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Rio de Janeiro
2021
Phillipe Cupertino Salloum e Silva
Aprovada em 28/07/2021.
BANCA EXAMINADORA:
Rio de Janeiro
2021
CIP - Catalogação na Publicação
The purpose of this thesis was to promote the description and understanding of the process of
political and legal construction of the Statute of the Gypsy, through the ethnography of the
processing of the Senate Bill 248, of April 25, 2015 (PLS 248/2015), in the National
Congress. The production of gypsies rights within the State in legislative practice was
analyzed, interspersing the perspective of dense description in Geertz with the conception of
power in Foucault to produce knowledge about the power games that are resulting in the
constitution of the Gypsy subject and norming of gypsyness. The research was based on
fieldwork that focused on three ethnographic contexts: the functioning of the instances of the
Federal Senate related to the processing of the “Statute”; the discourses and articulations
involving different leaderships and “Gypsy representations” acting in the public sphere, in
spaces that involve the construction of Gypsy politics; and, finally, an ethnographic
immersion in the gypsy camp of the “proponent association” of the PLS 248/2015 to learn
more about the daily life and the logic of Calon life. This research allowed me to understand
that the plot of the “Statute” has as its background precisely the management of Gypsy
otherness in Brazil and that state practices not only deal with the production of laws or the
definition of public policies, they also constitute the subjects, as with the gypsies. It was
concluded that the legislative processes are products and, at the same time, part of a series of
conjunctural factors, political disputes and articulations that transcend the universe of the
State.
Keywords: Gypsy issue. Senate Bill 248, of 2015. The norming of gypsyness. Law-making.
RESUMEN
Palabras clave: Cuestión gitana. Proposición Legislativa del Senado 248, de 2015. La
normatización de la gitanidad. Proceso legislativo.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
Tabela 1 - Mensagens enviadas para o chat realizado ao longo da transmissão ao vivo da audiência pública do
dia 28 de maio de 2018 sobre o “Estatuto do Cigano”
Tabela 3 - Representações “ciganas” que estiveram presentes nas audiências públicas no Congresso Nacional a
partir de 2011
Tabela 5 - Lideranças que se identificam como “ciganas” presentes na audiência pública do dia 29/05/2018 na
CDH do Senado Federal
Imagem 7 - Seu Wanderley, Daiane Rocha e Senador Hélio José durante a 7º Reunião Extraordinária da
Comissão de Educação, Cultura e Esporte
Imagem 8 - Senadores Hélio José (esquerda) e Paulo Paim (direita) durante a 15ª Reunião da Comissão de
Assuntos Sociais
Imagem 12 - Proposta de emenda constitucional apresentada pelo parlamentar constituinte Antônio Mariz
(PMDB)
Imagem 14 - Apresentação de dança durante a audiência pública sobre a “cidadania cigana” realizada em 2011
Imagem 15 - Participação de Marlete Queiroz em sessão especial do Senado Federal para comemorar o Dia
Nacional da Consciência Negra
Imagem 16 - Audiência pública sobre os “direitos dos povos ciganos” realizada em 12 de dezembro de 2012
Imagem 24 - Registro da participação minha e da liderança Maria Jane na audiência sobre o PLS 248/2015
Imagem 27 - Registro da audiência pública para discutir a extinção de conselhos nacionais pelo governo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 18
1 - “INSUBMISSOS” 48
ANEXO A 397
17
Introdução
1
Adotei nesta tese os nomes reais de algumas lideranças, como é o caso Maria Jane, por entender ser
importante dar visibilidade a estas pessoas que se destacam na luta pelos direitos ciganos no Brasil. Por
outro lado, usei pseudônimos para se referir a outras “representações ciganas” e agentes públicos que
tenham manifestado discursos que possam comprometê-los, ainda que tenham relevância para a presente
pesquisa. Jane é uma interlocutora central para esta pesquisa, que será apresentada mais para frente.
2
Empreguei itálico nas palavras ou expressões que não são próprias da língua portuguesa e para destacar
termos nativos do processo analisado nesta tese.
3
As roupas formais, que se tornam o fardamento do profissional do Direito ou do burocrata estatal, é
apenas um reflexo desse processo. Warat (2007) defende que o processo de ensino das faculdades de
Direito, altamente fragmentado e embasado em “certezas” epistêmicas, fazem a universidades roubarem
do futuro jurista a possibilidade de pensar alternativas para a sociedade, reforçando o véu da ignorância e
a insensibilidade, impondo-lhe um pensamento único como válido e gerando uma postura autômata ante o
Direito, a sociedade e os sujeitos. Portanto, este autor idealizou um movimento que chamou de
“despinguinização dos estudantes e operadores do Direito”, partindo do pressuposto que precisamos de
juristas que entendam de gente ao invés de entender apenas de normas. Tais vestimentas além de
demarcar a diferença, nos distanciam um do outro.
4
Ao longo do texto da tese, adotei as aspas duplas para destacar conceitos que, por acionarem
significações, merecem definições contextualizadas. Frisa-se que em nenhum momento as aspas duplas
foram utilizadas para relativizar o sentido das palavras.
18
Do objeto à problematização
Nestes três eventos que eu citei, ficou mais evidente que embora a promulgação
da Constituição Federal de 1988 tenha formalmente ampliado o rol de direitos
fundamentais e consagrado a natureza multicultural, assim como a redemocratização do
Estado brasileiro, alguns povos e comunidades tradicionais permanecem com pouca ou
sem visibilidade, continuaram com insuficiente participação nas discussões públicas,
políticas e/ou acadêmicas. Meu interesse na pesquisa direciona-se justamente para um
destes segmentos: os “povos ciganos”.
Em princípio, este interesse foi surgindo entre os anos de 2015 e 2017, quando
acompanhei de perto articulações e eventos públicos que de alguma forma envolviam a
discussão sobre os direitos ciganos5. Inicialmente minha inserção ocorreu em atividades
de âmbito local e regional no estado da Paraíba. Nesta época, a aproximação com a
questão cigana se deu por meio de um projeto de extensão que coordenava e atuava em
parceria com uma associação cigana. Ao ingressar no Doutorado, em 2018,
desloquei-me fisicamente, com mais frequência, para a capital federal, entendendo que
este locus poderia me fornecer uma olhar mais amplo acerca da política cigana no
Brasil. Os três eventos que citei acima foram cruciais para repensar as minhas
possibilidades de investigação, que inicialmente consistia em compreender e analisar a
relação entre o associativismo cigano e os Direitos Humanos.
Nunca tive dúvidas que a minha pesquisa abordaria processos sociais e políticos
envolvendo os “ciganos”, a luta destes povos por direitos, no entanto, eu precisaria
delimitar o que seria investigado exatamente, qual seria o problema da minha pesquisa.
Por um ano, estive presente em diferentes ocasiões e espaços da esfera pública em
Brasília, com a presença de lideranças ciganas, onde estes buscavam a interlocução
com o Estado para discutir políticas públicas e direitos em geral. Seja em atividades
5
Nesta tese, não adoto a expressão “direitos ciganos” no sentido de existir um conjunto de regras e
princípios instituídos de forma autônoma por esta coletividade, que concorrem com as normas estatais. O
sentido aqui mobilizado é em referência à perspectiva dos “direitos humanos dos povos ciganos”, ou seja,
ao conjunto de bens materiais e imateriais reivindicados pelos povos ciganos em face do Estado brasileiro
como indispensáveis para a sua existência digna.
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alteridade cigana? Há outras questões acessórias que também contribuíram para abordar
a temática objeto da tese, foram elas: como se deu o aparecimento da “questão cigana”
no Direito e nas práticas estatais? De que maneira surgiu a proposição do “Estatuto do
Cigano” no Senado Federal? Quais são os direitos previstos no PLS 248/2015 e de que
modo contribuem para pensar as identidades, assim como a realidade dos “ciganos”? O
que está por trás da criação de uma lei que tem povos e comunidades tradicionais como
destinatários? De que forma a descrição e análise deste processo legislativo permite
compreender o funcionamento do Senado Federal e ao mesmo tempo identificar os
agentes públicos, assim como as articulações políticas mobilizadas em torno dessa
trama?
Para tanto, mobilizei a pesquisa etnográfica para descrever e compreender os
jogos de poder que envolvem a construção político-jurídica do “Estatuto”, refletindo
como o Estado brasileiro vem se colocando para promover a gestão da diferença cigana.
Por entender, inspirado nas reflexões do pesquisador Luiz Eduardo Figueira, que uma
das contribuições centrais da etnografia no campo acadêmico do Direito, diz respeito a
uma “perspectiva não normativa de fazer pesquisa. A etnografia pensa o direito
enquanto prática social: o que os atores fazem? Como fazem? Quais sentidos atribuem
às suas práticas? Quais categorias e sistemas classificatórios colocam em
funcionamento?” (2019, p. 363).
6
Em artigo científico de minha autoria, em que compartilho quais os caminhos que percorri, ao longo do
Doutorado, para etnografar o processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, “interpreto a expressão
‘liderança’ ou ‘liderança cigana’ como uma categoria nativa que é acionada nos espaços onde se dão a
‘luta dos ciganos por direitos’, locus da pesquisa que realizo. É usada tanto pelos ‘próprios ciganos’
atuantes na tramitação do PLS, pelos assessores e parlamentares, assim como nos documentos das atas
das audiências públicas e reuniões ordinárias do Congresso, para se referir às pessoas ‘ciganas’ que estão
à frente dos processos políticos ou atuando como intermediários na relação com a burocracia estatal,
assim como com espaços ‘não-ciganos’” (SILVA, 2020, 109).
22
7
Entre os autores e as autoras que realizaram etnografias acerca de processos envolvendo os ciganos no
Brasil, destaco: Dimitri Fazito de Almeida Rezende, Florência Ferrari, Martin Fotta, Marco Antonio da
Silva Mello, Mirian Souza, Cleiton Maia e Edilma Monteiro. Frisa-se que Luciano Mariz Maia,
Procurador da República e professor universitário, é o primeiro autor brasileiro que abordou a questão
cigana a partir de uma perspectiva jurídica, sobre direitos dos ciganos na legislação brasileira e inglesa em
1995.
23
densa contribuiu para perceber que tais alianças e as oposições são volúveis, vai e vem.
E foi justamente aí que busquei entender, atribuir significado às disputas e variações de
narrativas.
Os silenciamentos e o agenciamento da memória, por exemplo, não são
exclusividades de uma ou outra liderança. Observando o contexto em que isso
acontece, é possível afirmar que há sentido, elas denotam as próprias disputas que são
inerentes aos grupos sociais, sobretudo os mais oprimidos, que no caso dos ciganos
acabam concorrendo aos poucos espaços acessíveis de interlocução com a burocracia
estatal, disputa-se tudo.
Como são muitos grupos, diferentes entre si, embora unidos pela identidade
cigana, cada um pode também querer e entender que pode representar melhor a
coletividade. E, acima de tudo, de serem vistos e reconhecidos como uma ou a
referência da “luta cigana por direitos”. A etnografia que empreendi não pretendeu
extrair uma verdade inquestionável sobre as disputas políticas e fragmentações no
movimento cigano, ou querer fazer uma avaliação moral destes conflitos, mas sim
interpretar os seus significados para o processo.
A partir da descrição minuciosa dos jogos de poder que se manifestam em torno
da tramitação do PLS 248/2015, pude constatar primeiramente em geral que não há uma
relação direta entre o Estado na prática legislativa e os povos ciganos. Na verdade, esta
interlocução ocorre através da construção de mediações, envolvendo diversos atores
sociais, especialmente agentes públicos ligados ao MPF e algumas lideranças ciganas11,
sendo, portanto, um processo perpassado por “protagonismos individuais”. Quanto ao
MPF, o que eu descobri na pesquisa de campo é que a relação deste órgão com a agenda
dos “direitos ciganos”, para além do próprio “Estatuto”, não é tanto pela essência da
instituição, por aquilo que está previsto nas leis, mas sim pelo empenho pessoal de
alguns agentes públicos. Até porque a grande maioria dos atores sociais do Sistema de
Justiça não estão envolvidos ou demonstram interesse nesta pauta, na luta pelos direitos
ciganos e políticas públicas, se tratando mais de uma atuação pontual que está ligada a
“protagonismos individuais”.
