento, falaram Silvany Euclênio Silva, da SEPPIR, Paul Singer, do MTE,
Letícia Miguel Teixeira e César Ramos, ambos do Ministério das Cidades, Macaé Maria
Evaristo, do MEC, Anna Flávia Schimitt, do IBGE, Padre Wallace, da Pastoral Nômade,
e Rosângela Corrêa, da professora da UnB.
A fala de Elisa Costa consistiu em cobranças ao Governo Federal, exigindo que
este comemore oficialmente, em 2013, o “Dia Nacional do Cigano”; que o MEC faça
uma pesquisa sobre o acesso à educação das crianças, jovens, adultos e idosos ciganos;
que haja mudanças na grade curricular dos cursos de Direito, Jornalismo, História,
Geografia, assim como os cursos de formação de professores e gestores, para que
abordem a “questão cigana”; e que seja criado um Observatório, envolvendo o MPF,
SDH e o Seepir.
Segundo o pesquisador Erisvelton Sávio Silva de Melo, em tese de doutorado
defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, o assunto
154

principal da audiência realizada em 12 de dezembro de 2012 “se deu justamente com


questões voltadas à educação e escolarização dos ciganos, além das temáticas sobre
censo entre os ciganos, saúde e respeito aos direitos ciganos”. O autor ressalta que
muitas das questões dessa atividade “estavam presentes na forma de reivindicações e
encaminhamentos” (2015, 137), como ficou evidente no discurso de Elisa da Costa.
Todavia, em outro trabalho científico, Melo faz uma ponderação sobre a
audiência pública de 2012, que é “a falta de preparo de funcionários públicos
habilitados a lidar com as particularidades dos grupos ciganos” (2015, p. 12). Embora
faça essa ressalva, o pesquisador destaca que a partir de 2004, Claudio Ivanovitch
passou a integrar o CNPIR, criado pelo presidente Lula, mas que apenas em 2006 foi
criado a Secretaria de Diversidade Cultural, no Ministério da Cultura (SID/MinC),
ocasião que se deu início “a um processo de interlocução com diversos grupos étnicos e
minorias do Brasil, dentre eles os ciganos. Nesse sentido, foi instituída a Portaria
Ministerial nº 2 de 17/01/2006, que criou alguns grupos de trabalho para pensar e
construir políticas públicas para estas minorias”. O autor acrescenta que um desses
grupos é o “GT Cigano, composto por alguns representantes ciganos, pesquisadores,
estudiosos, além de representantes governamentais” (2015, p. 12).
Destaco também a participação de “Elias Alves”, liderança cigana calon e
presidente da ACEC-DF, em audiência pública realizada na Comissão de Direitos
Humanos e Minoria do Câmara de Deputados, em 23 de abril de 2014, para discutir o
Projeto de Lei (PL) 7447/2010, de autoria do deputado federal Luiz Alberto (PT/BA).
Este projeto de lei, que foi arquivado, buscava estabelecer “diretrizes e objetivos para as
políticas públicas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades
tradicionais” (BRASIL, 2014g).
Embora a audiência pública sobre PL 7447/2010 não tratasse, diretamente, sobre
a “questão cigana”, “Seu Elias”, como também é conhecido, durante seu
pronunciamento, aproveitou para reivindicar a criação do “Estatuto dos Ciganos”.
Vejamos:

Eu sou Elias Cigano, Presidente da Associação Cigana das Etnias Calons do DF e Entorno.
Neste momento, estamos nesta audiência, e eu não estou falando só para o meu povo de
Brasília, porque o povo calon, de modo geral, são todos os povos. Eu quero falar sobre a
situação do meu povo tanto em Brasília como em âmbito nacional.

Em Brasília, a gente está sendo assistido por alguns programas, como a Deputada Erika
sabe, como uma tenda-escola, porque a maioria dos ciganos do Brasil são analfabetos —
90% dos ciganos são analfabetos, porque não existe uma política pública que fale sobre os
ciganos. Os ciganos ainda não têm uma profissão definida porque são analfabetos. O cigano
é discriminado em todo lugar que chega. É na saúde, é na escola e até no trabalho. Muitas
vezes nós temos de negar que somos ciganos para poder trabalhar e conseguir o sustento.
155

Então, a gente fala muito no nosso Estatuto dos Ciganos no Brasil. A gente acha, não só
eu, mas também todos os companheiros ciganos, todos os líderes, todas as comunidades...
A gente já discutiu isso na Câmara, houve demanda tanto na Câmara dos Deputados como
no Senado. Há mais de 4 anos que a gente teve essa demanda. A gente fala, fala, fala, mas
nunca achamos um ponto X para nos segurar para esse Estatuto.

Então, hoje estou aqui falando, quero o apoio de vocês. O grito de socorro para as
comunidades ciganas é o Estatuto da Igualdade Racial no Brasil para os ciganos, porque as
leis que existem no Brasil não falam em ciganos. Nós sabemos que a lei é para todos os
cidadãos brasileiros. O cigano é cidadão brasileiro, mas quando você fala que é cigano, é
negado. Eu falo com experiência própria. Eu sou representante de comunidade, eu rodo o
Brasil inteiro. Eu sou de Brasília, mas o meu trabalho me leva para todos os estados e
municípios não querem saber de cigano. Quando você fala que é cigano, eles querem até
prender. Muitas vezes eu chego a uma cidade para trabalhar e digo: ‘Olha, eu sou cigano,
eu trabalho com isso, isso’. ‘Aqui não. Cigano aqui não.’ Por que não? Por que não
procuram saber quem é o cigano? Só porque existe uma lenda de que o cigano é ladrão,
cigano é isso e aquilo! Pelo contrário, gente! Nós não estamos sendo mostrados na televisão
assaltando, estuprando, fazendo sequestros. Foi falado que os presídios estão todos cheios.
Contem quantos ciganos existem lá! Não há nenhum cigano. Então, por que somos
discriminados por essa razão? Nós temos que mudar isso. (Palmas)

Aqui em Brasília, a Deputada Erika Kokay sempre nos ajudou, está sempre comigo na
minha comunidade, ela conhece lá a peso. A gente a tem como se fosse uma pessoa da
família. A SEPIR/DF nos ajuda muito também no sentido da sua obrigação. Hoje, estamos
assentados graças ao Governo do Distrito Federal. Eu estou assentado em 3 hectares de
terra com 25 famílias, mais de 200 pessoas. Tenho minha escola, uma tenda-escola que foi
a primeira criada no Brasil. E a gente pretende levar esse modelo para outros estados,
porque estão necessitando. Se a pessoa não tiver estudo, como vai conseguir trabalhar no
mundo em que estamos hoje? É preciso aprender a ler. Há criança de 14 anos, de 15 anos
que nunca foi à escola. 26 Então, gente, este é um grito de socorro.

Os políticos têm que olhar pelo povo cigano, porque o povo cigano já faz diferença no
Brasil. Nós somos mais de 800 mil ciganos calons, fora as outras etnias. No Brasil, os
políticos não sabem, não reconhecem, nem procuram saber. Então, nós precisamos de
alguém que se interesse por nós, porque necessitamos. Hoje nós não vivemos sem política.
Hoje ninguém vive. Todos os companheiros que estão aqui são merecedores. Mas o povo
cigano é discriminado, não existe no papel. E nós somos cidadãos brasileiros. Então, o
recado que eu quero deixar é que nos ajudem, que deem continuidade, Deputada, como a
SEPIR/DF, que está aí também, que deem uma resposta para nós sobre o nosso Estatuto.

Nós tivemos, no ano passado, o Brasil Cigano, não só eu, mas também outras lideranças,
outros companheiros de fora, de outras etnias, como os Rom, os Caldeus, os Sintis e outras
que estão aí. A pauta mais discutida foi a do Estatuto dos Ciganos. Mas está chegando
outro ano. Dia 24 de maio é Dia Nacional do Cigano, e não tivemos nenhuma resposta.
Então, eu quero pedir à SEPIR/DF, que é do Governo do Distrito Federal, que nos ajude,
que nos dê uma resposta, porque não estamos podendo nem trabalhar mais. Quando uma
cigana sai para trabalhar, muitas vezes tem que trocar de roupa, não pode ir trabalhar com a
roupa dela. Eu não posso ir de chapéu, de bota para trabalhar, vender meus artesanatos.
Somos ferreiros. A gente fabrica as coisas. Mas quando descobrem que eu sou cigano,
pensam que roubei e estou vendendo na rua.

Então, gente, se nós não tivermos uma lei que nos ampare, como o cigano vai ficar no
Brasil? E os nossos adolescentes, os nossos idosos? Nós perdemos muitos idosos, muitas
crianças por falta de atendimento médico. Muitas vezes, a gente chega a um hospital para
consultar: ‘Você mora onde?’ ‘Não, eu sou cigano, estou de passagem.’ ‘Então, aqui não!’
Então, ele vai ficar onde? A gente não tem que consultar? A gente não tem que passar pelo
médico? Só porque é cigano não pode? Então, as demandas políticas têm que conhecer a
cultura cigana, para levá-la para dentro de todas as Secretarias. A nossa cultura é
desconsiderada.

Então, queremos resposta. Todo cigano estará apegado ao Estatuto, porque, se alguém
negar, nós falaremos: ‘Não, nós temos um Estatuto que fala de nós’. A gente sabe que
156

a lei é para todos, mas quando se fala em cigano é negado. Então, eu quero dar um
grito de socorro aqui, neste momento, para que todos os companheiros Deputados que
estão aqui — já conheço vários — deem continuidade, que nos chamem para dar
continuidade no nosso Estatuto no Brasil.

Era só isso, gente. Muito obrigado a todos. (Palmas)

É importante salientar que “Seu Elias” fez menções ao fato da ideia de propor a
criação de um “Estatuto” ter sido abordado durante o evento “Brasil Cigano”,
promovido pelo governo federal em 2013 no mês de maio. Além disso, ressaltou que a
demanda pela criação do “Estatuto” já estava sendo discutida no Congresso Nacional
nos últimos 4 anos, provavelmente se referindo às atividades realizadas no Senado
Federal a partir do início da década de 2010, por meio das interlocuções de “Marlete
Queiroz”, que se apresentava como representada da ACEC-DF, mesma organização do
“Seu Elias”.

Imagem 16 - Audiência pública sobre o PL 7447/2010

Fonte: acervo do Governo Federal (BRASIL, 2014g)70.

Por fim, não posso deixar de mencionar a audiência pública convocada pela
parlamentar Erika Kokay com a finalidade de discutir “políticas públicas para a
preservação da cultura do povo cigano no Brasil”, realizada em 22/05/2014, na

70
Seu Elias está sentado na ponta direita da mesa da audiência pública, de camisa azul e chapéu de
cawboy branco.
157

Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados. Segundo a


agência de comunicação da Câmara, foram convidados para esta ocasião: Luana Lazzeri
Arantes, diretora de programas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial; Patrícia Maria de Lira, diretora de comunidades tradicionais da Secretaria
Especial de Promoção da Igualdade Racial do DF; Henrique Torres, o assessor da
subsecretaria de Educação Básica de Estado de Educação do Distrito Federal; Hervaldo
Sampaio Carvalho, superintendente do Hospital Universitário de Brasília; Luciano
Mariz Maia, procurador adjunto da República Procurador Federal dos Direitos do
Cidadão; Elias Alves, o representante do Povo Cigano Calon (BRASIL, 2014a).
Registrou-se, em outra reportagem da agência de comunicação da Câmara, que
“duas comunidades ciganas que se fixaram em terras do Distrito Federal (Sobradinho e
Santa Maria) compareceram à audiência trajando roupas típicas e brindaram os
presentes com danças daquele povo” (BRASIL, 2014a), fazendo referência às famílias
de “Seu Elias” e de “Seu Wanderley”, que não esteve presente no evento. Na transcrição
desta audiência pública, divulgada pela Câmara de Deputados, indicou-se que “o
Presidente Financeiro, Batista Cigano”, “Jefferson da Rocha, que é o Presidente
Executivo” e “Daiane da Rocha” participaram da atividade, sendo que estes dois
últimos proferiram discursos.

Imagem 17 - Participação de duas comunidades ciganas em audiência


pública realizada em 22/05/2014

Fonte: acervo da Câmara de Deputados (BRASIL, 2014a).


158

Embora durante esta audiência pública tenha sido abordada questões específicas
das comunidades ciganas participantes, como o “acesso ao atendimento básico de saúde,
a regularização fundiária das terras onde estão fixados e a educação dos agentes
policiais para os costumes ciganos”, a Deputada Erika Kokay pontuou que um dos
propósitos da reunião pública foi também tratar da criação do “Estatuto Nacional dos
Povos Ciganos”, e, assim como ocorreu na atividade realizada em 2012, mencionou que
a proposta “receberá o nome de ‘Estatuto Esmeralda’, em referência à menina cigana,
presente ao evento, que disse ser o maior sonho de sua vida poder estudar” (BRASIL,
2014b).
Além da deputada que presidiu a audiência pública, outros participantes fizeram
menções à proposta de “Estatuto” destinado ao “povo cigano”. Vejamos alguns trechos:
A Sra. Presidente (Deputada Erika Kokay): O Senador Paulo Paim, que é também um
grande defensor dos ciganos, da cultura cigana e dos direitos do povo cigano, já disse que
esse estatuto se chamará Estatuto Esmeralda, em homenagem a essa menina que queria
aprender a ler, e que aprendeu a ler, menina que tinha como brincadeira preferida a
construção de escolinhas e que dizia: Eu quero aprender a ler.
Então, Esmeralda, o estatuto que nós vamos construir vai carregar o seu nome por causa de
sua determinação e pelo que representa a possibilidade do acesso à educação, para que
possamos inclusive, através também da educação, desconstruir toda sorte de discriminação.
E eu diria que o povo cigano tem muito o que ensinar ao conjunto do País.
Fundamentalmente, não apenas respeitar, mas também homenagear nossa diversidade é
fundamental para fazer valer nossa Constituição, que fala em dignidade humana, e para
fazer valer nossa própria democracia, ainda em construção.
Então, o sentido desta audiência pública é podermos aqui traçar aspectos para compor o
Estatuto dos Ciganos. Temos a representação da SEPPIR-PR e da SEPIR-DF e vamos ter
uma discussão entre essas duas Secretarias - com a participação de outras, se necessário -,
que têm políticas específicas para a comunidade cigana, para que possamos construir o
esboço do Estatuto dos Ciganos, que vamos trazer a esta Casa para ser aprovado, de modo
que os ciganos possam dizer que sua cultura e a possibilidade de a viverem em sua inteireza
estão asseguradas em uma lei neste País.
[...]
O Sr. Elias Alves: Nós queremos lei para falar por nós, se nós não conseguirmos uma lei
para falar por nós, porque todo cigano que está aqui sabe que a lei da Constituinte do Brasil
não ampara o cigano e não quer saber do cigano; nem o Estado, nem o Município não
querem saber e não dão voz para o cigano. Inclusive nós temos aqui um Vereador cigano
que foi eleito pelo PT, mas ele, lá no Município dele, não tem força, porque ele é cigano.
[...] Então hoje eu quero - não só eu, mas todos os que estão aqui - que isso aqui seja uma
base para nós, um alicerce para levantar o nosso estatuto do cigano no Brasil, porque,
enquanto nós não tivermos nosso estatuto falando em nós, essas outras leis não quererem
saber de nós.
[...]
A Sra. Daiane da Rocha: E a criação do nosso estatuto nacional dos povos ciganos, que é
mais do que justo, porque têm pessoas que confundem a gente com religião, e na verdade
nós somos uma nação. E eu tenho orgulho de falar isto: nós somos uma nação. Como eu
havia lido lá em cima, tem uma estimativa não oficial de 800 mil ciganos. Nós somos uma
nação. E esses são os ciganos de acampamento, fora aqueles que moram em casa. Por medo
e por muito preconceito contra eles, eles acabam morando em casa para poderem ter um
trabalho mais digno. Então, com esse estatuto, nós vamos ter mais voz, com certeza.

O PLS 248/2015 iniciou a tramitação aproximadamente um ano após a


realização da atividade do dia 22/05/2014. Ainda que se trate de uma proposição
159

legislativa iniciada no Senado Federal, nota-se que as articulações políticas em torno do


“Estatuto” envolveram também a Câmara de Deputados, sobretudo a parlamentar Erika
Kokay, que esteve presente nas atividades promovidas pela CDH em 2011 e 2012, ao
mesmo tempo que é colega de partido do Senador Paulo Paim.
Além disso, não posso deixar de mencionar de dois estranhamentos que tive em
relação aos fatos que sucederam a proposição do “Estatuto” no Senado: em primeiro
lugar, não presenciei ao longo da minha observação participante ou encontrei em
documentos públicos nenhum registro da participação da comunidade de “Seu Elias”
em eventos ligados à tramitação do “PLS”; e, em segundo lugar, não houve mais
menção à possibilidade da lei a ser aprovada ser chamada de “Estatuto Esmeralda”,
diferentemente das audiências públicas anteriores ao início da tramitação do projeto de
lei do Senador Paim.
Como se pode perceber na “tabela 3”, além das três audiências públicas que
trataram diretamente da “questão cigana” e da atividade que “Seu Elias” participou em
2014, identifiquei outras duas audiências ocorridas no Congresso Nacional que também
tiveram a participação de “representações ciganas”. Entretanto, diferentemente de “Seu
Elias”, estas “referências”71 não fizeram menções durante seus respectivos discursos às
articulações pela proposição do “Estatuto do Cigano”.

2.2.3 - Pausa para uma análise sobre a construção da mediação

Os dados etnográficos produzidos na presente pesquisa, sobretudo os que foram


compartilhados no segundo capítulo desta tese, são fundamentais para pensar de que
maneira o processo de construção político jurídico do “Estatuto do Cigano” nos permite
redimensionar as teorias dos Direitos Humanos a partir de uma perspectiva voltada para
a diversidade étnica, racial e cultural no Brasil. Sendo a adoção de uma perspectiva
crítica o melhor caminho para entender qual o papel que os atores ciganos e não ciganos
exerceram em face das primeiras negociações pela criação de uma lei específica. .
Se aqui mobilizo um olhar crítico sobre a relação entre os “direitos humanos” e
a “questão cigana”, qual seria o problema em adotar o “pensamento teórico no sentido
tradicional”? Segundo o filósofo Max Horkheimer, esta vertente considera tanto a
origem dos fatos concretos determinados como a execução prática dos sistemas de
conceitos, pelos quais estes fatos são assimilados, e assim sendo seu papel na práxis
71
Refiro-me à Maura Piemonte (Associação Centro de Estudos e Discussões Romani) e Alexandre
Castilho (Associação Internacional Maylê Sara Kalí) que estiveram no Senado Federal em 23 de abril de
2013; e Lucimara Cavalcante (Associação Internacional Maylê Sara Kalí), que participou de audiência
pública em 14 de outubro de 2013.
160

como algo exterior. Nas suas palavras, “a alienação que se expressa na terminologia
filosófica ao separar valor de ciência, saber de agir, como também outras oposições,
preservam o cientista das contradições mencionadas e empresta ao seu trabalho limites
bem demarcados” (1980, p. 139).
É comum nos estudos antropológicos falar em “estranhamentos”, até por se
tratar de um campo de conhecimento que se propõe a compreender a cultura do “outro”
em geral. É no exercício do “estranhamento” que as pessoas se identificam, que se
reconhecem como ser único e que se afirma como sendo, da mesma forma, o “outro”.
Transportando essa técnica para os refletir os “direitos humanos”, especialmente
levando em conta o objeto de estudo desta tese, é possível questionar a função das
instituições estatais na proposição do “Estatuto” e em qual medida houve uma
autonomia e participação dos grupos que são destinatários deste projeto de lei na
tramitação.
Deve ser um pressuposto básico das teorias críticas questionar o que está posto,
“estranhar” os jogos de poder que envolvem, por exemplo, a criação de uma lei que tem
como finalidade reconhecer direitos voltados para os povos e comunidades tradicionais.
Acima de tudo por ser um processo legislativo que ocorre no Brasil, onde os povos
ciganos em sua maioria estiveram e estão excluídos dos espaços políticos em que são
tomadas as decisões mais importantes da sociedade; onde seus conhecimentos estão
atrelados ao não lugar da racionalidade; onde sua existência é tratada como tudo aquilo
que não devemos ser, enquanto o oposto de civilizado.
De acordo com o filósofo Helio Gallardo, os Estados na América Latina não
foram concebidos como Estados de direito (império das leis, divisão de poderes,
produção de uma identidade nacional, para citar três fatores), mas sim como máquinas
patrimonialistas, rentistas e clientelistas. Nas palavras deste autor,
[...] a fragilidade do Estado na América Latina fica evidente quando se olha
sua legislação, a atuação de seus órgãos burocráticos e tecnocráticos [...].
Estas são sociedades fragmentadas tanto pela dominação de classe quanto por
sua economia excludente e dependente, e os vários privilégios de status que
se opõem e discriminam em todos os níveis os senhores da multidão, os
brancos dos ‘negros’, o grupo étnico ‘nacional’ dominante dos grupos étnicos
originários, o urbano do rural, os homens das mulheres, os adultos das
crianças, os jovens e os velhos, os executivos tecnocráticos dos analfabetos.
(2010, p. 63, minha tradução)

Ao mobilizar as teorias críticas dos Direitos Humanos e os estudos decoloniais


para compreender como a máquina estatal foi movida para a produção de um marco
regulatório voltado para os povos ciganos não tenho a pretensão de questionar esse
processo partindo do pressuposto que o direito por ser um instrumento de dominação de
161

classe não atenderá os anseios emancipatórios e por inclusão social desta minoria étnica.
Busco, na verdade, situar a questão cigana na realidade brasileira e latino-americana, em
especial por se tratar de um Estado que é predominantemente “monocultural”, como
discorri no subtópico “2.2.1”.
Se por um lado o sociólogo Ramón Grosfoquel afirma que “ninguém escapa às
hierarquias de classe, sexuais, de género, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais
do ‘sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno’”, de que maneira um povo
tradicional como os ciganos conseguiu alçar o Senado Federal e emplacar um projeto de
lei na dimensão do “Estatuto”? Como chegaram ao Senador Paulo Paim?
Ainda que o PLS 248/2015 não tenha sido aprovado, a sua proposição em si já é
um grande feito. Sendo que a etnografia deste processo político uma oportunidade para
refletir sobre os jogos de força que envolvem a “criação de uma lei”, ou seja, o que está
por trás da produção dos direitos dos povos ciganos no Brasil.
O trabalho antropológico que empreendi me possibilitou primeiro questionar, no
sentido de estranhar, e em seguida compreender em que medida a proposição legislativa
do “Estatuto” foi antecedida por um movimento de massa, resultado de uma articulação
que envolvessem diversos grupos espalhados por todo país. Nos últimos seis anos, ao
acompanhar “de perto” eventos políticos, locais, regionais ou nacionais envolvendo a
questão cigana, além da própria observação participante que faço da tramitação do PLS
248/2015, pude constatar alguns elementos que dão pistas sobre como ocorreram as
mediações políticas que perpassam o processo legislativo em tela.
Em primeiro lugar, ficou evidente que há uma dispersão no movimento cigano,
assim como uma articulação frágil, inexistindo uma rede sólida, auto organizada e
institucionalizada que envolva lideranças e representações ciganas de diferentes
localidades e etnias construindo uma agenda comum de lutas por direitos72. Faço essa
afirmação comparando com a realidade dos povos indígenas, que conquistou nas
últimas décadas, apesar de todos os ataques, mais visibilidade e apoio público, tanto
nacional, como também internacional. O papel do ativismo indigéna no processo
constituinte, por exemplo, que resultou na previsão do capítulo “Dos índios” na carta
política, por meio do art. 231, mesmo sem ter um representante direto no Congresso
Nacional, é uma expressiva amostragem dessa força73.
72
De acordo com as pesquisadoras Jamilly R. Cunha e Olga Magano, “Sem dúvida, houve avanços
importantes para o ‘movimento cigano’, mas ainda com pouca capacidade de mobilização e de
negociação comparando com outros movimentos sociais (indígenas e quilombolas) no Brasil” (2019, p.
273).
73
“Após 1988, organizações indígenas continuaram o trabalho de articulação com as agendas, como a
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB)” (LOPES, 2017, p. 84).
162

Em segundo lugar, ao mesmo tempo que se trata de um movimento pouco


articulado e sem muito suporte material, ocorre também uma intensa disputa entre as
representações e lideranças ciganas, organizadas em torno de associações que
geralmente estão estruturadas a partir de vínculos familiares. Em resumo, o objeto desta
disputa é a visibilidade, o protagonismo e a possibilidade de influenciar o Estado no
estabelecimento dos critérios que justamente dizem respeito a quem vai fazer tal
mediação74. Os dados etnográficos produzidos nesta pesquisa indicaram a existência
deste tensionamento, sobretudo nos momento em que presenciei “Seu Wanderley” e a
“ANEC” serem questionados quanto a sua legitimidade em face das articulações do
“Estatuto”, em detrimento de críticas ao próprio conteúdo do projeto de lei. Ou seja,
notei mais oposições a quem está propondo do que o que está sendo proposto.
Diante de tais adversidades elencadas nos dois parágrafos acima, assim como
tendo em vista a vulnerabilidade social em que inúmeras famílias ciganas estão
acometidas, é fundamental identificar, compreender e refletir sobre como se deu a
construção da agenda pela criação do “Estatuto do Cigano”. Analisando tanto esta trama
que envolve os ciganos e o Estado na prática legislativa, assim como no âmbito dos
conselhos de Estado, há um elemento que é comum a estas duas esferas: o
“protagonismo individual”. Ou seja, o que eu quero dizer é que a emergência das
articulações e da pauta pela inclusão dos povos ciganos nos marcos regulatórios, nas
políticas públicas e nos órgãos colegiados envolveram predominantemente esforços
individuais de algumas lideranças que driblaram todas as adversidades possíveis e
conseguiram alcançar determinados espaços e acessar certas autoridades com o objetivo
de fazer mediações com o Estado falando em nome desta coletividade.
O “protagonismo individual” que me refiro não é apenas em relação às
lideranças e representações ciganas presentes na esfera pública, como o também o papel
desempenhado por agentes públicos que integram determinadas instituições. Aliás, não
se trata de qualquer agente público, mas talvez a principal autoridade brasileira que nas
últimas três décadas mais contribuiu para sensibilizar e ao mesmo fortalecer a agenda
dos “direitos ciganos”, conhecido e chamado pelos próprios ciganos como “Doutô
Luciano”.

74
Voltarei a discutir essa questão das disputas sobre tais critérios nos subtópicos “3.1.1” e “3.2.4”.
163

2.2.3.1 - O dono da palavra

Os dados obtidos a partir da pesquisa de campo que realizei revelam que


Luciano Maia, que integra o quadro de procuradores da república no Ministério Público
Federal desde o início da década de 199075, teve um papel fundamental na proposição
do “Estatuto do Cigano” pelo Senador Paulo Paim no Congresso Nacional. Embora não
haja registro de sua participação direta na audiência pública de 2011, ocasião em que se
mencionou pela primeira vez no Poder Legislativo Federal a necessidade de criação de
um marco regulatório voltado especificamente para os povos ciganos, os documentos do
Senado que analisei indicam que Luciano foi o responsável pela convocação da
audiência pública realizada em dezembro de 2012. Este evento que reuniu integrantes
de diversos ministérios e órgãos públicos, assim como algumas lideranças que se
identificam e são identificadas como ciganas, diferentemente da atividade do ano
anterior, foi explicitamente requisitada para discutir a criação de um “Estatuto”.
A partir da análise documental dos “Anais do Senado Federal”, em que está
transcrito tudo que foi falado na audiência pública de 2012, ficou claro que o papel
desempenhado pelo Procurador da República não se restringiu à convocação do evento.
Há outros dois aspectos de extrema relevância. Primeiro, de acordo com o próprio
Senador Paulo Paim, foi Luciano Maia o responsável pela mediação com o parlamentar,
uma vez que “apresentou uma minuta de um anteprojeto”, em que ambos estariam
discutindo a proposição de “um estatuto para o povo cigano” (BRASIL, 2012, p. 958),
sem mencionar a participação de nenhuma liderança cigana nesta articulação inicial. O
segundo elemento que destaco desta audiência pública é o fato de Luciano Maia ter sido
entre os participantes da atividade o que mais se pronunciou, sem qualquer limitação do
seu tempo de fala, sendo o primeiro e o último a discursar entre os convidados.
Devo ressaltar que Luciano Maia é publicamente reconhecido entre seus colegas
do MPF, incluindo a PGR, como o principal responsável pela aproximação do órgão
com a questão cigana, graças ao seu empenho pessoal. Por isso, é possível dizer que a
atuação desta instituição na fiscalização do estado na defesa dos direitos dos povos
ciganos e consequentemente na pauta do “Estatuto” não se dá exclusivamente por conta

75
O MPF, ao publicar um texto sobre uma ação de usucapião coletiva para regularizar moradias da maior
comunidade cigana Calon estudada e documentada do Brasil, cita que Luciano Maia integra o rol de
testemunhas indicadas pelo próprio órgão por ter acompanhado estes grupos “fixados em Sousa, pelo
menos, desde 1991, ano em que, a partir de inspeção de campo, realizada em 22 de agosto daquele ano,
começou a reunir material para instaurar um inquérito civil” (MPF, 2021).
164

da previsão legal da “6º Câmara”, mediante a Resolução nº 20, do Conselho Superior do


Ministério Público Federal, de 1996, que estabelece normas relativas à organização e
funcionamento das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.
Até porque este instrumento jurídico sequer faz referência direta aos “ciganos”, mas sim
às “comunidades tradicionais” de modo geral.
Portanto, não seria exagero afirmar que a atuação do MPF em face dos povos
ciganos se deve mais ao protagonismo individual de Luciano Maia, que consegue
mobilizar outros poucos procuradores a se envolver com esta demanda . E não por conta
da existência de uma massa monolítica de servidores públicos comprometidos e
engajados com esta luta76.
Há mais um exemplo que gostaria de compartilhar que permite ilustrar o
protagonismo individual de Luciano Maia que transcende o papel institucional do MPF.
Refiro-me a sua participação, quase que extraoficial, nas discussões sobre a realização
da consulta aos povos ciganos sobre o PLS 248/2015, conforme exigência da
Convenção 169 da OIT.77 Embora este não esteja vinculado à 6ª CCR, que formalmente
teria a incumbência de tratar sobre este assunto, mas sim sendo subprocurador-geral da
República pela “7ª Câmara - Controle Externo da Atividade Policial e Sistema
Prisional”, ainda assim foi convidado pelas assessorias parlamentares do autor e relator
projeto de lei para mediar as discussões e orientar o Senado a como realizar oitiva dos
destinatários da proposição legislativa.
É inegável que a atuação de Luciano Maia não ocorre apenas pelo fato deste ser
reconhecido como um dos mais célebres experts no mundo jurídico quanto à temática
dos direitos ciganos. Ou por este ocupar o alto escalão da administração pública federal.
Mais do que isso, trata-se de um agente público que se empenha ao máximo para
promover mudanças e estimular ações em prol dos povos ciganos no Brasil. Não tenho
dúvidas que a sensibilidade e militância de Luciana Maia nesta pauta é uma exceção
entre os profissionais do Direito em postos mais prestigiados no serviço público, como é
o caso do MPF78.
76
Constatei empiricamente e refleti em artigo científico, publicado na Revista Brasileira de Políticas
Públicas, a relutância de diferentes procuradores da república em oferecer denúncias para investigar a
ocorrência de crime de preconceito envolvendo o anticiganismo (SILVA; LIMA FILHO, 2018).
77
Tratarei sobre as discussões que envolvem a realização da consulta no subtópico “4.1.2”.
78
A pesquisadora Vanessa Berner avalia que a apatia destes profissionais em relação às demandas
populares se deve ao fato da formação intelectual ser pautada no distanciamento entre o mundo jurídico e
o que acontece ao nosso redor, sendo também um “reflexo da baixa interdisciplinaridade presente nos
cursos de direito” (2017, p. 99). É um reflexo de como a formação intelectual do direito esteve e está
associado “à idéia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado
de natureza e culmina na Europa” (QUIJANO, 2000, p. 122), e, por isso, comprometida, em sua grande
maioria, em formar “uma elite jurídica tradicionalista, avessa a uma abertura maior aos interesses sociais”
(MASCARO, 2017, p. 29).
165

Todavia, não posso me eximir de discutir sobre como este protagonismo


individual possibilita refletir em alguma medida a conformação da democracia e da
república no Brasil, assim como pensar a luta e a construção dos direitos humanos na
América Latina a partir de uma perspectiva decolonial. A trama sobre a construção
político-jurídica “Estatuto” mostra que a mediação entre os grupos e lideranças ciganas
que atuam nesta pauta está em muitos momentos condicionada à tutela de uma
autoridade não cigana ocupante do alto escalão da administração pública federal. Não
deve ser desconsiderada a importância do papel institucional do MPF, que inclusive está
previsto na Constituição Federal e em outros instrumentos normativos.
Por mais que se paute a realização da consulta livre, prévia e informada aos
povos ciganos ou que se tenha realizado audiências públicas e demais formas de
reuniões abertas para discutir o PLS 248/2015, ainda assim se trata de um marco
regulatório que será votado por parlamentares não ciganos. Não obstante isso, a “voz
dos ciganos” para ser ouvida pelo Estado na prática legislativa demanda a intermediação
de um juron que atua como uma espécie de “padrinho” da causa, como já ouvi muitas
vezes de algumas lideranças nestas palavras. Independentemente de ser uma estratégia,
conscientemente ou não, adotada por algumas representações e grupos ciganos que
atuam na esfera pública para garantir que as suas reivindicações sejam ouvidas e
atendidas, tais condições e circunstâncias expõem as permanências coloniais que se
manifestam inclusive na construção das agendas de direitos humanos.
É como se para validar a “voz” desses atores e consequentemente a produção
dos direitos ciganos fosse necessário mobilizar instituições, agentes públicos, buscando
legitimar a própria demanda, para reconhecer a vulnerabilidade, para atestar a existência
de povos de culturas distintas da sociedade majoritária e assim por diante. A lógica da
burocracia estatal no Brasil, inclusive na prática legislativa, não foi pensada a partir de
uma perspectiva intercultural de reconhecimento da autonomia dos povos
historicamente oprimidos e da distribuição do poder. Por isso entendo que os estudos
decoloniais são fundamentais para também pensar esta trama do “Estatuto”, uma vez
que parte do entendimento que enquanto o colonialismo pressupõe a dominação
jurídico-administrativa de determinado território, compreende que a colonialidade se
refere à continuidade dos padrões de poder que a sustentaram, isto é, reconhece as
permanências coloniais (QUIJANO, 2005).
O novo marco constitucional brasileiro de 1988 inovou ao reconhecer o
“multiculturalismo”, mas não avançou em termos de autonomia dos diferentes povos e
grupos étnicos que vivem neste território. A luta e o exercício de direitos estão atrelados
166

à tutela das instituições que não estão desvinculadas dos padrões de poder disparados a
partir do colonialismo. Só que no caso dos ciganos os dados de pesquisa produzidos a
partir da descrição densa e da análise da tramitação do PLS 248/2015 provam que esta
tutela não é apenas em relação às instituições, mas acima de tudo em face de uma
autoridade, que é o caso de Luciano Maia. É como se este fosse uma espécie de voz
oculta da racionalidade, acima de qualquer suspeita ou interesse individual na causa,
dando credibilidade à demanda dos ciganos.
O que aqui chamo de “protagonismo individual” pode ser entendida como um
traço de uma “sociedade de origens tão nitidamente personalista como a nossa”, sendo
“compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até
exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os seus
componentes, tendo em vista um fim exterior a eles, foram sempre os mais decisivos”
(2004, p. 81), nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda. Em outra obra, este autor
conclui que a ordem social brasileira se constitui antes em personalismo e preferências
pessoais, “em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro que se baseia o
liberalismo” (1996, p. 185)79 80.
Ao descrever e compreender a construção político-jurídica do “Estatuto”, em
especial na sua gênese, é possível concluir que se Luciano Maia não existisse, não
haveria essa pauta em jogo. A condição de desumanização dos ciganos não os garante a
escuta. Por isso que este agente público, transbordando o próprio papel institucional do
MPF, é central para esta mediação entre os povos ciganos e o Estado na prática
legislativa, assim como em outros âmbitos. É o “dono da palavra”, no sentido
metafórico, mais que as próprias lideranças ciganas, quando se demanda discutir os
direitos destes povos. A potência da sua “voz” dá credibilidade às demandas colocadas
por esta coletividade
O questionamento que fica é se a iniciativa toda partiu do MPF, por meio de
Luciana Maia, e que buscou em seguida alguns grupos ciganos para legitimar a
articulação. Ou se foi o inverso. Esta incerteza em si já é um dado etnográfico, mas,
independentemente da resposta, está evidente que o protagonismo individual deste então

79
Cândido interpreta o livro “Raízes do Brasil” como o auge do pensamento racial brasileiro para a época,
uma vez que criticava a solução liberal do momento, que conferia às elites a função de conduzir a nação e
tutelar o povo, ao contrário disso, passava a atribuir a esse mesmo povo “a capacidade de iniciativa e
criatividade política” (1988, p. 65).
80
É possível também associar este traço personalista na sociedade brasileira ao episódio do
“salvo-conduto”, que abordei nesta tese no subtópico “1.1.3”, em que ficou claro que a aplicação deste
instituto pelo MPF no presente decorreu mais de relações pessoais do que de uma política institucional,
até porque não há previsão legal para o seu uso por brasileiro que tenham dificuldade de circular dentro
deste território.
167

subprocurador-Geral da República é um fator marcante na emergência da trama do


“Estatuto”.

2.2.3.2 - Uma luta de grupos

O “protagonismo individual” como um elemento marcante na construção


político-jurídica do “Estatuto” não se manifestou apenas na figura de Luciano Maia.
Além deste agente público, os dados etnográficos apontam que a construção da
mediação em torno do que se tornou o PLS 248/2015 também perpassou pela
performance de “Seu Wanderley”, principal interlocutor externo da “ANEC”, que como
já mencionei, é indicada como a “associação proponente” do projeto de lei em
tramitação no Senado Federal.
Não há dúvidas que esta articulação é direcionada e tem o potencial de alcançar
os povos ciganos que ocupam o território brasileiro. Por outro lado, não significa que
esta movimentação tenha sido deflagrada de forma genérica, isto é, que a emergência da
reivindicação por um marco regulatório tenha partido de uma ampla “luta dos povos
ciganos”. O trabalho antropológico empreendido nesta pesquisa possibilitou-me ter uma
série de “sacadas”, uma delas se refere justamente a ter percebido que a pauta do
“Estatuto” envolveu “uma luta de lideranças e grupos” que se mobilizaram ou que
foram acionados para atuar com a finalidade legitimar a proposição legislativa. Aliás,
primeiramente um grupo, a “ANEC”, que em seguida construiu e envolveu uma rede de
aliados, entre lideranças e associações.
É importante dizer que a proposição do “Estatuto” em abril de 2015, em si, é um
ato político. Ao indicar, expressa e unicamente, a “ANEC” como “associação
proponente” no projeto de lei submetido à apreciação do Congresso Nacional, há uma
opção política, que em certa medida significou a exclusão, em princípio, de outras
associações deste lugar de interlocução. Por mais que “Seu Wanderley” tenha
conseguido mobilizar “diferentes lideranças e “associações ciganas” para apoiar o PLS
248/201581 e ainda que seja uma pauta de extrema relevância para a sociedade, tudo isso
não impediu que houvesse ataques, em tom de questionamentos ao processo em tela.
Tanto em relação à legitimidade do próprio presidente da “ANEC”, como também em
face da iniciativa do Senador Paulo Paim. Sendo que tais tensionamentos são

81
Em ofício encaminhado pela ANEC ao Senado Federal, solicitando a realização da “consulta pública
para aprovação do Projeto de Lei 248/2015 que cria o Estatuto dos Povos Ciganos”, há 36 associações e
coletivos ciganos que subscrevem o documento, inclusive a ASPRECCE que publicou este ofício seu
blog. Disponível em: <https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
168

provocados, por exemplo, por algumas entidades e representações que estiveram


presentes nas audiências públicas entre os anos de 2011 e 2014, como é possível
constatar com a troca de mensagens que tive com Susana Novisk, conforme citei no
tópico “2.2.1”.
Os questionamentos suscitados por Susana Novisk e por outras representações,
que eu também interagi ou presenciei ao longo da pesquisa de campo, quanto à
legitimidade de “Seu Wanderley” e em consequência da “ANEC”, giram em torno três
argumentos: que eles não representam e que ao mesmo tempo o projeto de lei não
contempla a diversidade dos povos ciganos, uma vez que são Calons e que há também
outras etnias ciganas no Brasil, supostamente não ouvidas no processo legislativo.
Assim como ocorre críticas acerca da capacidade destes em atuar na articulação do
“Estatuto”, tendo em vista a baixa escolarização formal do seu principal expoente,
enquanto há outras representações que poderiam exercer este papel já que tiveram
acesso ao ensino superior.
É possível interpretar esta última crítica, em especial, como um reflexo do
racismo e da questão de classe, no sentido do elitismo, que pode se manifestar inclusive
entre os próprios ciganos82, tendo em vista que os grupos Calons são os mais associados
à pobreza e ao não-lugar da intelectualidade. Expõe as permanências do sistema de
classificação a partir da raça, dentro do contexto da colonialidade, que fortalece no
imaginário social a ideia que aqueles que se distanciam do padrão de conhecimento
pensados desde o eurocentrismo não são dignos de exercerem a mediação com o Estado
ou ocupá-lo.
Descrever e buscar compreender os jogos de força no processo do “Estatuto do
Cigano” é uma oportunidade para descartar perspectivas abstratas e ahistóricas que
impedem de pensar os “direitos humanos como um produto cultural desenvolvido no
marco da modernidade ocidental capitalista, e em grande medida tem cumprido um
papel legitimador da ideologia dominante” (CARBALLIDO, 2013, p. 19). Nesta tese,
ao abordar a luta pelos direitos ciganos levando em conta também o pensamento crítico
dos direitos humanos e os estudos decoloniais, intercalando à pesquisa de abordagem
etnográfica, foi possível “estranhar” algumas práticas, circunstâncias e relações de
poder que atravessam esta trama, entre o que elas os protagonismos individuais que

82
Segundo a socióloga Esther Pineda, “a interferência e penetração forçada da cultura escravista europeia
na América, juntamente com o processo de desarticulação da cultura autóctone e a introdução de uma
cultura externa racista, lançaram as bases para outra das formas operacionais do racismo, emanada do
mesmo grupo discriminado , que tem sido chamado de endorracismo” (2015, p. 198, minha tradução).
Interpreto que tal fenômeno descrito por esta autora também pode se manifestar entre os povos ciganos.
169

caracterizam a mediação entre os alguns grupos ciganos e o Estado na prática


legislativa.
Concordando com as pesquisadoras Berner e Lopes, entendo que “a teoria crítica
corresponde uma metodologia, que constitui um instrumento que permite pensar para
além da questão de direitos humanos posta individualmente” (2014, p. 140). Trata-se de
um mecanismo que contribui para dar visibilidade às assimetrias de poder. Como
advertiram estas autoras, a adoção da teoria crítica não significa ignorar as leis,
mas simplesmente ter consciência de sua limitação para garantir direitos
efetivamente em uma estrutura que é, por si só, assimétrica e conflitiva. Neste
sentido, aliás, é de fundamental importância o empoderamento de
comunidades, indivíduos e coletivos para que possam realizar a luta política e
também jurídica. (BERNER; LOPES, 2014, p. 140)

Nesse sentido, é fundamental ter em vista que esta luta pela criação do “Estatuto
do Cigano” surge em momento histórico concreto, cujas as regras formais e informais
que regem este processo não foram estabelecidas de forma simétrica, sendo a maioria
delas externas à vontade dos grupos ciganos envolvidos nas articulações do PLS
248/2015.
Como foi discorrido no tópico “2.1”, a “ANEC” e seus integrantes,
especialmente “Seu Wanderley”, são os principais “atores ciganos” atuantes pela
aprovação do “Estatuto”, levando em consideração a tramitação deste projeto de lei
desde abril de 2015. Todavia, foi possível identificar articulações anteriores à
proposição do PLS, como as audiências públicas de 2011 e 2012, que não tiveram a
participação da família de “Seu Wanderley”. Ou seja, há dois dados relevantes para a
presente pesquisa, são eles: o fato da primeira menção à necessidade de criação do
“Estatuto do Cigano” ter ocorrido em 2011; e que esta articulação inicial envolveu
outros atores, “ciganos” e “não ciganos”.
Por isso, posso concluir que entre as diversas representações e associações que
estavam presentes no Congresso Nacional discutindo a possível criação de um marco
regulatório para os povos ciganos no Brasil, não foi por acaso que “ANEC” se tornou e
ao mesmo tempo conquistou o posto de “associação proponente”. Uma vez que se trata
de um processo complexo, dinâmico, que muitas vezes é perpassado por uma série de
tensionamentos, tanto quando que se questiona, no sentido de pôr em dúvida, a
vulnerabilidade social dos ciganos, assim como a própria condição étnica desses grupos,
talvez a mobilização da família de “Seu Wanderley” para representar publicamente esta
170

pauta ocorresse em certa medida pelo fato destes reunirem o maior número de
elementos que que o imaginário popular espera de um “cigano de verdade”83.
Não podemos esquecer que a aprovação de uma lei, ainda mais se tratando de
um instrumento jurídico voltado para os povos tradicionais, demanda negociações
dentro e fora do Congresso Nacional, sendo indispensável identificar, compreender e
refletir sobre as particularidades que envolvem simultaneamente a questão cigana e a
construção político-jurídica do “Estatuto”.
O jurista Joaquin Herrera Flores vislumbra os direitos humanos como meios
para alcançar a dignidade. Nas suas palavras, “os direitos humanos seriam os resultados
sempre provisórios das lutas sociais por dignidade” (2009, p. 25). Por isso este
pesquisador não os encara como produtos acabados, mas conquistas a serem efetivadas
a cada dia e que demandam o envolvimento de toda sociedade. Partindo deste
entendimento, somado ao que me deparei na pesquisa de campo, não tenho dúvidas que
a luta pelos direitos ciganos é uma batalha permanente, sendo resultado da resistências
que já duram séculos, assim como articulações, mediações e também contradições que
não a deslegitimam, pelo contrário, aponta para desafios que são renovados diariamente
e que nos convida a repensar as fronteiras dos direitos humanos.

83
O estilo de vida da família extensa de “Seu Wanderley” e as condições de sobrevivência em que estão
inseridos trazem elementos que ao mesmo contribuem para ilustrar a vulnerabilidade social destes grupos
étnicos, assim como o que a sociedade em geral associa à “ciganidade”. Irei discutir no próximo capítulo
de que modo a construção político-jurídica do “Estatuto” possibilita compreender as relações de poder em
torno da produção da “ciganidade”.
171

Capítulo 3

“Vai além do nomadismo”

Como é de praxe nos processos legislativos, o texto aprovado e promulgado


dificilmente permanece igual ao projeto de lei que foi submetido inicialmente à
apreciação dos parlamentares. Isso porque ao longo de uma tramitação, inevitavelmente,
surgem diferentes atores sociais, que não se limitam ao autor da proposição ou ao
relator do projeto, que podem propor alterações, acréscimos ou supressões ao texto
inicial - envolve os parlamentares, assessores, servidores, lideranças ciganas.
Busquei descrever no presente capítulo as principais mudanças que ocorreram no
processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, tentando identificar como e de onde
partiram as eventuais influências que perpassam a tramitação do PLS 248/2015. Mas,
acima de tudo, tentando refletir como estas “idas” e “vindas” no texto de lei em
discussão no Senado Federal possibilitam discutir e ao mesmo tempo pautar a
“ciganidade”, isto é, o que é “ser cigano”1.
O texto inicial do PLS nº 248/2015, apresentado pelo Senador Paulo Paim,
contém 19 artigos, divididos em 4 títulos: “disposições preliminares”; “dos direitos
fundamentais”; “da promoção da igualdade”; e “disposições finais”. O “Título II – dos
direitos fundamentais” está subdividido em 7 capítulos, são eles: “Capítulo I -
disposições preliminares”; “Capítulo II – Da educação”; Capítulo III – Da cultura”;
“Capítulo IV – Da saúde”; “Capítulo V – Do acesso à terra”; “Capítulo VI – Da
moradia”; “Capítulo VII – Do trabalho”(BRASIL, 2015c).
Como se pode perceber, há temas sensíveis para os “povos ciganos” e para os
direitos humanos que estão previstos no projeto. Afinal de contas, o que está em jogo é
a aprovação de um “Estatuto” que pretende afirmar, expressamente, quais são os
“direitos ciganos” e os deveres do Estado em face da necessidade de aplicar políticas
públicas de inclusão social a este povo tradicional. Conforme é reivindicado por
diferentes lideranças ciganas, a luta por direitos “vai além do nomadismo”, condição

1
“Ciganidade” consiste na qualidade ou na condição de “ser cigano”, que é definido e caracterizado
levando em conta o conjunto de elementos considerados distintivos da cultura cigana. É importante
destacar que estes elementos diacríticos foram historicamente construídos e muitas vezes buscam indicar
uma perspectiva essencialista acerca do que se entende pelos ciganos. São fatores, em regra discursivos,
que compõem o “dispositivo cigano”, que é produto e ao mesmo resultado de anos de relações
assimétricas. Foi criado e aprimorado para controlar a existência da coletividade identificada como cigana
e simultaneamente promover a gestão de todo corpo social, sendo a “ciganidade” ainda um parâmetro de
civilidade, fator de classificação étnico-racial que mantém fronteiras, que subjuga, segrega e exclui os
povos ciganos, assim como busca afastar as pessoas dos elementos relacionados à cultura cigana.
172

que ainda está presente no imaginário social e que foi mobilizada em diferentes
momentos durante o processo legislativo aqui etnografado.
Por isso, para compreender e analisar melhor as transformações que ocorreram
na proposição legislativa do “Estatuto do Cigano”, dividi o terceiro capítulo em duas
partes. A primeira parte para tratar das mudanças e das disputas em torno da
normatização da “ciganidade” que aparecem durante o processo. A segunda parte para
discutir as matérias previstas no projeto que tratam da afirmação de direitos, isto é,
como o PLS 248/2015 aborda e tutela o acesso aos bens materiais e imateriais
necessários para a reprodução social e cultural dos destinatários do projeto, que
passaram por alterações, ao longo da tramitação, entre os anos de 2015 e 2020, e que
revelam como o Estado na prática legislativa vem pensando e produzindo a
“ciganidade”. Em ambas as partes também levei em conta os posicionamentos das
lideranças e “representações ciganas” que participaram dos debates públicos acerca do
conteúdo do PLS 238/2015.

3.1 - A normatização da “ciganidade”

Em 24/08/2016, o Senador Hélio José (relator) apresentou o primeiro “parecer”


referente ao PLS nº 248/2015 à Comissão de Educação, Cultura e Esportes (CE).
Também chamado de “relatório legislativo”, este documento, em geral, está dividido em
três partes: “I - Relatório”; “II - Análise”; “III - Voto”, sendo que, nesta última parte, é
apresentado algumas “emendas” ao projeto de lei. Tais propostas são discutidas e
aprovadas pelos parlamentares que compõem a respectiva comissão, antes de serem
encaminhadas para as demais comissões temáticas em que o projeto de lei deve ser
examinado.
Nesse sentido, a primeira proposta de mudança, no “texto inicial”, refere-se à
“definição de população cigana”. O texto inicial do PLS 248/2015 traz a seguinte
“definição”:
Art. 1° Esta Lei institui o Estatuto do Cigano, para garantir à população
cigana a igualdade de oportunidades.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:
I – população cigana: o conjunto de pessoas que se autodeclaram
ciganas, ou que adotam autodefinição análoga; (BRASIL, 2015c, p. 1, meu
destaque)

Por sua vez, o primeiro “parecer” do Senador Hélio José sugeriu mudanças nesta
definição, fundamentando as razões. Vejamos a justificativa:
Inicialmente, entendemos ser necessário reformular a definição de
população cigana que consta no inciso I do parágrafo único do art. 1º da
173

proposição. Em consulta aos membros da comunidade cigana


verificou-se que não é suficiente a adoção da autodeclaração como
critério de identificação do grupo. Propomos, portanto, que seja adotado
formato semelhante ao existente na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973,
que institui o Estatuto do Índio. Assim, será considerado membro da
população cigana aquele que, além de se autodeclarar nessa condição, for
reconhecido pela comunidade como tal. Eliminamos, também, a expressão
“que adotam autodefinição análoga”, por considerar que torna
demasiadamente imprecisa a definição. (BRASIL, 2016d, p. 5, meus
destaques)

Em 27/03/2018, durante a 7ª Reunião Extraordinária, que foi presidida pelo


Senador Pedro Chaves, vice-presidente da CE, foi aprovado o relatório apresentado pelo
Senador Hélio José. Nesta ocasião, os parlamentares presentes votaram “favorável ao
Projeto, com as Emendas nº 1-CE a 9-CE”. Ou seja, foram aprovadas nove emendas,
que significaram as primeiras alterações na redação do texto inicial do projeto de lei.
Aqui, destaco, a “Emenda nº 2-CE”, que alterou a “definição de população cigana”, que
passou a ter a seguinte redação:
I – população cigana: conjunto de indivíduos de origem e ascendência
cigana que se identificam e são identificados como pertencentes a um
grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional. (BRASIL, 2018a, p. 7, meus destaque)

Após ser aprovado na primeira comissão, o PLS 248/2015 foi encaminhado para
a Comissão de Assuntos Sociais (CAS). O Senador Hélio José também foi escolhido
para ser relator da proposta legislativa na CAS, cujo o “relatório legislativo” foi
aprovado na 15ª Reunião Extraordinária, presidida pela parlamentar Marta Suplicy, em
09/05/2018. Manteve-se a mudança na “definição de população cigana”, aprovada na
Comissão de Educação, Cultura e Esportes.
Com a aprovação do PLS 248/2015 na CAS, este projeto passou a tramitar na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), “em decisão
terminativa”2. O Senador Hélio José, também escolhido para ser relator na CDH,
apresentou dois “relatórios legislativos”, desta vez, com novas sugestões de alterações,
inclusive, na “definição de ciganos” Compartilho, abaixo, a fundamentação do
“relatório legislativo”, apresentado em 21/06/2018, justificando a mudança.
[...] Aproveitando o ensejo do ajuste redacional do art. 1º, convém
complementar a definição de “população cigana” com a definição de
“povos ciganos”, mais condizente com a realidade sociocultural desses
grupos étnicos e com normas internacionais pertinentes à matéria, pois um

2
Segundo informação do próprio website do Senado Federal, decisão terminativa “é aquela tomada por
uma comissão, com valor de uma decisão do Senado. Depois de aprovados pela comissão, alguns projetos
não vão a Plenário, são enviados diretamente à Câmara dos Deputados, encaminhados à sanção,
promulgados ou arquivados. Só serão votados pelo Plenário do Senado se recurso com esse objetivo,
assinado por pelo menos nove senadores, for apresentado ao presidente da Casa. Após a votação do
parecer da comissão, o prazo para a interposição de recurso para a apreciação da matéria no Plenário do
Senado é de cinco dias úteis” (BRASIL, 2020f).
174

povo é um grupo de pessoas com identidade histórica e cultural própria, ao


passo que população é apenas um conjunto de pessoas. Corrija-se, ainda, a
distinção dos ciganos “da sociedade nacional” pela sua distinção “na
sociedade nacional”, pois a primeira forma insinua que os ciganos não
fazem parte da sociedade brasileira, o que é uma forma involuntária e sutil de
reafirmar sua exclusão. (BRASIL, 2018i, p. 3, meus destaques)

A partir de fevereiro de 2019, ocorreram mudanças na relatoria do PLS


248/2015 na CDH, que passou a ser assumida pelo Senador Telmário Mota (PROS/RR).
Isso porque nas eleições gerais de 2018 o Senador Hélio José não se candidatou para o
cargo de “Senador da República”. Nesse sentido, no dia 20/03/2019, em menos dois
meses na relatoria do “Estatuto do Cigano”, o Senador Telmário Mota apresentou o seu
“relatório legislativo” à CDH, contudo não propôs novas mudanças na definição dos
“ciganos”, mantendo as sugestões apresentadas pelo primeiro relator da matéria.

Tabela 4 - Mudanças na definição de “ciganos” na tramitação do PLS nº


248/2015
Documentos Critério para definir os “ciganos”
Texto inicial do projeto de lei apresentado em população cigana: o conjunto de pessoas
29/04/2015 que se autodeclaram ciganas, ou que
adotam autodefinição análoga
Emenda nº 2-CE aprovada no Parecer (SF) nº população cigana: conjunto de indivíduos
20, de 2018, votado em 27/03/2018 de origem e ascendência cigana que se
identificam e são identificados como
pertencentes a um grupo étnico cujas
características culturais o distinguem da
sociedade nacional
Emenda nº 1-CDH apresentada pelo relatório Para efeito desta Lei, considera-se povo
legislativo do Senador Hélio José em cigano o conjunto de indivíduos de
21/06/2018 origem e ascendência cigana que se
identificam e são identificados como
pertencentes a um grupo étnico cujas
características culturais o distinguem,
como tal, na sociedade nacional.

As duas mudanças em torno do critério para se definir “quem são os ciganos” é


um indicativo de que se trata de uma matéria delicada para o processo legislativo em
questão, uma vez que se refere a como identificar e reconhecer os destinatários do
“Estatuto” caso aprovado. Como se pode perceber, ao se observar as alterações, há dois
critérios que estão em disputa: a “autodeclaração” e a “heteroidentificação”.
Vale ressaltar que a “heteroidentificação”, sugerida nos relatórios legislativos
submetidos às comissões, diferentemente do texto inicial, perpassa por dois parâmetros,
um “subjetivo”, na medida em que a pessoa deve se “identificar como cigano” e um
“objetivo”, ao passo que esta pessoa deve também ser reconhecida externamente como
“pertencentes a um grupo étnico distinto”. Por sua vez, a “autodeclaração”, proposta na
175

versão original do projeto de lei em tela, limita-se ao aspecto “subjetivo”, ou seja, sem
exigir uma contrapartida, também ser reconhecido, gerou “polêmicas” entre diferentes
“representações” e lideranças ciganas que vêm participando, direta ou indiretamente,
dos debates sobre o PLS 248/20153.
Por essa razão, no subtópico a seguir, apresentei e dei ênfase às posições das
“representações” e lideranças ciganas, que me deparei ao longo da pesquisa de campo,
sobre os critérios propostos no processo legislativo para definir “o que é ser cigano” no
Brasil. Levei em consideração sobretudo as manifestações ocorridas durante a audiência
pública realizada no dia 29/05/2018 e no grupo de Whatsapp criado por iniciativa da
assessoria do Senador Telmário Mota, em outubro de 2020, para discutir o conteúdo do
“Estatuto”. Apesar da proposição legislativa do Senador Paulo Paim abordar diferentes
temáticas, como por exemplo moradia, cultura, educação, saúde e acesso à terra, é o
dispositivo que traz a “definição dos ciganos” que representa o principal ponto de
divergência entre as “representações” e lideranças atuantes no processo legislativo em
tela.

3.1.1 - “Tem pessoas não ciganas que está usurpando o direito dos ciganos”

Em princípio, é importante dizer que não há uma única forma ou parâmetro para
definir a “ciganidade” ou as identidades “ciganas”, tendo em vista que estas são
construídas nas diferenças e a partir de trocas. Segundo a antropóloga Mirian Alves de
Souza, “a identidade cigana é uma identidade confrontacional porque se constrói a partir
do confronto. Os ciganos constroem sua identidade não apenas em oposição aos gadje
(não ciganos), mas os confrontando” (2013, p. 27).
Partindo do pressuposto que a alteridade “cigana” é infinita, busquei
compreender as disputas em torno da normatização da “ciganidade” no âmbito da
tramitação do Projeto de Lei nº 248/2015. Para tanto, é necessário identificar quem são
e como atuam os atores, “ciganos” e “não ciganos”, inseridos de alguma forma neste
processo legislativo e de que maneira influenciam e pautam a “ciganidade”. Cada
liderança ou grupo pode reivindicar o que entende por “ser cigano”, e, embora haja

3
Esta questão também foi identificada pelas pesquisadoras Jamilly R. Cunha e Olga Magano que
analisaram os discursos de algumas lideranças ciganas que participaram da audiência pública sobre o
Estatuto realizada no Senado em 2018. “A ‘autodeclaração’ passou a ser então a grande objeção de
algumas lideranças que foram convidadas pelo Estado a participar da discussão acerca da elaboração e
tramitação do projeto. O debate, inicialmente, esteve direcionado à preocupação diante dos possíveis
‘aproveitadores’ (identificado por estes representantes como ‘simpatizantes’, ‘admiradores’, e
‘convertidos’) que usariam a autodeclaração para barganhar os direitos dos/as Ciganos/as, como os que
podem ser gerados com a aprovação do Estatuto.)” (2019, p. 269-270).
176

pontos em comuns, não são perspectivas homogêneas. Dou ênfase aos atores que
surgem no processo legislativo do PLS 248/2015.
A possibilidade de participação direta dos “ciganos” na tramitação do PLS está,
praticamente, condicionada à realização de audiências públicas, ou estando em contato
com a assessoria parlamentar de quem propôs ou de quem está sendo relator do projeto,
em que podem falar, ouvir e contribuir, o que não significa que todas sugestões serão
acatadas. Como foi destacado no primeiro “relatório legislativo” do Senador Hélio José,
“membros da comunidade cigana” foram consultados e indicaram não “ser suficiente a
adoção da autodeclaração como critério de identificação do grupo” (BRASIL, 2016d, p.
5). Quem este parlamentar estava se referindo e por qual motivo a “autodeclaração” não
seria suficiente?
Os materiais audiovisuais disponibilizados pela TV Senado sobre a tramitação
do “Estatuto” dão algumas pistas de quem são os “membros da comunidade cigana” que
o relator Hélio José se referiu no primeiro relatório legislativo apresentado à CE.
Trata-se da própria família do Seu Wanderley, que aparece na reportagem “A cultura
cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos”, publicada em abril de 2018 no canal
do Senado na plataforma do Youtube, dialogando com o referido parlamentar sobre a
necessidade de mudanças na “definição dos ciganos”.
Primeiramente, a reportagem registrou Seu Wanderley entrando no Senado, com
uma camisa amarela de botão, chapéu cawboy preto e bota marrom de couro até o
joelho. Em seguida exibiu o respectivo diálogo:
Senador Hélio José (de forma eufórica e sorridente): Seu Wanderley, quanto tempo
(abraçando-o). Como é que tá a nossa comunidade cigana?
Seu Wanderley (cumprimentando os assessores que acompanham o senador): Satisfação
está aqui presente com vossa excelência, nosso amigo Fernando, satisfação, assessor
parlamentar do nosso senador.
Senador Hélio José: Obrigado.
Seu Wanderley: É uma grande satisfação, e eu trago em nome da nação cigana um forte
abraço e sinceros agradecimentos ao Senador federal Paulo Paim. E eu peço uma
explicação de vossa excelência referente essa coisa, este estatuto, como já foi aprovado na
primeira comissão, nós já temos o estatuto, doutor?
Senador Hélio José: Sim, o que que acontece. O Senado Federal, o processo legislativo
prevê que os projetos sejam analisados em várias comissões. Nós já obtivemos a primeira
vitória que foi aprová-lo na Comissão de Educação, Cultura e Esporte. Com a sequência, a
Comissão de Assuntos Sociais que trata, já que é um estatuto que envolve a questão do
meio social da vida cigana no nosso país, daí tem que passar na Comissão de Assuntos
Sociais, né? O relatório caiu comigo, eu já tenho o relatório pronto, aprovando da Comissão
de Assuntos Sociais, ela vai em caráter terminativo, ou seja, como última análise na
Comissão de Direitos Humanos cujo senador Paulo Paim inclusive também é membro,
então lá eu também pedirei a relatoria para poder agilizar o expediente. Ele sendo
aprovando na Comissão de Direitos Humanos segue para a câmara dos deputados para a
análise.
Fernando (assessor parlamentar): E lá vamos ficar torcendo para que ele aceite o projeto
do Senador e que de lá mesmo já seja mandado para a sanção do presidente.
Seu Wanderley: Nós, em toda história, tivemos prejuízos de pessoas autodeclarando
dizendo ser cigano, usufruindo da nossa cultura de formas ilegais e isoladas e que
177

para nós é prejuízo além de usufruir de uma cultura que não é dele, invisibiliza,
atrapalha nós de acessar de fato o nosso direito. A gente gostaria de perguntar deste
primeiro artigo será que teria como firmar mais ainda para que não tivesse brecha,
isso nos deixa assustado em todos lugares do Brasil. As pessoas usam o nosso nome
dizendo que é cigano, porque interessante que antes dizia, senador, que era cigano, as
pessoas fechavam a porta. De certos tempos pra cá, as pessoas estão se autodeclarando e
vestindo nossas roupas, os que nos deixa alegre e triste, ao mesmo tempo, porque
estamos sendo, tão usufruindo da nossa cultura de formas ilegais.
Senador Hélio José: Essa preocupação com a autodeclaração falsa que você coloca, ela
é realmente uma precaução necessária. Agora a gente tem que vê como é que a gente faz
para atuar na legalidade. O que vai acontecer? Deixar claro para você! Vamos perder mais
15 ou 20 dias de análise, porque isso, enquanto a consultoria, enquanto Ministério da
Justiça não se posicionar sobre essa questão, eu não poderei apresentar o relatório final na
casa. Só vou apresentar o relatório final quando a consultoria, quando o ministério da
justiça dá vista o processo.
Kamila Oton (assessora parlamentar): Tem que verificar a constitucionalidade dessa
inclusão.
Seu Wanderley: Nossa excelência, seria interessante que a gente perdesse os 20 dias...
Senador Hélio José: Eu acho que o desejo é fazer lei que possa ser aperfeiçoada da melhor
forma possível, não vai ser 20 dias a mais ou a menos que vai prejudica a nossa lei
Seu Wanderley: Confirmado.
Senador Hélio José: Se nós perdemos 20 dias, mas para aperfeiçoar a lei é melhor do que
depois tem que mudar na câmara vai ter que voltar para o senado de novo. Então se a gente
sair com o projeto todo aperfeiçoado aqui no senado não precisa a Câmara fazer mudanças
e voltar para cá, entendeu?
Seu Wanderley: Sinceramente, eu estou me sentindo tão importante de ouvir falar essas
coisas que eu tenho direito eu tô até querendo casar agora (risos). (TV SENADO, 2018c,
meus destaques)

Tratando-se de uma conversa filmada, é possível que não tenha sido,


plenamente, espontânea. Havia uma equipe dirigindo e gravando. Todavia, o fato de ter
sido gravado pela equipe de comunicação da TV Senado não invalida os dados
fornecidos por este momento. Pelo contrário, as informações organizadas, selecionadas
e disponibilizadas nesta reportagem, assim como nos demais materiais audiovisuais
produzidos, são dados valiosos, pois cumprem uma função, buscam trazer informações
que são tidas como relevantes para o processo legislativo do “Estatuto do Cigano” na
visão daqueles interlocutores.
A impressão que tive é que o primeiro trecho do diálogo acima cumpriu um
papel “didático”, ou seja, explicar, para as pessoas que assistirem à reportagem, quais
são os procedimentos formais que se demandam em um processo legislativo para um
projeto de lei ser aprovado. O segundo momento dedicou-se a abordar a temática da
“definição dos ciganos”, preocupação levantada por Seu Wanderley, e pelo que
identifiquei na pesquisa de campo, é também uma demanda apresentada por outras
lideranças ciganas. De toda forma, interpreto esse trecho da gravação como uma
maneira de construir a narrativa que a tramitação do PLS nº 248/2015 está se dando
com a participação dos “ciganos”, isto é, que estes estão sendo consultados.
178

Seu Wanderley, enquanto liderança cigana convidada para colaborar com a


reportagem da TV Senado, alegou trazer uma demanda que não só é dele, como também
de outros ciganos do Brasil, sugerindo um “critério” mais rigoroso, menos aberto, como
acontece com a “autodeclaração”. Na verdade propõe um parâmetro que não se limite a
um ato unilateral, entendendo ser necessário não só se identificar “cigano”, como
também ser identificado como “pertencentes a um grupo étnico cujas características
culturais o distinguem, como tal, na sociedade nacional”, tendo “origem e ascendência
cigana”. Ao justificar que o “art. 1º” precisa ser modificado, rejeitando o critério da
“autoidentificação”, Seu Wanderley ponderou haver “prejuízos” por conta de pessoas
“autodeclaradas”, que não são de fato “ciganas”, classificando essa conduta como
“formas ilegais e isoladas”, pois, “invizibiliza e atrapalha nós acessar de fato o nosso
direito” (TV SENADO, 2018b).
A conversa acima, que foi selecionada e ao mesmo tempo gravada, deixou claro,
mais uma vez, que Seu Wanderley é o principal “ator cigano” mobilizado (ou que se
mobilizou), no Senado Federal, para atuar como informante e interlocutor deste povo
tradicional junto à tramitação do PLS 248/2015. Principalmente nos primeiros anos da
tramitação, pois a partir de outubro de 2020 a assessoria do parlamentar relator do
projeto criou um grupo de whatsapp que reuniu referências, lideranças e pessoas que se
identificam e são identificadas como “ciganas” de diferentes origens, etnias, classes,
gênero, gerações etc. Outras vozes são tratadas como referências neste processo,
também levadas em consideração.
Como eu participei deste grupo, colaborando com as discussões, esclarecendo
dúvidas que me são apresentadas sobre o processo e legislativo, tive acesso ao
documento titulado de “PLS 248/2015 - discussões no grupo”, compartilhado nele pela
assessoria da 6º CCR/MPF, uma espécie de relatoria com a síntese de todos os debates
que ocorreram entre o mês de outubro e novembro de 2020 que dizem respeito ao PLS
248/20154.
O grupo foi criado por iniciativa da representação do Senador Telmário Mota,
Relator do PLS na Comissão de Direitos Humanos, que, atendendo a
recomendação contida em Nota Técnica expedida pela 6ª CCR/MPF,
compreende ser imprescindível a consulta aos povos ciganos, em atenção aos
parâmetros da Convenção 169 da OIT.
Os participantes do grupo têm a compreensão de que a discussão que ocorre
no grupo ainda não é considerada a consulta, para fins de aprovação do
Estatuto.

4
Estes trechos, elaborados por servidores do MPF, são sínteses dos debates que tiveram no grupo criado
pela assessoria do parlamentar. Foram usados como base para o ofício da ANEC com o objetivo de
informar ao Senado os principais pontos que foram discutidos. Este ofício foi publicado no blog da
associação cigana ASPRECCE, que também subscreveu o documento. Disponível em:
<https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
179

O grupo é um espaço de conhecimento e discussão da proposta pelas


lideranças das comunidades em todo o país. Nesse espaço o texto é
apresentado e discutido por essas lideranças, que se comprometem a
disseminar o texto e os pontos discutidos para as comunidades a que
pertencem, trazendo ao grupo o retorno dessas discussões.
É desejável que o grupo seja o mais representativo possível de todas as
comunidades ciganas existentes no Brasil, e que as representações estaduais e
as lideranças das principais comunidades estejam presentes, para permitir a
disseminação das informações. Contudo, embora se enfatize essa
necessidade, ainda não há representantes de todos os Estados da Federação.
Dessa forma, permanece o desafio de promover a disseminação das propostas
entre as comunidades ciganas de todo o Brasil.
Além de promover a discussão e disseminação do texto do projeto de lei,
o grupo pretende, ainda, elaborar e aprovar um Protocolo de Consulta
aos Povos Ciganos, que detalhe o procedimento de consulta a esses povos,
para fins de aprovação do PLS 248/2015.

A observação participante que fiz na audiência pública sobre o “Estatuto” no


Senado, em 29/05/2018, assim como no grupo de Whatsapp criado pela assessoria do
Senador Telmário Mota, possibilitou-me reconhecer que essa questão da “identidade”,
de fato, é também levantada por outras lideranças ciganas. Inclusive no próprio grupo
para autorizar ou não uma determinada pessoa ser adicionada e poder participar dos
debates, num movimento intenso de idas e vindas, mediações em busca de um
entendimento, em que se negociava para si ou para outra pessoa a presença naquele
espaço.
No caso da audiência pública, é importante destacar que a maioria das pessoas
presentes foram convidadas pelo Seu Wanderley, mas não apenas por ele. Isso porque
este evento do Senado coincidiu com outras duas atividades políticas que estavam
acontecendo em Brasília, o IV CONAPIR, que reuniu delegados de todo Brasil, e a
audiência pública do “Maio Cigano”, organizada pela 6ª CCR da PGR em 29/05/2018.