Quando menciono a presença de “protagonismos individuais” no processo do
“Estatuto” estou entendendo que esta reivindicação e articulação está mais atrelada a
uma mobilização de “grupos” e sobretudo lideranças ciganas, assim como apoiadores
não ciganos, que se aliam e que muitas vezes se distanciam ou se reaproximam, diante
11
De uma certa forma, como pesquisador e apoiador do PLS eu acabei também atuando como
interlocutor.
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de acordos e laços instáveis. Pois há muita coisa em jogo para além do reconhecimento
formal dos direitos ciganos. A etnografia, portanto, foi fundamental para atribuir
sentidos a esta trama, viabilizada principalmente pela observação participante.
Da observação participante
Por um vasto período, como pesquisador, mergulhei nesse universo que abarca a
tramitação do “Estatuto”, participando, por exemplo, do dia a dia das discussões do
grupo criado pela assessoria do relator do projeto com a presença de lideranças.
Contudo, como eu já mencionei, minha inserção no campo não ocorreu apenas por
minha condição de acadêmico. Estive também por ser visto como um “aliado”,
simpatizante das causas ciganas, categoria nativa que recorrentemente é adotada por
muitas lideranças para denominar os não ciganos que ajudam e participam de suas lutas
e articulações políticas. Não apenas colaborei em aspectos técnicos, redigindo notas,
cartas ou produzindo materiais para auxiliar na compreensão do PLS 248/2015, como
também tomei uma posição pública, apoiando e defendendo a aprovação do projeto de
lei.
Obviamente que esta postura política de atuar pessoalmente e apoiar o PLS
248/2015 poderia ter repercussões no desenvolvimento da pesquisa. Principalmente por
estar “muito perto”, íntimo em certa medida das disputas de poder que envolvem o
movimento cigano e ter percebido, assim, as oposições ao projeto de lei em tela. Isso
porque meu desafio não foi apenas me aproximar desta trama, praticamente como se
tivesse usando uma lupa microscópica para descrever e detalhar as disputas políticas
que envolvem o processo do “Estatuto”, como também entender os significados desses
conflitos.
Inspirado mais uma vez na perspectiva antropológica de Geertz, ao tentar nesta
tese produzir conhecimento sob o ponto de vista etnográfico, o meu esforço
epistemológico demandava também produzir um deslocamento acerca da trama em
questão, buscando ver como o outro, no caso os atores sociais envolvidos na tramitação
do PLS 248/2015, dá sentido ao mundo, dá sentido à construção político-jurídica do
“Estatuto do Cigano” e ao mesmo tempo dá sentido a si mesmo. Como adverte este
antropólogo, compreender o outro a partir do outro é algo que nunca será completo. O
fato de trabalhar especialmente com a observação participante para gerar dados
etnográficos desafiou-me a buscar um equilíbrio entre a aproximação e o deslocamento
28
12
Friso que a familiaridade com a trama deu-se sobretudo por esta pesquisa ter sido realizada mediante a
construção de uma rede envolvendo lideranças ciganas, agentes públicos e ativistas.
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13
Por isso foi utilizado a etnografia, porque busquei desobjetivar as pessoas e colocar as relações, ações,
práticas e pensamento como objetos investigativos da pesquisa.
30
sociais que atravessam a tramitação do PLS 248/2015. Buscando não se distanciar tanto
e reproduzir os jargões da Antropologia ou do Direito, ou ficar muito próximo ao ponto
de se confundir com o outro, incorporando simplesmente o ponto de vista das
lideranças que eu tinha mais afinidade ou dos agentes públicos atuantes na trama que se
tornaram meus interlocutores. Sem deixar de traduzir a cadeia de simbologias e
significados que envolvem o processo do “Estatuto do Cigano”.
Da colonialidade
Um dos maiores desafios para pensar a “questão cigana” é justamente pelo fato
de se estar diante de variadas possibilidades de alteridade. Não há uma única história,
mas sim variadas narrativas. Ao observar os discursos das lideranças e representações
ciganas de diferentes segmentos étnicos nas audiências públicas que aconteceram no
Congresso Nacional ou em outras instâncias da esfera pública, independente de estar
vinculada à tramitação do PLS 248/2015, percebe-se que é recorrente os relatos de
violência, de discriminação e de vulnerabilidade social envolvendo os “ciganos” no
Brasil. Como traduzir isso para compreender a construção político-jurídica do
“Estatuto”, sem cair em anacronismos que podem nos levar a interpretar a
desumanização que passou os ciganos no passado de forma equivalente ao que ocorre
na atualidade?
Inspirado principalmente nas reflexões do pesquisador Aníbal Quijano, parti do
pressuposto que há uma classificação social com base numa fronteira étnica-racial que
envolve a “ciganidade” que também contribuiu para a consolidação da modernidade e
para a fundação do Brasil enquanto nação. Tornou-se mais sofisticada a repercussão
desse sistema de hierarquias, que nem sempre precisa se valer de instrumentos jurídicos
que criminalizem expressamente a existência e o modo de vida relacionado aos povos
ciganos.
Dessa forma, a concepção de “colonialidade”, enquanto uma categoria analítica
que vem ganhando espaço entre os estudiosos que pensam os direitos humanos na
América Latina, foi acionada nesta tese como uma chave interpretativa para refletir por
quais razões é ainda comum haver não só ouvir os relatos, como a própria ocorrência da
violência em face dos povos ciganos no Brasil. E também entender porque há
lideranças e grupos ciganos, assim como outros atores sociais, que apostam no
“Estatuto” como um mecanismo de reparação histórica e ao mesmo tempo de
neutralização do anticiganismo.
Por trabalhar nesta tese com a etnografia, mobilizei também os estudos
decoloniais para produzir deslocamentos, passando a enxergar coisas que eu não
perceberia adotando uma leitura da realidade a partir do campo dogmático ou puramente
voltados para aspectos normativos, o que é mais comum nas pesquisas jurídicas.
Possibilitando estranhar os usos da positivação do direito, do seu reconhecimento
formal, como um instrumento que seria capaz por si só de colocar fim às
vulnerabilidades sociais que muitos ciganos vivenciam no Brasil. Meu esforço, como
33
14
Para compreender o processo de construção político-jurídica do “Estatuto” a partir também de uma
perspectiva decolonial busquei trazer para pesquisa e refletir quem são os sujeitos acionados, em que
contexto estão falando, quais as relações que os levaram a integrar as negociações em torno do PLS, e
como tudo isso se repercute nas dimensões sociais e culturais dos povos ciganos no Brasil.
15
Ao total, ocorreram 15 reuniões extraordinárias da CE, CAS e CDH em que o PLS 248/2015 esteve
incluído na pauta do dia, integrando o conjunto de documentos audiovisuais analisados na presente
pesquisa.
34
16
Ou seja, esta pesquisa busca descrever o funcionamento de instâncias relacionadas à elite política, uma
vez que tem em, especial, como locus o Senado Federal, por onde tramita o PLS, e que envolve agentes
públicos que atuam no Poder Legislativo, que podem ser compreendidas como relações “para cima”. E ao
mesmo tempo envolve a atuação de lideranças ciganas neste ambiente e no processo legislativo em tela,
mas que por sua condição social e pelas representações que estão estabelecidas podem ser entendidas
como relações “para baixo”.
17
Motivado pela ponderação do jurista e antropólogo Luiz Eduardo Figueira, busquei também nesta
pesquisa “ser capaz de realizar um deslocamento cognitivo e pensar por meio de uma racionalidade que
35
De acordo com Rosana Guber (2001), não é o campo que nos fornece dados,
mas informações que habituamos a classificar como dados. As informações se
convertem em dados no processo reflexivo que ocorre posteriormente a sua coleta.
Maria Jane, cigana calin, também conhecida entre os seus familiares como
“Xinxinha”, nasceu no ano de 1977 em Condado-PB, filha do Sr. Calon e Dona
18
Como sistematizou Luiz Otávio Ribas, “a assessoria jurídica popular universitária nasce da indignação
ética. Primeiro, com um ensino do direito de estudantes cansados de tanta repetição, de tanta ‘dogmática
ruim’ e de tanta doutrinação. Segundo, indignação com a prática jurídica, com o atendimento nos
escritórios “modelos” muito longe dos ideais de acesso à justiça. Por fim, com a realidade brasileira, em
que a igualdade formal não corresponde aos anseios da utopia estudantil” (2008, p. 93).
19
De forma resumida, entre os anos de 2015 e 2017, o projeto de extensão que coordenei atuou em
relação às demandas jurídicas e políticas da ASCOCIC da seguinte forma: assessorando questões
burocráticas da associação, como a alteração do estatuto, a realização de assembléias entre os associados
e acompanhamentos ao cartório; auxiliando em denúncias de racismo e injúria racial ou acompanhando
audiências públicas convocadas por órgãos públicos para tratar da realidade cigana; e promovendo
atividades de educação em Direitos Humanos nas escolas municipais e estaduais do município de
Condado, assim como na faculdade. Frisa-se que o projeto de extensão que coordenei deu continuidade ao
trabalho desenvolvido pela professora Gilmara Medeiros que precisou se afastar da instituição.
38
Margarida, irmã de George, Júnior, Janete e Suzane, sendo a segunda mais velha.
Casou-se com Antônio aos trezes anos, com quem teve dois filhos, Damião e Indiano
Jhones. Segundo Jane, o casamento foi uma forma na época de ter mais liberdade,
principalmente para acessar à escolarização formal, que era dificultado pelos seus pais.
Em 2020, concluiu a graduação em Pedagogia, embora já trabalhasse profissionalmente
na área de educação, coordenando projetos de alfabetização voltado para pessoas
ciganas e não ciganas da região em que vive, como os projetos “Mova Brasil” e “Brasil
Alfabetizado”. Além de atuar como a principal liderança da comunidade Condado e
articuladora da “ASCOCIC”, trabalha juntamente com seu marido realizando pequenos
negócios de compra, venda e troca, assim como de forma autônoma por meio da prática
do drabe - que significa “ler mão” ou “quiromancia”.
Desde a criação da “ASCOCIC”, em 2010, Jane ocupa a presidência desta
associação, sendo ao mesmo tempo uma referência no município de Condado20,
cumprindo um papel de interlocução com as autoridades locais, nas escolas, postos de
saúde e em face da polícia, assim como atuando em conselhos estatais, isto é, órgãos
colegiados do estado da Paraíba e do Poder Executivo Federal ligados às políticas
públicas de promoção da igualdade racial. Ligada à Igreja Católica, Maria Jane é
também atuante na “Pastoral dos Nômade do Brasil”21.
Por meio da “ASCOCIC”, a partir do ano de 2016, Maria Jane passou a
concorrer e integrar diversos órgãos colegiados do Poder Executivo estadual e federal,
por exemplo: CEPIR-PB; COEPIR-CE; CNPC; CNPIR; e CNPCT. Entre os anos de
2018 e 2019, nos encontramos seis vezes em Brasília, em atividades relacionadas a estes
órgãos colegiados, às articulações do MPF, do Governo Federal, assim como no
Congresso Nacional. Ocasiões que me fizeram ter uma dimensão mais ampla das “lutas
por políticas públicas e pelos direitos ciganos”. Um desses momentos foi crucial, pois
levou-me a modificar radicalmente os rumos da minha pesquisa. Refiro-me à semana
entre os dias 27 a 30 de maio de 2018, quando ocorreram três grandes eventos, como
mencionei no início da introdução.
20
“Cortada pela BR230, Condado, [...] de acordo com o IBGE, sua população estima-se em
aproximadamente sete mil habitantes. Com uma área territorial de 280,913 km², os moradores do local
tem como principais fonte de rendas a pecuária e a agricultura, no entanto, devido aos grandes períodos
de secas, outras atividades vem despertando o interesse, sobretudo, dos mais jovens. Nesse sentido, é
intensa a migração para cidades vizinhas a fim de empregar-se no comércio” (CUNHA; GOLDFARB;
BATISTA, 2014, p. 6).
21
Segundo informações colhidas no próprio website desta organização, “a Pastoral dos Nômades é um
serviço da Igreja Católica Apostólica Romana que se dispõe a atender pastoralmente aos ciganos,
circenses e os parquistas. Em suas atividades e metodologia, a PN caracteriza-se pela busca da encarnação
evangélica e da inculturação, buscando o contato e o convívio com o ambiente nômade, evitando qualquer
forma de paternalismo ou de dominação cultural” (PASTORAL DOS NÔMADES, [s/d]).