Tabela 5 - Lideranças que se identificam como “ciganas” presentes na


audiência pública do dia 29/05/2018 na CDH do Senado Federal
Nome Qualificação5 Posição ocupada na
(Associação e/ou estado da federação que atua) audiência
Seu Wanderley Representante da Associação Nacional das Etnias Ciganas Mesa
(ANEC-DF)
José Willamis Representante dos “ciganos” do Estado de Alagoas Mesa
Alves da Silva
Omar Ivanovichi Representante dos “ciganos” do Estado do Rio Grande do Norte Mesa
Mio Vacite União Cigana do Brasil e representante dos “ciganos” do Rio de Mesa
Janeiro
Sandra Lucero Associação dos Ciganos do Estado do Ceará e representante dos Mesa
“ciganos” de Tianguá-CE
Luis Bruno de Representante dos “ciganos” de Alto Parnaíba – MA Mesa
Moraes

5
Descrevo literalmente a descrição do site da TV Senado acerca das representações ciganas presente
durante a audiência pública e também organizo a tabela na ordem das falas que foram realizadas.
180

Calon Rogério Presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana do Plateia


Ribeiro Estado do Ceará
Maria Jane Presidente da Associação Comunitária dos Ciganos de Plateia
Soares Condado-PB
Lú Representante do Coletivo do Acampamento de Guarulhos Plateia
Maura Piomente Representante da Associação CEDRO-SP Plateia
Carlos Calon Representante da Associação CEDRO-SP Plateia
Imar Lopes Santos-SP Plateia
Garcia
Jorge Nicoli Pioneiro da Cultura Cigana Plateia
Nardi Casanova Paraná Plateia

Das pessoas elencadas acima não participam do grupo: Jorge Nicoli, Carlos
Calon, Sandra Lucero, Luís Bruno de Moraes e Mio Vacite, que no caso do último nome
citado faleceu em 11 de março de 2020. Por outro lado, o grupo, nos três meses que
acompanhei, passou mais de 120 pessoas, algumas que entram e permanecem, outras
saem, por falta de interesse ou por ter alguma discordância ou desentendimento, que
muitas vezes envolvem a própria questão da identidade, ou seja, de “quem é” e de
“quem não é cigano”.
Como ressaltei na introdução da tese, a descrição que faço da tramitação do PLS
248/2015 envolve também os eventos políticos que ocorreram na semana da audiência
pública do Senado, pois são atividades que abordam, direta ou indiretamente, em como
o Estado deve atuar em face da pauta dos “povos ciganos” por direitos e políticas
públicas. Por isso, compartilharei, nos parágrafos abaixo, discursos realizados durante a
audiência pública da PGR, de 28/05/2018, que interpreto como falas que se integram as
que foram pronunciadas também na reunião pública do Senado que ocorreu no dia
seguinte, em 29/05/2018.
O que quero destacar é que em ambos os eventos surgiram questionamentos e
discordâncias em face do critério da “autodeclaração”. E as divergências em face deste
parâmetro podem ser percebidas nos relatos que apareceram nestas ocasiões sobre a
existência de “outras” pessoas, que circulam nos espaços institucionais afirmando serem
“ciganas”, mas que são, na verdade, “autodeclarantes”, “cigano de espírito”, “cigano de
identidade duvidosa”, usurpadores, simpatizantes, em contraposição ao “cigano puro”
ou “legítimo” – categorias nativas constantemente usadas por “ciganos” ou por pessoas
que se reivindicam como tal.
181

Mirian Alves de Souza6 observou em seu trabalho de campo que “diferentes


critérios para a autenticidade são evocados na definição de quem é cigano”,
identificando esta mobilização nas críticas que são “dirigidas aos agentes políticos cuja
representação na esfera pública é questionada” (2013, p. 225). Como lembrou Edilma
Monteiro, “a discussão sobre quem é ou quem não é cigano pode ser encontrada sempre
em vários âmbitos” (2019, p. 152).
É importante lembrar que “ser cigano” depende da existência de “não-ciganos”,
ou seja, há uma espécie de fronteira entre quem se reivindica ser “cigano de verdade” e
aqueles que não são reconhecidos como “ciganos”. Com qual objetivo esta diferença é
levantada? De qual forma influência na tramitação do PLS nº 248/2015? A diferença
neste caso é um marcador de opressão e/ou de hierarquia? Com o objetivo de refletir
tais questões, escolhi algumas afirmações manifestadas durante as duas audiências
públicas que ocorreram em maio de 2018, a do MPF e a do Senado. Vejamos:
Sandra Lucero: Porque tem pessoas não ciganas que está usurpando o direito dos
ciganos. Na verdade, vai lá na comunidade (faz um gesto com as mãos), passa por nossa
realidade, simplesmente chega aqui ‘eu sou cigana’, enquanto o cigano de verdade está
sofrendo e não tendo o direito de vir reivindicar os seus direitos, eu não concordo.
Sinceramente eu não concordo. (TV SENADO, 2018b, meu destaque)

Mio Vacite: Eu vim aqui para falar com os ciganos, com minha cultura, não com pessoas
que se dizem ou tem um, como essa senhora que saiu daqui. (TV MPF, 2018)

Dinha: Agora, eu não concordo que a pessoa que não seja cigana chega aqui, ‘eu vou fazer
uma associação de cigano’. Eu acharia assim ‘eu sou simpatizante, eu estou ajudando’, é
mais polido, porque aí tirando os direitos. Por exemplo, uma pessoa que não é cigano vai
ocupar o lugar de outro que é cigano, que tá lá brigando por sua comunidade,
querendo requisitar seus direitos, não consegue. Eu acredito que simpatizante é
simpatizante, cigano é cigano. (TV MPF, 2018, meus destaques)

Maria Jane: Autodeclarantes não podem ser membros de diretoria de associação cigana
porque somos ciganos, já sofremos muito há mais de 500 anos que estamos no Brasil, que
viemos pro Brasil, e passamos todos os tipos de adversidade, vencemos sozinhos,
crescemos sozinhos, agora que o poder público está alcançando, tá vendo, tá enxergando,
mas eu quero deixar aqui o meu repudio para isso. (TV SENADO, 2018b, meu destaque)

É válido também citar a síntese que a assessoria da 6ª Câmara produziu, a partir


dos debates e contribuições das lideranças e “representações ciganas” no grupo de
whataspp criado pela assessoria do Senador Telmário Mota, em relação à proposta de

6
Esta pesquisadora, em tese de doutorado, construiu uma análise etnográfica sobre o processo de
codificação política da identidade cigana a partir de uma associação política, como, por exemplo, a União
Cigana do Brasil (UCB). Embora os estudos da antropóloga Mirian Souza no âmbito do Doutorado
tenham sido fundamentais para o desenvolvimento desta tese, sobretudo para pensar o associativismo
cigano, é importante registrar que seus principais interlocutores foram liderança da etnia Rom atuantes na
região Sudeste do Brasil e que são socialmente privilegiados. Enquanto a minha pesquisa traz de forma
inédita para a ciganologia reflexões acerca de processos políticos envolvendo preponderantemente
lideranças da etnia Calon, cujo os principais interlocutores, Maria Jane e Seu Wanderley, são de origem
popular e da nascidos na região Nordeste, sendo que este último atualmente vive no Distrito Federal.
182

definição de “população cigana” que consta no “art. 1º, inciso I” do PLS 248/2015.
Vejamos:
Deve ser usada a terminologia “Povos Ciganos”, no plural, para representar a
pluralidade dos povos ciganos no Brasil e abarcar todos eles (Rom, Calon,
Sinti e outros grupos e subgrupos eventualmente existentes).
- A denominação “Povos Ciganos” deve substituir a expressão “população
cigana”, que limita o alcance da proteção e não contempla essas
especificidades.
- Houve grande discussão no grupo a respeito da autodeclaração como
critério para reconhecimento dos ciganos.
Foi manifestada, por vários integrantes do grupo, preocupação acerca de
pessoas que se atribuem falsamente a identidade de ciganos, com o
objetivo de obter vantagens financeiras, acessar políticas públicas
destinadas às comunidades ou apresentar-se publicamente, sobretudo em
atividades cultuais, como ciganos. Foi relatado, ainda, que diversas
pessoas realizam atos ilícitos, até mesmo crimes, e são associadas aos
ciganos, o que traz prejuízos graves a todas as comunidades.
Foram prestados esclarecimentos no sentido de que a autodeclaração é
bilateral, ou seja, além da declaração da própria pessoa, deve também
haver o reconhecimento da comunidade a que pertence. Isso protege as
comunidades e dificulta a falsa atribuição de identidade. A proposta do
Estatuto já avançou nesse sentido.
Ainda assim, a polêmica persiste, e é retomada na discussão dos artigos
subsequentes. (PGR, 2020, meus destaques)

Diante dos discursos das audiência públicas, assim como da síntese elaborada
pela assessoria da 6ª Câmara acerca das “contribuições do grupo”, que foram
compartilhadas acima, proponho novas reflexões. Por que haveria pessoas “usurpando”
a identidade “cigana”? Qual seria o interesse destas pessoas, “autodeclarantes”, em se
passarem por ciganas, se esta população enfrenta tantos preconceitos? Por qual motivo é
delimitado uma fronteira entre ser “cigano” versus “autodeclarante”, usurpador e
simpatizante?7 Em outros espaços que acompanhei, como encontros institucionais ou
reuniões de conselhos de Estado, notei também ser recorrente estas disputas e
questionamentos quanto à “ciganidade” de determinadas pessoas que circulam em
ambientes institucionais, falando ou atuando em nome dos “ciganos”.
Percebi que uma mesma pessoa pode ser reconhecida como “cigana” por uma
determinada liderança ou um conjunto de “referências ciganas” e simultaneamente não
ser reconhecida como “cigana” por outros grupos, o que muitas vezes quer dizer que
não está autorizada a falar em nome ou representar os “ciganos”. E o inverso também
acontece com frequência. Mas existem elementos que compõem uma unicidade neste
constructo de “ser cigano”. Trata-se de uma classificação que não é estática e que

7
Mirian Souza identificou a expressão simpatizante enquanto uma categoria nativa adotada pelo seu
principal interlocutor da pesquisa de Doutorado, Mio Vacite, que foi fundador e presidente da UCB.
Segundo a pesquisadora, esta categoria é “usada para descrever pessoas que possuem interesse pelos
ciganos, mas que não pretendem se tornar um deles, vestindo-se e adotando o seu modo de vida.
Pesquisadores são frequentemente enquadrados nessa categoria” (2013, p. 230).
183

também não deixa de ser uma forma de hierarquizar, isto é, definir quem pode e quem
não pode ocupar certos espaços na burocracia estatal.
Para Mirian Alves de Souza, no caso dos agentes públicos ciganos que atuam no
Brasil, a ideia de autenticidade pode ser mobilizada publicamente para desqualificar
agentes políticos concorrentes, que disputam espaços políticos, institucionais ou não.
“Os projetos identitários explorados ao longo da tese indicam que os agentes políticos
procuram construir seu discurso como autêntico para, desse modo, normatizar a
ciganidade e controlar a produção da etnicidade” (2013, p. 58, meus destaques).
No grupo, por exemplo, ocorreram diversos momentos em que alguns
participantes foram acusados de “não ser cigano”, cujo objetivo era justamente
questionar ou desautorizar a atuação em torno de pautas que envolvem a “questão
cigana”. Geralmente aqueles e aquelas cujo o pertencimento à identidade cigana não se
dá pela ascendência, como é o caso de uma liderança do Sudeste do Brasil, que embora
fosse reconhecida pela sua comunidade pelo fato de ser casada com um cigano da etnia
Calon, e também por outras “representações” que faz parcerias em espaços de
reivindicação de direitos, em diversos momentos foi “acusada” de “não ser cigana”.
“Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a instabilidade da
identidade, é nas próprias linhas de fronteira, nos limiares, nos interstícios, que sua
precariedade se torna mais visível” (SILVA, 2007, p. 98). As fronteiras estabelecidas, a
partir de diferentes critérios da “ciganidade”, são variáveis, perpassa por disputas de
espaços, por visibilidade e protagonismos. No caso dos ciganos, para entender este
momento entre fronteiras na questão identitário, é preciso compreender que “a tradição
cultural cigana engloba diversas subtradições que constituem um todo heterogêneo,
coexistindo muitas vezes de forma conflituosa. Entretanto, formam paradoxalmente
uma unidade que exprime uma realidade mesclada, borrada e dinâmica” (REZENDE,
2000, p. 116).
Não interpreto que a classificação “cigano de verdade” ou “cigano de sangue”
constitua uma forma de opressão em relação àqueles que estão fora desta fronteira, não
no sentido de opressão estrutural. Entendo estas disputas como uma forma de reação à
invisibilidade e à falta de representatividade que muitas pessoas que se identificam
como “ciganas” afirmam sentir, sobretudo aqueles e aquelas que viveram ou ainda
vivenciam situações de violência provocada de alguma forma pelo “anti-ciganas”.
Trata-se de um mecanismo acionado nas disputas por espaços, narrativas e
protagonismos, cuja noção de legitimidade para atuar como sujeito e interlocutor da
184

causa “cigana” é, em geral, fundada a partir de parâmetros étnico-raciais, ou seja, a


descendência.
Na verdade, a delimitação da fronteira da “ciganidade”, assim como sua
normatização, ou seja, quem é “cigano” ou “cigana” e quem não é, vem acompanhada e
está relacionada a uma disputa: quem pode e quem não pode falar como “cigano” ou
quem pode e quem não pode ocupar determinados espaços representando tal segmento
étnico. Não é por acaso que há quem reivindique nos espaços públicos e da burocracia
estatal critérios mais rigorosos e outros que proponham parâmetros mais abertos e
flexíveis para definir que é “cigano”. Percebi tanto no grupo de Whatsapp, como nas
audiências públicas ou nos demais eventos políticos a serem suscitadas dúvidas quanto
ao pertencimento de determinadas pessoas que não informam, por exemplo, a etnia e a
sub etnia, e principalmente nos casos que não possuem ligações familiares, como já
falei anteriormente.
Está mais que evidente que a “definição de cigano” é questão mais polêmica no
processo legislativo do PLS 248/2015 e que não há consenso. E certamente só há
disputa nesta pauta pois o que está em jogo é a busca por legitimidade, sobretudo para
atuar dentro do movimento cigano e nos espaços de interlocução com as instituições. A
proposição de um outro projeto de “Estatuto”, o PL 2703/208, confirma a falta de
consenso e ao mesmo tempo as disputas em torno da “definição de cigano”. Além
disso, interpreto o fato da “definição de cigano” do segundo projeto adotar um critério
mais abrangente e flexível é mais um reflexo, na verdade, do interesse dos seus
idealizadores para que mais pessoas possam se identificar e ser reconhecidas como
“ciganas”.
Compartilho abaixo a “definição de cigano” do PL e a apresentada no relatório
legislativo do Senador Hélio José em 21/06/2018.

Tabela 6 - A “definição de cigano” nas diferentes propostas de Estatuto

PL 2703/20 PLS 248/2015

Considera-se cigano o indivíduo que se Para efeito desta Lei, considera-se povo
autodeclara e é reconhecido por outros cigano o conjunto de indivíduos de origem
indivíduos e/ou coletivos ciganos como e ascendência cigana que se identificam e
ciganos, considerando sua são identificados como pertencentes a um
consanguinidade e genealogia, podendo grupo étnico cujas características culturais
ou não apresentar uma cultura distinta da

8
Na segunda parte do último capítulo eu esclareço porque eu interpreto o segundo projeto como uma
forma de fazer oposição, no sentido de contraponto ao PLS 248/2015.
185

sociedade nacional. o distinguem, como tal, na sociedade


nacional.

Embora o “PL” adote formalmente o critério da “heteroidentificação”, a


expressão “podendo ou não apresentar uma cultura distinta da sociedade nacional” além
de indicar um parâmetro mais amplo de “ciganidade” é também ambíguo, o que não é
por acaso. Ao mesmo tempo que se exige levar em consideração o pertencimento à
identidade cigana com base na consanguinidade e na genealogia, permite que pessoas
que não apresentam “cultura distinta da sociedade nacional” se identifiquem como
“ciganas”. A definição adotada no “PL” reconhece a possibilidade de pertencer à
“identidade” sem ter a “cultura cigana”, ou seja, sem a pessoa ter tido uma sociabilidade
construída em “comunidade” ou “família extensa cigana”9.
Parto da hipótese que antes de 2005, ano que segundo Franz Moonen (2011, p.
8), no Brasil, “as primeiras políticas pró-ciganas” começaram efetivamente, esta disputa
não fizesse tanto sentido. E por que digo isso? Na medida que “ser cigano” possibilita
agir politicamente, acessar determinados espaços ou ser ouvido pelo Estado para
negociar e reivindicar direitos, arrisco afirmar que esta disputa e fronteira em torno do
que é ser “cigano” deve ter se tornado mais comum e ganho relevância. Pelo menos, é
como interpreto a seguinte afirmação destacada da fala de Maria Jane, que já ouvi ser
dita de outras formas por diferentes lideranças: “agora que o poder público está
alcançando, tá vendo, tá enxergando”.
O que é reportado pela liderança Maria Jane no parágrafo acima se aproxima de
uma fala que ouvi de outra “referência cigana”. Trata-se da resposta de Mirian
Stanesco10 ao apresentador de um programa de talk show brasileiro, Jô Soares, durante
entrevista concedida na TV Globo no ano de 2007, que perguntou se “quando um

9
Esta definição é defendida por um agente público que se identifica como “cigano” e que atuou no
governo federal em 2019 na Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Ele reivindica a sua
“ciganidade” por alegar ser filho biológico de um pai cigano, fato que descobriu na adolescência, embora
tenha sido adotado e criado por um casal de origem japonesa e libanesa. Inclusive publicou um livro em
que defende a possibilidade de existência de cigano “reindentificado”, que assim como seu caso descobriu
a origem cigano e passou a se identificar como tal. Por essa razão eu especulo que este agente que atuou
e colaborou com o governo está entre os idealizadores do “PL”, questão que eu abordo com mais detalhes
no último capítulo desta tese.
10
“A cigana Miriam Stanescon Batuli De Siqueira é bacharel em direito e tem orgulho de declarar-se a
‘primeira cigana bacharel em direito no Brasil’ ou a ‘primeira Dra. cigana no Brasil’, conquista realizada
nos ano de 1990 na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Miriam é cartomante, presidenta da
Fundação Santa Sara Kali (FSSK) e ex-Conselheira da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ,
Delegada da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Membra do GT de Enfretamento a intolerância
e Discriminação Religiosa e Promoção dos Direitos Humanos – Superintendência de Direitos Individuais
da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) - e foi representante cigana na
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) do Estado” (MAIA; CAMPOS, 2018,
p. 12).
186

cigano se sedentariza continua sendo cigano”. Ela respondeu: “tá acontecendo um fato
sui generis porque quem é cigano escondem que é cigano por medo de preconceito e
quem não é está assumindo uma ciganidade que não é dele” (STANESCO, 2007,
meu destaque).
Ao longo do processo legislativo do PLS 248/2015, podemos perceber que a
“ciganidade” é também mobilizada para indicar ou questionar a legitimidade de
determinados atores que surgem nesta trama. Por exemplo, para algumas
“representações ciganas” que conversei durante a pesquisa de campo, os
“espiritualistas” não deveriam ser reconhecidos como uma categoria dentro da
“ciganidade”, pois são “falsos ciganos” que usurpam os espaços públicos e/ou políticos
autodeclarando-se “ciganos”.
Para Maia e Campos, “ciganos de espírito”, por exemplo, podem ser “médiuns”
que fazem parte de grupos religiosos, pessoas que afirmam incorporar “espíritos
ciganos” (2018, p. 17). Lembrando que na umbanda, doutrina brasileira que sintetiza
vários elementos das religiões africanas e cristãs, o “cigano” é uma entidade, assim
como os “caboclos”, “pretos-velhos”, “exus”, “pombas-giras”, “malandros”,
“marinheiros, “sereias” (personagens conservados no imaginário popular brasileiro),
que pode se manifestar em algumas pessoas por meio do fenômeno da possessão
(BARROS, 2012). Ou seja, são pessoas que reivindicam o pertencimento à
“identidade” ou à “cultura cigana” sem necessariamente ter descendência/
origem/sociabilidade constituída a partir de famílias/comunidades ciganas, mas sim por
ter relações espirituais.
Por sua vez, a pesquisadora Mirian Souza pondera que tais categorias , “cigano
de alma” e “cigano de espírito” - não se limitam ao aspecto religioso. Esta autora
destacou que conheceu pessoas que se afirmam “ciganos de alma” em razão de sua
identificação com a cultura cigana, em particular com dança e música. Por isso,
concluiu que “os ciganos espirituais e os ciganos de alma são categorias relacionais e
não passíveis de descrições fechadas e rigorosas” (2013, p. 221, grifo da autora)11.
Não há dúvidas que esta disputa em torno da definição da “ciganidade” se
refletiu nas mudanças ocorridas no texto do PLS nº 248/2015 com as votações nas
comissões especiais. Como se trata de um marco legal específico direcionado aos

11
Segundo a pesquisadora Claudia Bomfim da Fonseca, a construção da identidade da “cigana de alma”
se baseia no cruzamento das definições de “pomba-gira-cigana” e de “cigana espiritual”. Esta autora
percebeu na etnografia realizada em aulas de dança cigana e da dança flamenca no Rio de Janeiro um
processo de valorização da “ciganidade” que está relacionada a“um fato que parece singular na cultura
brasileira: O de extrapolar as dimensões da consangüinidade e etnia criando um cigano virtual, ou de
uma identidade étnica formal” (2002, p. 67, grifos da autora).
187

“ciganos”, são exigidos parâmetros para definir “quem são os ciganos”, como ocorre no
“Estatuto do Índio” e na “Convenção n° 169 da OIT”, ambos instrumentos citados como
referência de instrumento jurídico ao longo do processo legislativo do “Estatuto do
Cigano”. Qualquer que seja critério para definir “o que é ser cigano”, caso o projeto seja
aprovado, terá “força de lei”, normatizando o parâmetro adotado pelo Estado brasileiro
para definir “quem é” ou “quem não é cigano”.
A seguir, no próximo subtópico, compartilharei os critérios legais vigentes, que
são adotados no Brasil para validar a “autodeclaração” de ciganos, quando se é
requisitado, nas políticas públicas afirmativas ou nas demais políticas públicas.

3.1.2 - A legalidade da autodeclaração no Brasil

A “Nota Técnica nº 5/2018-6CCR”, documento emitido pelo MPF, apresentou


uma série de sugestões para serem levadas em conta em face da tramitação do “Estatuto
do Cigano”. Uma delas refere-se a definição e os critérios para se identificar os
“ciganos”, seguindo a mesma perspectiva apresentada por Seu Wanderley12, assim como
as mudanças que ocorreram no texto de lei, por meio dos “pareceres” aprovados nas
duas primeiras comissões por onde passaram o PLS n° 248/2015. Segundo o documento
apresentado pela “6ª Câmara”:
não basta, como pode-se aferir numa leitura precipitada do texto, que alguém
se autoatribua a condição de ‘cigano’ para ser portador dessa identidade. É
necessária que sua comunidade ou grupo também o reconheça nessa
condição, para que se complete o critério bilateral que nos empresta a
Convenção 169. (MPF, 2018, p. 11)

A Convenção 169 da OIT, citada na Nota Técnica do MPF, oferece, em seu


artigo primeiro, os critérios para identificar os sujeitos a quem devem ser destinados os
direitos previstos neste tratado internacional. Vejamos:
Artigo 1º . 1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais,
culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade
nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios
costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de
descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica
pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do
estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação
jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas,
culturais e políticas, ou parte delas.

12
Refiro-me à posição de Seu Wanderley durante o diálogo gravado com a TV Senado, assim como levo
em contas as conversas que tivemos quando visitei e passei finais de semana no Acampamento Nova
Canãa.
188

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada


como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as
disposições da presente Convenção. (BRASIL, 2004x, meus destaques)

O Brasil, formalmente, recepcionou este tratado internacional mediante o


Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Segundo o jurista Roger Raupp Rios, do ponto
de vista normativo, “o ordenamento jurídico brasileiro privilegia a autodeclaração como
critério de reconhecimento de pertença a determinado grupo, seja no âmbito da raça,
seja nas discussões sobre etnia, conforme a Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), de 1989” (2018, p. 224). Esta interpretação pode
parecer distante da perspectiva da 6ª Câmara, que citou este tratado internacional para
defender a adoção do critério bilateral no “Estatuto do Cigano”.
Assim como a posição do MPF na Nota Técnica, o jurista Pedro Mattei também
interpretou que a referida Convenção adotou, ao mesmo tempo, o critério objetivo e o
critério subjetivo para realizar a identificação dos sujeitos destinatários. Segundo este
autor, o critério objetivo equivale à “distinção de um grupo com o resto da sociedade,
enquanto o critério subjetivo utilizado é a autodeclaração, que consiste na vontade do
grupo ser e permanecer distinto do resto da sociedade em decorrência do exercício da
autodeterminação” (2015, p. 6). É válido citar a compreensão da ministra Rosa Weber,
do Supremo Tribunal Federal acerca do o teor do art. 1°, itens 1 e 2, da Convenção
169/OIT, no âmbito da ADI 3239 13. De acordo com esta ministra:
O conceito de consciência da própria identidade indígena ou tribal, tal
como expresso naquela normatividade, reporta-se a dado objetivamente
aferível, não obstante este dado – a consciência – manifeste um fenômeno
psíquico, essencialmente subjetivo – ou intersubjetivo. A consciência da
identidade não se impõe de modo solipsista, não se imuniza ao controle
social da legitimidade da sua pretensão de verdade. Os mecanismos para
atestar a autodefinição devem ser compreendidos como meios pelos quais
essa consciência de grupo pode ser identificada, aferida e exteriorizada, e
não como indutores de uma característica. (BRASIL, 2018j p. 39)

Como se pode perceber, o que se está em jogo é alcance do da expressão


“consciência da própria identidade” prevista no texto do tratado internacional. Frisa-se
que o voto da ministra Rosa Weber prevaleceu na corte constitucional brasileira, o que
significa que este tribunal se manifestou favoravelmente ao entendimento que a redação
da Convenção 169 da OIT pauta a “heteroidentificação”, que pressupõe a existência
mecanismos que “ateste a autoidentificação”. E é justamente no processo de validação
da “autodeclaração” que se leva em conta os critérios objetivos. Algumas lideranças

13
“Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003,
garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. A
decisão foi tomada na sessão desta quinta-feira (8), no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 3239, julgada improcedente por oito ministros” (BRASIL, 2018j).
189

que participaram do grupo de discussão sobre o PLS 248/2015 defendem que o


“reconhecimento” seja da comunidade ou da família cigana de origem, uma fronteira
erguida por relações sociais e principalmente.no sentido de pertencimento étnico,
proposta que busca restringir as possibilidades de ser identificado como tal.
Embora a Convenção nº 169 não se refira expressamente aos “ciganos”, não há
dúvidas que este segmento está contemplado dentro do conceito de “povo tribal”.
Segundo o Enunciado nº 17, emitido pelo MPF, “as comunidades tradicionais estão
inseridas no conceito de povos tribais da Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho”.
O Ministério Público Federal, por meio da referida Nota Técnica, propõe um
critério para definir os “ciganos” que se aproxima da reivindicação de algumas
lideranças que eu tive contato ao longo da pesquisa de campo. Vejamos:
a) A autodeclaração e consciência de sua identidade; e
b) O reconhecimento de sua identidade por parte do grupo de origem
[...]
São, portanto, ciganos, aqueles que assim se denominarem, ou adotarem a
denominação de um dos grupos ou subgrupos que compõem a etnia cigana
(Rom, Sinti, Calon ou algum de seus subgrupos) e que forem expressamente
reconhecidos como tais pelo grupo de origem. (2018, p. 11, meus
destaques)

Para Eliane Moreira e Melissa Pimentel, “o direito à identidade e diversidade


cultural estão presentes em diversas passagens da Constituição Federal de 1988, mas
sobretudo nos artigos 215 e 216” (2015, p. 161), dispositivos que dão base ao “direito à
autoidentificação”. Segundo O’Dwyer, a questão central para a identificação das
comunidades não devem ser as diferenças culturais entre grupos percebidas por um
observador externo, mas sim os “sinais diacríticos”, isto é, aquelas diferenças que os
próprios atores sociais consideram significativas e que, por sua vez, são revelados pelo
próprio grupo (O’DWYER, 2002, p. 268).
A “justificação” do texto inicial do “Estatuto do Cigano” indica que este projeto
de lei foi apresentado “nos moldes do Estatuto da Igualdade Racial” (2015c, p. 5). O art.
1º, inciso IV, da Lei nº 12.288, de 20 de janeiro de 2010 (Estatuto da Igualdade Racial),
define população negra “como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e
pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE, ou que adotam definição
análoga”. Ou seja, propõe o critério da “autodeclaração” unilateral.
O “relatório legislativo” do Senador Hélio José, ao propor mudanças na redação
do “Estatuto” que trata da identificação das “pessoas ciganas”, sugeriu que fosse
“adotado formato semelhante ao existente na Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973,
que institui o Estatuto do Índio” (2016d, p. 4). Na verdade, o que acontece é que este
190

instrumento jurídico, diferentemente da Convenção 169 da OIT, adotou, de forma


explícita, o critério bilateral para identificar quem são os “indígenas”. Vejamos:
Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir
discriminadas:
I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência
pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um
grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional; (BRASIL, 1973, meu destaque)

Enquanto o “Estatuto do Cigano” não é aprovado, a “autodeclaração unilateral”,


sem a exigência de uma contrapartida, vem sendo o critério utilizado pelas instituições
governamentais federais para identificar as pessoas ou famílias “ciganas”, quando essas
buscam acessar serviços destinados aos “povos tradicionais” em situação de
vulnerabilidade social. Posso citar dois exemplos de políticas públicos: o cadastro único
para Programas Sociais14 e a Resolução nº 03/2012 do MEC, que define diretrizes para o
atendimento de educação escolar para populações em situação de itinerância.
A partir do ano de 2011, o cadastro único para Programas Sociais (Cadúnico)
passou a permitir a identificação de famílias que fazem parte de grupos específicos
(segmentos sociais e étnicos), como os “ciganos”. Segundo o documento formulado e
publicado pelo Poder Executivo federal, “a identificação das famílias entrevistadas a
cada uma dessas categorias se dará por meio da autodeclaração” (BRASIL, 2011).
No caso das diretrizes para o atendimento educacional de pessoas em situação de
itinerância, conforme a Resolução n° 03/2012 do MEC, cita-se, expressamente, os
“ciganos”, no art. 1º, como um dos possíveis públicos alvos, e estabelece, no art. 2°, o
critério da “autodeclaração ou declaração dos responsáveis” (BRASIL, 2012c). Esta
resolução do MEC também se refere a outros segmentos, como: indígenas, povos
nômades, trabalhadores itinerantes, acampados, circenses, artistas e/ou trabalhadores de
parques de diversão e de teatro mambembe.
A União, embora adote apenas a “autodeclaração” como critério de
identificação, no âmbito do Cadúnico, define e estabelece supostas características dos
“ciganos”, por meio do “Guia de Cadastramento de Grupos populacionais tradicionais e

14
O Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) é um instrumento de coleta de dados e
informações com o objetivo de identificar todas as famílias de baixa renda existentes no País. As pessoas
cadastradas podem acessar os seguintes programas: Programa Bolsa Família, Tarifa Social de Energia
Elétrica, Carteira do Idoso, Programa Minha Casa Minha Vida, Programas Cisternas, Águas para Todos,
entre outros. Disponível:
<http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/mds-pra-voce/carta-de-servicos/usuario/cadastro-unico-1/quais-p
rogramas>. Acesso em 11 jul. 2020.
191

específicos”15 e do “formulário suplementar” para orientar os servidores públicos e


demais pessoas que trabalhem com esta questão. Vejamos abaixo a descrição sugerida:
Ser cigano é ser filho de cigano, viver em comunidade e participar de sua
cultura. Dessa forma, uma das principais características dos povos ciganos é
que sua condição é dada pela hereditariedade, ou seja, há vínculo de
parentesco entre os membros do grupo e eles se organizam, na maior parte
das vezes, em torno da família e da comunidade. Em maior ou menor grau,
quase todos os povos ciganos compartilham o sentimento de não pertencer
a um único lugar e dão valor à liberdade de deslocamento. (BRASIL,
2012a, p. 11, meu destaque)

[...] espírito viajante e sentimento de não pertencer a um único lugar; noção


particular de propriedade; leis e regras próprias; comunidade estruturada em
torno da unidade familiar; e liderança comunitária exercida por uma
figura masculina. (BRASIL, 2012a, meu destaque)

É possível afirmar que as descrições adotadas, oficialmente, pela União para


identificar os “ciganos” são influenciadas por diferentes perspectivas da “ciganidade”,
que se entrecruzam. Até porque não se constroem isoladamente. Estes documentos
oficiais adotam ao mesmo tempo perspectivas do “senso comum”, que reforça
representações sociais e estigmas que historicamente foram associados aos “ciganos”,
como “espírito viajante” e “sentimento de não pertencer a um único lugar”, supostos
comportamentos e práticas culturais tratados como inerentes à natureza (à condição
biológica) das pessoas “ciganas”.
Não se pode confundir “ter que se mudar para sobreviver”, em busca de trabalho
e renda, com “espírito viajante” ou qualquer outra descrição desta natureza. Muitas
vezes as mudanças e os deslocamentos entre diferentes territórios foram e são
motivados por perseguições, hostilidades vivenciadas pelas pessoas “ciganas”, pelo
menos é o que noto nas narrativas que ouço. É importante observar o contexto em que
se dá a itinerância. A descrição adotada na cartilha reforça a essencialização do
nomadismo como característica inerente aos “ciganos”. Por isso, é comum ouvir o
seguinte questionamento: “a pessoa continua sendo cigana quando não é mais
nômade?”.
Além disso, a descrição do respectivo “Guia” contribui também para a
cristalização de outras práticas culturais ou representações sociais associadas às
“famílias ciganas”, insinuando que estas são sempre chefiadas por uma “liderança

15
Este Guia traz orientações sobre as “famílias ciganas (Código 101)”, “famílias extrativistas (Código
201)” , “famílias de pescadores artesanais” (código 202), “famílias pertencentes às comunidades de
terreiro (código 203)”, “famílias ribeirinhas (código 204)”, “famílias de agricultores familiares (código
205), “famílias assentadas da reforma agrária (código 301)”, famílias beneficiadas do programa nacional
de crédito fundiário (código 302)”, “famílias acampadas (código 303)”, famílias atingidas por
empreendimentos de infraestrutura (código 304), “famílias de presos do sistema carcerário (código 305)”,
“famílias de catadores de material reciclável (código 306)”, “famílias resgatadas da condição de trabalho
análoga à escravidão (código 307)”.
192

masculina”. Em minhas vivências, pelo contrário, eu pude presenciar e acompanhar


comunidades e famílias que são lideradas, no aspecto externo de interlocução com a
burocracia estatal, por mulheres. Não posso afirmar que conheço todas as comunidades
e/ou famílias brasileiras que se identificam como “ciganas” para indicar qual a
porcentagem ou média de mulheres “ciganas” que exercem o papel de liderança
comunitária. Embora possa parecer mais comum que os homens exerçam a função de
liderança, de acordo com os relatos de diferentes pessoas “ciganas” que conheço,
inclusive de mulheres, é um equívoco afirmar que apenas a “figura masculina” seja
capaz de liderar uma comunidade, como sugere a descrição do documento do Cadúnico.
Inclusive, a forte presença de mulheres “ciganas” durante o IV CONAPIR, nas
audiências públicas do MPF, assim como do Senado, revelam justamente o contrário
desse entendimento. Além disso, pude perceber que as posições das mulheres ciganas,
mesmo em comunidades lideradas por “figuras masculinas” também são levadas em
consideração nas tomadas de decisões importantes para a família16, assim como há a
contribuição dos homens no desempenho de algumas atividades domésticas enquanto as
mulheres estão trabalhando externamente17.
Sobre o protagonismo político das mulheres ciganas em ambientes da esfera
pública, é fundamental esclarecer três pontos. Primeiro que este fator não deve também
ser essencializado, mas compreendido, ou seja, entender o que contribui para que haja
uma presença significativa das mulheres ciganas em espaços de interlocução com a
burocracia estatal. Em umas das conversas que tive com Luciano Maia, durante uma
audiência pública do MPF realizada no município de Patos, voltado para comunidade
Calon do sertão paraibano, em março de 2017, o Procurador da República me deu
algumas dicas sobre as possíveis razões, comentando comigo que o fato das mulheres
serem a grande maioria naquele evento se deve muitas vezes ao receio dos homens
ciganos em aparecerem em público, principalmente devido aos possíveis problemas que
tiveram com a polícia ou que possam vim a ter com a justiça em geral. Além desse
elemento, que faz sentido, eu atribuo também, assim como acontece no movimento de

16
Por exemplo, tanto no Acampamento Nova Canãa, como na comunidade cigana liderada pela
ASCOCIC ouvi relatos que caso haja necessidade de mudança de cidade, por exemplo, a opinião de todos
é levada em consideração, inclusive das mulheres, mas sobretudo das pessoas mais velhas.
17
Mais uma vez citando o contexto do Acampamento Nova Canãa e da ASCOCIC, neste primeiro, nos
dois finais de semana que dormi, enquanto as mulheres estavam nas feiras livres da região vendendo pano
de prato quem providenciou o meu café da manhã e o almoço, assim como quem estava responsável pela
limpeza do rancho era os homens, principalmente os mais jovens. No caso da ASCOCIC, que
acompanhei mais de perto nos últimos 6 anos, fui testemunha que durante as inúmeras viagens de Maria
Jane para participar de compromissos políticos externos quem ficava responsável pelo cuidado da casa e
dos filhos era seu marido, Antônio. Além do fato desta liderança se dividir em múltiplas funções, as
responsabilidades com a família, com os negócios feitos em conjunto com o marido, a militância política
e os estudos, uma vez que concluiu durante a fase adulta o curso de Pedagogia.
193

moradia onde as mulheres se destacam nas ocupações urbanas, que a militância política
das mulheres ciganas em face do Estado, reivindicando políticas públicas, acaba sendo
uma continuidade das responsabilidades que historicamente são atribuídas ao feminino,
relacionados ao cuidado do outro, da família, como é o caso da saúde de educação.
Quanto aos demais pontos, esclareço que as mulheres ciganas que presenciei e
acompanhei se destacando em espaços da esfera pública não necessariamente se
movimentam no sentido de enfrentar sexismo ou de serem contrárias a divisão a sexual
do trabalho, mas que agregam atribuições, tanto as funções domésticas, assim como o
ativismo em prol da coletividade. Por outro lado, notei também que a condição de
mulher de algumas referências ciganas é muitas vezes mobilizada por outras lideranças,
em especial homens de diferentes famílias ou comunidades ciganas, no sentido de
descredibilizá-las.
Ao mesmo tempo, a definição de “ciganos” no “Guia do Cadúnico” envolve
outras duas perspectivas que podem ser mobilizadas para tratar da “ciganidade”: a
étnico-racial e a sociocultural18. Em primeiro lugar, ao se afirmar que a “ciganidade” é
uma “condição [...] dada pela hereditariedade” ou “vínculo de parentesco entre os
membros do grupo”, adota-se o viés étnico-racial. Por outro lado, ao se utilizar a
expressão “viver em comunidade e participar de sua cultura”, utiliza-se a perspectiva
sociocultural.

18
Estas perspectivas, categorizadas como “étnico-racial” e “sociocultural” estão descritas na obra “Ser
cigano: a identidade étnica em um acampamento Calon itinerante”, do ativista, que se identifica como
cigano, pastor e sociólogo (I.S., 2018). Elas somam-se à tentativa de fundamentação da “ciganidade”
sintetizada pela palavra “reindetificado”, que o próprio autor da obra mobiliza para justificar seu
pertencimento étnico e atuar politicamente como cigano em espaços da burocracia estatal e no contexto
do associativismo. Por isso é importante contextualizar que o autor desta obra não cresceu, nem constituiu
sua sociabilidade em uma família cigana e supostamente descobriu na fase adulta que seu pai biológico
seria “cigano”, sendo que a partir de então passou a se “identificar” enquanto tal. Isto é, passou a
mobilizar identidade cigana para atuar politicamente em acampamentos e comunidades da região Sul do
Brasil, se inserindo também na condição de pastor, e em seguida conseguindo alcançar um cargo
comissionado de gestão no Governo Bolsonaro. Este ator social é chamado nesta tese pelo pseudônimo
“Jorge Garcia” e sua importância para a trama do PLS 248/2015 foi explorada no quarto capítulo..
194

Imagens 18 à 20 - Ilustrações presentes em cartilhas do governo sobre as


condições de moradia de “famílias ciganas”
195

Fonte: Acervo do Guia de Cadastramento de Grupos Populacionais Específicos e


Tradicionais (BRASIL, 2012).

O que acontece com aqueles e aquelas que são “filhos de ciganos”, mas não
vivem ou deixaram de viver em/na comunidade? Estas pessoas deixam de ser “ciganos”
ou “ciganas”? Para “ser cigano” é preciso preencher todos elementos previstos na
descrição do documento do governo? Com base nas minhas experiências, caso seja ou
fosse adotada uma interpretação literal destas descrições, nem todas pessoas que
reivindicam ser “ciganas”, que surgem ao longo da tramitação do PLS nº 248/2015 ou
em outros espaços políticos que discutem a condição jurídica política dos ciganos,
poderiam ser consideradas “ciganas”.
De uma certa forma, a previsão de guias e cartilhas, enquanto instrumentos
orientadores de políticas públicas, estão contribuindo em geral para a construção da
condição político jurídica dos “povos ciganos” no Brasil, já influencia o seu dispositivo,
processo que não deixa de ser atravessado pela tentativa de normatização do que é “ser
cigano”.
Além das cartilhas do governo federal, é possível identificar outras políticas que
também contribuem para este processo de normatização da “ciganidade”. Aqui,
refiro-me às políticas afirmativas de ingresso em universidades voltadas ao público
196

“cigano”, como é o caso da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e da Universidade


Estadual de Feira de Santana (UEFS)19.
Cumpre destacar a Resolução nº 1.339/2018, da Universidade Estadual da Bahia,
que aprovou a “sobrevagas” para pessoas “ciganas”, isto é, acréscimo de 5% de vagas,
para “ciganos” em todos os cursos de graduação e pós-graduação dessa instituição de
ensino. Trata-se da primeira política afirmativa em universidade destinada à população
“cigana” no Brasil. Lembrando que esta mesma resolução contemplou também:
quilombolas; pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades;
transexuais, travestis e transgênero. No primeiro ano em que se efetivou esta resolução,
em 2019, de 130 cursos de graduação oferecidos, apenas 6 candidatos que se declararam
“ciganos” foram aprovados20.
A política afirmativa da UNEB adota o critério da “heteroidentificação”21 pois,
além da “autodeclaração de pertencimento étnico”, o candidato precisa também
apresentar uma série de documentos para validar a “autoidentificação”. Em caso de
aprovação no vestibular, o processo seletivo exige que o candidato que esteja se
identificando como “cigano” apresente os seguintes documentos: a autodeclaração e um
memorando étnico autodescritivo acompanhado de duas declarações de pertencimento
étnico, assinado por dois líderes de famílias “ciganas” diferentes e a assinatura de uma
associação “cigana”. Não obstante a apresentação destes documentos, o candidato deve
também ser entrevistado, isto é, passar por um processo de validação, que é pessoal e
presencial, conduzido por Comissões Departamentais de Validação da Autodeclaração.
A política de “sobrevagas” para pessoas “ciganas” não descreve o que é “ser cigano” ou
quais são as características de uma pessoa “cigana”. Na verdade, são elencados os
parâmetros, isto é, os critérios para validação a identificação enquanto “ciganos”,
aqueles que devem ser contemplados por esta política pública.
O site da UNEB disponibiliza dois modelos de declaração, a “autodeclaração de
pertencimento étnico” e a “declaração de liderança”, que devem ser apresentados pelo
19
A UEFS adotou o mesmo critério da UNEB para promover a inclusão de pessoas ciganas nos cursos de
graduação e pós-graduação oferecidos pela instituição. Esta política afirmativa começará a valer a partir
dos processos seletivos das turmas de 2020.2.
20
Esta informação foi fornecida pelo ativista e intelectual cigano Jucelho Dantas em grupo de whatsapp
que temos em comum, administrado por Maria Jane. Em entrevista aberta, que realizei em janeiro de
2019, Jucelho Dantas, que também é professor universitário e dirigente sindical na UEFS, afirmou que foi
consultado e contribuição para a elaboração da política afirmativa criada na UNEB.
21
Segundo Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz, “a recente Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de
2018, da Secretaria de Gestão de Pessoas, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão –
que revogou a Orientação Normativa nº 3, de 1º de agosto de 2016 – passou a regulamentar o
procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de
preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei nº 12.990, de 9
de junho de 2014. Embora tenha aplicação restrita aos concursos públicos federais, o documento tem
servido de parâmetro para concursos estaduais e municipais, bem como para universidades” (2018, p. 67).
197

candidato após serem aprovados no processo seletivo, no momento em que se matricula.


Na “declaração de pertencimento étnico”, o candidato deve preencher um documento
afirmando “ser cigano” de uma determinada “origem” e qual “família cigana” pertence.
Além da “declaração de pertencimento étnico”, o (a) candidato (a) deve apresentar um
“Memorial étnico autodescritivo” que corresponde a um:
[...] texto narrativo, escrito na primeira pessoa do singular, que cumpre a
função de registrar o sentimento de pertença e a ascendência; as relações e a
convivência comunitária; a participação nas práticas econômicas e políticas; a
assunção e o compartilhamento dos valores e práticas culturais. A produção
escrita, digitada ou manuscrita, deve explicitar o pertencimento étnico e
evidenciar as relações do candidato com a comunidade da qual alega fazer
parte. (BAHIA, 2018, meu destaque)

O “Memorial étnico autodescritivo” deve ser acompanhado de duas declarações


de pertencimento étnico, assinadas por diferentes lideranças ciganas (uma por líder da
família extensa do candidato e a outra por um líder de família extensa da mesma cidade
ou de outras cidades), reconhecidas por associações de etnias “ciganas” legalmente
registradas no Brasil.
A modalidade de sobrevagas para “ciganos”, no Sistema de Cotas da UNEB,
diferente da proposta do projeto de lei, deixa explícito que a autodeclaração deve ser
ratificada por outras duas lideranças “ciganas”. Não basta se identificar como
indivíduo “cigano”, é preciso ser identificado também. E este critério de identificação
respeita uma das principais normativas dos “ciganos tradicionais”: “ciganos” são grupos
que se organizam em torno de famílias “extensas”, e que cada família possui uma
referência, um líder que é reconhecido pelo grupo, que geralmente são as pessoas mais
velhas e/ou que atuam externamente em nome do grupo.
O PLS nº 248/2015, como proposta de lei ordinária, ao buscar normatizar quem
são os “ciganos” sujeitos de direitos no Brasil adota uma redação com conteúdo abstrato
e genérico, sem indicar como se daria esta identificação, em caso de aprovação do
Estatuto. Contudo, avalio que a disputa em torno da definição da “ciganidade” é mais
mobilizada quando se está o jogo quem serão os “ciganos” que atuarão como
interlocutores com a burocracia estatal ou que tipo de associação do segmento “cigano”
pode disputar vagas nos conselhos e recursos de editais governamentais – nestes casos a
concepção de “ciganidade” é restritiva. Quando se está em jogo a reivindicação por
mais políticas públicas e atenção da sociedade, arrisco dizer que a concepção de
“ciganidade” passa a ser mais extensiva, ampla, buscando informar a existência de uma
quantidade expressiva de “ciganos” no Brasil.
198

Como a alteridade “cigana” se deu e ainda ocorre em diferentes partes do


mundo, sendo possível existir um grande número de identidades, línguas e outras
expressões culturais como um todo, é difícil definir, isto é, delimitar uma única forma
de “ciganidade”. O que há de comum entre os “ciganos”, presente em narrativas dos
mais diferentes sujeitos, é a existência de uma longa história de rejeição, ódio, de
perseguição, de discriminação pelos “não-ciganos”, em todos os lugares por onde
circulam, pelo menos a partir do século 15.
Segundo Barth (2005), há três processos contrários à variação cultural: os
processos de controle, silenciamento22 e apagamento das experiências. Diante destes
processos, não é possível mensurar quantas pessoas, ao longo da história, adotaram
como estratégia de sobrevivência na sociedade o abandono ou o distanciamento em
relação à identidade e à cultura “cigana”. Em caso de “reidentificação”, estas pessoas
poderiam ser consideradas sujeitos de direitos do “Estatuto do Cigano”? Estas pessoas
seriam legítimas para disputar espaços nos conselhos e demais órgãos colegiados do
Estado? Ao vincular a autoidentificação à confirmação de um grupo, família ou
comunidade “cigana”, como ficaria a situação das pessoas “ciganas” que estão
afastadas, por alguma razão, há várias gerações?
Há diversos questionamentos e reflexões que não se encerram com a aprovação
do PLS ou de qualquer outro marco legal. Ao delimitar os critérios para identificar a
população “cigana”, de forma similar ao “Estatuto do Índio”, o PLS se propõe a
institucionalizar e restringir quem pode ou não ser considerado “cigano”.
Toda classificação e, em consequência, normatização pressupõe uma exclusão,
quem está e quem não está abarcado pela institucionalização da diferença, no caso que
aqui estudado, da “ciganidade”. Assim sendo, é possível afirmar que o processo de
tramitação do PLS 248/2015, que propõe a instituição do “Estatuto dos Ciganos”, é
permeado por fronteiras porosas, tanto em relação ao que consiste “ser cigano”, como
no âmbito do próprio processo legislativo que se dá nas margens, nas dobras entre o
formal e o informal, não sendo possível entendê-lo a partir do que está positivado nas

22
Os pesquisadores Patrick Williams, Oliver Lerch e Michael Lerch relataram a adoção do silenciamento
como estratégia de sobrevivência, entre os ciganos Kalderash que vivem no subúrbio de Paris, quando
estes ofereciam seus serviços de reparos e consertos em restaurantes ou em fábricas da cidade. Neste
contexto, segundo o autor, estas pessoas jamais revelavam ser “Kalderash rom” ou “gitan” (cigano em
francês) às pessoas “não ciganas”. “Se o Rom é questionado por causa de seu francês desajeitado ou do
exótico som de seu nome, ele declarava ser de origem russa ou ‘descendente de refugiados russos’ [...]
dizia que era espanhol ou de origem italiana, usando essa suposta origem para se apresentar positivamente
como herdeiro de uma longa tradição familiar [...]. Para evitar um choque de imagens contraditórias
(comerciante honesto verus cigano paraistário) o Kalderash oculta sua identidade étnica” (1982, p. 321).
199

normas estatais. Assim como também não é possível compreender a “ciganidade” a


partir de essencializações.

***

Sem dúvidas a “definição dos ciganos” é o trecho do projeto de lei que mais
vedesperta a atenção e o interesse das lideranças que de algum modo passam ou atuam
na tramitação do PLS 248/2015. A falta de consenso deriva da própria diversidade e
infinitas identidades que são inerentes ao “dispositivo cigano”. Ao ser perpassado
justamente por relações de poder, é possível notar disputas políticas que não se limitam
ao processo legislativo em tela, mas, que na verdade, revelam instabilidades,
ambiguidades e não linearidade nas tentativas de “normatização do “ser cigano” em
todos os âmbitos.
As disputas políticas que mencionei no parágrafo anterior se dá entre atores que
reivindicam a “ciganidade” e ao mesmo tempo o lugar de interlocutores da questão,
especialmente nos espaços que envolvem a burocracia estatal. A própria variedade de
critérios que estas “referências ciganas” acionam para fundamentar e legitimar o
pertencimento identitário estão inseridos num campo de forças assimétricas.
Em termos práticos, eu notei que as lideranças e “referências” que não
construíram suas respectivas sociabilidades em comunidades mais tradicionais, e se
identificam mesmo assim como “ciganas”, principalmente nos casos, por exemplo, de
“reidentificação” ou a partir de ligações “espirituais”, levam mais vantagens em relação
àqueles cujas relações sociais se deram boa parte da vida em coletividade organizadas
em famílias extensas ciganas. Pois, de fato, são grupos mais vulnerabilizados,
historicamente subalternizados e que demandam mais atenção das políticas voltadas
para a inclusão social. A assimetria fica ainda mais clara nas disputas pelos conselhos e
na busca em geral por protagonismo na relação com as autoridades, assim como com as
instituições estatais.
200

3.2 - A previsão dos direitos fundamentais no PLS 248/2015

O projeto de lei apresentado pelo Senador Paulo Paim dedicou quase a totalidade
de sua redação para abordar os chamados “direitos fundamentais”, divididos em 7
capítulos e 11 artigos. Esta abordagem não é diferente de outros “estatutos”, como o “do
Idoso”, “da Igualdade Racial” e “da Pessoa com Deficiência”, que dedicaram,
respectivamente, 10 capítulos e 32 artigos, 6 capítulos e 41 artigos, 10 capítulos e 42 e
artigos, para tratar dos “direitos fundamentais”, todos estes também situados no “Título
II”, assim como o PLS 248/2015.
Na área jurídica, quando se fala em “direitos fundamentais”, aciona-se um
sentido, que remete a um significado distinto do que é suscitado pela expressão “direitos
humanos”, tratando-se assim de um elemento classificatório. Toda classificação envolve
hierarquias, como podemos perceber em face da repercussão, na sociedade, dos
marcadores de raça, gênero, classe e assim por diante. Não é diferente no campo dos
“direitos”, que se divide em espécies, para indicar a sua natureza, sentido e alcance, o
que acaba, igualmente, reproduzindo hierarquizações. Na medida em que se fala que um
direito é fundamental, o que se quer dizer com isso? Se há direitos fundamentais, quais
seriam aqueles direitos que não são fundamentais?
Primeiramente, importa acusar a existência da diferença entre os “direitos
fundamentais” e os “direitos humanos” no campo político e jurídico. Embora o
pesquisador André de Ramos Carvalho (2011) considere essa distinção ultrapassada,
não significa que esta questão ainda não se manifeste no plano prático. Segundo este
autor, falar em “direitos humanos” remeteria a uma matriz internacional, sem maior
força vinculante, ao passo que “direitos fundamentais” estaria relacionado à previsão
constitucional, com força vinculante gerada pelo acesso ao Poder Judiciário. Ou seja, os
direitos fundamentais seriam, na verdade, os direitos humanos positivados na
Constituição Federal.
Uma das justificativas de André de Ramos Carvalho (2011) para alegar que esta
distinção estaria ultrapassada, no caso do Brasil, se deve ao fato da Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, ter incluído a possibilidade dos tratados internacionais
que versam sobre “direitos humanos” serem equivalentes à emenda constitucional, por
meio da redação do art. 5º, § 3º23. Acontece que o Supremo Tribunal Federal consolidou
o entendimento que para haver equivalência do tratado internacional à norma

23
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.” (BRASIL, 2004).
201

constitucional, esta precisaria passar pelo mesmo procedimento de votação que uma
emenda, que exige quórum qualificado, que na prática levou a uma nova distinção: os
tratados internacionais com status de emenda constitucional e aqueles que não possuem,
seria considerado “infraconstitucional” e, ao mesmo tempo “supralegal”, ou seja, abaixo
da Constituição e acima das demais leis infraconstitucionais24. Em outras palavras,
ratificou-se no Brasil a “estatura hierárquica dos tratados de direitos humanos”
(GALINDO, 2005, p. 129).
Na verdade, as normas que compõem um ordenamento jurídico são perpassadas
por uma série de hierarquias, uma vez que estas não são homogêneas. Este
entendimento fortaleceu-se, sobretudo, a partir da teoria criada por Hans Kelsen, que
idealizou uma pirâmide, baseada no princípio da hierarquia entre as normas legais,
atribuindo o topo a norma maior, que seria a Constituição Federal, seguida das leis
produzidas pelo Poder Legislativo, logo abaixo as que são emitidas, diretamente, pelo
chefe do Poder Executivo e, por fim, as que são formuladas por meio dos ministérios.
Tal teoria, ao mesmo tempo que hierarquiza as normas, busca construir uma unidade, na
medida que qualquer dispositivo legal deve estar em conformidade com a lei
fundamental. Como diz Kelsen:
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo
plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de
diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da
conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que
foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma,
cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até
abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental
- hipotética, nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que
constitui a unidade desta interconexão criadora. (1998, p. 155)

A reivindicação pelo “Estatuto do Cigano”, enquanto uma proposta de “lei


ordinária”, surge justamente por se entender que há lacunas no direito brasileiro, que
não faz referência direta aos povos ciganos nas leis ou na própria Constituição Federal,
diferentemente de outros segmentos étnicos, como os indígenas e quilombolas. As
únicas menções aos “ciganos” ocorrem em normas que são consideradas “secundárias”,
ou seja, em “decretos presidenciais”, “portarias” e “resoluções”, que possuem um peso
menor em relação às leis, em geral, aprovadas no Congresso Nacional. Estes fatores são,
constantemente, alegados pelas lideranças ciganas que atuam no processo legislativo do
PLS 248/2015.

24
Resumindo nas palavras da ministra Ellen Gracie: “A esses diplomas internacionais sobre direitos
humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da CF/1988, porém
acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos
humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja
ela anterior ou posterior ao ato de ratificação” (BRASIL, 2008).
202

As distinções terminológicas entre os “direitos” ou entre as “normas” refletem,


simultaneamente, as hierarquias que atravessam qualquer processo legislativo, assim
como a “polissemia”, em si, existente na literatura quanto à expressão “criação de lei”,
conforme percebido pela socióloga Mariana Possas (2006, p. 2009). Buscando
solucionar os problemas conceituais que envolvem essas divisões, esta autora propôs
uma tipologia própria sobre o campo da normatividade, indicando haver duas espécies:
criação da lei, “statutes”, seja pelo parlamento (legislação), seja pela a administração
pública (regulamentos); e criação de norma jurisprudencial, “judge made law”.
A pesquisa que desenvolvi refletiu, especificamente, o processo de produção e
reconhecimento dos “direitos ciganos” pelo Poder Legislativo, ou seja, a questão da
criação de lei pelo parlamento (legislação), no caso. E como veremos adiante, no
próximo subtópico, as mudanças que ocorrem no texto das proposições legislativas,
além de serem comuns em qualquer processo desta natureza, como é o caso do
“Estatuto” proposto pelo PLS 248/2015, objeto de estudo desta tese, possibilitou pensar
as disputas políticas que se repercutem também na construção da condição político
jurídica dos ciganos no Brasil de forma mais ampla. Percebendo que estes jogos de
força, com múltiplos atores, e relações de poder que envolvem o Estado na prática
legislativa produzem a “ciganidade” e ao mesmo tempo constituem o “sujeito de direito
cigano”.

3.2.1 - As mudanças no projeto de lei

As alterações na redação do projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional


dependem da apresentação de emendas, como aconteceu em relação à definição de
“povos ciganos”. A emenda corresponde a uma proposição acessória, que busca alterar
a forma ou o conteúdo de uma proposição principal, devendo ter relação com o tema do
projeto, uma vez que sua análise não é independente do todo em discussão.
Nas duas primeiras comissões em que o “Estatuto do Cigano” tramitou, na CE e
na CAS, foram apresentadas e aprovadas, ao total, 11 emendas. Acontece que estas
proposições acessórias precisam ser analisadas e aprovadas, novamente, na última
comissão, a CDH, em que o PLS 248/2015 é votado em “decisão terminativa”. Neste
órgão colegiado, pode e deve, provavelmente, ocorrer novas mudanças, ou seja, a
alteração da alteração. Uma vez que o relatório legislativo apresentado pelo Senador
Telmário Mota, em 20/03/2019, emitiu o seguinte parecer:
203

III - VOTO

Em razão do que foi exposto, concluímos pela aprovação do Projeto de Lei


do Senado nº 248, de 2018, com as Emendas nos 1-CE, 2-CE, 5-CE, 8-CE e
9-CE, 10-CAS e 11-CAS e com as emendas que se seguem, ficando
rejeitadas as Emendas nos 3-CE, 4-CE, 6-CE e 7-CE” (2019f, p. 6).

Como já mencionei no começo deste capítulo, é comum haver alterações em um


projeto de lei em tramitação. Comparando com o processo legislativo de outros projetos
de “Estatuto”, posso dizer, inclusive, que se trata de uma regra. A título de exemplo, o
PL 3661/1997 (Estatuto do Idoso) iniciou a tramitação com 30 artigos, teve 21 emendas
ao projeto e foi aprovado com 118 artigos; o PL 6264/2005 (Estatuto da Igualdade
Racial) iniciou com 85 artigos, teve 12 emendas ao projeto e terminou com 65 artigos;
e, por fim, o PLS nº 6/2003 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), iniciou com 62
artigos, teve 10 emenda, sendo aprovado com 127 artigos. As alterações, das diferentes
formas, podem acontecer também após o texto ser aprovado, por meio de outros
projetos de lei. O campo normativo não é estático, pelo contrário, assim como a
sociedade, está em constante movimento.
Uma vez que as emendas são formas de alterar um determinado projeto de lei,
cada proposição acessória pode ser utilizada com um propósito diferente. Há sete
espécies de emendas, são elas: a) a emenda aditiva, que pretende acrescentar
dispositivos novos ao projeto principal; b) a emenda aglutinativa, que promove a junção
de textos de outras emenda já apresentadas, seja da proposição principal ou depois; c) a
emenda de redação, que tem a finalidade de sanar vício de linguagem, incorreção de
técnica legislativa ou lapso manifesto da proposição; d) a emenda modificativa, que
altera a redação da proposição sem modificar seu conteúdo; e) a emenda substitutiva,
que substitui parte da proposição principal; f) a emenda supressiva, que retira alguma
parte do projeto de lei; e, por fim, g) a subemenda, que altera outra proposição acessória
apresentada nas comissões25.
No caso da tramitação do “Estatuto do Cigano” no Senado Federal, que se
dispensou a apreciação do plenário, o prazo para a apresentação de emendas é de 5 dias
úteis contados a partir de sua publicação e distribuição em avulsos. Embora este projeto
tenha sido protocolado no dia 29/04/2015, uma quinta-feira, a abertura do prazo para o
“recebimento de emendas” iniciou-se no dia 04/05/2015, uma segunda, e encerrou no
dia 08/05/2015, sexta-feira, não sendo oferecidas emendas no prazo regimental. Ou seja,
ao longo do processo legislativo do “Estatuto do Cigano” no Senado Federal, apenas os
relatores da matéria em questão podem sugerir, formalmente, alterações ao texto inicial,

25
Classificações fornecidas pela página “Glossário Termos Legislativos” do Senado Federal.
204

o que não os impedem de receber e acolher sugestões dos demais parlamentares, assim
como de outros atores sociais.
Os pareceres aprovados, respectivamente, na CE e CAS, em 27/03/2018 e em
09/05/2018, trouxeram uma série de mudanças à proposição inicial do “Estatuto do
Cigano”, não apenas voltadas para a questão “identitária”, isto é, os critérios para se
definir quem serão os sujeitos destinatários do projeto de lei, como abordei na primeira
parte deste capítulo. Aqui, neste subtópico, darei ênfase às alterações que ocorreram no
“Título II – Dos Direitos Fundamentais” e no “Título III - Das Disposições Finais”. Ao
total, destaquei neste tópico duas mudanças que ocorreram ao longo da tramitação do
PLS, entre os anos 2015 e 2020, que contribuem para pensar a produção e ao mesmo
tempo as disputas em torno da “ciganidade”.

- Mudança 1

Entre as proposições acessórias apresentadas ao PLS 248/2015, no âmbito dos


direitos fundamentais, primeiro dou destaque ao trecho do projeto que trata do “direito à
educação”, pois, ocorreu neste dispositivo uma problematização em relação à expressão
“gênero”. Além disso, começo também abordando a “educação”, pois no grupo de
discussão criado pela assessoria do Senador Telmário Mota no aplicativo Whatsapp, se
tratou da segunda temática que mais levantou debates, sugestões e polêmicas pelas
lideranças participantes.
O Senador Hélio José, relator nas duas comissões permanentes em que o PLS
248/2015 foi votado e aprovado, sugeriu alterações, que substituísse a expressão
“desigualdade de gênero” por “desigualdade de sexo”. Na tabela abaixo, compartilho a
redação do texto inicial e a que foi aprovada na Comissão de Educação, Cultura e
Esportes, por meio da “Emenda nº 3-CE” e da “Emenda nº 4-CE”. Vejamos:

Tabela 7 – Propostas de alterações na redação do art. 4ª e do inciso I do art. 5º

Texto inicial Parecer (SF) nº 20, de 2018


Art. 4° - A população cigana, sem distinção de Art. 4º - A população cigana, sem distinção
gênero, tem direito à educação básica, de sexo, tem direito à educação básica,
conforme disposto na Lei nº 9.394, de 20 de conforme disposto na Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases
Educação Nacional), e à participação nas da Educação Nacional), e à participação nas
atividades educacionais, culturais e esportivas atividades educacionais, culturais e
adequadas a seus interesses, providas tanto pelo esportivas adequadas a seus interesses,
poder público quanto por particulares. providas tanto pelo poder público quanto por
particulares..
205

I – o incentivo à educação básica da população I – o incentivo à educação básica da


cigana, sem distinção de gênero; população cigana, sem distinção de sexo;

Nenhum dos relatórios legislativos apresentados se referem à espécie da emenda,


quando propõe alterações na redação da proposição principal. A substituição da palavra
“gênero” por “sexo” modifica, relativamente, o conteúdo do “art. 4º”, portanto, não se
trata de uma emenda “modificativa”, mas sim de “redação”. Uma única palavra
substituída trouxe um outro sentido ao trecho do projeto de lei que versa sobre o acesso
à educação. Acionada um significado diferente.
Até ocorrer a primeira reunião na Comissão de Educação, Cultural e Esporte em
que se deliberou sobre o “Estatuto do Cigano”, o Senador Hélio José, entre os anos de
2016 e 2018, apresentou quatro relatórios legislativos; apenas o último, que foi
aprovado nesta comissão, propôs a substituição da palavra “gênero” por “sexo”.
Compartilho, abaixo, a fundamentação apresentada neste relatório.
No art. 4º e no inciso I do art. 5º entendo necessário a substituição da
palavra gênero pela palavra sexo. Pode até parecer uma mudança sutil,
pois, trocou-se apenas uma palavra, ‘gênero’ por ‘sexo’, todavia, ao se
observar o contexto político em que o PLS nº 248/2015 tramita, é
possível notar que há, de fundo, um debate acalorado, na sociedade e
nos espaços institucionais, em torno do que se chama de ‘ideologia de
gênero’. (BRASIL, 2017b, p. 4)

Ressalta-se que este relatório não dedicou mais parágrafos, além do citado
acima, para justificar a substituição no texto da lei. Os dois pareceres apresentados à
segunda Comissão, a CAS, em que o Estatuto é examinado, mantiveram este
entendimento, também sendo aprovado a alteração da palavra “gênero” por “sexo”.
Todavia, no último órgão colegiado em que o projeto de lei deve ser examinado,
a CDH, ambos relatores, os Senadores Hélio José e Telmário Mota, mudaram de
concepção nos respectivos relatórios legislativos protoclado na comissão, passando a
defender a manutenção da expressão “desigualdade de gênero” no texto do “Estatuto”,
ao invés de “desigualdade de sexo”.
Vale ressaltar que o Senador Hélio José submeteu dois relatórios à CDH, o
primeiro, em 21/06/2018, em que pauta a permanência da expressão “desigualdade de
gênero”, e o segundo documento, alguns dias depois, em 04/07/2018, não se refere mais
a esta questão, o que significa, tacitamente, a defesa do entendimento contrário ao que
foi aprovado na CE e na CAS.
Por sua vez, o terceiro relatório submetido nesta comissão pelo Senador
Telmário Mota, em 20/03/2019, repetiu praticamente a mesma redação do documento
de 21/06/2018, isto é, pela exclusão das “Emendas nos 3 e 4 da CE”, concluindo
206

enquanto inadequada ou desnecessária a alteração da palavra “gênero” por “sexo”


(BRASIL, 2019f).
O que mais me chama a atenção é que este dispositivo já passou por quatro
mudanças, sendo três destas apresentadas pelo mesmo parlamentar. Por isso, lanço o
seguinte questionamento: o que motivou o Senador Hélio José, num intervalo de duas
semanas, voltar atrás e pautar a expressão “desigualdade de gênero”?
Segue abaixo a fundamentação que foi apresentada pelo Senador Hélio José, em
21/06/2018, e mantida pelo relator que o substituiu, em 20/03/2019. Vejamos:
Finalmente, deve-se mencionar que a substituição da palavra “gênero”
pela palavra “sexo”, nos arts. 4º e 5º, decorrente da aprovação das
Emendas nos 3 e 4 da CE, é imprópria, pois a discriminação de que esses
dispositivos tratam não é pertinente ao sexo, mas sim ao gênero. Ninguém
é discriminado simplesmente por ser do sexo masculino ou feminino, e sim
em razão das expectativas sobre atitudes que se consideram próprias ou
impróprias de homens ou mulheres, inclusive, mas não somente, relativas à
orientação sexual. O sexo é um atributo biológico, o que não se discute, mas
o conceito de gênero é referente às características culturais e aos costumes
associados a cada sexo e às diferentes orientações sexuais, incluindo normas
costumeiras sobre o que devem fazer, como devem se comportar, como
devem ser tratados pelos demais. Então, longe de iniciar um debate sobre o
receio de doutrinação sexual, o conteúdo da proposição é voltado para a
prevenção de preconceitos e de discriminações relativas ao gênero, que é um
conceito social, e não ao sexo, que, sendo um conceito biológico bem
estabelecido, simplesmente não vem ao caso quando o que se discute são
costumes e atitudes sociais. (BRASIL, 2019f, p. 4, grifo nosso)

Em outras palavras, as substituições no texto do projeto de lei, aprovadas nas


duas primeiras comissões, consagraram o entendimento que “pessoas ciganas” apenas
podem ser discriminadas pelo “fator biológico”, ignorando as possibilidades de haver
discriminações provocadas pelo aspecto sociocultural e histórica, que decorre das
variações de “gênero”.
Quando se mobiliza a expressão “sem distinção de gênero”, o que se propõe é
que as pessoas, em geral, não devem ser discriminadas pelo papel de “gênero” que
socialmente exerce, assim como por adotar uma “identidade de gênero” diferente do
“fator biológico”. Enquanto a palavra “sexo” remente a uma “categoria biológica”,
“gênero” refere-se a uma “distinção sociológica” (MOORE, 1997).
Durante a pesquisa de campo, dialoguei com diferentes lideranças e
representações ciganas atuantes em torno da tramitação do PLS 248/2015. Em nenhuma
ocasião, observei discordância ou manifestações contrárias à presença da expressão
“gênero” no projeto de lei. Assim como não presenciei questionamentos desta natureza
nas audiências públicas, nas reuniões e eventos que abordam a tramitação do “Estatuto
do Cigano”, assim como não foi lançado no grupo criado pela assessoria do Senador
Telmário. Portanto, deduzo que a problematização em relação à expressão “gênero” não
207

partiu propriamente das lideranças ciganas que estão “na ponta”26, mas sim dos agentes
públicos - sobretudo ligados à burocracia estatal - que tenham interesse neste processo
legislativo ou na questão cigana como um todo.
Observem, abaixo, a síntese dos debates que ocorreram no grupo quando foi
discutida entre os/as participantes a redação do art. 4º, primeira proposta do PLS
248/2015 versando sobre o direito à educação. Frisa-se que as discussões tomaram
como base o relatório legislativo apresentado pelo Senador Telmário Mota em
20/03/2019, que sugeriu a manutenção da expressão “gênero” ao invés de “sexo”.
Vejamos:
O Representante da AEEC-MT, Aluizio, leu a proposta apresentada para este
capítulo (que consta de documento em que estão consolidadas as principais
propostas e contribuições para o texto), e ressaltou a importância dos
dispositivos nela elencados e defendeu sua inclusão no texto do PL.
Foi amplamente ressaltada a importância deste capítulo, tendo em vista o
caráter fundamental da educação, compreendido como oportunidade de
mudança social para os ciganos. Houve um consenso no sentido de que o
capítulo deve ser objeto de atenção diferenciada.
Mais uma vez foi citada a necessidade de adequação da expressão “população
cigana”, que deverá ser substituída por “povos ciganos”.
Nalva compartilhou o capítulo sobre educação existente no Estatuto da
Igualdade Racial, para subsidiar as discussões, ressaltando a necessidade de
que sejam enriquecidas as discussões do grupo sobre este tema. Citou a
participação dos conselheiros nacionais nas discussões institucionais sobre a
educação, trazendo notícias dos principais pontos dos debates para o grupo.
Na esteira da discussão sobre o Estatuto da Igualdade Racial, foi também
enfatizada a importância da constante referência e reconhecimento dos
ciganos como povos e comunidades tradicionais, com acesso às políticas
públicas destinadas a essas comunidades.

No dia seguinte, aconteceram debates no grupo em face da segunda proposta de


artigo do PLS 248/2015 que versa sobre o direito à educação e mais uma vez não houve
menções à questão de gênero. Vejamos abaixo o que foi discutido:
Foi enfatizada a necessidade da implantação de políticas afirmativas,
sobretudo por meio de cotas para ingresso na universidade.
Foi ressaltada, em especial, a importância do acesso ao ensino nos níveis
fundamentais, sem o que não será possível aos ciganos aproveitar as cotas na
graduação e pós-graduação.
Foi defendida a normatização dos espaços tradicionalmente utilizados pelas
comunidades ciganas como espaços voltados para a educação, como as
tendas, espaços comuns das comunidades e outros que são familiares a estes
povos.
Foi também colocada preocupação com a situação das comunidades
itinerantes, também no tocante às disposições deste capítulo, enfatizando que
devem receber proteção especial no texto do Estatuto. Foi feito um paralelo
com a situação das escolas militares, em que é possível o ingresso em
qualquer período do ano, em razão da grande mobilidade dos integrantes da

26
Trata-se de uma expressão que presenciei ser utilizada pela liderança Nalva para se referir ao fato dela
atuar “na ponta”, ou seja, por viver em acampamento, morando em tendas/barracas, e ao mesmo tempo
atuar no Estado de Minas Gerais em defesa dos direitos ciganos. É uma expressão análoga à “chão de
fábrica”, termo que é também utilizado por pessoas ligadas ao movimento sindical para se referir aos
profissionais que trabalham diretamente na produção fabril.
208

carreiras. Defende que os ciganos tenham a mesma proteção, podendo


ingressar nas escolas em qualquer período, e ter suas atividades certificadas
nos estabelecimentos dos locais onde passarem.
O cigano Omar, do RN, apresentou sugestão de texto para o capítulo, que foi
bem recebida pelo grupo. A ideia é fazer uma reunião das propostas da
AEEC-MT com a dos ciganos do RN, para a obtenção de uma proposta final
para o capítulo.
Marcilânia, cigana da comunidade de Sousa com grande atuação nesta área,
apresentou relevantes contribuições aos debates.
Delvanei ressaltou a importância de uma disposição legal que garanta vagas
aos ciganos nas creches e nas escolas, respeitadas as suas especificidades, em
especial para as comunidades nômades.
Jucelho ressaltou a importância dos debates sobre o Estatuto, enfatizando que
é importante que se obtenha uma norma que traga efetiva proteção aos povos
ciganos. Teceu considerações sobre o capítulo de educação, reiterando
diversos pontos já colocados na discussão e enfatizando a busca de que as
disposições não sejam apenas escritas na lei, mas cumpridas pelos gestores
públicos.
Cláudia Nunes (PA) reforçou esta fala, tratando da importância de atuar e
fazer parcerias com os gestores públicos. Ressaltou que para além da
aprovação do estatuto, que é fundamental, deve ser feito um amplo trabalho
no sentido de sua divulgação, por todos os meios disponíveis, e de sua
implementação.
Cláudia também trouxe a importância do EJA para as comunidades ciganas,
de sua implementação nos acampamentos.
Houve grande ênfase dos participantes na importância de que sejam
promovidos “espaços ciganos” de educação, com monitores ciganos e
respeito à sua cultura, preferencialmente nas próprias comunidades.
Foi ressaltado que muitos ciganos não vão à escola em virtude do preconceito
que sofrem. Daí a importância da existência de espaços “seguros”, em que os
ciganos sejam reconhecidos e valorizados.
Foi ressaltada por Alessandra (RJ), em manifestação apoiada pelo grupo, a
importância de que a cultura cigana seja ensinada nas escolas, como tema
transversal.
Nesse sentido, foi ressaltada a importância da capacitação profissional do
corpo docente, para que todos conheçam e compreendam os temas.
Também foi demonstrada a importância do ensino profissionalizante para os
ciganos.