39
Outro ponto fundamental das experiências que tive acompanhando Maria Jane
em Brasília foram as “conversas de corredores”, despretensiosas, não intermediadas por
uma entrevista semiestruturada ou por um gravador. Momentos espontâneos que
também me possibilitaram conhecer diferentes atores sociais, ciganos e não ciganos. E
foram neles que me deparei com “pistas”, no sentido de “sacadas”22 e novos
interlocutores que me levaram a ter acesso a informações imprescindíveis para
descrever densamente o processo político do “Estatuto”. Dados não oficiais, que não
estão nos documentos escritos ou audiovisuais, disponibilizados pelo Congresso
Nacional. “Pistas” que anotei no meu “caderno de campo”23, para serem averiguadas em
seguida e, eventualmente, transformadas em dados etnográficos.
Por exemplo, em 9 de abril de 2019, acompanhei Maria Jane na 64ª Reunião
Ordinária do CNPIR. Tratou-se da primeira reunião dos componentes do CNPIR (biênio
2019/2020) no governo Bolsonaro, sendo que o mais importante para minha pesquisa
não foi esta atividade, em si, mas ter ido a ela. Pois, graças a esta oportunidade, eu
conheci o “Acampamento Nova Canãa”, sede da “ANEC”, e pude me aproximar do
principal articulador do “PLS”, “Seu Wanderley”. Isso ocorreu porque Maria Jane
estava acompanhada de uma outra liderança cigana durante o evento que manifestou o
interesse de ir conversar pessoalmente com o presidente da “ANEC”. Aproveitei a
ocasião para ir junto e poder ser apresentado a ele por outros “ciganos”, e não sozinho,
por conta própria. Foi neste momento que solicitei autorização do “Seu Wanderley”
para voltar ao acampamento e poder conversar sobre a proposição legislativa do
“Estatuto”. Jane, que ouviu o meu pedido, endossou: “pode confiar no doutô advogado,
ele é um amigo24 nosso, é de confiança”. Minha solicitação foi aceita, e voltei neste
acampamento 2 meses depois.
Nesta ocasião, quando estava negociando a possibilidade de me inserir no
“acampamento” e me aproximar de “Seu Wanderley”, Maria Jane, com a finalidade
ajudar nesta empreitada, acrescentou também que eu “não me passo por cigano”, que
22
Magnani diz que a “sacada” ocorre na pesquisa etnográfica “em virtude de algum acontecimento, trivial
ou não – só se produz porque precedida e preparada por uma presença continuada em campo e uma
atitude de atenção viva. Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que caracteriza a etnografia, mas a
atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a
pista para um novo entendimento” (2009, p. 136).
23
Na antropologia, o diário de campo se configura como um “instrumento depositário de notas,
impressões, observações, primeiras teorizações, mapas, esboços, desabafos, entrevistas e garatujas de
informantes” (MAGNANI, 1997, p. 8)
24
A categoria nativa amigo, percebida na convivência com os “ciganos” que conheci ao longo da
pesquisa campo, corresponde aos jurons ou gadjo (não-ciganos) que oferecem apoio e auxílio ao “povo
cigano”.
40
não “usurpo a cultura cigana”, e que sempre deixo claro minha condição de juron25,
“homem não cigano”. São informações que buscavam apontar quais as minhas
intenções e qual o papel que exerço nas “lutas ciganas”, ou seja, de apoiador,
pesquisador e advogado, jamais querendo me passar como um “ativista cigano”, que é
uma preocupação de muitas representações e lideranças.
25
Significa homem “não cigano” na língua falada pelos ciganos Calon do sertão da Paraíba que conheci.
“Seu Wanderley” e seus familiares para se referirem aos “não ciganos” usam a expressão gadjo.
26
A própria Daiane autorizou-me a compartilhar esse trecho, que integra um relatório sobre a atuação
política de Wanderley da Rocha, em documento apresentado para concorrer a uma vaga no conselho de
cultura local.
27
Nesta tese, adotei um recuo diferente, de 2 cm, para as citações diretas manifestadas por lideranças
ciganas ou pelos demais atores sociais que integram o processo analisado.
41
Federal, oriundos de estados como Alagoas, Bahia e Minas Gerais, fixando-se na região
onde atualmente corresponde à região administrativa de Águas Claras e, posteriormente,
viajando pelo país, mas sempre retornando às localidades em torno da capital federal.
As “idas e vindas”, segundo o entrevistado, ocorreram devido às “dificuldades em
acessar bens e serviços públicos em outros estados brasileiros, sendo que foram melhor
acolhidos e reconhecidos pelas autoridades governamentais locais” (2019, p. 53).
Wanderley da Rocha e seus familiares mudaram-se para o “Acampamento Nova
Canãa”, que fica na “Rota do Cavalo”, em “24 de setembro de 2014”, território onde
hoje vivem em torno de 70 pessoas acampadas, entre crianças, adolescentes, adultos e
idosos, pessoas ligadas por vínculos familiares, entre irmãos, primos e sobrinhos.
Trata-se de um terreno de 3,5 hectares que acabou sendo cedido ao grupo, formalmente,
em 2015, pela União, por intermédio da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e do
Governo do Distrito Federal, localizado na “Fazenda Sálvia, Lote 274” (SILVA, 2019,
p. 174).
A principal fonte de renda das famílias acampadas advém do trabalho
informal, por meio de vendas e trocas de carros e lotes, pelos homens, e pela
fabricação e venda de artigos de cama, mesa e banho, pelas mulheres. Em
decorrência do tipo de atividade desempenhada, é comum o deslocamento
diário à zona urbana e a outras regiões administrativas do Distrito Federal,
deslocamento este realizado, em geral, por carros entre os homens, e por
ônibus entre as mulheres, todavia, o acesso à rede de transporte público é
precário, as linhas de ônibus disponíveis são escassas, saindo cedo da manhã
e retornando apenas ao fim do dia, por isso, é comum que os/as ciganos/as e
outros/as moradores/as da região solicitem caronas à beira das estradas.
(SILVA, 2019, p. 55)
Ainda sobre sua trajetória, com base nos diálogos que tivemos, especialmente
quando visitei e passei três finais de semana no “Acampamento Nova Canãã”, foi
possível perceber que os primeiros espaços da esfera pública, em âmbito federal, que
“Seu Wanderley” que começou a se inserir enquanto liderança está diretamente
relacionado às primeiras articulações no Congresso Nacional pela criação do
“Estatuto”28. Por exemplo, a audiência pública realizada na Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, para tratar dos “direitos dos
cigano”, em dezembro de 2012; reuniões de trabalho na Secretaria de Direitos
Humanos do Poder Executivo federal, em preparação aos eventos do “Dia Internacional
dos Povos Ciganos” e a “Semana do Maio Cigano”, realizados em 2013; a audiência
28
Ao longo da minha pesquisa, friso que nunca presenciei Wanderley ou Maria Jane se denominarem
liderança. O que há na verdade é o inverso, eles são reconhecidos e chamados dessa forma, sobretudo
externamente em eventos políticos em que há interlocução com a burocracia estatal. Liderança é uma
categoria que se distingue da expressão chefe, como também são vistos e tratados, embora não estejam
totalmente apartadas, uma vez que chefe é uma categoria que aciona um sentido mais interno, indicando
que esta pessoa é uma referência na comunidade e/ou no âmbito das famílias.
42
29
José Guilherme Cantor Magnani entende ser necessário distinguir “prática etnográfica” e “experiência
etnográfica”, “enquanto a prática é programada, contínua, a experiência é descontínua, imprevista. No
entanto, esta induz àquela, e uma depende da outra [...] podemos postular que a etnografia é o método
próprio de trabalho da antropologia em sentido amplo, não restrito (como técnica) ou excludente (seja
como determinada atitude, experiência, atividade de campo). Entendido como método em sentido amplo,
engloba as estratégias de contato e inserção no campo, condições tanto para a prática continuada como
para a experiência etnográfica e que levam à escrita final” (2009, p. 136).
30
“A comunidade é composta por 14 famílias nucleares e um total de 70 pessoas que vivem em uma área
de 3,5110 hectares” (BRASIL, 2016, p. 12). Em minhas visitas ao acampamento, contei 17 barracas
distribuídas no terreno, sendo que Seu Wanderley dormia sozinho em uma dessas. No espaço (barraca)
onde dormi quando fiquei no “Acampamento”, havia duas camas, uma de casal, que ficava Seu
Wanderley e outra de solteiro, onde fiquei. A maior dificuldade que tive durante minha passagem foi por
conta do frio que senti à noite, pois o material da barraca não contribuiu muito com o isolamento térmico,
sendo que as temperaturas na madrugada giraram em torno de 14 graus e, por alguma razão, a entrada
ficava aberta, circulando ar. Lembrando que “rancho” é uma categoria nativa adotada pelos Calons que
conheci para se referir aos seus locais de moradia.
43
31
Em diferentes momentos que passei na “sede da ANEC”, foi solicitado a mim conselhos na área de
consumo, casamento/separação, como obter registro civil ou se portar diante de uma intimação. Isto é,
questões que estavam além das demandas por políticas públicas. Da mesma forma que nas relações com
os “ciganos” de Condado, ligados à “ASCOCIC”, foram requisitados de mim orientações em questões de
natureza mais individual, que não envolviam questões da associação. Ser útil ou sentir-se assim é
essencial no processo de negociação por informações, pois, é esperado que nós pesquisadores sejamos
indagados por alguns possíveis interlocutores da seguinte forma: “o que ganhamos com a sua pesquisa?”.
44
Da educação popular
Antes de elucidar como esta tese está estruturada, preciso registrar que as
reflexões de Paulo Freire, na obra “Pedagogia do Oprimido”, foram fundamentais para
pensar a minha atuação profissional e de que maneira eu deveria pautar a minha
aproximação com as lideranças ciganas de modo geral, e não apenas no contexto da
pesquisa de Doutorado. Primeiro, por encarar as experiências com as lideranças como
momentos de mútuo aprendizado e de dialogicidade, ao mesmo tempo sendo
“educandos” e “educadores”, sem estabelecer uma hierarquia entre os saberes. Em
segundo, por concordar que a libertação do estado de opressão é uma “ação social”, não
podendo, portanto, acontecer isoladamente, uma vez que os homens e as mulheres são
“seres sociais” e por essa razão, a consciência e transformação do meio deve acontecer
em “sociedade”. Terceiro, por partir do pressuposto que são os próprios “ciganos” que
devem atuar como protagonistas de suas “lutas por direitos” e no enfrentamento ao
racismo que está entrelaçado à ciganofobia, e não nós pesquisadores ou juristas, pois,
como diz Paulo Freire, “somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os
opressores” (1987, p. 24), em outras palavras, no momento em que os oprimidos se
libertarem, os opressores deixarão de existir, e assim ambos encontrariam a liberdade.
Inspirar-se no pensamento de Paulo Freire para se inserir num campo de estudo
que diz respeito aos ciganos, grupo historicamente oprimido na sociedade, pode ser
compreendida como uma forma de fazer “pesquisa militante”, termo que é utilizado
para
[...] contemplar as linhas de pesquisas associadas a diversas formas de ação
coletiva, que são orientadas em função de objetivos de transformação social.
Nesse sentido, militância seria o compromisso ético e político com a
mudança social e que, por isso, implica posicionamentos e atuações proativas
em várias áreas da vida, como a profissional e a acadêmica, envolvendo a
inserção em espaços coletivos de discussão, articulação e mobilização com
objetivo de viabilizar e potencializar lutas políticas que representem a
construção de uma sociedade mais justa e igualitária. (BRINGEL;
VARELLA, 2016, p. 482)
Da estrutura do texto
32
“Assim, é somente a partir da conjugação dos diversos tipos de saberes produzidos no campo do Direito
(teóricos e empíricos) que se poderá tentar entendê-lo melhor e, com isso, eventualmente, aprimorar os
seus mecanismos para torná-lo mais transparente. Nesse sentido, como já mencionado, assume
importância o estudo das práticas judiciárias, normalmente relegado pelos juristas, mais preocupados em
manualizar o conhecimento jurídico, uniformizando as suas categorias e normatizando condutas segundo
um conceito idealizado e utópico” (LIMA, 2013, p. 13).
48
Capítulo 1
“Insubmissos”
“Eles (os ciganos) chegaram ao Brasil há quase 500 anos e têm poucos direitos
reconhecidos”; essa expressão que destaco é parte do subtítulo de uma reportagem do
programa “Porta Aberta”, que foi produzido e veiculado pela TV Senado no mês de
abril 2018, para abordar e noticiar a tramitação do “PLS 248/2015”1. Em outra
reportagem do mesmo canal de comunicação, em referência a criação do “Estatuto do
Cigano”, exibida pelo “Programa Inclusão”, afirmou-se que “não existem dados
oficiais, mas, segundo relatos, os ciganos são originários da Índia e se espalharam pelo
mundo há cerca de mil anos”2. Cito estas narrativas pois elas informam três questões
abordadas no primeiro capítulo da tese: o aparecimento dos ciganos; a sua presença no
território brasileiro, desde o início da colonização portuguesa, e de que modo essa
trajetória pode ter culminado na tentativa de produção de direitos por meio da
proposição legislativa do Senador Paulo Paim.
O texto inicial do “PLS 248/2015” está acompanhado, formalmente, por uma
“Justificação”, como ocorre, em geral, em todos os projetos de lei submetidos ao Poder
Legislativo. A “Justificação”, que vem após as propostas de matérias legais do “Estatuto
do Cigano”, possui 5 (cinco) curtos parágrafos. Entre eles, aqui, inicialmente, destaco o
que faz referência direta à “história dos ciganos no Brasil”: “Embora os ciganos tenham
chegado ao Brasil, com o precursor João Torres, ainda em 1574, até hoje padecem de
desigualdade material com o restante da população brasileira.” (BRASIL, 2015c, p. 5,
meus destaques).
Neste capítulo, selecionei e analisei alguns elementos discursivos e
não-discursivos, assim como eventos relacionados à “história dos ciganos” no Brasil
que podem ser mobilizados para compreender a necessidade de “um catálogo normativo
de proteção aos direitos”, como informa a “Justificação” do projeto de lei aqui analisado
(BRASIL, 2015c, p. 5). Não haveria proposição de um “Estatuto” se os povos ciganos
não fossem concebidos enquanto uma “questão social”.
Contudo, é impossível trazer com exatidão a trajetória desses “povos” que
chegaram e ocuparam o território brasileiro. A principal razão, conforme ponderado por
1
Refiro-me à reportagem “A cultura cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos” (TV SENADO,
2018a).
2
Refiro-me à reportagem “Povo cigano: a luta para manter a tradição e combater o preconceito” (TV
SENADO, 2018d).
49
3
Ao adotar esta expressão, levo em conta os estudos da autora portuguesa Elisa Costa, que defende que
“a insubmissão do Povo Cigano percorreu, em movimento constante, a Época Moderna”, uma espécie de
reação à ordens das classes dominantes “tendentes a modificar hábitos e comportamentos como se fossem
alteráveis por força de leis, na expectativa de uma correcção jamais alcançada” (2005, p. 168).
50
para tentar compreender a realidade do Brasil, que é marcado por uma intensa
hierarquização das relações sociais.
Em 22 de fevereiro de 2020, a escola de samba “Pérola Negra” abriu o segundo
dia de desfiles no Anhembi, cidade de São Paulo, com um enredo intitulado “Bartali
Tcherain: a estrela cigana brilha na Pérola Negra”. Nas palavras do carnavalesco
Anselmo Brito, responsável pelo enredo, “para o carnaval 2020, a Escola de Samba
Pérola Negra irá trazer um tributo ao povo cigano, um povo repleto de encanto,
mistérios e magia” (meus destaques). Abaixo compartilho o samba-enredo completo:
Sou a força do bem, emoção irradia / A estrela da sorte é a luz e me guia/
Minha Pérola é a escola que eu amo / Joia rara do samba e do povo cigano.
Gira cigana, saia rodada / O seu bailado, acende a fogueira / Tem castanholas,
violinos e pandeiros / É festa pra dançar a noite inteira.
Na palma da mão destino traçado / Presente e futuro, nos levam ao passado
Energia reluz no cristal / A carta da sorte espanta o mal / Sou um bandoleiro
vagando na vida.
5
A mensagem que o documentário “Latcho Drom” ou que o enredo da escola de samba “Pérola Negra”,
transmitem, justamente, a ideia que “os ciganos são sempre estrangeiros, provenientes do Egito, da
54
De toda forma, há uma série pesquisas que sugerem o fato dos “ciganos” terem
migrado do norte da atual Índia, das regiões do Punjab e Rajastão; entre os séculos 6 e
11, teriam cruzado o “Oriente Médio”; chegando na “Constantinopla” por volta do ano
1000 d.C; então, grupos de viajantes teriam se fixado na região do Peloponeso, na
Grécia, no início do século 12 e, por fim, teriam entrado no que se entende, hoje,
enquanto “Europa ocidental” por volta do século 15 (FRASER, 1992).
Segundo um estudo que envolveu institutos de pesquisas biológicas e de saúde
da Espanha, Portugal e Áustria:
Em resumo, nossas descobertas confirmam a alta heterogeneidade genética
dos grupos ciganos, que foi moldada por vários eventos fundadores
combinados com o baixo tamanho efetivo da população, criando um padrão
que imita as rotas migratórias que os ciganos seguiram dentro da Europa.
Mostramos que a maioria das linhagens maternas ciganas são de origem não
européia, apontando para uma mistura limitada com as populações vizinhas.
Finalmente, as informações filografadas fornecidas pelas linhagens femininas
indianas encontradas nos ciganos nos levaram a traçar a antiga pátria dos
ciganos europeus até o estado de Punjab, no noroeste da Índia, confirmando
Grécia, da Índia, da Andaluzia”, cujo o nomadismo é “mais que traço distintivo, é metáfora dos ciganos”
(FERRARI, 2002, p. 38).
55
6
É importante ponderar que em relação ao Estado brasileiro é mais comum traduzir a condição dos
ciganos enquanto um “povo tradicional”, do que relacioná-lo à condição de “minoria étnica”. Uma vez
que “povo tradicional” é a tradução para o português da expressão “povos tribais” adotada na Convenção
nº 169 da OIT, tratado internacional que é aplicado aos povos e comunidades tradicionais, como é o caso
dos povos ciganos. Ao longo da tese, em algumas passagens, usei a expressão “minoria étnica” para se
referir aos ciganos, tendo em vista que esta denominação é também mobilizada por algumas lideranças.
56
Segundo Pieroni (2002), os ciganos eram vistos como diferentes por não se
encaixarem no modelo aceito pela metrópole portuguesa, por isso, umas das penas mais
destinadas a este grupo social era o degredo, destarte, muitas pessoas e famílias ciganas
foram sendo trazidas forçadamente para o Brasil. Assim, perseguidos tanto por sua
identidade étnica e cultural, quanto por sua mobilidade e caráter constantemente postos
sob suspeita, os “ciganos” foram objetos de uma severa repressão em Portugal,
potencializado por uma legislação formulada especificamente para coibir o grupo
(MELLO et al, 2009, p. 03)
Os demais grupos étnicos e fluxos de ciganos no Brasil foram de “famílias
oriundas dos Balcãs e da Europa Central, que chegaram ao país no final do século
XIX”, são, em sua maioria, pertencentes ao grupo Roms, que “é dividido em vários
subgrupos (natsia, literalmente, nação ou povo), com denominações próprias, como os
Kalderash, Matchuara, Lovara e Tchurara” (TEXEIRA, 2008, p. 10, meus destaques).
Teriam entrado no Brasil não como “ciganos”, mas como imigrantes oriundos da Itália,
França, Alemanha, Grécia, Espanha, atraídos para o Brasil pelo contexto de busca por
melhores condições de vida e oportunidades de trabalho, embora estivessem inseridos
num projeto político de “branqueamento” e “modernização” da recém nação
independente, a partir de meados do século 19.
58
Texeira (2008) especula que entre os italianos e alemães que imigraram para o
Brasil, por conta das consequências da Segunda Guerra Mundial, entre as décadas de
1940 e 1950, tenham vindo os Sinti, outro grupo étnico cigano, embora pondere que os
primeiros Sinti tenham chegado também no final do século 19 com os grupos Rom. Sinti
“são chamados Manouch, falam a língua sintó e são numericamente expressivos na
Alemanha, Itália e França” (TEXEIRA, 2008, p. 10).
O fluxo de imigrantes europeus, a partir de 1870 e principalmente após a
abolição da escravidão, em 1888, atraíram “milhares de ciganos Rom não-ibéricos, que
quase nada tinham e nem hoje têm em comum com os ciganos Calon ibéricos e
brasileiros, a não ser talvez a errônea denominação genérica de ‘ciganos’” (TEXEIRA,
2008, p. 48, meus destaques). Este autor acrescenta que não há como saber os números
exatos destes novos imigrantes ciganos Rom por absoluta falta de documentos
históricos.
Segundo o pesquisador Marcos Toyansk Silva Guimarais, “o genocídio
perpetrado pelos nazistas contra os ciganos é ainda amplamente ignorado na literatura
sobre o período da Segunda Guerra e o próprio termo cigano esconde a complexidade e
a diversidade de grupos que mantém traços culturais, interesses e história singulares”
(2012, p. 9, grifo do autor).
A respeito da questão do genocídio, que Marcos Toyansk se referiu, Mirian
Souza pontou que “o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial” se transformou
em um dos eventos-chave da “história dos ciganos, ao lado da emigração da Índia”,
assim como as “perseguições anti-ciganas na Europa durante a Idade Média” (2013, p.
104), por exemplo. Segundo esta autora:
O papel político desses eventos é muito claro entre os agentes políticos que
promovem a identidade roma. [...] O tema do Holocausto dos ciganos, porém,
está muito longe de ser apenas uma questão em torno de compensações
financeiras. Há uma dimensão mais importante, que é o desenvolvimento da
identidade roma na esfera pública. Nas últimas décadas, a perseguição étnica
tem formulado a base a partir da qual a identidade roma pode ser construída.
(2013, p. 106-107)
7
Segundo as antropólogas Jéssica Medeiros e Mércia Batista, “a ideia da diáspora pode de certa forma ser
pensada em relação às populações ciganas, seja se tratando de representação e construção de identidades
coletivas, aproximando-se aqui da questão do nomadismo. Diáspora e nomadismo seriam não só
condições efetivamente experimentadas, como também imagens e retóricas que definiriam as
possibilidades e ação e organização” (2015, p. 207). Estas autoras partem da tese defendida pelo
sociólogo Robin Cohen (1997) que ao adotar o conceito de diáspora se contrapõe aos discursos que o
relaciona a origens fixas, enquanto leva em conta o desejo por um “lar”, o que não equivale ao desejo da
“terra natal” pois, segundo ele, “lar” poderia ser interpretado com o significado de local de origem.
8
Segundo Rezende, “o discurso mitológico-científico tem o poder de dividir socialmente o mundo,
legitimando algumas representações e imagens, e condenando outras. Utilizado como recurso para o
estabelecimento de estratégias e políticas públicas, o discurso mitológico-científico da ciganologia
contribuiu, em alguma medida, para a consolidação das perseguições e exclusões aos ciganos, além da
cristalização e manutenção de muitas de suas imagens deterioradas” (2000, p. 107-108).
60
A inserção dos “ciganos” no Brasil, assim como nos países colonizadores, foi
marcada por mecanismos repressivos que ainda influenciam na definição de seu status
jurídico-político. Tentar compreender como e quando teriam começado as perseguições
aos “ciganos” e o porquê são questões relevantes para o meu objeto de estudo. Como se
trata de “povos”, em geral, de cultura ágrafa, é a partir da sistematização dos
documentos escritos emitidos por pessoas “não-ciganas”, como as “leis coloniais” e
outras medidas de natureza administrativa, que aqui busco construir uma genealogia
sobre a construção da condição “cigana” no Brasil.
Entre 1526 e 1761, dezenas de leis, alvarás ou cartas régias foram emitidos,
visando, especificamente, as populações “ciganas”. Por isso, cabe analisar as primeiras
informações sobre os “ciganos”, quando eles passaram a ser chamados como tais, a
partir do século 15, marco temporal relacionado ao início da reivindicação da
modernidade eurocentrada9, que permanece mobilizando o “anticiganismo” e as
classificações raciais, em geral, para se reinventar a partir de uma lógica individualista e
excludente.
Segundo Angus Fraser (1992), desde o século 15, a palavra “cigano”, que deriva
da palavra espanhola gitano, assim como a inglesa gypsy, é utilizada como um insulto10.