Como se pode perceber, não houve menções ou problematizações em face da


expressão “gênero” presente no projeto de lei. Por isso interpreto que para os
participantes do grupo havia outras pautas mais relevantes e que as polêmicas em torno
da expressão “sem distinção de gênero” acabam causando prejuízos à luta dos povos
ciganos por direitos, pois desviam a atenção das pautas concretas que de fato podem
contribuir para a efetivação do direito à educação, uma das demandas mais sensíveis aos
povos ciganos.
Ou seja, ao invés das discussões do grupo ter dado ênfase a pensar o acesso à
escolarização formal dos ciganos a partir da agenda dos costumes, os participantes
focaram nas condições materiais necessárias para promover a inclusão social dos
destinatários do projeto de lei e combater o anticiganismo presente na sociedade com
um todo. Trataram, por exemplo, do ensino profissionalizante, da inclusão da cultura
cigana no ensino das escolas, o acesso à universidade, o preconceito nos ambientes
209

escolares e as peculiaridades dos grupos que ainda possuem práticas consideradas


itinerantes.
O Ministério Público Federal, por meio da nota técnica emitida pela “6ª
Câmara”, considerou como “inadequada e reducionista a denominação adotada pela
Comissão, pelo que se faz importante a manutenção da redação original do projeto,
mantendo, portanto, nos arts. 4º e 5º, I, a expressão ‘sem distinção de gênero’” (MPF,
2018, p. 12-13). Como mencionei na primeira parte deste capítulo, o documento
apresentado pela “6ª Câmara” foi assinado no mês de agosto de 2018, significando que
o MPF o submeteu após o relatório legislativo do Senador Hélio José apresentado em
junho deste ano, que voltou atrás em relação a substituição da palavra “gênero” por
“sexo”. Como se trata de uma questão instável neste processo legislativo, interpreto
como pertinente a ponderação do referido órgão público, uma vez que nada impede que
o relator Telmário Mota, assim como antecessor, mude mais uma vez de posição em
face desta pauta.
Em conversa com alguns assessores parlamentares, em fevereiro de 2020, obtive
a informação que integrantes do governo federal, ligados ao Ministério da Mulher,
Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), por sua vez, entraram em contato com o
relator do PLS nº 248/2015, pressionando pela manutenção da substituição da expressão
“gênero” por “sexo”. Com base nesta informação, eu poderia deduzir que,
possivelmente, as pessoas que influenciaram o Senador Hélio José a mudar de
concepção, três vezes, compõem, no mínimo, o mesmo campo político e ideológico dos
integrantes do MMFDH. Porém, eu também poderia especular que estas mudanças
decorreram de influências da própria ministra do Governo Bolsonaro quando esta, antes
de ingressar no Poder Executivo federal, em 2019, trabalhava como assessora
parlamentar no Congresso Nacional e, segundo as informações que obtive ao longo da
pesquisa de campo, tanto de pessoas do MPF, como de outras pessoas que trabalham no
Senado, esta gestora acompanha “de perto” as discussões sobre “Estatuto do Cigano”
desde o início de sua tramitação.
Além disso, a supramencionada ministra é fundadora, assim como presidiu a
“ANAJURE”, associação que congrega profissionais evangélicos da área do Direito e,
desde 2012, atua sobretudo nas instituições políticas como o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal fazendo lobby a favor de pautas conservadoras e contra a
agenda progressista. Vale ressaltar que os profissionais interessados em participar desta
organização devem assinar a seguinte “declaração de princípios fundamentais”:
210

Reconhecemos que o Senhor Jesus Cristo é a revelação de Deus, testificada


em nossos corações pelo Espírito Santo de Deus. Reconhecemos que a Bíblia
é a Palavra de Deus, divinamente inspirada, inerrante, infalível, verdadeira,
sendo ela nossa única regra de fé e conduta. Por assim ser, como juristas
evangélicos nos comprometemos a viver em santidade, buscando a
irrepreensibilidade diante dos homens e das autoridades – eclesiásticas e
seculares – que o Senhor estabeleceu sobre nós, estando, necessariamente,
vinculados a uma igreja local e, por conseguinte, submisso a autoridade
pastoral. Da mesma forma, como juristas evangélicos nos comprometemos a
batalhar diligentemente pela fé que uma vez por todas foi dada aos santos, a
fé cristã. Comprometemo-nos também a defender as liberdades civis
fundamentais, em especial, a liberdade religiosa e de expressão e a amparar
os vulneráveis e perseguidos da sociedade. Por fim, comprometemo-nos a
desempenhar nosso serviço, como juristas evangélicos, de modo a glorificar
ao Senhor Jesus, a edificar e auxiliar a Igreja e a proclamar os valores ínsitos
à fé cristã no Brasil e no mundo. (ANAJURE, [s/d])

Como se pode perceber, esta declaração não faz nenhuma referência à


Constituição Federal ou aos tratados internacionais de Direitos Humanos, embora tenha
como público alvo juristas. Pelo contrário, apenas exige o comprometimento de seus
associados com os dogmas e valores religiosos pautados pela organização. Voltarei a
falar do campo político que envolve a “ANAJURE” no próximo capítulo, no tópico
“4.2”.
O relatório legislativo apresentado pelo Senador Telmário Mota, em 20/03/2019
seria votado na CDH no dia 12/02/2020. Contudo, foi retirado de pauta no dia
12/02/2020, para “reexame” pelo próprio relator. Tentei obter a informação acerca das
razões que levaram o PLS ter sido retirado de pauta; conversei com os assessores
parlamentares do relator, do autor do projeto e do MPF, assim como dialoguei com
algumas lideranças ciganas, nenhuma dessas pessoas afirmaram que a retirada de pauta
do projeto teria relação com a “questão de gênero”.
É necessário ponderar sobre o contexto em que ocorreu tais disputas políticas e
problematizações acerca da expressão “gênero” no processo legislativo do “Estatuto do
Cigano”, que também não está desassociada do surgimento da “ANAJURE”. O debate
público, potencializado pelas eleições gerais de 2018, foram intensamente
movimentados em torno de temáticas ligadas à pauta dos costumes. A suposta
imposição da “ideologia de gênero” no ambiente escolar, por exemplo, impulsionou as
discussões políticas antes, durante e depois das eleições presidenciais de 2018, todavia,
não apenas no Brasil.
De acordo com Miskolci e Campana, “a luta contra a ideologia de gênero é uma
forma de resistência contra os recentes avanços que vêm se dando na América Latina
em matéria de direitos sexuais e reprodutivos” (2017, p. 728, grifo dos autores). A este
respeito, segundo Mariano e Geradi,
211

o ativismo político evangélico conservador tende a avançar na América


Latina. Sua atuação nas eleições presidenciais (Costa Rica, Colômbia,
Venezuela, Brasil e México) revela o intento de restaurar uma ordem moral e
social tradicional tida sob ataque de forças malignas. Suas lutas antigênero e
anti-pluralista reproduzem repertórios morais e batalhas políticas da direita
cristã e também do Vaticano, como a noção de ‘ideologia de gênero’, arma
ideológica que se tornou onipresente nos pleitos e disputas parlamentares na
região (2019, p. 73-74).

A pesquisadora Clara Flores Seixas de Oliveira, ao analisar o processo


legislativo que introduziu a categoria jurídica do “feminicídio” no Código Penal
brasileiro, por meio da Lei nº 13.104/2015, identificou que o Congresso Nacional viveu
“uma verdadeira guerra contra a palavra gênero” (2017, p. 185), especialmente, devido
a possibilidade de as mulheres transexuais serem consideradas vítimas desta
qualificante acrescentada ao tipo penal “homicídio”.
Richard Miskolci (2018) concluiu que a disputa em torno da “questão de gênero”
não se trata de um movimento recente. Para este pesquisador, que estudou os interesses
que estão por trás do combate à “ideologia de gênero”, a “cruzada moral” que se
manifesta no presente começou a ser formulada por aproximadamente duas décadas até
emergir entre os anos de 2011 e 2013, sendo disparada em 2014. Concluiu-se que esta
movimentação é resultado de:
[...] um trabalho contínuo de grupos de interesse que, desde então, têm atuado
como empreendedores morais em suas comunidades decepcionadas com os
políticos, atingidas pelos efeitos da crise econômica, do desemprego e,
portanto, fragilizadas e com medo, afeitas a explicações fantasmáticas para
problemas reais. Sob o domínio do medo, grupos autoritários engendram ódio
e ações persecutórias, daí ser necessário dissipar o fantasma da ideologia de
gênero em que se apoiam, trazendo à luz o fato de que buscam manter
subalternizados aqueles e aquelas que o conceito de gênero acolhe dentro do
humano, buscando garantir-lhes igualdade jurídica, segurança e direito à vida.
(MISKOLCI, 2018, p. 12, grifo do autor)

O cientista político Luís Felipe Miguel identificou no ano de 2016 “sete


projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que têm como alvo a doutrinação
ou a ideologia de gênero nas escolas” e ”dez projetos similares tramitando” nos
legislativos estaduais (2016, p. 604, grifo do autor). Segundo o autor, esta
movimentação, a qual chama de “cruzada moral”, é articulada pela “bancada
evangélica”, que envolve também o “setor mais conservador da Igreja Católica”, que se
alia a diferentes forças conservadoras no Poder Legislativo federal, “como os
latifundiários e os defensores dos armamentos, numa ação conjunta que fortalece a
todo” (MIGUEL, 2016: p. 593).
A pesquisa etnográfica possibilitou-me perceber que a tal “cruzada moral”
chegou também ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, e interpreto que esta
problematização não partiu dos destinatários do projeto de lei em tela. Os
212

tensionamentos em torno da expressão “gênero” estão muito longe do debate entre eles.
De todo modo, é válido refletir qual seria a importância de uma lei destinada aos povos
ciganos afirmar que o “acesso à educação” deve ser promovido “sem distinção de
gênero”. Uma vez que o que está por trás dessas mudanças é uma disputa de sentidos
sobre o que “ser cigano” ou o que é “ser cigana”, envolvendo, e consequentemente
produzindo significados sobre a “ciganidade”.
A antropóloga Edilma Monteiro (2019) provoca, em sua tese de doutorado, a
pensar a educação entre os povos ciganos da etnia Calon transcendendo o ambiente
escolar e o seu aspecto formal, pois os processos de aprendizagem, dos diferentes
valores e tipos conhecimentos, já se inicia no espaço intrafamiliar, quando se ensina a
criança a “ser cigano” ou a “ser cigana”. Ou seja, é fundamental olhar para o fator
educacional numa dimensão mais ampla. Como também entendeu a pesquisadora Sílvia
Simões, ao observar que relação dos ciganos e os processos de aprendizagem
intra-étnico ocorrem desde os anos iniciais, e percebe que “as questões de gênero
passam a ser um fator determinante, que vai causar uma distinção na educação da
menina, e do menino cigano” (2007, p. 102).
Para a pesquisadora e ativista cigana Camilla Ida Ravnbøl (2010), é fundamental
que as análises científicas e as políticas públicas levem em consideração a inter-relação
de diferentes formas de opressão, decorrentes das relações de gênero, raça e classe.
Segundo esta autora, “as mulheres ciganas são representativas de múltiplas
discriminações, que muitas mulheres pertencentes a grupos minoritários experimentam
em sociedade, discriminação como minoria étnica, como mulher, e para algumas
mulheres também em grupos de pobreza” (2010, p. 30). Nesse sentido, a jurista e
ativista cigana Alexandra Oprea (2012) defende que o racismo e a ciganofobia
experimentados pelas mulheres ciganas não são sempre idênticos ao experimentados
pelos homens, pois estão profundamente articulados com estereótipos e formas de
opressão em função do gênero.
Os pesquisadores Fernando Macías e Gisela Redondo chamam a atenção para o
fato do sexismo afetar todas as mulheres de forma semelhante, todavia, pondera que as
mulheres ciganas também sofrem discriminação social e cultural devido ao racismo que
existe contra elas. Por essa razão, estes autores concluem que em decorrência do
sexismo e do racismo, as mulheres ciganas “enfrentam maiores problemas de acesso e
participação nos processos de formação educacional, realidade que por sua vez tem um
impacto negativo na perpetuação da situação de exclusão” (2012, p. 73).
213

A formulação de políticas públicas e de marcos normativos na área de Direitos


Humanos comprometidos com a busca pela equidade racial e de gênero precisam
ultrapassar generalizações e construções pejorativas presentes no imaginário social
relacionados aos povos ciganos. Partir de representações abstratas que, por exemplo,
supõem que as mulheres ciganas sempre serão submissas ou que deduz a suposta
virilidade e liderança do homem cigano, além de desconsiderar as múltiplas realidades,
não contribui para que haja avanços na busca pela superação ou minimização das
desigualdades, assim como das exclusões sociais que envolvem essa população.

- Mudança 2

A alteração que aqui destaco se refere aos trechos do projeto que abordam a
“direito à saúde”, contemplados no “Capítulo IV”, do “Título II” do PLS nº 248/2015.
Como é possível perceber na “Tabela 8”, já ocorreram duas mudanças significativas
nesta matéria, que foram votadas na CE, por meio das Emendas nº 6 e 7, e na CAS,
mediante as Emendas nº 10 e 11. Tais ajustes trouxeram, praticamente, novas redações
aos arts. 10 e 11 da proposta de “Estatuto do Cigano”. Vejamos:

Tabela 8 – Propostas de alterações nas redações dos arts. 10 e 11


Texto Inicial Parecer (SF) nº 20, de 2018 Parecer (SF) nº 31, de 2018
Art. 10. Fica assegurado o Art. 10. Fica assegurado o Art. 10. Fica assegurado o
atendimento na rede pública de atendimento na rede pública de atendimento de urgência e
saúde ao cigano que não for saúde ao cigano que não for emergência nos serviços do
civilmente identificado. civilmente identificado. Sistema Único de Saúde (SUS)
Art. 11. O poder público Art. 11. O poder público ao cigano que não for
promoverá políticas públicas promoverá políticas públicas civilmente identificado.
para a população cigana, a fim para a população cigana, a fim Art. 11. Serão instituídas
de promover: de promover: medidas de acolhimento para
I – o acesso ao Sistema Único I – o acesso ao Sistema Único garantir o acesso da população
de Saúde; de Saúde; cigana às ações e aos serviços
II – o combate a doenças; II – a adoção de medidas de do Sistema Único de Saúde
III – o acesso a medicamentos; prevenção e controle de (SUS) e às políticas públicas
IV – o planejamento familiar; doenças e de outros agravos; de promoção da saúde e
V – o acompanhamento III – o acesso a medicamentos; prevenção e controle de
pré-natal; VI – o tratamento IV – o planejamento familiar; doenças, com ênfase nas
dentário; V – o acompanhamento seguintes áreas:
VII – o amparo à criança, ao pré-natal; VI – o tratamento I – assistência farmacêutica;
adolescente, ao idoso e à dentário; II – planejamento familiar;
pessoa com deficiência; VII – o amparo à criança, ao III – saúde materno-infantil;
VIII – a orientação sobre adolescente, ao idoso e à IV – saúde do homem;
drogas. pessoa com deficiência; V – saúde bucal;
VIII – a orientação e a VI – saúde mental e prevenção
conscientização para prevenção e tratamento do tabagismo,
do uso de drogas ilícitas. alcoolismo e abuso de drogas
ilícitas;
VII – segurança alimentar e
nutricional.
214

§ 1º As medidas previstas no
caput incluirão:
I – sensibilização e
qualificação dos profissionais
de saúde e dos demais
integrantes das equipes dos
serviços de saúde quanto às
necessidades e peculiaridades
da população cigana;
II – articulação intersetorial;
III – fortalecimento da
participação e do controle
social; IV – combate a toda
forma de preconceito
institucional.

Podemos observar que os ajustes aprovados na primeira comissão foram


totalmente revistos no órgão colegiado seguinte. Segundo o parecer aprovado na
segunda comissão, no dia 09/05/2018, “compete à CAS, nos termos do art. 100, II, do
Regimento Interno do Senado Federal (RISF), opinar sobre matérias que digam respeito
à proteção e defesa da saúde e à competência do Sistema Único de Saúde” (BRASIL,
2018d, p. 5). Embora seja o órgão colegiado responsável por examinar de forma
abrangente os “assuntos sociais”, na prática, pelo que observei nas reuniões
extraordinárias que acompanhei desta comissão, uma grande parte das proposições
discutidas envolvem a temática da “saúde”.
As últimas redações aprovadas na CAS no que tange ao direito à saúde dos
povos ciganos também suscitaram discussões no grupo criado pela assessoria
parlamentar do relator do PLS 248/2015. Quanto à redação, “fica assegurado o
atendimento de urgência e emergência nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS)
ao cigano que não for civilmente identificado”, os participantes do grupos
posicionaram-se da seguinte forma:
O grupo ressaltou a importância da previsão legal, que deve ser mantida no
Estatuto, como direito fundamental dos povos ciganos.
Omar registrou que já existe previsão de norma infralegal (Portaria 940 do
Ministério da Saúde) a esse respeito, mas a norma é desconhecida e/ou
descumprida em muitas unidades do SUS (a maioria).
Foi ressaltada a importância do combate ao racismo institucional no tocante
ao atendimento de saúde aos povos ciganos.
Foi registrada a importância da previsão de unidades móveis para
atendimento aos povos ciganos nos locais onde estão, sobretudo os povos
itinerantes.
É fundamental, também que seja realizado mapeamento dos povos ciganos
para o atendimento pelo SUS, de acordo com as suas especificidades.
Ressaltou-se, ainda, a importância de que sejam contemplados os parâmetros
da Portaria n. 940/MS.
Além da identificação civil, deve ser também dispensado o fornecimento do
endereço para os integrantes de comunidades ciganas, sobretudo os
itinerantes e aqueles que estão em trânsito.
215

Quanto à redação da segunda proposta de artigo, que aborda o direito à saúde


dos povos ciganos no PLS 248/2015, aprovado pelo Parecer (SF) nº 31, de 2018, houve
os seguintes posicionamentos e sugestões:
O grupo está de acordo com o artigo.
Mais uma vez foi lembrada a necessidade de substituir o temo “população
cigana” por “povos ciganos”.
Foi levantada por Lu Ynaya, com o apoio dos demais, a importância de
especificar a saúde da mulher, do idoso, da criança e do adolescente e das
pessoas portadoras de necessidades especiais.
Foi ressaltada por Suênya a importância da sensibilidade e da qualificação
dos profissionais de saúde. O sucesso da política pública de assistência
depende de um atendimento respeitoso e eficaz, atento às necessidades e
especificidades dos povos ciganos.
Foi colocada por Nalva a importância do combate ao racismo institucional
sofrido pelos ciganos.
Foi ressaltado que os povos ciganos ainda têm muito desconhecimento acerca
da necessidade de cuidados preventivos, diagnóstico precoce e, sobretudo,
muita resistência a procurar o socorro médico. Enfatizou-se a importância da
educação para a saúde, ações de conscientização nos acampamentos e da
realização de busca ativa e atendimento básico nas próprias comunidades.
Foi colocada, em especial, a situação das mulheres ciganas, e do desconforto
que lhes causa o atendimento por um profissional do sexo masculino. Assim,
foi solicitado que, sempre que possível, o atendimento às mulheres ciganas
seja feito por profissionais de saúde mulheres.
A resistência cultural dos homens de buscarem tratamento médico também
foi colocada na discussão. A dificuldade de demonstrar fraqueza, de pedir
ajuda e aceitar a intervenção de uma pessoa estranha em sua intimidade.
Esses fatores devem ser levados em consideração no atendimento aos povos
ciganos.
Daiane relatou os esforços empreendidos pela ANEC no sentido da
sensibilização e esclarecimento dos médicos em Brasília quanto às
especificidades dos povos ciganos. Narrou também experiências que
vivenciou e relatos que recebeu de tratamento preconceituoso sofrido pelos
ciganos por parte de profissionais de saúde, que resistiam a atende-los ou
demonstravam insatisfação ostensiva com pretextos falsos e baseados em
preconceito. Ressaltou a importância de proteção legal e de conscientização
desses profissionais para que esse comportamento mude.
Foi também apontada a necessidade de acompanhamento médico e de
enfermagem em patologias que exigem atenção continuada ou que
apresentem comorbidade.
Também deve ser acrescido o direito a acompanhante, independente de idade
ou sexo, em atenção aos costumes e tradições dos povos ciganos. Marcos
Pantaleão noticiou que esse direito já é garantido aos ciganos no Estado de
Minas Gerais.
Também deve haver previsão para a realização de exames clínicos nas
próprias comunidades, por unidades móveis ou postos de saúde.

As discussões no grupo, assim como as justificativas apresentadas para


fundamentar os ajustes propostos pelo relator e aprovado na CAS, nos possibilitam
discutir e refletir alguns aspectos específicos das condições de sobrevivência, assim
como de reprodução social e cultural dos povos ciganos brasileiros. Em princípio, dou
ênfase à alteração na redação que garantia o direito de os ciganos “sem identificação”
acessarem o sistema de saúde.
216

Como foi reportado nas audiências públicas realizadas em 2011, 2012 e 2018, na
CDH do Senado Federal, a presença de pessoas ciganas sem nenhum tipo de registro
civil, como a certidão de nascimento, é ainda um grave problema que atinge este povo,
situação que eu pude constatar, empiricamente, nas comunidades e territórios ciganos
que eu conheci. Embora possam existir diferentes razões que contribuam para este fato,
não podemos descartar a relação com a condição étnica, que pode contribuir para a
dificuldade de acesso ao registro civil ou que pode ser interpretada como uma estratégia
de sobrevivência. De todo modo, trata-se de um indicativo de vulnerabilidade social,
tendo em vista que a apresentação de algum documento formal constitui um
pré-requisito mínimo para se ter acesso aos serviços básicos, públicos ou privados, na
sociedade moderna. Este fator é mais elemento que confirma que a “invisibilidade”, tão
falada para se referir aos povos ciganos no Brasil, pode ser vislumbrada como uma das
palavras-chaves para compreender a condição jurídica política deste povo tradicional.
Como se pode observar, a proposição inicial foi mais abrangente, no sentido de
permitir ao “cigano”, que não apresentasse documento de identificação civil, o acesso a
qualquer tipo de atendimento na rede pública de saúde. Contudo, o “relatório
legislativo” do Senador Hélio José, apresentado e aprovado na CAS, suprimiu essa
abordagem, sugerindo o atendimento de pessoas ciganas, sem documentos de
identificação civil, ao sistema público de saúde, apenas em casos de urgência e
emergência. Vejamos a justificativa apresentada para a mudança no “art. 10” do PLS:
No que tange à saúde, identificamos alguns reparos a fazer. Há que ressaltar
sobre a determinação contida no art. 10 – de assegurar o atendimento na rede
pública de saúde ao cigano que não for civilmente identificado – que a
dispensa da identificação civil não foi estendida a nenhuma outra área
abrangida no projeto, quais sejam: educação, trabalho, habitação, acesso à
terra, cultura e promoção da igualdade.

Entendemos que, exceto nos casos de urgência ou emergência, não há


justificativa para que o indivíduo cigano sem identificação civil tenha
acesso irrestrito aos serviços de saúde do SUS. Além de injustificável, pela
falta de isonomia com as outras áreas abordadas no projeto de lei, a dispensa
da identidade civil pode proporcionar a quaisquer pessoas, inclusive
criminosos, a possibilidade de buscar atendimento em serviços de saúde e
neles adentrar anonimamente, sob o ‘disfarce’ de cigano.

A esse respeito, salientamos que o § 1º do art. 23 da Portaria MS nº 940, de


28 de abril de 2011, que regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde
(Sistema Cartão), estabelece ‘a não obrigatoriedade de comprovação de
domicílio para população cigana nômade se cadastrar’, mas não dispensa essa
população de tal cadastro. (BRASIL, 2018d, p. 6, meu destaque)

No caso da redação do segundo artigo, quase a totalidade dos “relatórios


legislativos” apresentados à CAS pelo Senador Hélio José, dois ao total, dedicaram-se a
fundamentar a necessidade de alterações no texto deste dispositivo, substituindo alguns
217

conceitos, considerados limitados, assim como ampliando, demasiadamente, o conteúdo


do texto que integra a proposta de “Estatuto do Cigano”. Vejamos, abaixo, alguns
trechos da justificativa apresentada:
Acerca do art. 11 – que obriga o poder público a promover políticas públicas
para a população cigana –, é preciso assinalar que todos os brasileiros,
inclusive os ciganos, já têm garantido, legalmente, o acesso às ações e
serviços do SUS, inclusive as medidas de prevenção e controle de doenças e
de outros agravos, o acesso a medicamentos, o planejamento familiar, o
acompanhamento pré-natal, o tratamento dentário e a orientação e
conscientização para prevenção do uso de drogas ilícitas.

Ademais, essa enumeração de políticas ou ações de saúde é imprecisa. O


acesso a medicamentos deveria ser explicitado como acesso à assistência
farmacêutica. A expressão “tratamento dentário” é muito restrita no que
concerne à saúde bucal. O acompanhamento pré-natal é somente uma etapa
da assistência à saúde materno-infantil, devendo ser acompanhado do
atendimento ao parto, ao puerpério e ao neonato, além das diversas ações de
saúde da mulher (como o atendimento ginecológico, realizado em períodos
fora da gravidez) e também de saúde do bebê e da criança.

Outro ponto a ressaltar é que essa enumeração é muito incompleta, tendo


omitido inúmeras ações e políticas de saúde conduzidas pelos gestores do
SUS e capazes de beneficiar a população cigana, a exemplo de: ações de
promoção da saúde; Política Nacional de Alimentação e Nutrição; Programa
Nacional de Imunizações; ações e programas de saúde mental; Estratégia de
Saúde da Família (ESF); Política Nacional de Urgências; Programa Saúde na
Escola (PSE).

Além da imprecisão e da insuficiência presentes na enumeração das


políticas, é preciso apontar que a população cigana precisa de medidas
que propiciem o acesso às ações e aos serviços existentes, e não de ações e
políticas dirigidas a aspectos específicos de sua epidemiologia. Nesse
sentido, diferentemente da população indígena, cuja assistência à saúde,
além de respeitar os aspectos culturais, precisa atender aos indicadores
epidemiológicos definidos por características raciais e pelo isolamento
geográfico (como, por exemplo, a menor proteção contra os microrganismos
que circulam nos ambientes urbanos e em seus habitantes), e também da
população negra, cujas peculiaridades epidemiológicas derivam de fatores
raciais que acarretam maior incidência de algumas doenças (como
hipertensão e anemia falciforme, por exemplo), a especificidade da
assistência à saúde dos ciganos deriva principalmente de aspectos de seus
costumes e sua cultura. (BRASIL, 2018h, p. 6-7, meus destaques)

De acordo com a Nota Técnica do MPF, “a redação aprovada pela Comissão


adequa-se melhor às finalidades da norma” (2018, p. 16). Primeiramente, na
fundamentação desenvolvida para justificar a mudança no texto da lei, alegou-se que a
proposição inicial estava “imprecisa” e “insuficiente”, no que tange a enumeração das
políticas na área de saúde destinadas aos ciganos. Além disso, indicou que o Estado
deve viabilizar o acesso das populações ciganas às “ações e aos serviços existentes, e
não de ações e políticas dirigidas a aspectos específicos de sua epidemiologia”. Para
tanto, mobilizou-se a “população indígena” e a “população negra” como parâmetro
comparativo. Contudo, ao meu ver, partiu-se de um pressuposto equivocado, ao se
218

defender que a especificidade dos ciganos decorre “principalmente de aspectos de seus


costumes e sua cultura”, enquanto destacou “fatores raciais” nos outros dois grupos.
Ou seja, minimizou-se a condição de minoria étnica dos “ciganos”. Nesse
sentido, é oportuno partir da crítica que Barth (1969) faz ao conceito de “grupo étnico”
como “unidade portadora de cultura” para concebê-lo como um “organizational type”.
Segundo essa definição um grupo étnico designa uma população que:
1. se perpetua sobretudo por meios biológicos
2. compartilha de valores culturais fundamentais, colocados em prática em
formas culturais num todo explícito
3. integra um campo de comunicação e interação
4. apresenta um grupo de membros que se identifica e é identificado por
outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias
da mesma ordem (BARTH, 1969, p. 10-11, minha tradução).

Percebo que classificar os ciganos enquanto uma “minoria étnica” é forma como
o “Estado”, em geral, traduz os “ciganos” na sociedade, assim como por meio da
expressão “povos e comunidades tradicionais”. Ao meu ver, a proposta teórica de Barth
dialoga com esta perspectiva que hoje tem viabilizado a reivindicação dos “ciganos”
pela criação do “Estatuto”, em pautar políticas públicas específicas, levando em conta
que as identidades étnicas não estão restritas a alguns aspectos culturais, especialmente
àqueles atribuídos pelo imaginário social que os reduzem, por exemplo, ao
“nomadismo”.
Como observou os pesquisadores Manoel Almeida, Débora Barbosa e José Ivo
Pedrosa, há elementos que estão relacionados à “etnia cigana”, embora não sejam
determinantes, como o nomadismo e suas implicações, porém, destacam também as
“péssimas condições de habitação e saneamento básico, baixa escolaridade, estrutura
familiar nuclear, preconceito marcante, dentre outros, corroboram para necessidades em
saúde que são próprias do grupo e que exigem formas especiais de atenção e cuidado”
(2013, p. 1127).
É fundamental ponderar que a prática do “nomadismo”, que é constantemente
citada ou associada à realidade dos povos ciganos, não pode e nem deve ser interpretada
como um aspecto inerente a esta “minoria étnica”, mas sim como um resultado de anos
e séculos de interação pautado em relações assimétricas, entre “ciganos” e “não
ciganos”. Esta associação, conforme irei também explorar no tópico “3.2.3” deste
capítulo, representa um dos maiores obstáculos para o reconhecimento de direitos e para
a execução de políticas públicas, especialmente no âmbito habitacional e de acesso à
terra27.

27
Destaco que produzi em parceria com a antropóloga Edilma Monteiro o “Parecer técnico sobre o direito
à moradia e o acesso à terra no projeto de lei do ‘Estatuto do Cigano’”. Este documento foi solicitado pela
219

Por sua vez, na questão da saúde, os relatórios legislativos submetidos e


aprovados na CAS apresentaram ponderações relevantes sobre o aspecto do
“nomadismo” na realidade dos “povos ciganos”. Ressaltou que há grupos que ainda
possuem práticas de itinerâncias e que por isso apresentam dificuldades de serem
abarcados num contínuo atendimento de saúde, e, ao mesmo tempo, que também
destacou que houve um aumento de grupos e famílias que sedentarizaram, e que nem
por isso deixaram de pertencer ou manter práticas tradicionais associadas aos “ciganos”.
Vejamos:
Além desses aspectos culturais, há fatores relacionados à forma de ocupação
geográfica dos espaços pelos ciganos. Diferentemente dos indígenas
brasileiros, cujo atendimento de saúde é dificultado pelo fato de estarem
fixados em áreas remotas de floresta, os ciganos impõem desafios ao sistema
de saúde quando pertencem a grupos nômades e que não fixam residência.
Essa característica pode prejudicar seu acompanhamento pela ESF, a
continuidade da assistência prestada nos serviços de saúde da Atenção
Básica, a efetividade das ações do PSE e o atendimento prestado pelos
veículos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192).

No entanto, a despeito de os grupos nômades ainda existirem no território


nacional, observa-se crescente número de núcleos familiares sedentarizados
em bairros e cidades, na procura por melhores condições de vida, saúde e
educação, mas que não perderam a essência de suas tradições e costumes
ciganos passados de geração a geração. (BRASIL, 2018h, p. 9)

Não há como separar a forma como alguns grupos e famílias extensas ciganas
ocupam os territórios dos “aspectos culturais”, tratando como elementos separados. A
interação com os territórios, independentemente de haver uma preponderância de
práticas nômades ou havendo um contexto entendido como sedentarização, não estão
desassociadas das relações étnico-raciais e, consequentemente, da constituição das
identidades ciganas. A condição étnica dos povos ciganos os impõe situações de
vulnerabilidade social, sendo as questões geográficas parte deste cenário, pois, assim
como é para outros grupos historicamente subalternizados, a classe, a raça, o gênero são
marcadores sociais que influenciam na divisão e na ocupação do espaço. Por isso, não é
por acaso ou por um aspecto meramente cultural que haja a presença de muitos grupos
ciganos vivendo em territórios periféricos e/ou em moradias precárias, ponto que
retomarei no tópico “3.2.3”.
Há outro aspecto a ser refletido, que deve ser compartilhado aqui neste
subtópico, que decorreu da Emenda nº 11, aprovada na CAS. Além do dispositivo do

assessoria do Senador Telmário Mota, após ouvir minha explanação sobre o tema durante o “Encontro dos
Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”, realizado em 20/08/2020. Sugerimos neste
parecer que a redação do PLS 248/2015 fosse acrescentada no sentido de ampliar as possibilidades de
políticas públicas que garantam o direito à territorialidade cigana, buscando superar os estereótipos
inseridos no imaginário social, sobretudo quanto ao nomadismo. Este documento encontra-se disponível
no portal virtual da ASCOCIC .
220

PLS 248/2015 que versa sobre o direito à educação, a questão de gênero também se
manifestou no trecho ajustado do projeto de lei que aborda o “direito à saúde”, embora
de uma forma mais sutil. Refiro-me às redações adicionadas ao “art. 11” do Estatuto do
Cigano, por meio dos incisos III e IV do art. 11, respectivamente, “saúde
materno-infantil” e “saúde do homem”.
No caso da abordagem na área de saúde direcionado às mulheres ciganas,
apresentou-se a seguinte fundamentação:
i. o casamento de adolescentes (por tradição e costume de alguns núcleos
familiares, elas se casam entre os 12 e 15 anos);

ii. o costume de seguir as orientações da família no período gestacional (o


que compromete o entendimento da importância do pré-natal e do
acompanhamento de profissional de saúde; por isso, algumas gestantes
chegam às unidades de saúde já em trabalho de parto e acompanhadas por
parentes) e de recorrer ao saber tradicional da parteira;

iii. o controle da natalidade e a contracepção serem praticamente uma


transgressão à sua cultura (ter filhos e filhas é considerado uma dádiva para
uma mulher cigana);

iv. o medo de se submeter a procedimentos de saúde (mesmo as mulheres


pertencentes a grupos familiares que acessam regularmente os serviços de
saúde e têm conhecimento dos exames ginecológicos preventivos, como o
Papanicolau, ainda têm receio de realizar o exame);

v. os elevados índices de depressão (por causa das tensões originadas de


conflitos cotidianos, do enfrentamento ao preconceito e das perdas de filhos e
filhas, cônjuge e parentes);

vi. os problemas físicos e as dores (como a ciatalgia e a lombalgia, originadas


de suas tarefas domésticas, das longas caminhadas para as vendas diretas dos
seus produtos e do enfrentamento à violência e ao preconceito dentro e fora
de sua comunidade);

vii. a vergonha de procurar uma unidade de saúde (principalmente entre as


mulheres mais novas) e a proibição de irem sozinhas ao hospital ou de serem
atendidas por médicos do sexo masculino (essa é uma realidade restrita a
algumas comunidades ciganas; há relatos de casos em que as mulheres
ciganas são orientadas a procurar o melhor profissional, seja uma médica ou
um médico, conduta relacionada ao maior nível de escolaridade das famílias
e à melhor condição financeira de algumas delas). (BRASIL, 2018h, p. 7-8)

Em relação à saúde dos homens ciganos, o relatório legislativo compartilhou a


seguinte justificativa:
[...] o maior problema é que grande parte deles não se vê dentro de um
serviço de saúde e muito menos numa consulta preventiva, por considerarem
que hospital e médico é coisa de mulher, criança e doente. Por isso, os
homens só buscam os serviços de saúde quando os sintomas das doenças já
estão em um estágio bem avançado. Além disso, assuntos relacionados à
saúde íntima do homem cigano – a exemplo do uso de camisinha, do exame
de próstata, das doenças sexualmente transmissíveis e de assuntos do gênero
– simplesmente não existem dentro das comunidades (tal contexto evidencia
que, nos serviços de saúde, esses assuntos precisam ser abordados somente
por profissionais homens). Por fim, os ciganos apresentam problemas de
tabagismo e alcoolismo, além de sofrerem o estresse originado de sua
221

condição de provedores e preservadores da família e de responsáveis por


“transmitir” o sangue cigano e garantir a continuidade de sua linhagem.
(2018h, p. 8-9)

Vale destacar que as supracitadas justificativas, apresentadas no relatório


legislativo do Senador Hélio José e aprovadas no CAS, foram extraídas da cartilha
“Subsídios para o Cuidado à Saúde do Povo Cigano”, produzida pelo Ministério da
Saúde, em parceria com a AMSK, associação que participou das primeiras negociações
para a criação do “Estatuto” e que esteve presente, inclusive, na audiência pública de
2012, conforme registrei e abordei no 2º Capítulo desta tese. Esta cartilha faz uma série
de citações a outra publicação, de 2014, organizada pela AMSK, intitulada “Redução
das desigualdades em saúde nas comunidades ciganas no Brasil: subsídios para
discussão”28.
Interpreto que tais acréscimos na redação do “Estatuto do Cigano” podem
reforçar uma abordagem sexista, que cristaliza a divisão sexual do trabalho nas
comunidades e famílias cigana, na medida em que relaciona no mesmo inciso a “saúde
materno-infantil”. Não se menciona a “saúde da mulher” separado de “saúde infantil”,
como no “inciso IV”, que propõe uma abordagem específica para a “saúde do homem”.
A condição de mulher da cigana é condicionada à função reprodutiva, ou seja, a ser
mãe. Além disso, a redação nova apresentada praticamente consolida a ideia que é
apenas dever da “mãe” se responsabilizar pela “saúde infantil” e não de ambos os
genitores, ou seja, os pais.
Segundo a socióloga Maria Betânia Ávila, a dinâmica de relacionar a
responsabilidade e o cuidado com as crianças como atribuição inerente às mulheres
reflete, na verdade, uma “concepção tradicional do feminino” que pode até “ser
questionada e, em algumas situações, alterada, mas não está superada”. A autora
pondera que “essa concepção ainda é dominante nas instâncias de poder responsáveis
pela produção de políticas públicas e de normas que regulam as relações sociais”
(ÁVILA, 2002, p. 42).
Neste mesmo ensejo, a socióloga Helena Hirata afirma que embora tenha
ocorrido alterações na tendências no trabalho profissional feminino, “as mudanças no
trabalho doméstico são pequenas e muito lentas”, isto é, “a divisão sexual do trabalho
28
Segundo o prefácio da obra: “Este estudo foi elaborado com base nas informações coletadas em rodas
de conversa com comunidades romani de etnia Calon e Rom, tendo a especial contribuição das lideranças
romani: Daniel Rolim, José Ruiter, Zanata Dantas, e Alexsandro Castilho. Baseou-se, ainda, na legislação
vigente no país relacionada ao funcionamento do SUS. Os dados coletados pela Pesquisa de Informações
Básicas Municipais (MUNIC 2009 e 2011) do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE) e
aqueles oferecidos pelo Cadastro Único de Programas Sociais do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate a Fome (MDS) também tiveram um papel central na elaboração desta análise” (COSTA;
ROLIM, 2014, p. 4).
222

doméstico e a alocação das tarefas domésticas para as mulheres não mudaram de fato”
(2005, p. 117).
É inegável que as formulações e execuções de políticas públicas devem dar
ênfase à “saúde do homem”, como inclusive foi sugerido nas discussões do grupo
criado pela assessoria do Senador Telmário Mota. Trata-se de um público que não
costuma buscar acompanhamento regular na área de saúde, e isso é geral, não apenas
entre os homens ciganos (BRAZ, 2005). E não se trata de uma questão biológica do
homem, mas sim dos papéis gêneros que são socialmente construídos e normatizam a
masculinidade, que se afirma negando a necessidade do autocuidado, supostamente
associada ao feminino, que é tratado como sinônimo de fragilidade.
Provavelmente a redação do texto de lei alterado na Comissão de Assuntos
Sociais que versa sobre o “direito à saúde” não especificou a necessidade de atenção à
“saúde da mulher”, pois, diferentemente dos homens, estas são mais habituadas a buscar
atendimento regular de saúde. Deixa-se, assim, implícito e disperso na redação do texto
da lei a questão da saúde da mulher cigana.
Contudo, segundo o ativista e intelectual cigano Aluísio de Azevedo Silva
Júnior, em tese de doutorado, os ciganos, em geral, “não costumam frequentar as
atividades coletivas oferecidas pelo centro de saúde” (2018, p. 429), sem especificar o
gênero ou o sexo. Por isso, no aspecto da saúde, pode-se dizer que a abordagem que foi
dada no PLS 248/2015 ainda é insuficiente, por não expressar a necessidade de atenção
específica também à “mulher cigana”, que, ao invés disso, se limitou a contemplar o
âmbito da maternidade. Este autor pontua ainda que
uma das principais reivindicações específicas acerca da saúde cigana,
levantada como uma demanda fundamental por muitos grupos e ativistas
ciganos: o cuidado das instituições de saúde em colocar apenas
profissionais do sexo masculino para atender a população cigana do sexo
masculino e o mesmo procedimento de atender as mulheres ciganas com
profissionais do sexo feminino. (SILVA JÚNIOR, 2018, p. 279, meu
destaque)

A supramencionada reivindicação compartilhada pelo pesquisador Aluísio de


Azevedo Silva Júnior em sua tese de doutorado, ou seja, pela necessidade de uma
abordagem específica para as mulheres ciganas, também surgiu no grupo de discussões
criado pela assessoria parlamentar do segundo relator do PLS 248/2015. Trata-se de
uma reivindicação recorrente exigir a presença de profissionais de saúde que sejam
mulheres para promover o atendimento às ciganas. Frisa-se que este pesquisador e
ativista cigano fez parte do grupo e colaborou com os debates ocorridos neste espaço
virtual.
223

De todo modo, quando eu acuso a presença de uma perspectiva sexista na


questão da saúde por conta da expressão “materno-infantil”, não pretendo negar que
haja uma divisão sexual do trabalho entre as famílias ciganas e que ocorra uma maior
assunção de funções domésticas pelas mulheres, até porque não é o objetivo desta
pesquisa. Percebe-se que a “criação de lei”, no caso da tramitação do PLS 248/2015,
além de reforçar e positivar papéis de gênero que histórica e socialmente foram, assim
como ainda são atribuídos ao “feminino”, acaba também atribuindo significados, e
produzindo sentidos acerca do que é ser uma “mulher cigana”. Como toda identidade é
atravessada por fronteiras, esses jogos envolvem também disputas de concepções sobre
os “homens ciganos”.
O ethos cigano, resultado de uma história de dominação e massacre
racista-colonial, define-se a partir de uma alteridade contínua e total frente ao não
cigano (SERNA, 2016). As identidades étnicas, assim como os papéis de gênero não
são estáticos, estão em constante transformação e ressignificação. Por essa razão, é
fundamental que a busca pela equidade racial no Brasil e pela inclusão dos povos
ciganos não ignore as questões de gênero, problemática que surgiu de forma tangencial
nas negociações pela aprovação do “Estatuto”, mas que é igualmente relevante.

3.2.2 - “Além de tudo, somos cidadãos brasileiros”

Durante a pesquisa de campo, notei o quanto a condição de “brasileiros” foi


mobilizada pelas pessoas que se identificam como “ciganas”, presentes nas audiências
públicas e nos demais espaços institucionais, para reivindicar direitos, políticas públicas
e um marco legal específico. Como advertiu Mirian Souza, por conta do contexto das
políticas públicas, a “identidade cigana” tem passado por um processo de redefinição de
suas fronteiras. “É preciso definir quem são os sujeitos de direitos, responder quem são
os ciganos” (2013, p. 223).
“Ser cigano”, assim como “ser brasileiro” são fronteiras identitárias que não
podem ser pensadas a partir de binarismos. Portanto, são identidades que não se anulam,
pois, é possível, ao mesmo tempo, “ser braileiro” e “ser cigano”. Como mostrarei neste
subtópico, o “ser também brasileiro” é um pressuposto acionado pelos agentes políticos
atuantes nas negociações pela criação do “Estatuto” para pautar a condição dos
224

“ciganos” e das “ciganas” como “sujeitos de direitos”29. Tratando-se, assim, de um


recurso estratégico fundamental no processo de “luta por direitos”.
Como ressaltou Claudio Ivanovich, liderança cigana do estado do Paraná,
durante a audiência pública realizada na CDH do Senado, em dezembro de 2012, “o
Estado esquece que a criança que nasce debaixo da tenda é, antes de tudo, um cidadão
brasileiro, só depois vindo sua origem cigana”, (ALTAFIN, 2012, meu destaque). No
mesmo sentido, afirmou a Sra. Imar Garcia, representação cigana da cidade de
Santos-SP, em sua participação na audiência pública de 2018, no Senado Federal:
“confiamos em vocês (senadores) que nós teremos esse Estatuto [...] quando pedíamos
o Dia Nacional dos Ciganos, muitas pessoas riram de nós, não é verdade? E hoje nós
temos o nosso dia, porque, além de tudo, somos cidadãos brasileiros” (TV SENADO,
2018c, meu destaque).
Dizer “sou brasileiro” ou “sou cigano”, na verdade, é parte de uma extensa
cadeia de “negações”, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Quando se
declara “sou brasileiro”, deve ser lido “não sou argentino”, “não sou estrangeiro” ou
quando se diz “sou cigano”, deve ser lido “não sou gadjó” e assim por diante, numa
cadeia, neste caso, quase interminável, ou seja, o caminho a tomar aquilo que somos
como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos.
“Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade [...]
Identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (SILVA, 2007, p. 73).
Um fator determinante da ciganidade é a firme aceitação do fato que o
mundo está dividido entre Romá and gadzé, e isso, acima de tudo, que
garantiu a perpetuação do povo romani. A divisão entre esses dois mundos é
mantido pelo comportamento cultural e pelo reforço em uma falar uma língua
própria. Os não ciganos e a cultura não cigana são vistas como ameaçadoras
para a romanipe (ciganidade) e por isso devem ser evitada. (HANCOCK,
1991, p. 254, meu destaque, minha tradução).

Ter uma nacionalidade, reivindicar o pertencimento étnico, ser “cidadão” de um


determinado país são marcadores da diferença, uma forma de distinção que também
informa uma identidade, que é constituída contraposta a outras identidades; possibilita
acessar, circular por determinados espaços, dentro de uma fronteira, assim como
permite acessar ou reivindicar determinados direitos.

29
De acordo com Mirian Souza, a atuação de Mio Vacite, liderança cigana, que em sua tese chama de
“agente político”, busca dialogar com os elementos que fazem parte da narrativa nacional brasileira, em
que permite mostrar “que os ciganos são brasileiros, mas que possuem especificidades culturais, como a
língua. No discurso de Mio, a UCB vem desde a década de 1990 promovendo a representação dos ciganos
como uma minoria étnica com língua e modo de vida diferenciados, mas parte constitutiva da nação
brasileira (a reivindicação como brasileiros é sempre fundamental e não apenas para os ciganos, sendo
comum a todos os grupos de imigrantes no país)” (2013, p. 189-190).
225

A cidadania, assim como as identidades, de modo geral, é pautada na diferença,


na exclusão e, sobretudo, na hierarquia. Hannah Arendt acredita que o Estado, enquanto
“Estado-Nação”, se fundamenta justamente na exclusão do estrangeiro e minorias
sociais (2009, p. 300- 336). Para esta filósofa, as pessoas necessitam de duas coisas para
sobreviver em sua humanidade: o “direito a um lugar” e o “direito a ter direitos”. Como
também concluiu o antropólogo Dimitri Fazito de Almeida Rezende, “parece-nos
imprescindível possuir uma nacionalidade ou algum lar exclusivo e fixo chamado
‘Nação’. Aqueles que não possuem uma nacionalidade se transformam logo em
“alienígenas” ou marginais perigosos que podem pôr em risco toda a ordem social”
(2000, p. 119, grifo do autor).
Como não existe um “Estado cigano”30, não é admitido, oficialmente, a
existência de uma “nacionalidade cigana” (no sentido formal para emissão de
passaporte, por exemplo), pois a concepção moderna de nacionalidade é pautada a partir
de uma ideia de pertencimento a um lugar que seja reconhecido como de um
“Estado-nação” soberano. Nesse sentido, reivindica-se também a condição de “cidadão”
do país em que se encontra, como uma estratégia de sobrevivência e também de acesso
a direitos. Noto, entre os informantes “ciganos” que dialoguei, que há sim um
sentimento de pertencimento a uma “nação cigana”31, que não os impedem de sentir
pertencentes também a outra nação, acumular identidades. Sobretudo quando se está em
jogo o reconhecimento de “direitos”.
Para Rezende, “o nacionalismo cigano parece se manifestar de forma inovadora,
pois apresenta um padrão diferenciado no qual as representações coletivas sobre a nação
transcendem as fronteiras do espaço físico, do Estado e do mercado” (2019, p. 125).
Assim, este autor defende que “a idéia da ‘Nação Cigana’ encontra ressonância não só
nas imaginações de ciganólogos e alguns intelectuais ciganos, mas também se incorpora
à realidade vivida por muitos deles, reinventando suas próprias tradições e imaginando a
comunidade por caminhos alternativos” (2000, p. 131). Ao tentar compreender os

30
Embora não exista o status de “estado cigano” soberano na comunidade internacional, “em 1979, a
Romano Yekhipé (União Romani), uma organização executiva criada durante o segundo congresso
internacional, representando 71 associações em 21 países, é reconhecida oficialmente pelas Nações
Unidas, adquirindo o status consultivo. Os ciganos passam a ser considerados minorias étnicas
segundo o estatuto da ONU” (REZENDE, 2000, p. 143, grifo do autor).
31
A este respeito, Rezende concluiu que “a sensação de pertencer a um grupo, a uma comunidade, não
implica apenas a constatação e aceitação da existência de normas, valores, artefatos e sinais manifestos ou
de um território físico com fronteiras visíveis. O que se aprende com os ciganos é que esta sensação de
pertencimento é muito mais um estado de espírito, intangível por caminhos comuns, pois pode apenas ser
vivenciada, experimentada cotidianamente em momentos intensos de confraternização” (2000, p. 162,
grifo do autor).
226

sentidos em torno da mobilização do sentimento de pertencer à “nação cigana”,


Rezende sintetizou afirmando que:
[....] as tradições, imagens, metáforas e retóricas são redefinidas e
incorporadas em um esquema discursivo e prático próprio do cigano, uma
espécie de ideologia nacionalista cigana que os possibilita imaginar e
vivenciar a comunidade étnica como Romanesthàn. Neste momento, as
hierarquias internas, as categorizações intraétnicas, as distâncias estruturais,
códigos, valores morais e símbolos são reinterpretados e reorganizados
através da experiência comum. A própria percepção do Outro se modifica por
algum momento, e aquele tratado como matchuano pode ser tratado como
Roma; aquele que antes se apresentava como um “cigano brasileiro” (Calon)
passa a se apresentar como um “cigano” (rom); assim, a ‘comunidade total’, a
idéia da ‘Nação Cigana’ se concretiza, mesmo que momentaneamente, nas
experiências e representações dos ciganos sobre si mesmos. (2000, p. 132,
grifos do autor)

É importante pontuar que o “Estado-nação” é uma criação da modernidade


reivindicada a partir do eurocentrismo, é uma instituição que as classes dominantes de
suas respectivas épocas mobilizaram para organizar o mundo, acumular riquezas e
explorar a força de trabalho, a partir dos séculos 15 e 16. Todavia, nem sempre os
territórios e os grupos étnicos, povos ou sociedades se organizaram por meio de
“Estados-nações” (QUIJANO, 2005).
Segundo Aníbal Quijano (2005), os dominadores coloniais de cada um dos
mundos (o chinês, o hindu, o egípcio, o helênico-romano, o maia-asteca ou o
tauantinsuiano, a título de exemplo) não tinham as condições, nem provavelmente o
interesse, de homogeneizar as formas básicas de existência social de todas as
populações de seus domínios. A divisão do mundo a partir dos Estados, enquanto
“Estados-Nações”, que, de acordo com Quijano, começou a formar-se com a América,
tem em comum três elementos centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da
população mundial: a colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo. Embora
o “Estado-nação” seja constituído a partir de uma ideia de homogeneização interna da
sua população, este padrão de poder (e de civilidade) não implicou que a
heterogeneidade histórico-estrutural tenha sido erradicada dentro de seus domínios.
O que sua globalidade implica é um piso básico de práticas sociais comuns
para todo o mundo, e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera
central de orientação valorativa do conjunto. Por isso as instituições
hegemônicas de cada âmbito de existência social, são universais para a
população do mundo como modelos intersubjetivos. Assim, o Estado-nação,
a família burguesa, a empresa, a racionalidade eurocêntrica. (QUIJANO,
2005, p. 7)

A associação do “ser cigano” ao “nomadismo”, como algo inerente a sua


condição “genética”, transmite a ideia que se trata de uma população sem origem, sem
raízes, selvagens e, consequentemente, sem nacionalidade e sem direitos. Esta relação
também surgiu ao longo da tramitação do PLS 248/2015, assim como nas audiências
227

públicas realizadas no Congresso Nacional em 2011 e 2012, ou seja, anteriormente à


submissão formal do projeto no Senado, tendo sido levantada por diferentes atores.
Além disso, como mencionei no segundo capítulo, anteriormente à tramitação do
PLS 248/2015, o ex-parlamentar constituinte Antônio Mariz tentou incluir a expressão
“nomadismo” na Constituição Federal de 1988, por meio da “Emenda 1P14984-3”. Esta
proposta não foi aprovada na Assembleia Nacional Constituinte. De toda forma, devo
pontuar que a referência aos “ciganos” estava na justificativa da proposta de emenda à
Constituição, e não no próprio texto da emenda, ou seja, a questão do “nomadismo”
teve mais relevância que a própria identidade étnica.
Como apresentei no tópico “3.2.1”, acerca do “relatório legislativo” aprovado na
CAS, a “questão do nomadismo” apareceu na justificativa da mudança da redação do
dispositivo do projeto de lei que se refere ao acesso dos “povos ciganos” às políticas de
saúde. Todavia, houve também outros momentos em que o elemento “nomadismo” foi
levantado, relacionado ao fator “reconhecimento” e “acesso aos direitos”.
Por exemplo, Marlete Queiroz, uma das primeiras “referências ciganas” a
aparecer no Congresso Nacional, pontuou na audiência pública sobre a “cidadania
cigana”, em maio de 2011, que o preconceito aos “ciganos” não se restringe aos grupos
que possuem práticas consideradas “nômades”. Observem no trecho do seu discurso que
compartilho abaixo:
Marlete Queiroz: [...] a senhora (dirigindo-se à deputada Erika Kokay) disse que os
ciganos nômades são discriminados, mas eu vou um pouquinho além deste. Tem
comunidades, como de Formosa que tem aqui, a Elza que é presidente da associação, que
mora mais de 30 anos, ela não consegue trabalho em Formosa porque ela é cigana, e estão
assentados há mais de 30 anos, então vai além do nomadismo, vai além disso. (TV
SENADO, 2011, meus destaques)

De outra forma, o procurador da República Luciano Maia, convidado especial e,


ao mesmo tempo, idealizador da audiência pública sobre os “direitos dos povos
ciganos”, realizada em dezembro de 2012, também se referiu a esta questão do
“nomadismo”. Vejamos:
Sr. Luciano Maia: O que é importante, portanto, é que consigamos entender a necessidade
de conhecer, concretamente, cada comunidade. Mas, apesar de não sabermos,
concretamente, qual é a dificuldade de cada comunidade e a sua produção cultural, Senador,
é possível, antecipadamente, identificar quais são os problemas que vivem.

E o primeiro deles vem a partir da não existência de um reconhecimento a uma área de


estacionamento ou de acampamento, e, a partir daí, a um lugar onde possam ter acesso à
água, a energia, a uma habitação e dignidade, respeitando a sua cultura.

Como consequência, pelo fato de acharem que são não só nômades mas vadios,
vândalos, digamos assim, que vivem em circulação, uma sociedade sedentarizada tem
medo do que não conhece e mais medo, ainda, daquilo que não conhece e não estará
aqui, amanhã, na sua concepção, quando os fatos concretos desmentem isso e os ciganos
228

não ficam vadiando pelo mundo inteiro como se não tivessem propostos econômicos.
(BRASIL, 2012e, p. 962, meu grifo)

Em outros momentos, no conjunto das reportagens produzidas pela TV Senado


sobre a tramitação do “Estatuto do Cigano”, publicadas em abril e maio de 2018, o
procurador da República Luciano Maia abordou o fator “nomadismo sazonal” para se
referir a realidade dos “povos ciganos”. Compartilho, abaixo, trechos das duas
diferentes reportagens:
Dr. Luciano Maia: [...] o nomadismo sazonal também é visto com desconfiança e a partir
da falta de infraestrutura de sustentação para os ciganos, a eles são atribuídos outros
adjetivos desqualificativos. Então na verdade, aprender a conhecer o cigano, a sua história e
como ele pode contribuir para o modo de vida da sociedade hoje é um grande avanço. (TV
SENADO, 2018d, meu destaque)

Repórter Carla Benevides: Procurador, o senhor é muito próximo aos ciganos, quando
trabalhou na procuradoria lá na Paraíba, na procuradoria pelos direitos dos cidadãos. O que
o senhor pôde identificar, quais são as principais queixas dos ciganos?
Dr. Luciano Maia: A primeira delas é que eles não são reconhecidos na sua diferença. A
diferença significando que eles têm um modo de viver próprio, vivem em casas, alguns,
mas também em barraca, mas particularmente eles praticam o nomadismo sazonal, é o
nomadismo que procura integrar-se com outros grupos humanos para vender bens e
serviços e fazem isso periodicamente. Então as rotas de imigração econômica dos ciganos
são sempre em busca de outros nichos econômicos humanos. No Espirito Santos, por
exemplo, vão para o litoral, é, no Paraná também. Enfim, tentando identificar qual é o novo
mercado onde pode apresentar os seus bens e os seus serviços. É, por outro lado,
percebemos lá literalmente em Sousa os ciganos estão à margem da cidade, da sociedade,
com dificuldades de serem introduzidos porque são vistos não só como diferentes, mas
inferiores. Há muito de racismo nesta abordagem. Isso resulta também no processo de
urbanização terrível que o Brasil viveu nos últimos 60 anos. Nós tínhamos há 60 ou 70 anos
atrás uma população 80% rural e 20% urbana. Hoje nós temos 85% urbana e apenas 15%
rural. Qual a consequência disso? Os espaços de sombra, os espaços junto de córregos, os
espaços nas fazendas desapareceram e os ciganos deixaram de ser bem-vindos nesses
espaços tradicionais. (2018b, meus destaques)

Dois anos antes do PLS nº 248/2015 começar a tramitar no Congresso, ocorreu


uma audiência pública, realizada na CDH do Senado, em novembro de 2013, convocada
para discutir a necessidade de um marco legal voltado aos “povos e comunidades
tradicionais”. Durante este evento, Maura Piemonte, liderança cigana atuante nos
conselhos nacionais, também se referiu à problemática do “nomadismo”, no que tange
ao reconhecimento de “direitos”. Além disso, aproveitou para reforçar a “condição de
brasileiros” dos “ciganos”. Vejamos:
Maura Piemonte: [...] Nós somos sujos sim, porque quando nós chega na prefeitura, pra
pedir para entrar no município, eles só deixam a gente ficar na beira da estrada, onde não
tem água. Aí a gente sai pedindo água aos lugares mais próximos, ai, se não tiver, a gente
fica sem tomar banho. ‘Pra quê cigano quer território? Ele é nômade!’ Quem diz que
somos nômades por opção? Somos por imposição por uma sociedade que não nos conhece.
[...] Somos ciganos sim, mas somos primeiro ciganos de origem brasileira e eu não vou
admitir que o meu povo que mora em barraca que seja atacado por quem não me conhece.
(TV SENADO, 2013a, meus destaques)

Por fim, devo destacar que a questão do “nomadismo” igualmente apareceu


durante a audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”, realizada na CDH do Senado,
229

em maio de 2018. Natasha Barbosa, representante da SEPPIR durante o evento,


sustentou, em seu discurso, que:
[...] os ciganos vão muito além dessa questão de classificação entre nômades,
seminômades e itinerantes, essa questão que traz justamente do preconceito, do que a
gente pensa saber sobre os povos ciganos, que eles são itinerantes, já mudou. Eles têm essas
condições sim, é, por exemplo, da questão do comércio, a gente sabe que muitos atuam,
justamente comercializando seus produtos. [...] além dessa questão cultural, vai muito além
de saias das mulheres, vai muito além dos homens que tem as suas vestes, que eles
comercializam produtos, vai muito além disso. Nós sabemos que eles também enfrentam
preconceitos, eles enfrentam violações de direitos, e é pra isso que tentamos articular em
forças com todos os representantes, a situação de unir os esforços das instituições, das
representações, da sociedade civil e governamentais dos três poderes, para que nós
consigamos avançar em todas essas políticas, para que se volte em prol dos nossos povos
ciganos, e falo nossos porque enquanto cidadã, eu coloco todos aqui nesse grande bojo que
é a nação brasileira. (TV SENADO, 2018c, meu grifo)

Como se pode perceber, direta ou indiretamente, a dicotomia “nomadismo


versus sedentário” surgiu nas discussões sobre a criação do “Estatuto do Cigano”, assim
como tem aparecido nos demais debates sobre as políticas públicas e sobre os direitos
voltados aos “ciganos”. Ao meu ver, o olhar “essencialista” em relação a alguns
elementos que são associados aos “ciganos”, como o “nomadismo”, promove impasses
nos processos de reconhecimentos de direitos, pois, na maioria das vezes, é mobilizado
para negar o acesso às políticas públicas, gerais ou específicas32. Por exemplo, o “cigano
de verdade”, no imaginário social, é nômade, que vive em tendas, que tem espírito
viajante etc; uma vez distante desse perfil, deixa-se de ser visto como um povo
tradicional que demanda atenção especializada estatal.
Nesse sentido, Rezende defende que a dinamicidade e ao mesmo tempo a
diversidade nas tradições culturais ciganas demanda “uma alternativa teórica capaz de
estabelecer modelos de interpretação que ultrapassem as dicotomias redutoras do
nômade/sedentário ou nação-com-estado/nação-sem-estado, utilizadas com freqüência
nas análises sobre os ciganos” (2000, p. 117). Entendo também que esta alternativa
teórica precisa ser incorporada pelo Estado na efetivação das políticas públicas.
A pesquisadora Patrícia Montini ressaltou que “os Calon”, etnia dos dois
principais interlocutores da minha pesquisa de doutorado, Seu Wanderley e Maria Jane,
“costumam ser conhecidos como ciganos nômades, porém estudos atuais propõem
outro tipo de concepção para o nomadismo” (2017, p. 58, grifo da autora)33. Esta

32
Segundo Edilma Monteiro, “o modo de vida viajante põe em debate questões sobre direitos e políticas
públicas direcionadas a este grupo. Acreditamos entretanto, que, mesmo diante de populações com
identidades e cosmologias próprias, o Estado deve assistir e garantir a efetividade de direitos mínimos às
pessoas ciganas” (2019, p. 81).
33
Nas palavras de Edilma Monteiro, “os Calons se organizam socialmente a partir das contingências nas
relações familiares e de negócios que efetivam rotas, fluxos em movimentos de trânsito”, conformando,
assim, redes. Estas redes, para a pesquisadora, “atravessam e vinculam pessoas, práticas, valores, noções
de pessoa e conhecimentos”. Ao invés de trabalhar com “a dicotomia entre ser sedentário ou nômade”,
230

pesquisadora, por exemplo, refere-se aos estudos de Martin Fotta (2012), que
demonstrou que a dicotomia “nomadismo/sedentarismo” simplifica as relações entre o
“passado” e “presente”, reduzindo o “passado” a um ponto de comparação idealizado e
indiferenciado.
Ao mesmo tempo, esta dicotomia baseia-se em observações descontínuas de
manifestações externas de espacialidade (viver numa caravana versus viver
numa casa), ou seja, formas não-relativas de estar no espaço. [...] Sem
negligenciar o facto de que, no Brasil, os ciganos foram outrora comerciantes
itinerantes (mascote), artistas de rua e prestadores de serviços, desejo mostrar
aqui que existe evidência histórica suficiente do elevado grau de porosidade
que existia entre o nomadismo e o sedentarismo de que esta dicotomia já
não pode ser mantida. (FOTTA, 2012, p. 20, grifo do autor, minha tradução)

Associar a “condição cigana” ao “nomadismo”, como sinônimos, por um lado,


nega aos ciganos com práticas associadas ao “sedentarismo” o status de povos
tradicionais e, consequentemente, de titulares de “direitos culturais”, reconhecidos na
Constituição Federal de 1988 e nas demais legislações infraconstitucionais. Acerca
deste ponto, Rezende advertiu que
o senso comum e a ciganologia freqüentemente definem o cigano como um
indivíduo nômade. Para alguns, o nomadismo seria uma instituição cultural,
já que este fato não pode ser dissociado da cultura cigana sob pena de
descaracterizá-la totalmente. [...] ciganos que deixam de ser nômades se
tornam sinônimo de “ciganos degenerados”, “falsos ciganos” ou “menos
ciganos” — sem tradições. (2000, p. 110)

Por isso, interpreto que esta associação ao “nomadismo”, como parte da


“essência cigana”, gera também uma dificuldade de reconhecer os “povos ciganos”
como “brasileiros”, como partes da formação social e cultural do país, no máximo uma
cultura à parte. É como se o reconhecimento da nacionalidade fosse o pressuposto
preliminar para que os “ciganos” pudessem reivindicar algo, embora a Constituição
afirme, no caput art. 5º, que tanto os brasileiros, como os estrangeiros residentes no
Brasil, são destinatários dos direitos fundamentais. É necessário está sempre
reafirmando que não se tratam de estrangeiros residindo no país ou “pessoas que estão
de passagem”, mas sim “brasileiros natos”34, “brasileiros ciganos”, que também não são
homogêneos entre si.
Por essa razão, ao longo da tramitação do PLS 248/2015, como no “texto inicial”
e nos “relatórios legislativos” apresentados à Comissão de Educação, foi afirmado que

propõe “compreender como essa produção de vida nas idas e vindas compõe o repertório do modo de
produzir pessoas” (2019, p. 64-65).
34
De acordo com o art. 12 da CF/88, há duas modalidades de nacionalidade no Brasil: os “brasileiros
natos” e os “naturalizados”. Há dois critérios gerais adotados para considerarmos uma pessoa “nata”: o
sanguíneo e o territorial, sendo que a maioria dos ciganos preenchem ambos os pré-requisitos, portanto,
não são as exceções previstas no ordenamento jurídico interno. Além disso, a maioria desta população
está no território brasileiro há muitas gerações. E, como foi abordado no primeiro capítulo, há registros da
presença cigana no Brasil desde o século 16.
231

os “ciganos” participaram do processo “formação da sociedade brasileira”35, e, que


ocupam o território nacional, desde os primeiros anos da colonização portuguesa. Estas
afirmações, ao serem mobilizadas, buscam legitimá-los, perante ao Estado brasileiro,
enquanto “sujeitos de direitos”. Ao passo que a Constituição Federal de 1988, nos art.
215 e 216, recepcionou, expressamente, os direitos culturais dos povos e comunidades
tradicionais brasileiros.
Como lembrou Wolkmer, “a Carta Política de 1988 contribui para superar uma
tradição publicista liberal-individualista e social intervencionista, transformando-se num
importante instrumento diretivo propulsor para um novo constitucionalismo, de tipo
pluralista e multicultural” (2010, p. 152). Embora também reconheça a importância da
Constituição Federal de 1988 para a consolidação da ideia de “nação multicultural”,
Maria Lúcia Barbosa e João Paulo Allain Teixeira defendem que
o constitucionalismo brasileiro reproduz em grande parte as constituições
europeias e consequentemente os valores e ideais por elas perseguidos, sem,
contudo, “buscar uma ruptura com um padrão eurocêntrico e mantendo em
segundo plano o reconhecimento da pluralidade diversidade étnica, racial
religiosa e de cosmovisões existentes no continente americano, de modo que
ainda reproduzem em grande medida a colonialidade. (2017, p. 1125-1126)

Os estudos decoloniais permitem explicar que, por meio da “colonialidade do


poder”, o “outro” torna-se interiorizado e racializado na era moderna. Para a
pesquisadora Ioana Vrabiescu (2013), o mito do “nômade cigano”, fomentado a partir
dos séculos 13-15, é uma forma de internalizar na modernidade o “cigano” como o
“outro”, sendo que o nomadismo é relacionado a um estilo de vida socialmente
improdutivo e, ao mesmo tempo, é usado para questionar a condição do “cigano” como
um povo de cultura própria, porque o princípio do pertencimento territorial é tomado
como núcleo da identidade coletiva.
Para Rezende, “o nomadismo seria mais um produto de representações
elaboradas ao longo das interações (campo de forças) entre ciganos e gadjé,
objetivando-se em estereótipos, emblemas, categorias, ações e sentimentos” (2000, p.
112). Este autor propõe que para:
compreendermos o valor do nomadismo para a construção da identidade e
imaginação da comunidade cigana, devemos perceber que, à maneira de um
símbolo etnizado, o nomadismo se torna um elemento, ambíguo e pervasivo,
vivenciado pelos atores em determinados contextos — não é uma categoria
‘natural’ nem imutável (2000, p. 114, grifo do autor).

35
De acordo com o Parecer (SF) nº 20, de 2018, aprovado na CE, “considerando-se o processo em que as
chamadas minorias têm tido seus direitos reconhecidos e as especificidades de suas culturas respeitadas,
nada mais justo do que legislar sobre os povos ciganos, reconhecendo sua relevância e sua contribuição
para a formação da sociedade brasileira, como dispõe a Constituição Federal de 1988 (art. 216)” (2018e,
p. 5).
232

Além disso, voltando para esta questão da colonialidade e, ao levarmos em


consideração a realidade da Espanha analisada pelo pesquisador Garcés, é possível
afirmar que “o anti-cigano/anti-Roma como um produto da modernidade e dimensão da
colonialidade do poder praticada no interior da Europa, baseia-se na própria emergência
dos estados-nação modernos” (2016, p. 228). Este autor acrescenta que é possível
observar como o Estado-nação emergente, mediante as leis/sanções, acumulou seu
poder dentro de suas fronteiras, negando e muitas vezes aniquilando a diferença cigana.
“Com esta legislação anti-cigana, pretendia-se definitivamente obrigar as comunidades
ciganas a se conectarem à terra e usarem seu trabalho duro para construir o estado”
(2016, p. 234). No Brasil, não foi diferente, tanto no contexto da colonização
portuguesa, assim como a partir do período pós-independência, conforme abordei no
primeiro capítulo desta tese.
Portanto, a ideia de “Estado-nação” pode estar associada ao “sedentarismo”, a
viver em um único lugar, dentro de uma fronteira; o que corresponde, justamente, ao
oposto que a “prática nômade” representa, que é associada à identidade e/ou essência
“cigana”. Para poder ser reconhecido como “cidadão”, portanto, seria necessário
distanciar-se do que as representações sociais atribuem à “identidade cigana”, à
“essência cigana”.
Como destacou Ferrari,
Do ponto de vista do Ocidente, esses grupos — que vêm de fora,
comercializam cavalos, apresentam espetáculos, leem a sorte e partem — têm
um lugar claro no sistema classificatório ocidental: são estrangeiros. Mas
além de estrangeiros, os ciganos têm algo particular: ao se relacionarem com
os ocidentais aparentam sempre “ocultar” algo, reforçando sua posição de
“estranho” e a desconfiança decorrente dessa relação. (2002, p. 108)

O imaginário social, construído a partir do eurocentrismo ocidental, passa a


relacionar o fato de uma pessoa não se fixar a um determinado contexto a um modo de
vida errante. E, ao serem também relacionados ao “nomadismo”, os ciganos passam a
ser vistos como pessoas que “não aceitam se submeter à norma de um Estado”
(MONTEIRO, 2019, p. 80). Em outras palavras, “a imagem pejorativa que se liga à
ideia de uma pessoa errante está diretamente ligada a um modo de vida que não é
compreendido, nem aceito pelo Estado” (2019, p. 81). Esta racionalidade, ao ser
incorporada pela sociedade em geral, acaba levando o distanciamento do “ser cigano”
da concepção moderna de “cidadania”, que está atrelada à ideia de “ter direitos e
deveres”36. Uma vez que a pessoa tem práticas, supostamente, “nômades” é,

36
Segundo Martins, a perspectiva do cidadão como um indivíduo conhecedor de seus direitos e deveres é
amplamente conhecida e difundida por diferentes meios. Todavia, este autor pontua que “restringir o
cidadão àquele que simplesmente conhece direitos e deveres é vê-lo enquanto um indivíduo passivo, que
233

consequentemente, classificada como “errante”, pessoa que “não arca com seus
compromissos”. Na verdade, a busca pela sobrevivência, que leva a necessidade das
mudanças, desconsidera o que concluiu a antropóloga Edilma Monteiro, que muitos
“ciganos vivem basicamente do comércio, desta maneira sempre estão se deslocando
para algum lugar onde o comércio esteja sendo valorizado” (2019, p. 80).
A afirmação da identidade e a exposição da diferença traduzem a vontade dos
diferentes grupos sociais, “ciganos” e “não-ciganos”, desigualmente situados, de
garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois,
em estreita ligação com relações de poder. O poder de indicar a identidade e de marcar a
diferença não pode ser desmembrado das relações mais amplas de poder. Declarar a
identidade significa delimitar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica
dentro e o que fica fora (SILVA, 2007, p. 73). O “ser cigano” está inserido numa
fronteira tênue, ao mesmo tempo que está e se manifesta em muitos lugares, é tratado
como um “sujeito” de lugar algum.
O etnônimo “cigano” é uma expressão denominativa criada e imposto pelas
sociedades “não ciganas”, vem “de fora”, entretanto, este nome foi incorporado pelos
mais diversos grupos que a si mesmo se autodenominam “ciganos”. “Nômade” também
é uma classificação externa. Como estão situados em diferentes partes do planeta, estes
sujeitos estão segmentados e subsegmentados em distintos grupos étnicos, a
denominação “cigano” é intensamente generalizante e envolve infinitas formas de
identidades.
Além do “nomadismo”, o imaginário social, a partir de uma lente folclorizada,
muitas vezes tende relacionar os “ciganos” ao uso de roupas coloridas, a intensa
presença de músicas e danças, casamentos arranjados, a moradia em
tendas/acampamentos. Delimita-se uma única identidade, como sinônimo de cultura;
são selecionadas algumas características para reduzir os “ciganos” a uma única forma de
expressão cultural, no aspecto material e imaterial.
Embora argumente contra o essencialismo, Silva (2007) entende que muitas
vezes os grupos dominados, em sua necessidade de criar novas identidades políticas,
apelarão para laços de experiência cultural comum a fim de mobilizar seu público. Por
isso, o “nomadismo”, as perseguições e a diáspora, a dança e a música são elementos
acionados por muitos ciganos, no que Spivak (1987) chama de “essencialismo
estratégico”, para potencializar a ação política, desde que seja enquadrado do ponto de

os recebe e tem de cumpri-los passivamente, isto é, abdicando da possibilidade de ser sujeito no processo
de elaboração deles” (2000, p. 114).
234

vista das posições de sujeito dominado. Segundo Medeiros e Batista, “a associação


entre ciganos e viagem, ciganos e estrada, ciganos e deslocamentos, tornou-se uma
reivindicação e uma aceitação dos próprios ciganos como forma de se caracterizar face
aos outros” (2015, p. 202).
Por exemplo, durante as audiências públicas em que fiz observação participante
ou em outras que tive acesso, por meio de documentos fornecidos pelo Senado Federal,
houve momentos, programados ou ocorridos de forma espontânea, que as
representações “ciganas” cantaram ou dançaram, músicas ou coreografias que são
associados à “cultura cigana”. Assim como notei também que algumas lideranças
ciganas iniciaram seus discursos com palavras e expressões em suas próprias línguas,
que é um dos elementos diácriticos mais importante dos “povos ciganos”.
As “línguas ciganas”, as vestimentas e os conjuntos de acessórios (camisas
estampadas, roupas coloridas37 ou com cores fortes, chapéus de cowboy, lenços, xales,
coletes, joias etc) também são mobilizados, tanto pelos homens, como pelas mulheres
“ciganas”, nos diferentes espaços políticos de interlocução com burocracia estatal para
demarcar a diferença entre os “ciganos” e os “não ciganos”. Mirian Souza ressaltou em
sua tese de doutorado que “a exposição na esfera pública como cigano é marcada por
atores que encarnam estereótipos” (2013, p. 244, grifo da autora), que são usados de
forma usados de forma plural, sendo agenciados e performados de diversas formas. Como há
uma luta pelo reconhecimento de uma identidade, que a partir dela se possibilita acessar
espaços, direitos e políticas públicas, é fundamental o manejo de determinados signos
diacríticos, com fins políticos.
O “essencialismo estratégico” acontece num contexto marcado por
questionamentos ou conclusões equivocadas, que desconsideram determinados grupos
como povos e comunidades tradicionais ou a ideia de pertencimento étnico pelo fato de
usarem “equipamentos tecnológicos”, “possuírem carros” ou “por frequentar a
universidade” (a título de exemplo), sendo acusados de manipularem as “identidades”
para obterem vantagens e privilégios.
Levando em consideração os estudos de Barth, a característica definidora dos
grupos étnicos, como os “ciganos”, é a de serem tipos organizacionais estabelecidos por
categorias de aditamento do tipo “nós” e “outros”. “Os grupos étnicos não são grupos
formados com base em uma cultura comum, mas sim que a formação de grupos ocorre
com base nas diferenças culturais” (BARTH, 2005, p. 16). São decorrentes de interações

37
Para Edilma Monteiro, “o colorido, a alegria, a música e a dança fazem parte das culturas ciganas e vão
variar de contexto para contexto, podendo ser tratados como estereótipos positivos” (2019, p. 80).
235

sociais que elegem e constituem traços físicos ou culturais, valores, instituições etc.,
como signos diacríticos entre pessoas e grupos para determinar formas, normas e
padrões de relacionamento com os mesmos, possibilitando, dessa maneira, a origem e a
manutenção das fronteiras étnicas. Em outras palavras, os grupos étnicos não surgem do
isolamento geográfico, mas de processos sociais produtores da diferença cultural.
Os “sinais diacríticos”, portanto, são as diferenças que os próprios atores
consideram como significativos; são diferenças que podem mudar, mesmo que
permaneça a dicotomia entre “eles” e “nós”, marcada pelos seus critérios de
pertencimento. Barth enfatiza “que grupos étnicos são categorias atributivas e
identificadoras empregadas pelos próprios atores; consequentemente, têm como
característica organizar as interações entre as pessoas” (2000, p. 27).
Barth influenciou o antropólogo Cardoso de Oliveira a desenvolver e refletir
sobre a categoria “identidade contrastiva”, que também é importante para esta tese.
Segundo Cardoso de Oliveira, a identidade contrastiva implica “a afirmação do nós
diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, fazem-no
como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se
defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente”
(2003, p. 120). Os “signos diacríticos” mobilizados pelos “ciganos”, como as línguas, as
vestimentas, as danças e as músicas, por exemplo, são estratégias destes de se
afirmarem perante os “não ciganos”.
Dessa forma, a noção de “manipulação” como “dissimulação” distorce a
realidade e confunde a compreensão acerca da natureza essencial das identidades
étnicas como identidades contrastivas, e também como forma de ação política, fazendo
da identidade, segundo o antropólogo Cristhian Teófilo da Silva, “algo a ser interpretado
negativamente, algo que escamoteia a verdadeira identidade” (2005, p. 117, destaque do
autor). Neste artigo, o autor se refere aos “indígenas misturados”, que são os casos dos
grupos ou indivíduos que há mais tempo e com mais intensidade interagem na
sociedade majoritária, não apresentando mais algumas características ou
comportamentos que o imaginário social julga ser do “índio puro”. Segundo o referido
autor:
Manipular não é necessariamente dissimular, de acordo com o sentido
comumente atribuído a esta palavra. A manipulação no caso dos índios
misturados (ou resistentes, como querem certas lideranças) deve apontar
antes para o uso político de conceitos, descrições, traços diacríticos e da
própria identidade que se encontra “à mão” do manipulador inserido numa
situação histórica particular dentro da qual se luta para participar de forma
mais autônoma. Trata-se, nesse sentido, de uma ação legítima (politicamente
falando). (SILVA, 2005, p. 117-118, destaque do autor)
236

A mobilização de signos diacríticos, que está atrelada à noção de “manipulação”,


deve nos fazer vislumbrar aqui os “ciganos” na qualidade de seres políticos, pois
planejam e delimitam suas ações segundo interpretações próprias das expectativas
impostas sobre e para eles a partir de critérios arbitrários (externos) de “ciganidade” e
autenticidade. De acordo com Weaver (1984), tais critérios são responsáveis por
processos de “etnicização”, que aqui arrisco chamar de “ciganização”, que por sua vez
ressignificam as identidades sociais de grupos sociais particulares em esferas públicas e
privadas.
Nesse sentido, concordando com o antropólogo Cristhian Teófilo da Silva,
embora tenha se referido aos povos indígenas, entendo que “caso não planejassem, não
manipulassem, não questionassem e interiorizassem as expectativas que os outros têm
do que eles são e deveriam ser, se fossem meras vítimas dos processos e representações
sociais mais abrangentes” (2005, p. 118), a “integração” dos “povos ciganos” seria hoje
um fato consumado aferível pela constituição etnicamente homogênea da sociedade
nacional. Todavia, a conformação heterogênea, plural ou multicultural da sociedade
brasileira revela justamente o contrário.
Como mostrarei no próximo subtópico, ao longo da tramitação do PLS nº
248/2015, a diversidade étnica entre os ciganos foi suscitada como um aspecto
relevante, que deve ser levado em consideração na elaboração e no manejo das políticas
públicas. Por outro lado, o fato de estar em jogo a aprovação de um “Estatuto”, com
dispositivos gerais e abstratos, reivindicou-se o reconhecimento de “direitos”, de forma
indistinta, aos “povos ciganos” pertencentes aos diferentes grupos étnicos.
Proponho, nesta tese, que o pressuposto inicial para pensarmos ou elaborarmos
políticas voltadas aos povos ciganos é, como afirmou Rezende, compreendermos a
tradição cultural cigana, abstraindo:
nossas próprias categorias (conceitos e teorias) e suas lógicas redutoras,
procurando inovar no sentido da interpretação, evitando as reificações
constantes dos chamados ciganos em estereótipos, grupos e rótulos (como o
fazem os discursos eruditos) pouco concernentes à fragmentação e à
heterogeneidade características desta tradição. (2000, p. 118)

Apesar das diferenças entre os grupos étnicos38, durante as audiências públicas


realizadas no Congresso e no próprio grupo de discussão sobre o PLS 248/2015 criado
pela assessoria do Senador Telmário Mota, as “representações” e lideranças ciganas

38
É importante ressaltar, citando mais uma vez Rezende, que “no universo humano do cigano são todos
idealmente iguais. No entanto, nos discursos e práticas cotidianos a classificação do mundo social assume
formas diversas, separando grupos e indivíduos em determinados momentos e unindo-os em outros. Este
fenômeno se deve à diversidade étnica da qual se compõem os grupos. As relações dos ciganos entre si, e
destes com os gadjé, inscrevem-se em um sistema de relações interétnicas onde os grupos expressam a
todo instante ideologias e comportamentos diferentes uns dos outros” (2000, p. 72).
237

assumiram e apresentaram reivindicações comuns. Todas elas em alguma medida


produzem, disputam e agregam valor à “ciganidade”. Portanto, a seguir, destacarei
algumas destas pautas suscitadas ao longo da tramitação do PLS 248/2015, como as que
abordam o “censo demográfico”; as “questões fundiárias e da moradia” e a “educação”,
pois contribuem para perceber como um processo letivistivo, uma prática
essencialmente estatal, constituem o “sujeito de direito cigano”.

3.2.3 - Os direitos reivindicados no PLS 248/2015

A mobilização do termo “cigano” está relacionada a múltiplas representações e


significações. Ao mesmo tempo que invoca uma fronteira étnica-racial, permanências
das classificações raciais, o próprio reconhecimento da diferença e da condição
enquanto povo tradicional, possibilita acionar as identidades ciganas como forma de
estratégia e ação política. Mas o que quero dizer com isso? Haveria um deslocamento de
sentidos entre o que é “ser cigano” no âmbito das políticas públicas e o que é “ser
cigano” nas práticas sociais?
As representações do “cigano” ou da “cigana”, que acionam uma série de
sentidos, são os reflexos em negativo da sociedade ocidental, supostamente, sedentária,
civilizada e moderna, que estabelece seus elementos diacríticos no corpo da pessoa (e
seu grupo) (REZENDE, 2006), e, assim, nomeia à força da opressão física e simbólica o
espaço marginal destinado àqueles que “perderam a luta antes mesmo de terem
reconhecido sua posição no jogo” (BOURDIEU, 1989, p. 123).
Na história dos chamados ciganos, também experimentamos e imaginamos
uma tradição cultural complexa com base em representações, memórias e
impressões cristalizadas em uma consciência coletiva – esta o produto de
disputas e dissensões no campo das relações interétnicas –, que em muito se
assemelham a emblemas entre emblemas constantemente reformulados em
um zodíaco de fantasmas da mente. (REZENDE, 2006, p. 691, grifo do
autor)

É possível compreender os “ciganos” como “grupos específicos e distintos do


ponto de vista cultural, grupos que se pensam e são pensados como diferentes”
(GOLDFARB, 2013, p. 22). Ou como “cada indivíduo que se considera membro de um
grupo étnico que se autoidentifica como Rom, Sinti ou Calon, ou um de seus inúmeros
subgrupos, e é por ele reconhecido como membro” (MOONEN, 2011, p. 21).
A variação étnica entre os ciganos é um dado recorrente apresentado nas
audiências públicas realizadas no Congresso para discutir, direta ou indiretamente, os
“direitos dos ciganos”. Por outro lado, as violações de direitos, denunciadas nestes
238

eventos, foram narradas pelas representações ciganas dos diferentes grupos étnicos,
Calon, Rom ou Sinti.
Ao analisar a atuação política da UCB, Mirian Souza reconheceu que o uso da
categoria “cigano” por esta associação na esfera pública, ao invés de adotar a categoria
“roma”, como é reivindicado por movimentos fora do Brasil39, “é claramente uma
escolha política para superar particularismos étnicos e linguísticos” (2013, p. 150). Em
outras palavras, “deve prevalecer uma identidade cigana mais geral, sendo irrelevante
identidades específicas como kalderash, horarano, calon, lovari etc” (2013, p. 148). A
justificativa apresentada por Mio Vacite, liderança cigana que fundou e presidiu por
muitos anos a UCB, para unificar em uma categoria identitária uma pluralidade de
identidades é “que, apesar de existirem diferenças entre eles, também existem elementos
comuns (como um histórico de perseguição, hostilidade e preconceito baseado em
estereótipos) que justificam a afirmação de uma identidade compartilhada”.
Vejamos dois trechos da audiência pública de 2012, em que se faz referência à
“variedade étnica dos ciganos”:
Sr. Luciano Maia: [...] quando eu fiz referência à variedade étnica, é para dizer que
precisam ser respeitados, pelos nomes que a si próprios atribuem, um nome que vem de
homem ou ser humano. Na expressão romani, é Rom ou Roma, como agora são conhecidos
na Europa, Roma. E, aqui no Brasil, nós tratamos três grandes grupos: os Rom, os Sinti e os
Calon.
[...]
Sra. Lucimara Cavalcante: Então, falta o quê ao IBGE? Não pode o senhor simplesmente
mandar uma carta solicitando, “vamos pedir”. Não, vamos sentar, vamos conversar,
Senador. O IBGE está no caminho certo. Só faltam orientações, orientações de como se
colocar no formulário, para daqui a 10 anos, quando vai ter o próximo censo neste País... O
senhor sabe muito bem que é de 10 em 10 anos que ocorre o censo neste País. Como o
IBGE vai colocar? Quais são as etnias hoje no Brasil dos ciganos, dos povos romani? Eles
desconhecem. Eles não sabem que tem Macwaia, eles não sabem que tem Calon, eles não
sabem que tem Horáhané, eles não sabem que tem Kalderash. (BRASIL, 2012e, p.
961-970)

É válido compartilhar também um trecho de audiência pública realizada na CDH


do Senado Federal, em 2013, sobre a aplicação da Convenção 169 da OIT aos povos e
comunidades tradicionais. Nesta ocasião que me refiro, estiveram presentes Lucimara
Cavalcante e Alexandre Castilho, ambos integrantes da AMSK; são lideranças ciganas
que fizeram parte das primeiras negociações pela criação do “Estatuto” e que foram
mobilizadas para participar de diversas atividades no Congresso Nacional, envolvendo
temáticas, direta ou indiretamente, relacionadas aos “ciganos”.

39
Mirian Souza levou em consideração o trabalho de campo realizado no Canadá com a organização
Roma Community Center (RCC). A autora mencionou uma justificativa levantada por Ronald Lee, uma
das principais referências da RCC, para o uso da categoria “roma”, ao invés de “gypsy”: “Cigano evoca
todos os tipos de imagens estereotipadas de Roma na mente de expectadores e leitores. Cigano deve ser
substituído por Roma. Cigano tem sido utilizado por pessoas de fora e é ofensivo aos Roma como índio é
ofensivo aos povos nativos do Canadá” (2013, p. 72, tradução e grifo da autora).
239

Lucimara Cavalcante, durante seu discurso de aproximadamente 20 minutos,


exibiu alguns slides durante esta audiência pública de 2013, com informações sobre as
etnias e sub-etnias “ciganas” que estão no Brasil: os grupos Rom, Sinti e Calon; entre os
Roms, há os sub-grupos Kaldarash, Matchuwaia, Lovara, Horaranô, Boyasha; e entre
os Sintis brasileiros há sub-grupo Monouche (TV SENADO, 2013b). Destaco um trecho
do discurso de outro integrante da AMSK presente nesta audiência pública:
Alexandre Castilho: Eu represento a etnia rom kalderash, mas isso não quer dizer que há
uma divergência, diferença entre nós. Todos somos ciganos. Todos somos Roms [...] todos
estamos sendo discriminados, tanto faz o cigano Calon, Rom, Kalderash, [...] quilombola,
indígena, povo de terreiro, todos nós sofremos racismo e desigualdade racial. [...] poucos
conhecem de onde vieram, quem são os ciganos. [...] os ciganos já se refugiaram anos atrás
nos quilombos, portanto, sofremos as mesmas consequências. História dos ciganos: ficou
na invisibilidade. De onde veio, da onde surgiu. Por isso, [...] que haja uma lei que divulgue
a história dos ciganos, a cultura dos ciganos, para que seja conhecida por todos os povos, a
nível nacional (TV SENADO, 2013b)

A afirmação acima é de Alexandre Castilho, que se identifica e é identificado


como “cigano kalderash”, que é pastor de uma igreja evangélica do município de
Aparecida de Goiânia, estado de Goiás. Esta fala se insere na disputa de sentidos e
significados quanto às identidades “ciganas” e a condição de alvos discriminações. Ao
se referir a fala da Senadora Ana Rita (PT/ES), que relatou a história de uma criança
que não estuda mais, por ser acusada de roubo pela própria professora”, Alexandre
interrompeu a parlamentar e afirmou que essa moça: “é minha filha que saiu da escola
no dia [...] vai fazer 15 anos e não voltou mais estudar na escola até o dia de hoje ela se
sentiu humilhada. Ela não tem mais coragem de voltar pra sala de aula se portando
como uma cigana. Isso pra nós é realmente uma porta fechada” (TV SENADO, 2013b).
O que me chamou atenção é que os relatos de discriminação no ambiente escolar
foram abordados nas audiências públicas de 2011, em que esteve presente a Senadora
Ana Rita, e no evento político que ocorreu em dezembro de 2012. Por essa razão, como
demonstrarei nos parágrafos abaixo, não é mera especulação afirmar que o episódio
narrado pela deputada federal Erika Kokay, na audiência pública de 2011, tenha sido um
dos principais argumentos no sentido de justificar a necessidade de criação de um
“Estatuto” específico voltado aos “povos ciganos” brasileiros.
Deputada Erika Kokay: A denúncia dizia que a diretora da escola tinha dito que as
crianças tinha que tomar muito cuidado com a matriarca da comunidade cigana porque
alguns ciganos tinha o hábito de cozinhar as crianças, de colocar as crianças para servirem
de alimentos. Isso provocou, essa é a denúncia que existe e a direção da escola nega, mas o
que me chama a atenção é que não houve nenhum tipo de procedimento, as instituições do
estado que deveria apurar, porque tem que apurar, a denúncia é de uma gravidade imensa.
Então, deveria ter feito uma apuração. A diretora que diz que é inocente, uma apuração
atestaria isso também, mas não houve nenhum tipo de apuração, se é que houve um
mal-entendido, que não foi bem isso que ela quis dizer ou coisa que o valha. (TV
SENADO, 2011)
240

Durante a audiência pública de 2012, Marlete Queiroz também fez referência a


esta denúncia ao dizer que as dificuldades de acesso à educação não se restringem aos
grupos nômades, como também às famílias que vivem acampadas há anos num mesmo
lugar, como foi citado no subtópico anterior. Vejamos:
Sra. Marlete Queiroz: Porque são aquelas pessoas analfabetas, que não conhecem os seus
direitos, estão completamente à margem da sociedade e tem a palavra medo, porque a
desinformação gera esse medo. Analfabeto, para mim, é mudo e é surdo porque não se
entende o que se fala. Então, é, em nome desse povo, é em nome desse povo, que sobrevive
com as mulheres vendendo pano de prato na rua, como aconteceu com essa criança, que
queria estudar, aqui em Planaltina, cujo acampamento estava perto. Essa criança saiu da
escola, porque a diretora disse que cigano arrancava perna, braço e olho das crianças
– está aí a Deputada Érika que presenciou isso. (BRASIL, 2012a, p. 969, meu destaque)

Nesse sentido, ao resgatar este episódio, devo lembrar que antes do PLS
248/2015 ter sido submetido ao Senado, a proposta inicial era que este instrumento
jurídico fosse chamado “Estatuto Esmeralda” ou “Lei Esmeralda”, em homenagem a
história narrada pela Deputada Erika Kokay sobre esta criança que foi forçada a sair da
escola por conta das hostilidades enfrentadas por “ser cigana”. Observemos, abaixo, o
Senador Paulo Paim, que presidiu a audiência pública de 2012, fazendo referência a este
fato também:
Sr. Presidente: Em maio do ano passado, realizamos aqui nesta Comissão outra audiência
para tratar da situação do povo cigano. Aí nós sugerimos inclusive a ideia do estatuto, uma
lei que determinaria os direitos e garantias individuais e coletivas do povo cigano, que
avançaria naturalmente no reconhecimento de uma legislação clara e transparente. O
estatuto teria, conforme entendimento, o nome que assim a comunidade entendesse mais
adequado. Alguém levantou até que poderia ter o nome de Esmeralda, em homenagem a
uma pequena criança que tinha o sonho, eu diria inusitado, de frequentar a sala de aula.
Sonhar com o direito legítimo garantido pela Constituição. É um sonho bonito de alguém
que criou na memória um mundo especial, de alguém que mentalizou os desenhos em uma
folha de caderno, que aqui me foi apresentada a Esmeralda. Ela imaginava poder pegar o
ônibus, chegar à escola, abraçar os coleguinhas, enfim, ter o direito a uma vida normal
como toda criança em qualquer parte do mundo.
Claro, aqui estamos discutindo o sonho da Esmeralda no Brasil. Ela só queria ter direito de
aula, como as outras suas coleguinhas. Em relação a tudo isso que ela escreveu, a intenção
era botar o nome da lei, uma vez aprovada, de Lei Esmeralda. Há alguns que não entendem
a importância de uma audiência pública. Naturalmente os que não entendem é porque não
têm compromisso com os movimentos sociais. (BRASIL, 2012e, p. 959)

O projeto de lei que foi apresentado, em 29/04/2015, ao Senado não sugeriu o


nome “Estatuto ou Lei Esmeralda”, em caso de aprovação. A primeira proposta foi que
este instrumento jurídico fosse chamado “Estatuto do Cigano”. Todavia, essa
denominação já foi objeto de modificação.
O Parecer (SF) n° 20, de 2018, aprovado na CE, e o Parecer (SF) nº 31, de 2018,
aprovado na CAS, sugeriram que a lei seja chamada “Estatuto dos Povos Ciganos”.
Vejamos a justificativa para a mudança:
Sobre os ‘povos ciganos’ – é mais correto utilizar a expressão no plural,
porque há diversas etnias que, mesmo com traços e elementos históricos
comuns, possuem suas especificidades, culturas e costumes próprios –, as
241

informações divulgadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da


Igualdade Racial (SEPPIR) evidenciam que há, no Brasil, pelo menos três
etnias ciganas: Calon, Rom e Sinti. (2018e, p. 5)

De toda forma, há três questões, que estão abordados no projeto de lei, assim
como foram mencionadas em todas audiências públicas realizadas no Congresso
Nacional com a participação de lideranças ciganas, que eu dei destaque neste
subtópico: a “educação”; os “dados demográficos” e “o acesso à terra e moradia”. São
pontos sensíveis, que em algum momento já abordei aqui, mas que demandam mais
atenção, por serem cruciais para compreender o processo de construção político-jurídica
do “Estatuto do Cigano” no Brasil e as próprias disputas em torno da “ciganidade”.

- Educação

Ao deixar de lado alguns “essencialismos”, “idealizações”, e estereótipos


relacionados aos “ciganos” e às “ciganas”, podemos nos deparar com elementos
concretos. Questões da vida real que são não exclusividade dos ciganos. E a educação é
uma delas. As dificuldades de acesso e permanência no sistema universal de ensino, por
pessoas ciganas, foram narradas em todos os eventos políticos em que fiz observação
participante ou em que identifiquei por meio da análise dos documentos escritos e
audiovisuais.
Antes de abordar os dados sobre a “educação” que surgiram em espaços do
Congresso Nacional, devo pontuar algumas impressões da antropóloga Edilma
Monteiro sobre as narrativas que informam haver: “descompasso entre os modos de
vida ciganos e o interesse pela escola a partir de uma perspectiva emocional onde as
crianças ciganas não chegaram à escola por não gostarem do ambiente escolar, ou
mesmo de estudar”. Esta pesquisadora observou, nas diferentes localidades do estado da
Paraíba em que fez etnografia, um:
crescente o número de crianças ciganas no espaço escolar, de modo que não
seria possível uma argumentação em torno do desinteresse dos Calons em
estarem na escola. Antes, me parece ser um problema político de primeira
ordem avaliar que tipo de escola tem sido oferecida a essas crianças e como
isso considera - ou não - as especificidades dos seus mundos sociais e modos
de vida, tal como prevê a legislação brasileira. (2019, p. 73-74)

Edilma Monteiro percebeu entre seus interlocutores que “a busca pela escola
desconstrói as narrativas que dizem que os povos conhecidos como ciganos não gostam
de escola” (2019, p. 328). Na verdade, é necessário entender, nos casos em que
ocorreram a evasão estudantes ciganos, o que levaram a estes saírem do ambiente
escolar, o que provocou o desinteresse, antes de taxar os ciganos como grupos avessos à
242

escolarização. Além disso, a pesquisadora concluiu que não há contraponto entre a


“Educação Calon” e a “escola”, ao passo que há um cuidado especial com os primeiros
anos de vida, pois eles são a base para a “formação da pessoa Calon”. É nesse momento
que as crianças aprendem a língua, observando os pais em seus negócios, cuidando dos
pássaros, presenciado o ritmo das idas e vindas” (2019, p. 329). Por esta razão, ao
etnografar como a infância Calon é vivenciada em diferentes localidades (Sousa-PB e
Mamanguape-PB), que Edilma Monteiro compreendeu que a entrada mais tardia no
ambiente escolar, por exemplo, não é um fator de irresponsabilidade dos pais, como se
costuma atribuir as pessoas não ciganas.
As narrativas orais e o testemunho das pessoas que conhecem mais de perto a
realidade dos “ciganos” foram acionados diversas vezes nas audiências públicas do
Congresso Nacional, antes e depois do início da tramitação do PLS 248/2015, para
revelar que as dificuldades de permanência e acesso à educação formal.
Acima, neste subtópico, compartilhei os relatos de racismo e anticiganismo de
Alexandre Castilho, de Marlete Queiroz e da deputada Erika Kokay, envolvendo o
ambiente escolar. Creio ser necessário trazer mais um trecho da fala do procurador da
República Luciano Maia, durante a audiência pública de 2012 na CDH do Senado, em
que se aborda esta questão. Vejamos:
Sr. Luciano Maia: Em seguida, fiz um requerimento geral, dirigido às diretoras das
escolas, com o nome em branco para se colocar. Apresento – deixava o nome da criança –
criança cigana, filha de... Deixava o nome. Solicito a matrícula na série própria. Se, por
alguma razão, não puder ser feita essa matrícula, desde já eu requisito expedição de
certidão, informando o motivo da recusa. E que essa certidão seja encaminhada ao
Ministério Público Federal, nesse endereço, etc.
Entreguei uns cem documentos desses em branco. Um mês depois, quando eu voltei em
Sousa, e o carro da Procuradoria foi se aproximando, um bando de criança com uns
papeizinhos na mão. Foi uma das maiores emoções que eu tive no exercício desse trabalho,
dessa atividade. (Palmas.) (2012e, p. 961)

Seis meses antes da audiência pública em que o procurador fez esta fala, em
16/05/2012, o Ministério da Educação emitiu a Resolução nº 3, em que definiu
“diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de
itinerância”, fazendo referência direta aos “ciganos”, no art. 1º40. Como já foi abordado
aqui, as dificuldades no acesso à educação não se restringem aos grupos com práticas
consideradas nômades.

40
Destaco dois artigos desta resolução: “Art. 2º - Visando à garantia dos direitos socioeducacionais de
crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância os sistemas de ensino deverão adequar-se às
particularidades desses estudantes. Art. - 3º Os sistemas de ensino, por meio de seus estabelecimentos
públicos ou privados de Educação Básica deverão assegurar a matrícula de estudante em situação de
itinerância sem a imposição de qualquer forma de embaraço, preconceito e/ou qualquer forma de
discriminação, pois se trata de direito fundamental, mediante autodeclaração ou declaração do
responsável” (BRASIL, 2012c).
243

Entre 2015 e 2017, conforme relatei em artigo científico acerca de um caso que
acompanhei numa comunidade “cigana” Calon do interior da Paraíba, o fato de ser um
grupo composto por famílias que habitam casas de alvenaria e/ou por parecerem
“sedentários” foi utilizado por uma diretora escolar do município para negar a adaptação
dos recursos didáticos às crianças e jovens “ciganos”, pois, “não são mais povos
nômades” (SILVA; MEDEIROS JÚNIOR, 2017, p. 100).
Além da comunidade cigana de Condado, percebi a incidência de níveis ainda
mais baixos de escolaridade entre os ciganos que vivem no Acampamento Nova Canãa,
cujo o problema, em si, não é se matricular na escola, mas continuar nela, completar os
estudos41. Esse fato também foi exposto nas reportagens da TV Senado, divulgadas em
abril e maio de 2018.
Segue abaixo um trecho da reportagem “Povo cigano: a luta para manter a
tradição e combater o preconceito”, transmitido pelo Programa Inclusão, da TV Senado,
que foi gravado com uma das moradoras do Acampamento Nova Canãa. Vejamos:
Narração: Com uma trajetória marcada historicamente pelo preconceito, a
maioria dos ciganos não tem acesso à escola e muito menos ao mercado de
trabalho.
Repórter: Você sofria assédio, preconceito quando frequentava a escola
comum?
Tatiana da Rocha (enquanto segura uma criança no colo): Sim, era muito
difícil, porque só de ser cigana e está estudando ali tinha gente que ficava, um
falava, até a diretora do colégio.
Repórter: Mas vocês diziam que eram ciganos, era visível, você frequentava
com essa roupa ou você ia com o uniforme da escola?
Tatiana da Rocha: Nós íamos com o uniforme, mas nós nunca mentiu para
eles não, que éramos ciganos. Sempre nós falávamos que erámos ciganos.
Repórter: é honra pra você ser cigana?
Tatiana da Rocha: é uma honra sim, ser cigana! (TV SENADO, 2018D)

Este trecho da reportagem da TV Senado, que traz mais uma vez à tona a
problemática da educação62, me fez retornar às anotações do meu caderno de campo, em
que registrei um diálogo que tive com uma criança que vive no “Acampamento Nova
Canãa”, o único contato que tive sem a presença de Seu Wanderley, Seu Batista e Seu
Jefferson. A ocasião foi inesperada.
Era minha segunda vez no “Acampamento”, final de julho, estávamos no
inverno, uma noite fria, ventos fortes por todo lado. Foi acesa uma fogueira, em torno
de 10 pessoas reunidas, me ofereceram o melhor assento para que eu me acomodasse,
eu recusei, estava com tanto frio que me sentia mais aquecido ficando em pé me
movimentando. Uma discussão acalorada começou, e, então, pediram, discretamente,
para que eu fosse para a barraca e esperasse até ser chamado de volta. Foi então que eu

41
Essa questão foi abordada por Lenilda Perpétuo (2017) em sua dissertação de mestrado, pesquisa que
trabalhou a relação entre a territorialidade e a educação.
244

pude conversar com Melissa63, uma criança cigana de 10 anos que vive no local. Segue
abaixo um trecho da nossa conversa que consegui registrar no caderno de campo:
Eu: Você gosta de estudar?
Melissa: Gosto.
Eu: Você gosta de ir à escola.
Melissa: As vezes.
Eu: Por que? Você tem amigas na escola?
Melissa: As meninas não gostam de mim, elas me pirraçam, falam mal do meu cabelo, me
chamam suja. Eu fico triste.
Eu: Você já falou com a professora?
Melissa: Ela não acreditou em mim, disse para eu procurar outras amigas. Eu não tenho
amigas na escola. [...]
Eu: O que você quer ser quando crescer?
Melissa (sorrindo): Eu quero ser médica, igual a moça do posto (sorrindo).

Embora esse diálogo não tivesse tratado sobre o processo legislativo, me marcou
muito por ser um testemunho de uma “criança cigana”, que, como todos nós, tem
sonhos, mas que enfrenta diferentes desafios para concretizar-lo, no caso de Melissa,
por conta da sua condição de étnica-racial, de gênero e também de classe.
Por isso, posso concluir que a questão da educação é marcante no processo
legislativo aqui etnografado, uma vez que aparece em diferentes momentos, seja nas
audiências públicas do Congresso Nacional, nas reportagens da TV Senado ou nas
reuniões das comissões temáticas em que o PLS 248/2015 tramita.
Todavia, a forma como a “educação” foi incorporada ao PLS nº 248/2015 está à
margem do desafio que esta pauta representa para os “ciganos”. Foi essa a conclusão do
MPF concluiu na Nota Técnica sobre o “Estatuto do Cigano”, ao afirmar que “o Projeto
de Lei, portanto, perde a oportunidade de avançar nesses temas, abordando-o apenas de
forma tímida e incompleta, o que diminui o alcance dos direitos conferidos aos povos
ciganos” (2018, p. 15-16).
O que a descrição do processo legislativo do PLS nº 248/2015 me permite
revelar é que os baixos indicadores sociais da educação, envolvendo os “ciganos”, não é
um traço cultural, que lhes são inerentes. É resultado de uma série de elementos, que
estão relacionados, ou não, entre si42. Tanto as políticas voltadas para a educação, como
as que são direcionadas para a saúde, por exemplo, precisam ser elaboradas pensando o
todo, a totalidade dos bens necessários para a reprodução social da vida, como, por
exemplo, as condições de moradia e o acesso à terra, a soberania alimentar, a segurança
e o trabalho.

42
Levando em conta algumas particularidades da questão da educação entre os ciganos, Edilma Monteiro
destacou em sua tese de doutorado que “o ingresso na escola acontece num tempo diferenciado, pois, por
mais que valorizem a escolarização e o que a escola do Juron pode ensinar, os Calons valorizam o que é
apreendido e compartilhado no seu grupo” (2019, p. 243). Isto porque há uma preocupação que o ingresso
no ambiente de educação formal possa comprometer o processo de produção da “Calonidade”, cuja a
infância consiste no período central para se aprender a “ser cigano”.
245

E é por isso que há uma luta não apenas pelo reconhecimento de um direito, mas
de um conjunto de direitos, conforme está apresentado no “Estatuto do Cigano” que
tramita no Congresso Nacional. O que mais uma vez não significa dizer que nesta
proposta de instrumento jurídico se encontram previstos todos os bens que são
necessários para proporcionar o acesso dos povos ciganos a uma vida digna no Brasil.

- Dados demográficos

Em vários momentos em que fiz pesquisa de campo em atividades realizadas no


Congresso Nacional, percebi que se levantaram dúvidas e, ao mesmo tempo, foram
apresentados dados dispersos sobre a “quantidade de ciganos” no Brasil. Ao descrever e
analisar o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, pude me deparar com
informações que são inconscientes sobre “quantos” e “onde” vivem os “ciganos
brasileiros”. Acontece que sem estes dados, dificulta-se a elaboração, a abordagem e a
execução das políticas públicas voltadas aos “ciganos”, como foi afirmado várias vezes
nos eventos políticos e reuniões institucionais que acompanhei.
O texto inicial do PLS nº 248/2015 trouxe, expressamente43, a demanda pela
realização de um censo demográfico, ou seja, que o IBGE inclua, entre as perguntas
relacionadas à raça e etnia, se a pessoa se declara ou não “cigana”. Esta pauta foi
levantada desde as primeiras audiências públicas realizadas para discutir a criação do
“Estatuto do Cigano”, em 2011 e 2012.
Vejamos, abaixo, um trecho da audiência pública de 2012, em que ocorreu uma
polêmica sobre o trabalho (ou a falta de atuação) do IBGE:
Srª. Marlete Queiroz - É um mito esse censo; é fantasioso que, muitas vezes, muitos
representantes do Governo – até aqui mesmo, nessas audiências – dizem que existem cerca
de 600 a 800 mil ciganos no Brasil. Olha, esse dado, essa pesquisa, não tem respaldo. Não
foi nunca feito um censo para que se afirmasse que existem 600, 800 ou 100 mil ciganos no
Brasil.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – O IBGE não fez?
Srª. Marlete Queiroz - Nunca foi feito. Inclusive, como eu já disse outra vez, no censo do
IBGE eles perguntam: brancos, negros, índios. Eu falei: eu sou cigana. Não pode falar que
é, porque não consta no censo do IBGE.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Me permita, Marlete, então, se todos
concordarem, ficaria como uma decisão dessa nossa audiência pública que esta Presidência
vai remeter um ofício ao IBGE pedindo que o IBGE faça o censo dos ciganos no Brasil.
(Palmas.) Eu peço já que tomem nota aí, que a gente encaminhe. Vamos encaminhar
amanhã já.
Srª Lucimara Cavalcante – A AMSK não concorda com essa afirmativa, Sr. Ivanovitch,
porque foi um trabalho... Sr. Senador, me permita, aqui, aparte...

43
“Art. 17. Serão recolhidos, periodicamente, dados demográficos sobre a população cigana no Brasil,
destinados a subsidiar a elaboração de políticas públicas de seu interesse” (Texto inicial do PLS nº
248/2015).
246

Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Pegue o microfone, por favor. Aperte ali, vai
acender uma luz verde. Acho que é bom esse contraditório. Isso aqui vai para todo o Brasil,
pela TV e pela internet.
Srª Lucimara Cavalcante – É bom, é bom, nós estamos aqui para isso. É uma audiência
pública. A Associação Internacional Maylê Sara Kalí, e também aqui representando a
Associação Internacional da Cultura Romani – Brasil. O IBGE nós consideramos como o
órgão mais respeitado internacionalmente. No trabalho que eles fizeram no censo de 2008,
faltou o quê? Informação. Falta informação. Como o senhor disse, Sr. Ivanovitch, a
ignorância gera o estereótipo, gera o preconceito e a discriminação. Portanto, eu gostaria de
lembrar a esta Casa que o trabalho que o IBGE fez foi a pedido desta Casa, desta Comissão,
e da Seppir, na época.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Qual o trabalho?
Srª Lucimara Cavalcante – Foi a pedido desta Casa, da Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas qual é o trabalho?
Srª Lucimara Cavalcante – Munic – Pesquisa Básica de Informações Municipais44.
Devido a já uma discussão referente às questões ciganas no Brasil.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas então foi feito?
Srª Lucimara Cavalcante – Foi feito, Senador, nós temos aqui nosso estudo.
Orador não identificado – Mas é um levantamento preliminar45.
Srª Lucimara Cavalcante – É um levantamento preliminar. O que falta?
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas já tem então um trabalho feito pelo
IBGE da questão cigana.
Srª Lucimara Cavalcante – Exatamente. Mas o que falta, Senador, é uma conversa...
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas é boa a sua fala, boa. Esclarecedora.
Srª Lucimara Cavalcante – Exato. A AMSK inclusive traz aqui dados do Munic 2011 que
saiu agora, dizendo que já em alguns Municípios... 29 dos Municípios já têm terrenos
destinados aos povos ciganos, em cumprimento ao Programa Nacional de Direitos
Humanos. Então, nós já temos aqui uma ação do IBGE. (BRASIL, 2012e, p. 961-970)

A insuficiência ou a ausência de pesquisas realizadas sobre a quantidade e sobre


onde vivem os “ciganos” no Brasil voltou a ser abordada no Congresso Nacional,
durante a audiência pública sobre o “Estatuto”, realizada em 29/05/2018, na CDH do
Senado. Vejamos:

Assessora parlamentar do PT no Senado: [...] o censo do IBGE não pergunta se a pessoa


é cigana, então, o censo do IBGE não tem a informação sobre o povo cigano, mas o
Cadastro Único tem. E, segundo o cadastro único, seriam 22 mil pessoas que teriam
respondido que eram ciganas, em 500 municípios. Ainda é uma informação que não mostra
a realidade total, então o MDS se propõe a fazer a busca ativa.
[...]
Omar Ivanovich: [...] A primeira coisa que eu gostaria que fosse de imediato é essa
questão do censo, do caso do Cadastro Único, que ela, em todas as esferas, nas três esferas
dos poderes, que as secretarias, prefeituras, universidades, escola, em todos os lugares,
tenha lá, quando um cigano se identificar como cigano, tem que automaticamente entender
o recorte etnico racial. Quando eu chego para matricular um filho na escola, se eu não
declarar esse recorte e dizer que é cigano, eu vou ter que me colocar como branco. Eu não
me identifico como branco, eu me identifico como cigano, e é como devo ser respeitado
nesse país. [...] Mas ainda estamos invisíveis, então, a gente pede que seja feito um censo,
porque através do censo, vai ver o quantitativo dos ciganos, e aí as políticas podem ser
afirmativas para os mesmos, né?
[...]
Maura Piomonte: O Estatuto para nós é muito importante, porque como brasileiro, a
Constituição nos dá alguns direitos. Mas a gente precisa no Estatuto, a gente precisa para
que ele seja cumprido [...]. 1945 municípios que eu garanto ter ciganos e não é no
44
Trata-se da “Pesquisa de Informações Básicas Municipais - MUNIC”, organizada pelo IBGE.
45
De acordo com este levantamento, dos “290 municípios que reconhecem a existência de acampamento
cigano em seu território, 95 (32,8%) tinham entre mais 20 mil e 50 mil habitantes. A maioria desses
municípios distribui-se ao longo da BR 101” (IBGE, 2010).
247

município só. Nós não somos minorias, essa estatística de 800 mil não existe, se nós
estamos aqui há 444 anos e não temos direito a saúde, as mulheres tem os filhos que a mãe
natureza deixa ter. Se puder ser aprovado esse ano, nós teríamos uma boa resposta para
vocês no final do ano (referindo-se às eleições de 2018).

Independentemente da quantidade exata desta população no Brasil, notei que as


narrativas das representações ciganas, presentes nas audiências públicas, reivindicaram
serem um grupo numericamente significativo, brasileiros culturalmente diferenciados da
sociedade majoritária e que estão, em geral, relacionados a baixos indicadores sociais,
como educação, segurança, saúde, moradia, trabalho, lazer etc.

Imagem 21 – Presença de “acampamentos ciganos” no Brasil

Fonte: acervo da AMSK (2013).

Os dados sobre os “ciganos” brasileiros, de modo geral, são imprecisos. Porém,


além das falas durante as audiências públicas, alguns documentos oficiais emitidos por
órgãos públicos relacionam esta população a baixos indicadores sociais. Segundo o
documento “Perfil das pessoas e famílias cadastradas no Cadastro Único do Governo
Federal”, as famílias “ciganas” são as que possuem maior proporção de pessoas sem
instrução (52,4%) (BRASIL, 2013a, p. 47). A “Cartilha Subsídio para o Cuidado à
Saúde do Povo Cigano” cita como exemplo “a comunidade cigana de etnia Calon,
residente em bairro no município de Sousa, Paraíba, em que há cerca de 1.720 pessoas
vivendo [...] sem saneamento básico e energia elétrica” (2016, p. 11). O “Relatório de
248

Visita Técnica território Calon no Distrito Federal” registram a presença de 70 pessoas,


14 famílias, vivendo num assentamento composto por 15 barracas, com apenas dois
banheiros, sem saneamento básico, sem coleta de lixo, acesso irregular à água, luz etc
(BRASIL, 2016a).

Imagem 22 – Presença dos “ciganos” nos municípios brasileiros

Fonte: acervo do Ministério da Educação (BRASIL, 2014, p. 6).

Este último documento refere-se ao Acampamento Nova Canãa, que é sede da


“ANEC”, associação que se destaca no processo do “Estatuto” no Senado Federal,
conforme já discutido no segundo capítulo, tópico “2.1”. De modo geral, embora os
dados oficiais apresentados pelas instituições públicas possam estar muito distante da
realidade dos povos ciganos no Brasil, até porque nunca houve uma pesquisa unificada
e com uma metodologia própria, todos eles revelam uma tentativa do Estado produzir a
“ciganidade” neste país, mesmo tendo como base informações subnotificadas, há um
esforço neste sentido, como acontece também como a tramitação do PLS 248/2015. Ou
seja, todas estas empreitadas em alguma medida estão constituindo o sujeito cigano
249

Como podemos observar nas imagens 21, 22 e 23, com os mapas produzidos em
2009, 2014 e 2019, sobre a presença cigana no território brasileiro, houve uma evolução
no quantitativo acusado nas pesquisas que foram realizadas neste intervalo de tempo.
Não significa dizer que ocorreu, necessariamente, um aumento de pessoas, famílias ou
grupos que se identificam como “ciganos”, mas sim daqueles que foram identificados
como tais pelos pesquisadores.

Imagem 23 – Presença de “famílias ciganas” no território brasileiro

Fonte: acervo do G1 (PAULO, 2019).

Conforme já mencionei em outro momento do texto, a alteridade “cigana” se dá


em diferentes partes do mundo, portanto, não é possível delimitar uma única identidade
cigana. Portanto, mensurar o número de “ciganos” no Brasil ou no mundo é
praticamente impossível. Ainda assim, reivindica-se, tanto no processo legislativo do
“Estatuto”, como em outras esferas institucionais, que sejam obtidos dados quantitativos
e oficiais, que se aproximem da realidade dos “povos ciganos” no Brasil.
Como ponderou Moonen, os chamados “ciganos” possuem inúmeras
“autodenominações, falam centenas de línguas ou dialetos, têm os mais variados
costumes e valores culturais, são diferentes uns dos outros [...] Em comum todos eles
têm apenas uma coisa: uma longa história de ódio, de perseguição, de discriminação
pelos não-cigano” (MOONEN, 2011, p. 21-22). Embora não seja possível descrever ou
delimitar uma única identidade cigana, nos espaços em que se negociam direitos, por
outro lado, passa a ser estratégico reivindicar uma condição universal dos ciganos.
250

Mirian Souza concluiu também desta forma ao afirmar que “a perseguição aparece no
discurso de agentes políticos e associações ciganas como um denominador comum a
todos os ciganos. Ela supõe uma unidade, porque apesar das diferenças entre eles, a
perseguição os caracteriza etnicamente ao longo da história” (2013, p. 103, grifo da
autora).
E como discuti a seguir no próximo item, a “condição universal dos ciganos”,
atrelada às “violações de direitos” e à “vulnerabilidade social”, foi também pautada no
processo legislativo do PLS nº 248/2014 por meio da questão da “moradia” e do “acesso
à terra”.

- Terra e moradia

A proposta de criação do “Estatuto do Cigano” dedicou dois artigos para


contemplar a pauta do “acesso à terra” e “da moradia”, em capítulos separados, contudo,
ligados ao mesmo título do projeto de lei que versa sobre os “direitos fundamentais”.
Vejamos:
Art. 12. O poder público elaborará políticas públicas voltadas para a
promoção do acesso da população cigana à terra e às atividades produtivas no
campo.
Art. 13. O poder público elaborará políticas públicas para assegurar a
moradia adequada à população cigana, respeitadas suas particularidades
culturais.
Parágrafo único. Os ranchos e acampamentos são partes da cultura e tradição
da população cigana, configurando-se asilo inviolável. (BRASIL, 2015c, p.
3-4)

A Nota Técnica da 6ª CCR destacou um tópico específico, intitulado “8. Terra e


Moradia”, para tratar da respectiva questão. Observemos:
O projeto também deixa de contemplar as proposições aprovadas pelos povos
ciganos no tocante à situação fundiária de suas terras e à moradia.
Trata do tema, tão somente, em seus arts. 12 e 13, nos quais não estão
contempladas, de qualquer forma, proposições relacionadas à
regularização fundiária dessas terras ou a demandas de infraestrutura
para seus acampamentos e ranchos.
Mais uma vez, ao deixar de fazê-lo, perde a oportunidade de dar status legal a
disposições voltadas especificamente para essas populações.
Ressalte-se, nesse sentido, que, embora os povos ciganos sejam destinatários
das políticas públicas voltadas às comunidades tradicionais, em virtude dos
dispositivos presentes na Convenção 169 da OIT e no Decreto nº 6.040/2007,
não há políticas públicas formuladas especificamente para essa etnia,
contemplando as suas especificidades. A ausência de disposição nesse
sentido no Projeto dá ensejo a que persista a omissão do Poder Público.
(MPF, 2018, p. 17, meus destaques)

Nesse sentido, devo destacar que o referido documento foi assinado pelo MPF
no dia 07/08/2018, ou seja, aproximadamente 3 meses após a realização da audiência
251

pública na CDH do Senado. Embora o MPF tenha pontuado estas críticas ao texto do
PLS 248/2015, ao final da Nota Técnica, nenhuma das seis sugestões apresentadas pelo
órgão contemplaram as pautas do “acesso à terra” e da “moradia”.
Quanto à questão do “acesso à terra”, os participantes do grupo de discussão
sobre o PLS 248/2015 criado pela assessoria do Senador Telmário Mota
posicionaram-se no seguinte sentido:
Quanto ao tema, Nalva trouxe a conhecimento do grupo projeto de lei do
Estado de Minas Gerais elaborado pela Câmara Técnica que trata dos direitos
dos povos ciganos. Aponta que os temas colocados no projeto, elaborado com
assessoria técnica e jurídica, são importantes para a reflexão e possível
inclusão no Estatuto. O Dr. Phelipe Cupertino, que assessorou a Câmara na
elaboração do projeto, prestou esclarecimentos ao grupo a respeito de seu
teor.
André Soares (MG) teceu considerações sobre a importância da terra para os
povos ciganos e da infraestrutura necessária para suas habitações, mesmo
aqueles em situação de itinerância, e a importância de sua proteção.

Como se pode perceber, o meu nome foi mencionado na relatoria do MPF acerca
das discussões do grupo, tendo em vista que colaborei para a elaboração de um projeto
de lei estadual, entre os meses de setembro e novembro de 2020, convidado pela
liderança Nalva, que atua na Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos
Cigano de Minas Gerais. A finalidade desta proposição legislativa é instituir um plano
estadual de acesso à terra e ao direito à moradia culturalmente adequada dos povos
ciganos do Estado de Minas Gerais.
Em relação ao “direito à moradia” e à inviolabilidade dos acampamentos e
ranchos, os participantes do grupo apresentaram as seguintes considerações:
Foi noticiada por Nardi Casanova a existência de Recomendação expedida
pelo Ministério Público Federal no sentido de que as casas e tendas dos
ciganos sejam consideradas asilo inviolável, para todos os efeitos legais,
devendo as investigações e operações policiais atender a esse parâmetro.
Nalva deu notícia de atuação do MPF na defesa da comunidade de Ibirité, no
Estado de Minas Gerais, no sentido de garantir o seu direito à moradia e
evitar sua retirada do terreno onde estava localizada, garantindo, ainda a
infraestrutura necessária à sua permanência. A atuação obteve êxito.
Foi ressaltada pela cigana Rose Winter a necessidade de acrescentar um
parágrafo ao texto conferindo proteção especial aos ciganos itinerantes, no
sentido da permissão de passagem e fixação de terreno, com a estrutura
necessária, em suas rotas de passagem.
No mesmo sentido, deve ser garantida proteção aos “ciganos de lona” (que
moram e trabalham em circo), também itinerantes.
Omar sugeriu que sejam criados centros de referência, que podem atender a
essa finalidade.
O professor Phelipe Cupertino sugeriu a seguinte redação para o parágrafo a
ser acrescentado:
‘As terras rurais e urbanas tradicionalmente ocupadas pelos povos ciganos, de
caráter temporário, deverão receber apoio do Poder Público, de modo a
garantir uma infraestrutura básica para a sua subsistência pelo tempo que
durar o período de itinerância’.
252

Devo destacar que acompanhei todas as discussões que ocorreram no grupo


desde o seu início sobre as matérias previstas no PLS 248/201. Todavia, de todas as
matérias, apenas me pronunciei, diretamente, acerca da temática do “direito à moradia”
pelo fato de ter participado da elaboração do projeto de lei solicitado pela liderança
Nalva, como mencionei no parágrafo anterior.
Ao longo da tramitação do PLS 248/2015, foram elaborados 9 “relatórios
legislativos”, 4 encaminhados à Comissão de Educação, 2 apresentados à Comissão de
Assuntos Sociais e 3 submetidos à Comissão de Direitos Humanos, sendo que destes, o
último foi assinado pelo Senador Telmário Mota, em 20/03/2019. Portanto, apenas este
documento foi emitido após a divulgação da Nota Técnica da 6ª CCR. Todavia, o novo
relator, o Senador Temário Mota, não incorporou as sugestões realizadas pelo MPF em
face da pauta pela “terra e moradia”. A única menção ao tema foi a seguinte: “O projeto
busca também reconhecer, proteger e estimular o acesso à terra, à moradia e ao
trabalho” (BRASIL, 2019f, p. 2). Uma referência breve e, ao mesmo tempo, superficial,
pois não adentrou na complexidade que a temática demanda.
Em outras palavras, o projeto de lei inicial e os documentos formulados pelos
relatores não exploraram, devidamente, a “questão da moradia” e “fundiária”. Por sua
vez, a Nota Técnica do MPF também deixou de mencionar uma das únicas experiências
ocorridas no Brasil de concessão formal de terras públicas, realizada pela União,
destinadas a famílias ciganas. Este procedimento foi consolidado em 2015, por meio de
uma interlocução e parceria entre o Governo Federal e o Governo do Distrito Federal.
Uma das terras concedidas pelo Estado brasileiro, que me referi no parágrafo
anterior e que abordei no tópico “3.1.2”, é justamente o local onde vive a família de Seu
Wanderley, conhecido como “Acampamento Nova Canãa”. Além deste território, que é
sede da ANEC, a SPU contemplou no mesmo ato administrativo a comunidade liderada
pelo Seu Elias, presidente da ACEC-DF.
Conforme informações disponibilizadas no Diário Oficial da União, publicado
no dia 30/06/201546, tratou-se de um “Contrato de Cessão de Uso Gratuito”, com a
finalidade de “assentar a Comunidade Cigana, representada pela organização não
governamental Associação Cigana da Etnia Calon do Distrito Federal”. Ambas os
contratos foram fundamentados com base no art. 18, inciso I, da Lei nº 9.636, de 15 de
maio de 199847.

46
O contrato destinado à Associação Cigana da Etnia Calon do Distrito Federal refere-se ao Processo
04991.002474/2014-35 (BRASIL, 2015d, p. 123).
47
“Art. 18. A critério do Poder Executivo poderão ser cedidos, gratuitamente ou em condições especiais,
sob qualquer dos regimes previstos no Decreto-Lei no 9.760, de 1946, imóveis da União a: I - Estados,
253

Os contratos que contemplaram a ANEC e ACEC-DF não foram resultados de


batalhas judiciais, mas sim de negociações diretas entre o Estado e as lideranças das
comunidades. Diferentemente do episódio que envolveu a “Ocupação dos Ciganos
Calon do Bairro de São Gabriel”, no município de Belo Horizonte, capital do estado de
Minas Gerais, onde viviam 70 famílias acampadas, há mais de 20 anos, em terras
pertencentes à União. Este ente federativo, por meio da SPU, e, representada
judicialmente pela AGU, tentou, inicialmente, reintegrar a posse do terreno.
Vale a pena compartilhar, aqui, um dos argumentos mobilizados, no Parecer
0805/2011/CJU-MG/CGU/AGU, de 26/07/2011, para negar o direito à terra aos ciganos
do Bairro São Miguel. Vejamos:
Em análise dos autos, verifica-se apenas que as pessoas que supostamente
pertencem à comunidade cigana vivem há mais de 20 (vinte) anos numa
mesma localidade, ou seja, têm residência fixa, característica que serve
apenas para afastar seu enquadramento como cigano que culturalmente são
povos nômades. (apud LIMA; DOLABELA, 2015, p. 85)

A luta pela terra dos ciganos Calon do Bairro São Miguel contou com a parceria
de outros órgãos públicos, como o MPF48 e a DPU, assim como coletivos da UFMG49,
que contribuíram para intermediar com a SPU a regularização fundiária do terreno50. No
ano de 2015, tais atores alcançaram um consenso. Assim, somados com os casos da
ANEC e da ACEC-DF, neste ano, consolidaram-se três experiências em que a União,
pela primeira vez, reconheceu, formalmente, o direito à posse de populações
tradicionais ciganas em territórios por estes reivindicados.
É possível, portanto, identificar um reposicionamento do SPU na gerência das
terras públicas pertencentes à União, que ocorreram no âmbito dos governos de Dilma
Rousseff (PT), entre os anos de 2011 e 2015. Mesmo intervalo de tempo em que
aconteceram as duas audiências públicas com temáticas voltadas para os direitos dos

Distrito Federal, Municípios e entidades sem fins lucrativos das áreas de educação, cultura, assistência
social ou saúde” (BRASIL, 1998).
48
Entre vários pontos atacados pelo MPF, por meio da Nota Técnica PFDC/CAM/EB nº 07/2013, destaco
o que faz referência à mobilização do “nomadismo” para negar direitos aos ciganos: “diante de
argumentos como o parecer CGU/AGU que alegou serem nômades – com uma definição de dicionário –
para negar-lhes a validade do pleito” (MPF, 2013, p. 18). Conforme relatado por Mirian Souza, a suposta
essência “nômade” dos “ciganos” também foi acionada para negar o status de “refugiada” de uma das
suas informantes na Inglaterra. “Katrina observou que seu pedido de refúgio e imigração foi negado na
Inglaterra sob o argumento de que ela, porque era cigana, era nômade” (SOUZA, 2013, p. 276).
49
“O caso dos Calon de BH ilustra a possibilidade de redefinição de práticas estatais em razão do
alargamento das margens conceituais do Estado. O enfrentamento da categorização do nomadismo,
baseada numa identidade congelada do modo de vida cigano, e a disputa por significados outros de
direitos e justiça levaram ao inédito reconhecimento do direito ao espaço-território pelas famílias ciganas
de São Gabriel. Isso não teria sido possível sem a construção de uma rede de “parceiros” que, por meio de
uma disposição inventiva, engendraram novas formas de governar e legislar” (LIMA; DOLABELA,
2015, p. 102).
50
Este episódio foi também analisado pela pesquisadora Priscila Paz Godoy, que publicou, em 2016, o
livro “O povo invisível - os ciganos e a emergência de um direito libertador”.
254

povos ciganos, na CDH do Senado Federal, que contribuíram para o parlamentar Paulo
Paim (PT/RS) apresentar o projeto de lei propondo a criação do “Estatuto do Cigano”
em 29/04/2015. Desde então, durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro
não houve novas experiências de concessão de terras públicas para populações
tradicionais ciganas, mediadas pela União. Ao meu ver, ficou evidente que os três
episódios de regularização fundiária, envolvendo ciganos, não se consolidaram como
uma política de Estado, tratou-se de uma prática de governo.
Por essa razão, o MPF interpretou em “Nota Técnica” que os arts. 12 e 13 do
PLS 248/2015 não contemplam, de forma consistente, a questão da regularização
fundiária, assim como as demandas de infraestrutura para os acampamentos e ranchos
ciganos já existentes. Tirando os casos de 2015, que ainda são concessões temporárias,
dependendo de renovação, é possível afirmar que não existe no Brasil uma política
pública permanente de regularização fundiária de terras para os povos ciganos.
A luta e as experiências dos povos indígenas e quilombolas pelo direito à terra,
mesmo que esteja, expressamente, prevista na Constituição brasileira de 1988, não
significou que estes grupos passaram a ter suas demandas automaticamente atendidas.
Como revelam os estudos e pesquisas científicas, o conflito e a violência, seja para ter o
direito de acesso à terra ou para se manter nela, são, desde sempre, partes do cotidiano
dos indígenas e quilombolas, contudo, é importante pontuar que tais ataques a estes
povos aumentaram, demasiadamente, a partir do ano de 2016, marcado pelo
impeachment da presidenta Dilma51.
Portanto, seria fundamental que ocorresse uma alteração na redação do PLS
248/2015, incluindo pontos como: a necessidade de estruturação de uma política
permanente de regularização fundiária, assim como melhorias de infraestrutura das
moradias ciganas já existentes; e a exclusão do fator “nomadismo” como parâmetro a
ser adotado pelos Poderes Públicos, para reconhecer direitos aos “ciganos”52. Mesmo
que o “Estatuto” venha a ser aprovado, não significará que teremos no Brasil gestores
públicos voltados e interessados em cumprir políticas públicas de acesso à terra e

51
Classificando o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff de “golpe político
parlamentar/jurídico/midiático”, da mesma forma que enxergo tal episódio, os pesquisadores Silva e
Marques (2019) defendem que esta ruptura política intensificou a violência, que já estava em curso no
Brasil, em face de populações camponeses, quilombolas, ribeirinhos, indígenas.
52
De acordo com a antropóloga Ana Rita Alves, levando em consideração a realidade das comunidades
ciganas em Portugal, além da perseguição histórica sistemática vivenciada por esta minoria étnica, há
outros fatores que podem justificar a persistência do problema habitacional. A autora defende que
narrativas técnica e cientificamente superficiais mobilizadas para fundamentar a precariedade habitacional
e a falta de ações políticas estão relacionadas à “naturalização da ideia de que as comunidades ciganas são
culturalmente itinerante”, comprometendo “a efetivação do direito à habitação” e “invisibilizando os
processos contínuos de desterritorialização” (ALVES, 2019, p. 2090).
255

moradia adequada aos povos ciganos, assim como atendendo outras questões
relacionadas à educação, saúde, trabalho, cultura etc.
As condições de luta dos ciganos, indígenas, quilombolas e dos camponeses pelo
acesso à terra e pelo direito à reforma agrária confirmam a expressão que o sociólogo
José de Souza Martins (2010) chamou de “nó da terra”, a fim de caracterizar a realidade
fundiária do Brasil, um dos países do mundo onde há uma das maiores concentrações de
terras53. Por isso, especulo que a forma como o PLS 248/2015 abordou, especialmente,
o “acesso à terra”, sem clareza e com pouca ênfase, contribuíram para que não houvesse
tantas polêmicas, internas ou externas ao Congresso, em torno da proposta de criação do
“Estatuto do Cigano”.

3.2.4 - Pausa para uma análise sobre a “ciganidade”

Os dados etnográficos produzidos nesta pesquisa possibilitaram-me, primeiro,


perceber que o dispositivo que versa sobre o que é “ser cigano” na proposição
legislativa em tela se trata do aspecto mais polêmico na construção político-jurídica do
“Estatuto”, como foi discorrido no tópico “3.1”. Mas também que as disputas em torno
da “ciganidade” não se localizam apenas no trecho do projeto de lei que busca definir os
destinatários do marco legal em tramitação. Na verdade toda esta trama promove em
alguma medida a discussão sobre o que é “ser cigano”, inclusive quando se aborda a
questão da educação, do território, da moradia, da saúde e assim por diante.
Levando em conta o papel do Estado na prática legislativa e a pauta pela criação
do “Estatuto”, é possível dizer que a produção da “ciganidade” é portanto resultado dos
jogos de força que envolvem as múltiplas partes envolvidas neste processo. Os próprios
grupos ciganos envolvidos, as instituições, estatais ou não, e seus respectivos agentes
públicos, os pesquisadores, assim como os ativistas. E não pode ser ignorado que estas
disputas não começaram obviamente com a tramitação do PLS 248/2015, mas que a
partir dela entram em cena novos campos de tensionamentos, que não são simétricos.
Aliás, nunca foram ao longo da história.
Assim como no primeiro capítulo, que refleti o “anticiganismo” a partir da
categoria analítica de poder em Foucault, neste subtópico mobilizo novamente este
autor para pensar a “ciganidade” na construção político-jurídica do “Estatuto”.

53
Segundo informações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, divulgadas no dia 06/04/2020, por
meio do “Dossiê 27: Reforma Agrária Popular e a luta pela terra no Brasil”, este país continua sendo
palco da maior concentração de terras do mundo e onde estão os maiores latifúndios (DOLCE, 2020).
256

Ao vislumbrar o poder inserido nas relações de forças, que geram afetos, ações,
indivíduos dóceis, produzindo do mesmo modo a vida da população, Foucault (1987)
pôde, afinal, projetá-lo como difuso, expondo que o poder se situa em toda a parte,
desvelando-se em produzir indivíduos sujeitados às estratégias que transpassam todo o
campo social. Como na sua perspectiva não existe poder sem saber, e tendo em vista
que o binômio saber-poder detém a vida em dispositivos concebidos pelas práticas
sociais, o sujeito resultante de tais práticas será sempre apreendido como sujeitado.
Desse modo, a trama do “Estatuto” acaba também promovendo a constituição do
sujeito “cigano”, que ocorre em meio a um movimento dicotômico na qual este vivencia
seu processo de subjetivação. Isto é, o sujeito “cigano” é aquele sujeitado a uma
representação que se fazem dele, imagem dada, externa, pré-concebida, como também
suscetível à imagem que faz de si, à própria identidade, ao referencial que formula de si.
Ocorre, na realidade, a sujeição do “ser cigano” a uma imagem que não fora por inteiro
assimilada e idealizada por si, de modo que este sujeito não é resultado de um processo
de autoconstituição, mas impulsionado a se transfigurar sujeito pela norma, instaurada a
partir de regimes de verdade determinados por artifícios que encontram e que lhe são
apresentados, propostos e, por fim, impostos pela sociedade, pela cultura e por seu
grupo social.
A construção da agenda de lutas por direitos, assim como a emergência da pauta
pela instituição de uma lei específica voltada para os povos ciganos fundam-se na
seguinte estratégia: idealizar e construir uma imagem do “cigano” que busca justamente
legitimar a pauta pela criação do “Estatuto”. Ao mesmo tempo que há o esforço em
transcender os estereótipos, como é o caso do “nomadismo”, acaba-se muitas vezes
mobilizando o fator da itinerância no campo discursivo para fundamentar a condição
étnica do sujeito “cigano”.
Em princípio, associar o “ser cigano” ao “nomadismo” pode induzir o
imaginário popular a ter questionamentos como este: se a atuação do Estado em face da
questão cigana tem o propósito de aniquilar ou pelo menos diminuir as causas que
levam os grupos e famílias ciganas a estarem se movimentando constantemente no
espaço, entre territórios, na busca pela sobrevivência, seria o “Estatuto” uma vez
aprovado e efetivado um instrumento capaz de extinguir a própria “ciganidade”?
Além disso, esta associação vislumbra supostamente a vida “nômade” como uma
reação às perseguições e à discriminação racial, o que também pode levar a equívocos.
Neste capítulo provoquei os leitores a pensar a condição cigana para “além do
nomadismo”, sendo que para isso é importante compreender a tal itinerância como um
257

elemento de “resistência”, e, portanto, o oposto de “reação”. O “nomadismo” como uma


mera consequência das relações entre os “ciganos” e os “não ciganos”. Isto porque
quando reagimos conferimos a resposta àquilo que o poder esperar e quer de nós. Por
outro lado, quando resistimos criamos oportunidades de existência mediante
composições de forças novas. Falar em resistência é sinônimo de falar em criação.
Inspirado no pensamento foucaultiano, é cabível afirmar que a probabilidade que
a vida tem de resistir a um poder que quer gerenciá-la é indissociável da oportunidade
de constituição e de mudança que ela pode realizar. Quando me proponho a pensar a
“ciganidade” inserida nas relações de poder, compreendendo o “nomadismo”, seja no
passado, assim como a forma ressignificada no presente, como uma forma de
resistência, busco, acima de tudo, reforçar a seguinte questão: é necessário a sociedade e
o Estado estarem preparados para tentar compreender as constantes transformações que
são inerentes às próprias identidades e culturas ciganas. Evitando-se, assim, os
fatalismos e determinismos que acabam aprisionando e colonizando o “ser cigano”
àquilo que o poder quer deles.
A partir da descrição e da reflexão acerca das mudanças que ocorreram ao longo
da tramitação do PLS 248/2015, como fiz neste capítulo no tópico “3.2”, podemos
identificar que a produção da “ciganidade” não se restringe ao aspecto do nomadismo. É
inevitável que qualquer debate que perpassa o processo do “Estatuto” acabe tratando e
especulando sobre o que é de fato “ser cigano”. Quando se fala em educação e se
conclui que estes povos não são adeptos da escolarização formal por uma questão que é
natural a sua cultura. Quando se vincula a vida em “barracas” ou “tendas” ao modo de
moradia inerente aos “ciganos”. Quando se atribui às “mulheres ciganas” à passividade
e dependência ao “homem cigano”, o chefe nato de um grupo, como ficou evidenciado
nas discussões sobre a saúde, tudo isso, em algum medida, se propõe a imaginar e
pautar quem é o verdadeiro cigano e cigana que deve ser destinatário do marco legal em
discussão no Senado.
Acontece que não é adequado vislumbrar os “ciganos” atuantes nesta trama do
“Estatuto”, ou em geral, unicamente enquanto receptores e como vítimas destas
associações que reforçam os referidos estereótipos. Há um jogo de forças que
obviamente não se dá em condições de igualdade. Mas, que não me impede de concluir,
levando em consideração os estudos da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
(2009), que os povos ciganos no contexto de disputa e reivindicações perante ao Estado
por políticas públicas e pela afirmação de Direitos Humanos se adéquam às expectativas
258

dominantes e passam a manobrar com os saberes e com a cultura como são


conceituados por outros povos e enfrentam as contradições que daí decorrem.
Esta adequação, que contribuem para distinguir os “ciganos” dos “não ciganos”
sobretudo na esfera pública, pode ser entendida como uma modalidade de
“essencialismo estratégico”, conforme discorri no subtópico “3.2.2”. Manipular não no
sentido pejorativo, mas como um conjunto de ações que visam fortalecer a ação política,
contanto que seja acionado sob o prisma desses sujeitos historicamente subalternizados,
como defende Spivak (1987). Não basta “ser cigano”, na luta por direitos específicos é
indispensável ser reconhecido enquanto “cigano”, ou seja, é fundamental ser visto como
minoria étnica, enquanto povo tradicional. Sendo, portanto, a “cultura”, propositalmente
apresentada entre aspas por Carneiro da Cunha54, um argumento central nas
reivindicações dos povos ciganos, alcançando um papel de destaque na luta política pela
criação do Estatuto, assim como ocorre em outras pautas.
A supramencionada pesquisadora tece uma correspondência entre a “cultura” e o
cristianismo que também foi conduzido como um bem de exportação para outras
sociedades não-cristãs. Mas diferentemente do cristianismo que os povos originários
não a tinham anteriormente, a “cultura” eles já detinham. No entanto, a partir de então
eles sabem que a tem e podem externá-la mundo afora. Segundo Carneiro da Cunha tal
contexto é uma faca de dois gumes pois sujeita seus detentores a expressar
performaticamente a sua “cultura” (2009, p.313), caso contrário não seriam
reconhecidos.
Se é a partir da alteridade que se estabelece as identidades, que são
hierarquizadas por meio das classificações que são mobilizadas mediante categorias
socialmente construídas, não há como falarmos em produção da “ciganidade” sem ser
levado em conta as trocas, as interações entre os “ciganos” e os “não ciganos”. E assim
compreender as estratégias de sobrevivência, assim como as ações políticas que são
adotadas por estes grupos que vivem simultaneamente na “cultura” e na cultura.
Nesta esteira, é válido citar uma das conclusões do antropólogo Dimitri Fazito
de Almeida Rezende em sua tese de Doutorado, em que fica claro as influências e o
diálogo com os estudos de Carneiro da Cunha. Fazendo referência ao personagem

54
A autora conceitua cultura sem aspas enquanto a existência de recursos interiorizados que estruturam a
compreensão e a ação das pessoas e que asseguram um relativo grau de interlocução nos grupos sociais.
Por sua vez, cultura com aspas é uma percepção reflexiva que fala de si mesma de certa maneira. Cultura
com aspas se relaciona àquilo que é aludido acerca da cultura. Cunha empreende uma diferenciação
analítica entre cultura com aspas e cultura sem aspas pois elas se fundam em princípios diferentes de
inteligibilidade. O sentido interno da cultura não corresponde à “lógica interétnica das ‘culturas’” (2009,
p. 159). Segundo a pesquisadora Ana Caroline A. Oliveira, o interesse da autora ao trazer essa lógica é
entender “como as pessoas fazem para viver ao mesmo tempo na ‘cultura’ e na cultura” (2017, p. 301).
259

“Melquíades”55, que ganhou vida na obra “Cem anos de Solidão” graças ao escritor
Gabriel García Marquez, Rezende afirma que os ciganos “de uma maneira geral
parecem saber, desde sempre, como viver nos interstícios sociais e se adaptar de forma
inovadora, revitalizando tradições locais, intercambiando produtos e informações entre
os diversos territórios inventados e conquistados por toda a terra” (2000, p. 184).
Com base nos dados etnográficos produzidos nesta pesquisa, foi possível
perceber que algumas lideranças ciganas agenciam determinados conceitos e
simbologias que são historicamente associados à cosmologia eurocêntrica para se
afirmar enquanto um grupo de cultura distinta que deseja não apenas ser reconhecido e
respeitado, como também ter autonomia. Um desses conceitos que surgiram em
diferentes momentos no processo de construção político-jurídica do “Estatuto” é
justamente o de “nação”, isto é, a existência de uma “nação cigana”.
“Ser cigano”, portanto, pode ser ao mesmo tempo ter uma origem, fazer parte de
uma família“cigana” e se sentir pertencente a uma “nação”, como transparece no
discurso de Seu Wanderley, liderança da “ANEC”, mas que não necessariamente surge
nas falas de outras representações56. Quem mobiliza o conceito de “nação”, de forma
consciente ou não, está buscando agregar valor à “ciganidade”, uma vez que há um
sentido positivo nele, que está associado à ideia dominante de agrupamento de pessoas
que têm “cultura”, constituindo assim um povo. Ou como diz o jurista Paulo
Bonavides57, “a nação está para o Estado moderno assim como a pólis esteve para o
Estado antigo, o Estado da Antigüidade clássica. A nação é, por um certo ângulo, a pólis
da contemporaneidade” (2008, p. 2004).
Falar em “nação” consiste em uma das formas de resistir às tentativas de reduzir
a existência da coletividade cigana ao não lugar da racionalidade, enquanto um povo
sem “cultura”, ou seja, desprovidos de costumes, conhecimentos e práticas próprias. A

55
Rezende acredita que “os ciganos devam se assemelhar mais àqueles de Gabriel Garcia Marquez, como
o Melquíades de Cem Anos de Solidão, onde os ciganos são apresentados como mercadores de produtos
estrangeiros e informação, intermediários entre o mundo civilizado e os confins semi-habitados do Novo
Mundo”, fazendo um contraponto a “imagem cotidiana do cigano, tido e visto como selvagem (a bem da
verdade, sempre percebido como mau selvagem), sarraceno imoral, ignorante e herege, fascínora e
covarde (2000, p. 88, grifo do autor).
56
Por exemplo, em seis anos de convivência e parcerias com Maria Jane, liderança cigana que atua em
inúmeros conselhos de estado e que é uma das principais interlocutoras desta pesquisa, eu nunca a
presenciei usando a expressão “nação cigana”, mas sim “povo tradicional”.
57
Friso que citei Paulo Bonavides não com o intuito de refletir sua teoria com profundidade, apenas para
ilustrar que falar em “nação cigana” traz um sentido extremamente positivo, sobretudo levando em conta
o pensamento tradicional. De todo modo, uma vez que mencionei este autor, é importante que para ele
“nação”, assim como povo, que não se confundem, é um conceito imaterial, se tratam de “um conceito
espiritual”. Em outra obra, Bonavides defende que “nação” precede ao Estado e diz respeito ao conjunto
de naturais (território, língua, raça), históricos (tradição,costumes, leis e religião) e psicológicos (2012, p.
85).
260

produção e as disputas em torno da “ciganidade”, como eu falei anteriormente, se dão


em meio às relações de poder, que só existem porque há resistência, sendo que a partir
dela se aponta para o novo. É neste sentido que o antropólogo Rezende (2019) defende
que a concepção de “nacionalismo cigano” se apresenta de maneira inovadora, pois
manifesta uma concepção diferenciada sobre a nação que extrapola os limites do espaço
físico, do Estado e do mercado.
Segundo o pesquisador Marcos Toyansk Silva Guimarais, ao refletir sobre as
discussões realizadas no “Quinto Congresso Romani Mundial”, no ano de 2000, na
cidade de Praga, “a proposta cigana é contra o exclusivismo do território-zona
tradicional (representado pelo Estado-Nação), sugerindo o modelo de autonomia
nacional-cultural (baseado em redes) em substituição a um nacionalismo territorial”
(2012, p. 135). Este autor ainda cita que para diversos intelectuais ciganos, “a dispersão
e divisão dos ciganos torna impraticável reivindicar autonomia territorial, argumentando
que conquistar uma “representação política que não demande separação territorial é a
via para promover a inclusão nas instituições nacionais e internacionais existentes e, ao
mesmo tempo, proteger a cultura romaini da assimilação” (2012, p. 148, meu destaque).
É importante dizer que esta estratégia identificada por Guimarais não é estática, está
suscetível a novos rearranjos conforme os desafios postos pela realidade. As resistências
emergem dos jogos de força de cada tempo.
Não posso deixar de ponderar, por outro lado, que atrelar a “cigandade” à idéia
de nação é perpassado por alguns riscos, pois ainda vivemos sob a hegemonia da
concepção clássica de nacionalismo, isto é, onde existe língua, usos e costumes comuns
ligados a um território próprio, há obrigatoriamente nação e onde há nação há Estado. E
assim ser confundido com pretensões “separatistas”, o que não existe entre os ciganos,
pelo menos não no Brasil. Por transbordar de significado, a ideia de nação acaba
exaurindo-se, principalmente quando se torna uma metáfora política, quando se fala em
“nação cigana”, sempre que encarada ao pé da letra.
Inspirado nos estudos decoloniais e em especial nas reflexões de Aníbal Quijano
(2005; 2002), compreendo que esta interpretação literal acerca do “nacionalismo
cigano” é muitas vezes um reflexo da relutância das classes dominantes em estarem
abertos para o novo, que vem da resistência. Sobretudo se tratando de uma luta que
parte dos povos historicamente oprimidos, como é caso dos ciganos, da mesma forma
que os negros, indígenas e quilombolas. Estes lutam há séculos para sobreviver às
investidas que tentam colonizá-los, às ingerências daqueles cujos privilégios no campo
do poder, do saber e das subjetividades dependem justamente das permanências das
261

hierarquizações fundadas em classificações raciais, que são reatualizados diariamente,


isto é, que não ficaram no passado atrelado ao que se entende por colonialismo.
Entender os “ciganos” enquanto povos ou como nação contribui para promover
um giro decolonial nas formas de pensar e ressignificar as identidades periféricas e
marginalizadas, sendo um ponto de partida no sentido de potencializar as resistências
vigentes, assim como as que virão, jamais se encerrando em si mesma.
No processo do “Estatuto”, pauta-se uma “ciganidade” que ora precisa se valer
do pertencimento ao Brasil, enquanto parte fundamental para a formação do povo
brasileiro. Ora como um conjunto de povos de culturas próprias. Ora como uma
coletividade de pertencimento transnacional que transborda a lógica das fronteiras que
divide o mundo em países. Uma construção que acaba dialogando com a ideia posta
sobre o que “ser cigano”, sem se eximir de disputar e pleitear novos sentidos acerca da
“ciganidade”.
Por fim, preciso pontuar que as relações de poder que trato neste subtópico para
pensar as disputas em torno da “ciganidade” não se limitam às tensões que decorrem da
interação entre os “ciganos” e os “não ciganos”. Ela ocorre simultaneamente entre
aqueles que se identificam e são identificados como “ciganos”. Isto porque com a
promulgação da Constituição Federal 1988 e sobretudo a partir de meados da década de
2000, conforme tratei nesta tese no subtópico “2.2.2”, os movimentos sociais
conquistaram novos espaços institucionais de diálogo com a burocracia estatal, como
ficou claro com a criação de diversos conselhos de Estado e a realização de inúmeras
conferências nacionais.
A abertura destes canais inéditos de diálogo também alcançou os ciganos, que
passaram a integrar tais órgãos colegiados, assim como participar dos eventos realizados
na esfera pública promovidos pelos órgãos estatais. Refletir sobre esta conjuntura
possibilitou-me perceber a existência de uma disputa e ao mesmo questionamentos
sobre “quem são os ciganos”, “o que é ser cigano” e “quem pode falar pelos ciganos”,
uma vez que se repercutiu no processo do “Estatuto”, objeto da presente etnografia.
Participar enquanto membro titular ou suplente de um um conselho estatal é
ocupar um espaço de poder, que gera prestígio, respeito e visibilidade para quem está
neste lugar. Da mesma forma que ser convidado para atuar enquanto consultor na
elaboração de cartilhas de políticas públicas, ser chamado para palestrar em atividades
institucionais ou dar um depoimento numa audiência pública. E não seria diferente
também em relação ao papel de interlocutor no âmbito da elaboração de um projeto de
lei. Funções e espaços que nem sempre existiram e embora representem uma conquista
262

para os povos ciganos de modo geral, são restritos, não cabe todas as lideranças e
representações, e esta condição gera portanto tensionamentos entre aqueles e aquelas
que se sentem legitimados e/ou mais preparados para falarem pelos ciganos.
Por isso, a definição dos critérios para identificar “quem são os ciganos” sempre
irá despertar polêmicas, questionamentos e discordâncias, conforme tratei no tópico
“3.1” deste capítulo. Demonstrei que há basicamente duas lógicas que se conflitam: uma
que pauta critérios mais amplos e outra que defende parâmetros mais restritivos para
caracterizar a “ciganidade”.
Quando falo em “critérios mais amplos” estou me referindo sobretudo à
autodeclaração como mecanismo de validar “quem é cigano ou cigana”. Estou tratando
daqueles que defendem normativas de caracterização da “ciganidade” fundada em
parâmetros que desvinculam o pertencimento étnico ao fator da origem, de ser de uma
família, de ter crescido e integrar uma comunidade cigana. A pesquisa etnográfica
mostrou-me que geralmente são atores sociais que se identificam como ciganos ou
ciganas a partir de ligações espirituais, com base em uma descendência e ancestralidade
longínqua. Ou simplesmente por admirar ou se sentir parte da cultura cigana. Podem
haver também outras justificativas, mas o que eu quero dizer é que todas elas em
alguma medida contribuem para ampliar a possibilidade de mais pessoas pleitearem o
lugar de interlocução com o Estado na esfera pública.
Quando falo em “critérios mais restritivos” estou fazendo alusão àqueles que
sustentam normativas que vinculam à “ciganidade” a um fator “sanguíneo”, ou seja, ter
“sangue cigano”, ser filho de “pai cigano” e “mãe cigano”. E na medida que há um
distanciamento destes preceitos, tenta-se deslegitimar um determinado ator social que
busca ocupar e exercer funções públicas relacionadas direta ou indiretamente à questão
cigana.
Em muitos ambientes onde fiz observação participante, eu presenciei mais de
uma vez situações em que diferentes lideranças ou representações faziam questão de
enfatizar o domínio da “língua cigana” durante seus discursos públicos. Ou seja, além
dos argumentos que elenquei no parágrafo anterior, a mobilização da “língua cigana”
pode ser interpretada enquanto mais um instrumento de poder na luta política em torno
da pauta identitária.
Segundo Rezende,
O caráter manipulativo, estratégico e instrumental da etnicidade fica
evidenciado no processo que transforma a linguagem, meio básico de
comunicação, em um veículo social de organização política dos grupos em
torno do poder e outros recursos sociais. Assim, a linguagem passa a ser
263

entendida como retórica, produtora de percepções e sentimentos, identidades


e fronteiras, significados e metáforas. (2000, p.27, meu destaque)

Conforme eu citei no subtópico “3.2.2”, percebe-se os usos das línguas, das


músicas, das danças e das vestimentas, enquanto “signos diacríticos”, que são
mobilizados em espaços da esfera pública na condição de recurso estratégico destes de
se afirmarem em face dos “não ciganos”. Como diz Rezende, “a etnicidade emerge,
assim, como ideologia articuladora e articulada por símbolos étnicos interpretados e
manipulados publicamente” (2000, p. 42).
Entre todos estes “signos” que mencionei no parágrafo acima, o domínio da
língua ou a mera aparência disso é talvez o mais poderoso no sentido de externar e
expressar a “ciganidade”. Não quero dizer com isso que para “ser cigano” é necessário
falar uma determinada “língua”, além do mais não cabe a mim enquanto pesquisador e
juron definir isso, o que não me impede de descrever, refletir e tentar compreender tais
jogos de força. Até porque como já foi dito inúmeras vezes aqui nesta tese, a alteridade
cigana é infinita, logo é impossível mensurar e delimitar as identidades ciganas.
Outrossim, tendo em vista que os povos ciganos são preponderantemente de cultura
ágrafa, não sendo comum existir um dicionário ou qualquer outra modalidade
codificação, pelo menos não entre os que são da etnia Calon, é bastante restrito quem
consegue acessar ou aprender a shibe. Há um controle nítido e que não ocorre por acaso.
Interpreto tal controle como um mecanismo de fortalecimento das fronteiras
entre “quem são os ciganos” e “quem não são os ciganos”. Diferentemente das
vestimentas, das danças ou das músicas que são associadas às “culturas ciganas”, não é
qualquer pessoa que consegue acessar as línguas faladas pelos ciganos. Inclusive eu
presenciei muitas situações e não apenas no processo do “Estatuto” em que se protestou
ou repudiou organizações e atores sociais que anunciavam ensinar a “língua dos
ciganos”58, por ser uma forma de torná-la pública e acessível.
Para antropóloga Mirian Souza, se referindo às articulações do World Romani
Congress, da International Roma Federation e da Identidad Cultural Romani, apesar da
relevância da “língua romani” para o estabelecimento dessas conexões e organizações
supra-locais, sua importância não se manifesta apenas no seu caráter instrumental, ao
garantir a comunicação entre os atores, mas sim no peso simbólico da língua como
“sinal de distinção étnica dentro da ‘comunidade cigana imaginada’. A língua, nesse

58
A nota de repúdio organizada pela “ANEC” e assinada por dezenas de associações manifestando-se
contra um evento que prometia ensinar o romani está disponível no blog da ASPRECCE, que também
subscreveu o documento. Disponível em: <https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
264

sentido, pode não determinar a posição dos sujeitos, mas certamente contribui para a
estruturação de uma hierarquia no contexto das redes de ativismo” (2019, p. 302).
Se ao longo da história as “línguas ciganas” foram acionadas como um
instrumento de organização política destes povos, não há outra forma de enxergar a sua
mobilização no contexto atual da emergência do ativismo cigano também como um
instrumento de resistência, embora ocorra a partir de uma nova roupagem. Não me cabe
essencializar o domínio da “língua” como um fator de gradação da legitimidade política
e da “ciganidade”. Busco, na verdade, compreender como este elemento da língua se
insere nas relações de poder que atravessam as disputas em torno da definição dos
“ciganos”, uma vez que aparece na construção político-jurídica do Estatuto do Cigano.
Entendo que a reivindicação de muitas lideranças pela adoção de um critério
mais rigoroso no PLS 248/2015 para identificar os destinatário deste possível marco
legal não ocorre apenas com o propósito de restringir o número de pessoas performando
como ciganas, e, em consequência, alçar um lugar de representante desta coletividade
na esfera pública. Além disso, parece haver também a intenção de assegurar que
principalmente sejam reconhecidos em termos de composição dos órgãos colegiados,
para o acesso às políticas afirmativas, assim como ser contemplados por editais de
captação de recursos aqueles e aquelas cujo o pertencimento étnico tenha contribuído
para obstaculizar o alcance de bens que são indispensáveis para a reprodução social
digna, como, por exemplo, o trabalho, a saúde, a educação e a moradia. Não se trata de
uma simples resposta ou reação ao aumento do interesse e de pessoas que se identificam
como “ciganas” sem ter vinculação familiar ou sem integrar de fato uma comunidade.
Significa mais uma entre as múltiplas formas de resistência existentes.
Na luta política em que as lideranças e representações ciganas concorrem aos
poucos espaços de interlocução com a burocracia estatal, acaba sendo inevitável haver
essa disputa em torno da “ciganidade”. A aprovação de um marco legal como o
“Estatuto” não será capaz de encerrar essa discussão acerca de “quem são os ciganos”,
ou seja, quais os critérios que devem ser adotados para identificá-los. Mas acima de
tudo, o processo em si do “Estatuto”, que perpassa o Estado na prática legislativa, já
produz repercussões na constituição do “sujeito de direito cigano” no Brasil.
As disputas em torno da “ciganidade”, assim como no âmbito da produção
direito voltado para este povo tradicional é parte e ao mesmo tempo resultado do
“dispositivo cigano”, constantemente atualizado para gerir não apenas tal coletividade,
mas como todo corpo social. A partir da trama do PLS, podemos perceber que além dos
atores institucionais, outros atores sociais integram esses jogos de poder. Na medida que
265

nesse processo legislativo se pauta quem são os ciganos de verdade59, como devem
viver, qual a sua relação com o território, com a educação, não há apenas o interesse em
promover um controle sobre a existência cigana, mas também de construir o sujeito
cigano e a produção dos seus direitos.
***

Ainda restam alguns questionamentos sobre o processo legislativo em tela. Por


que o “Estatuto do Cigano” ainda não foi aprovado no Congresso Nacional, tendo em
vista que começou a tramitar no ano de 2015? O que aconteceu entre os anos de 2015 e
2018, período em que a tramitação do PLS 248/2015 ficou praticamente parado? Por
qual razão o PLS 248/2015, após ser aprovado, sem dificuldades, na CE e na CAS,
ainda não foi votado na CDH, desde maio de 2018, seguindo, assim, para o plenário da
Câmara de Deputados? Desde que o Congresso Nacional passou a discutir a criação do
“Estatuto do Cigano”, quais políticas públicas foram criadas e desenvolvidas para esta
população pelos diferentes governos federais? Todas essas perguntas decorrem do
seguinte questionamento: em que conjuntura política tramita o “Estatuto do Cigano”?
No próximo capítulo, para refletir e responder estas questões, irei descrever
quem são e quais foram os papéis desempenhados pelos atores, ciganos e não ciganos,
parlamentares, do governo ou demais servidores públicos, na trama política do processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”. Dessa forma, será necessário pontuar o fator da
política e de questões da conjuntura que, inevitavelmente, perpassam pela tramitação do
PLS 248/2015.