9
“Modernidade eurocêntrica” no sentido que a história do sistema-mundo
patriarcal/capitalista/colonial/moderno tem privilegiado a cultura, o conhecimento e a epistemologia
produzidos pelo Ocidente, o que ocorre até os dias atuais (MIGNOLO, 2000). Nesse sentido, segundo
Grosfoguel, “o monologismo e o desenho monotópico global do Ocidente relacionam-se com outras
culturas e povos a partir de uma posição de superioridade e são surdos às cosmologias e epistemologias
do mundo não-ocidental” (2008, p. 137).
10
É importante dizer aqui que há registros documentais de lideranças, que se identificam como ciganas e
ligadas à associação “AMSK”, que sugeriram que o marco legal a ser criado deveria ter a denominação
61
Há afirmações que indicam que o termo “cigano” teria sido “registrado pela primeira
vez em português em “A farsa das ciganas” de Gil Vicente” (TEXEIRA, 2008, p. 9), em
1521.Na peça teatral “A farsa das ciganas”, adota-se o uso da figura do “cigano” como
tipo social novíssimo no reino (em 1526), não apenas para retratar os “ciganos”, mas
para abordar parodicamente as táticas da nobreza para se manter no poder, com
casamentos endógenos, num enlace cultural fechado pela consanguinidade e pela
barganha política (NORONHA, 2019).
Entretanto, é possível dizer que o termo “cigano” apareceu em língua portuguesa
antes deste ano, num poema palaciano de Luís da Silveira, intitulado “As Martas de D.
Jerónimo” (RESENDE, 1852). O poema, publicado em 1516, com textos escritos desde
1449, atribuía “o desaparecimento das peles de toupeira (martas) que encurtara as
mangas do casaco de D. Jerônimo de Eça, a um ‘engano’ promovido por um “Çiguano,
ou muy fina feyticeira”. (RESENDE, 1852, p.295-296). Frisa-se que a denominação
“cigano”, atribuída por pessoas “não ciganas”, foram assumidas pelos “ciganos”,
obrigados a se identificarem às autoridades locais (GOLDFARB, 2013), embora “entre
eles a denominação fosse calés (singular caló), e ainda rons ou rones” (RAMOS, 1947,
p. 269, destaque dos autores).
O termo cigano é, na realidade, um estereótipo que incorpora vários
significados e interpretações preconceituosas que, de certo modo, impõem
àqueles assim identificados, determinadas formas de comportamento e
valores. Por outro lado, o termo cigano também não é uniforme ou fixo no
tempo e espaço, pois depende das percepções individuais e coletivas, do
contexto das interações e dos sentidos ou das interpretações elaboradas pelos
atores.(REZENDE, 2000, p. 89, grifo do autor)
“Estatuto dos Povos Romani” (AMSK, 2013). Resgato também uma ocasião, durante o evento
comemorativo do “Dia Nacional do Cigano”, realizado em 2019, em Brasília, em que chamei uma pessoa
da Sérvia de “cigana” e fui imediatamente repreendido da seguinte forma “cigano não, rom”.
62
forma particularizada, uma vez que se defrontavam com outras análogas, provindas de
distintos lugares e períodos históricos. Isto é, fazem parte de “uma matriz de longa
duração que remontava ao início da Idade Moderna na Europa” (2002, p. 22, grifo do
autora).
Segundo Ferrari, relacionar os ciganos à “adivinhação, roubo de criança, compra
e venda de cavalos, espetáculos de música e dança, negócios escusos, uso de ouro” está
presente tanto em “obras literárias européias como em brasileiras” (2002, p. 22). Aqui,
nesta tese, compreendo que estas representações presentes na literatura foram
potencializadas e, ao mesmo tempo, incorporadas pelos instrumentos jurídicos que
visaram, direta ou indiretamente, os grupos identificados e que se identificavam como
“ciganos”, sobretudo, século 16 em diante. Tanto as narrativas da literatura como as leis
destinadas, direta ou indiretamente, aos ciganos compõem essa rede complexa e
heterogênea de elementos que integram o “dispositivo cigano”. Por isso, não podem
estar desassociados.
A partir da etnografia da tramitação do Projeto de Lei do Senado n° 248/2015,
notei que os episódios ou as narrativas de expulsões, extermínios, matanças,
difamações, calúnias e injúrias envolvendo os “ciganos”, por sua condição étnica-racial,
não ficaram no passado. São uma realidade. Por isso, é possível afirmar, concordando
com Marilena Chauí, que é um equívoco supor que o autoritarismo é “um fenômeno
político que, periodicamente, afeta o Estado”, pois, na verdade, a sociedade brasileira “é
autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político”
(2000, p. 94).
Por outro lado, a mobilização da “questão cigana” pelo Estado brasileiro, nas
últimas décadas, atrelado à retórica da inclusão social e de um país “multicultural”,
contribui para o fomento do que Chauí chama de “mito fundador”. Segundo Natasha
Barbosa, representante do governo federal na pasta da promoção da igualdade racial,
durante a audiência no Senado, em maio de 2018, “o sangue cigano corre nas veias de
todos os cidadãos da nossa nação” (TV SENADO, 2018b).
A ideia de “nação brasileira” está permanentemente sendo constituída. E para
isso, segundo a filósofa Marilena Chauí, alguns mitos são construídos e ressignificados,
representam narrativas compostas “por soluções imaginárias para tensões, conflitos e
contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”
(CHAUÍ, 2000, p. 5-6), têm por função denegar a violência em nossa sociedade,
essencialmente autoritária.
64
Natasha Barbosa: Nós temos que lembrar que desde então, os ciganos, os quilombolas,
negros, todas essas comunidades estão em nosso sangue, então é um compromisso que
eu acho que ter para além das políticas públicas, ela tem que ser pessoal e aqui eu acho que
a criação do Estatuto e todos os outros avanços que nos promovemos aqui, mas em especial
o avanço do estatuto, fique sinalizado não como uma política de governo, porque essas
políticas não podem parar daqui para o fim das eleições, mas ela são políticas, o Estatuto do
Cigano, ele realmente tem que ser uma política de Estado. (TV SENADO, 2018b, meus
destaques).
Miguel, Thomás e outros” (MOONEN, 2011, p. 28). Por apresentarem nomes cristãos,
“salvo-condutos” e cartas de apresentação (que correspondem, mais ou menos, aos
passaportes da atualidade), emitidos por reis e papas, como o imperador católico
Sigismundo (1410-1437) e do papa Martinho V (1417-1431), as pessoas reconhecidas
como “ciganas” foram, inicialmente, bem recebidas pelas autoridades civis e
eclesiásticas. Contudo, estes documentos deixaram “de ter valor, em toda a Europa
Ocidental, a partir do final do século 16, e com eles desaparecem também – por serem
agora inúteis - os líderes ciganos com reais ou falsos títulos de nobreza” (MOONEN,
2011, p. 31).
As primeiras referências aos “ciganos” em Portugal aparecem no final do século
15 e logo começa também a perseguição a eles, sendo a partir do ano de 1526 em diante
proibida a entrada desta população e decretada a expulsão, entre outras penalidades,
daqueles que já se encontravam no país, sendo o Brasil um dos destinos para o degredo
(COSTA, 2005).
Pieroni afirma que em Portugal “uma das primeiras medidas adotadas para
resolver o desconforto social causado pelos ciganos, foi decretado por D. João III, no
ano de 1535. [...] ciganos estrangeiros foram expulsos, os nacionais proibidos de usar
suas vestimentas e de dedicar-se à ociosidade e à vagabundagem” (1991, p. 220) Este
autor acrescenta que foi “apenas no final do século 17 que nós conseguimos ver o exílio
generalizado de ciganos para o Brasil” (1991, p. 231), no entanto, em ambos lugares,
“apesar do tom imperativo e da severidade das leis, as medidas judiciais não
conseguiram fazer com que os ciganos desaparecessem, como tem sido a intenção deles
desde a lei de 1537 ”(1991, p. 237).
Segundo a estudiosa portuguesa Elisa Costa (2005), no artigo “Contributos
ciganos para o povoamento do Brasil (séculos 16-19)”, é possível afirmar que as
punições aos “ciganos” começaram desde cedo. A autora pondera que se está diante de
um povo de cultura oral, e que não há documentos escritos pelos próprios “ciganos”,
por isso, a legislação específica produzida no decurso do tempo em Portugal,
semelhantes a outros sistemas normativos no continente europeu, é a única fonte com
carácter sistemático disponível.
Percebe-se que a maioria das “faltas que lhes foram imputados são tão-somente
formas de expressão da sua cultura e tradições, cuja perpetuação em nada tinha a ver
(conforme ainda hoje sucede) com a área geográfica em que estavam a viver” (COSTA,
2005, p. 154). Por exemplo, a Lei de 28 de Agosto de 1592 estabelecia penas aos
“ciganos” que, dentro de 4 meses não saíssem de Portugal ou “se não se avizanhassem
66
nos Lugares sem andarem vagabundos, não podem andar, nem estar ou viver mais em
ranchos, ou Quadrilhas, tudo sob pena de morte natural”.
Em 24 de maio de 2019, durante evento de comemoração ao “Dia Nacional do
Cigano”, organizado pelo governo federal, em parceria com o MPF, Aline Miklos, que
se identifica e é identificada como cigana da etnia Kalderash, pesquisadora em história
da arte, afirmou que ao longo da colonização do Brasil, três condutas, associadas aos
ciganos, foram tipificadas enquanto crimes: andar/morar em grupo, falar a própria
língua ou vestir-se de forma diferente do padrão. “Urgia mudar os comportamentos
sociais diferenciadores a fim de tornar os ciganos iguais à restante população” (COSTA,
2005, p. 155). Conforme destacou Elisa Costa, as legislações específicas no período
colonial tinham como alvo:
[...] a itinerância praticada sempre em grupo (e, ao atraírem gentes
não-ciganas causavam ainda mais temor logo, eram vistos como uma ameaça
redobrada), vestirem traje de ciganos (ou seja de maneira diferente),
conversarem na sua própria língua, designada por geringonça nos
documentos (trata-se do dialecto caló, falado na Península Ibérica, sendo a
língua denominada romani), a leitura da sina pelas mulheres (referida como
buena-dicha na documentação da época), fingirem saber feitiçarias, a prática
de furtos insignificantes, esmolarem sem a necessária, quiçá indispensável
autorização, ou apenas a circunstância de serem ciganos (“giciano”,
egipciano, egitiano ou egiciano são as formas como surgem referidos).
(COSTA, 2005, p. 155)
(MOONEN, 2011), o que não deixa de ser cruel pois se tratava um caminho sem volta,
em que famílias, casais, filhos eram separados.
Nesse sentido, segundo o pesquisador Bill M. Donovan, “talvez a repressão mais
severa tenha ocorrido em Portugal, onde a Coroa tentou sistematicamente cercar e banir
famílias ciganas das colônias estrangeiras na África e na América” (1992, p. 33). Este
autor argumenta que as condições sociais e econômicas do Brasil colonial mudaram as
categorizações portuguesas dos ciganos como desviantes sociais. Os limites sociais
foram fundamentalmente mudados na colônia, já que os escravos africanos substituíram
os ciganos como a camada mais marginalizada e mais perigosa da sociedade
luso-brasileira.
Fotta afirma que as fontes revisadas até agora tratam “da criminalização e
controle dos ciganos, como representantes de um povo indisciplinado, de estilos de vida
indesejáveis e costumes estranhos, tudo o que poderia ser eliminado com a assimilação
deles, através do emprego, sedentarização e desmanchando as comunidades” (2019, p.
328). Por outro lado, este autor defende que um olhar mais atento nas interações
cotidianas dos ciganos, durante os tempos coloniais, revela uma mais positiva, embora
ambígua, inserção no tecido social brasileiro.
Apesar do status de marginais, os ciganos brasileiros permaneceram em uma
situação melhor que os ciganos europeus, que continuaram a enfrentar a
opressão étnica. A tensão social criada pela escravidão criou o espaço social
para que os ciganos brasileiros atinjam uma permanente, embora tênue,
acomodação com o resto da comunidade branca até a época da
independência. (DONOVAN, 1992, p. 47)
Segundo Elisa Costa (2005), o agravamento das penas, que foi acontecendo a
partir do século 16 adiante, tinha relação direta com a condição de “insubmissos” dos
ciganos. Preconizou-se, em especial, a separação das famílias, tudo o indica com a
intenção de os exterminar apesar de tal não estar explícito nos textos do corpus
legislativo, excepção feita às duas leis que lhes impuseram a pena máxima. A integração
a ser preterida em favor da exclusão e, de certa maneira, da reclusão eis como pode ser
caracterizado este período.