59
A reivindicação de algumas lideranças acerca da restrição quanto ao acesso às línguas ciganas, assim
como a mobilização do seu domínio para a caracterização da “ciganidade” é uma amostragem que o
“dispositivo cigano” é dinâmico e não se restringe à atuação das classes dominantes, não é apenas
pautado pelos agentes estatais. Aqueles que se identificam como ciganos também operam este dispositivo,
disputam-o com fins de controlar a existência cigana, de pautar o “o que é ser cigano”, sobretudo diante
da abertura no âmbito das políticas públicas voltadas para os povos tradicionais no Brasil. A atualização
do “dispositivo cigano” vai além da pauta do “Estatuto”, mas que não podem ser ignoradas diante do
impacto que a proposição do PLS 248/2015 tem nas discussões públicas sobre a questão cigana na
sociedade.
266

Capítulo 4
“A Capital das Leis”

A compreensão do processo de construção político-jurídica do Estatuto do


Cigano, por meio da etnografia da tramitação do PLS 248/2015, apresentado ao
Congresso Nacional pelo Senador Paulo Paim, em 29 de abril de 2015, é uma análise
científica interdisciplinar e de dimensão não normativa que busca compreender como se
dá a criação de leis no Brasil. Neste capítulo, busquei identificar e descrever quais as
regras, formais e informais, que têm perpassado a tramitação do “Estatuto” no Senado
Federal, assim como as disputas políticas, inclusive no movimento cigano, que podem
ser percebidas neste processo legislativo.
Portanto, dei destaque às informações dos atores políticos que de alguma forma
atuaram nesta trama política, embora não se restrinjam ao locus Congresso Nacional.
Além das pessoas que trabalham no Poder Legislativo, identifiquei a atuação de
integrantes de outros órgãos públicos nas negociações pela criação do “Estatuto do
Cigano”, o que acabou ampliando as fontes de informações, assim como o campo de
análise do presente trabalho antropológico.
“A Capital das Leis”, como intitulei o presente capítulo, consiste na tradução
literal do que representa Brasília, nas palavras das próprias lideranças ciganas que se
organizam na ANEC, conhecida como a associação proponente do PLS 248/2015. É
nesse locus onde a maioria das leis são propostas, formuladas e enfim aprovadas,
rejeitadas ou arquivadas; onde as principais decisões políticas de âmbito nacional são
tomadas; em que está situada a sede dos poderes que compõem a República Federativa
do Brasil e assim por diante. Lembrando que “Brasília” ou o “Congresso Nacional” não
são objetos desta tese. O que importou e foi descrito, aqui neste quarto capítulo, foram
as regras, formais e informais, assim como as disputas políticas, que são inerentes a
qualquer processo legislativo, sobretudo a tramitação do PLS 248/2015. A identificação
destas normativas constituíram uma das chaves interpretativas para compreender a
construção político-jurídica do Estatuto do Cigano no Brasil.
Neste sentido, dividi o quarto capítulo em duas partes. No primeiro item, abordei
o processo legislativo em si. Em seguida, no segundo item, focalizei as disputas
políticas, sobretudo do movimento cigano, que surgiram ao longo da tramitação do PLS
248/2015. Uma trama que envolveu ao mesmo tempo a “criação de uma lei” e a
produção da “ciganidade”.
267

4.1 - O processo legislativo


Ver caps. 2 e 3

Para descrever, densamente, o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”1, foi


fundamental apontar e compreender quais são caminhos percorridos para se aprovar
uma nova “lei” no Brasil. Como busquei demonstrar no segundo e terceiro capítulos, a
produção de uma lei está longe de ser um processo que envolve apenas os
parlamentares, uma vez que mobiliza também a participação de uma ampla e variada
gama de atores e instituições sociais (LEBEUF, 1990). A minha pesquisa
também vai
Será que seria Vale lembrar que os procedimentos mais tradicionais da pesquisa antropológica deslocar o
horizonte do
um problema
se eu conduziram muitas vezes seus estudos para focar sociedades distantes da sua, buscando, trabalho
antropológico para
escrevesse o o universo do
nome dos intencionalmente, privilegiar as instituições e fenômenos mais mobilizadores da Estado
integrantes dos
cargos, por dinâmica social nativa. A presente pesquisa deslizou também o horizonte do trabalho
exemplo:
Presidente da antropológico para o universo do Estado, buscando, simultaneamente, dar ênfase e voz
Câmara dos
Deputados; aos sujeitos que são destinatários do projeto de lei, tomando estes como informantes,
Senador
Fulano de tal... especialmente as lideranças ciganas, sem deixar de levar em conta a performance dos
agentes do Estado, que têm atuado no processo legislativo em tela.
Nesta esteira, a pesquisadora Ciméa Bevilaqua (2003) advertiu para a
permanência do problema tradicional da identificação dos informantes, que ressurge de
modo particularmente agudo e desconcertante quando o objeto de estudo se situa no
universo estatal ou quando diz respeito às diferentes formas de interlocução entre os
cidadãos e agentes do Estado2.
Aqui no quarto capítulo, além de levar em consideração a diversidade de atores e
instituições que estão envolvidos no processo do “Estatuto do Cigano”, foi importante
observar como estes sujeitos atuaram na aplicação e simultaneamente na construção do
aparato normativo que influenciou a tramitação do PLS 248/2015 entre os anos de 2015
e 2020. Ao levar em conta outros trabalhos antropológicos que descreveram e
estudaram como funcionam os setores do Estado, de diferentes naturezas, foi possível
observar que a maneira como estas instituições operam transcendem o arcabouço
legal/formal. Este preceito abarca, sobretudo, o Poder Legislativo.

1
De acordo com a Constituição Federal, “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I -
emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas
provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções” (meus destaques).
2
Durante o exame de qualificação da tese, a Dra. Mércia Rejane sugeriu que eu não fizesse menções aos
nomes de integrantes do governo federal que ocupam cargos de confiança, devido a possibilidade desta
informação gerar eventuais processos judiciais para mim. Embora tivesse atendido esta recomendação,
concordo com a pesquisadora Ciméa Bevilaqua quando ressaltou a importância o anonimato, no entanto,
pontuou que o “o procedimento habitual de modificar o nome dos sujeitos envolvidos se revela
flagrantemente inócuo: tratando-se de autoridades ou de servidores públicos, a simples menção de seus
cargos e funções é suficiente para identificá-los” (2003, p. 60).
268

Segundo a pesquisadora Luciana Botelho Pacheco, na obra “Como se fazem as


leis”, publicada pela editora da Câmara de Deputados, que leva em conta os aspectos
formais de um processo legislativo, cumpre observar,
que as normas traçadas pela Constituição no tocante ao processo legislativo
são de caráter bastante geral, não descendo a maiores detalhes. O texto
constitucional, antes, cuidou de conferir a cada Casa Legislativa competência
e autonomia para elaborar seus regimentos internos, que são as normas
especificamente destinadas a regular, em minúcias, o funcionamento de cada
uma delas, aí incluídos os procedimentos aplicáveis ao processo de feitura
das leis. (2013, p. 16)

No caso da tramitação do PLS 248/2015, trata-se de uma proposta de lei


ordinária3 que iniciou sua tramitação no Senado Federal. É justamente na Constituição
Federal de 1988, assim como nos regimentos internos do Senado Federal, da Câmara de
Deputados e no regimento comum do Congresso Nacional, que podemos nos informar
como devem tramitar os projetos de lei, no sentido formal. Por exemplo, quantos votos
são necessários, quais comissões podem ser mobilizadas para examinar e se posicionar
em face de uma determinada matéria, qual o papel do Poder Executivo em um processo
legislativo. Todavia, como já disse anteriormente, há uma limitação em tentar
compreender qualquer processo legislativo em abstrato e a partir de critérios,
exclusivamente, formais.
Nos parágrafos abaixo, compartilho, em abstrato, como se procede, geralmente,
a tramitação de um projeto de lei no Brasil, a partir do momento em que é submetido
em uma das Casas Legislativas. Vejamos:
1) Inicialmente, o mérito de uma determinada proposta de projeto de lei pode ser
debatido, examinado e aprovado em comissões permanentes ou temporárias da Casa
legislativa onde iniciou a tramitação4. Avaliando haver impacto no orçamento da União,
o projeto deve também ser encaminhado para análise na Comissão de Finança e
Tributação, no caso da Câmara, ou na Comissão de Assuntos Econômicos, tratando-se
do Senado5. Por último, o projeto, dependendo da matéria, pode ser discutido na

3
Há espécies de atos normativos no Brasil, sendo a lei ordinária um dos atos normativos de natureza
primária, que, em regra, versa sobre normas gerais e abstratas. É lei ordinária aquelas que expressamente
a Constituição não exige que a matéria seja abordada por uma “lei complementar”, que exige um quórum
superior para ser aprovado. Trata-se de um critério residual. (CUNHA JÚNIOR, 2019).
4
Conforme o Regimento Interno do Senado: “Art. 71. O Senado terá comissões permanentes e
temporárias (Const., art. 58)”. O Estatuto do Cigano, para ser aprovado, deve passar por três comissões
permanentes, que estão previstas no art. 72, do Regimento Interno do Senado Federal; são os incisos “II”
(Comissão de Assuntos Sociais - CAS); “IV” (Comissão de Educação, Cultura e Esportes - CE) e “VI”
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (BRASIL, 1970).
5
De acordo com o art. 99, inciso I, do Regimento Interno do Senado Federal, à CAE compete opinar
sobre proposições pertinentes aos seguintes assuntos, como por exemplo: “I - aspecto econômico e
financeiro de qualquer matéria que lhe seja submetida por despacho do Presidente, por deliberação do
Plenário, ou por consulta de comissão, e, ainda, quando, em virtude desses aspectos, houver recurso de
decisão terminativa de comissão para o Plenário” (BRASIL, 1970).
269

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC)6. Há proposições que podem


também tramitar direto no plenário, sem passar pelas comissões.
Levando em conta o meu objeto de estudo, frisa-se que, ao ter sido determinado
que o PLS 248/2015 teria que ser discutido e aprovado na CAS, na CE e na CDH, a
mesa diretora do Senado interpretou que o “Estatuto do Cigano” não precisaria passar
por comissões específicas que discutem impacto financeiro ou a conformidade da
matéria com os mandamentos constitucionais.
2) Em seguida, após ser examinado e aprovado na primeira “Casa Legislativa”, o
projeto de lei deve ser encaminhado para votação na segunda “Casa”, que cumpre o
papel revisor. Em caso de mudanças no texto do projeto de lei em votações da segunda
“Casa Legislativa”, o projeto de lei deve retornar para a “Casa iniciadora”7 onde
começou a tramitação, devendo passar mais uma vez pelas comissões. Uma vez
aprovado na Casa Legislativa que cumpre o papel “revisor”, sem alterações na matéria
do projeto, a proposição legislativa deve seguir para ser sancionado pelo Presidente da
República em exercício8.
No caso da tramitação do PLS 248/2015, o quórum exigido nos órgãos
colegiados, tanto as comissões, como no plenário, é o de maioria simples9, uma vez que
se trata de uma proposta de lei ordinária.

6
O regimento interno do Senado, por meio do art. 101, inciso I, informa que uma das competências da
CCJC é “- opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que lhe forem
submetidas por deliberação do Plenário, por despacho da Presidência, por consulta de qualquer comissão,
ou quando em virtude desses aspectos houver recurso de decisão terminativa de comissão para o
Plenário;” (BRASIL, 1970).
7
No caso da tramitação do “Estatuto do Cigano”, o Senado Federal cumpre o papel de “Casa iniciadora ”,
pois foi onde iniciou a tramitação da matéria, que será examinada, e que na Câmara de Deputados será
revisada. Segundo o glossário do Congresso Nacional, “Casa iniciadora” corresponde nos sistemas
legislativos bicamerais, “a Casa Legislativa onde se inicia a tramitação de uma proposição passível de
revisão pela outra” (BRASIL, 2020e).
8
Sanção significa “a concordância e anuência do presidente da República com projeto de lei ordinária ou
complementar aprovado pelo Congresso. O prazo para ocorrer a sanção é de 15 dias. Caso o presidente
não sancione o projeto nesse período, este será tido como sancionado tacitamente. Ocorrendo essa
hipótese, o projeto é promulgado pelo presidente da República ou pelo presidente do Senado” (BRASIL,
2020h).
9
“Maioria simples” dependerá do número de parlamentares presentes na sessão em que o projeto de lei
estiver sendo votado. Sendo que para iniciar uma votação, no mínimo, metade dos parlamentares que
compõe a “Casa Legislativa”. Caso estejam presentes 300 Deputados, a maioria simples será de 151
parlamentares. Caso estejam presentes 400 Deputados, a maioria simples será de 201, e assim por diante.
Por outro lado, “maioria absoluta”, exigido para aprovar “leis complementares”, corresponde ao número
inteiro superior à metade do total de integrantes, na Câmara de Deputados é 257 parlamentares, e no
Senado Federal é 41 senadores. É importante ressaltar que o número correspondente à maioria absoluta é
fixo, não varia, enquanto a maioria simples representa um número variável, dependendo da quantidade de
pessoas presentes no dia específico em que ocorre a votação da matéria (CUNHA JÚNIOR, 2019).
270

3) O chefe do Poder Executivo pode sancionar ou vetar10, parcial ou totalmente,


o projeto de lei que tramitou no Poder Legislativo. Em caso de veto, o projeto deve
voltar para o plenário do Congresso em uma sessão conjunta, Câmara e Senado, para
apreciação do veto, sendo necessários a maioria absoluta dos votos dos Deputados e dos
Senadores para reverter a decisão do Chefe do Poder Executivo11. Por fim, caso o veto
seja rejeitado, o projeto de lei aprovado deve ser encaminhado à promulgação pelo
Presidente da República, em até 48 horas12, ou, na omissão deste, pelo Presidente ou
Vice-Presidente do Senado, em igual prazo.
Ao examinar a tramitação do PLS 248/2015, por meio de um trabalho
antropológico, em que mobilizei diferentes técnicas, tais como a análise de documentos,
observações participantes e a realização de entrevistas, notei que há caminhos que
podem ser percorridos em um processo legislativo, mas que não estão claramente
descritos nos regimentos internos do Congresso Nacional ou na Constituição Federal de
1988.
Continuar daqui Por exemplo, um dos atos não explícitos nas normas jurídicas escritas que
regulamentam o processo legislativo são as audiências públicas. Embora haja previsão
formal destas atividades, não há a exigência destas para que ocorra uma proposição
legislativa. Por outro lado, no caso do “PLS” podemos perceber que esta modalidade de
reunião pública foi fundamental para incentivar a proposição da matéria pelo Senador
Paulo Paim, ou seja, as audiências públicas de 2011 e 2012 realizadas na CDH do
Senado para discutir a “cidadania” e o “direito cigano” legitimaram a submissão do PLS
248/2015 pelo parlamentar e por isso podem ser interpretadas como partes integrantes
da tramitação do projeto de lei. Resumindo, o que eu quero dizer é que o Senador Paulo
Paim, assim como qualquer outro parlamentar, poderia apresentar esta matéria
legislativa sem a realização prévia de audiências públicas, não se tratando portanto de
uma determinante que vincula a submissão ou a aprovação do projeto pelo Congresso,
cumprindo mais um papel de legitimação política.

10
A possibilidade do veto presidencial está prevista no art. 66 da Constituição Federal e nos arts. 104 e
seguintes do Regimento Comum do Congresso Nacional. Veto consiste em “instrumento usado pelo
Presidente da República para recusar a sanção de projeto, no todo ou em parte, sob o argumento de
inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público. O veto poderá ser mantido ou rejeitado pelo
Congresso Nacional, nos termos do Regimento Comum” (BRASIL, 2020j).
11
Segundo o parágrafo 4º, do art. 66, da Constituição Federal: “o veto será apreciado em sessão conjunta,
dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria
absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto” (meu destaque).
12
Por meio do art. 66, parágrafo 7º, da Constituição Federal de 1988, determina-se que: “se a lei não for
promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos dos § 3º e § 5º, o
Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do
Senado fazê-lo” (meu destaque).
271

De todo modo, a tramitação do “Estatuto” iniciou, formalmente, em 29 de abril


de 2015, data que indica a submissão do projeto pelo Senador Paulo Paim.
Posteriormente, ocorre as escolhas das comissões em que a proposição deve ser
analisada e votada, sendo este um dos primeiros atos processuais após haver a
submissão da matéria pelo autor do projeto. A escolha de tais comissões é, portanto,
uma decisão política que decorre das atribuições do do presidente da Casa onde inicia a
tramitação de um projeto de lei. Em outras palavras, é o presidente do Senado que
determina quais as comissões um referido projeto de lei precisa passar ou se a proposta
pode tramitar diretamente no plenário13, sem passar pelas comissões, tratando-se, assim,
de uma das primeiras e mais relevantes decisões políticas que são tomadas no âmbito de
um processo legislativo.
Quando o projeto de lei do Senador Paulo Paim foi submetido, o Senador Renan
Calheiros (PMDB/AL) exercia a presidência da “Casa”. É possível dizer, então, que a
gestão deste parlamentar foi responsável por escolher quais comissões o “Estatuto do
Cigano” precisaria tramitar e se o projeto de lei teria que ser votado no plenário ou não
do Senado, antes de seguir para a Câmara.
Até o mês dezembro de 2020, o projeto de lei em questão foi aprovado na
Comissão de Educação, Esporte e Cultura (CE), em 27/03/2018, e na Comissão de
Assuntos Especiais (CAS), em 09/05/2018, ambos com a relatoria do Senador Hélio
José (PMDB-PROS/DF). Desde então, o projeto aguarda para ser discutido e aprovado
na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), “em decisão
terminativa”14. O regimento interno do Senado determina que cabe ao presidente do
Senado decidir se uma matéria pode ser apreciada “terminativamente” em algumas das
comissões, dispensando, assim, a manifestação do Plenário sobre o projeto, uma
possibilidade admitida para os projetos de leis ordinárias, que são consideradas
“proposições diversas”15.

13
De acordo com o regimento do Senado, “Art. 49. Na distribuição das matérias subordinadas, na forma
do art. 91, à apreciação terminativa das comissões, o Presidente do Senado, quando a proposição tiver seu
mérito vinculado a mais de uma comissão, poderá: I - definir qual a comissão de maior pertinência que
deva sobre ela decidir” (BRASIL, 1970). Ou seja, é a comissão escolhida “de maior pertinência” que terá
“decisão terminativa”, que dispensa a apreciação da matéria pelo Plenário.
14
Segundo informação do próprio website do Senado Federal, decisão terminativa “é aquela tomada por
uma comissão, com valor de uma decisão do Senado. Depois de aprovados pela comissão, alguns projetos
não vão a Plenário, são enviados diretamente à Câmara dos Deputados, encaminhados à sanção,
promulgados ou arquivados. Só serão votados pelo Plenário do Senado se recurso com esse objetivo,
assinado por pelo menos nove senadores, for apresentado ao presidente da Casa. Após a votação do
parecer da comissão, o prazo para a interposição de recurso para a apreciação da matéria no Plenário do
Senado é de cinco dias úteis” (BRASIL, 2020f).
15
De acordo com a Resolução nº 93, de 1970, que instituiu o Regimento Interno do Senado Federal: “Art.
91. Às comissões, no âmbito de suas atribuições, cabe, dispensada a competência do Plenário, nos
termos do art. 58, § 2º, I, da Constituição, discutir e votar: I - projetos de lei ordinária de autoria de
272

Desde o início da tramitação do “Estatuto do Cigano”, em 29/04/2015,


ocorreram uma série de procedimentos, entre requerimentos, apresentações de relatórios
legislativos, audiências públicas e votações das reuniões nas comissões16. A última
movimentação “processual” ocorreu no dia 12/02/2020, em que o Senador Telmário
Mota, relator do “Estatuto do Cigano” na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa, retirou o projeto de pauta, para “reexame da matéria”, quando esta matéria
estava prestes a ser votada em “decisão terminativa”.
Como podemos perceber, apesar da quantidade de procedimentos que foram
realizados no processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, ao longo dos cinco anos,
entre 2015 e 2020, a tramitação deste projeto de lei ocorreu em diferentes ritmos. As
únicas duas votações, que permitiram, objetiva e concretamente, um avanço na
tramitação, aconteceram entre os meses de março e maio de 2018. Além disso, neste
mesmo intervalo de tempo, ocorreu a única audiência pública convocada para discutir o
“Estatuto do Cigano”, desde o início do processo legislativo. A ausência de votações
não significa dizer que antes ou depois deste período não houve ações ou decisões
importantes que perpassam o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”.
Cada acontecimento é um dado relevante para compreender o processo em si,
como, por exemplo, os dois requerimentos de audiência pública, como seus respectivos
cancelamentos, na Comissão de Educação; os relatórios legislativos, com as propostas
de mudanças e ajustes no texto do projeto de lei, que são atravessados por disputas
políticas; as diversas ocasiões que o projeto foi incluído na “pauta do dia” das
Comissões e, em seguida, “retirado de pauta” ou “adiado”. Fiz o esforço de descrever,
traduzir e interpretar tanto o que aconteceu, como o que deixou de ocorrer, o que está
por trás destes episódios.
Ou seja, para a presente a pesquisa, as interrupções na tramitação do projeto de
lei são dados tão relevantes quanto as próprias votações em si. Por outro lado, ao
acessar apenas os documentos oficiais que são disponibilizados pelo Senado, não é
possível obter informações sobre quais os motivos deste projeto de lei ter sido “retirado
de pauta” e mais uma vez encaminhado para o relator reexaminar a matéria ou o porquê
dos adiamentos. Estas indagações, portanto, motivaram-me a buscar informações com a

Senador, ressalvado projeto de código. § 1º O Presidente do Senado, ouvidas as lideranças, poderá


conferir às comissões competência para apreciar, terminativamente, as seguintes matérias: V -
indicações e proposições diversas, [...]” (BRASIL, 1970, meus destaques).
16
A associação cigana ASPRECCE, por meio de seu blog, publicou quatro tabelas organizadas por mim,
em que estão descritos os procedimentos realizados ao longo da tramitação do “Estatuto do Cigano”,
entre os anos de 2015 e 2020, conforme as informações oficiais que estão disponibilizadas pelo website
do Senado Federal.
273

assessoria parlamentar dos Senadores envolvidos no processo legislativo, de modo a


complementar as informações obtidas por meio das análises documentais.
A respeito das questões metodológicas que envolvem os desafios de transformar
esses obstáculos em dados, que podem ser, igualmente, objeto de uma análise,
integrando as maneiras pelas quais acessamos documentos, as pesquisadoras Eva
Muzzopappa e Carla Villata afirmaram que:
uma abordagem etnográfica dos documentos produzidos pelas instituições
estatais pode ser complementada com outras ferramentas e técnicas de
investigação - como entrevistas com agentes que trabalham ou trabalham
nessas instituições - ou aproveitar as experiências do próprio processo de
pesquisa e conhecimento sobre as rotinas operacionais das instituições
estatais. Dessa forma, a análise pode ser enriquecida pelo conhecimento
construído em outras experiências de trabalho de campo, como as
desenvolvidas pela interação cara a cara com os agentes que constroem
diariamente o Estado. (2011, p. 38, minha tradução)

A tramitação do “Estatuto do Cigano”, como todo processo legislativo, não


corresponde a uma somatória de procedimentos formais. A opção que fiz nesta tese por
realizar um trabalho antropológico, consistindo numa pesquisa empírica e qualitativa,
possibilitou-me observar outros fatores que são fundamentais nas negociações pela
aprovação de um projeto de lei, elementos que não poderiam ser identificados por meio
de uma pesquisa tradicional do fenômeno jurídico, que se restringe ao “dever ser”.
Segundo os pesquisadores Alexandre Cunha e Paulo Silva,
A pesquisa empírica em direito, que elege como objeto o ser antes de
prescrever o dever ser, está apenas em seu início (ou reinício?) no Brasil.
Praticamente não existe fonte de informação precisa sobre a realidade da
aplicação da norma e o funcionamento das instituições jurídicas, e as
faculdades de direito brasileiras nunca ofereceram formação para esse tipo de
investigação. [...] A pesquisa em direito no Brasil especializou-se na norma
como dever ser, deixando um pouco de lado o conhecimento da norma como
ser, como ela acontece na realidade. (2017, p. 11)

A etnografia da tramitação do projeto de lei do Senador Paulo Paim, portanto,


permitiu-me identificar quais são as regras que regem a tramitação de um projeto de lei,
que não se limitam ao aparato legal/formal. Assim como perceber que as negociações
pela aprovação do PLS 248/2015 envolvem agentes públicos não apenas do Congresso
Nacional. As decisões que atravessam este processo legislativo demandam um
“entendimento” entre variados atores sociais, parlamentares, governo federal, MPF e
lideranças ciganas, em diferentes intensidades.
Além disso, como discuti também nos próximos subtópicos, identificar e
compreender as regras, expressas ou implícitas, formais ou não, que perpassam o
processo legislativo do PLS 248/2015 foi fundamental para refletir como se dá a
274

produção de uma lei, que tem como destinatária um povo tradicional no Brasil, e, ao
mesmo tempo, como vem se dado a construção político-jurídica do Estatuto do Cigano.

4.1.1 - As audiências públicas

Desde que comecei a acompanhar o “ativismo cigano” no Brasil, identifiquei


que as audiências públicas, de modo geral, são um dos principais “eventos políticos”
que possibilitam aos povos ciganos entrarem em contato com as “autoridades” que
integram os poderes públicos, de modo a dialogar acerca das suas demandas, realizar
denúncias de violações de direitos e reivindicar políticas públicas. O que importa neste
subtópico é compreender como funcionam as audiências públicas.
Entre os anos de 2011 e 2014, ou seja, antes mesmo do início da tramitação
formal do “Estatuto”, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do
Senado Federal foi o locus onde ocorreram quase todas as audiências públicas
realizadas no Congresso Nacional em que foram discutidos, direta ou indiretamente, os
direitos ciganos.
É importante mencionar que a Constituição Federal de 1988, por meio da
redação do artigo 58, § 2º, inciso II17, prevê a possibilidade de realização de audiências
públicas pelas comissões do Congresso Nacional, que pode ocorrer independente de
existir um projeto de lei que esteja discutindo a temática que será abordada na reunião
pública convocada. A realização de audiência pública também está prevista no
regimento interno do Senado Federal18, “Casa legislativa” responsável por examinar a
matéria do PLS 248/2015.
O jurista Antonio Cabral traz a seguinte definição de audiência pública: “é uma
reunião aberta em que a autoridade responsável colhe da comunidade envolvida suas
impressões e demandas a respeito de um tema que será objeto de decisão
administrativa” (2007, p. 44-45). Cito também o conceito de “audiência pública” da
jurista Evana Soares, que o meu ver, é mais completo:
Audiência pública é um instrumento que leva a uma decisão política ou legal
com legitimidade e transparência. Cuida-se de uma instância no processo de
tomada da decisão administrativa ou legislativa, através da qual a autoridade

17
Segundo o texto constitucional: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões
permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento
ou no ato de que resultar sua criação. § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;” (meu destaque).
18
É válido citar como este documento jurídico aborda a convocação das audiências públicas. Vejamos:
“Art. 93. A audiência pública será realizada pela comissão para: I - instruir matéria sob sua apreciação; II
- tratar de assunto de interesse público relevante. § 1º A audiência pública poderá ser realizada por
solicitação de entidade da sociedade civil. § 2º A audiência prevista para o disposto no inciso I poderá ser
dispensada por deliberação da comissão .” (meu destaque).
275

competente abre espaço para que todas as pessoas que possam sofrer os
reflexos dessa decisão tenham oportunidade de se manifestar antes do
desfecho do processo. É através dela que o responsável pela decisão tem
acesso, simultaneamente e em condições de igualdade, às mais variadas
opiniões sobre a matéria debatida em contato direto com os interessados. Tais
opiniões não vinculam a decisão, visto que têm caráter consultivo e a
autoridade, embora não esteja obrigada a segui-las, deve analisá-las segundo
seus critérios. acolhendo-as ou rejeitando-as. (2003, p. 261)

Estes conceitos dialogam, em parte, com os dados que me deparei em meu


campo de pesquisa, uma vez que foi graças ao instituto da audiência pública que o
Senador Paulo Paim decidiu, politicamente, apresentar o projeto de lei que propõe a
criação do “Estatuto do Cigano”. Portanto, em certa medida, tratou-se de uma
modalidade preliminar de decisão política, que impulsionou a tramitação do PLS
248/2015.
Para a jurista Lúcia Valle Figueiredo, a previsão da “audiência pública” no texto
constitucional representa a defesa do “interesse público da coletividade”, tratando de um
“autêntico direito difuso”, isto é, um “direito público subjetivo de defesa da
comunidade” (2002, p. 238). As audiências públicas que abordam pautas associadas aos
interesses dos povos ciganos, por exemplo, não dizem respeito apenas a esta
coletividade, como toda sociedade, por isso, concordado com Figueiredo, interpreto
também esta atividade como uma expressão dos direitos difusos19.
Para poder interpretar o significado das audiências públicas para a tramitação do
“Estatuto do Cigano”, levei em consideração os estudos do antropólogo John Cunha
Comerford, que descreveu densamente as “reuniões” de um Sindicatos de Trabalhadores
Rurais no interior do estado do Rio de Janeiro. Ao invés de abordar os conteúdos
substantivos de discussões feitas nas reuniões deste sindicato, Comerford buscou
compreender as “reuniões” em si mesmas e seus procedimentos. Nas palavras deste
pesquisador:
[...] tomar as reuniões como objeto me permitia também perguntar: quais são
os elementos componentes de uma reunião e as ‘regras’ explícitas ou
práticas que os relacionam? Em que planos as reuniões têm efeitos, para
além dos resultados ‘oficialmente’ esperados? Qual a relação da dinâmica das
reuniões com as disputas pelo poder nas organizações?
Para responder a essas questões, foi realizada uma observação detalhada de
várias reuniões, buscando um ‘estranhamento’ em relação a esses
procedimentos que me pareciam demasiadamente familiares.
(COMERFORD, 1999, p. 49, destaque do autor)

Apesar de ter analisado os registros documentais das audiências públicas


anteriores a proposição formal do “Estatuto Cigano”, ou seja, que ocorreram antes do

19
Segundo o art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, “interesses ou
direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível,
de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (BRASIL, 1990).
276

ano de 2015, dou destaque, neste tópico, à audiência pública do dia 29/05/2018, pois,
além de ter feito observação participante nela, tive acesso a sua gravação e fiz a sua
transcrição completa20.
Entre os anos de 2015 e 2018, até a realização da audiência pública do dia
29/05/2018, houve duas tentativas de convocatória de reuniões desta natureza, que
foram requeridas no âmbito da tramitação do PLS 248/2015, porém sem sucesso. Assim
como ocorre num processo legislativo como um todo, a requisição, aprovação e a
realização de audiência pública é um jogo que envolve uma série de atos e negociações.
Após dois requerimentos solicitando a realização de audiência pública sobre o
“Estatuto do Cigano”, que não foram concretizados, finalmente, em 29/05/2018,
realizou-se tal modalidade de reunião pública. Ao ter acesso e analisar os documentos
oficiais, observei que se aprovou a solicitação desta audiência pública na CDH, em
09/05/2018, por meio do “Requerimento CDH nº 86/2018”, de autoria Senador Paulo
Paim, no mesmo dia que o “Estatuto Cigano” foi deliberado na CAS, penúltima
comissão em que o PLS 248/2015 precisa tramitar no Senado Federal. Neste dia,
ocorreu a “41ª Reunião Extraordinária da Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa”, sendo que o “RDH nº 86/2018” constou nos registros escritos como
“extrapauta”. O que significa que a requisição para realizar audiência sobre o “Estatuto
do Cigano” não estava incluída na “pauta do dia”.
Além disso, a reunião extraordinária em que o Requerimento CDH nº 86/2018
foi aprovado estava sendo presidida pelo próprio autor do requerimento, isto é, o
Senador Paulo Paim, então vice-presidente da CDH, tendo em vista que a presidenta, a
Senadora Regina Souza, do seu mesmo partido, não estava presente neste dia.
O Requerimento CDH nº 86/2018 expõe as razões para a realização da audiência
pública. Vejamos abaixo o conteúdo do documento:
Com fundamento no disposto no art. 93, inciso II, do Regimento Interno do
Senado Federal, requeiro a realização de um ciclo de audiências públicas,
nesta Comissão, para debater “O Estatuto do Cigano”.
O projeto de minha autoria, foi construído pela Associação Nacional das
Etnias Ciganas (ANEC), nos moldes do Estatuto da Igualdade Racial, como
uma forma de, enfim e definitivamente, assegurar a igualdade de
oportunidades à população cigana residente no Brasil.
O projeto abrange um catálogo de direitos voltado justamente para a solução
dos problemas vivenciados particularmente por tal população. No mês de
abril, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do
Ministério Público Federal (6CCR/MPF) aprovou o projeto da ação
coordenada “O MPF na afirmação dos direitos dos povos ciganos”, a ser
realizada no mês de maio. A ação, que integra o calendário do projeto MPF

20
Ressalto que, entre os anos de 2017 e 2020, participei audiências públicas realizadas pelo MPF e outros
eventos desta natureza no Congresso Nacional, que tiveram a participação de lideranças ciganas, mas que
versaram sobre temáticas tangenciais, não relacionadas diretamente às políticas públicas específicas
direcionadas aos “ciganos” ou ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano”.
277

Cidadão 30 anos, prevê a confecção e distribuição de cartilhas sobre os


direitos dos povos ciganos e os instrumentos para sua efetivação, além da
realização de audiências públicas nas unidades do MPF em todo o Brasil e a
expedição de recomendações e de nota técnica a respeito do Estatuto do
Cigano.
O MPF pretende realizar audiências nos estados e cidades onde existem
comunidades ciganas, com o objetivo ouvir os ciganos sobre os principais
problemas que enfrentam, apresentar as demandas aos gestores dos
municípios e discutir os encaminhamentos para as questões locais, tendo em
vista as características e peculiaridades de cada região.
Desta forma, o ciclo de audiências que ora requeiro tem a finalidade de
recebermos as contribuições do Ministério Público Federal e da população
Cigana de todo o Brasil.
Os convidados serão informados posteriormente. (BRASIL, 2018g, meu
destaque)

Podemos perceber que o requerimento do Senador Paulo Paim, propondo a


realização de audiência pública em diálogo com agenda do MPF, uma vez que este
órgão, por meio da 6ª CCR, organizou, no ano 2018, o evento intitulado “Maio Cigano”,
cuja a realização de uma audiência pública estava programada entre as atividades a
serem desenvolvidas. Este evento, que também fiz observação participante, aconteceu
na noite do dia 28/05/2018, um dia antes da reunião pública do Senado Federal,
contribuindo, assim, para que as lideranças ciganas presentes fossem praticamente as
mesmas.
O website do Senado Federal, ao descrever a audiência pública do dia
29/05/2018, registrou que:
Realizada, nesta data, a 1ª audiência pública do ciclo, com os seguintes
participantes: Wanderley da Rocha, Representante da Associação Nacional
das Etnias Ciganas – ANEC; José Willamis Alves da Silva, Representante
dos Ciganos do Estado de Alagoas; Omar Ivanovichi, Representante dos
Ciganos do Estado do Rio Grande do Norte; Mio Vacite, Representante dos
Ciganos do Estado do Rio de Janeiro; Sandra Lucero, Representante dos
Ciganos de Tianguá – CE; Luís Bruno de Moraes, Representante dos Ciganos
de Alto Parnaíba – MA; e Natasha Barbosa, Representante da Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (BRASIL, 2018a).

Ao longo do ano 2018, em que se estava programado a realização de um “ciclo


de audiências”, conforme anunciado no Requerimento CDH nº 86/2018, ocorreu apenas
uma atividade desta natureza no Senado Federal, o evento do dia 29/05/2018. Não
encontrei registros e também não obtive relatos com os interlocutores da minha
pesquisa a respeito da realização de outras reuniões públicas no Congresso Nacional
sobre o “Estatuto do Cigano”.
O fato de ter realizado observação participante nas duas audiências públicas,
tanto a do MPF, como a do Senado, possibilitou-me a oportunidade de ter acesso às
informações que não podem ser obtidas analisando, friamente, a partir dos documentos
e das gravações disponibilizadas pelos órgãos públicos envolvidos na realização destas
278

atividades. A citação acima, por exemplo, não menciona a presença de outras lideranças
ciganas que igualmente participaram da audiência, inclusive por meio pronunciamentos
públicos - pessoas que se posicionaram, todavia, a partir do “plenário” e não da “mesa”
do espaço onde se realizou a reunião pública.
Como ficou evidente ao longo da atividade do dia 29/05/2018, as pessoas que
integraram a “mesa” foram convidadas e escolhidas por “Seu Wanderley”, exceto Mio
Vacite. Digo isso porque percebi que esta liderança foi chamada, de última hora, para
sentar na mesa da audiência pública do CDH. Posso afirmar que este convite se deu
devido a um incidente que ocorreu no dia anterior, na atividade do MPF, que, na minha
interpretação, acabou influenciando em parte da dinâmica do evento realizado no
Senado21. Em um discurso realizado na noite anterior, Mio Vacite dirigiu,
expressamente, uma crítica à metodologia da audiência pública do MPF, e
indiretamente, aos seus idealizadores22. Vejamos:
Mio Vacite: [...] colocaram um jovem para sentar no lugar de uma pessoa que se eu
tivesse que sair daqui escolheria o cigano mais velho. Omar, desculpe, não é nada
pessoal [...] teria que ter oferecido a mim ou ao Jorge, que está sentado ali (apontando para
a plateia). Então aqui não está fazendo a cabeça cigana, o pensamento cigano, não interessa
se é por branco, preto ou amarelo [...] Eu nunca fui tão discriminado como num lugar
público, num lugar democrático, com pessoas que falam da minha cultura, se apossam da
minha cultura, e tem cigano de identidade duvidosa [...]. (TV MPF, 2018, meu destaque).

A atividade do MPF, que iniciou com uma hora de atraso e teve


aproximadamente três horas de duração, encerrou-se depois das 23 horas, sendo que a
maioria das pessoas que ali estavam, inclusive eu, também iríamos participar da
audiência pública do Senado, programada para a manhã do outro dia. Tínhamos menos
de 6 horas para descansar. Eu, particularmente, senti-me numa maratona, pois,
simultaneamente às audiências públicas do MPF e da CDH do Senado, também estava
acompanhando a liderança Maria Jane no IV CONAPIR, tudo acontecendo na mesma
semana, entre os dias 28 e 31 de maio de 2018.
A natureza das audiências públicas do Senado e do MPF, assim como a
conferência do IV CONAPIR, por exemplo, são eventos que aqui nesta tese eu trato
como uma “situação social”, dialogando com as interpretações que o antropólogo Max

21
Como se pode perceber ao assistir as gravações da audiência pública do dia 29/05/2018, Mio Vacite
sentou-se na ponta esquerda da mesa do auditório da CDH, que pareceu ser pequena para acomodar a
todos.
22
Esta situação foi uma das poucas vezes em que eu presenciei uma liderança cigana manifestar
publicamente uma discordância com as autoridades que atuam no Estado. Até então, notava que as
lideranças ciganas nos espaços de interação com o Estado buscavam sempre que possível serem cordiais,
até mesmo quando se estava dirigindo alguma reivindicação ou queixa envolvendo violações e abusos de
direitos.
279

Gluckman fez ao estudar a inauguração de uma ponte na África do Sul. Nas palavras
deste autor:
[...] Quando se estuda um evento como parte do campo da Sociologia, é
conveniente tratá-lo como uma situação social. Portanto, uma situação social
é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de
uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras
ocasiões. Desta forma, a análise revela o sistema de relações subjacente
entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio
ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade. (1987, p.
238, grifo do autor)

Nestes “eventos”, direta ou indiretamente relacionados à luta dos povos ciganos


por direitos, é possível identificar como se sucedem as relações entre os agentes
públicos do Estado, ou seja, os parlamentares, os representantes dos governos federais e
os integrantes do MPF. Entre os agentes públicos do Estado e as lideranças ciganas.
“Essas relações podem ser estudadas enquanto normas sociais” (1987, p. 239), como
sugere Gluckman, que pode ser demonstrado pela maneira em que agentes públicos
adaptam, sem coerção, seu comportamento uns aos outros. Ou tomadas como “rituais”,
uma vez que as audiências públicas, diferente do que pode parecer, seguem um roteiro,
tem uma estrutura e um sentido de existir, não se confundem com outros eventos em
geral, que são mais vulneráveis ao acaso e ao imponderável (PERIANO, 2002).
Retomarei a reflexão sobre os “rituais” como instrumento analítico no tópico “4.1.4”.
A audiência pública do 29/05/2018, que ocorreu na CDH, teve início,
aproximadamente, às 9 horas e 30 minutos da manhã, e foi transmitido ao vivo pela TV
Senado, e retransmitida pela plataforma do Youtube23. O Senador Paulo Paim, que
presidia a “mesa”, convidou as lideranças ciganas para sentar-se ao seu lado e fez seu
pronunciamento de abertura. O parlamentar falou ao longo de toda audiência pública,
devido ao fato de ser responsável pela mediação da atividade, que consistiu,
basicamente, em: organizar as ordens das falas; controlar o tempo de participação de
cada um, inclusive, interrompendo algumas intervenções que fugiam ao seu domínio;
assim como interagir com os telespectadores que acompanhavam a transmissão ao vivo
da audiência.
É importante ressaltar que ao longo da reunião pública do dia 29/05/2018, o
Senador Paulo Paim pontuou, durante suas oportunidades de fala, algumas normativas
que delimitavam como funciona (ou deveria ocorrer) uma audiência pública nas
comissões do Senado. Selecionei, abaixo, alguns trechos mais importantes das falas
deste parlamentar. Vejamos:
23
A duração da audiência pública, de acordo com o material disponibilizado, foi de 2 horas, 19 minutos e
12 segundos. As participações do Senador Paulo Paim contabilizaram, ao total, aproximadamente 33
minutos.
280

Senador Paulo Paim: [...] E está aqui também o representante da nossa querida Senadora
Regina Souza, que eu peço uma salva de palmas para a nossa presidenta (da CDH), que por
estar aí nas outras comissões, todas correndo naturalmente. E como a gente adota aqui
uma pratica de quem entra com o requerimento que preside, uma prática que eu
adotava quando eu era presidente e que a nossa querida presidenta também adota24,
mas ele deve passar aqui depois para dar todo apoio aos senhores e senhora.
[...]
Então vamos de imediato. Wanderley Rocha, representante da Associação Nacional das
Etnias Ciganas, o espaço é dez minutos, quem precisar usa dez, quem quiser usar menos,
abre mais o espaço para o debate aberto. Mas o tradicional é 10 minutos para cada um,
com uma tolerância que eu vou controlando.
[...]
Agora eu passo a palavra a representante da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, a líder desse movimento, e por isso foi indicada como presidente, a
Natasha Barbosa25. Eu fui o relator da criação da SEPPIR. É com muita satisfação que eu
passo a palavra, pelo tempo necessário, para sua exposição.
[...]
(ao interromper umas das pessoas que falavam do plenário) Eu só peço pessoal que de
forma objetiva respeitem o tempo, porque a mesa vai falar toda de novo nas
considerações finais e nós queremos receber dentro do possível as contribuições.
[...]
Já está conosco a Senadora Fatima Bezerra26, é uma senadora comprometida com as
políticas e causas humanitárias. Queria dar uma salva de palmas para ela, e como a
prioridade de fala é sempre dos deputados e senadores, eu passo a palavra para a
senadora.
[...]
Calma, quem faz encaminhamento sou eu (interrompendo mais uma vez a mesma pessoa
do plenário que buscou interferir na dinâmica da audiência). Vocês, no plenário,
naturalmente, dão a sua contribuição como todos deram, tranquilamente, até o
momento. O problema é que quando eu abro a fala, já falaram 8 no plenário, com
mais 4 que é a mesa, isso não quer dizer que eu não possa abrir um minuto ou dois a
mais pra cada um, mas tem que ter um tempo para que a gente receba as
contribuições, encaminhe, para depois passar para o Hélio Jose. Eu não quero só que a
gente entre numa repetição. Eu peco que aquilo que eu puder abrir, vou abrir o tempo
fazendo uma consideração rápida, que sejam objetivos nas linhas das propostas para o
estatuto. Agora eu pergunto em primeiro lugar, porque isso pra mim é pra balizar o
trabalho. Se a mesa se sentiu contemplada pelas falas que já fizeram, eu vou abrir para
mais três pessoas no plenário e daí Natasha, que responde pela SEPPIR, fará o
encerramento. A mesa se sente contemplada? (aplausos). (TV SENADO, 2018c,
destaques do autor)

Um dos pontos que mais me chamaram a atenção nesta atividade, assim como
em outras audiências públicas que já participei, é a questão do controle do tempo de fala
das pessoas que estão participando. Notei que a pessoa que preside a audiência pública,
na prática, apenas impõe limites para os discursos dos participantes que não estão
ligadas à burocracia estatal. Isto é, os políticos eleitos, os servidores públicos de algum

24
Esta afirmação dá a entender que quem deveria presidir a audiência pública seria o presidente em
exercício da Comissão, no caso da CDH, a Senadora Regina Sousa e não o Senador Paulo Paim. Contudo,
friso que não encontrei no Regimento Interno nenhuma referência a esta normativa, sendo, portanto, uma
prática costumeira do Senado, que, pelo visto, é fluída.
25
Esta representante do governo federal chegou no auditório do CDH em torno de trinta e cinco minutos
após o início da audiência pública. Servidores da comissão providenciaram, imediatamente, uma cadeira
para que Natasha Barbosa pudesse sentar, posicionando ao lado esquerdo do Senador Paulo Paim.
26
Esta parlamentar integrou-se à audiência pública aproximadamente quando já estava na metade, sendo a
única, além do presidente da audiência pública, a participar desta atividade. Segundo o parágrafo terceiro,
do art. 93, do Regimento Interno do Senado Federal: “No dia previamente designado, a comissão poderá
realizar audiência pública com a presença de, no mínimo, 2 (dois) de seus membros”.
281

órgão que tenha sido convidado ou os representantes do governo, estes podem discursar
“o tempo que achar necessário”, da mesma forma que o presidente da audiência pública.
As demais pessoas, que seriam os representantes da sociedade civil, como, por exemplo,
os destinatários do projeto de lei em discussão, haveria limites. Entre os convidados, os
que se posicionaram na mesa da “audiência”, tinham mais tempo de fala27, enquanto os
que estavam participando sentados do “plenário”, tinham menos tempo. Por isso,
interpreto essa normativa que limita e atribui distintamente o tempo de fala, como uma
forma de hierarquizar, indiretamente, os participantes da audiência pública, sendo que a
diferença entre estas pessoas não se limita ao fato de estar na “mesa” ou no plenário,
mas também a função ou cargo que a pessoa desempenha.
Estas considerações que fiz no parágrafo anterior dialogam com a observação
dos antropólogos Ciméa Bevilaqua e Piero de Camargo Leirner quando afirmaram que
as “pesquisas etnográficas recentes têm revelado como nossas instituições
‘hierarquizam’, 'individualizam’ ou ‘pessoalizam’ relações que, formalmente (ou ao
menos em princípio), ’deveriam‘ ocorrer de outra forma” (2000, p. 125). Ou seja,
durante a audiência pública do dia 29/05/2018, as dinâmicas e as normativas que regem
esta reunião promoveram tanto autorizações, como desautorizações em relação às
participações, sobretudo das lideranças ciganas. Sendo, portanto, os usos e o controle
do tempo um mecanismo de poder
Além disso, devo pontuar que, ao longo dos seus discursos, o Senador Paulo
Paim esclareceu para as pessoas que estavam acompanhando a reunião pública, no
auditório do CDH ou por meio da transmissão promovida pela TV Senado, quais seriam
as finalidades desta audiência pública para a tramitação do PLS nº 248/2015, assim
como compartilhou também questões gerais do processo legislativo. Vejamos alguns
trechos:
Senador Paulo Paim: [...] (Natasha Barbosa) fez uma bela exposição, mostrando que
conhece o tema, colocando a SEPPIR totalmente à disposição, para dialogar na
construção final do estatuto28. Antes de eu passar para o plenário, eu gostaria de dizer

27
Nenhum dos participantes da audiência pública do dia 29/05/2018 ultrapassou o limite dos dez minutos,
conforme foi estabelecido pelo Senador Paulo Paim. Por sua vez, as pessoas do plenário, na qual me
incluo, tinham o direito de se pronunciar por 3 minutos. A maioria dos participantes do plenário, por sua
vez, ultrapassou esta marca, havendo prorrogações de um minuto. Recordo-me que havia no painel
eletrônico que fica no auditório que exibia a contagem regressiva, sinalizando o tempo de cada discurso
apenas das pessoas do plenário.
28
Notei durante a audiência pública que o Senador Paulo Paim foi extremamente receptivo e cuidadoso
com a representante do governo federal. O parlamentar incentivou que os participantes da audiência
pública aplaudissem a entrada de Natasha Barbosa na audiência pública, quando esta sentou na mesa do
evento, e também nas duas ocasiões em que ela fez seu discurso. Além disso, percebi que a expressão
facial do Senador Paulo Paim mudou durante os discursos de Natasha Barbosa, com sorrisos e
direcionando olhares de ternura. Essas reações marcaram-me pois Natasha Barbosa estava representando
o governo de Michel Temer que substituiu a gestão de Dilma Rousseff, do mesmo partido do Senador
Paulo Paim, mudança que ocorreu por meio de um processo de impeachment que muitos integrantes do
282

que o Senador Hélio José não está aqui mas eu li que ele teve que fazer uma viagem
para o exterior, está voltando devido à crise que o pais está passando (greve dos
caminhoneiros), e que eu fiquei de receber qualquer tipo de contribuição para
entregar para ele. E dizer que a possibilidade votar com uma certa rapidez é possível,
foi muito tranquilo nas duas comissões. Eu falava com ele, na semana passada, e ele
precisa saber se tem alguma coisa a mais que vocês entendam que deva ser
ajustado. Aí vocês dão uma contribuição, que eu entrego para ele, e nós a partir daí
podemos até marcar uma data de votação desde que haja um entendimento
pessoal. Eu sempre lembro que é preciso construir um amplo acordo para se tornar
realidade o projeto, né? Se nós chegarmos divididos, aí não passa, nem no plenário e
não passa também lá na câmara dos deputados. Então seria necessário que a gente
trabalhasse com muito carinho, com muito cuidado para a redação final. Se nós
quiséssemos votar essa matéria até hoje, poderia votar, mas não tem as últimas
contribuições da sociedade, não é? Nós queremos marcar um dia para a votação, depois
da construção final com o relator, que já vai estar aqui a partir deste final de semana, eu
creio que ele está voltando amanhã, no mais tardar, e eu passaria para ele algumas
contribuições que vocês deixarem aqui. Tem dois escritos do plenário.
[...]
Então, vamos acelerar o máximo, que é importante a redação final, que na redação final
haja uma concordância, por quê? Se for para a Câmara e a Câmara emendar tudo de
novo, volta para cá de novo, e pode passar um, dois ou três anos. Teve um estatuto
desses que eu demorei 15 anos para aprovar. 15! (TV SENADO, 2018c)

A primeira parte das participações orais nesta audiência deu-se com os


participantes que estavam sentados na mesa, com exceção de uma pessoa que estava
sentada no plenário, na quinta fileira, a Dra. Paula Andrade, assessora parlamentar da
liderança do PT no Senado Federal, que falou primeiro, atendendo o pedido do Senador
Paulo Paim para fazer um “breve resuminho” do que aconteceu no evento do MPF no
dia anterior. Após a participação desta servidora pública, as falas ocorreram na seguinte
ordem: Seu Wanderley; José Willamis Alves da Silva; Omar Ivanovichi; Mio Vacite;
Sandra Lucero; Sandra Lucero; Luiz Bruno; Natasha Barbosa, representante do
SEPPIR.
Em seguida, o Senador Paulo Paim passou a palavra para as pessoas sentadas na
plateia do plenário, que tinham que se escrever com um servidor do CDH para também
fazerem seus respectivos pronunciamentos. Estas participações aconteceram na seguinte
ordem: Maria Jane; Jean, um estudante do curso de Direito da Universidade Projeção; a
Senadora Fátima Bezerra (PT/RN), que chegou na metade da audiência pública,
participando até o final; Lu; Maura Piomonte; Imar; minha participação29; Carlos Calon;
Rogério Ribeiro; mais uma vez Mio Vacite, que pediu a palavra; Jorge Nicole; e Nardi30.
E para encerrar a audiência pública, o Senador, antes de fazer o seu discurso final,

PT, assim como outras forças de esquerda do Brasil, classificou como “golpe
jurídico-parlamentar-midiático”. Voltarei falar sobre esta questão no tópico “5.1.3”.
29
No dia anterior, na audiência pública do MPF, não fiz nenhum pronunciamento, preferi apenas observar
e ouvir. Havia decidido fazer o mesmo na atividade do Senado, todavia, Maria Jane, liderança que eu
estava acompanhando e outras pessoas no plenário, insistiram para que também me posicionasse devido a
minha experiência com os povos ciganos. Então, fiz um discurso que durou aproximadamente 5 minutos.
30
Ao longo do primeiro, segundo e terceiro capítulo, selecionei trechos dos discursos das lideranças
ciganas presentes nesta audiência pública, assim como em outras, para integrar a minha análise sobre
como tem se dado a construção da condição político jurídica dos ciganos no Brasil.
283

passou novamente a palavra para a representante do governo federal, Natasha Barbosa.


Por conta do tempo, que, segundo Paulo Paim, já havia sido extrapolado, as
“representações” e lideranças ciganas que estavam sentadas na mesa da audiência
pública aceitaram a proposta do parlamentar responsável por fazer mediação e abriram
mão de se pronunciar nas considerações finais do evento, como acontece de praxe.

Imagem 24 - Registro da participação minha e da liderança Maria Jane na


audiência sobre o PLS 248/2015

Fonte: acervo próprio (2018).

Frisa-se que o discurso do Senador Paulo Paim, ao encerrar a audiência pública


do dia 29/05/2018, trouxe um balanço dos possíveis próximos passos para a aprovação
do “Estatuto do Cigano” no Congresso Nacional, não só no Senado Federal. Vejamos:
Senador Paulo Paim: Eu estava aqui conversando com Wanderley, e nos ajustamos o
seguinte, pessoal. Isso aqui é muito muito importante, porque o Estatuto da Igualdade
Racial foi assim também. Eu me lembro que no dia da sanção o Presidente Lula ligou pra
mim antes perguntando o seguinte: ‘ja acordou total com a comunidade?’ Não há,
presidente, mas fomos até onde dava, com a vontade da maioria. Então ele: ‘então, vamos
sancionar’. Aí marcou uma sanção e foi no Itamaraty e lá ele disse a seguinte frase, que eu
jamais esqueci: ‘Olha, eu conversei com o Paim e ele me disse que não há 100% de
entendimento, mas 100% não vai existir nunca, não vai existir nunca’. Ele disse: “vocês
não concordarem com essa sanção agora, vocês podem escrever que daqui a 100 anos vocês
ainda vão tá brigando para ver se vai ter um Estatuto da Igualdade Racial. Já fazem mais
que 15 anos que eu sei que enfim, as entidades, os movimentos está nesse debate’.
Então é isso que eu faço um apelo para vocês, analisem, se tiver alguma contribuição
para dar ainda, encaminhem para mim ou para o senador Helio Jose, para ver se ele
consegue ajustar, pra a gente poder votar, eu diria, ainda no mês de junho, pra depois
encaminhar, de junho ainda, para depois encaminhar para Câmara, já que o recesso
que começa dia 15 (de julho), todo mundo sabe, é 18 (de julho), mas é dia 15, se não é
284

o dia 12 já31. Então não dá pra acreditar que vocês não deixarão para última semana, não
vai cair no risco. Eu prefiro, dar como limite, até o dia 15, 20 de junho, pra chegar na
redação final, via relator.
Eu tô tomando aqui a liberdade de falar aqui na questão do relator porque ele pediu
para que eu justificasse, que eu desse os encaminhamentos adequados. Claro, a
palavra final é dele na questão da redação, mas ele vai submeter ao plenário da
comissão e o plenário da comissão, porque é terminativa aqui, tem que ter coro
naquele painel ali, tem que ter no mínimo 11 presente, pra a gente votar a matéria32.
Esse é o apelo que eu faço a vocês, se tiverem alguma contribuição, alguma
discordância, encaminhe para a secretaria da comissão ou para o gabinete do senador
Hélio José. Vamos centralizar aqui na comissão, aqui as propostas, e daqui eles
encaminham para Hélio Jose, mas aqui, de fácil acesso, pode entregar por escrito. O
senador deverá fazer uma reunião e a SEPPIR, importante a participação da SEPPIR
naturalmente, pra ver se dar para ajustar.
Já passou em duas comissões, por unanimidade, não vai ser aqui na CDH que nós
vamos travar (aplausos), aqui não pode. Então, pessoal, assim encerramos. (TV SENADO,
2018c)

Ao analisar os acontecimentos no âmbito do processo legislativo do “Estatuto do


Cigano”, que sucederam a realização da audiência pública do dia 29/05/2018, é possível
dizer que a fala do Senador teve uma natureza especulativa, uma vez que as projeções
que foram lançadas sobre a tramitação - do projeto de lei ser aprovado ainda no segundo
semestre de 2018 - não ocorreram como havia sugerido o parlamentar.
Tendo em vista que ocorreram as eleições gerais no ano de 2018, período em que
diversos parlamentares buscam a reeleição, geralmente, as atividades legislativas ficam
paralisadas, o que pode ter influenciado o fato do “Estatuto do Cigano” não ter sido
votado no segundo semestre deste ano. Todavia, no ano de 2019, em que não ocorrem
eleições gerais ou municipais no Brasil, também não houve avanços na tramitação da
matéria. Portanto, como pesquisador, fui provocado a formular indagações e buscar
respostas para as “pausas” que aconteceram neste processo legislativo, lembrando que
este projeto apenas foi votado na primeira comissão após, aproximadamente, 3 anos do
início da tramitação. Mais para frente, no subtópico “4.1.4”, abordarei como busquei e
quais respostas obtive para estas indagações acerca das “pausas” neste processo
legislativo.
Em relação ao discurso final do Senador Paulo Paim, supracitado, assim como
em outros momentos da tramitação, nota-se que o governo federal é mobilizado para
participar das negociações em torno da matéria do projeto de lei que está sendo
discutido no Poder Legislativo. Esta articulação pode ser relevante por dois motivos que
aqui destaco. Primeiro, pelo fato do chefe do Poder Executivo ser responsável por

31
De acordo com o art. 57, da Constituição Federal: “O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na
Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro”. Portanto,
formalmente, o recesso parlamentar do meio do ano envolve o período de 18 de julho a 31 de julho.
32
As comissões permanentes do Senado são compostas por 20 parlamentares, portanto, 11 senadores
representam a maioria simples deste quantitativo, sendo o quórum mínimo para que as votações ocorram
nas reuniões realizadas para examinar os projetos de lei.
285

sancionar o projeto de lei, após ser aprovado pelo Congresso Nacional, e então estas
interlocuções com integrantes do governo federal podem contribuir para a decisão do
Presidente da República em exercício. Segundo, pelo fato de o Poder Executivo ter
como uma das suas principais atribuições criar, desenvolver e executar políticas
públicas, ou seja, efetivar os direitos que estão afirmados numa lei que integra o
ordenamento jurídico brasileiro. Demanda-se, assim, um mínimo diálogo entre os
Poderes, Legislativo e Executivo, na produção de uma nova lei.
O Senador Paulo Paim também destacou, em seu discurso final, que é impossível
haver uma unanimidade, ou seja, um pleno consenso entre as entidades e os
movimentos que são destinatários do projeto de lei, no caso, o “Estatuto do Cigano”.
Por isso, este parlamentar fez um apelo para que as possíveis divergências sejam
resolvidas e que caso haja alguma contribuição para a matéria do projeto, que fosse
enviado até “ainda no mês de junho”.
Embora a fala final do Senador Paulo Paim tenha sido direcionada às lideranças
ciganas, sobre a busca de um “consenso”, a pesquisa de campo possibilitou-me
perceber que as lideranças ciganas presentes nesta audiência pública do dia 29/05/2018
manifestam-se, publicamente, favorável ao PLS 248/2015. As divergências existentes,
em relação a este projeto, não aparecem, de forma explícita, nas atividades realizadas no
Congresso.
Devo destacar que as manifestações contrárias ao projeto proposto com a
intermediação da ANEC ocorrem em outros espaços, por diferentes lideranças ciganas.
Em geral, estas representações questionam a abrangência do projeto em relação aos
diferentes segmentos étnicos, a capacidade e a legitimidade da associação proponente,
no sentido de estar à frente das negociações. Pelo que percebo, na maioria das críticas
que tive acesso, pouco se fala no conteúdo em si do projeto, o que me leva a interpretar
que esses embates se dão mais por haver uma disputa de protagonismo. Além disso,
reunindo uma série de informações que me deparei por meio da pesquisa etnográfica,
avalio que algumas movimentações contrárias ao projeto em tela podem ter partido e
sido articuladas por pessoas que integraram o governo federal a partir de 2019. Ter
levantado essa hipótese demandou de mim uma análise mais apurada, que reservei para
o tópico “4.2”, segunda parte deste capítulo, em que trato das disputas políticas que
perpassam a tramitação do PLS 248/2015.
As audiências públicas do Congresso Nacional podem ter, simultaneamente,
natureza consultiva e encaminhativa. Os parlamentares responsáveis por essa
modalidade de reunião pública, ou nela envolvidos, têm a atribuição de selecionar os
286

dados apresentados nas audiências públicas, incorporando ou não aos processos


legislativos que estão em curso ou que estão prestes a serem formalizados, como foi o
caso do “Estatuto do Cigano”. Por isso, nem sempre as reivindicações e os
encaminhamentos apresentados nestas atividades são, necessariamente, cumpridos após
a sua realização.
Voltando à tramitação do PLS 248/2015, após a realização da audiência pública
do dia 29/05/2018, os relatórios legislativos apresentados à CDH, pelos Senadores Hélio
José e Telmário Mota, três ao total, não citaram ou fizeram referências a esta audiência
pública. Não quero induzir que este “evento” não tenha importância para os processos
de produção de leis, em especial o “Estatuto do Cigano”. Pelo contrário, uma vez que se
trata de um dos poucos momentos que pessoas ciganas, assim como outras minorias
políticas no Brasil que são igualmente destinatárias de um determinado projeto de lei,
possuem a oportunidade de se pronunciarem e de interagir com integrantes da
burocracia estatal, principalmente com os parlamentares responsáveis pela deliberação
da matéria em apreciação.

4.1.2 - O protocolo de consulta

Durante a realização da audiência pública do dia 29/05/2018, conversei


brevemente com Laura Gabriela33, servidora pública do MPF, que estava sentada
próxima a mim, acompanhando a reunião pública representando a 6ª Câmara. No
diálogo que tivemos, esta manifestou preocupação com a forma como estava ocorrendo
a tramitação do PLS n° 248/2015, pois, no entendimento dela e do órgão, o processo
legislativo não estava respeitando as exigências previstas na Convenção n° 169 da OIT.
Na avaliação da servidora, os “ciganos”, principais interessados no projeto, não vinham
sendo ouvidos e consultados na forma como exigem os protocolos internacionais.
Questionei, no momento, se a audiência que estávamos não seria uma forma de consulta
e ouvi como resposta que as consultas (oitivas) deveriam ser realizadas em todo Brasil,
que, por isso, não se confundem com a realização de audiências públicas, em que
poucas representações ciganas possuem acesso.
Dois meses após a audiência pública do dia 29/05/2018, em 7 de agosto de 2018,
a “6ª Câmara de Coordenação e Revisão – Populações indígenas e Comunidades
Tradicionais” emitiu a Nota Técnica nº 5/2018-6CCR (Referência: análise do Projeto de
Lei do Senado nº 248/2015 – Estatuto do Cigano), como já mencionei no terceiro

33
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese.
287

capítulo. Este documento está dividido em tópicos, entre eles está este: “necessidade de
consulta aos povos ciganos”.
Ao final do documento, o MPF apresentou seis sugestões para a tramitação do
projeto de lei, entre elas: “A consulta aos povos ciganos, em obediência ao art. 6ª da
Convenção nº 169 da OIT” (MPF, 2018, p. 18). Segundo este documento, “o projeto de
lei enquadra-se, sob todos os aspectos, entre as normas passíveis de consulta.
Considera-se, assim, que a realização da consulta livre, prévia e informada é requisito
imprescindível para a validade da norma.” (2018, p. 8).
De acordo com o artigo 6º da Convenção nº 169 da OIT, que foi ratificada pelo
Brasil por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, os governos, ao aplicar as
disposições exigidas neste tratado internacional, deverão:
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados
e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez
que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis
de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam
participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da
população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas
políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e
iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos
necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das
medidas propostas. (BRASIL, 2004, meu destaque)

O MPF citou, na referida “Nota”, enunciados34 formulados pela própria 6ª


Câmara para fundamentar a sugestão levantada, tendo em vista a “abrangência subjetiva
da Convenção” (MPF, 2018, p. 7). Vejamos:
ENUNCIADO nº 17: As comunidades tradicionais estão inseridas no
conceito de povos tribais da Convenção nº 169 da Organização Internacional
do Trabalho.