O ‘modo de vida cigano’ era, portanto, associado, visto como práticas sociais
desviantes, tipificado como conduta criminosa, objeto de punição, do
controle externo, “como tudo aquilo que não devemos ser”. As leis do
período colonial não buscavam, portanto, apenas determinar como os
“ciganos” e as “ciganas” deveriam se comportar para serem aceitos, mas,
acima de tudo definir qual comportamento padrão que deveria ser seguido na
sociedade. (COSTA, 2005, p. 156)
11
Ao levar em conta as representações que Victor Hugo construiu em relação à figura de “Esmeralda” e
que Mérimée produziu em relação à Carmen, ambas personagens ciganas, Ferrari percebeu nestas obras
“a distinção entre as representações feminina e masculina dos ciganos; de um lado a sedução,
explicitamente aquela em que se encanta mas não se entrega, e também próxima à representação da
prostituta; e de outro, a ‘malandragem’ no negócio” (2006, p. 85). Em outras palavras, observa-se que o
uso da “cigana” como metáfora, isto é,” como linguagem para falar de um certo ‘tipo de mulher’” (2006,
p. 142, grifo do autor).
12
Segundo DaMatta, a representação social que criamos do “malandro” que se trata de um “ser deslocado
das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente
avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” (1997, p. 276).
71
sugerido que a “imagem do cigano” apresente um valor nacional próprio, por outro
lado, reconhece haver uma ambigüidade e uma plasticidade nesta representação13.
Na verdade, Ferrari propõe que o “cigano” pode ser “apropriado para pensar a
identidade brasileira”, para além da “representação universal do estrangeiro genérico, e
mostrar como o elemento estrangeiro pode ser realocado e ganhar novas significações,
passando a fazer parte de um novo universo simbólico local” (2002, p. 87). A
ambiguidade a que se referiu dá-se justamente pelo fato de que ao se aproximar a
“figura do cigano” aos “elementos nacionais” não torna esta população “menos
suscetíveis de preconceitos e medidas sociais efetivas em seu cotidiano”. É por conta
disso que Ferrari ressaltou que “o mapeamento do imaginário é uma maneira poderosa
de mostrar como foi se criando, e a força que resultou ter, um determinado conjunto de
ideias sobre os ciganos, por meio das quais o Ocidente continua operando até os dias
atuais no cotidiano com eles”(2002, p. 88).
De toda forma, não é possível mensurar, exatamente, em que medida foram
eficazes as diversas leis, alvarás, cartas régias, visando especificamente a população
“cigana”, promulgadas ao longo dos séculos, que visavam tanto os homens como as
mulheres. Leis que previam medidas distintas para os “ciganos” e as “ciganas”.
Embora não estivesse explícito nos textos das leis e ordenações, o objetivo dessa
produção intensa produção legislativa era separar as famílias “ciganas”, assim como
criminalizar, mudar e extinguir os comportamentos associados aos “povos ciganos” no
Brasil, assim como nos demais territórios colonizados por Portugal. Não apenas os
“ciganos”, mas aqueles ou aquelas pessoas que se unissem ou manifestassem traços
comportamentais “ciganos” também foram alvos do controle social nas leis do período
colonial.
Inspirado nos estudos de Foucault, é possível dizer que este conjunto de leis
“anti-ciganas” tinha como principal alvo a “liberdade”. São reflexos de políticas que
expressam “o exercício do poder como um modo de ação sobre as ações dos outros,
quando o caracterizamos como ‘governo’ dos homens, uns pelos outros” . Este autor
ainda pondera que “o poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto ‘livres’ –
entendendo-se por isto sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo
13
Segundo Rezende, as opiniões expressas nas enciclopédias e nos dicionários, conceituando
negativamente o cigano, foram uma das principais formas de divulgação do conhecimento a partir do
século XVIII. Tratado como “conhecimento legítimo”, influenciou na formação dos “homens cultos,
autoridades e políticos e, finalmente entre aqueles das classes menos favorecidas que começavam a ter
acesso a um sistema de educação formal” (2000, p. 99). Ao meu ver, além das enciclopédias e
dicionários, as obras literárias também contribuíram para a formação educacional das classes e das elites
dirigentes, influenciando, assim, na elaboração políticas e das leis brasileiras, que incorporaram e
reproduziram as representações criadas sobre os “ciganos”.
72
14
Destaquei essas três questões (saúde, educação e moradia) por serem recorrentes nas falas das
lideranças ciganas durante os eventos realizados no Congresso Nacional.
75
conteúdo racista em debates políticos, como a criação de uma lei voltada para um povo
tradicional, milita-se pelo fim das políticas afirmativas, como as cotas, defende-se a
ampliação das desigualdades e manutenção dos privilégios, ao invés pautar-se mais
direitos e o enfrentamento às injustiças sociais.
Como se pode observar na “tabela 1”, não há nenhuma mensagem positiva ou
solidária à “luta dos ciganos por direitos” manifestada no chat da audiência pública do
“Estatuto” transmitida na plataforma do youtube pela TV Senado. O conteúdo destas
mensagens indica, no Brasil, que “já existe uma certa desinibição” na propagação de
discursos de ódios, “principalmente na esfera da Internet” (ANEZ; COSTA, 2019, p.
206).
Isto é, em contraponto a perspectiva de solidariedade por trás da proposição do
“Estatuto do Cigano”, em que se demanda ações e intervenções (positivas) estatais na
promoção de direitos, interpreto que os comentários do chat, em sua maioria,
prevalecem “o ódio como afeto político” (CASTELO BRANCO, 2019). Ou, como
adverte Walter Benjamin (1994) sobre uma das marcas fundamentais dos autoritarismos
políticos15, há um processo de estímulo às massas expressarem seu ódio, mas não
reivindicar direitos.
As políticas eugenistas dos séculos 19 e 20 ou as formas como os ideais racistas
e/ou ciganofóbicos se manifestam na atualidade são, em diferentes medidas, expressões
das “permanências coloniais”, ou seja, da “colonialidade do ser”, “ do saber” e “do
poder”, em que a “raça” ou a “etnia”, que continuam como mecanismo de classificação
social, que desumanizam, desprezam os conhecimentos e as organizações políticas dos
povos e grupos sociais tratados como “inferiores”, como é o caso dos “povos ciganos”
na relação com a sociedade brasileira.
Por isso, é importante refletir o papel constitutivo da “colonialidade” na ideia do
moderno. Como afirma Mignolo, “a colonialidade do poder abre uma porta analítica e
crítica que revela o lado mais escuro da modernidade e o facto de nunca ter existido,
nem poder vir a existir, modernidade sem colonialidade” (MIGNOLO, 2003, p. 633).
Para Fanon (1975), a modernidade não era senão uma outra expressão da
modernidade/racismo, a vil segregação e a pretensão de superioridade da Europa sobre
todos os outros povos da Terra.
A necessidade de mobilização de leis anti-ciganas revela uma das
especificidades das relações de poder. De acordo com Foucault, o poder não é “da
15
A ponderação de Walter Benjamin se dá diante da iminência da chegada do partido nazista ao poder na
Alemanha, em que a instrumentalização do ódio, como, por exemplo o antisemitismo e anticiganismo,
foram mobilizados para realizar políticas eugenistas e genocidas, entre as décadas de 1930 e 140.
80
16
“Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da
análise. A “egopolítica do conhecimento” da filosofia ocidental sempre privilegiou o mito de um “Ego”
não situado. O lugar epistémico étnico-racial/sexual/de género e o sujeito enunciador encontram-se,
sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistémico étnico-
-racial/sexual/de género, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um
conhecimento universal Verdadeiro que encobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o
lugar epistémico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do
qual o sujeito se pronuncia” (GROSFOGUEL, 2008, p. 119).
81
O que o autor citado acima sugere é que as relações que o processo civilizador
encerra podem ser pensadas em diversos universos sociais. Ainda aceitando as
profundas implicações históricas do conceito com a realidade da Europa, berço da
palavra e da ideia de “civilização”, podemos nos voltar para as noções de regulação
social e auto-regulação como instrumentos relevantes na compreensão do
comportamento social, em se delimita uma nova fronteira social: “ser civilizado” e “não
ser civilizado”. Fronteira que também se vale da manipulação do “anticiganismo”.
Embora Elias faça o rastreamento histórico do termo “civilização” e dos sentidos
que o envolvem, sua teorização acerca do processo civilizador demanda outras
contextualizações. É importante lembrar que a “ideia de raça, em seu sentido moderno,
não tem história conhecida antes da América” (QUIJANO, 2005, p. 117), cuja
colonização se intensificou, de fato, a partir do século 16. A “raça” e a “identidade
racial” foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da
população, seja a partir da América (e depois Ásia, África e Oceania), mas também
dentro Europa, onde, por exemplo, diferentes povos passaram a ser reduzidos a uma
única identidade: gypsies, gitanos, ciganos etc.
Nesse sentido, o “anticiganismo”, o “ser cigano” como “tudo aquilo que não
devemos ser”, o oposto de civilizado, ideia que está ainda presente na sociedade
brasileira, assim como em outras partes do mundo, é parte do processo civilizador, que,
por longos períodos, especialmente entre os séculos 16 e 18, precisou mobilizar
instrumentos de regulação social, mediante coerção externa, como a lei, para combater
práticas (viver em comunidades, famílias extensas, andar e morar em “bando”),
comportamentos (usar trajes “diferentes” e viver de trocas) e conhecimentos (as
linguagens chamadas de “geringonças”, quiromancia e a cartomancia) associados aos
povos ciganos. Buscou-se não apenas criminalizar a existência cigana e assimilá-los à
sociedade majoritária, como também naturalizar nas relações sociais hábitos e costumes
opostos aos praticados pelos ciganos.
Os relatos obtidos da pesquisa de campo sobre a tramitação do “Estatuto do
Cigano” são fontes que indicam a continuidade de práticas violentas em face dos
“ciganos”, sejam exercidas por “autoridades” da burocracia estatal, sejam por pessoas,
em geral, da sociedade. Estes relatos revelam ainda que muitos ciganos temem serem
identificados como tais e por esse motivo optam por esconder ou reduzir a sua
“ciganidade”. Embora não haja mais, no Brasil, leis específicas criminalizando a
identidade e cultura cigana, como ocorreu, principalmente, no período colonial, esta
população ou o que ela representa continua sendo alvo de regulação social. E as formas
82
de controle social não deixam de ser atravessadas pelo “Direito” ou pelo “aparato
estatal”.
Segue abaixo alguns desses relatos emitidos por representações ciganas durante
a audiência pública sobre o “Estatuto do Cigano”, em 28 de maio de 2018 (TV
SENADO, 2018):
Luiz Bruno: Estou aqui representando os ciganos do Maranhão, só que lá está tendo muito
preconceito, queria passar para Secretaria de Igualdade Racial, você sabe que o cigano vive
de comprar, vender e trocar, né? Mas eu tenho um filho mais velho [...], ele está sendo
abordado duas três vezes pela polícia lá quando sai pra fazer uma troca, fazer uma
venda, pra isso aí eu queria pedir uma providência à igualdade racial, os direitos humanos e
o senador Paulo Paim. O filho dele tão passando fome, que ele não pode mais sair pra
vender um carro, pra trocar, pra comprar, porque tá sendo abordado, tem dia que está sendo
abordado três vezes ao dia, e eu tô aqui a fim de declarar para todas as autoridades de
competência a esse fim de ver, dar uma intervenção nessa polícia de lá, nessa Justiça do
Maranhão, lá do Alto do Parnaíba do Maranhão. (meus destaques).
Maria Jane: aqui nós não somos individuais, a luta é uma só, a perseguição da polícia é a
mesma, o não atendimento da saúde é a mesma, da educação, é uma luta de todos [...]
Porque o estatuto é a nossa raiz, é a nossa base, é o que a gente vai ter pra dizer, ‘aqui oh no
nosso estatuto’, igual tem lá na Constituição, né? De 1988. Entendeu? (meus destaques).
Lú Ynaiah: Existe uma forma dizer ‘eu não quero vocês (ciganos) aqui’. Existe a outra
forma que eu faço o quê? Eu faço batida policial três vezes, eu não garanto a mínima
condição, eu não garanto a questão o do território, porque eu vou dizer que cigano adora
em carroça, de preferência carroça estourada, com lona furada, tá? (meus destaques).