ENUNCIADO nº 29: A consulta prevista na Convenção nº 169 da


Organização Internacional do Trabalho é livre, prévia e informada, e
realiza-se por meio de um procedimento dialógico e culturalmente situado. A
consulta não se restringe a um único ato e deve ser atualizada toda vez que se
apresente um novo aspecto que interfira de forma relevante no panorama
anteriormente apresentado. (MPF, 2020)

Além da Convenção nº 169 da OIT e dos enunciados supracitados, a “Nota


Técnica nº 5/2018-6CCR” fez referência a outro tratado internacional ao afirmar que “o

34
“Enunciado, em termos jurídicos, assemelha-se à súmula. A súmula de um Tribunal ou uma turma
consiste no enunciado pelo qual este inscreve ou sintetiza o seu entendimento sobre questões que
apresentem controvérsias na jurisprudência” (MPPR, 2010).
288

direito à consulta também se encontra previsto na Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígena”, previsto no artigo 19. Segundo este relatório técnico,
“o disposto nesta Declaração também deve ser aplicado, analogicamente, aos povos
ciganos. Por ela, além de se exigir a boa-fé para aplicação de medidas legislativas [...],
há o registro expresso de que o consentimento deve ser livre, prévio e informado”
(MPF, 2018, p .8). Por fim, o tópico da Nota “necessidade de consulta aos povos
ciganos” é encerrado com um trecho de um texto publicado, em 2016, pela procuradora
da República Débora Duprat no portal “Repórter Brasil”:
A Consulta também só se qualifica como tal se for compreendido o seu
propósito em toda a sua extensão. Daí o imperativo de que seja culturalmente
situada. A primeira consequência é de que não há um modelo único de
consulta; ao contrário, ela se desenvolve de acordo com as peculiaridades
de cada grupo. (2016, meu destaque)

A referida Nota Técnica do MPF não informa quais são as peculiaridades dos
“povos ciganos” que devem ser levadas em consideração ao formular e efetivar a
consulta, tendo em vista que não há “um modelo único de consulta”. Percebe-se, assim,
que a “Nota Técnica”, somados aos enunciados da 6ª Câmara, suscita uma fronteira de
natureza conceitual: o que é “consulta” e o que “não é uma consulta”. Para o MPF, os
procedimentos realizados ao longo da tramitação do projeto de lei entre os anos de 2015
e 2018 estão fora da fronteira que o órgão entende por “consulta”.
Como para mim não ficou claro, exatamente, como deveria ser realizado a
consulta no caso do processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, como exige o MPF,
busquei, dessa forma, sanar as minhas indagações conversando diretamente com a
servidora pública do órgão que atuou na elaboração da referida “Nota Técnica”. Dirigi a
seguinte pergunta à Laura Gabriela: “qual o protocolo de consulta que o MPF defende
para o processo do Estatuto? Há algum documento escrito que informa como deve
ocorrer a consulta?”. Obtive esta resposta, por escrito:
Laura Gabriela: A 6a Câmara não chegou a avançar nessa discussão, pelo menos não
enquanto eu estive por lá. Não tínhamos conhecimento também de outras experiências de
consulta a comunidades ciganas. Apenas estabeleceu que a consulta deveria seguir os
parâmetros da Convenção 169, ou seja, ser livre, prévia e informada, e ter uma
representatividade significativa nas comunidades. (Meu acervo, meu destaque)

A resposta dada pela servidora do MPF deixou evidente que não há um modelo
específico para a realização da “consulta” e nem uma quantidade de comunidades que
devem se pronunciar. Ou seja, o que se aponta são os princípios que devem reger a
consulta, isto é, “ser livre, prévia e informada”, além de “ter uma representatividade
significativa”. Tratam-se de parâmetros e conceitos abertos, que são ponderados e que
podem variar a depender do intérprete.
289

Em 20/08/2020, participei, por videoconferência, do “Encontro dos Povos


Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”, promovido pela Associação
Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos Cigano de Minas Gerais, como já
mencionei anteriormente nesta tese. Havia três pontos de pauta para este evento, foram
eles: o “Plano Nacional de Políticas para os Povos Ciganos (PNP/Ciganos)”; o “Estatuto
do Cigano”; e o “Processo de Consulta preconizado na OIT 169 e protocolos
comunitários”.
Neste encontro supracitado, pela primeira vez, tomei conhecimento da existência
do “Protocolo de Consulta: Povos Ciganos – Etnia Calon”, elaborado por associações e
comunidades ciganas do estado de Minas Gerais. E como foi anunciado neste evento, é
o primeiro e único protocolo existente formulado pelos ciganos no Brasil. O protocolo
encontra-se disponível no website da 6ª Câmara, possui 38 páginas, divididos em 13
partes, são elas: “Somos ciganos!”; “Por que este documento foi formulado”; “Sobre o
que queremos ser consultados”; “Quando queremos ser consultados”; “Quem deve ser
consultado”; “A consulta é para todos nós!”; “A consulta tem que ser prévia”; “A
consulta deve ser livre”; “A consulta deve ser bem informada”; “Nós decidimos como
seremos consultados!”; “Passo a passo”; “Regras gerais”; “O que esperamos desta
consulta”. Segundo a apresentação do documento, a elaboração deste protocolo foi
resultado de um processo de diálogo entre as etnias Calon junto da
Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos Ciganos e
validado em reunião de governança geral dos ciganos. Este protocolo de
consulta aplica-se às sete comunidades ciganas da etnia Calon, localizadas
nos municípios de: Ibirité, Pedro Leopoldo, Santa Barbara, Ribeirão das
Neves, Juiz de Fora, Conselheiro Lafaiete e Barbacena/MG. (MPF, 2019, p.
1)

Destaco que duas “representações ciganas” presentes no Encontro, a “Nalva”,


representando a Associação organizadora, e a Claudia Nunes Santos, que é professora
universitária, facilitaram o debate sobre o ponto de pauta da “consulta”, tendo em vista
que participaram da elaboração do documento. Neste momento, ambas reforçaram a
necessidade e importância da realização da “consulta” no âmbito do processo legislativo
do “Estatuto”, sugerindo que cada comunidade elaborasse o seu próprio “Protocolo”.
Além de criticarem o fato de ainda não ter sido convocada no âmbito da tramitação do
PLS 248/2015, cobraram que o Governo Federal e o Senado incentivem, apoiem e
convoquem as comunidades ciganas para realizarem a consulta sobre o “Estatuto”.
“Quem consulta é o Estado”, nas palavras das “representações”, devendo a instituição
entrar em contato com as comunidades para que elas realizem o “protocolo” e a própria
“consulta”, e não o inverso.
290

Após a realização do Encontro, os participantes, como foi meu caso, receberam,


por e-mail, os encaminhamentos, que, ao total foram dezesseis, sendo que o primeiro
consistiu justamente na: “Realização de consulta prévia nos moldes da Convenção n.º
169 da Organização Internacional do Trabalho para medidas legislativas: a. Projeto de
Lei do Senado n° 248, de 2015, que cria o Estatuto do Cigano”.
Ressalto que não houve objeções públicas, entre os participantes, quanto a
necessidade da “consulta prévia, livre e informada”, pois, antes do fim da reunião, que
teve uma duração de 4 horas, a coordenação do evento leu os encaminhamentos, que
foram aprovados por aclamação. Por outro lado, interpreto, com base em minhas
observações participantes e nas entrevistas que realizei, que permanece um conflito
implícito sobre a questão da “consulta” na tramitação do Estatuto, pois, a sua
convocação e realização pode significar um retardo no processo. Todavia, a partir do
“Encontro” do dia 20/08/2020, que teve a participação da assessoria do autor e relator
do PLS, assim como do MPF e do governo federal, a realização da “consulta” não é
mais um pauta em negociação, o que se passou a estar em jogo é como e quando fazer a
“consulta”.
Tanto o fato da “consulta prévia” sobre o “Estatuto do Cigano” não ter sido
realizada até meados do ano de 2020, assim como a sua própria reivindicação por
diferentes atores, estatais ou não, são dados valiosos para a presente pesquisa. E como
lembrou Vera da Silva Telles (2015), as fronteiras do formal-informal nas práticas
estatais não são lineares, muito menos dicotômicas. A tramitação de um projeto de lei,
assim como as práticas estatais em geral, se dá nas dobras, nas margens, que não são
necessariamente físicas, decorrem de um conjunto de ações, que podem ou não estarem
expressas nas leis, nos regulamentos ou demais instrumentos jurídicos.
As fronteiras porosas entre o legal/formal e ilegal/informal circunscrevem jogos
de poder e relações de forças, circunscrevem campos de disputa em que se combinam e
alternam negociação. As margens se movimentam, dessa forma, tanto dentro como fora
do Estado (DAS; POOLE, 2008) e, por isso, as exigências para a tramitação e requisitos
para a consulta dos povos interessados num determinado projeto de lei ou para
elaboração de uma política pública, não podem ser entendidos nos termos da lei e na sua
transgressão, mas a partir das práticas que estão simultaneamente no interior e fora da
lei.
Nesse sentido, é necessário refletir sobre a seguinte questão: o que impede a
audiência pública realizada no Senado, em maio de 2018, que contou com a presença de
291

algumas representações/lideranças ciganas, ser considerada uma forma de “consulta”?


Ou parte desse processo?
Frisa-se que o MPF, ao relatar a tramitação do projeto, mediante a Nota Técnica
nº 5/2018-6CCR, não fez referência à realização da audiência pública do dia
29/05/2018, realizada para discutir o “Estatuto do Cigano”, não citou as audiências
públicas realizadas no Senado nos anos de 2011 e 2012, assim como não reportou sobre
a realização de seminários e reuniões, envolvendo “ativistas ciganos” e “pesquisadores”,
atividades que ocorreram, em Brasília, para tratar do “Estatuto do Cigano”. Por
exemplo, “Seu Wanderley”, durante os diálogos que tivemos, mencionou que no início
de 2016, na Universidade de Brasília, foi realizado um evento com o propósito de
discutir o PLS 248/2015.
Como se pode perceber, ao analisar o convite que foi assinado por Seu
Wanderley, presidente da ANEC35, este documento mencionou a preocupação em
construir uma “nova Comissão” para discutir o “Estatuto do Cigano”, envolvendo o
“maior número de lideranças, históricas e recentes, para que tanto cumpramos o que
reza Convenção 169 da OIT, como possamos avançar em vínculo de unidade do nosso
povo” (acervo próprio). Segundo pesquisas que fiz em websites de buscas da Internet36,
este evento ocorreu no Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Brasília, e foi
intitulado “Reunião Nacional de Ativistas Ciganos para Discussão do Estatuto do
Cigano”, realizado em 2016.
O pesquisador Eduardo Fortunato Bim, que também é Procurador Federal,
concluiu que, embora haja distinção entre “oitiva” e “audiência pública”, tal diferença
não impede, excepcionalmente, em casos de projetos de lei ou elaboração de políticas
públicas, o reconhecimento de que na “audiência pública” possa ter havido a “oitiva”,
conforme exigido pela Convenção 169 da OIT, devido a participação das lideranças dos
povos e comunidades que venham a ser atingidos pela prática estatal. Este autor admite
que a realização de audiência pública atende a questão do “o direito de participação,
embora não pela forma ideal” (BIM, 2014, p. 217).
Após o encontro do dia 20/08/2020, que mencionei acima, realizou-se uma nova
reunião, desta vez, proposta e mediada pela assessoria do Senador Telmário Mota, por
meio da plataforma digital “Zoom”. O propósito deste encontro foi dar início ao

35
Este documento encontra-se no anexo A.
36
O currículo lattes do pesquisador Felipe Berocan Veiga informa que o próprio foi o organizador do
evento, juntamente com “Igor Shimura”, relacionado à UEM e ASAIC, e que também teve como
participantes : ”Wanderley da Rocha (ANEC), Marcelo Barbosa Almeida (ASAIC), Paulo Fernando Melo
(Câmara dos Deputados) e Zuleica Iovanovitch Torsani”. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/3438944499886878>. Acesso em: 06 ago. 2020.
292

processo de “consulta” aos povos ciganos, atendendo, assim, tanto a recomendação da


“Nota Técnica” do MPF, assim como as reivindicações de outras lideranças ciganas.
Seguem, abaixo, as conclusões elencadas, expressamente, na “Ata da reunião entre
servidores do Senado Federal e representantes ciganos, com a participação do
Ministério Público Federal, a respeito do PLS 248/2020 – Estatuto do Cigano”:
a. A reunião foi gravada e constitui documento constitutivo do
processo parlamentar de aprovação do Estatuto, que teve ampla participação
de diferentes segmentos, movimentos e lideranças “ciganas”.
b. Uma comissão de especialistas, em diálogo com as lideranças
ciganas, irá trabalhar no aperfeiçoamento da previsão do direito à moradia e
do acesso à terra;
c. O projeto está pronto para consulta aos povos ciganos.
d. A consulta livre, prévia e informada:
i. Abrangerá decisão a respeito do uso do termo “população cigana” ou
“povos ciganos”.
ii. Será precedida de popularização e massificação do conteúdo do Estatuto,
através de:
- Vídeos, podcasts, cartilhas.
- Programas, entrevistas e documentários a serem, eventualmente, produzidos
pelo sistema público de televisões e rádios educativas, TV Senado, Rádio
Senado, TV Câmara, Rádio Câmara, MPF.
- Linguagem acessível, uma forma de tradução do texto do projeto de lei, de
modo que promova o entendimento dos povos ciganos.
iii. Será realizada:
- mediante audiências públicas conduzidas pela Comissão de Direitos
Humanos do Senado Federal.
- mediante seminários regionais conduzidos pelos ciganos.
- por meio de outras tecnologias, reunidas em protocolo a ser conformado
conjuntamente pelos povos ciganos, com a colaboração do MPF (6ª
Camara de Coordenação e Revisão) e Senado Federal (Prodasen).
iv. Sugestões de perguntas geradoras para orientar o processo consulta:
- o que você acha que está tão ruim que tem que ser tirado do projeto de lei?
- o que você acha deve ser melhorado? (acervo próprio)

Neste encontro do dia 09/10/2020, realizado durante a manhã, o representante da


assessoria do Senador Telmário Mota fez questão de ressaltar que as reuniões virtuais
estão sendo gravadas, assim como tudo que é discutido tem sido registrado em “atas”,
como formas de documentar que Senado Federal tem buscado respeitar e ouvir
diferentes representações e movimentos ciganos. Neste mesmo dia, o assessor do relator
do PLS 248/2015 criou um grupo, por meio do aplicativo whatsapp, como mencionei
no terceiro capítulo, com a finalidade de atender aos encaminhamentos da referida
reunião, principalmente tratar dos preparativos para realização da “consulta”.
Portanto, o primeiro grande desafio, ao meu ver, é o fato de não haver um único
modelo pré-estabelecido orientando como realizar a “consulta”, pois o que está previsto
na Convenção 169 da OIT é a exigência do procedimento, em si, e os princípios que
devem regê-lo: ser livre, prévia e informada. O segundo, mas não menos relevante, é o
alcance, isto é, envolver o maior número de comunidades e famílias ciganas, sobretudo
diante do contexto de pandemia provocado pelo COVID-19, que impôs a partir do mês
293

de março de 2020 o distanciamento social como um das medidas restritivas para mitigar
a disseminação do vírus.
Em relação ao segundo desafio que elenquei acima, há um consenso entre os
atores do MPF e das assessorias dos Senadores envolvidos na tramitação quanto à
impossibilidade da “consulta” envolver todos os ciganos que vivem no Brasil. O que se
busca é envolver uma quantidade significativa de “comunidades” e lideranças ciganas,
e promover esta articulação é um dos propósitos do grupo criado em outubro de 2020. É
importante repetir, conforme foi sintetizado em documento elaborado pelo MPF, “que a
discussão que ocorre no grupo ainda não é considerada a consulta, para fins de
aprovação do Estatuto” e que “além de promover a discussão e disseminação do texto
do projeto de lei, o grupo pretende, ainda, elaborar e aprovar um Protocolo de Consulta
aos Povos Ciganos, que detalhe o procedimento de consulta a esses povos, para fins de
aprovação do PLS 248/2015” (MPF, 2020).
Diante da complexidade desta questão, a 6ª Câmara da PGR criou um Grupo de
Trabalho, em novembro de 2020, composto por servidores do órgão para “auxiliar na
consulta”, especialmente no “protocolo”. Como há uma preocupação em relação ao
alcance deste processo de consulta, a servidora Laura Gabriela, no mês de janeiro de
2021, enviou a seguinte mensagem para os participantes do grupo:
Boa tarde,
Eu sou Carla, trabalho no Ministério Público Federal.
A pedido do Dr. Luciano Mariz Maia, estou coletando dados das pessoas e
comunidades ciganas participantes do grupo para dar subsídio ao trabalho do
GT do MPF que auxiliará o Senado Federal na consulta.
Para tanto, solicito de V. Sa. os seguintes dados:
Nome:
RG:
CPF:
Etnia:
Comunidade:
Número de integrantes na comunidade:
Município/Estado:
Associação a que está filiado (se houver): (Acervo próprio)37

37
Esta mensagem foi encaminhada também para mim, mas, anteriormente, Laura Gabriela enviou-me a
seguinte mensagem de texto: “Quero falar com você sobre a consulta prévia aos povos ciganos. No final
do ano de 2020, o Dr. Luciano me pediu para fazer um levantamento das pessoas que estão no grupo e de
suas comunidades, para auxiliar o trabalho do GT do MPF que auxiliará na consulta. Fiz uma tabela para
inserir os dados, que compartilho com você, para ver sua opinião sobre a tabela em si e sobre uma
maneira de colher os dados.No ano passado ele chegou a enviar uma mensagem para o grupo, pedindo
para as pessoas me enviarem os dados, mas poucos responderam. O fim do ano foi bem complicado para
mim e eu interrompi o trabalho, mas quero retomar o levantamento, e penso em enviar para as pessoas do
grupo a seguinte mensagem. Quero sua opinião e ajuda, para ver quem são as pessoas que eu posso
enviar, por quem começar, etc. A princípio minha ideia é enviar para todos os que estão no grupo do
Estatuto”. Em resposta, enviei o levantamento pessoal que fiz de quem estava participando do grupo,
informando os estados e as cidades de origem, assim como qual segmento étnico pertencia.
294

As ações ocorridas no último quadrimestre do ano de 2020 em torno das


discussões sobre o processo de consulta do PLS 248/2015 provam mais uma vez que as
negociações pela aprovação do “Estatuto” não se restringem às movimentações do
processo legislativo em si. Se fossem levadas em conta apenas as informações oficiais
do website do Senado, poderia-se erroneamente deduzir que a tramitação esteve
“travada” desde o dia 12/02/2020, quando o Senador Telmário Mota solicitou
“reexame” da matéria. Por outro lado, como foi avaliado pelo assessor do Senado Paulo
Paim, que acompanha a tramitação de 2017, este período de agosto à novembro de 2020
aconteceram um dos mais relevantes avanços na tramitação do Estatuto, uma vez que se
deu início ao processo de consulta dos povos ciganos acerca do PLS 248. E como
mostrarei no próximo subtópico, estes avanços, da mesma forma que a tramitação como
um todo, não seriam possíveis sem as ações dos “assessores” dos órgãos públicos e
instituições envolvidos direta ou indiretamente no processo legislativo.

4.1.3 - Os assessores

Há uma diversidade de pessoas que circulam, atuam e trabalham no Congresso


Nacional. Segundo a assessoria de imprensa da Câmara de Deputados, antes das
medidas restritivas para conter o avanço da pandemia, nesta casa circulavam
“diariamente de 20 mil a 25 mil pessoas” (BRASIL, 2020a). O antropólogo Luiz Abreu
(1999) dedicou um capítulo de sua tese de doutorado para descrever justamente as
relações entre os políticos eleitos e os diversos tipos funcionários do Poder Legislativo
federal, que são permeadas por uma teia de significados, um conjunto de regras que não
são redutíveis à estrutura institucional38. Nesse sentido, a pesquisa de campo
possibilitou-me perceber que as funções desempenhadas pelos “assessores” não são
secundárias ou menos importantes.
Em 18 de fevereiro de 2020, dirigi-me ao Congresso Nacional para tentar
conhecer o gabinete do Senado Paulo Paim. Era uma manhã ensolarada de terça-feira,
dia que em regra os parlamentares iniciam os trabalhos nas Comissões e no Plenário.
Luiz Abreu (1999) adota a expressão o“Labirintos do Minotauro” para intitular sua
tese39, se referindo, de forma metafórica, à sede do Poder Legislativo brasileiro, o que

38
Na palavras do autor, “o objeto da tese é a política; o locus de pesquisa, o Congresso Nacional,
particularmente a Câmara dos Deputados. Ela contém duas hipóteses. A primeira, etnográfica, é que a
política brasileira engendra e, simultaneamente, se conforma num sistema de trocas, com propriedades
específicas, sui generis. A segunda, metodológica, é que o modelo da linguagem serve como instrumento
heurístico para descrever a política” (ABREU, 2000, p. 3).
39
“O Minotauro é um ser mítico, e o mito, como uma metáfora, pode evocar várias imagens ao longo
deste texto. O plural também tem um sentido: se o Congresso Nacional, na sua distribuição espacial,
295

faz muito sentido para mim que já estive algumas dezenas de vezes no Congresso. De
fato trata-se de uma mega construção, com dezenas de guaritas com detectores de
metais, corredores, escadas, auditórios, copas, recepções e escritórios. Além de haver
uma intensa movimentação de pessoas, entre assessores, parlamentares, representantes
de ONGs ou movimentos sociais, jornalistas, pessoas em geral que estão naquele espaço
para acompanhar alguma votação, participar de audiência pública ou alguma solenidade,
acessar os gabinetes dos parlamentares etc.
O Congresso Nacional está situado na Praça dos Poderes, o Senado fica na
semiesfera à esquerda, enquanto a Câmara à direita, sendo que entre elas há duas torres
com os escritórios de alguns Deputados e Senadores que estão em exercício. Por
exemplo, o gabinete do Senador Paulo Paim fica no 22º andar da torre à direita, que está
entre os maiores escritórios do Poder Legislativo Federal.
Minha ida ao Senado ocorreu por um motivo: buscar respostas para indagações
que não poderiam ser respondidas apenas analisando os documentos escritos, as
reportagens e os materiais audiovisuais disponibilizados pelas agências oficiais de
comunicação das Casas legislativas. Fiz inúmeras tentativas, em 2019, para tentar
marcar uma entrevista com o Senador Paulo Paim, sem sucesso. Como advertiu a
antropóloga Laura Nader, sobre fazer pesquisa “para cima”, que envolve também as
práticas estatais, “o obstáculo mais comum é fraseado em termos de acesso. Os
poderosos estão fora de alcance em vários planos diferentes: eles não querem ser
estudados; é perigoso estudá-los; eles são pessoas ocupadas; eles não estão todos em um
só lugar, e assim por diante” (2020, p. 346).
Então, devido a este “obstáculo”, meu orientador sugeriu-me entrevistar os
assessores dos parlamentares envolvidos com a tramitação do “Estatuto” e alegou que
poderia ser igualmente uma fonte valiosa de dados, pois estas pessoas têm, talvez, mais
acesso às informações dos bastidores e dos detalhes da tramitação que os próprios
Senadores.

sugere a imagem do labirinto, ao chegar ao centro, após escapar de todos os perigos reais ou imaginários,
não descobriremos uma recompensa, um velo que desvele os caminhos tortuosos do poder, mas um outro
labirinto” (ABREU, 2000, p. 52).
296

Ao longo do ano de 2019, mantive o contato com Margarida Braga40, uma das
assessoras do Paulo Paim, via whatsapp, todavia não era a pessoa do gabinete que
acompanhava de “perto” a tramitação do “Estatuto”. Por meio dela, consegui o contato
do assessor responsável pelo PLS 248/2015, a quem chamarei de Tiago Pacheco41.
Enviei algumas mensagens para ele, entre os meses de agosto e dezembro de 2019,
contudo, não obtive nenhum retorno. Mesmo assim não desisti. Minha alternativa foi ir
ao próprio Senado, em fevereiro de 2020, e lá mesmo ligar para o telefone fixo do
gabinete, perguntando se tal assessor se encontrava e se estava disponível para
conversar rapidamente, solicitação que fiz sem muitas cerimônias. E dessa forma
consegui, finalmente, conversar com Tiago Pacheco. A ligação ocorreu às 11:00 horas,
do dia 18/02/2020, e marcamos para nos encontrar logo em seguida, às 14:30.
Para chegar ao gabinete, passei por pelo menos 4 revistas com detectores de
metais e em cada uma dessas guaritas eu precisava novamente me identificar,
apresentando meus documentos. Cheguei ao gabinete no horário combinado e conversei
com Tiago Pacheco aproximadamente por uma hora, em uma sala reservada. Não foi
possível gravar nosso diálogo, mas na primeira oportunidade que tive anotei tudo que
ouvi. As principais perguntas que fiz foram as seguintes: por que não houve nenhuma
deliberação acerca do projeto entre os anos de 2015 e 2017? O que aconteceu neste
período? Por quais razões o PLS 248/2015 ainda não foi votado na CDH, uma vez que o
Senador Telmário Mota, relator do projeto, já havia apresentado seu relatório
legislativo, faltando apenas incluí-lo na pauta da comissão e votá-lo? O que levou o
“Estatuto do Cigano” ser retirado de pauta no dia 12/02/2020, data em que estava
marcada para ocorrer a votação do PLS na CDH, em “decisão terminativa”?
Tentando, de alguma forma se justificar, por não poder me responder todas as
indagações, o Tiago Pacheco, primeiramente, afirmou que acompanha o projeto desde
de 2017, quando passou a integrar a equipe de Paulo Paim como assessor, logo, não
teria informações anteriores a esta data. Em seguida, enquanto fazia consultas ao site do

40
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese, tendo em vista
também que algumas informações que compartilho na tese possa comprometê-la. Todavia, ressalto que
esta assessora parlamentar, que acessei por conta de amigos em comum que ambos são próximos, foi a
mais gentil e disposta a compartilhar informações entre os assessores que eu conheci no Congresso
Nacional. Todas as perguntas que a dirigi foram respondidas, além de ter sido uma pessoa fundamental
para que eu pudesse acessar fisicamente o gabinete do Senador Paulo Paim, e também por ter me passado
o contato de outros assessores que eu poderia conversar sobre o “Estatuto do Cigano”, do MPF e do
Senado.
41
Adotei um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese. Outra razão
que justifica o não uso do nome real do assessor em tela é pelo fato deste não ter autorizado a gravação do
nosso diálogo. Comentei com meu orientador sobre esta recusa, que me tranquilizou alegando que talvez
tenha sido melhor não ter havido gravação, uma vez que poderia comprometer as informações que eu
estava buscando, além de nos deixar mais à vontade durante o nosso diálogo.
297

Senado para verificar as movimentações do processo legislativo do “Estatuto do


Cigano”, incialmente, Tiago Pacheco discordou do pressuposto da minha pergunta sobre
o fato do PLS 248/2015 não ter tido nenhuma votação entre os anos de 2015 e 2017,
alegando que o projeto neste intervalo de tempo “não ficou parado” e que teve sim
movimentações.
Entretanto, no decorrer da nossa conversa, o assessor buscou fazer algumas
ponderações sobre o período que destaquei, 2015 a 2017, justificando as possíveis
razões para o PLS 248/2015 não ter sido votado em nenhuma comissão, embora já
houvesse relatórios legislativos apresentados. Primeiro, Tiago Pacheco pontuou que
neste intervalo de tempo houve uma mudança de papéis do Senador Paulo Paim, que
migrou “da situação para oposição”, com a concretização do impeachment da Presidenta
Dilma Rousseff, e que por conta deste processo o parlamentar passou a trabalhar
intensamente para mobilizar a base no Senado, inicialmente, para evitar a aprovação do
impedimento. E, em seguida, na condição de parlamentar da oposição, o Senador Paulo
Paim passou a atuar contra as reformas que passaram a tramitar no Congresso Nacional
com o início do governo Temer, entre elas, a “PEC do Teto dos Gastos Públicos” e a
“Reforma trabalhista”. Neste momento, o assessor fez questão de ressaltar o
compromisso do Senador Paulo Paim com os interesses das camadas sociais mais
vulneráveis e que este parlamentar passou a trabalhar ativamente para “barrar” a agenda
neoliberal que ganhou força no Congresso com a saída de Dilma da chefia máxima do
Poder Executivo federal.
Sobre o fato do projeto não ter sido votado durante o segundo semestre do ano
de 2018, o assessor Tiago Pacheco alegou que por ser um período eleitoral a maioria das
atividades no Congresso ficam paralisadas, exceto os assuntos mais urgentes, tendo em
vista que a maioria dos parlamentares, como é o caso de Paulo Paim, autor do projeto,
buscava a reeleição.
Em relação ao período da tramitação do PLS 248/2015 a partir do ano de 2019, o
assessor Tiago Pacheco pontuou que o governo Bolsonaro deu continuidade a agenda de
reformas neoliberais da gestão de Michel Temer, e por isso, mais vez, o Senador Paulo
Paim continuou sendo um principais parlamentares a fazer resistência às pautas de
austeridade, como a “Reforma da Previdência”, por exemplo.
Durante o nosso diálogo, outras questões foram surgindo, como, por exemplo, a
relação entre o papel dos relatores do projeto e a velocidade da tramitação. Indaguei o
assessor Tiago Pacheco se o fato dos relatores do PLS 248/2015 serem de outros
298

partidos, que não necessariamente estão alinhados ao PT, pode ter, de alguma forma,
comprometido o andamento do processo do “Estatuto”.
Sobre o Senador Hélio José, primeiro relator do projeto, que aprovou os
relatórios legislativos na CE e CAS, o assessor destacou que o Senador Paulo Paim
sempre teve uma relação “muito boa” com este parlamentar, embora fosse do “MDB”,
entre os anos de 2016 e 2017, partido que trabalhou para que o impeachment fosse
aprovado e que, inclusive, teve o voto favorável deste Senador. Porém, Tiago Pacheco
fez questão de ressaltar que o Senador Paulo Paim conseguiu “puxá-lo para o seu lado”
na votação contra a “Reforma Trabalhista”42, que ocorreu em 2017. Resumindo, o
assessor quis dizer que apesar das diferenças partidárias e do cenário político instável, o
Senador Hélio José sempre trabalhou para que a tramitação do “Estatuto do Cigano”
avançasse.
No caso do segundo relator do projeto, o Senador Telmário Mota (PROS/RR),
que substituiu Hélio José na relatoria do PLS 248/2015 na CDH, a partir de fevereiro de
2019, o assessor Tiago Pacheco também ponderou que não avaliava que as eventuais
diferenças políticas com o Senador Paulo Paim atrapalhassem a aprovação do Estatuto,
pelo contrário, que o parlamentar apresentou um relatório legislativo favorável ao
projeto de lei e que mantém um bom diálogo, já que ambos compõem o mesmo “bloco
parlamentar” no Senado43. Porém, este assessor ressaltou que embora no Senado Federal
o partido de Telmario Mota, o PROS, fosse formalmente aliado do PT, no seu estado de
origem, em Roraima, é base aliada do presidente Jair Bolsonaro.
Por fim, encerrei a conversa com Tiago Pacheco abordando o fato do “Estatuto
do Cigano” ter sido retirado de pauta quando seria votado no CDH no dia 12/02/2020.
Este assessor alegou não saber informar exatamente quais as razões para o PLS ter sido
“retirado de pauta”, não mencionando, por exemplo, a questão da “consulta”.
Entretanto, apontou uma possível causa. Segundo ele, às vezes um projeto de lei é
retirado da pauta quando o relator ou o autor do projeto de lei avalia que não há
“quórum” ou um “cenário favorável”, naquele momento, para aprovar a matéria, sendo,
assim, retirado do pleito para evitar uma derrota. Trata-se de uma especulação, não
significa que tenha de fato ocorrido essa situação.

42
No entanto, o assessor Tiago Pacheco não mencionou que o Senador Hélio José votou pela
admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff no plenário do Senado e também pela aprovação da
“PEC do Teto dos Gastos Públicos”.
43
Segundo o art. 61, do Regimento Interno do Senado Federal: “As representações partidárias poderão
constituir bloco parlamentar. Parágrafo único. Somente será admitida a formação de bloco parlamentar
que represente, no mínimo, um décimo da composição do Senado” (BRASIL, 1970).
299

Não conversei mais presencialmente com o assessor Tiago Pacheco, por conta
do contexto da pandemia, que mudaram radicalmente as dinâmicas de trabalho do
Congresso, em que passou a estimular e permitir que os parlamentares, os servidores
públicos e os comissionados pudessem cumprir suas atribuições, em boa parte, de forma
remota. A pandemia, que impôs medidas de distanciamento social no Congresso
Nacional a partir do mês de março de 2020, inevitavelmente, atingiu também a minha
forma de fazer pesquisa. Continuei em contato, por whastapp, com Tiago Pacheco e,
principalmente, com Margarida Braga, que também acompanha, indiretamente, a
tramitação do Estatuto, embora tenha prioridade em outros projetos do Senador Paulo
Paim.
É válido ressaltar que cada Senador ou Deputado dispõe de uma verba específica
para contratar assessores parlamentares que irão lhe auxiliar nas suas atribuições. Pelo
que notei em minhas observações, cada assessor fica responsável por acompanhar e
trabalhar com um projeto, seja naqueles que são de autoria do próprio parlamentar,
assim como os que estão na condição de relatores. E nem sempre um projeto de lei,
como é o caso do PLS 248/2015, é acompanhado pela mesma pessoa, ao longo da sua
tramitação.
Por exemplo, segundo o portal da transparência do Senado Federal, o “Pessoal
do Gabinete do Senador Paulo Paim”, levando em conta o ano 2020, é, ao total,
composto por 19 pessoas, sendo 18 comissionados e 1 efetivo, que exerce uma função
comissionada. No caso do “Pessoal do Gabinete do Senador Telmário Mota”, em 2020,
estão inscritas 13 pessoas, 10 comissionados e 3 efetivos. Enquanto o “Pessoal do
Gabinete do Senador Hélio José”, em 2018, último ano do seu mandato, era integrado
por 61 assessores, 56 comissionados e 5 efetivos.
O portal da transparência também indica quantas proposições foram
apresentadas por cada parlamentar. Entre os anos de 2015 e 2018, foram registradas 49
matérias, ou seja, “PLS” que foram de autoria do Senador Hélio José; acusou-se 59
matérias de lei apresentadas pelo Senador Telmário Mota. Em relação ao Senador Paulo
Paim, entre 2003 e 2018, há registrados 412 proposições legislativas de sua autoria. Não
sei por qual motivo o site oficial do Senado Federal não acusou os projetos de lei que
foram apresentados a partir do ano de 2019. É pertinente também pontuar a quantidade
de matérias que os referidos parlamentares estão atuando como “relatores”. Obtive
apenas as informações sobre o Senador Paulo Paim, que tem atuado na relatoria de 81
proposições, e do Senador Telmário Mota, que é relator em 31 proposições.
300

Nesse sentido, a fim de complementar as informações acima, perguntei


diretamente à Margarida Braga, por ter mais proximidade, a seguinte questão: “quantos
projetos de lei, hoje, o Senador Paulo Paim está na condição de relator e quantos
projetos que ele é autor que está tramitando no Congresso”. Ela respondeu-me assim:
“só na pandemia, Phillipe, o Senador é autor de mais de 40 projetos, sendo que no
Congresso Nacional estão tramitando mais de 1.00044”.
Tendo em vista que ainda fiquei com algumas dúvidas após a conversa
presencial que tive com Tiago Pacheco, telefonei novamente para Margarida Braga,
meses depois, em julho de 2020, para obter mais informações sobre a tramitação do
PLS 248/2015. Em conversa aberta, por telefone, Margarida pontuou que o projeto pode
não ter sido votado no dia 12/02/2020 porque não havia um “acordo” com a 6ª Câmara
sobre o “texto final”, e que por conta disso foi retirado de pauta pelo Senador Telmário
Mota, para este pudesse ajustar em conformidade com a Nota Técnica apresentada pelo
MPF sobre o Estatuto, sem mencionar também a questão da “consulta” não ter sido
ainda realizada. Ao final do telefonema, a assessora ponderou que a pandemia poderia
também estar relacionada ao fato do “Estatuto do Cigano” não ter sido votado até o
primeiro semestre de 2020, pelo fato do Congresso Nacional estar dando prioridade às
matérias relacionadas às consequências da proliferação do “Novo Coronavírus”.
Levando em conta as informações compartilhadas por Margarida Braga, pode-se
especular, então, que há uma negociação entre os Senadores envolvidos com a
tramitação do “Estatuto do Cigano” e o “MPF”, por meio da 6ª CCR da PGR, em torno
do “texto final” que será votado na última comissão do Senado, antes de ir para o
plenário da Câmara de Deputados. Ou seja, o “acordo” entre os parlamentares e a “6ª
Câmara”, viria antes da decisão de votar o PLS nº 248/2015 na CDH. A minha dedução
é que a concordância do MPF com o “texto final” aprovado no CDH fortaleceria as
negociações pela aprovação “Estatuto do Cigano” no Congresso Nacional, assim como
para a sanção pelo chefe do Poder Executivo.
Contudo, com base em outros dados que obtive ao longo da pesquisa de campo,
seja nas entrevistas ou analisando os documentos, não ficou evidente se o fato do PLS
248/2015 ter sido retirado de pauta, para “reexame” da matéria, tem relação com a falta
de “acordo” com a “6ª Câmara”. Isto porque este projeto foi colocado em pauta na
última comissão, a CDH, três vezes, sem haver ajustes no texto proposto para o
“Estatuto” conforme as sugestões do MPF apresentadas na Nota Técnica.

44
“Entre os dias 17 de março e 18 de maio foram propostos na Câmara dos Deputados 1.261 projetos de
lei (PL) com as palavras-chave ‘coronavírus’ e ‘Covid-19’” (FERREIRA; LIBÓRIO, 2020).
301

Alguns dias depois de ter conversado com Margarida Braga, fiz observação
participante no “Encontro dos Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo
Milenar”, realizado no mês de agosto de 2020 e que teve a presença dos assessores
parlamentares do Senador Paulo Paim e do Senador Telmário Mota, que estavam na
condição de convidados especiais, anunciados no folder do evento, representando os
respectivos mandatos. Nesta ocasião, os representantes dos parlamentares fizeram um
resumo da tramitação e o que estaria “faltando” para o projeto ser aprovado. E aqui
destaco que nenhum dos dois presentes afirmaram que o PLS não foi votado por falta de
“entendimento” com o MPF, pelo contrário, apresentaram outras razões, que envolvem
articulações políticas dentro do Senado.
O Tiago Pacheco, com quem conversei em fevereiro de 2020, representou o
Senador Paulo Paim na ocasião, sendo o segundo a se pronunciar quando o ponto de
pauta do “Encontro” passou a ser o “Estatuto do Cigano”, que primeiramente foi tratado
pelo “Seu Wanderley”, presidente da “associação proponente”. Este assessor falou por
aproximadamente 10 minutos e compartilhou uma série de informações, inclusive novas
para mim, que não foram ditas na entrevista que fiz com ele.
Após sintetizar o conteúdo do projeto45, Tiago abordou questões referentes ao
processo, em si; foi quando ressaltou que o “empecilho não é a oposição ao projeto”,
sendo que “o quórum é uma das travas” na tramitação do PLS 248/2015 na CDH, pois,
diferente das duas primeiras comissões, nesta última comissão “precisa haver a presença
física dos Senadores por ser uma decisão terminativa”46. Em seguida, pontuou que o
PLS 248/2015, comparado com outros processos legislativos, tem “até tramitado
rápido”, citando que o processo do Estatuto da Igualdade Racial que durou “7 anos”, o
“Estatuto do Idoso” que tramitou entre “1997 e 2003” e o “Estatuto da Pessoa com
Deficiência” entre “2003 e 2015”, afirmando que foi “uma longa batalha aprovar estes
projeto”. Ao finalizar sua participação, pediu “ajuda no quórum”, solicitando às pessoas
do “Encontro” para pressionarem os parlamentares e garantiu que “quando o Senado
voltar, após pandemia, quer colocar na primeira ou na segunda reunião (do CDH)”.
Antes de falar sobre a participação de Armando Caribé47, assessor de Telmário
Mota, que sucedeu a fala do Tiago Pacheco no “Encontro” do dia 20/08/2020, devo
dizer que o procurei algumas semanas antes para conversar sobre a tramitação

45
Segundo o assessor Tiago Pacheco, o PLS 248/2015 trabalha com três viés: a inclusão dos povos
ciganos nas políticas públicas; a previsão de ações afirmativas; e o combate à discriminação.
46
Neste momento, Tiago ponderou que nas decisões “não terminativas ”, que ocorrem nas comissões, não
é necessário a presença física dos parlamentares ao longo da reunião, basta alcançar o quórum no início
das suas atividades.
47
Adoto um pseudônimo por não comprometer o desenvolvimento desta tese.
302

“Estatuto”, por sugestão e indicação de Margarida Braga, que me passou o seu contato
de telefone. Ao abordá-lo, no contato inicial, fiz, ao total, quatro perguntas, em diálogo
pelo whatsapp48, contudo, eu não obtive respostas do assessor, pois este alegou que
havia assumido “este assunto há poucos dias”, se comprometendo a buscar as
informações que precisava. E, desde então, mantivemos alguns contatos por whatsapp,
até que Armando Caribé me perguntou se eu poderia participar de uma reunião virtual
com ele, sem me dizer o motivo do convite. Tratou-se de uma conversa que aconteceu
no dia 18/08/2020, com a presença de Nalva, organizadora do “Encontro” e que durou
menos de 30 minutos, em que este assessor nos solicitou um breve resumo sobre a
tramitação, pois ele havia começado a acompanhar a tramitação do Estatuto há pouco
tempo. Da minha parte, fiz um relato sobre o aspecto formal do processo, citei a “Nota
Técnica”, ressaltando a relevância de haver um “consenso” com o MPF. Já Nalva, por
sua vez, de maneira mais breve, fez questão de reivindicar a realização da “consulta
prévia”, e, ao mesmo tempo, pediu urgência na aprovação do projeto, devido ao
aumento da vulnerabilidade dos ciganos durante a pandemia. Enquanto falávamos,
Armando fazia apenas anotações e agradecia pelos “esclarecimentos”. A impressão que
tive da nossa interação é que parecia que este assessor não tinha sequer lido o projeto de
lei e os relatórios legislativos aprovados nas duas comissões. Por outro lado, é possível
também que o aparente desconhecimento do assessor em face do “Estatuto” tenha sido
uma estratégia deste com o objetivo de obter a nossa leitura sobre a tramitação e o
máximo de informações possíveis.
Dois dias depois, no “Encontro”, observei uma radical mudança de postura do
assessor parlamentar Armando Caribé, o que confirmou a minha desconfiança, que
discursou logo após a representação da assessoria do Senador Paulo Paim. Embora
tenha dito, em princípio, ser um “gadjon novato”, se referindo ao pouco conhecimento
que detém sobre a “questão cigana”, aqui destaco a desenvoltura do assessor ao abordar
a tramitação do PLS 248/2015 e, principalmente, por ter dedicado boa parte da sua fala
para tratar estratégias nas articulações políticas pela aprovação do “Estatuto”. Além
disso, minha surpresa também se deu por conta das novas informações que foram
compartilhadas pelo assessor do Senador Telmário Mota, que, de algum modo,

48
Apresentei, ao total, quatro perguntas. Foram elas: “De que modo o Senador Telmário Mota construiu
os relatórios legislativos que foram apresentados à CDH? Houve consulta às comunidades cigana? Ou
diálogos com o antigo relator, o Senador Hélio José”; “O Senador Telmário Mota tem mantido diálogo
com o Senador Paulo Paim, autor do projeto de lei?”; “O governo federal tem manifestado interesse na
tramitação do Estatuto do Cigano? De que modo os representantes do governo têm participado deste
processo legislativo?”; “Por qual razão o projeto de lei, que seria votado em decisão terminativa na CDH
no dia 12/02/2012, foi retirado de pauta e voltou para o Senador Telmário Mota para reexame?”.
303

respondiam parte daquelas perguntas que havia feito no nosso primeiro contato, que ele
me informou não ter conhecimento.
Quanto às estratégias políticas, este assessor fez as seguintes afirmações: que o
“Estatuto só não foi aprovado por conta de um ruído que fez tirar o projeto de pauta”,
contudo, não especificou de quem se tratava, apenas dando a entender que seria alguém
do “movimento cigano”; que o autor do projeto e o relator deram um “cheque em
branco” a ele, isto é, “faça o que tenha que fazer” para aprovar o projeto; frisou que era
“muito amigo de Augusto Aras (Procurador-Geral da República)49”; sugeriu que fosse
criado um “comitê” ou uma “campanha” em torno do “Estatuto”, alegando que a
“política está ligada a linguagem da guerra”, por isso o uso destas palavras; propôs que
as lideranças e os apoiadores da causa cigana se mobilizassem para articular com os
prefeitos, vereadores, deputados “das bases” para que estes pudessem pressionar os
Senadores a estarem presentes na votação da matéria na última comissão, justificando
que esta articulação é necessário tendo em vista que o “Senado” está “no topo da cadeia
alimentar” da política.
Como se pode perceber, embora as funções desempenhadas pelos assessores
parlamentares possam estar relacionadas aos “bastidores” do Congresso Nacional, não
se trata de um trabalho secundário, pelo contrário, a atuação de cada Senador ou
Deputado depende da equipe que o acompanha, mesmo que a última palavra seja do
parlamentar.
Realizar a observação participante no “Encontro” do dia 20/08/2020
permitiu-me acessar uma série de informações, assim como ter insights sobre a
tramitação do Estatuto do Cigano. A partir desta experiência, obtive novos dados,
comparei com as informações anteriores, complementando-as, consegui responder a
algumas indagações, mas também acabaram surgindo novas perguntas.
Comparando as falas dos assessores Armando Caribé e Tiago Pacheco, notei um
relativo alinhamento entre ambos, quando se cobrou das lideranças ciganas e dos
apoiadores, os simpatizantes, uma articulação política para alcançar o quórum
necessário que o PLS 248/2015 demanda para ser votado na CDH. Por outro lado,
observei diferentes narrativas para justificar as razões do “Estatuto” ter “travado” na
última comissão; enquanto o representante do autor do projeto destacou que o “quórum”
tem sido o principal entrave no avanço da tramitação, o interlocutor do relator citou a

49
Ressalto que na conversa que tivemos antes do Encontro, quando pontuei sobre a Nota Técnica do MPF
e a necessidade de haver um “consenso” com a Sexta Câmara, o assessor Armando Caribé comentou
também que era “muito amigo de Aras”, dando a entender que poderia mobilizar a relação pessoal com o
Procurador Geral da República para tratar do “Estatuto”.
304

ocorrência também de uma interferência externa que influenciou a retirada de pauta do


“Projeto”, que seria votado no dia 12/02/2020. Avalio que não há necessariamente uma
contradição entre estas informações, na verdade, o que ocorreu foi uma diferença na
abordagem.
Da mesma forma que Armando Caribé procurou Nalva e a mim para
esclarecermos questões sobre o “Estatuto”, especulo que este também deve ter
dialogado com o próprio Tiago Pacheco, que acompanha a tramitação há mais tempo.
Faço esta dedução pois uma informação compartilhada por Armando, que falou em
interferência de pessoas ciganas para “tirar de pauta” o Estatuto, se aproxima de uma
resposta que obtive do assessor de Paulo Paim, na entrevista do dia 18/02/2020, quando
me contou, sutilmente, que “associações ciganas” procuraram o gabinete do Senador
para influenciar na tramitação, propondo uma nova audiência pública e alterações no
projeto.
Após o “Encontro” do dia 20/08/2020, voltei a conversar com Margarida Braga,
do gabinete do Senador Paulo Paim, para tirar algumas dúvidas sobre o processo
legislativo, já que nem todas minhas indagações foram respondidas pelos assessores
parlamentares que acompanham a pauta do “Estatuto”. Desta vez, ela me sugeriu
procurar outra pessoa que também acompanha a pauta do Estatuto no Senado desde o
início da tramitação, se referindo à Paula Andrade50, que é assessora técnica do Senado
e que trabalha para a liderança do PT nesta Casa. Ao entrar em contato com ela, que
concordou em dialogar comigo sobre a tramitação do “Estatuto do Cigano”,
encaminhei, por whatsaap, as perguntas que foram respondidas por escrito. Seguem,
abaixo, as perguntas e as respostas que obtive em 25/08/2020:
Eu: Qual tem sido o seu papel, enquanto assessora da liderança do PT no Senado, no
âmbito do processo legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Paula Andrade: A matéria, apresentada em abril de 2015, tramitou primeiro na Comissão
de Educação (CE), tendo como relator o senador Helio José (PROS-DF). Nesse momento,
o nosso assesor na CE, Bruno Costa, me pediu para orientar a matéria naquela comissão. O
relator apresentou diversas emendas que, do meu ponto de vista, pioravam o projeto.
Liguei para o gabinete do Senador Paim e a Margarida me explicou um pouco a origem do
PL. Foi nesse contexto que procurei Marcos Paulo Schetino, meu colega antropólogo que
trabalha na Sexta Câmara do Ministério Público, que me contou um pouco a história do
projeto e me encaminhou para Laura Gabriela.
Também recebi uma ligação de uma cigana que representava um grupo que não concordava
totalmente com o texto original. Percebendo a necessidade de aprofundar o debate,
preparamos um requerimento de Audiência Pública, que foi apresentado pela senadora
petista Regina Sousa. Ela acabou retirando o requerimento, a pedido do Relator. O
argumento, constantemente confirmado pela presença, nas reuniões, de seu Wanderley e
outros membros de seu grupo, era a pressa para aprovar o PL.
O projeto então foi aprovado, com as emendas propostas pelo relator, na Comissão de
Educação, em 27 de março de 2018.

50
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese.
305

Hélio Jose se manteve relator na CAS, comissão que assessoro, e a matéria foi aprovada em
09 de maio de 2018. Sem AP, pois o relator pediu para que o tema fosse debatido na CDH,
onde a matéria é terminativa, ou seja, não passa pelo Plenário para seguir para a Casa
revisora, a Câmara dos Deputados.
Tanto na CE quanto na CAS, nos dias de votação, várias lideranças ciganas se faziam
presente e Hélio Jose, em nome delas, pedia a pressa pela aprovação.
Paralelo a isso tudo a 6ª Câmara produziu um texto substitutivo ao PL, tendo incorporada
demandas históricas dos povos ciganos nas Conferências Nacionais de Direitos Humanos.
Pessoalmente gostei muito da proposta e passei, como assessora da Liderança, a trabalhar
por sua aprovação, mas o gabinete do senador Paim, representado pelo André, esteve
sempre à frente das negociações.
O senador Hélio Jose manteve seu relatório na CDH. Enquanto se tentava negociar, o ano
de 2018 acabou e com ele o mandato do relator.
O novo relator, Telmário Mota, manteve o parecer do Helio José, seu colega de partido. A
negociação com o gabinete dele foi feita pelo Tiago. Mas a coisa não avançou muito em
2019. Sei que o senador Paim foi procurado pela equipe da Damares (André pode te
explicar, eu não estava presente), que fez uma série de sugestões para o texto.
Vale falar que não sou assessora da CDH, mas minha colega lá, Rosi Gomes, pediu que eu
continuasse acompanhando a matéria na CDH e fazendo as orientações de voto.
O senador Telmário retirou seu parecer para reexame umas duas ou três vezes, a última em
fevereiro de 2020.
Eu defendia que era melhor o texto ser modificado, na forma das sugestões da 6ª. Câmara,
ainda no Senado. Assim sairia um texto redondo, combinado, consensuado, para que a
matéria não fosse modificada na CD (Câmara de Deputados).
Infelizmente, não aconteceu nem uma coisa, nem a outra.
Eu: Quem são os principais agentes políticos, pessoas, associações e instituições,
envolvidos no processo legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Paula Andrade: Creio que, hoje, os principais atores são o Senador Paim, Senador
Telmário Mota, 6ª. Câmara, diversas Associações de Povos Ciganos, o Procurador Mariz, a
Ministra Damares.
Eu: A senhora avalia que o impeachment da Presidenta Dilma influenciou, de alguma
forma, na tramitação do “Estatuto do Cigano”? Ou questões da conjuntura política que
precedeu e sucedeu a saída da Presidenta Dilma?
Não.
Eu: A senhora avalia que houve alterações nas negociações pela aprovação do Estatuto do
Cigano com as mudanças que ocorreram no Governo Federal, com as gestões “Temer” e
“Bolsonaro”? Como este último governo tem atuado nesta tramitação?
Paula Andrade: Sim, a entrada em campo da Ministra Damares, de meu ponto de vista
pessoal, parece ter sido para barrar a proposta do Ministério Público. Não tive acesso às
propostas de seu Ministério para melhor avaliar. O André tem essas informações. Como a
Ministra é evangélica e o senador Telmário também, imagino que ele seja receptivo às
sugestões. (Acervo próprio, meu destaque)

A partir das respostas acima, passei a ter uma nova dimensão acerca das
dinâmicas e das complexidades que envolvem a tramitação do “Estatuto do Cigano”.
Independente das informações serem novas ou que confirmam os dados que eu já tinha
registrado, o fato de ter sido compartilhadas por Paula Andrade tem um significado
especial. Primeiro, por ela acompanhar este processo desde o seu início. Segundo, pela
sua organicidade com o projeto político do PT, partido do parlamentar que propôs o
“Estatuto”. E, principalmente, por ser servidora pública de carreira, que detém
estabilidade e não estar vinculada diretamente a nenhum gabinete. Interpreto estes dois
últimos dados como uma das razões que contribuíram para que esta assessora técnica
pudesse falar mais abertamente. Diferentemente de Tiago Pacheco ou Margarida Braga
que, ao meu ver, não emitiram nenhum juízo de valor em relação aos integrantes ou
306

aliados do governo federal, cujo partido e o próprio Senador Paulo Paim fazem
oposição política.
Em síntese, o pesquisador Luiz Abreu identificou a existência de dois tipos de
funcionários do Congresso Nacional, a parte fixa, que decorre das “necessidades
objetivas da existência do legislativo e são criados pelo regimento interno” (1999, p.
128, destaque do autor), que integram o corpo administrativo e técnico, e a parte
rotativa, que são os Deputados e Senadores, os assessores parlamentares – funcionários
de cada parlamentar que atuam no gabinete ou em polos no estado de origem – e os
cargos de confiança (altos escalões). Com base na descrição e análise deste autor, é
possível dizer que Paula Andrade compõe a parte fixa e integra o corpo técnico dos
experts do Poder Legislativo, funcionários públicos com estabilidade que dominam os
diversos procedimentos sem os quais não se poderia produzir, por exemplo, as “leis”;
enquanto os assessores parlamentares integram a parte rotativa do Poder Legislativo,
que não é necessariamente uma condição absoluta51.
Vale salientar, mais uma vez, que a presente pesquisa foi viabilizada mediante a
construção de uma teia de informantes, que não seria possível sem as pessoas que
exercem as funções de assessoria dos órgãos públicos e instituições. Nesse sentido,
ainda que não trabalhe no Poder Legislativo, dou destaque neste tópico ao papel da
servidora pública do MPF, Laura Gabriela, que já mencionei no subtópico “4.1.2”.
Embora já a conhecesse de vista das audiências públicas do MPF sobre os direitos
ciganos, tanto em Brasília, como na Paraíba, fui incentivado por Paula Andrade a
procurá-la para conversar também sobre o “Estatuto”. E foi o que fiz em 27/08/2020,
quando a abordei e encaminhei algumas perguntas, que foram respondidas dois dias
depois por whatsapp. Seguem abaixo:

Eu: Qual foi seu papel, enquanto assessora da 6ª Câmara da PGR, no âmbito do processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Laura Gabriela: Assessorei a 6a Câmara na elaboração da Nota Técnica n. 05/2018, que
analisou e propôs alterações no Estatuto dos Ciganos. Também intermediei o diálogo entre
a 6a Câmara, as lideranças indígenas, setores do Governo Federal responsáveis pelo tema e,
posteriormente, o autor e o relator da Proposta, no Senado Federal, por meio de suas
assessorias.
Eu: Qual o papel do “6ª Câmara” nas negociações pela criação do “Estatuto do Cigano”?
Laura Gabriela: A 6a Câmara promoveu o diálogo com as comunidades interessadas, não
na forma da Convenção 169, mas apenas no sentido de ouvir suas observações, como
subsídio para a nota técnica e o diálogo com as instituições responsáveis no âmbito do
Executivo e Legislativo.
Eu: A “6ª Câmara” costuma atuar também em outros processos legislativos que envolvem
matérias relacionadas aos povos e comunidades tradicionais?
51
Abreu pondera que essa parte rotativa não é sempre alterada, parcial ou integralmente, a cada nova
eleição, já que parlamentares podem ser (e são) reeleitos, assim como os assessores parlamentares têm a
tradição de distribuir currículos para outros gabinetes quando seu Deputado ou Senado não permanece no
próximo mandato (ABREU, 2000, p. 131).
307

Laura Gabriela: A 6a Câmara acompanha as proposições legislativas que tramitam no


Congresso Nacional que podem causar impactos aos direitos das populações que são objeto
de sua atenção. Quando entende ser o caso, traz subsídios, elabora notas técnicas, participa
de audiências públicas e promove o diálogo com os responsáveis, bem como com as
comunidades. Historicamente a 6a Câmara tem se manifestado em várias essas proposições,
como a PEC 215 e várias outras. Entre estas, o Projeto de Lei referente ao Estatuto do
Cigano.
Eu: Quem são os principais agentes políticos, pessoas, associações e instituições,
envolvidos no processo legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Laura Gabriela: O autor do projeto é o Senador Paulo Paim. Sabe-se que ele colheu a
proposta a partir das manifestações das próprias comunidades ciganas, sobretudo da ANEC.
o Sr. Wanderlei, representante da instituição, tem liderado essas discussões com os ciganos.
As representantes dos ciganos no CNPIR e na CNPCT também tem estado bastante ativas
nas discussões. e a AMSK Brasil também tem sido uma das protagonistas do debate.
Eu: A senhora avalia que houve alterações nas negociações pela aprovação do Estatuto do
Cigano com as mudanças que ocorreram no Governo Federal, com as gestões “Temer” e
“Bolsonaro”? Como este último governo tem atuado nesta tramitação?
Laura Gabriela: Num primeiro momento o Governo Bolsonaro, por meio do MMFDH,
mostrou bastante abertura ao diálogo e mesmo apoio às demandas dos povos ciganos.
Chegou a patrocinar, em conjunto com a 6a CCR, seminário para elaborar as políticas
públicas para os povos ciganos. Num segundo momento, contudo, observou-se uma nítida
retração, e não houve continuidade do diálogo nem implementação das propostas aprovadas
na ocasião.
Eu: A senhora tem informações sobre as razões que levaram o PLS 248/2015, que seria
votado no dia 12/02/2020 na CDH, ter sido retirado de pauta para reexame, pelo Senador
Telmário Mota?
Laura Gabriela: Nesta ocasião eu já havia deixado de acompanhar a questão, eis que não
integrava mais o quadro da 6a CCR, infelizmente.
Eu: Houve outras ocasiões que o projeto estava prestes a ser deliberado nas Comissões do
Senado e foi retirado de pauta. Até ser votado na Comissão de Educação, o projeto foi
retirado de pauta 4 vezes. No caso da Comissão de Direitos Humanos, desde 2018, o PLS já
foi retirado de pauta duas vezes quando seria votado. A senhora tem informações das
razões que levaram o PLS ter sido retirado de pauta? Houve alguma ocasião que o MPF
influenciou na retirada de pauta do PLS para ser reexaminado pelo relator?
Laura Gabriela: Foi informado aos representantes da 6a Câmara que participavam na
ocasião que a razão era a ausência de quórum, tendo em vista que a questão demandava
presença física dos integrantes da comissão, não apenas virtual. Fomos alertados de que, em
se tratando de ano eleitoral, seria praticamente impossível obter esse quórum, que só
poderia ser obtido por meio de ações intensas nesse sentido. A despeito de todos os
esforços, não foi obtido êxito. O MPF reuniu-se com o autor e com o relator da proposta,
para apresentar a nota técnica e tratar da importância da discussão para as comunidades, e
da necessidade de que fossem contempladas com qualidade, em atendimento ao comando
da Convenção 169. Apesar de ter sido recebida com cordialidade e parceria, não houve
avanços significativos. (Acervo próprio)

Devo registrar que Laura Gabriela é uma personagem fundamental não apenas
para a questão do “Estatuto”, mas, sobretudo, para a luta dos povos ciganos por direitos
de modo geral, fato que motivou a sua mudança de João Pessoa à Brasília, para poder
acompanhar esta pauta na “6ª Câmara”. Este fato não é reconhecido só por mim, mas
pelos próprios ciganos, pesquisadores e demais apoiadores desta causa.
Como disse antes, por mais que Laura Gabriela não seja servidora pública do
Senado, faço referência ao seu trabalho aqui neste tópico, pois, assim como assessores
parlamentares e legislativos, ela desempenha uma função de “bastidores”. Participou,
diretamente, da elaboração da “Nota Técnica”, mas quem assinou o documento foi o
Subprocurador Geral. Da mesma forma como acontece nos “relatórios legislativos” que
308

são apresentados nas comissões onde tramita um projeto de lei, quem assina é o Senador
ou Deputado, não se fazendo referência aos “assessores”, parlamentares ou legislativo,
que contribuíram para a elaboração deste documento.
Abélès (2000), em etnografia no contexto francês do legislativo, percebeu
justamente a dissimetria na relação parlamentar funcionário, sendo que o trabalho deste
fica no anonimato. Como destacou este autor, em qualquer documento escrito ou nos
registros das comissões, o nome dos funcionários dos gabinetes não aparece. Graças à
pesquisa etnográfica, transcendendo o aspecto documental, pude notar a importância
dos “assessores”, atores que são tão importantes quanto os próprios Senadores,
Ministros, Procuradores da República, pessoas do alto escalão dos “Poderes”, cujo os
nomes ganham notoriedade pública. São cruciais para o processo de construção
político-jurídica do Estatuto do Cigano.

Imagem 25 - Registro dos integrantes da “ANEC” após votação na CE

Fonte: acervo particular da pesquisadora Edilma Monteiro (2018).

É válido lembrar que os “assessores” que cito neste tópico não são os únicos que
atuaram ao longo da tramitação do “Estatuto”. Além disso, as performances dos
assessores não se limitam aos aspectos técnicos da função, há aqueles que atuam
também como articuladores políticos dentro do Congresso Nacional52.

52
Destaco o caso da assessora parlamentar do Senador Magno Malta, que se tornou Ministra no Governo
Bolsonaro, personagem que também acompanhou “de perto” a pauta dos ciganos no Senado Federal e
que, desde 2019, passou a comandar a pasta mais diretamente ligada às demandas dos povos e
comunidades tradicionais brasileiros. Embora passasse a trabalhar no Poder Executivo, a pesquisa
etnográfica possibilitou-me perceber que atuação da ex-assessora parlamentar, que trabalhou para
diferentes parlamentares também ligados à “bancada evangélica”. Enquanto “ministra” continuou
acompanhando e atuando no Poder Legislativo, seja monitorando os projetos, como também propondo.
309

Investigando os processos contemporâneos de criação de leis penais, Lascoumes


(1990) identificou haver uma tendência na diversificação dos atores que influenciam na
produção das leis, assim como na pluralidade de atuações das quais eles dispõem. Cita
como exemplo os “atores tecnocráticos”, que representam setores vinculados à alta
função pública e comissões de experts científicos, que desempenham sua influência
mediante lobby intragovernamental com aparência de consolidação de políticas públicas
ou, ainda, como consultores em uma função específica. Esta tendência apontada por
Lascoumes pode ser também percebida na tramitação do “Estatuto do Cigano”, ao
analisar o papel que vem sendo desempenhado pela “6ª Câmara”, por exemplo.
De todo modo, além de identificar quem são os atores e instituições sociais que
entram e saem de cena e o que cada uma destes representam para o processo legislativo
do “Estatuto do Cigano”, no próximo subtópico busco descrever e analisar como se dão
as decisões tomadas nas comissões do Senado. Ou seja, quais são as regras, formais ou
informais, expressas ou tácitas, que permeiam o andamento das reuniões destes órgãos
colegiados, uma vez que são nestes momentos em que as deliberações políticas mais
significativas sobre o PLS 248/2015 acontecem.

4.1.4 - As votações

As votações que ocorrem no Poder Legislativo correspondem a uma modalidade


de decisão política que expressam, ao mesmo tempo, a vontade e o poder daqueles que a
tomam. Em geral, as votações de uma matéria no Congresso Nacional são vislumbradas
como uma prática meramente formal e acabam não sendo interpretadas também
enquanto “rituais” no senso estrito. Como lembrou a Mariza Peirano, “acostumamo-nos
a associar rituais a performances auspiciosas” (2000, p. 20, grifo da autora). O senso
comum costuma associar “ritual”, por exemplo, às celebrações religiosas, dificilmente
relacionando a momentos como uma reunião institucional ou demais práticas estatais.
Partindo do instrumental analítico que a Antropologia aprimorou para analisar
acontecimentos considerados rituais, Peirano caracteriza estes pela “estereotipia,
redundância e graus relativos de formalidade” e propõe ampliar este instrumental para a
análise também da “política - esta área específica onde se debatem o caos e a
racionalidade (e que é movida por uma ideia de singularidade do evento histórico)”
(2002, p. 8).
Entendendo as “reuniões extraordinárias” das comissões do Senado Federal
como tipos especiais de “eventos”, tratadas por Gluckman enquanto “situações sociais”,
310

nesta tese, as interpreto também como “rituais”, por serem mais estáveis, por haver uma
ordem que as estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo, e uma
percepção de que elas são diferentes de outras ocasiões. E refiro-me não apenas às
reuniões em que ocorrem as deliberações das matérias legislativas, como também
aquelas que acontecem as audiências públicas, pois igualmente seguem um rito. O que
não significa dizer que todos procedimentos realizados nestas ocasiões são
padronizados ou que se guiam, exclusivamente, pelo arcabouço formal extraído dos
instrumentos jurídicos escritos.
Nesse sentido, ao disciplinar o meu olhar para observar e analisar algumas
dezenas de reuniões, realizadas em algumas comissões (CE, CAS e CDH) e presidida
por parlamentares diferentes, embora tenha notado uma preponderância de atos
repetitivos e previsíveis, identifiquei, por outro lado, algumas práticas mais maleáveis,
não tão redundantes, que variam conforme os atores envolvidos, especialmente
dependendo de quem esteja responsável pela mediação. Na condição de pesquisador que
não vivenciava, até o início do Doutorado, o cotidiano das atividades legislativas no
Senado Federal, ao perceber tanto as aproximações, como os distanciamentos entre as
práticas realizadas no âmbito das “reuniões extraordinárias”, compreendi que são
justamente nos detalhes destas ocasiões que se pode extrair algumas normativas que
atravessam a maioria dos processos legislativos, inclusive a tramitação do próprio
“Estatuto do Cigano”.
Os elementos que entram no ritual, aliás, já existem em sociedade, eles
surgem apenas reinventados, rearranjados e reforçados no ritual. Mas o
caminho de volta também pode ser traçado: o instrumental desenvolvido para
analisar rituais pode ser reapropriado para o exame de outros eventos,
fazendo dos rituais estratégia analítica e abordagem etnográfica para eventos
em geral. (PEIRANO, 2015, p. 9)

Nesse sentido, ao compreender as dinâmicas das reuniões das comissões do


Senado como “rituais” e dialogando com a proposta da pesquisadora Laura Nader, que
propõe aos antropólogos promover também “pesquisas para cima”, busco “descrever os
comportamentos habituais não escritos que são totalmente indispensáveis para a
compreensão de, por exemplo, o que faz o Congresso funcionar”. Segundo esta
pesquisadora, “estudar os de cima parece ser um caminho para integrar preocupações
sociais primordiais com os objetivos e metas da ciência do homem” (2020, p. 338, grifo
da autora).
O Congresso Nacional dá publicidade às informações das atividades legislativas
que são realizadas tanto na Câmara, como no Senado, exceto em algumas poucas
311

situações53, que não é o caso da tramitação do PLS 248/2015. Portanto, tentando,


inicialmente, entender as razões que levaram o “Estatuto do Cigano” a ter sido “retirado
de pauta” ou “adiado” a leitura, a discussão e a votação da respectiva matéria, inúmeras
vezes ao longo da tramitação, procurei investigar como se sucederam as dinâmicas das
reuniões das comissões em que o “PLS 248/2015” esteve incluído na pauta do dia.
Comecei pelos últimos acontecimentos, isto é, pela análise da 5ª Reunião Extraordinária
do CDH, do dia 12/02/2020, quando o item “PLS 248/2015” estava prestes a ser votado
em “decisão terminativa”. Como não pude estar presente fisicamente neste momento,
assisti à gravação na íntegra disponibilizada pelo website do Senado Federal.
Em primeiro lugar, é importante pontuar que o Senador Paulo Paim, autor do
projeto de lei do Estatuto do Cigano, e o Senador Telmário Mota, relator da matéria na
CDH, são, respectivamente, presidente e vice-presidente desta comissão, posição que
ocupará até fevereiro de 2021, quando haverá novas eleições para a presidência do
Senado54. Portanto, são os responsáveis por dar seguimento às pautas que devem ser
discutidas e deliberadas na CDH até ocorrerem novas eleições para a presidência desta
Casa legislativa.
As reuniões das comissões fazem parte da agenda e do conjunto de atividades
que acontecem no Senado. Para cumprir com suas atribuições, tanto o Senado, como a
Câmara, se organizam em órgãos colegiados, sendo os mais importantes o plenário e as
comissões. No plenário, ocorre a reunião entre todos parlamentares, se tratando de uma
instância máxima de deliberação, cujo o trabalho é dirigido pela Mesa (Comissão
Diretora)55, que é eleita para mandatos de dois anos.
No âmbito das comissões, há duas espécies: as permanentes, previstas no art. 72
do Regimento Interno; e as temporárias, cujas as características serão definidas

53
Segundo o art. 197, do Regimento Interno do Senado Federal: “transformar-se-á em secreta a sessão: I -
obrigatoriamente, quando o Senado tiver de se manifestar sobre: a) declaração de guerra (Const., art. 49,
II); b) acordo sobre a paz (Const., art. 49, II); c) (Revogado); d) escolha de chefe de missão diplomática
de caráter permanente (Const., art. 52, IV); e) requerimento para realização de sessão secreta (art. 191); II
- por deliberação do Plenário, mediante proposta da Presidência ou a requerimento de qualquer Senador”
(BRASIL, 1970).
54
Segundo informações disponibilizadas pelo Senado Federal, “o presidente do Senado, no início de
cada legislatura, designa os senadores que integrarão as comissões, a partir da indicação dos líderes
partidários, com observação, se possível, à proporcionalidade da representação partidária na Casa.
Segundo o regimento, a vaga na comissão pertence ao partido ou bloco parlamentar, e cabe ao líder tanto
fazer a indicação do senador que vai ocupá-la, como substituí-lo. Designados os membros titulares e
suplentes, cada comissão reúne-se para instalar seus trabalhos e eleger, em votação secreta, o presidente e
vice-presidente do colegiado para mandato de dois anos” (JUSBRASIL, 2013, meu destaque).
55
Segundo o art. 46 do Regimento Interno do Senado, “a Mesa se compõe de Presidente, dois
Vice-Presidentes e quatro Secretários” (BRASIL, 1970).
312

conforme o ato de criação56. Há também as comissões mistas, formadas por


parlamentares das duas Casas Legislativas. Examinar as matérias dos projetos de lei,
realizar audiências públicas e a apreciação terminativa de algumas proposições, quando
a Presidência dispensa a atuação do Plenário, estão entre as atribuições específicas das
comissões.
É importante frisar que o Regimento Interno do Senado Federal, por meio do art.
72, prevê uma quantidade diferente de parlamentares que devem compor as trezes
comissões permanentes do Senado Federal. Por exemplo, a Comissão de Educação,
Cultura e Esporte é composta por 27 (vinte e sete) membros titulares, a de Assuntos
Sociais 21 (vinte e um) senadores, e a de Direitos Humanos e Legislação Participativa
19 (dezenove). Por isso, cada uma delas demanda um número distinto de parlamentares
para se dar início às atividades ou para se alcançar o “quórum” exigido nas “decisões
terminativas”.
Os encontros em que ocorrem os trabalhos legislativos desenvolvidos pelos
parlamentares nas comissões são chamados de “reuniões”, que são de dois tipos:
ordinárias, nos momentos estabelecidos expressamente pelo Regimento57, e
extraordinárias, com momento e pauta específica fixada na convocação58, ato que é
realizado pelo presidente da Comissão em exercício. O Regimento Interno estabelece
apenas uma restrição para que não ocorra reuniões nas comissões, que não poderá
coincidir com o tempo reservado à Ordem do Dia das sessões deliberativas ordinárias
do Senado59.
Nas reuniões extraordinárias das comissões temáticas, em geral, são
“apresentadas”, “apreciadas”, “aprovadas” ou “rejeitadas” uma série de proposições
legislativa, que não se limitaram às deliberações que dizem respeito a projetos de lei60.

56
Esta previsão consta no caput do art. 58, da Constituição Federal, que diz: “O Congresso Nacional e
suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições
previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”.
57
Por exemplo, de acordo com o Regimento Interno do Senado, conforme diz art. 107, inciso I, “as
reuniões das comissões permanentes realizar-se-ão: se ordinárias, semanalmente, durante a sessão
legislativa ordinária, nos seguintes dias e horários: d) Comissão de Assuntos Sociais: às quintas-feiras,
onze horas e trinta minutos; f) Comissão de Educação, Cultura e Esporte: às terças-feiras, onze horas; h)
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa: às terças-feiras, doze horas;” (BRASIL, 1970).
58
Conforme estabelecido no art. 107, inciso II, do Regimento Interno do Senado, “se extraordinárias,
mediante convocação especial para dia, horário e fim indicados, observando-se, no que for aplicável, o
disposto neste Regimento sobre a convocação de sessões extraordinárias do Senado” (BRASIL, 1970).
59
Segundo o art. 107, parágrafo único: “em qualquer hipótese, a reunião de comissão permanente ou
temporária não poderá coincidir com o tempo reservado à Ordem do Dia das sessões deliberativas
ordinárias do Senado” (BRASIL, 1970).
60
Entende-se por “propostas legislativas”: “projetos de lei ordinária - aprovados, em geral, por votação
simbólica - ou projetos de lei complementar - que estipulam regras em temas especificados pela
Constituição e exigem quórum qualificado [...], os projetos de iniciativa popular [...], sugestões
legislativas [...], propostas de emenda à Constituição [...], Projetos de resolução, de decreto legislativo,
emendas, indicações, requerimentos, recursos, pareceres e propostas de fiscalização e controle têm sua
313

Por exemplo, no dia 12/02/2020, o “Estatuto do Cigano” era a quinta pauta a ser
deliberada. Contudo, ao longo da 5ª Reunião Extraordinária da CDH, que durou,
aproximadamente, 1 hora e 38 minutos, não houve menção direta ao PLS 248/2015.
Antes mesmo de começar a reunião, o item “PLS 248/2015” já havia sido retirado de
pauta pelo relator. Nesta ocasião, estavam programados para serem deliberados 42 itens,
incluídos na pauta do dia, destes: a) 13 tratavam de requerimentos de audiência pública,
sendo que 8 foram aprovados, 3 adiados e 2 retirados de pauta; b) 5 sugestões
legislativas61, 2 adiados e 3 aprovados; c) 24 projetos de lei, 4 adiados, 7 retirados de
pauta, que foi caso do “Estatuto do Cigano”, 1 “lido o relatório; adiadas a discussão e
votação”, 1 “lido o relatório, logo após é concedida vista coletiva”, e, por fim, 11
aprovados, significando que o relatório lido, colocado em discussão e votado, passou a
constituir enquanto “Parecer da CDH, favorável ao Projeto”.
Como abordei no subtópico anterior, tentei obter respostas, por meio das
assessorias parlamentares envolvidas na presente trama política, acerca das razões que
contribuíram para o PLS 248/2015 ter sido “retirado de pauta”. Ao se observar as
informações oficiais sobre o processo legislativo do “Estatuto do Cigano” no Senado
Federal, foi possível notar outras ocasiões em que este projeto de lei também foi
“retirado de pauta” ou que a “a apreciação da matéria foi adiada”, quando o item “PLS
248/2015” seria deliberado nas Comissões onde tramita.
Levou-se, aproximadamente, três anos, desde o início de sua tramitação, até o
“Estatuto do Cigano” ser votado pela primeira vez no Senado Federal, no dia
28/03/2018, na 7ª Reunião Extraordinária da CE. Resumindo, incluiu-se o “PLS
248/2015” na pauta das reuniões desta comissão oito vezes, sendo que em quatro
ocasiões se pretendeu votar o relatório legislativo apresentado pelo Senador relator,
havendo três adiamentos nos dias 04/10/2016, 18/10/2016 e 18/04/2017. Nas demais
circunstâncias, incluiu-se o “Estatuto do Cigano” na pauta do dia para se deliberar sobre
o requerimento de audiência pública, nos dias 10/11/2015, 13/09/2016, 25/04/2017 e
19/09/2017.
Por sua vez, no caso das movimentações do “Estatuto do Cigano” na segunda
comissão onde tramita, nota-se que houve uma maior agilidade. Aprovou-se o relatório
legislativo do Senador Hélio José na primeira tentativa em que se incluiu o PLS
248/2015 entre as pautas da 15ª Reunião Extraordinária da CAS, que ocorreu no dia

iniciativa reservada a deputados, às comissões técnicas e à Mesa [...] medidas provisórias” (BRASIL,
2020c).
61
“Forma de participação da sociedade civil no processo legislativo por meio de apresentação de minuta
de proposta legislativa” (BRASIL, 2020i).
314

09/05/2018. Por outro lado, na terceira e última comissão, a CDH, incluiu-se esta
matéria na pauta das reuniões extraordinárias, pelo menos, 5 vezes, havendo três
adiamentos, em 07/08/2018, 17/10/2018 e 06/02/2018, e duas vezes “retirado de pauta”,
em 30/10/2018 e 12/02/2020.
Para compreender melhor como funciona as votações de um projeto de lei nas
comissões em que uma determinada matéria é examinada, descrevi e analisei,
separadamente, em dois subtópicos, o que aconteceu em cada uma das duas únicas
ocasiões em que o “Estatuto do Cigano” foi votado no Senado Federal. Ao mesmo
tempo, tentei comparar com outras reuniões extraordinárias em que o PLS 248/2015
também esteve incluído na “pauta do dia” para ser deliberado, ainda que tenha sido
“adiada” ou “retirada de pauta”. Inspirado no que diz Peirano, “nunca é demais repetir
que a comparação é o caminho seguro para o refinamento teórico” (2002, p. 8).

- A 7ª Reunião Extraordinária da CE do ano de 2018

No dia 27 de maio de 2018, os Senadores e as Senadoras que compõem a


Comissão de Educação, Cultura e Esporte reuniram-se às 11:30 horas para discutir e
deliberar sobre as mais variadas matérias, entre elas, o “Estatuto do Cigano”, que
constava no sistema como o primeiro “item” a ser tratado, entre as 15 pautas do dia.
Esta reunião durou 1 horas e 6 minutos, aproximadamente. Tanto o número de pautas
previstas para este dia, assim como a sua duração ocorreram abaixo da média,
comparando com outras reuniões que observei. Na maioria das reuniões que assisti
estavam previstos mais de 20 itens a serem deliberados, algumas vezes chegando até
mais de 40, como ocorreu na 5º Reunião Extraordinária da CDH do ano de 2020.
De todo modo, nem todos itens inseridos entre as pautas das reuniões acabam
sendo deliberados no mesmo dia. Trata-se de uma regra. Entre as atividades que eu
acompanhei, a reunião mais longa teve duração de 2 horas, e ainda assim, seria
humanamente impossível dar conta de todas as pautas no mesmo dia. Isso porque, no
caso das propostas legislativas que estão em tramitação e são incluídas na pauta do dia
de uma determinada comissão, descrevendo de forma abstrata, primeiro demanda-se a
leitura do “relatório legislativo”, em seguida, coloca-se em “discussão” para depois ser
votado, pela aprovação ou rejeição.
As reuniões deliberativas das comissões do Senado, geralmente, acontecem às
manhãs, uma vez por semana, entre terças e quintas-feiras. O que não inibe de haver
mais de uma reunião extraordinária por dia ou por semana numa determinada Comissão.
315

E, pelo que presenciei, quando ocorre alguma atividade no turno da tarde nestes
espaços, são nas comissões mistas, que começam no máximo até às 15:30, uma vez que
as sessões no plenário do Senado, normalmente, estão marcadas para começar às 16:00
horas. Além disso, não é comum haver compromissos marcados para as segundas ou
sextas-feiras nas Comissões.
A principal sensação que tive ao passar algumas manhãs no Congresso Nacional
é em relação a sua intensidade, sobretudo, devido à quantidade exorbitante de atividades
que acontecem ao mesmo tempo. Inclusive, numa mesma manhã e num mesmo horário,
ocorre mais de uma reunião nas diferentes Comissões. Por essa razão, os parlamentares,
que integram, como titular ou suplente, diversas comissões de forma simultânea,
precisam inevitavelmente escolher qual das reuniões irá dar mais prioridade. Por
exemplo, durante o ano de 2020, o Senador Paulo Paim integrou simultaneamente 11
comissões; enquanto o Senador Telmário Mota fez parte de 22 comissões.
Além da 7º Reunião Extraordinária da CE do ano de 2018, que se iniciou às
11:30 da manhã, dia em que se votou o “Estatuto do Cigano” pela primeira vez no
Senado Federal, aconteceram outras quatro reuniões extraordinárias. Foram elas na
Comissão de Serviços de Infraestrutura, às 9:00; na Comissão de Assuntos Econômicos,
às 10:00; na Comissão de Meio Ambiente, às 10:30; na Comissão de Agricultura e
Reforma Agrária, às 11:00.
É importante ponderar que a presença de um determinado parlamentar, durante
uma manhã, no Congresso Nacional, não garante que este estará participando das
reuniões das comissões, uma vez que além destes momentos, há inúmeros outros
eventos e compromissos políticos que acontecem na sede do Poder Legislativo federal.
E, mesmo quando estão presentes nas reuniões das comissões, a impressão que eu tive é
que os parlamentares não ficam necessariamente concentrados acompanhando as pautas
que estão sendo discutidas. Provavelmente, podem estar resolvendo outras demandas.
No dia 18/02/2020, enquanto esperava o horário para me reunir com a assessoria
do gabinete do Senador Paulo Paim, acompanhei algumas atividades que estavam
ocorrendo no Congresso durante o turno da manhã. Nesta ocasião, chamou-se a atenção
o comportamento de uma deputada do Rio de Janeiro, que conhecia de vista, pelo fato
dela ter passado quase todo tempo em que esteve presente na Reunião da Comissão
manuseando o celular, poucas vezes direcionando o olhar para quem estava se
pronunciando na mesa ou no plenário. Um dos poucos momentos em que não estava
mexendo no aparelho telefônico foi quando realizou seu próprio discurso. Num
primeiro momento, não levei este fato tão a sério. Todavia, ao observar outras reuniões
316

das comissões, percebi que esta prática é extremamente comum, ou seja, o fato do
parlamentar, seja o que está presidindo ou aqueles que estão no plenário, passar a maior
parte do tempo realizando várias funções simultâneas. Praticamente o parlamentar não
se desconexa do celular, seja para mandar mensagens ou para atender ligações, usando
as mãos para abafar o som; interage com a sua assessoria, que cochicha em seu ouvido,
entra, sai, entrega papéis, solicita algumas assinaturas, depois volta com mais
documentos e assim por diante.
Há uma série de práticas e dinâmicas que acontecem ao longo das reuniões das
comissões que não estão abertas para improvisações, pelo contrário, seguem uma
liturgia rigorosa. Da forma que se inicia, até a maneira como se encerra. Porém, percebi
algumas variações no modo em que alguns procedimentos são realizados, sem perder de
vista a finalidade que exige o momento: deliberar sobre as pautas do dia. A flexibilidade
mais marcante que eu pude perceber ocorre no âmbito da ordem de como os itens do dia
são colocados em discussão pelo parlamentar que está presidindo a reunião. Em
nenhuma reunião que acompanhei se seguiu a ordem previamente estabelecida. Como
sugeriu o antropólogo Luiz Abreu, a descrição das atividades do Senado Federal
demanda dar ênfase ao “plano das regras e não das palavras” (1999, p. 51).
Todas as reuniões das comissões começam e terminam da mesma forma como se
sucedeu, por exemplo, a 7º Reunião Extraordinária da CE, do ano de 2018. Vejamos,
abaixo, como se procedeu este rito que se repete em todas estas ocasiões rigorosamente:
Senador Pedro Chaves: Pelo número regimental, eu declaro aberta a 7ª Reunião
Extraordinária da Comissão de Educação, Cultura e Esportes, da 4º Sessão Legislativa
ordinária, da 55ª legislatura. Antes de iniciarmos os nossos trabalhos, proponho a dispensa
da leitura e a aprovação das atas das reuniões anteriores. Os senhores Senadores e senhoras
Senadoras que aprovam queiram permanecer como se encontram (ninguém se opõe). As
atas estão aprovadas e serão publicadas no diário do Senado Federal:
[...]
Meus queridos amigos Senadores e ouvintes, encerramento. Convoco para o dia 3 de abril,
terça-feira, em caráter excepcional, às 11:30, reunião extraordinária desta comissão
destinada à deliberação de proposições. Nada mais havendo a tratar declaro encerrada a
presente reunião. Muito obrigado pela presença de todos. (BRASIL, 2018c)

Para dar início aos “trabalhos” da comissão, ou seja, a “deliberação de


proposições”, necessita-se que no começo da reunião seja registrado a presença de um
número mínimo de parlamentares para atingir o quórum. O que não significa que os
Senadores devem permanecer neste espaço ao longo das atividades realizadas para que
estas tenham validade. Ao analisar o “registro de presença” dos Senadores nesta 7ª
Reunião Extraordinária, percebi que este dado não correspondeu a participação efetiva
dos parlamentares nesta ocasião. Isto é, constou-se que 18 senadores participaram desta
reunião, mas ao assistir a gravação desta atividade, notei um número muito inferior que
317

estava de fato presente. Isto porque muitas proposições que demandam ser deliberadas,
entre requerimentos e matérias legislativas em “decisão não terminativa”, são
procedidas mediante uma “votação simbólica”, que não se verifica quantos e quem de
fato se posicionaram, favorável ou contrário ao relatório legislativo lido e colocado em
discussão, a exemplo de como se dispensa a leitura, assim como se aprova a ata das
reuniões anteriores.
É justamente na possibilidade de se proceder a maioria das deliberações
mediante votações simbólicas, por não exigir a presença física no plenário, que se
permite aos parlamentares estarem presente em diferentes compromissos no Congresso
Nacional concomitantemente, ou, darem conta de outras atribuições. Além disso,
interpreto também que é graças a esta metodologia que se garante a agilidade necessária
para se poder deliberar em face da grande quantidade alta de proposições previstas para
uma mesma ocasião. A maioria das proposições, quando não se exige “votação
nominal” ou quando não se trata de uma matéria “polêmica”, são aprovadas sem muitas
dificuldades, poucas vezes notei haver discussões, embates, até mesmo quando eu sabia
que existia divergência políticas entre os parlamentares presentes na “reunião”.
Neste dia 27/03/2018, embora o “Estatuto do Cigano” constasse como o
primeiro “item” a ser deliberado, o Senador Pedro Chaves inverteu algumas pautas do
dia e tratou primeiro de cinco outros projetos de lei e um requerimento. Isto é, antes de
discutir e aprovar o relatório do PLS 248/2015, o Senador Pedro Chaves apresentou ao
órgão colegiado a discussão dos seguintes projetos, nesta ordem: o PLS 339/2017, que
originalmente estava incluído como o quarto item do dia; o PLC 171/2017, previsto
para ser a segunda pauta do dia; o PLC 98/2017, acusado como ”extrapauta”; o RCE
18/2018, programado para ser o décima quarta pauta do dia, e, por fim, o PRS
24/201762, previsto para ser o terceiro item do dia.
Num primeiro momento, eu interpretei que as inversões de pauta aconteceram
para que o relator do “Estatuto do Cigano” na CE, o Senador Hélio José, que ainda não
se encontrava na sala onde acontecem as reuniões desta comissão quando iniciou a 7ª

62
O PLS 339/2017, que dispõe sobre o apoio financeiro da União aos Municípios e ao Distrito Federal
para ampliação da oferta da educação infantil, teve o relatório legislativo apresentado pelo Senador
Telmário Mota, favorável a matéria, aprovado. O PLC 171/2017, que propõe a promoção da cultura de
paz nas escolas, teve o relatório legislativo apresentado pela Senadora Simone Tebet, favorável a matéria,
aprovado. O PLC 98/2017, que propõe a instituição do Dia Nacional do Profissional de Comunicação de
Mídia Eletrônica e Mídia Digital, teve o relatório legislativo apresentado pelo Senador Telmário Mota
aprovado. O RCE 18/2018 propõe sobre a realização de audiência pública sobre a isenção em pagamentos
de taxar pelas Rádios Comunitárias, proposta da Senadora Fátima Bezerra. O PRS 24/2017, que propõe a
acrescentar as denominações Chico Mendes, José Antônio Kroeff Lutzenberger e Almirante Ibsen de
Gusmão Câmara às categorias Responsabilidade Ambiental, Gestão Sustentável e Inovação Ambiental,
respectivamente, do Prêmio Mérito Ambiental, teve o relatório legislativo da Senadora Fátima Bezerra
aprovado.
318

Reunião Extraordinária63, pudesse incorporá-la e ler o relatório do projeto. Ao comparar


esta ocasião com outras reuniões, me pareceu que os Senadores, o que preside a
comissão e o relator, podem ter combinado previamente a “inversão da pauta”, de forma
direta ou por meio da assessoria parlamentar que está acompanhando a atividade no
local.
Neste dia, houve duas inversões de pauta que foram solicitadas pela Senadora
Fátima Bezerra, que foram autorizadas pelo Senador Paulo Chaves, sem consultar os
demais parlamentares presentes. E, logo em seguida à aprovação deste pedido, o
Senador Hélio José, interrompendo o presidente da CE, pediu que o “item 1” da pauta
fosse tratado. E esta conduta é bastante comum, isto é, o fato do parlamentar, relator ou
autor de uma determinada proposição, se esforçar para que a pauta de seu interesse seja
deliberada e assim dar seguimento ao processo. Muitas vezes este permanece no local
até que seja dado o devido prosseguimento à proposição, e seguida pode até se retirar ou
se concentrar em outras funções enquanto permanece no local. Se o Senador ou
Senadora não chamar atenção para algum item que tenha interesse, pessoal ou em nome
de outro parlamentar, ou se não estiver presente fisicamente na reunião da comissão,
provavelmente a leitura, discussão e votação do relatório legislativo será “adiada”, que é
o que acontece em regra.
Para se poder ter uma ideia, analisei com mais atenção 14 reuniões
extraordinárias, tomando como base as ocasiões em que o PLS 248/2015 esteve incluído
na pauta do dia. Ao total, somando todas estas reuniões, foram incluídas 205
proposições que diziam respeito a projetos de leis, uma média de 15 por dia. Destes
itens, houve 139 adiamentos e 40 aprovações, sendo que apenas 16 se tratavam de
“decisão terminativa”. Além disso, ocorreram 2 “pedidos de vista”; 2 ocasiões em que o
relatório legislativo foi lido, porém “adiado” a discussão e votação; 8 vezes em que se
retirou de pauta; e, por fim, apenas uma rejeição do relatório legislativo que foi lido e
discutido.
No dia 27/03/2018, aproximadamente aos 40 minutos do início da 7ª Reunião
Extraordinária da CE do ano de 2018, o vice-presidente da comissão fez a leitura de um
breve resumo sobre a tramitação do “Estatuto do Cigano”, antes de passar a palavra para
o relator da matéria.
O Senador Hélio José cumprimentou o Senador Pedro Chaves e os demais
parlamentares, assim como saudou “todas as etnias ciganas aqui presentes”. Primeiro,

63
Com base nas gravações disponibilizadas, é possível perceber o momento que o Senador Hélio José se
integrou à Reunião, por volta dos 34 minutos, contando do seu início.
319

ressaltou que o projeto de lei em questão foi fruto de “várias audiências públicas nesta
Casa”. Após falar de forma espontânea, afirmou que faria “rápidas palavras, antes de ir
direto ao ponto”, e passou a ler, literalmente, o relatório, por volta de oito minutos.
Após finalizar a leitura do documento, o relator chamou de “intenso trabalho” o diálogo
com o “governo federal” e as “representações ciganas”, propondo o “prosseguimento da
matéria às outras comissões por não ser terminativo”. Ao “colocar em discussão a
matéria”, a primeira pessoa a falar, praticamente interrompendo o vice-presidente da
Comissão, foi a Senadora Fátima Bezerra, que discursou por três minutos64. Em seguida,
a Senadora Lídice da Mata (PSB/BA), que se pronunciou por quase um minuto65
(BRASIL, 2018c).
Após as participações da Senadora Fátima Bezerra e da Senadora Lídice da
Mata, o vice-presidente da comissão abriu mais uma vez a possibilidade para a
“discussão” da matéria. Em poucos segundos, como nenhum parlamentar pediu a
palavra, o Senador Pedro Chaves declarou “encerrada a discussão”. Imediatamente este
falou: “em votação, o relatório. Os senhores Senadores e Senadoras que aprovam o
relatório queiram permanecer como se encontram”. Todos e todas que estavam
presentes não saíram do lugar, continuaram sentados. “Resultado, aprovado o relatório
(aplausos e gritos)66 que passa a constituir relatório favorável ao projeto com as
emendas 1CE à 9CE, matéria vai para a Comissão de Assuntos Sociais. Parabéns ao
povo cigano”, encerrou o Vice-Presidente da Comissão, dando seguimento às demais
pautas. Ou seja, o “relatório legislativo” apresentado pelo Senador Hélio José foi
aprovado de forma unânime, mediante votação simbólica (BRASIL, 2018c).
64
Ao longo do seu pronunciamento, a Senadora Fátima Bezerra afirmou que o projeto de lei é “muito
importante, de fazer justiça, um povo que historicamente foi abandonado, foi desrespeitado,
historicamente foi marginalizado”. Pontuou que o povo cigano “tem uma rica cultura, uma rica história e
que merece, portanto, de acordo com nossa constituição, ser tratado com dignidade. O Estatuto vem nessa
direção. Temos o estatuto do idoso, ECA, tá na hora sim do Estatuto do Cigano”. Ressaltou também, em
seu discurso, “a sensibilidade do governo que o presidente Lula teve, e o governo da presidenta Dilma,
pelo quanto nesse período, foi possível dar passos para reivindicações históricas dadas pelo povo cigano”.
Em seguida, afirmou que “vota a favor do projeto, sem prejuízo”. Ao finalizar sua fala, fez a seguinte
declaração: “o importante é que tenhamos o projeto aprovado fruto do entendimento dos povos ciganos e
expresse aquilo que eles querem, e para nós que dialogue, e promova ao povo cigano dignidade, respeito
e direitos” (BRASIL, 2018c).
65
Durante o seu breve discurso, a Senadora Lídice da Mata parabenizou o Senador Hélio José pelo
trabalho e afirmou que acompanha o desenvolvimento do projeto desde o início. Nas suas palavras: “esse
projeto exige negociação, e o senador fez de uma forma absolutamente correta, e atendendo aos pleitos
de diversos segmentos, especialmente dos povos ciganos” (meu destaque). Ao encerrar sua fala fez uma
saudação, mais vez, ao relator e também ao autor do projeto de lei, afirmando ser favorável à aprovação
do relatório (BRASIL, 2018c).
66
As gravações disponibilizadas pela TV Senado não me permitiram identificar de onde partiu os
“aplausos e gritos”, pois filmou apenas o Senador Pedro Chaves enquanto falava. Todavia, como observei
também as fotografias desta reunião extraordinária, notei que a família de Seu Wanderley, 4 adultos e três
crianças, estavam presentes, acompanhando a votação no fundo do plenário. Por isso, deduzo que esta
comemoração, calorosa, partiu deles.
320

Recapitulando, o “PLS 248/2015”, que seria a primeira “pauta” do dia a ser


deliberada, foi, na prática, o sexto “item” da reunião extraordinária que foi discutido e
votado. A apresentação do relatório legislativo, a discussão e a votação da matéria, ao
total, duraram em torno de 14 minutos.
Logo depois dos Senadores terem deliberado sobre o “Estatuto”, o Senador
Paulo Chaves pediu que a Senadora Lídice da Mata o substituísse na condução da
reunião, uma vez que o presidente da CE não se encontrava no local. Esta Senadora se
deslocou do “plenário” à “mesa” e passou a conduzir a reunião, tratando apenas do
“item 3”, enquanto o então vice-presidente parecia estar resolvendo outras questões,
pois, um assessor legislativo entregava alguns papéis, pastas, falava em seu ouvido, ia e
voltava, num intervalo de poucos segundos. Inclusive esta movimentação do assessor
aconteceu praticamente ao longo de toda a reunião do dia 27/03/2018.
Após a Senadora Lídice da Mata conduzir a discussão e votação do “PRS
24/2017”, o Senador Paulo Chaves, a agradeceu, e retomou a função anteriormente
exercida. Sem esclarecer as razões, anunciou o fim da reunião e o adiamento das
deliberações para a próxima reunião extraordinária, marcada para dia 03/04/2018. Não
se especificou, de forma expressa, os itens cujas deliberações foram adiadas.
Com base nas gravações desta e outras reuniões extraordinárias das comissões
do Senado, interpreto que por pouco a votação do “Estatuto” não foi adiada novamente,
caso o Senador Hélio José não tivesse se manifestado. Ressalto também que nem todos
os assentos do plenário estavam ocupados, contudo havia muitas pessoas nas laterais e
no fundo do ambiente acompanhando a ocasião, alguns em pé e outros sentados em
cadeiras improvisadas, inclusive representações ciganas. Por isso, especulo que a
presença dos integrantes da ANEC, conforme destacado pela assessora da liderança do
PT no Senado entrevistada por mim, pode ter contribuído para pressionar a discussão e
votação do PLS 248/2015, que foi a penúltima matéria deliberada no dia 27/03/2018.

- A 15ª Reunião Extraordinária da CAS do ano de 2018

Os parlamentares que integram a Comissão de Assuntos Sociais do Senado


Federal reuniram-se às 09:00 horas, no dia 09/05/2018, para discutir e deliberar sobre as
mais diversas proposições do dia, entre elas, o “Estatuto do Cigano”, programado para
ser o segundo ponto a ser tratado por este órgão colegiado, entre as 14 matérias, sendo
que dois itens foram incluídos enquanto “extrapauta”.
321

Assim como na 7º Reunião Extraordinária da CE, percebi um número de itens


abaixo da média, o que pode estar relacionado ao fato de 2018 ser um ano eleitoral.
Mesmo não havendo previsão regimental para a interrupção, suspensão ou diminuição
das atividades legislativas, na prática, trata-se de um período menos produtivo. Isto
porque muitos parlamentares estão envolvidos, direta ou indiretamente, nos pleitos, seja
buscando reeleição, seja se candidatando para a chefia do Poder Executivo, ou para
apoiar outros candidatos de quem seja aliado, razões estas que cito em caráter
explicativo não exaustivo, pois pode haver outras possibilidades. A título de exemplo, o
Senador Paulo Paim, enquanto presidia a 5ª Reunião Extraordinária da CDH, fez a
seguinte afirmação, ao pedir que os demais parlamentares permanecessem na sala:
“2020 é um ano curto para nós por conta das eleições”.
Observem, abaixo, um gráfico formulado pelo próprio Senado Federal acerca da
quantidade de matérias que são apreciadas por ano:

Imagem 26 - Matérias apreciadas por ano da decisão

Fonte: Senado Federal (BRASIL, 2020l).

Como se pode perceber, nos anos de 2018 e 2016, quando ocorreram,


respectivamente, as eleições gerais e municipais, houve uma diminuição de matérias
aprovadas, levando em consideração o Senado Federal como um todo. No caso das
comissões, também não foi diferente. No ano de 2015, 106 matérias foram aprovadas e
50 rejeitadas; em 2016, 57 matérias aprovadas e 20 rejeitadas; em 2017, 116 matérias
aprovadas e 26 rejeitadas; em 2018, 81 matérias aprovadas e 37 rejeitadas; e, em 2019,
108 matérias aprovadas e 14 rejeitadas.
Por sua vez, ao se observar tramitação do “Estatuto do Cigano”, percebe-se que
as duas únicas votações concluídas ocorreram justamente em ano eleitoral, em 2018, ao
passo que em 2019, quando não estavam previstas nenhuma eleição, praticamente não
322

houve deliberação envolvendo o PLS 248/2015, que sequer foi incluído nas pautas das
reuniões da CDH, onde deve ser votado em “decisão terminativa”.
Voltando a ocasião em que se votou pela segunda vez o PLS 248/2015 no
Senado, a 15º Reunião Extraordinária da CAS, referente ao ano de 2018, teve duração
de 1 horas e 20 minutos, aproximadamente. Iniciou-se com os esclarecimentos da
presidente da comissão, a Senadora Marta Suplicy (MDB/SP), sobre as atribuições e as
questões que seriam deliberadas no dia, destacando haver “três itens não terminativos” e
“nove itens terminativos, conforme pauta previamente divulgada”. Antes de dar início à
deliberação das “pautas”, a presidente da Comissão fez a leitura de alguns informes
(BRASIL, 2018d).
Nesta reunião, a leitura, discussão e votação do relatório legislativo sobre o
“Estatuto do Cigano” estava programada para ser o segundo “item da pauta do dia”. No
entanto, a presidente da comissão em exercício verbalizou que iria esperar o Senador
Otto Alencar (PSD/BA) se integrar à reunião, pois, a primeira pauta do dia era de
relatoria deste parlamentar. As atividades desta comissão ficaram interrompidas por,
aproximadamente, um minuto, até que uma servidora entregou um conjunto de papéis à
Senadora Marta Suplicy. Tratava-se do “RAS 11/2018”, requerimento “extrapauta” para
realização de audiência pública, proposta pela Senadora Ana Amélia (PP/RS). Mais
uma vez esta Senadora que presidia a reunião da comissão expressou que faria a leitura
do requerimento “enquanto aguardamos o Senador Otto Alencar que é o primeiro item
da pauta” (BRASIL, 2018d).
Em outras reuniões que analisei, percebi que as pautas são invertidas sem
necessariamente expressar que o propósito é ganhar tempo para que um determinado
parlamentar pudesse se incorporar à reunião. Na prática, esta intenção fica implícita.
Notei que os parlamentares que presidem as comissões gozam de ampla liberdade para
conduzir as suas atividades. Esta discricionariedade pode ser percebida, por exemplo,
quando um mesmo parlamentar propõe votação do plenário para inverter a ordem ou
para incluir um item “extrapauta”, e em outras situações simplesmente altera a ordem
das deliberações sem consultar os pares.
Então, com a chegada do parlamentar que se aguardava, deu-se prosseguimento
às “pautas” do dia, seguindo a ordem programada, inicialmente, no que tange aos três
primeiros itens do dia, que eram “não terminativo”, sem haver deliberação nas pautas
que demandam votação nominal, que foram, tacitamente, adiadas.
Aproximadamente aos 36 minutos que a reunião do dia 09/05/2018 havia se
iniciado, a Senadora Marta Suplicy fez uma breve leitura sobre a tramitação do PLS
323

248/2015. Em seguida, como é de praxe, passou a palavra para o relator da matéria, o


Senador Hélio José. Este fez uma saudação aos parlamentares presentes enquanto
falava, recebia um conjunto de papéis da sua assessora e passou o documento que estava
segurando para o Senador Paulo Paim, autor do projeto de lei, para também acompanhar
a leitura da relatoria. Assim como na 7ª Reunião Extraordinária da CE, fez a leitura do
relatório apresentado à CAS.
O Senador Hélio José levou em torno de 29 minutos abordando a pauta do
“Estatuto do Cigano”. Após usar boa parte deste tempo para fazer a leitura, fez a
seguinte declaração: “fizemos um trabalho incessante com os órgãos governamentais,
responsáveis pelo Ministérios da Saúde, dos Direitos Humanos e o Ministério da
Justiça, exatamente para garantir que não houvesse óbices a este importante projeto da
etnia cigana”. Ao usar o verbo “fazer” na primeira pessoa do plural, este relator deixou
claro que se tratou de “trabalho” realizado em conjunto com o autor do projeto de lei.
Em seguida, ressaltou o compromisso do Senador Paulo Paim com as causas indígenas,
dos “adolescentes”, das pessoas portadoras de deficiência, dos idosos, pontuando que a
apresentação da proposta do “Estatuto do Cigano” decorreu de um “sem números de
audiências públicas”. Ao se referir ao relatório legislativo, afirmou que “chegamos
consensualmente com as etnias e com o governo a esse parecer a qual esperamos que os
colegas possam dar prosseguimento” (BRASIL, 2018d).
“Lido o relatório, está em discussão, Senador autor do projeto, Paulo Paim”,
anunciou a presidente da CAS. Este parlamentar discursou, aproximadamente, três
minutos. Reproduzi abaixo alguns trechos do seu discurso, tendo em vista que é feito
um resgate da memória de como a discussão pela criação do “Estatuto do Cigano”
chegou ao Senador. Vejamos:
Senador Paulo Paim: Presidenta Marta Suplicy, pela importância do tema, eu faço um
pouco uma viagem no tempo, e me lembro que estávamos no Plenário do Senado,
discutindo o Estatuto do Idoso, da Igualdade Racial, da Criança e Adolescente, e uma
senhora vestida de cigana levanta e diz ‘muito bonito, né Senador’. Ela fez uma crítica.
‘Eu quero saber como fica a situação dos ciganos, nós somos um povo invisível’. E
aquilo de fato mexeu comigo. Em seguida conversamos com ela, isso faz uns 10 anos.
[...] Ela mesmo me lembrou do artigo 5º da Constituição onde diz ‘todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade’. Também me disse que a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, OIT, sobre povos indígenas e tribais, adotada
em Genebra, em 27 de junho de 89, promulgada no Brasil por Decreto 5051, 19 de abril
de 2004, estabelece que os governos devem assumir a responsabilidade de desenvolver a
participação dos povos interessados. Eu vou simplificar. [...] O Ministério Público
Federal marcou um ciclo de debates a partir desse seu relatório (apontando para o
Senador Hélio José), eles pretendem visitar todos os estados, onde existe a etnia cigana,
apresentando o relatório do Senador Hélio José, que já tem um grande entendimento.
Mas eles querem ouvir a participação deles e como o projeto vai para a Comissão de
Direitos Humanos. Eu me comprometo que vossa excelência seja também relator lá,
324

eles querem fazer esse debate no mês de maio e no máximo junho. Então, nós
poderíamos fazer ainda neste semestre a votação final. Faço um apelo que a gente vote o
projeto aqui, não é terminativo, vai ter um ciclo de debate, provavelmente com a
participação do relator (e aperta, com força, a mão do Senador Hélio) (BRASIL, 2018d).

A Senadora Marta Suplicy, após pronunciamento de Paulo Paim, imediatamente


passou a palavra para o Senador Otto Alencar, que falou por, aproximadamente, 4
minutos67. Ao retomar a fala, a presidente da CAS parabenizou os parlamentares
envolvidos na proposta de criação do Estatuto do Cigano e, como é de costume,
anunciou a votação. “Passemos então à votação. Encerrada as discussões, os senhores
Senadores que aprovam permaneçam como se encontram. Aprovado (palmas) projeto
que segue para a CDH e passa a constituir então o parecer favorável ao Projeto de Lei
do Senado 248, de 2015”, anunciou a presidenta da Comissão em exercício.
Nesta reunião extraordinária, registou-se, formalmente, a presença de 20
Senadores e Senadoras que integram, como titular ou suplente, a CAS, mas, na prática,
como pontuei no subtópico anterior, havia uma quantidade inferior de parlamentares
presentes, fato que inviabilizou, assim, a votação de oito itens programados para este
dia, que tinham caráter de “decisão terminativa”, o que exigia a presença física dos
Senadores no plenário. Recapitulando, o “PLS 248/2015”, que seria a segunda “pauta”
do dia a ser deliberada, foi, na prática, o terceiro “item” que foi discutido e votado. A
apresentação do relatório legislativo, a discussão e a votação da matéria, ao total,
duraram por volta de 36 minutos.

4.1.5 - Pausa para uma análise sobre a questão do tempo

Em princípio, é importante dizer que a presente pesquisa empírica, viabilizada


pela etnografia da tramitação do PLS 248/2015 no Senado, possibilitou-me
problematizar o fator do “tempo” na criação de uma lei, que é fundamental para
compreender o processo do Estatuto do Cigano.
Dessa forma, lanço aqui as seguintes indagações para auxiliar as reflexões deste
subtópico: qual deve ser a duração de um processo legislativo, isto é, quanto tempo se
leva para aprovar um projeto de lei no Brasil? Quanto tempo um parlamentar designado

67
Este parlamentar, primeiramente, parabenizou o Senador Paulo Paim pela “iniciativa” e também o
relator da matéria. Ao longo da sua fala, o Senador Otto Alencar destacou que o seu estado, a Bahia, é
onde há umas das populações ciganas mais expressivas no Brasil e compartilhou impressões pessoais no
Plenário, afirmando que os ciganos estão integrados aos municípios que vivem, se referiu ao cantor
“Tayrone Cigano, que é um craque lá na Bahia, que faz shows”, a presença de vereadores ciganos,
ressaltou que “eles possuem uma cultura milenar” e que “infelizmente sofrem muita discriminação”. Por
fim, manifestou apoio a aprovação do projeto, alegando também que os ciganos do seu estado são
importantes para a economia, havendo muitos fazendeiros e produtores rurais.
325

para exercer a função de relator tem para apresentar o seu parecer? Qual o intervalo de
tempo entre a apresentação do relatório legislativo e a votação da matéria? Em caso do
relator retirar de pauta um projeto de lei para reexame, em quantos dias este parlamentar
teria que devolver a proposição para ser apreciada pelos seus pares? Acontece que as
respostas para entender tais problematizações não são facilmente obtidas a partir da
leitura dos regimentos internos do Congresso ou estão dispostas expressamente em
algum manual sobre o funcionamento do Poder Legislativo. Na prática, poucos
procedimentos possuem um prazo a ser cumprido que esteja estabelecido de forma
prévia, sobretudo quando se trata de uma decisão política a ser tomada.
Por exemplo, o Regimento do Senado, por meio do art. 122 § 1º, determina
prazos específicos para que outros parlamentares apresentem emendas ao projeto de lei
submetido à apreciação da “Casa”, todavia não informa o prazo de uma série de atos
que são cruciais para o andamento do processo. Não há nenhuma previsão formal
quanto ao tempo que o relator de uma determinada proposição deve cumprir para emitir
o relatório legislativo pelo qual foi designado, podendo levar dias, semanas, meses ou
anos. Da mesma forma que na maioria dos casos o presidente de uma comissão temática
não está vinculado a nenhum prazo expresso para colocar um projeto de lei em pauta e
ser então apreciado pelos parlamentares que compõem o órgão colegiado.
Motivado pelas reflexões de Vera Telles (2015), é possível afirmar que o Estado
na prática legislativa é também permeado por fronteiras porosas entre o formal e o
informal, entre normas explícitas e implícitas. Isto porque em geral os regimentos
internos do Congresso, das Assembleias ou das Câmaras de Vereadores não dispõem de
forma taxativa qual deve ser a duração de cada ato que se demanda num processo
legislativo, delimita alguns e deixa em aberto outros. Este fator permite apontar para a
possibilidade dos usos do tempo como estratégia nas relações de poder no âmbito da
criação de leis. E falo em relações de poder levando em conta o pensamento
foucaultiano, porque as variações na duração do processo legislativo encontram muitas
vezes resistências, geram tensionamentos entre as múltiplas partes envolvidas, sejam
entre os parlamentares, sejam entre os setores sociais interessados na aprovação, assim
como entre as instituições. Foucault (2001) não só diz que a resistência antecede a
relação de poder, como também que não existe poder sem resistência.
Tais tensionamentos decorrem justamente da instabilidade e das disputas que
atravessam a questão do tempo no processo legislativo. Levando em conta o objeto de
estudo desta tese e os dados etnográficos produzidos, posso dizer que a expectativa dos
movimentos ciganos quanto à duração do processo entra em colisão com a dinâmica e o
326

próprio funcionamento do Congresso Nacional. Além da pressão dos grupos ciganos, os


parlamentares mais diretamente envolvidos, como o autor do projeto e os eventuais
relatores, em alguma medida também desejam que haja agilidade na tramitação, uma
vez que sendo aprovada a proposição legislativa, este feito entrará na conta das
conquistas dos mandatos dos respectivos Senadores.
Por outro lado, a exigência da “consulta pública” para aprovação do PLS
248/2015 na última comissão onde este tramita, conforme cobrado e formalizado pela 6ª
Câmara do MPF em documento encaminhado ao Senado, em agosto de 2018, questão
que discorri no subtópico “4.1.2”, também esbarra na questão da possibilidade de
prolongamento do processo, tendo em vista que se trata de um procedimento inédito e
que ao mesmo tempo vai demandar ações que certamente irão adiar a votação na CDH.
As ausências de movimentações para discutir e viabilizar a “consulta”, até
meados de agosto de 2020, por parte dos parlamentares, podem ser interpretadas como
uma relutância destes atores. Rememorando que as primeiras conversas institucionais
com a participação de pessoas vinculadas ao Senado para tratar da “consulta” foi
provocada por uma associação cigana do estado de Minas Gerais que não participou das
primeiras articulações pela criação do “Estatuto”. Sendo que a ANEC, associação
proponente do PLS, passou a apoiar tal demanda apenas em seguida, e ainda assim
externando a preocupação com o tempo do processo. Inclusive um dos assessores
parlamentares que conversei informalmente durante o trabalho de campo se queixou
desta demanda, afirmando que a exigência da consulta “vai atrasar mais ainda a
aprovação do projeto”, nas suas próprias palavras. O que prova que há sim resistência
com relação a esta pauta, sendo a questão do tempo acionada para justamente tensionar
sobre a realização da “consulta”.
Em outras palavras, tenta-se ou pelo menos tentou-se estabelecer o seguinte
código moral no âmbito da tramitação do PLS 248/2015: independente da exigência
legal da consulta, conforme previsto na Convenção 169 da OIT; apesar desta oitiva
poder ser uma oportunidade de ampliar o debate sobre o “Estatuto do Cigano”,
envolvendo os destinatários do projeto de lei, deve ser a questão temporal o parâmetro a
ser sobreposto em face disso tudo. Para Foucault, as regras e valores que compõem o
código moral nem sempre estão explicitamente formulados numa doutrina coerente e
num ensinamento explícito. Acontece “também delas serem transmitidas de maneira
difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo
de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo,
assim, compromissos ou escapatórias” (2001, p. 26).
327

Os questionamentos em relação à “consulta”, assim como em face do “tempo”


no processo do “Estatuto do Cigano” possibilitam também a mobilização da abordagem
da moral em Foucault pois esta é compreendida enquanto comportamento real dos
indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos:
designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos
completamente a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou
resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou
negligenciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da moral deve
determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de
transgressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um
sistema prescritivo que é explícita ou implicitamente dado em sua cultura, e
do qual eles têm uma consciência mais ou menos clara. Chamemos a esse
nível de fenômenos a ‘moralidade dos comportamentos’. (2001, p. 26 )

Portanto, a moral é considerada ora como código, ora como comportamento,


reproduzindo, em ambas as situações, os saberes e os poderes como práticas
determinantes da história. E, no final das contas, tais jogos, entre fazer ou não a
“consulta”, ou até mesmo a demora - de aproximadamente dois anos - para os atores do
Senado se pronunciarem sobre esta questão, após a provocação inicial do MPF, podem
ser encarados como ingredientes que compõem as relações de poder no processo do
“Estatuto do Cigano”. Sendo que a luta pela realização da “consulta” ou as pressões
quanto aos usos do tempo no processo legislativo não seriam propriamente o de atacar
instituições ou grupos determinados, mas acima de tudo de se opor a forma posta como
se entende que deve ser criada uma lei que tem como destinatária povos e comunidades
tradicionais.
Na medida em que esta pesquisa identificou a presença de variados atores
sociais que integram as negociações e atividades relacionadas à tramitação do PLS,
percebeu-se também que cada um deles possui, reivindica e vivenciam distintas
concepções do “tempo”, sobretudo em face de um processo legislativo. Uma vez que, de
modo geral, há diferentes perspectivas acerca do “tempo”, entre os próprios
parlamentares de uma mesma “Casa”, entre os Senadores e os Deputados, que
respectivamente possuem 8 e 4 anos de mandato, entre estes agentes públicos e o Poder
Executivo, assim como para outros atores, ligados ou não à burocracia estatal. São jogos
de força que se manifestam na trama do “Estatuto”, sendo fundamental, portanto,
compreender sobre seus significados, tanto para a produção dos direitos dos povos
ciganos no Brasil, como também para a “criação de leis” como um todo.
Voltando à questão mais ampla sobre o funcionamento das comissões temáticas
do Senado, embora haja uma liturgia por trás de praticamente todos os atos que são
praticados nas reuniões, nem sempre estes coincidem entre si. Como se declara aberta a
328

“reunião”; qual o procedimento adotado para validar a ata do encontro anterior, se


começará com a leitura dos informes ou comunicados da casa, de que maneira os itens
do dia são conduzidos e quais os procedimentos adotados para inverter a pauta ou
incluir um novo item; quem participa destas reuniões; qual a média de matérias e
proposições que são incluídas na pauta do dia, quais destas são abordadas e deliberadas,
e por quais razões não chegam a ser tratadas. Da mesma forma que a duração dos
procedimentos em diferentes proposições legislativas não se equiparam. Alguns leitores
podem estar se questionando: e o que tudo isso teria haver com a tramitação do “PLS”?
Para o “Estatuto” ser aprovado, este projeto de lei precisa, primeiro, passar pelas
comissões do Senado. Por isso, é de extrema importância entender como estes órgãos
colegiados funcionam, assim como refletir sobre a questão do tempo no processo
legislativo. Nesse sentido, a partir de alguns estranhamentos que tive em relação à
tramitação do “PLS”, eu passei a disciplinar meu olhar e minha escuta para analisar com
atenção o que realmente acontece nas reuniões das comissões do Senado Federal em via
de regra, não se limitando ao processo do “Estatuto”. E quais estranhamentos eu me
refiro? Por exemplo, os “adiamentos” nas discussões e votações de um determinado
item incluído na pauta da reunião, assim como as dificuldades para se alcançar o
“quórum”, quando se trata de matérias em “decisão terminativa”. Em alguma medida,
todos estes questionamentos envolvem o aspecto temporal na “criação de uma lei”.
Há milhares de projetos de lei assim como outras proposições de diferentes
naturezas que tramitam, simultaneamente, no Congresso. E quando eu digo “milhares”
não é exagero. E cada proposição tem uma vida própria, até mesmo um simples projeto
de lei que propõe a mudança ou denominação de trecho de uma rodovia federal ou a
instituição de uma data cívica, precisam seguir uma ritualística. De modo geral, reparei
uma tendência nas reuniões que ocorrem nas comissões do Senado: a grande maioria
das matérias que são incluídas nas pautas destes espaços não chega sequer ser
deliberada, acabam sendo adiadas, uma minoria é aprovada. E esta dificuldade não
ocorre por existir divergência entre os parlamentares, levando à rejeição do projeto, mas
sim por não haver força ou vontade política suficiente para garantir a sua apreciação.
Acontece que a inclusão de um projeto de lei entre os “itens de pauta” que serão
tratados numa determinada reunião não garante a sua deliberação neste mesmo dia. Há
muitas variáveis, entre elas, o papel desempenhado pelo parlamentar que preside a
reunião, que definirá praticamente todas as dinâmicas deste momento, a começar pela
ordem em que os itens são abordados. Assim como os atos praticados pelos
parlamentares situados no plenário da comissão, que na maioria das ocasiões precisam
329

lutar para que os projetos de seus interesses sejam colocados em pauta pelo presidente
da comissão. Ressaltando que a flexibilidade deste “ritual” reside na sequência e no
momento em que se coloca em pauta os itens previstos para uma determinada reunião, e
não no modo em que se dá as deliberações, que necessariamente envolvem três atos: a
leitura do relatório legislativo, a discussão da matéria, e, por fim, a votação68.
Em outras palavras, embora a cada reunião sejam incluídas dezenas de
proposições a serem deliberadas, na prática, boa parte das decisões acabam sendo
adiadas. Adiamentos que acontecem, sobretudo, pelas próprias condições das reuniões,
que num tempo curto e limitado, precisam tomar decisões sobre inúmeras matérias
legislativas, de diferentes naturezas. Portanto, é possível dizer que a flexibilidade do
“ritual” de funcionamento das comissões se dá sobretudo na gestão do tempo, o que
leva muitas vezes uma proposição legislativa sequer ser apreciada na primeira comissão
onde deveria ser votada. Uma singela metáfora pode nos ajudar a entender esta
inferência, o caso das tartarugas marinhas: a cada mil que nascem, algumas dezenas
conseguem chegar ao mar, contudo apenas uma ou duas sobrevivem - da mesma forma
enxergo as propostas legislativas.
Como pontuaram os assessores dos Senadores Paulo Paim e Telmário Mota, em
suas avaliações sobre o processo legislativo em tela, durante o encontro organizado pelo
movimento cigano em 20/08/2020, não há resistência dos parlamentares em relação ao
“Estatuto do Cigano”, a dificuldade para aprová-lo reside na própria articulação política.
A princípio, interpretei esta ponderação como uma tentativa de transferência de
responsabilidade para os atores ciganos envolvidos ou interessados na tramitação do
PLS 248/2015, para que estes mobilizem os parlamentares a darem atenção a tal matéria
quando esta estiver em pauta. Por outro lado, a pesquisa de campo me fez perceber que
a referida ponderação dos assessores também possui um fundo de veracidade, tendo em
vista que há uma dispersão no movimento cigano, além das disputas políticas entre as
lideranças e associações, como apontei no subtópico “2.1.1”, questão que irei explorar
mais na segunda parte deste capítulo.
Com base nas observações, comparações e análises que promovi em face das
reuniões das comissões do Senado, posso afirmar que a matéria do PLS 248/2015, de
fato, não desperta profundas tensões entre os parlamentares. Para sustentar esta
conclusão, destaco um episódio da reunião do dia 25/04/2017, realizada na CE, em que
mais de uma vez uma Senadora insistiu para que uma determinada matéria do seu

68
É possível que a leitura, discussão e votação não ocorram no mesmo dia, o que significa o adiamento da
deliberação sobre a matéria.
330

interesse fosse deliberada naquele momento, com rapidez, e fez o seguinte apelo: “não é
polêmica, presidente, não se preocupe”. Ou seja, o ponto que eu queria chegar ao
resgatar este episódio é dizer que o “Estatuto do Cigano” também não é uma matéria
polêmica, diferentemente de projetos ou pautas que envolvem temáticas tais como
direitos reprodutivos das mulheres, questões trabalhistas ou previdenciárias. Na lógica
suscitada pela referida parlamentar, se uma proposição legislativa não é “polêmica”,
logo não seria necessário tomar muito tempo com debates, podendo ser votada com
“agilidade” assim que a matéria é colocada em pauta.
Por isso, além da questão do “tempo”, um dos principais desafios para aprovar o
“Estatuto do Cigano” consiste em mobilizar um quantitativo mínimo de Senadores para
estar presente no momento que este for colocado em votação pela presidência da
comissão e, assim, alcançar o “quórum” que se demanda nas “decisões terminativas”, o
que não é tão simples, uma vez que este projeto não tramita sozinho, pelo contrário,
concorre com dezenas e centenas de outras matérias que também estão sendo
deliberadas em comissões diferentes ou disputando a atenção do parlamentar que pode
estar envolvido em outro compromisso que este avalie ser mais relevante. Para se ter
uma ideia da dimensão desta dificuldade, na reunião da CE que ocorreu no dia
19/09/2017, a presidente da comissão em atividade fez vários apelos para que os
parlamentares não saíssem do local para se obter o “quórum” necessário para deliberar
as matérias em “decisão terminativa”, que, ao ser alcançado, gerou aplausos e gritos de
comemoração no local.
Para compreender o papel dos parlamentares nas práticas legislativas, citando
mais uma vez Foucault, que concluiu que a moral pode ser apreciada tanto como
código, tanto como comportamento, refletindo, os dois, os saberes e os poderes, é
necessário esclarecer como este autor entende que deve ser a constituição de um
“sujeito moral”, que implica algo mais
Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode
medir a essa regra. Mas, outra coisa ainda é a maneira pela qual é necessário
‘conduzir-se’ - isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como
sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que
constituem o código. Dado um código de ação, e para um determinado tipo
de ações ( que se pode definir por seu grau de conformidade ou de
divergência em relação a este código), existem diferentes maneiras de ‘se
conduzir’ moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo que age, de
operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa
ação. (2001, p. 27, grifo dos autores)

Pensando nos jogos de poder que se manifestam no Congresso Nacional e em


especial no processo de construção político jurídico do “Estatuto do Cigano”, estas
“maneiras” devem ser entendidas como um conjunto de práticas refletidas e voluntárias
331

através das quais os parlamentares e todo conjunto de pessoas que trabalham neste
ambiente ou que de algum modo atuam na tramitação do PLS 248/2015, que são
sujeitos morais, fixam as regras de conduta, procurando igualmente “se transformar”,
assim como intervir na realidade que estão inseridos.
Pode parecer óbvio o que vou afirmar agora, mas para se atingir o “quórum” nas
votações nominais que ocorrem nas comissões, demanda-se, sobretudo, que os
parlamentares mantenham, minimamente, relações amistosas entre si, mesmo que
estejam em polos ideológicos distintos, ou quando vivenciam disputas políticas em
outros espaços. É necessário muitas vezes sensibilizar o Deputado ou Senador a dedicar
parte do seu escasso tempo a participar ou permanecer na reunião até uma determinada
matéria ser colocada em pauta, diante das inúmeras atividades que acontecem
simultaneamente no Congresso Nacional. Ou seja, constrói-se dia a dia um código
moral para reger as relações e as práticas estatais no exercício legislativo, que não é
estático, pelo contrário, é dinâmico e instável.
Não foi raro os momentos em que eu observei e, em primeira mão estranhei,
parlamentares de forças políticas opostas, tomando como base, por exemplo, o
impeachment da Presidenta Dilma, a votação da “reforma trabalhista” ou a redução da
maioria penal, dialogando de forma harmônica, sentados um ao lado do outro, entre
risos, abraços, gentilezas, quando se está discutindo e deliberando matérias “não
polêmicas”, que é o caso do “Estatuto do Cigano”. Trata-se do “reconhecimento
empírico de que a ambigüidade é constitutiva da política” (ABREU, 2000, p. 51).
“Se política é troca, quem não tem o que trocar não faz política” (ABREU, 2000,
p. 262). Há infinitas possibilidades de trocas no Congresso Nacional, entre os
parlamentares, entre estes e o governo federal, e assim por diante. Por isso deduzo que
contribuir para que haja “quórum” numa determinada votação de autoria ou relatoria de
outro parlamentar, mesmo que seja um adversário político em diferentes agendas, faz
parte das trocas, mesmo que sutis, que permeiam o jogo político das atividades
desenvolvidas no Poder Legislativo. Diferentemente de como vislumbra o imaginário
popular, as trocas na política vão além da indicação de cargos ou do apoio para as
eleições internas das Casas legislativas. Portanto, é perfeitamente possível a
mobilização dos usos do tempo nas moedas de trocas que ocorrem no Congresso
Nacional, seja para acelerar a tramitação de um projeto de lei, seja para retardar a
deliberação sobre uma determinada matéria em discussão.
Não há dúvidas que o parlamentar que preside uma reunião extraordinária ou
uma sessão do plenário desempenha diversas atribuições, sendo o controle do tempo a
332

forma mais eficiente de exercer o seu poder. Uma vez que é este que organiza a ordem
da pauta a ser discutida, o que e quando é colocado em votação, a ordem dos
pronunciamentos, se concede ou não alguns minutos a mais para um determinado
deputado/senador concluir seu discurso, podendo inclusive encerrar as atividades do dia
antes do esperado caso seja o interesse da sua base política.
Como foi discutido no subtópico “4.1.1”, a gestão do tempo como mecanismo de
poder também pode ser observada nas audiências públicas que são realizadas no
Congresso Nacional. Mesmo sendo um momento pensado para ouvir pessoas externas
ao Poder Legislativo, são os agentes públicos estatais e os próprios parlamentares que
geralmente mais falam. Tais percepções não seriam possíveis sem a descrição densa do
processo legislativo em tela. Nas palavras dos pesquisadores Kant de Lima e Bárbara
Baptista, “a etnografia possibilita exatamente que esses mecanismos, obscurecidos pela
forma de produção e circulação do saber jurídico, se revelem e, tornando-os explícitos,
permite uma melhor compreensão do campo e de sua lógica” (2014, p. 10).
Etnografias, bem como outras formas narrativo-imaginativas, podem ajudar
nesse alargamento de espaços e percepções intelectuais, afetivos e morais,
apresentando-nos outras combinatórias semânticas que não obscureçam
lacunas e assimetrias entre ‘as nossas’ combinatórias e as ‘dos outros’.
Justamente, evidenciar tais lacunas e assimetrias não implica concordar com
elas ou destruí-las, mas nos valer delas para melhor pensar.
(SCHRITZMEYER, 2012, p. 34)

Dessa forma, para se poder teorizar sobre como se dá a produção e a tentativa de


positivação dos direitos dos povos ciganos no âmbito do Poder Legislativo, é imperioso
ter em vista o que tem de ser feito, os caminhos que se percorrem para aprovar um
projeto de lei, quais as regras, expressas e muitas vezes tácitas, que regem um processo
legislativo, especialmente, por ter como destinatária um povo tradicional com pouca
visibilidade pública. Além destas questões, uma das respostas mais difíceis de se obter é
justamente quanto à duração dos processos, inclusive na própria tramitação do PLS. As
incertezas quanto ao tempo dos processos legislativos em si já são um dado que não se
deve ignorar. Por outro lado, perceber as variações dos usos do tempo na “criação de
leis”, interpretando como um mecanismo de poder, não significa que eu como
pesquisador esteja concordando ou buscando naturalizar tal questão, mas sim tentando
melhor refletir sobre a “criação de uma lei”, conforme sugere a antropóloga
Schritzmeyer.
Certa vez, no ano 2019, em conversa informal com um assessor parlamentar da
Câmara de Deputados, este fez uma comparação entre a “criação de lei” e uma
“gestação”, afirmando que a aprovação do texto final é praticamente um “parto”. No
333

momento não o questionei por conta da sua experiência e também porque o sentido da
analogia seria devido à complexidade que é o nascimento de um ser humano, assim
como de uma nova lei. Porém com a pesquisa de Doutorado que empreendi passei a
problematizar esta comparação justamente pela questão do tempo no processo
legislativo. Por mais que haja diferenças na duração das gestações, ainda assim há uma
margem de tempo que não é ultrapassada na gravidez, necessariamente há um fim, que
independe do nascimento com vida. Só que o mesmo não acontece com a tramitação de
um projeto de lei, há uma absoluta imprecisão quanto ao transcurso de um processo,
dependendo do jogo de forças, das articulações políticas, dos interesses envolvidos,
pode haver tanto um aceleramento, como um retardo, e no fim acabar nem sendo
aprovado ou simplesmente arquivado por falta de ação.
Problematizando mais a referida comparação, associar a“criação de lei” a um
“parto” pode nos induzir a alguns equívocos, acabar enxergando com naturalidade os
usos do tempo no processo legislativo como mera casualidade, sem refletir as
contradições, os jogos de poder que estão envolvidos. Isso porque a “gestação” e o “ato
de dar a luz” são fenômenos genuinamente da natureza, o que os tornam fatos sociais,
inspirado no pensamento de Durkheim (2005), é como se conduz a gravidez,
certamente havendo variações de acordo com a classe, origem, raça ou etnia, por
exemplo. Por outro lado, o processo legislativo é um fenômeno essencialmente político,
a incerteza quanto ao tempo é algo inevitável, mas talvez a comparação ao “parto” nos
remeteria à ideia de “natural”, o que não é adequado, uma vez que “criar uma lei”
envolve relações e negociações entre pessoas reais com interesses que nem sempre
convergem. O que não significa que há sempre um binarismo no processo, isto é, ser
contra ou ser a favor de um projeto de lei. Na verdade, é muito mais complexo do que
isso, sendo possível teoricamente um parlamentar apoiar uma proposição legislativa,
sem demandar esforços para aprová-la, tendo que priorizar outras articulações por uma
questão de estratégia e de interesse político.
Acaba sendo até redundante dizer que um processo legislativo tem essência
política, não há como ser diferente. Por isso, finalizo esta primeira parte do quarto
capítulo afirmando que assim como um processo legislativo não se restringe a uma
somatória de procedimentos formais, o tempo que se leva para a aprovar um projeto de
lei, como é caso do PLS 248/2015, também não decorre de uma sucessão natural de
acontecimentos.
Aqui peço licença aos leitores para emitir a seguinte declaração: o tempo é
político! Adoto a palavra “tempo”, na condição de sujeito, para ilustrar que não é por
334

acaso que projetos de “Estatuto”, tais como o da Juventude, o do Idoso, da Igualdade


Racial e da Pessoa com Deficiência, precisem levar anos ou mais de uma década para
finalmente serem aprovados e se transformarem em lei, enquanto a proposta de
“reforma trabalhista”, por exemplo, que alterou mais cem dispositivos e praticamente
apresentou uma nova “CLT”, com menos direitos aos trabalhadores e mais poderes ao
setor patronal, empreendeu por sua vez alguns meses de trabalhos no Poder Legislativo
Federal, no início do ano de 2017.
A natureza política dos usos do tempo no processo legislativo é tão forte que não
se sobrepõe às determinações do texto constitucional. Foram necessários
aproximadamente quatorze anos para ser aprovado o “Estatuto da Cidade”, ainda que no
caput do artigo 182 exigisse a criação de uma lei com diretrizes gerais sobre a política
de desenvolvimento urbano69. Ou o dever do Congresso Nacional em regulamentar
determinada matéria pode ser simplesmente ignorado, como acontece com o direito de
greve dos servidores públicos que ainda carece de uma lei específica, conforme
estabelece o artigo 37, inciso VI, da CF/88.
Apesar da carta política de 1988 tratar do dever do Estado em proteger “as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, § 1º), a primeira
menção no Congresso Nacional à necessidade de criação de uma lei específica destinada
aos povos ciganos, afirmando direitos, apenas aconteceu em maio de 2011, durante a
audiência pública realizada na CDH do Senado Federal70. Não obstante tal atraso de
mais de duas décadas, a proposição do projeto de lei de “Estatuto do Cigano” ocorreu
em abril de 2015, praticamente quatro anos depois da referida reunião pública, sendo
que a primeira votação da matéria aconteceu no ano de 2018. Portanto, o ato de propor,
demorar ou deixar de apresentar um projeto de lei, assim como a duração do processo
em tela necessitam ser encarados como mecanismos de poder que são perpassados por
decisões políticas.
Os usos do tempo como mecanismo de poder não é exclusividade do Estado na
prática legislativa, ocorre também no âmbito executivo e no judiciário. Quando um

69
“Na verdade, a ideia de instrumentalizar a gestão urbana por meio de uma legislação específica precede
a ‘constitucionalização’ do tema, ocorrida em 1988, e o movimento político-social estruturado a partir do
final da década de 1970. Ainda em 1963, no contexto efervescente das "reformas de base" propostas
durante o governo João Goulart, realizou-se o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, coordenado
pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB)” (BASSUL, 2002).
70
Não posso deixar de mencionar que a Constituição Federal estabelece o dever do Estado em dispor lei
“sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos
nacionais” (art. 215, § 2º), todavia o “Dia Nacional do Cigano” foi instituído no ano de 2006 por meio de
decreto presidencial.
335

governante deixa de nomear candidatos do cadastro de reserva aprovados num concurso


público para poder convocar um novo edital. Ou quando um juiz ou um órgão colegiado
deixa de julgar uma denúncia oferecida pelo Ministério Público havendo a prescrição da
possibilidade de punição do acusado. Não faltam exemplos. Segundo Kant de Lima e
Baptista, “o tempo tornou-se um fator significativo para a administração institucional
de conflitos no Brasil, sendo a celeridade, modernamente, senão a maior, uma das mais
importantes metas da agenda jurídica em pauta” (2014, p. 11, grifo dos autores).
Portanto, voltando para a questão cigana, quanto mais tempo se leva para
aprovar o “Estatuto”, significa um adiamento da chance de termos políticas estatais
voltadas para este povo tradicional, e ainda assim é apenas uma expectativa, tendo em
vista que a existência de uma lei neste sentido não garante o seu cumprimento. Além
disso, tal demora não deve só ter como parâmetro a promulgação da Constituição
Federal de 1988, mas sim o início das primeiras interações entre os ciganos e não
ciganos no Brasil. São séculos de atraso que vem resultando no agravamento das
vulnerabilidades sociais vivenciadas pelos povos ciganos.
Tratando-se de uma pesquisa empírica e de cunho qualitativo acerca do processo
do “Estatuto”, a abordagem etnográfica possibilitou o deslocamento de olhar em que
outro são os atores sociais que participam desta trama, sejam os ciganos, como os não
cigano, e inclusive os agentes públicos ligados ao Estado na prática legislativa. Assim,
ao levar em conta suas atuações, práticas, discursos, silenciamentos, assim como as
“pausas”, e também como funciona as comissões do Senado, construí uma teia de
significados sobre a “criação de uma lei” que prevê políticas públicas e direitos para os
povos ciganos.
Nesse sentido, buscando refletir mais sobre a produção dos direitos ciganos no
Brasil, debati, na segunda parte do 4º Capítulo, de que modo as disputas políticas no
movimento cigano se entrelaçam e ao mesmo tempo se repercutem no papel
desempenhado pelo governo federal no processo legislativo do “Estatuto”. Ponderar
sobre esta questão pode nos ajudar a compreender em qual conjuntura política se deu a
tramitação do PLS 248/2015 entre anos de 2015 e 2020 e, tangencialmente, observar
quais foram as políticas ciganas – propostas, formuladas e executadas – pelo Poder
Executivo no período que abarca as negociações pela instituição de um marco
regulatório destinado aos povos ciganos.
336

4.2 - As disputas políticas

A aprovação do “Estatuto do Cigano” nas primeiras comissões onde tramita, por


unanimidade, pode dar a impressão que não há obstáculos, oposições ao projeto de lei
em tela ou disputas políticas em torno da questão cigana no Brasil. No entanto, ao poder
acompanhar “de perto” este processo legislativo, pude perceber o contrário, que há sim
disputas políticas, que não se restringem, exatamente, à matéria do projeto de lei, mas
que vai além disso. Tive a oportunidade de acessar espaços e informações privilegiadas,
por conta da minha colaboração e atuação profissional relacionada aos direitos ciganos,
realizando uma observação participante nos “bastidores” das negociações pela criação
do “Estatuto”.
Seguindo a hipótese anteriormente apresentada na introdução desta tese, que os
povos ciganos no Brasil se tornaram, sobretudo a partir da década de 2000, um grande
domínio de ingerência política, é possível afirmar que neste processo se formou
historicamente um dispositivo para a gestão deste povo tradicional. Como apresentei
nos subtópicos abaixo, etnografar a tramitação do PLS 248/2015 no Senado Federal
permitiu-me identificar e compreender um conjunto de práticas, discursivas e não
discursivas, que são perpassadas por uma série de disputas, que se repercutem no
processo do “Estatuto do Cigano”.

4.2.1 - Identificando as oposições ao PLS 248/2015

A presente pesquisa etnográfica constituiu-se a partir de um trabalho artesanal


em que intercalei um conjunto de técnicas que foram demandadas pela própria natureza
do objeto de estudo e do meu envolvimento com ele. Ao mesmo tempo que me esforcei
para obter o máximo de documentos, escritos e audiovisuais, sobre a criação do
“Estatuto do Cigano” no Senado Federal, busquei acessar outros espaços e ampliar os
dados sobre o processo legislativo em questão, por meio de observações participantes,
entrevistas e experiências etnográficas.
Em princípio, não estava evidente a existência de oposição política ao projeto de
lei apresentado pelo Senador Paulo Paim. As primeiras pistas destas disputas ocorreram
principalmente em contextos de conversas informais, com diferentes atores, ciganos e
não ciganos, que foram me conduzindo a outros informantes e assim por diante. Não
apenas as palavras, como também os gestos, sobretudo os mais sutis, os silenciamentos
337

apontavam para um caminho interpretativo nada óbvio, que me fizeram notar alguns
movimentos contrários ao PLS 248/2015.
A pandemia causada pelo “Novo Coronavírus” repercutiu diretamente na
tramitação do PLS 248/2015. Por questões de biossegurança, a presidência do Senado,
por meio de Ato da Comissão Diretora nº 7, de 2020, modificou a forma de
funcionamento desta Casa Legislativa, instituindo restrições e, ao mesmo tempo, regras
para a utilização do sistema virtual nas votações e demais atividades. Este ato normativo
passou a ter validade a partir do dia 20 de março de 2020. Promoveu uma mudança
radical nas formas de trabalho, no funcionamento do Senado Federal (e também da
Câmara de Deputados), e principalmente no tempo de tramitação dos processos
legislativos, impondo uma outra dinâmica.
No caso da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado
Federal, a última “reunião extraordinária” do ano de 2020 ocorreu em 19 de março,
significando que o mecanismo remoto não foi implementado para realizar as reuniões
deliberativas da CDH. Portanto, o sistema virtual limitou-se às atividades de algumas
comissões e do plenário para proposições legislativas consideradas urgentes e/ou
relacionadas ao enfrentamento da pandemia, o que não incluía a matéria do PLS
248/2015, que ficou sem deliberação na CDH ao longo no ano de 2020.
De antemão, poderia-se deduzir que o fato das atividades da CDH estarem
paralisadas significaria não haver movimentações ou novidades em torno do processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”. Levando em consideração o aspecto formal, não há
nenhum equívoco na respectiva dedução. Por outro lado, graças a minha proximidade
com os principais atores envolvidos no processo legislativo e ao fato de realizar
observação participante, pude perceber que as negociações políticas pela aprovação do
PLS 248/2015 não foram interrompidas por conta da pandemia. Isso porque a criação de
uma lei não se dá apenas no espaço físico ou durante as atividades oficiais promovidas
pelo Poder Legislativo Federal.
De que maneira tem ocorrido a tramitação em torno do PLS 248/2015 fora do
Senado Federal durante a pandemia? E como foi possível notar as disputas políticas que
perpassam tal processo legislativo?
Primeiramente devo dizer que a existência de negociações que transcendem o
locus do Congresso Nacional não significa que este fenômeno decorre do fato das
atividades estarem remotas por conta da pandemia. Antes mesmo das medidas
restritivas no espaço físico do Senado, eu já vinha notando que nem tudo que dizia
respeito ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano” acontecia apenas no âmbito do
338

Senado Federal. Porém, com a pandemia, isso ficou mais explícito para mim,
especialmente, por ter havido uma intensificação de reuniões e atividades profissionais,
políticas e/ou acadêmicas, sendo realizadas de forma online, por meio das lives ou
chamadas de vídeos, por exemplo.
Em segundo lugar, antes mesmo do início da pandemia, percebe-se que a
tramitação do PLS 248/2015 “travou” desde maio de 2018, mês em que foi aprovado na
segunda comissão e seguiu para a CDH, não havendo votação da matéria até o final do
ano de 2020. Lembrando que quando o projeto seria votado em “decisão terminativa”,
no dia 12/02/2020, este foi retirado de pauta pelo próprio relator, o Senador Telmário
Mota, para “reexame”.
Ressalto que foi a partir do dia 20 de agosto de 2020, devido à realização do
“Encontro dos Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”, que
ocorreu uma mudança radical nos rumos da tramitação e, sobretudo, nas negociações
políticas em torno do “PLS 248/2015”. Isso porque a assessoria do Senador Telmário
Mota passou a trabalhar para “fazer o que for necessário” para o projeto de lei ser
aprovado no Senado. Um dos primeiros atos neste sentido foi a convocação e a
realização de uma reunião no dia 9 de outubro de 2020, entre servidores do Senado
Federal e representantes ciganos, com a participação do Ministério Público Federal.
Segue abaixo, na íntegra, a “minuta de relatório/ata da reunião”:
Data: 09/10/2020
Início: 10h00
Término: 12h00
Meio: Plataforma Zoom
Mediador: Samuel Gomes, assessor do senador Telmário Mota
Desenvolvimento:
1. Samuel Gomes saudou os participantes e reiterou os objetivos da reunião.
2. Wanderley (ANEC) saudou os participantes.
3. Valdinalva (CONEPIR-MG) saudou os participantes.
4. André Guillermo apresentou o conteúdo do projeto e os próximos passos
da tramitação no Senado.
5. Luciano Mariz Maia (MPF) apresentou suas considerações a respeito do
projeto.
6. Philipe Cupertino (doutorando na matéria) apresentou suas considerações a
respeito do projeto.
7. Nos debates fizeram uso da palavra Valdinalva, Carla Paiva, Rose Winter,
Maria Jane, Cláudia Nunes, Luciano Mariz Maia, André Guillermo,
Marcilânia.
8. Conclusões:
a. A reunião foi gravada e constitui documento constitutivo do processo
parlamentar de aprovação do Estatuto.
b. O projeto está pronto para consulta aos povos ciganos.
c. A consulta:
i. Abrangerá decisão a respeito do uso do termo “população cigana” ou
“povos ciganos”.
ii. Será precedida de popularização e massificação do conteúdo do Estatuto,
através de:
1. Vídeos, podcasts, cartilhas.
339

2. Programas, entrevistas e documentários a serem, eventualmente,


produzidos pelo sistema público de televisões e rádios educativas, TV
Senado, Rádio Senado, TV Câmara, Rádio Câmara, MPF.
iii. Será realizada:
1. mediante audiências públicas conduzidas pela Comissão de Direitos
Humanos do Senado Federal.
2. mediante seminários regionais conduzidos pelos ciganos.
3. por meio de outras tecnologias, reunidas em protocolo a ser conformado
conjuntamente pelos povos ciganos, com a colaboração do MPF (6ª Camara
de Coordenação e Revisão) e Senado Federal (Prodasen).
d. O grupo de WhatsApp “Estatuto – reunião 9/out”:
i. será mantido e reformulado para servir de grupo operativo do processo de
consulta do Estatuto;
ii. será administrado pelas entidades e lideranças ciganas, às quais caberá
definir quem dele participará e as regras de seu funcionamento. (Acervo
próprio)

No mesmo dia em que ocorreu a supracitada reunião, foram criados não só um,
como dois grupos de Whatsapp: um “geral”, para ser adicionado o maior número
possível de lideranças, “representações” e “aliados” da luta cigana; e outro, alguns
instantes depois, mais “restrito”, ou seja, com poucas pessoas, para discutir questões
mais operativas do processo legislativo a serem compartilhadas com todos do outro
grupo. Em menos de 24 horas de funcionamento dos grupos, surgiram os primeiros
conflitos entre os participantes.
Antes de tratar destes conflitos, preciso pontuar que os dois principais propósitos
que levaram a criação do tal grupo “geral” de Whatsapp foram: em primeiro lugar,
tornar mais público, entre lideranças e representações ciganas de todo país (pelo menos
se almeja alcançar o máximo de pessoas), sobre a tramitação do PLS 248/2015 e acerca
do conteúdo do projeto; e, em segundo lugar, discutir como seria realizado e planejar a
consulta livre, prévia e informada da proposição legislativa em tela, pois não havia
nenhuma experiência do tipo realizada pelo Senado Federal.
A primeira divergência, explicitamente manifestada, deu-se justamente por
existir o outro grupo mais “restrito”. Surgiram, então, acusações de estar havendo
“favoritismos” e “falta de transparência”, o que rendeu muitas discussões. Então o
segundo grupo, o “restrito”, foi desfeito pelo seu próprio criador, o assessor do Senador
Telmário Mota - a principal intenção dele era discutir de forma mais direta o que
precisava ser feito para avançar na tramitação e padronizar as informações que seriam
repassadas. Tendo em vista que tal demanda permaneceu e para evitar novos conflitos,
ao invés de criar novamente um outro grupo, as conversas mais “internas” passaram a
acontecer por meio de chamadas coletivas de áudio pelo aplicativo Whatsapp, sempre
340

por iniciativa do próprio assessor do relator do projeto71 e quem participava dessas


conversas eram escolhidas pelo mesmo.
Todavia, mesmo com a dissolução do grupo “restrito”, os conflitos não pararam
de surgir durante as conversas do grupo “geral”, principalmente nas duas primeiras
semanas de outubro de 2020. Acontece que os conflitos, as oposições, rivalidades,
disputas políticas entre representações e lideranças antecedem tal grupo e até mesmo a
própria tramitação do PLS 248/2015. Por isso, lanço aqui dois questionamentos: quais
as razões desses conflitos e de que modo se manifestam na tramitação do PLS
248/2015?
É importante dizer que foram adicionadas ao grupo “geral” dezenas de pessoas,
de diferentes partes do Brasil, assim como relacionadas às mais variadas associações,
grupos e subgrupos étnicos ciganos. Pelo menos 130 pessoas, que se identificam como
ciganas, passaram pelo grupo72. A pedido da assessoria do Senador Telmário Mota, em
23 de outubro de 2020, fiz uma relação das localidades de origem (entes federativos)
das representações ciganas que passaram pelo grupo. Participaram pessoas do: Distrito
Federal, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte, Ceará e Pará. Os diferentes prefixos de telefone das pessoas do grupo
também são dados relevantes para notar a diversidade de procedência dos participantes
do grupo. Ao total, identifiquei 31 prefixos de telefone (DDDs).
Quando afirmo que diferentes pessoas “passaram pelo grupo” é por uma simples
razão: as entradas e as saídas das pessoas adicionadas foram constantes. Algumas vezes
o mesmo participante, como é o caso de uma liderança de Minas Gerais, que se
envolveu em algumas discussões não amistosas com conterrâneos do seu estado. Na
maioria das vezes quem saia, não voltava mais. Esta representação do estado de Minas