Maura Piemonte: [...] quando um cigano nosso chega no município e tenta acampar, sobra
pra ele a periferia e a beira de estrada. É logico que ele vai ser fedido, é logico que ele tem
muito problema de saúde. [...] A SPU, além do seu Wanderley que vive, tem uma
comunidade que cedeu o espaço aqui em Brasília, que é o Elias, uma denúncia anônima que
veio de São Paulo, a polícia invadiu a comunidade dele e arrebentou tudo. Ele já tinha
tenda escola, ele tinha banheiro, água. Até hoje, nada mudou, ele foi embora, mudou
para Goiás e não consegue voltar porque está ameaçado pela polícia porque se ele entra lá
eles morrem. E quando um acampamento nosso é invadido, a gente não tem como ir na
delegacia. (Meus destaques)
inevitável, dadas as ações dos próprios ciganos17. Isso acontece num contexto em que há
uma hierarquia de preconceitos, em que apenas o “racismo” é considerado como algo
extremo demais para ser admitido, enquanto alguns “preconceitos”, como ocorre em
oposição aos “ciganos”, é visto como “aceitável”.
Embora o papel da polícia seja recorrente nos relatos das lideranças durante a
audiência pública, a violência em face das populações “ciganas”, por exemplo, não é
uma prática exclusiva desta instituição e, também, não precisa ser legitimada com base
em leis específicas. Pelo contrário, decorre da própria permanência e ressignificação da
categoria mental “raça” que gera o “anticiganismo”, como uma das expressões do
racismo, articulada a outros marcadores sociais, como a classe e o gênero. “As
instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2018 p. 36, grifo do
autor).
O ativista espanhol “cigano” Valeriu Nicolae compreende o “anticiganismo”
como um tipo específico de ideologia racista, uma ideologia de superioridade racial, que
está interconectada com outros tipos de racismo.
O antigitanismo em si é um fenômeno social complexo que se manifesta
através da violência, discurso de ódio, exploração e discriminação, em sua
forma mais visível. O preconceito contra os ciganos vai claramente além dos
estereótipos racistas que os associam a traços e comportamentos negativos. A
desumanização é o seu ponto central. Os ciganos são vistos como menos que
humanos; que são menos que humanos, são percebidos como seres que não
têm direito moral de usufruir de direitos humanos iguais aos do restante da
população (NICOLAE, 2016, p. 79).
17
O estudo de Goodman ocorreu a partir de uma análise em fóruns de discussão (na internet) sobre os
ciganos no Reino Unido em grupos de facebook.
84
dominação (étnica, social e religiosa); [...] ou contra aquilo que liga o indivíduo a si
mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de
subjetivação e submissão)” (2009, p. 05). Por isso, defende que “o principal objetivo
destas lutas é atacar, não tanto ‘tal ou tal’ instituição de poder ou grupo ou elite ou
classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder” (2009, p. 05).
Portanto, é fundamental refletir em que medida a proposição legislativa do
“Estatuto”, no caso o PLS 248/2015, constitui uma das formas de resistência às relações
de poder que são perpassadas pelo anticiganismo. O “dispositivo cigano” não é
conformado apenas pelos mecanismos de dominação, mas também pelas variadas
formas de resistência, que não se limitam aos instrumentos institucionais, como um
projeto de lei, mas que envolvem também as negociações no âmbito das relações sociais
em que os “ciganos” estão inserido.
***
Capítulo 2
“Cadê nossos direitos?”
isto é, no âmbito das votações que se dão nas comissões temáticas e nos plenários do
Congresso Nacional, nas negociações entre os parlamentares ou nas audiências públicas
realizadas para discutir a proposta em questão. Interpreto que um dos motivos para a
produção dessas reportagens se dá justamente pelo fato deste projeto de lei prever
direitos específicos para os “ciganos”, povos tradicionais cuja realidade é pouco
conhecida pela sociedade majoritária. Pode ser interpretado como uma maneira de
prestar contas à população acerca das iniciativas que tramitam no Senado Federal,
esclarecendo quem são os ciganos e por que estes demandam um “Estatuto”.
É importante destacar que três, das quatro reportagens, tiveram a participação de
Seu Wanderley, um das principais referências externas da ANEC, e seus familiares, para
falarem sobre a proposição do “Estatuto”, sobre a vida dos “ciganos”, as demandas
reivindicativas, assim como sobre os aspectos gerais do que se entende ser a “cultura
cigana”. A exceção é a entrevista “As dificuldades, os estereótipos e racismo
enfrentados pela minoria cigana”, concedida pelo Procurador da República Luciano
Maia, conhecido por ser um dos primeiros intelectuais do campo jurídico e integrantes
da Administração Pública a atuarem em prol dos “direitos ciganos”.
1
Frisa-se que minha aproximação com as principais lideranças desta associação, assim como a inserção
na pesquisa de campo, está descrita na introdução desta tese.
2
Maura Piemonte organiza-se por meio do Centro de Estudos e Discussão Romani (CEDRO. Juntamente
com seu marido, “Carlos Calon, com quem exerce e compartilha sua liderança, passou a representar o
segmento cigano em órgãos colegiados nacionais a partir da década de 2010.
3
Maurício de Castro Cristo é presidente da Federação Nacional das Associações dos Direitos e Leis
Romani e União dos Ciganos do Brasil (Fendruci), que atua regionalmente no estado do Paraná.
4
Estas lideranças, assim como eu, estávamos em Brasília por conta da 64ª Reunião Ordinária do
Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial (CNPIR), realizada no dia 9 e 10 de abril de 2019
(primeira reunião que ocorreu no governo Bolsonaro). Maria Jane é conselheira titular do CNPIR
(2019-2021), e sempre me convida para acompanhá-la nestas reuniões, em que tento ir sempre que posso.
5
Na segunda e terceira visita, respectivamente, em junho e julho de 2019, passei um final de semana
completo; sendo que nosso último encontro, em setembro de 2019, passei apenas uma manhã no
Acampamento.
6
No segundo final de semana que passei neste acampamento, não elaborei perguntas prévias.
93
7
Eu tinha noção que o fato de ser juron/gadjon, ou seja, um pessoa não-cigana, poderia gerar,
automaticamente, desconfianças. Por outro lado, sabia também que ser amigo de pessoas Calons de outras
partes do Brasil poderia contribuir para que eu pudesse me aproximar dos integrantes da “ANEC”,
conversar com eles sobre o projeto de lei, dormir no acampamento, participar, por um curto período da
rotina, do rancho de Seu Wanderley.
94
8
Embora eu soubesse que, ao gravar nossa conversa, as informações compartilhadas sobre o “Estatuto do
Cigano” não seriam as mesmas, caso eu não estivesse gravando, pois é comum manifestarmos receios
com conversas que são gravadas, entendia ser necessário pelo menos uma vez ter o diálogo gravado para
ser fiel às palavras das lideranças da ANEC sobre a tramitação do projeto de lei.
95
Seu Wanderley: Olha aí, inicialmente é um prazer estar com doutô Phillipe, neste
momento, aqui em Brasília. Hoje é dia dezesseis, dos seis de dois mil e dezenove. Quero
informar que estou aqui com meus irmãos, neste momento, fundadores da ANEC, no ano
de 2011. A Associação Nacional das Etnias Ciganas do Brasil, a ANEC, foi fundada e
constituída no ano de 2011, porque nós ciganos entendemos que também somos
cidadões de direitos e deveres, comum a todos, iguais a todos. E nós observou grande
dificuldade de acesso às políticas em todos os estados, principalmente, nos municípios,
grandes dificuldades. Muito racismo, preconceito. E Deus agora diante de toda uma
nação (cigana)10, levanta um pequeno grupo pra ser escolhido para construir a
primeira “Associação Nacional das Etnias Ciganas” para que através dessa fosse
levada a proposta da constituição do “Estatuto dos Povos Ciganos”, documento este
que abre portas de acesso aos direitos de igualdade racial dos povos que teve o grande
trabalho de ter ajudado bastante o Brasil, que venho pra cá na época da colonização. Nós
ajudamos o Brasil em vários sentidos, uma cultura milenar, muito rica, viemos aqui
contribuir com o Brasil, economicamente, humanamente, socialmente, em vários os
sentidos ou em todos os sentidos.
9
Noto que Seu Wanderley ocupa o papel de interlocutor externo nas atividades que ocorrem no âmbito da
burocracia estatal, sendo este que fala preferencialmente nas audiências públicas ou nas entrevistas em
nome da ANEC. Creio que deve existir entre um combinado os irmãos Wanderley, Jeferson e Batista.
Afirmo isto, pois, em diversos momentos em que passei no acampamento, todos irmãos fizeram questão
de ressaltar que não há diferença entre eles, que os três são igualmente importantes, tanto, que falaram
mais de uma vez que a ANEC é a “única associação brasileira que possui três presidentes”.
10
Rezende identificou, em sua pesquisa, que a expressão “Nação Cigana” é “narrada por diferentes vozes,
uma polifonia inventiva que elabora símbolos e representações diversas. São as vozes de ciganos, gadjé,
ciganólogos, Roma, Calons, kalderash, matchuanos etc” (2000, p.117).
96
Por isso hoje é 2019, já temos passado por 2 comissão de aprovação lá do Estatuto no
Senado Federal. Agora estamos em fase terminativa para a terceira comissão. E sabendo
que essa vitória é do povo cigano do Brasil, que a honra e glória pertence ao nosso Deus.
Eu: Quem foram os parceiros nessa trajetória, que atuaram junto com a ANEC para
a aprovação do Estatuto?
Seu Wanderley: Deus escolheu ele. Assim como escolheu a ANEC. Porque nada é por
acaso. Por ele ser um homem muito respeitado, Deus escolheu logo aquele, porque
sabia que o pedido dele no Senado para o presidente da Câmara seria aceito, que fosse
proposto esse projeto de lei, PLS 248/2015, que cria o “Estatuto do Cigano”. Então foi
escolhido, o autor da lei, e também foi escolhido o Senador Hélio José, como relator da
lei, do projeto de lei, que avançamos bastante no período da relatoria do Senador
Hélio e passamos por duas comissão. Graças a Deus estamos em fase terminativa. A
Comissão de Educação do Senado, a Comissão de Assuntos Sociais. E agora estamos
em fase terminativa.
Então, nós fizemos isso por entender que somos humanos iguais a todos, e sem esse
Estatuto as portas de igualdade racial estaria fechada para os ciganos, principalmente na
área do estudo. Então nós não concordamos com isso. Deus tem levantado nossa
comunidade para tá levando aí essa grande oportunidade de espaço aberto para o povo
cigano do Brasil, dando direito de igualdade racial.
Eu: O que o estatuto propõe de direitos que é importante para o povo cigano? Ele é
pensando para quem? Para a ANEC? Ou para todos?
Seu Wanderley: Deus o livre, a ANEC só foi escolhida por Deus pra levar a proposta que
está no Senado. A proposta é para todo o Brasil e todas as etnias. Tudo bem que somos
todos ciganos, mas somos diferenciados. A gente pensou em colocar todas as etnias, dentro
dessas etnias, que elas se fizessem presente na construção desse documento, para que elas
mesmo se expunhessem às demandas que eles tem, porque nós temos a mesma luta, mas as
demandas são diferentes. Ela vem englobando todas as demandas e toda a diversidade
cultural do povo cigano do Brasil. Moradia, regularização fundiária, bolsa na área de
estudo, o racismo e o preconceito, sobretudo, ser jogado por terra, ter a oportunidade de
levar às escolas, para conversar, desfazer; as empresas ser obrigada a contratar o povo
cigano, para não precisar se esconder. Tudo, você entendeu? Educação, saúde, moradia, e
direito de igualdade racial em todos os sentidos. Engloba várias políticas que nunca
tivemos acesso.
Eu: Hoje, o projeto, o que está acontecendo? Como o senhor avalia a tramitação?
Seu Wanderley: Doutô Phillipe, na verdade, é como eu estava falando com meu irmão. A
gente merece ter avançado mais, porque é 500 anos de invisibilidade. Mas, como o projeto
é colocado no senado em 2015 e estamos em 2019, passamos por duas comissões e estamos
em fase terminativa, agradecemos de coração trabalho do Senador, do autor e do relator da
lei, de todo o Senado, de todas as parcerias, Ministério Público Federal, os Direitos
97
Humanos, vários senadores de diversos partidos, indiferente de partido, mas como Senador
e autoridade, trabalhando para a aprovação nessas duas comissões que já passamos. E agora
outros parlamentares da Câmara Federal, que já se posicionaram a favor dessa lei.