71
Entre os meses de outubro e novembro de 2020, na condição de pesquisador e também por ser
reconhecido como um aliado da luta dos ciganos por direitos, fui convidado pela assessoria do Senador
Telmario Mota a participar destas conversas mais reservada. Ao total, ocorreram cinco chamadas, que
tiveram a duração média de 1 (uma) hora. Além da minha presença e do assessor parlamentar do relator,
que coordenava as conversas, também estiveram presentes um representante do mandato do Senador
Paulo Paim, e o Procurador da República Luciano Maia. Tais encontros tinham o propósito de avaliar o
andamento do “grupo geral”, como melhor geri-lo, de modo a evitar conflitos e também para não haver
desvio de finalidade, e, principalmente, planejar a consulta pública sobre o PLS 248/2015. Ressaltando
que estes “encontros” não eram públicos e não tiveram a presença de lideranças ciganas, todavia, os seus
encaminhamentos eram posteriormente compartilhados no grupo geral.
72
A maioria das pessoas que entraram no grupo “geral” de Whatsapp se apresentaram informando a etnia
a qual pertenciam. Foram citadas as seguintes etnias e sub-etnias: Calon, Sinti, Rom (Horahabô,
Kalderash, Romanichal, Lowara e Machuaia). Notei também que algumas pessoas que se apresentavam,
se identificando como ciganas sem declarar a etnia ou a família de origem, eram justamente aquelas mais
questionadas quanto o real condição de cigana ou cuja as ligações com a identidade cigana eram fundadas
em relações espirituais.
341

foi uma das exceções que saiu do grupo após algumas brigas e voltou a fazer parte dele,
o que motivou a saída de outras pessoas.
De todo o modo, essa movimentação intensa foi resultado, sobretudo, dos
conflitos que se manifestaram nas conversas do grupo, que nem sempre se tratava do
assunto principal, o PLS 248/2015, mas sim as disputas políticas em torno das vagas
dos conselhos de Estado. Contudo, eu pude notar que estes conflitos refletiam também
divergências, explícitas e implícitas, em relação ao PLS 248/2015.
Ou seja, realizar a observação participante no grupo permitiu-me captar
algumas pistas sobre os conflitos que se dão neste processo, percebendo, com mais
clareza, que não há necessariamente um consenso em relação ao “Estatuto do Cigano”
proposto pelo Senador Paulo Paim. Além do mais, seria impossível existir pleno
entendimento sobre uma matéria desta natureza, tendo em vista a diversidade étnica dos
seus destinatários, como também diante das diferenças políticas, de escolaridade, de
classe, de origem, gênero, e principalmente, na forma como a sociabilidade cigana foi
construída.
Por isso, por meio da minha participação diária no grupo e também por dialogar
diretamente com algumas lideranças, em privado, sobre os conflitos que surgiram neste
espaço fui percebendo, aos poucos, que as oposições ao projeto de lei não se davam
necessariamente em face do seu conteúdo. Como já discorri no segundo capítulo desta
tese, a minha interpretação é que o principal ponto de discordância em relação ao PLS
248/2015 se deve ao fato deste ter sido proposto por Paulo Paim e, acima de tudo, ter
sido articulado pela “ANEC”, especialmente a pessoa de “Seu Wanderley”.
Quando me refiro às divergências em relação ao projeto, é no sentido de ter
testemunhado questionamentos em torno da legitimidade, da capacidade e da
representatividade de “Seu Wanderley” para atuar como um interlocutor da criação do
“Estatuto”, mobilizando argumentos do tipo: “ele é analfabeto”, “está sendo usado pelo
Senador para alimentar a sua fama de rei dos Estatuto”, “só representa uma etnia, a si
mesmo”.
As situações em que se questionaram a legitimidade e a capacidade de “Seu
Wanderley” não aconteceram obviamente no grupo criado pela assessoria do Senador
Telmário Mota. Por sua vez, eu identifiquei algumas lideranças e “representações” que
passaram pelo grupo sem se opor diretamente ao PLS 248/2015, mas que, por sua vez,
se manifestaram contrários ao projeto em outros espaços públicos de debates, como, por
342

exemplo, em seminários acadêmicos73. O comportamento dessas pessoas no grupo era,


basicamente, no sentido de promover críticas, de forma exacerbada, à gramática da
redação do texto de lei, implicando com palavras, como verbos, e propondo
substituições que não alteravam em nada o sentido da frase; assim como incentivando e
alimentando conflitos entre outras lideranças para desviar do propósito de contribuir
para a aprovação do PLS.
Embora a ausência de consenso seja um fato inevitável, compartilho um
estranhamento em forma de pergunta sobre a tramitação do PLS 248/2015: afinal de
contas, por que algumas “representações” e lideranças ciganas seriam contrárias a um
projeto de lei que prevê uma série de direitos para o seu povo?
É possível dizer que as críticas que giram em torno da legitimidade e da
capacidade de “Seu Wanderley” em atuar nas negociações do PLS 248/2015 partem de
um pressuposto colonialista de uma formatação sobre o ser/representar/estar na
produção de narrativas de um povo diversificado. Inclusive há uma contradição nos
questionamentos do “analfabetismo” do presidente da ANEC tendo em vista que entre
os povos ciganos predomina uma estrutura sociocultural oralizada desde sempre.
Repito mais uma vez que não foi de imediato que eu tive esta percepção, isto é,
da existência de conflitos, disputas e oposições em relação ao PLS 248/2015. Isso
porque as posições contrárias ao “Estatuto” manifestavam-se de forma sutil e não se
limitavam às performances no grupo de discussão criado pela assessoria do Senador
Telmario Mota.
Devo frisar que a existência do grupo é um esforço de envolver o máximo de
representações e lideranças que se identificam como ciganas e que atuam em pautas
coletivas ligadas a estes povos. Contudo, há limites nessa busca, uma vez que é
impossível alcançar e articular a totalidade de pessoas ciganas interessadas em colaborar
com a tramitação.
No próximo subtópico, destaco a existência de outro projeto de lei apresentado
na Câmara de Deputados, em maio de 2020, que também propõe a criação de um
“Estatuto do Cigano”. A importância deste projeto, o PL 2703/2020, para a tramitação
do PLS 248/2015 é justamente pelo fato dele ser apresentado como um contraponto à
articulação que tem a “ANEC” e o “Seu Wanderley” como referências.
73
Refiro-me ao “Congreso Internacional Educación, Derechos e Igualdad para el Pueblo Gitano”,
realizado entre os dias 25 e 30 de setembro de 2020 . Durante este evento, uma referência nacional da luta
cigana no Brasil proferiu críticas diretas ao PLS 248/2015, no sentido dele ser “raso”, “superficial”,
“elaborado por pessoas despreparadas”, embora não indicasse exatamente o que estava faltando ou
equivocado na proposição legislativa Senador Paulo Paim. Tais posicionamentos foram proferidos durante
a mesa intitulada “El Estatuto Gitano Brasileño contempla ou contemplará la Romà brasilera? O es una
fantasia más en beneficio de pocos?” (OBSERVATORIO GITANO, 2020).
343

4.2.2 - O PL 2703/2020

As oposições, explícitas e implícitas, ao PLS 248/2015 são um reflexo, no fundo,


das disputas no processo de construção político-jurídica do Estatuto do Cigano no
Brasil. Se as cadeiras dos conselhos e/ou ser reconhecido como um interlocutor com
Estado nas esferas de formulação de políticas públicas no Poder Executivo despertam
embates, mobilizando diferentes atores, não seria diferente também no âmbito das lutas
pelos direitos ciganos. Portanto, compreender o papel político da proposição do PL
2703/2020 pode ser uma chave interpretativa para buscar respostas para tais
questionamentos.
A pandemia causada pelo “Novo Coronavírus” pode ter interrompido as reuniões
da CDH e modificado, de modo geral, o funcionamento do Congresso Nacional,
todavia, as movimentações políticas não pararam. Em 15 de maio de 2020, uma nova
proposta de “Estatuto dos Ciganos” foi apresentada ao Poder Legislativo Federal, desta
vez, na Câmara de Deputados, por meio do parlamentar Filipe Barros (PSL/PR)74.
O PL 2703/2020 está dividido em duas partes: a redação da proposição
legislativa e a justificativa, que é composta por três tópicos - fundamentos históricos;
fundamentos sociopolíticos e conclusão. O segundo tópico está subdividido em:
“marcos legais de proteção e promoção dos direitos ciganos”; e “lacunas na legislação”
(BRASIL, 2020).
Ao total, o documento apresentado pelo Deputado Filipe Barros possui 17
páginas, contém a previsão de 52 artigos, organizados em quatro títulos: “disposições
preliminares”; “dos direitos fundamentais”; “da promoção da igualdade racial”;
“disposições finais”. O “Título II – Dos Direitos Fundamentais”, mais extenso, está
dividido em 9 capítulos, são eles: “Capítulo I – Do Direito à Cidadania”; “Capítulo II –
Do Direito à Educação”; “Capítulo III - Do Direito à Cultura, Esporte e Lazer”;
“Capítulo IV – Da Saúde e da Previdência Social”; “Capítulo V – Do Acesso à terra,
territórios e moradia” ; “Capítulo VI – Direito à Cidade”; “Capítulo VII – Da Segurança
Alimentar, do Desenvolvimento Local e da Inclusão Produtiva”; “Capítulo VIII – Do

74
Segundo informações do portal de notícias “Gazeta do Povo”: “o deputado federal paranaense Filipe
Barros (PSL) tem sido um dos mais destacados cães de guarda do bolsonarismo na Câmara dos
Deputados. [...] exercendo seu primeiro mandato em Brasília, ele tem demonstrado faro aguçado para
identificar focos de embates ideológicos e disposição em adotar – especialmente nas redes sociais – a
retórica que marca o grupo político alinhado ideologicamente por Olavo de Carvalho” (FREY, 2020, meu
destaque).
344

Acesso à Justiça e à Segurança” e o “Capítulo IX – Do Direito à liberdade de


consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos”.
Meu interesse ao me referir ao PL 2703/2020 não é com o objetivo de
descrevê-lo e analisá-lo densamente, mas sim entender de que modo esta segunda
proposição se contrapõe ao projeto do Senador Paulo Paim. Trata-se, nesse sentido, de
uma proposição legislativa absolutamente diferente do PLS 248/2015, não apenas por
conta da redação, forma de organização e pelos direitos previstos. De fato, é um projeto
mais extenso, tanto em relação ao número de artigos, como também em relação à
justificativa. No entanto, a distinção mais relevante, pelo menos para esta pesquisa que
realizo, reside na forma como surgiu o PL 2703/2020 e, sobretudo, quem está
articulando.
O primeiro estranhamento que tive ao tomar conhecimento da existência do PL
2703/2020 ocorreu justamente pelo fato de não estar claro quem o articulou, as pessoas
que estão por trás da proposta. Enquanto a justificativa do PLS 248/2015 cita,
expressamente, a “ANEC”, o PL 2703/2020 não menciona nenhuma associação, grupo
ou movimento que tenha apresentado a proposta legislativa ao parlamentar Filipe
Barros.
De antemão, posso afirmar, sem margens para qualquer dúvida, que o PL
2703/2020 não foi idealizado ou formulado pelo Deputado Filipe Barros. Observando o
conteúdo deste projeto de lei, fica evidente que quem o elaborou tem um profundo
conhecimento acerca da “questão cigana”, o que não é caso do parlamentar proponente,
que não tem (ou não tinha até então) nenhum histórico ou relação com a pauta “da
promoção da igualdade racial” ou “dos povos e comunidades tradicionais”. Como saber,
então, quem esteve/está por trás desta articulação que desencadeou na apresentação
deste novo projeto de lei que tem o mesmo objeto do PLS 248/2015, um marco legal
protetivo destinado aos povos ciganos no Brasil?
Partindo do pressuposto que o “não dito” é tão revelador quanto o “dito”,
interpreto que a omissão da “associação proponente” na justificativa do PL 2703/2020
não é por acaso, ou seja, não é aleatória. Todavia, a pesquisa etnográfica, que congrega
uma série de técnicas de investigação e diferentes informantes, me permitiu extrair
algumas pistas que podem nos levar a identificar os possíveis envolvidos nesta
empreitada política. Embora não haja referência ao “proponente”, está explícito no
projeto apresentado pelo Deputado Filipe Barros que a proposta é um contraponto à
proposição do Senador Paulo Paim e, acima de tudo, ao papel da “ANEC”. Quando digo
explícito eu me refiro a este trecho da justificativa do “PL”:
345

O autor e relator do único projeto de lei relacionado à ciganos em andamento


(PLS 248/201520), que cria o “Estatuto do Cigano”, ignoram a necessidade
de ampla participação social dos interessados (ciganos de todo o país) na
construção de um documento que lhes tem como único público,
conduzindo-se um processo de forma unilateral, desprezando a Convenção nº
169 sobre povos indígenas e tribais da OIT – a qual o Brasil é signatário,
agregando apenas e tão somente representantes políticos e cooptados,
alguns sendo auto-eleitos “vozes de todos os ciganos brasileiros”, o que é
irreal e não representa nem a macro nem as micro-comunidades;
(BRASIL, 2020b, p. 16, meus destaques)

Como se pode perceber, o trecho acima faz questionamentos quanto ao papel


político desempenhado pelos Senadores envolvidos no PLS 248/2015 e, em especial, à
legitimidade e à representatividade das lideranças atuantes na “ANEC”, sem precisar
mencioná-las nominalmente. Nesse sentido, não é exagero afirmar que o PL 2703/2020
é um contraponto direto ao PLS 248/2015 e expõe as disputas políticas que perpassam
não apenas a esta proposição legislativa, mas acima tudo na busca pelo protagonismo na
construção da cidadania cigana no Brasil.
Portanto, inspirado no método indiciário desenvolvido pelo historiador Carlo
Ginzburg (1992), posso concluir que o(s) articulador(es) da proposição do PL
2703/2020 fazem oposição política, assim como são contrários à aprovação do PLS
248/2015; talvez, por essa razão, não foram anunciados na “justificativa” da proposição
legislativa75. Faço a seguinte leitura deste fato: trata-se de uma estratégia política omitir
quem são os proponentes, primeiro, para evitar exposições e desgastes públicos;
segundo, para transmitir a ideia que se trata de um projeto de lei que supostamente
representa todos os povos ciganos, e não apenas um grupo ou uma associação em
específico.
Preciso esclarecer a primeira razão que elenquei acima em que busco entender o
porquê da justificativa do “PL” não mencionar os “proponentes”. Compartilho uma
especulação não só minha, como também de outras lideranças e simpatizantes que
acompanham as lutas dos povos ciganos no Brasil. Desconfia-se que Jorge Garcia76, que

75
Mobilizei o uso do paradigma indiciário proposto por Ginzburg por ser um método capaz de despertar o
meu olhar enquanto pesquisador para detalhes aparentemente tidos como secundários, mas que podiam
esconder a chave de entendimento das disputas políticas que perpassam a questão cigana no período de
tempo que analisei nesta tese. Em outras palavras, a partir do “método interpretativo centrado sobre os
resíduos, sobre os dados marginais”, considerando-os reveladores, foi possível identificar as oposições ao
PLS 248/2015 (1992, p. 149).
76
Adoto um pseudônimo tendo em vista que não compromete o desenvolvimento da tese. É importante
registrar que Jorge Garcia se relaciona e ao mesmo tempo articula grupos, lideranças e associações
ciganas, especialmente da região sul do Brasil, que tem se manifestado publicamente e atuado de forma
contrária ao PLS 248/2015. Inclusive devo destacar que houve um reposicionamento do próprio Jorge
Garcia em relação ao projeto de lei proposto pelo Senador Paulo Paim, uma vez que ajudou Seu
Wanderley a organizar a reunião sobre o Estatuto que ocorreu entre 31/03 e 01/04/2016. O convite deste
evento encontra-se no “Anexo A” desta tese.
346

é um ator político que colabora, direta ou indiretamente77, com o Governo Federal desde
o ano de 2019, é um dos ou o principal idealizador da proposição legislativa apresentada
pelo Deputado Filipe Barros em 15 de maio de 2020. Por isso afirmo que houve um
cuidado de não se expor o(s) proponentes(s) com a finalidade de evitar desgastes
públicos, pois, poderia transmitir a ideia que o Governo Federal ou que o próprio Jorge
Garcia, que se identifica como cigano, seria contrário o PLS 248/2015.
Há outros indícios que nos levam a relacionar o PL 2703/2020 à atuação política
de Jorge Garcia. A estreita relação entre o Deputado Filipe Barros e a ministra dos
Direitos Humanos, sendo que ambos são um dos políticos mais comprometidos com a
agenda dos costumes e com as pautas mais conservadoras do Governo Bolsonaro -
sendo Jorge Garcia parte deste projeto, uma vez que é pastor e atua na mesma igreja
ministra. Além disso, este agente público atua politicamente e em especial no estado do
Paraná, onde articula e lidera diferentes associações ciganas, ou seja, mesmo ente
federativo que elegeu o parlamentar autor do segundo projeto de lei que propõe a
criação de um “Estatuto”.
Não obstante, ao analisar o conteúdo do “PL”, é possível perceber outras pistas
que me conduziram a concluir que quem o elaborou/articulou tem vinculação ou diálogo
direto com grupos religiosos mais conservadores atuantes na política brasileira, como é
o caso de Jorge Garcia. Primeira pista: a redação do projeto de lei adota duas vezes a
expressão “sem distinção de sexo” nos dispositivos que versam sobre o “direito à
educação”, ao invés de usar a palavra “gênero”78. Segundo indício: a previsão do
“Capítulo IX - Do Direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos
cultos religiosos”, que integra o rol dos direitos fundamentais previsto no Título II do
“PL”. Vejamos:
Art. 40. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Art. 41. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício
dos cultos religiosos em contextos ciganos, compreende:
I – a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e
a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para
determinados fins;
II – a celebração de festividades, ritos e cerimônias de acordo com preceitos
das religiões acolhidas por cada indivíduo ou comunidade cigana;
III – a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições
beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;

77
Quando menciono “direta” e “indiretamente” é pelo fato de Jorge Garcia ter exercido um cargo de
diretoria no MMFDH e continuou colaborando com o governo, mesmo após ao seu pedido de exoneração,
tendo em vista que foi indicado e ocupa uma cadeira no CNPIR na condição de “notório saber”.
78
No subtópico “3.2.1”, refleti sobre as investidas políticas que ocorreram para retirar a expressão “sem
distinção de gênero” presente na redação inicial do PLS 248/2015.
347

IV – a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em


face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação
e em quaisquer outros locais.
Art. 42. É assegurada a assistência religiosa aos ciganos praticantes de
quaisquer religiões que venham a adotar, em instituições de internação
coletiva, inclusive aqueles submetidos a pena privada de liberdade”
(BRASIL, 2020b, p. 7-8).

Quanto ao referido capítulo, que visa supostamente tutelar a “liberdade


religiosa”, ao meu ver, reproduz algumas questões problemáticas. Primeiro porque
confunde identidade étnica com religião, induzindo que as práticas culturais
manifestadas por pessoas e grupos ciganos são expressões da espiritualidade. Isto é,
ajuda a reproduzir a ideia, presente no senso comum e no imaginário social, que “ser
cigano” é uma religião. A segunda razão é pelo fato do “PL” não apenas proteger, no
sentido de tutelar, mas estimular a atuação de instituições privadas religiosas em
comunidades ciganas. Ou seja, dá ênfase à “liberdade religiosa”, o que já tem previsão
expressa no texto constitucional (art. 5º, inciso VI), e incentiva, expressamente, “a
fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às
respectivas convicções religiosas” para atuarem em comunidades ciganas.
Tais críticas que faço está situada no seguinte contexto que foi refletido pelo
pesquisador Guilherme Casarões: a ascensão do “projeto de poder dos grupos
evangélicos”, especialmente de grupos “(neo)pentecontais”,
[...] buscando usar as alavancas do Estado para promover transformações na
legislação e em políticas públicas sobre temas como aborto, união
homoafetiva, “ideologia de gênero” e abstinência sexual – ou seja, pretendem
exercer maior controle sobre os corpos, sobretudo femininos. Além disso,
buscam realocar recursos públicos das artes, da cultura e do entretenimento
em favor de grupos religiosos e temáticas cristãs. (2020, p. 15)

A referida ascensão supramencionada está diretamente ligada à vitória eleitoral,


em 2018, de Jair Bolsonaro, que se tornou Presidente da República, assim como do
próprio deputado federal Filipe Barros, autor do PL 2703/2020. Segundo o pesquisador
Ole Jakob Løland, “foi a expressão do que uma direita cristã unificada poderia
alcançar”, isto é, “como um efeito dessa nova aliança política legitimado de três forças
cristãs politicamente conservadoras e suas teologias: o pentecostalismo tradicional, o
neopentecostalismo e o catolicismo neoconservador” (2020, p. 63). A chefe da pasta dos
Direitos Humanos e o próprio Jorge Garcia, em suas respectivas funções
desempenhadas para o governo federal a partir de 2019, compõem essa frente política
que Løland chama de “Nova Direita Cristã do Brasil”, que também precisa mobilizar a
“questão cigana” para se legitimar.
Seria uma omissão não olhar para a atuação do parlamentar autor do PL
2703/2020, para contextualizar a proposta de um capítulo específico para tutelar e
348

incentivar a atuação de grupos, doutrinas e instituições privadas religiosas em


comunidades ciganas. Trata-se de um dos deputados que compõe o grupo político que
defende a existência do fenômeno da “cristofobia”79, ou seja, supostas perseguições às
doutrinas cristãs80. Logo, não é por acaso que na proposição legislativa de Filipe Barros
seja oportuno fortalecer uma espécie de “direito cristão”81, que na verdade é uma
prerrogativa para evangelizar, sobretudo, a partir de uma ótica conservadora e de
(extrema) direita. O problema maior dá-se pelo fato disso ocorrer em uma proposta de
instrumento jurídico que tem como destinatária uma minoria étnica, isto é, os povos
ciganos, que, historicamente, passam por processos de silenciamentos, apagamentos e
criminalizações da sua existência identitária e cultural.
É imperioso afirmar que, em geral, não são as práticas e correntes religiosas
mais ligadas ao “cristianismo”, de base ocidentais-eurocêntricas, que são alvos de
perseguições, pois, inclusive, são maioria numérica e política no Brasil. A proposta do
deputado autor do “PL”, se utilizando da pauta pela criação de um “Estatuto dos
Ciganos”, busca ampliar a hegemonia de tais grupos políticos. Acontece que são as
cosmologias e expressões culturais, predominantemente não cristãs e não europeias, que
mais vivenciam situações de violência, que tem menos proteção do Estado no Brasil82 ,
e não o contrário, como sugere aqueles que defendem a existência do fenômeno da
“cristofobia”.
O pesquisador Marcos Toyansk Silva Guimarais identificou em pesquisa
Doutorado o papel das “denominações evangélicas” nos movimentos ciganos,
especialmente na Europa Ocidental, embora não relacione este fenômeno à ascensão de
correntes políticas cristãs ligadas aos espectros ideológicos de direita e extrema direita.
Nas suas palavras:

79
“O avanço da cultura secular, como a noção de casamento homoafetivo, as discussões de gênero, [...] e
até mesmo a separação entre religião e Estado, tem sido alvo da ação de muitos desses parlamentares que
legislam com base em valores religiosos. Fala-se de perseguição religiosa, intolerância de outros grupos e
chegou-se a cunhar um neologismo, cristofobia” (SOUSA, 2020, p. 78-79, destaque do autor).
80
Discurso da chefe do MMFDH em 10/04/2019, durante a audiência pública realizada na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados: “[...] a questão da cristofobia. Quero dizer que
existe preconceito religioso contra os cristãos no Brasil. O que aconteceu comigo nos primeiros meses,
nos primeiros dias, também teve uma pitada de discriminação religiosa, pelo fato de uma pastora assumir
o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Eu senti isso na pele” (BRASIL, 2019a, meu
destaque).
81
“A expansão pentecostal não se limitou apenas ao âmbito da ação religiosa, mas alcançou também a
política, onde os embates de seus representantes com outros movimentos e suas ações legislativas
reverberam na inserção de princípios religiosos na legislação e na esfera pública” (SOUSA, 2020, 78).
82
Constatei, por meio de uma pesquisa empírica, analisando casos concretos, a ineficiência do Sistema de
Proteção dos Direitos Humanos, no Brasil, diante de situações em que pessoas ciganas são vítimas do
crime de preconceito - ocasiões que sequer são apuradas, investigadas e processadas pelos órgãos
competentes (SILVA; LIMA FILHO, 2018).
349

Há o surgimento de uma nova comunidade transnacional evangélica definida


com base na religião adotada e na crença de ser o ‘povo escolhido por Deus’,
com a Igreja desempenhado um importante papel na vida dos conversos,
formando uma espécie de organização religiosa, social e étnica. Porém, ao
mesmo tempo em que reforça os laços comunitários e cria outra forte camada
identitária capaz de unir ciganos que não possuem parentesco ou de
diferentes grupos (embora isso raramente ocorra), a conversão ao
pentecostalismo reconfigura a identidade ao estabelecer a distinção entre os
crentes e os perdidos por meio da modificação do estilo de vida e da cultura
cigana. (2013, p. 173, destaques do autor)

Devo ponderar, primeiro, que nem toda “denominação evangélica” está


relacionada ao campo político da direita. E, em segundo lugar, ressalto que há também
outros grupos religiosos expressivos que atuam, politicamente, em torno da “causa
cigana” no Brasil, como é o caso da “Pastoral dos Nômades”. Todavia, as lideranças
ciganas e simpatizantes que integram tal articulação ligada à Igreja Católica, até onde
eu observei, não fazem oposição ao PLS 248/2015, pelo contrário, atuam e se
manifestam favoravelmente a aprovação do projeto de lei apresentado pelo Senador
Paulo Paim83.
O dado que importa para esta tese é justamente a existência de múltiplas disputas
pela construção da cidadania cigana no Brasil, que perpassam o processo de
reconhecimento e positivação, pelo Estado, dos “direitos ciganos”, e que não está
desassociada das atuações políticas das diferentes correntes teológicas, sobretudo,
cristãs. Acontece que estas vertentes não são homogêneas. Por isso, inspirado nas
reflexões do sociólogo Boaventura Souza Santos (2013), localizo a performance política
de Jorge Garcia, assim como da ministra do MMFDH do governo Bolsonaro, enquanto
expressões das teologias políticas que acabam criando novas zonas de contato entre
“concepções contrárias de ordem e mudança social”, e, consequentemente,
“turbulências políticas, culturais e ideológicas”. São atores políticos cuja leitura
teológica é excludente e hegemônica, ao passo que a “Pastoral dos Nômades” se
aproxima mais de uma interpretação do cristianismo voltada para a diminuição das
desigualdades sociais.
Friso que não tenho a pretensão de dicotomizar o “PLS 248/2015” ao “PL
2703/2020” como uma expressão da disputa dentro do cristianismo, evangélicos versus
católicos, até porque as lideranças e representações da “ANEC”, proponentes do “PLS”,
são ligadas à Igreja Assembleia de Deus, como pontuei no segundo capítulo desta tese.
Meu objetivo é informar às múltiplas relações que perpassam o processo de construção

83
As lideranças Rose Winter, da etnia sinti, Maria Jane e Jucelho Dantas, ambos da etnia Calon e Maria
Cristina Garcia Teixeira, diretora executiva da Pastoral dos Nômades, são pessoas que eu elenco que
participam das articulações no sentido de fortalecimento do movimento pela aprovação do PLS 248/2015.
350

político jurídico do “Estatuto do Cigano”, que podem ou não estarem atravessadas pela
atuação de grupos religiosos e suas respectivas agendas políticas.
Todas as disputas que perpassam a tentativa de produção dos direitos ciganos
estão inseridas em “relações de poderes” que pretendem, de algum modo, definir “o que
é ser cigano”, como foi aprofundado no terceiro capítulo desta tese. Para Foucault, “o
problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é tentar libertar o
indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos libertarmos tanto do
Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga”. Este autor sugere, por sua
vez, a promoção de “novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos” (2009, p. 08). Lembrando o
papel das “instituições religiosas”, sobretudo de base “cristã-judaica”, ao longo da
história do Brasil, que mesmo em diferentes intensidades, nunca deixaram de exercer
influência na política e nas relações de poder.
Para reforçar a argumentação que faço nos parágrafos acima, cito o artigo
científico de Cleiton Machado Maia e Ana Paula de Souza Campos (2018) que resgata a
participação da Pastoral dos Nômades e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), por meio da liderança cigana Miriam Stanescon, nas articulações que
culminaram no decreto presidencial de 2007 que instituiu o “Dia Nacional do Cigano”.
A data escolhida, 24 de maio, se deu em referência à “Santa Sara Kali”, o que gerou,
segundo os autores, algumas divergências com outras lideranças ciganas, em especial,
Mio Vacite84. De todo modo, mais uma vez, fica evidente as disputas que atravessam a
questão cigana no Brasil.
Por fim, devo mencionar que a existência do PL 2703/2020 foi citada algumas
vezes no grupo de Whatsapp criado para discutir o PLS 248/2015, e, coincidentemente,
por lideranças do estado do Paraná. E estas referências ao “PL” sempre foram no
sentido de comparação, em especial, por conta da quantidade de artigos da proposição
legislativa do Deputado Filipe Barros ser superior ao do projeto apresentado pelo
Senador Paulo Paim, 52 propostas de artigos versus 19. Tais comparações, que se
concentraram nas primeiras semanas do início do funcionamento do grupo, não

84
Maia e Campos resgataram em seu artigo falas da liderança Mio Vacite sobre o assunto. Vejamos: “Até
1986, os ciganos brasileiros não conheciam Santa Sara. Sabíamos que na França tinha uma cigana
chamada ‘mãezinha’. Mas no Brasil, a nossa santa é Nossa Senhora Aparecida. Quiseram escolher uma
santa escura” [...] não deveria utilizar a imagem de Santa Sara como símbolo da etnicidade cigana no
decreto presidencial que institui o Dia Nacional do Cigano [...] existem evangélicos, mulçumanos e
membros de outras religiões ou ateus e agnósticos, que não se identificam com Santa Sara ou Nossa
Senhora de Aparecida” (2018, p. 21).
351

ocorreram por acaso, tinham um propósito óbvio: questionar a qualidade do PLS


248/2015.
Em respostas aos questionamentos colocados quanto ao suposto número baixo
de artigos do “PLS 248/2015”, “Doutor Luciano” argumentou no seguinte sentido: “que
o ótimo é inimigo do bom”. Na mesma esteira, um dos assessores parlamentares citou
uma frase constantemente repetida pelo Senador Paulo Paim: “projeto bom é projeto
aprovado”85. Em nenhum momento tais atores políticos argumentaram acerca do mérito
ou da legitimidade do PL 2703/2020. Tais frases transmitiram para mim uma concepção
pragmática quanto ao funcionamento de um processo legislativo. Na verdade, a
argumentação que fizeram era no sentido de ressaltar tanto o avanço da tramitação do
“PLS”, quanto ao fato do autor deste projeto ser experiente quando o assunto é articular
a aprovação de “Estatutos”.
Neste sentido, é importante responder a seguinte pergunta: de que modo a
proposição do PL 2703/2020 interfere na tramitação do PLS 248/2015, uma vez que
ambos possuem a mesma matéria? Em setembro de 2020, quando tomei conhecimento
do “PL”, busquei respostas da própria assessoria do Senador Paulo Paim. Segundo a
interlocutora do gabinete do autor do PLS 248/2015:
Assessora parlamentar: [...] regimentalmente a gente não tem como impedir um
Deputado ou um outro Senador apresentar a mesma matéria. É até desconstrução, já que
ele é do mesmo partido do Presidente (Bolsonaro), mas a gente não tem como fazer um
impedimento. Mas existe um debate amplo, histórico, um processo de desconstrução
mesmo. Contudo, o nosso tem prioridade em votações. Ele pode até aprovar na Câmara,
mas ele vai ser apensado ao nosso, porque o nosso tramita na frente. E eu acredito que
o movimento dos ciganos não vai permitir que a outra matéria avance tanto. E neste
processo pandêmico também acredito que não vai acontecer. (Acervo próprio, meus
destaques)

Está previsto tanto no Regimento Interno do Senado Federal, como também no


Regimento Interno da Câmara de Deputados a definição de “apensado” e qual o
procedimento adotado quando há duas ou mais proposições que versam sobre a mesma
matéria tramitando no Congresso Nacional.
Ambas as Casas Legislativas preveem que a proposição “mais antiga” terá
precedência sobre “as mais recentes”. Portanto, é o “PL” que será apensado ao “PLS”, e
não o inverso, quando o projeto de lei de autoria do Senador Paulo Paim for aprovado
no Senado Federal e seguir para a Câmara de Deputados. Até ocorrer a “apensação”,
cada uma das proposições tramita de forma independente.
O projeto de lei do Deputado Filipe Barros foi apresentado em 15/05/2020 e o
primeiro despacho da Mesa Diretora da Câmara, assinado pelo então Presidente
85
Ambas as frases foram compartilhadas em conversa de telefone, em que fiz parte, para discutir a
formulação da consulta livre, prévia e informada.
352

Rodrigo Maia, aconteceu em 18/11/2020, tratando-se de uma das primeiras e mais


importante decisão política tomada no âmbito do processo legislativo do PL 2703/2020.
Pois definiu quais caminhos que o “PL” deverá percorrer para ser aprovado na Câmara
dos Deputados.
De acordo com o despacho do então presidente da Câmara de Deputado, para o
“PL 2703/2020” ser aprovado nesta “Casa”, ele deve ser apreciado pelas seguintes
comissões: de Cultura; Educação; Seguridade Social e Família; Direitos Humanos e
Minorias; Finanças e Tributação (Art. 54 RICD) e Constituição e Justiça e de Cidadania
(Mérito e Art. 54, RICD). Não obstante ser distribuído “em razão da distribuição a mais
de três Comissões de mérito”, determinou-se “a criação de Comissão Especial para
analisar a matéria, conforme o inciso II do art. 34 do RICD.” E, além destes órgãos
colegiados, 6 permanentes e 1 provisório, a proposição está sujeita “à apreciação do
Plenário”.
Comparando com o “PLS 248/2015”, que para ser aprovado no Senado
demanda deliberação de três comissões, sendo a última em “decisão terminativa”, o que
o dispensa a votação do “Plenário”, posso afirmar que a tramitação imposta ao “PL
2703/2020” é mais extensa e complexa, uma vez que deve ser analisado e votado em 8
momentos diferentes, 6 comissões permanentes, 1 comissão especial e o “Plenário”,
antes de seguir para o Senado Federal. Ou seja, exige mais articulação e esforços do
autor do projeto de lei e dos possíveis relatores da matéria.
Tais projetos de lei, por se tratarem de matérias correlatas, certamente, serão
apensados, em algum momento, exceto em caso de arquivamento ou havendo votação
desfavorável nos órgãos colegiados. São muitas variáveis. De todo modo, interpreto
que a proposição do Deputado Filipe Barros, inevitavelmente, repercute na tramitação
do projeto de lei do Senador Paulo Paim. E, ao meu ver, pode adiar a aprovação, pelo
Poder Legislativo Federal, de um “Estatuto” destinado a reconhecer direitos aos povos
ciganos.
No próximo subtópico, irei refletir sobre algumas questões. Primeiro, é possível
dizer que o PL 2703/2020 é uma proposição legislativa do Governo Bolsonaro?
Segundo, tendo em vista que este “PL” foi apresentado por um deputado da base
governista, um dos mais fiéis à agenda “bolsonarista”, ao passo que o PLS 248/2015 foi
proposto pelo Senador Paulo Paim, que à época era da base do governo Dilma, qual tem
sido o papel desempenhado pelo Poder Executivo, a partir do ano de 2019, na
emergência de uma lei específica destinada aos povos ciganos? Responder tais
perguntas é fundamental para compreender o processo do Estatuto do Cigano.
353

4.2.3 - A positivação dos direitos ciganos e o papel do Poder Executivo

Partindo do pressuposto da formação de um dispositivo para a gestão dos povos


ciganos no Brasil, é possível dizer que o Poder Executivo federal, a partir de 2019, deu
continuidade às políticas de promoção da igualdade racial, assim como à pauta dos
povos e comunidades tradicionais. No entanto, não da mesma forma que os governos
anteriores, pois, ocorreram mudanças na maneira, por exemplo, como se está gerindo,
quem foi mobilizado para atuar dentro da burocracia estatal em cargos comissionados
de direção, o alcance das políticas públicas e, sobretudo, o papel que passou a
representar na agenda política do Estado86.
Há mais três perguntas que ajudam a orientar a reflexão deste subtópico: as
mudanças de governo, entre os anos de 2015 à 2019, produziram repercussões na
tramitação do PLS 248/2015? Qual o papel desempenhado pelo governo federal na
aprovação do PLS 248/2015, a partir do ano de 2019? Em outras palavras, o Governo
Bolsonaro tem dado apoio à proposição legislativa do Senador Paulo Paim?
As respostas não são óbvias, pois, nem sempre o que é dito, que está anunciado
expressamente, correspondem às práticas e as intenções dos atores políticos que atuam
na burocracia estatal e no âmbito dos Poderes da República. A dificuldade também de
obter as respostas para as supracitadas reflexões se dão pelo fato da “ambiguidade” ser
inerente à política, como reconheceu empiricamente o antropólogo Luiz Abreu (2000)
em pesquisa realizada no Congresso Nacional.
Por isso, a prática etnográfica, transcendo o locus do Senado Federal e levando
em consideração a diversidade de atores que integram as negociações de um processo
legislativo, pode apontar caminhos para entender, por exemplo, qual o papel do Poder
Executivo em face positivação dos direitos ciganos no âmbito do Poder Legislativo, em
especial, levando em conta tramitação do PLS 248/2015, que é o objeto desta tese.
Os governos eleitos têm como prerrogativa escolher, mobilizar pessoas para
atuarem e exercerem diferentes funções, da chefia dos ministérios, secretarias e
diretorias à composição dos conselhos de Estados. Tais escolhas, portanto, são decisões
políticas, que em menor ou grande escala, representam os interesses da gestão. Portanto,
Jorge Garcia é parte integrante do projeto político liderado pelo Presidente eleito em
2018, Jair Bolsonaro; foi escolhido, direta ou indiretamente, mas de forma específica,

86
Quando participei do evento organizado pelo governo federal em 2019 para comemorar o “Dia
Nacional do Cigano” percebi que a mudança de gestão no âmbito do Poder Executivo significou também
uma mudança de quais comunidades ciganas passaram a acessar o governo federal.
354

para ser um interlocutor entre o governo federal e a agenda política dos povos ciganos
no Brasil. E por que digo de forma específica?
Na noite de 9 de abril de 2019, após um dia intenso de reuniões do CNPIR,
acompanhei a liderança Maria Jane, na condição de conselheira nacional, numa reunião
com Jorge Garcia, que à época atuava como servidor comissionado do MMFDH,
enquanto diretor do Departamento de Igualdade Racial e Étnica. O encontro foi
solicitado por Jane, com o objetivo de apresentar uma carta reivindicativa com
demandas dos povos ciganos, uma vez que o diretor de tal órgão se identifica,
publicamente, como “cigano”. Por outro lado, tentando se esquivar de qualquer
responsabilidade em face das demandas apresentadas, Jorge Garcia argumentou que não
foi convidado para trabalhar no governo federal por “ser cigano”, mas sim por “ser
sociólogo” e “ser irmão de igreja de longa data da Ministra”87. Além disso, afirmou
também que as reinvindicações deveriam ser encaminhadas, na verdade, para o diretor
do Departamento de Promoção de Igualdade Racial para Povos e Comunidades
Tradicionais.
Embora afirme que não tenha sido chamado para fazer parte do governo por ser
“cigano”, o discurso adotado por outros integrantes da gestão é totalmente diferente em
relação ao papel de Jorge Garcia. A secretária nomeada para ocupar a chefia do SNPIR,
também anunciada como “1ª indígena a assumir uma secretaria nacional”, em entrevista
concedida à imprensa, que foi publicada em 04 de janeiro de 2019, ressaltou que
“dentro da diretoria, também temos um cigano. Ou seja, o governo Bolsonaro está
dando uma visibilidade inédita para minorias, até então nunca dada” (SCORTECCI,
2019, meu destaque). Frisa-se que a supracitada referência indígena, titular da secretaria
durante um ano e nove meses, foi demitida em setembro de 2020, sendo que até o final
deste ano, a pasta permaneceu sem chefia88.
Além disso, durante a abertura da 64ª Reunião Ordinária do CNPIR, primeira
atividade do órgão colegiado no Governo Bolsonaro, que ocorreu na manhã do mesmo
87
“Sou irmão de fé da ministra, somos da mesma igreja” também foi uma resposta padrão que ouvi de
outros integrantes do MMFDH, quando perguntei a três pessoas diferentes como “eles foram parar no
Ministério”, durante a hora do “cafezinho” do evento de comemoração ao “Dia Nacional do Cigano”, que
foi promovido no primeiro ano de governo de Bolsonaro (SILVA, 2020, p. 118). É importante dizer que
identifiquei durante a observação participante uma ambiguidade na atuação política de Jorge Garcia nesta
sua relação com a religião, e não por conta da sua vinculação com uma determinada doutrina, mas o fato
de não se referir expressamente em espaços da esfera pública (atividades acadêmicas ou do Estado) que
além de ser “sociólogo” e “teólogo” como costuma se apresentar, é também “pastor”, sendo esta função a
que mais prepondera na sua relação com os ciganos com quem se articula e mobiliza. Inclusive, embora
se apresente como “cigano”, ainda que não tenha construído sua sociabilidade em uma comunidade ou
família cigana, este agente público em alguns momentos imprime críticas negativas à prática da “leitura
de mão”, ficando ainda mais claro sua adesão à dogmas cristãos religiosos mais conservadores.
88
“Titular foi demitida por ter tido, segundo a Polícia Federal, envolvimento com atos antidemocráticos.
Movimento negro ataca vacância” (AUGUSTO, 2020).
355

dia que a liderança Jane encontrou o então diretor do Departamento de Igualdade Racial
e Étnica, Jorge Garcia, que estava na plateia, foi chamado pelo presidente da mesa para
sentar ao seu lado, sendo verbalizado expressamente que ele era um “cigano” na gestão
federal enquanto se aproximava.
Está mais que evidente que Jorge Garcia, na condição de “cigano”, assim como a
titular do SNPIR, anunciada como a “primeira indígena” a chefiar a pasta da “promoção
da igualdade racial” desde a sua criação, foram mobilizados para transmitir uma
mensagem política à sociedade: o compromisso do Governo Bolsonaro com a
diversidade. Diante de uma série de polêmicas envolvendo o presidente eleito em 2018
e as pautas relacionadas aos Direitos Humanos e as relações étnico-raciais89, antes,
durante e após o pleito, é possível dizer, em outras palavras, que a nomeação para
cargos do segundo e terceiro escalão de atores políticos como Jorge Garcia representa
um esforço em rechaçar a ideia de ruptura com a pauta da “igualdade racial”, embora na
prática, levando em consideração os dois primeiros anos de governo, não tenha
significado um aumento de recursos destinados às políticas públicas ou de um maior
diálogo com as minorias políticas raciais e étnicas no Brasil.
Se por um lado uma parte considerável dos movimentos negros e indígenas não
tinham boas expectativas no âmbito das políticas raciais, com o início do governo
Bolsonaro, entre as pessoas que constroem o movimento cigano no Brasil havia uma
esperança com a nova gestão, principalmente, diante da presença de Jorge Garcia no
MMFDH.
Destaco, mais uma vez, a conversa que tive com integrantes da assessoria do
Senador Paulo Paim, em fevereiro de 2020. Na verdade, aproveitei a ocasião para
compartilhar um estranhamento que tinha acerca da tramitação do PLS 248/2015: por
que o Estatuto do Cigano ainda não havia sido votado na CDH? E se a falta de
movimentação processual do PLS 248/2015 no ano de 2019 teria relação com o fato de
estarmos em um governo mais alinhado ao que se pode chamar de “extrema-direita”?
Em resposta, o assessor respondeu que não vê o governo Bolsonaro trabalhando para o
projeto não ser aprovado. Pelo contrário, foi declarado que esta gestão se mostrava
sensível à “pauta dos ciganos” e que a chefe da pasta dos Direitos Humanos conhece de
“perto” o PLS e ressaltou que o autor do projeto de lei tem uma “boa relação” com a
ministra de Estado.

89
Em reportagem publicada no dia 5 de novembro de 2018, “o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL),
voltou a dizer [...] se depender dele, não haverá mais demarcação de terras indígenas no país”
(RESENDE, 2018).
356

No dia 21 de fevereiro de 2019, segundo mês do governo Bolsonaro, a ministra


de Estado responsável pela pasta dos Direitos Humanos foi convidada para participar de
uma audiência pública na CDH do Senado Federal. A audiência pública do dia
21/02/2019, que ocorreu na CDH do Senado, foi convocada para que o governo
Bolsonaro, representado por sua ministra de Estado, apresentasse quais são os planos da
gestão federal para a pauta dos “Direitos Humanos”. Observem, abaixo, a mensagem da
comunicação oficial do Senado em referência à realização desta audiência pública:
A Comissão de Direitos Humanos do Senado recebe em audiência pública
nesta quinta-feira (21) a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos.
O convite foi negociado nos últimos dias entre a CDH e o ministério e o
requerimento foi aprovado pela comissão na terça-feira (19). A ministra
falará sobre a perspectiva atual e para os próximos anos da execução das
políticas de direitos humanos do governo.
— A ministra será recebida com toda a diplomacia e respeito que temos
com nossos convidados. Ela terá garantido o direito a falar sobre seus
projetos, sobre a perspectiva atual e para os próximos anos, da execução das
políticas de direitos humanos — garantiu o presidente do colegiado, senador
Paulo Paim (PT-RS).
Paim explicou que, após as notícias e declarações da ministra nos dois
últimos meses90, achou importante convidá-la para que pudesse falar sobre
suas prioridades. O senador acha fundamental iniciar um diálogo entre o
ministério e a CDH. Segundo ele, a comissão tem uma visão muito ampla do
que sejam os direitos humanos.
— Não é somente a discussão sobre tortura, por exemplo. Os direitos dos
índios, os direitos da mulheres, os direitos dos negros ou dos deficientes
físicos. Tudo está nos direitos humanos. O direito ao transporte é um direito
constitucional, da mesma maneira que o direito à assistência dos portadores
de doenças raras é um direito humano. O direito à liberdade religiosa, ou
mesmo de não ter religião é um direito que tem de ser respeitado. É muito
importante estabelecermos um diálogo com o ministério para
garantirmos os direitos humanos de todos os brasileiros.
A audiência está marcada para as 9h, no Plenário 6 da Ala Nilo Coelho, e
será retransmitida pela internet. Também estará aberta a perguntas dos
internautas, tanto pelo Portal e-Cidadania (www.senado.leg.br/ecidadania)
como pelo Alô Senado (0800 61 2211). (BRASIL, 2019d, meus destaques)

Após a audiência pública, a agência oficial de comunicação do Senado publicou


uma reportagem noticiando que a ministra defendeu a “aprovação do Projeto de Lei do
Senado (PLS) 248/2015, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que cria o Estatuto
do Cigano. Paim, que é presidente da comissão, foi quem convidou a ministra para
apresentar seu plano de governo ao Senado” (BRASIL, 2019e). Vejamos um trecho do
discurso da ministra em audiência pública realizada no dia 22 de fevereiro de 2019 na
CDH, quando fez referência ao PLS 248/2015:
Temos que aprovar com urgência o Estatuto do Cigano, que é de autoria
do senador Paim. Ainda, infelizmente, nessa nação, o cigano é visto como

90
“Anunciada oficialmente como futura ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos no dia
6 de dezembro, despertou o interesse da mídia desde o princípio devido às suas frases polêmicas. Com
posicionamentos claros sobre assuntos como aborto e feminismo, a ministra é advogada e pastora
evangélica.” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2018).
357

trapaceiro, mentiroso. Nós temos dicionários de português que na palavra


‘cigano’ está lá ‘enganador, velhaco e trapaceiro’, em pleno 2019. O
delegado não quer fazer ocorrência na delegacia porque a mulher cigana é
mentirosa e trapaceira. (BRASIL, 2019a, meu destaque)

A aprovação do “Estatuto do Cigano”, de autoria do Senador Paulo Paim, foi


citada pela ministra, pelo menos durante o seu discurso na atividade da CDH, como um
dos compromissos do governo federal. A possível articulação de pessoas ligadas ao
governo em torno de um outro projeto de lei, que também propõe instituir um
“Estatuto”, prova que a política é dinâmica, não é estática, sobretudo diante dos
conflitos e das disputas, que geram reposicionamentos em relação ao projeto que deve
ser aprovado, por exemplo. E que, diferentemente do que foi anunciado na audiência
pública do CDH, em 22 de fevereiro de 2019, o governo passou a também ter interesse
em dizer quais devem ser os direitos dos povos ciganos. E digo o governo porque o
autor do projeto da Câmara, além de ser da base governista, é muito próximo à ministra
de Estado. Ou seja, dificilmente não houve interlocuções, diretas e indiretas, entre
ambos, que culminaram no PL 2703/2020.
Por isso defendo que há várias formas de fazer oposição ao projeto de lei do
Senador Paulo Paim sem necessariamente anunciar que é contrário. Jorge Garcia, que
representa o projeto político do governo federal, a partir do ano de 2019, deu alguns
sinais que não apoia e também não se esforça para aprovar o PLS 248/2015. Cito quatro
ocasiões.
A primeira ocasião, em 24 de maio de 2019, nas comemorações do “Dia
Nacional do Cigano”, organizado pelo próprio agente público, na sede da PGR/MPF -
nenhum integrante do governo, nem mesmo Jorge Garcia, ao longo do evento e dos
debates, fizeram referência à tramitação do PLS 248/2015.
Na segunda ocasião, em 20 de agosto de 2020, durante o “Encontro dos Povos
Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”; quando o ponto de pauta passou
a ser “Estatuto - PLS 248/2015”, o Jorge Garcia saiu imediatamente da sala virtual.
Na terceira ocasião, durante a reunião organizada pela assessoria do relator do
“PLS”, que foi realizada em 9 de outubro de 2020, Jorge, embora convidado, não fez
nenhum pronunciamento, permaneceu em silêncio ao longo das duas horas de evento.
O quarto e último momento, quando Jorge foi adicionado ao grupo de Whatsapp
criado pela assessoria parlamentar do Senador Telmário Mota para apoiar e ajudar nas
articulações do projeto de autoria do Senador Paulo Paim; sem dizer uma palavra, logo
após ser adicionado, este se retirou, ou seja, saiu do grupo.
358

É possível notar, levando em conta, sobretudo, as ocasiões envolvendo o


interlocutor do Governo Bolsonaro que se identifica e é identificado por algumas
lideranças como “cigano”, que a aprovação do PLS 248/2015 deixou de ser (ou nunca
foi) uma prioridade do Poder Executivo federal a partir do ano de 2019, diferentemente
do discurso. Todavia, não apenas em relação ao projeto de lei do Senador Paulo Paim,
pois, os dois primeiros anos de Governo Bolsonaro foram marcados pela ausência de
novas políticas públicas, portarias, resoluções91 e editais destinados aos povos ciganos
no Brasil92. Portanto, a presença de uma “representação cigana” no Poder Executivo93 ,
direta ou indiretamente94, não significou um aumento de recursos e ações concretas, que
já eram poucas nos governos anteriores, destinados às políticas de promoção da
igualdade racial e para a inclusão dos povos tradicionais.
Por isso interpreto que o “essencialismo estratégico”, para além do que foi
teorizado Spivak, é também um instrumento que pode ser mobilizado por grupos de
diferentes espectros ideológicos, não apenas as correntes mais à esquerda ou
progressistas, como o senso comum costuma associar. Ou seja, as forças políticas de
direita e inclusive de extrema direita, dependendo do contexto, como é o caso do Brasil,
pode igualmente buscar se legitimar a partir do identitarismo, da concepção de
representatividade, pelo menos, essa é a ideia que se transmitiu ao serem nomeados para
o segundo e terceiro escalão, uma representação tida como “indígena” e outro tido como
“cigano”. E a forma como este fato foi explorado politicamente pela comunicação do
governo me fez lembrar do conto “As caridades odiosas”, de Clarice Lispector (1984),
que faz parte do livro “A descoberta do mundo”. Faço essa associação porque esta
autora critica as pessoas que promovem a caridade, explorando o sofrimento e a pobreza
do outro para fazer algo “bom” apenas para se sentirem melhor e sobretudo para se

91
Os únicos atos normativos secundários, emitidos pelo Poder Executivo Federal, que fazem referência
direta aos “ciganos”, no Brasil, começaram a ser produzidos a partir do ano de 2002, e, principalmente, a
partir do primeiro de governo do ex-presidente Lula, com o decreto que instituiu o “Dia Nacional do
Cigano” (MOONEN, 2011, p. 8), sendo que o último documento desta natureza que foi emitido ocorreu
em 28 de dezembro 2018, por meio da Portaria nº 4.384, do Ministério da Saúde.
92
O Ministério da Cultura, em 2008, lançou o primeiro edital “Prêmio Culturas Ciganas”, destinado a
pessoas jurídicas e físicas. Ao total, ocorreram três edições, sendo que a última edição foi lançada no ano
de 2014. “O Prêmio Culturas Ciganas compõe o conjunto de políticas públicas da SCDC/MinC destinadas
a apoiar e dar visibilidade às expressões culturais de grupos étnicos da diversidade cultural brasileira.
Celebrações e festas tradicionais dos Povos Ciganos; música, cantos, danças, narrativas simbólicas,
culinária, vestuário, joalheria, grafismos e artesanato são algumas das atividades culturais que estão sendo
apoiadas nesta edição do prêmio” (BRASIL, 2014e).
93
Jorge Garcia permaneceu no Departamento de Igualdade Racial e Étnica até o dia 1º de julho de 2019,
quando pediu exoneração do cargo (BRASIL, 2019c).
94
Jorge Garcia continuou como uma referência do Estado e permaneceu colaborando com o governo
federal, por exemplo, participando de órgãos colegiados, como o CNPIR, que integra na condição de
“conselheiro governamental”, indicado para a uma das três vagas de “notório saber” para o “Biênio
2019/2020” (BRASIL, 2020k).
359

exibir, um tipo de ação que disfarça a crueldade do sistema e a exploração que lhe é
intrínseca, sendo também um procedimento que confere status social. O exibicionismo
descrito por Lispector aproxima-se da ação de marketing do governo federal ao fazer
questão de publicizar o fato de ter nomeado o “primeiro cigano” para um cargo de
direção na administração pública brasileira.
Trata-se de uma concepção de representatividade voltada para o indivíduo em si,
e não para a coletividade, uma vez que não há qualquer articulação com o
enfrentamento do racismo e das desigualdades sociais enquanto problemas estruturais
que são potencializados no sistema capitalista. Inspirado na pesquisa do historiador
Asad Haider (2019), que refletiu sobre a relação das identidades com o Estado e a
cooptação de uma “política identitária” por ideais liberais individualistas, é possível
dizer que o Governo Bolsonaro pode estar atuando, na verdade, para enfraquecer das
instituições e políticas voltadas para a promoção da igualdade racial e para a inclusão
social dos povos e comunidades tradicionais. Faço esta afirmação levando em
consideração os seguintes fatos: a extinção de ministérios95 e órgãos colegiados96, assim
como corte de verbas públicas97 que possuem conexão com a agenda dos Direitos
Humanos98 e das minorias99. Além de ser uma gestão que promove embates mais diretos

95
“A Medida Provisória 870/19 reduz de 29 para 22 o número de órgãos com status ministerial no
governo federal. [...] Pela decisão, ficam extintos os seguintes ministérios: Cidades; Cultura;
Desenvolvimento Social; Esportes; Fazenda; Indústria, Comércio Exterior e Serviços; Integração
Nacional; Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; Segurança Pública; e Trabalho” (BRASIL, 2019b).
96
“Editado em 11 de abril pelo governo, o decreto 9.759/2019 determina a extinção de todos os
conselhos, comitês, comissões, grupos e outros tipos de colegiados ligados à administração pública
federal que tenham sido criados por decreto ou ato normativo inferior”, entre eles estão o Conselho
Nacional dos Povos e Comunidade Tradicionais. A medida foi declarada inconstitucional pelo STF
(BRASIL, 2019g).
97
Segundo o relatório técnico preliminar “Direitos da População Negra e Combate ao Racismo”,
elaborado pela Consultoria Legislativa e pela Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, “a
Fundação Cultural Palmares teve o orçamento drasticamente reduzido. Em 2012, foram executados cerca
de R$ 6,5 milhões nas políticas da fundação. Em 2019, o valor caiu para R$ 837,7 mil. Até o final de
setembro de 2020, a fundação executou menos da metade do dinheiro empenhado para este ano. Foram
reduzidos ainda os recursos para a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Em
2012, foram executados cerca de R$ 5 milhões. No ano passado, pouco mais de R$ 800 mil. Na estrutura
da secretaria, foi extinto, por decreto do governo federal, o Comitê de Articulação e Monitoramento do
Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial” (BRASIL, 2020d).
98
“[...] os recursos destinados para a saúde sofreram corte de mais de R$ 34 bilhões em relação ao gasto
no ano anterior. O montante aprovado foi de R$ R$ 125,7 bilhões. Em 2020, o valor executado com a área
foi de R$ 160 bilhões. Já o orçamento destinado à Educação sofreu corte de 27% em relação ao ano
passado, ficando em R$ 74,56 bilhões. A área de Ciência e Tecnologia sofreu corte ainda maior, com
diminuição de 28,7% em relação aos recursos executados em 2020, ficando com apenas R$ 8,36 bilhões”
(ANDES, 2021).
99
“Levantamento do Inesc mostra que cortes pouparam setores historicamente privilegiados, como o
Legislativo e o Judiciário, e atingiram áreas relacionadas com a garantia de direitos humanos. [...] poucos
serão os recursos para a garantia de direitos das minorias brasileiras” (ZIGONI et al., 2019).
360

e explícitos com os povos indígenas100, assim como em questões relacionadas aos


conflitos socioambientais e à luta pela terra101 102.

Imagem 27 - Registro da audiência pública realizada para discutir a


extinção de conselhos nacionais pelo governo

Fonte: acervo próprio (2019).

Concordando com as reflexões de Haider (2019), é fundamental partir do


pressuposto que a identidade não é um ponto final, mas o início das lutas contra o
racismo, as injustiças, assim como no enfrentamento ao anticiganismo. Não se deve ter
ilusões com governos que nomeiam agentes públicos pertencentes a grupos minoritários
sem levar em consideração a macropolítica. Em outras palavras, temos que considerar a
identidade nas análises da sociedade e sobretudo na formulação das políticas públicas,
mas sempre enquanto algo vinculado à materialidade do mundo.
Para o supracitado historiador, quando a mobilização da identidade não se
fundamenta no pertencimento a uma coletividade e em um movimento de massa contra
uma estrutura social opressiva, ela acaba fortalecendo as normas que critica. Neste
100
Em reportagem divulgada em janeiro de 2020, a BBC News Brasil listou os principais pontos de
conflito entre Bolsonaro e os indígenas críticos a seu governo, são eles: demarcações paralisadas;
mineração em terras indígenas; expansão do agronegócio; cultura e integração; e os órgãos indigenista
(FALLET, 2020).
101
“Levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgado hoje (17), revela que o Brasil
registrou, em 2019, 1.833 conflitos no campo, o número mais elevado dos últimos cinco anos e 23%
superior ao de 2018. O dado reúne ocorrências relacionadas a disputas por terra, disputas por água e
conflitos trabalhistas” (BRASIL, 2020g).
102
Frisa-se a ausência da inclusão dos povos ciganos entre os grupos prioritários, diferentemente do que
ocorreu com as comunidades quilombolas e indígenas, no plano de vacinação do Covid 19, em um
governo que adota o discurso de tratar este segmento étnico como prioridade.
361

sentido, quando integrantes e apoiadores do governo Bolsonaro enfatiza, de forma


implícita ou explícita, a presença do “primeiro cigano” no alto escalão da administração
pública, da “primeira indígena” enquanto secretária de Estado, contribui para fortalecer
a narrativa de uma gestão que respeita a diversidade cultural e étnica, uma suposta
“política identitária”, mas que efetivamente busca neutralizar movimentos que atua
contra a opressão racial, a partir da apropriação de um legado emancipatório que agora é
acionado a serviço das elites103.
Não há novidades em termos de políticas públicas direcionadas aos povos e
comunidades tradicionais, como os povos ciganos. Além disso, no caso do papel do
Poder Executivo federal, a partir do ano de 2019, há também um relativo esvaziamento
e paralisia na pasta relacionada à “promoção da igualdade racial”. Os dois primeiros
anos do governo Bolsonaro coincidem com o fato de quase não ter havido
movimentações processuais do PLS 248/2015, embora, por outro lado, tenha
intensificado as articulações, dentro e fora do Congresso Nacional, em torno da
definição e produção dos direitos ciganos, o que é perpassado por uma série de disputas
que não são tão fáceis de serem percebidas.

***

Ao desenvolver esta pesquisa sobre a construção político-jurídica do Estatuto do


Cigano, por meio da etnografia da tramitação do “PLS 248/2015” no Senado Federal,
pude identificar uma série de intermitências que envolvem a “criação de leis” que têm
como destinatárias minorias políticas e étnicas. Em relação ao tópico “4.2”, fica
evidente, primeiro, a existência de oposição ao projeto de lei de iniciativa do Senador
Paulo Paim, que dificilmente poderia ser identificada sem a técnica da observação
participante, pois, me conduziram para os bastidores desta trama.
O que chamo de “oposição ao PLS 248/2015” expressa, na verdade, as disputas
políticas dentro e fora do “movimento cigano”, que não é uniforme e que não se dá
apenas por conta dos diferentes grupos e subgrupos étnicos que são destinatários, como
também por conta de outros fatores. Trata-se de um movimento, por natureza,
heterogêneo e disperso. Esta “oposição” ficou ainda mais evidente diante da segunda
proposição legislativa para criação de um “Estatuto” voltado aos “povos ciganos”, o
103
De acordo com Haider (2019), que leva em consideração a realidade dos Estados Unidos, mas que
pode ser aplicada ao Brasil, essa questão se apresenta mediante uma cooptação discursiva realizada pela
direita e de uma perspectiva de ascensão individual que coloca sujeitos historicamente oprimidos em
posições de poder (posições que antes eram vetadas a tais identidades históricas), mas agindo contra seus
interesses mais amplos enquanto classe.
362

“PL 2703/2020”, de autoria do deputado bolsanarista Filipe Barros e articulado, direta


ou indiretamente, por uma “representação cigana” atuante dentro do governo federal
entre os anos de 2019 e 2020, seja ocupando cargo comissionado no MMFDH, seja na
condição conselheiro no CNPIR.
Portanto, as tentativas de criação de um “Estatuto” não se limitam apenas à
definição do “o que é ser cigano” ou “quais devem ser os direitos ciganos” a serem
reconhecidos pelo Estado. Vai além. A disputa central consiste em: quem deve definir
os direitos ciganos. Isto é, quem pode e quem não pode atuar enquanto interlocutor com
o Estado no processo de criação do “Estatuto”. Tendo em vista que o objetivo do meu
trabalho foi viabilizado pela etnografia da tramitação do projeto de lei do Senador Paulo
Paim, para compreender o processo de construção político jurídico do “Estatuto do
Cigano” no Brasil, percebo que as “oposições” em relação ao PLS 248/2015 são mais,
preponderantemente, em face de quem está propondo, e não tanto em relação à
matéria/conteúdo do projeto em si.
O presente estudo antropológico também funcionou como uma espécie de lente
para entender as práticas estatais no Brasil, especialmente, quando se refere a criação de
uma lei que tem como destinatária os povos ciganos. Um processo que não se restringe
ao que acontece no Congresso Nacional ou aos aspectos formais de um projeto de lei
em tramitação. Além de identificar a diversidade e as disputas entre os atores ciganos
que atuam politicamente em interlocução com o Estado, foi possível notar também
diferenças na condução da “política cigana” no âmbito do Poder Executivo federal.
O interesse direto na criação do “Estatuto” por integrantes do Poder Executivo, a
partir do ano de 2019, demonstram que diferentes espectros políticos-ideológicos, e não
apenas ligados ao campo progressista, também possuem projetos políticos em Direitos
Humanos e de multiculturalismo, mediante, inclusive, da mobilização do
“essencialismo estratégico” e da pauta identitária. Pautar a “questão cigana” a partir da
produção de direitos, como pude constatar na presente pesquisa, está inserido numa
disputa ainda maior, pela hegemonia política e cultural de uma determinada sociedade.
363

Considerações finais

A proposta desta tese foi descrever e analisar o processo de construção


político-jurídica do “Estatuto do Cigano”, a partir da etnografia da tramitação do PLS
248/2015, de autoria do Senador Paulo Paim, compreendendo esta trama como parte de
outros processos, ligados a diversos acontecimentos e mecanismos parciais pelos quais
os “ciganos” são constituídos historicamente, regulados institucionalmente como
questão social e enquanto um de campo de ingerência dentro e fora do Estado.
Enquanto uma análise antropológica sobre a produção dos direitos ciganos,
minha atuação não se restringiu ao papel de pesquisador, coletando informações,
empreendendo entrevistas ou levantando documentos. Uma vez que me envolvi também
como um colaborador, contribuindo com as discussões sobre o PLS, traduzindo
conceitos do mundo jurídico para as lideranças ciganas e auxiliando em demandas
formais. Assim como também construí uma relação de amizade com os interlocutores
da pesquisa, podendo conhecer melhor a vida cigana, respeitando suas moralidades.
Tudo isso contribuiu ainda mais para me sensibilizar com suas dores, entender suas
reivindicações e poder produzir conhecimento a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, articulando o Direito, a Antropologia e as Ciências Humanas em geral.
No primeiro capítulo, ficou nítido que a emergência da pauta pela criação do
“Estatuto” parte do entendimento que esta proposta de marco regulatório tem o
potencial de promover uma “correção moral” em face do anticiganismo presente na
sociedade brasileira. Atuar como um mecanismo de “reparação histórica”, apostando
que a afirmação de direitos pode reverter os efeitos de séculos de políticas que
desumanizam a existência cigana, entendidas neste estudo como expressões e reflexos
da colonialidade. Ao mesmo tempo que compreende que a “intervenção estatal” pode
garantir a inclusão social desta minoria étnica.
A partir do PLS 248/2015, portanto, disputa-se dentro do fenômeno jurídico uma
nova concepção de direito que busca aproximar os “povos ciganos” do olhar e atuação
do Estado no âmbito das políticas de direitos humanos, e distanciá-los do seu aspecto
repressivo, especialmente do direito penal, que ainda é o que está mais perto das suas
realidades.
No segundo capítulo, ao descrever no corpo do texto como a proposta de
“Estatuto” chegou ao Senado Federal, foi possível identificar diferentes narrativas,
assim como um campo de tensões em torno do papel desempenhado pelos atores sociais
envolvidos nesta trama. Sobretudo a associação cigana apontada como “proponente” do
364

projeto de lei, a “ANEC”. Identificar o contexto destes questionamentos foi a chave


para interpretar a cadeia de sentidos que se manifesta em torno dessa trama.
O presente processo foi perpassado por mediações que envolveram uma
preponderância de “protagonismos individuais”, tanto no âmbito dos movimentos
ciganos, assim como no caso das instituições, sendo o MPF a mais importante delas.
Não é um exagero afirmar que um dos seus subprocuradores-Geral da República,
publicamente conhecido por ser uma das maiores referências em direitos ciganos,
correspondeu a uma figura central para o avanço da pauta pela criação do “Estatuto”,
transbordando inclusive o papel institucional do órgão público que está vinculado.
Significando, portanto, que a emergência do “PLS” esteve praticamente condicionada a
sua tutela, o que garantiu a escuta do Estado. Ao mesmo tempo que não decorreu
unicamente de uma articulação de massas envolvendo a coletividade cigana, mas sim
uma luta de alguns “grupos”, organizados em associações, que se aliaram para negociar
a instituição de uma lei específica. A tutela do MPF e o fato de ser uma luta de “grupos”
se dão no contexto da própria fragmentação que há no movimento cigano, uma vez que
não há vácuos na política.
Há uma questão primordial para a tramitação do PLS 248/2015 que eu dei
ênfase no terceiro capítulo desta tese: as disputas em torno da definição de “quem é” e
consequentemente “quem não é cigano”. Busquei neste estudo problematizar e entender
tais empreitadas no sentido de definir os critérios no projeto de lei para identificar os
“ciganos”, pois há uma série de jogos de força e contradições que são inerentes a
qualquer tentativa de normatização de uma identidade. Porque “definir” é uma forma de
normatizar, pressupõe uma fronteira que inevitavelmente almeja classificar, separar e
como resultado segregar, ainda que a tentativa de “conceituar os ciganos” seja para
afirmar direitos. Há inúmeros sentidos conflitantes
Entendendo enquanto parte das relações de poder que atravessam a construção
política jurídica do “Estatuto”, pude concluir que os “ciganos” não são apenas objetos
da normatização do Estado, mas que estes também concorrem e vivenciam o seu
processo de subjetivação. Os constantes questionamentos quanto à necessidade de uma
lei específica, assim como em relação à própria condição de “minoria étnica” dos
ciganos demandaram a manipulação, não no sentido pejorativo, de determinados
elementos diacríticos com o objetivo de viabilizar o reconhecimento destes enquanto
povos tradicionais e que muitas vezes estão atrelados à vulnerabilidade social.
As disputas em torno da caracterização da “ciganidade”, que apareceram no
processo legislativo em tela, ocorreram pelo fato do critério a ser adotado no “Estatuto”,
365

uma vez sendo aprovado este instrumento jurídico, além de indicar quem deve ser os
destinatários das políticas públicas, têm o potencial de estabelecer novos parâmetros de
“quem pode” e de “quem não pode” falar pelos povos ciganos no Brasil, em especial na
interlocução com a burocracia estatal, espaço que é restrito, não está acessível a todos
que o desejam, devido aos próprios limites da nossa democracia.
No quarto capítulo, a pesquisa etnográfica, dando ênfase ao processo
legislativo em si, pude constatar empiricamente que há uma margem porosa, um
conjunto de regras formais e informais, que regem a “criação de uma lei”, sendo a falta
de previsão expressa quanto ao “tempo” que algumas atos procedimentais devem ser
realizados um fator que torna instável e imprevisível a aprovação de uma proposição
legislativa. Ao identificar e tentar compreender as “pausas” que ocorreram no processo
do PLS 248/2015, ficou evidente os potenciais usos do tempo como mecanismo de
exercício do poder. Ou seja, o tempo é uma questão central nos processos legislativos.
A trama do “Estatuto” tem como pano de fundo justamente o gerenciamento da
alteridade, isto é, a gestão da diferença, como lidar com o outro. No caso do Brasil, há
uma série de disputas, entre diferentes forças, no sentido macropolítico, assim como
envolvendo lideranças e outros atores não ciganos, pela prerrogativa de poder dizer os
direitos ciganos, e sobretudo “quem deve” falar por esta coletividade. O aparecimento
de uma segunda proposição legislativa, o “PL 2703/2020”, praticamente com o mesmo
objeto do PLS 248/2015, não há como ser visto de outra forma que não seja enquanto
uma resposta política em oposição ao primeiro projeto de lei submetido ao Congresso.
Os processos legislativos são produtos e ao mesmo tempo partes de uma série de
fatores conjunturais; envolvem articulações que transcendem o universo do Estado. A
presente pesquisa possibilitou-me entender que as práticas estatais não só versam sobre
a produção de leis ou a definição das políticas públicas, elas também constituem os
sujeitos, como acontece com os ciganos na trama que envolve o Estatuto.
Esta tese trouxe para a produção de conhecimento acadêmico no Direito duas
questões centrais, repensar as fronteiras dos direitos humanos, levando em conta as
lutas ciganas e suas formas de resistências, assim como expor as tensões, os jogos e
relações de poder que ocorrem na “criação das leis”, considerando o processo de
construção político-jurídica do “Estatuto”. A proposição de um “marco legal” é
assumida, portanto, como um instrumento, não enquanto um fim em si mesmo. E como
foi refletido, tal empreitada mobiliza múltiplos atores, instituições, narrativas, práticas
discursivas e não discursivas que têm interesse e culminam por intervir na constituição
do sujeito cigano no Brasil.
366

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08 jan. 2021.

______. Diário Oficial do Estado de São Paulo. Publicado em 09 de julho de 1986. São
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<https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f19
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D782OR6HPSO5.pdf&pagina=2&data=09/07/1986&caderno=Di%C3%A1rio%20do%20Mu
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TV MPF. Audiência Pública Maio Cigano 28/05/2018. 2018. (3h45m56s). Disponível:


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396

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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ePSoi40S5Gw&t=24s>. Acesso em: 27
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______. Diretora de escola disse que ciganos cozinham e comem criancinhas, denuncia Dep.
Érika Kokay. (01m52s). 2011. Disponível em:
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______. Em discussão – Povos e Comunidades Tradicionais – Bloco 1. (11m02s). 2013a.


Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=CYr9_an6u2Y>. Acesso em: 28 out.
2019.

______. Entrevista: as dificuldades, os estereótipos e o racismo enfrentado pela minoria


cigana. (6m35s). 2018b. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=fmQhLckfXl4&t=40s>. Acesso em: 27 out. 2019.

______. Estatuto do Cigano. 2018. (2h09m12s). 2018c. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=SCzeao1ZUn4&t=4337s>. Acesso em: 18 out. 2019.

______. Estatuto garante inviolabilidade das casas dos ciganos e transferência


de escolas. (3m16s). 2018d. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8XAGDApwH9k&t=62s>. Acesso em: 18 out. 2019.

______. Povo cigano: a luta para manter a tradição e combater o preconceito. (27m02s).
2018e. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S0UkhsCLuwQ&t=110s>.
Acesso em: 18 out. 2019.

______. Rep. da AMSK/Brasil explica a cultura dos povos ciganos. (14m25s). 2013b.
Disponível em: <youtube.com/watch?v=JE0JTF1XtP4> . Acesso em: 30 mar. 2019.
397

ANEXO A

CONVITE

Acredito ser de conhecimento de todos que o PLS 248/2015 tramita no Senado Federal
tratando da criação do ESTATUTO DO CIGANO. O tema deve ser reconhecido por todos nós
ciganos como algo de extrema importância, haja vista ser algo inédito, inclusivo e
potencialmente transformador da nossa realidade social neste país.
Tendo um Estatuto próprio, tratando especificamente do nosso povo, muitos problemas
enfrentados tanto por indivíduos como por comunidades ciganas em todo o território nacional
poderão ser resolvidos, crimes de preconceito e racismo serão punidos adequadamente e nós
ciganos poderemos desfrutar de uma melhor qualidade de vida.
Estamos nos articulando para que em 2016 consigamos avançar um pouco mais na
elaboração dos textos do Estatuto com o objetivo de concluí-lo, todavia é fundamental que
haja participação das lideranças ciganas interessadas, demonstrando e promovendo nossa
unidade e respeito mútuo, valorizando a contribuição que cada um pode dar.
Nossa intenção é agendar o quanto antes possível algumas Audiências Públicas que
tratarão do tema, todavia acreditamos ser de suma importância que, antes de cada Audiência,
discutamos “entre nós” mais aberta e profundamente alguns itens, como por exemplo “a
definição de cigano” no Brasil (“autodeclaração”, “autodefinição”, “filho de cigano, neto de
cigano”).
Importante é informar também que no dia 10 de dezembro de 2015 foi realizado um
belíssimo Seminário, promovido pela Frente Parlamentar da Família, ocasião em que foi criada
uma Comissão para discutir o Estatuto do Cigano. Todavia, como queremos mais
participação das Representatividades na elaboração do referido Estatuto, nossa solicitação
respeitosa aos assessores parlamentares envolvidos é que uma nova Comissão seja constituída,
de forma mais inclusiva, com maior número de lideranças, históricas e recentes, para que tanto
cumpramos o que reza Convenção 169 da OIT1, como possamos avançar em vínculo de
unidade do nosso povo.
1
Conferir em Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente a OIT. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf
398

PARA TANTO CONVIDAMOS OS INTERESSADOS NESSE PROCESSO PARA


PARTICIPAR DE UMA REUNIÃO SOBRE O ESTATUTO DO CIGANO, NO DIA 31 DE
MARÇO E 1 DE ABRIL DE 2016, EM BRASÍLIA/DF, NA UNIVERSIDADE DE
BRASÍLIA (UnB) – EM BREVE PASSAREMOS MAIS DETALHES DA SALA/BLOCO
E LOCAL EXATO.
Por ser uma reunião “nossa” cada participante precisará arcar com seus próprios custos
de viagem (avião, carro ou ônibus; alimentação e eventualmente a hospedagem) – agendamos
para março justamente para que todos tenhamos tempo hábil para providenciarmos os recursos
necessários para essa viagem e reunião.

POR FAVOR, CONFIRME SUA PARTICIPAÇÃO PELO TELEFONE (61)


8146-1405 OU PELO E-MAIL anecnacional@outlook.com PEDIMOS A GENTILEZA DE
CONFIRMAR SUA PARTICIPAÇÃO COM O MÁXIMO DE ANTECEDÊNCIA POSSÍVEL.

Wanderley da Rocha
Presidente Administrativo da Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC)

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