Seu Wanderley: Olha, pra ser sincero, somos muito bem aceito lá no Senado, em qualquer
gabinete, somos muito bem recebidos pelos assessores, pelas autoridades parlamentares.
Enfim, quando a gente precisa nunca encontramos dificuldades. As vezes com aquele
negócio de agenda demora um pouco para atender a solicitação, somos sempre bem
recebidos, principalmente pelo autor da lei, PLS 248/2015, Senador Paim, que é um homem
de grande responsabilidade em tudo que faz, e tem se colocado como autor da lei, em favor
de um projeto de lei, que será constituído em breve, com fé em Deus, e será assinado pelo
presidente para ser transformado em lei. Muito justo, de uma nação inteira que
simplesmente visa ser vista com igualdade racial e sair da invisibilidade.
Seu Wanderley: Ela foi criada simplesmente com o fim e o propósito de levar a
construção do Estatuto, por entender que o Estatuto engloba todos os pedidos e demandas
que os ciganos vêm enfrentando ao longo da sua história no Brasil.
Seu Wanderley: Quando ela (a ANEC) foi criada, em 2011, estávamos em Planaltina.
Porque nós morando no Goiás, até pegar um ônibus, pra vim para um evento, teria
dificuldade, porque teria que atravessar o estado, seria burocrático. Como aqui é a
capital das leis e o nosso foco é o Senado Federal, a Câmara, o Estatuto, o Congresso
nacional, nós viemos para Brasília, entendendo que aqui seria mais viável, que nós teria
mais oportunidade de avançar realmente nas políticas, e sobretudo, na aprovação do
Estatuto.
Como unir o povo cigano de uma só vez? Num só propósito? Se estão divididos, se
estão um para um lado, e para outro? A gente não conhece todo mundo, mas sabe que
uns moram num lado, outros moram em outro. Como a gente vai conseguir reunir todo
mundo numa luta conjunta, visando um mesmo objetivo? Aí surgiu a grande necessidade
da construção do Estatuto, porque unido, o povo cigano do Brasil, lutando por um só
objetivo, nós temos mais chances, mais oportunidades, de ser aprovado, de ter força
para lutar, uma nação inteira junta. Graças a Deus, de 2011 à 2019, tem 8 anos já de
associação, a gente conseguiu criar em alguns estados, a ANEC. O nosso objetivo é que
todos os ciganos, de todas as etnias, junte-se a nós, juntos somos mais fortes, queremos
parceiras, com o mesmo pensamento.
Sede matriz em Brasília! O que queremos deixar bem claro nesta tese é que esta associação
não foi criada pra que ficasse na frente das outras. Foi porque Deus escolheu ela pra ser a
associação das etnias ciganas no Brasil, sem excluir nenhuma etnia.
Eu: Como a história do Estatuto não pode ser separada da história da ANEC, me fale
um pouco da história desse lugar que nós estamos aqui (o acampamento Nova
Canãa)?
Seu Wanderley: Então esse lugar aqui, terra Nova Canãa, como tá na internet, na
mídia é o Primeiro uso de terra, concessão gratuita, do governo federal, se
aproximando 500 anos de ciganos aqui no Brasil, segundo os relatos, que chegamos em
1574, primeira terra, exclusiva, especificamente do governo federal para o povo
cigano. E nosso sonho aqui é construir o primeiro espaço de resgate da cultura cigana
neste país, de pesquisa, tendo um centro de capacitação para jovens e adultos, né, para
98
todo cigano do Brasil. Que esse espaço seja um espaço de porto seguro dos ciganos no
Brasil. Que sirva de valorização do cigano na capital federal e para o Brasil inteiro. É
a primeira vez na história, na capital federal, memorial, centro de resgate, e também
de pesquisa da cultura cigana no país.
Seu Wanderley: Chegamos aqui em 2014, em Brasília, tivemos uma transição até chegar
aqui. Mas chegamos até aqui, pelo governo federal. Hoje é 2019, estamos aí, com fé,
esperança, de dias melhores.
Eu: Seu Jefferson, o que o Estatuto representa para o senhor, qual o papel que ele vai
ter na história?
Seu Jefferson: Doutô Phillipe, boa tarde, sou Jefferson da Rocha, presidente executivo da
ANEC. O Estatuto nos dá segurança e respeito. É direito, né? Aí é onde vai gerar políticas
públicas específicas para nós ciganos. Não só aqui em Brasília, mas também em todo
Brasil, e no mundo. Esse documento vem para nos fortalecer, que nem os negros, que
nem os índios, que nem os quilombolas. Enfim, políticas públicas é o que a gente espera,
pelo governo, pela sociedade, pelo mundo. Que nós somos cidadãos, com os mesmos
direitos iguais. Nossas crianças estudam aqui em Brasília, somos respeitados. Nós, em
muitos lugares aí no interior do Brasil, continua as mesmas perseguições, as mesmas
coisas ruins contra o povo cigano, como antigamente. Nós estamos aqui em Brasília na
capital da república, juntamente Deus primeiramente, com nossa família, buscando direito
de igualdade racial, para que nosso povo, acorde e saiba que os direitos deles também
existe, como qualquer cidadão comum. E é muito importante o Estatuto para nós. A
criança tem estatuto. O índio tem. A polícia tem. A cidade tem. O idoso tem. E nós
ciganos somos uma NAÇÃO não temos estatuto, isso é vergonha, sinceramente.
Porque somos contribuintes e somos eleitor. Merecemos ter respeito. Nós queremos ser
reconhecido. Queremos ser reconhecido.
Seu Wanderley: Na verdade, nunca soubemos em lugar nenhum do mundo que existe
um estatuto cigano. Na verdade, os direitos dos ciganos é violado não só no Brasil,
como no mundo inteiro. Queremos ser modelo. Porque a partir do momento que aqui em
Brasília, Brasil, os ciganos conseguir um Estatuto, nós vamos usar ele como modelo para
outros países também construir um Estatuto para os ciganos de lá.
Seu Wanderley: É por ser o primeiro na história cigana, pelo governo federal,
especificamente, esse é o modelo, porque foi o primeiro em toda história do governo
federal específico para os ciganos.
Seu Jeferson: E sermos a Associação Nacional das Etnias Ciganas, que é nosso povo
que está aguardando tudo isso, depois de muitos anos, quando começou o mundo,
doutor, os ciganos já nasceram sem direitos. Sabendo que nossos direitos existe, só que
tá lacrado. Nós tamos em Brasília, na capital da república, para quebrar o lacre. Nós
quer saber os direitos e deveres.
Seu Batista: O direito da gente tá sendo violado, há muitos anos nós temos o nosso
direito e nós não sabe onde ele tava, tá entendendo? E agora estamos na capital da lei,
cadê os nossos direitos? Montamos a Associação Nacional, graças a Deus. Não temos
ajuda de governo, não temos ajuda de ninguém, contamos com nossas pernas,
entendeu? Nós vai divulgar o trabalho com o nosso dinheiro, quando nós vai numa reunião
é com o nosso dinheiro, você entendeu? Nós ainda estamos na capital forçando resolver
esse problema nosso, com fé em Deus, doutor, e com as autoridades de Brasília, nós vai
fazer valer o nosso direito, do nosso Estatuto, da nossa igualdade racial, como cidadão.
Somos tudo igual, quando morre, o caixão é o mesmo, o cemitério é o mesmo, a terra é a
mesma, com todo respeito da palavra. Por que tanto preconceito com os ciganos? Se não vê
um cigano estupar, não vê na televisão que o cigano tá matando, assaltando banco? Veja se
o senhor vê história de cigano na televisão aí, de roubo de banco, de lavagem de dinheiro,
até porque os ciganos era pra ter mais respeito pelas autoridades. Com fé em Deus
chegamos lá.
Seu Wanderley: Porque na verdade doutor, estava comentando ontem, estamos aqui desde
ontem, graças a Deus, conversando, aprendendo um com o outro. A vida é cheia de
aprendizagem, ninguém sabe tudo, cada um sabe um pouco. E tem o segredo pra viver
feliz. Inicialmente o segredo de viver e ser feliz é ter temor à Deus, e o amor à Deus, acima
de tudo, e ao próximo, assim como a si mesmo. E a partir desse momento você vai começar
ver o mundo maravilhoso. Vai acordar de manhã cedo, olhar para o mundo, e ver uma coisa
linda. Minha filha leu hoje a mensagem do livro de Mateus, se o olho da gente for bom, o
nosso corpo todo é bom, tem luz. Entendeu? Então, doutor, graças a Deus, eu entendo
assim oh. O verdadeiro líder cigano ou não cigano, em qualquer área, ele tem que ter dentro
dele a estrutura de amor, porque a partir do momento que ele tem amor dentro dele, ele se
importa com o povo, ele sabe quando o povo precisa de água, quando precisa de comida,
quando o povo está passando por luta, por perigo, ele conhece, se agonia, não fica em paz.
Ele não fica longe do povo. O verdadeiro líder não deixa o povo na batalha, ele tá lá
dentro junto com ele (risos) ele não fica longe do povo de jeito nenhum, ele tá lá, na frente
do povo, graças a Deus, você entendeu? Então o verdadeiro líder tem um coração aberto a
tal ponto, Deus o livre, de enfrentar uma batalha lá na frente pra defender o seu povo.
Então, graças a Deus, eu entendo assim, eu Wanderley, sou um cigano, da etnia Calon,
semi-analfabético, com 53 anos de idade, to morando aqui em Brasília já há bastante
tempo. Ando em Brasília desde o ano de 77, e toda vida gostei de Brasília e viajei para
outras partes do Brasil. Agradeço de coração a oportunidade de poder fazer algo no sentido
de líder, liderar determinadas situações. Então, meu irmão, Deus ter dado oportunidade de
ter dentro do coração essa preocupação com a fome, com o medo, das lutas do nosso povo
cigano. E diante disso, queria eu, Wanderley, ter condição de poder ajudar todos esses no
momento certo. Mas sempre tem o Deus, todo poderoso, que tá nos ajudando, tem nos
ajudado, jamais vai nos abandonar. E através desse Deus rico ele tem nos dado a esperança,
paciência, e uma estabilidade de compreensão, de segurar esse tempo perdido, 500 anos
vivendo as margens da sociedade, mas que está agora chegando o tempo da bonança, a
tempestade já passou, mas agora é a bonança. (risos) tá certo, meu irmão? Graças a Deus.
100
O diálogo acima, assim como as outras conversas que tive durante a experiência
etnográfica no “Acampamento Nova Canãa”, registradas no diário campo,
possibilitaram-me reunir uma série de informações que são fundamentais para
interpretar e descrever a genealogia do processo de tramitação do Projeto de Lei nº
248/2015.
Neste sentido, busquei, nos cinco subtópicos abaixo, destacar alguns pontos que
me chamaram atenção no diálogo transcrito, são eles: o papel das associações civis
ciganas; a noção de tempo e espaço (no sentido territorialidade); as narrativas e as
memórias acionadas pelos respectivos interlocutores da ANEC para justificar a
necessidade de um “Estatuto”; como esses interlocutores enxergam o papel do Estado
em face da questão cigana no Brasil; e como se dá a categorização dos “direitos
humanos”.
11
Vejamos o que diz cada um destes dispositivos constitucionais: “é plena a liberdade de associação para
fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar” (inciso XVII); “a criação de associações e, na forma da lei, a
de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”
(inciso XVIII).
101
12
O Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), órgão consultivo e deliberativo, foi
instituído pela Lei n° 10.678, de 23 de maio de 2003, que reserva uma “cadeira” para o “segmento
cigano”, que concorre a vaga por meio de convocatória em edital público.
13
O Poder Executivo, por meio do Decreto presidencial n° 8.750, de 9 de maio de 2016, instituiu também
o “Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais”, órgão colegiado de caráter consultivo,
integrante da estrutura do Ministério dos Direitos Humanos” (art. 1°); possibilitando aos “povos ciganos”
concorrerem a uma vaga do conselho, e dando a estes “direito a voz e a voto” (art. 4º, § 2º, inciso IV).
102
Até o ano de 2020, a ANEC nunca compôs conselhos da esfera federal, mas, por
sua vez, integrou conselhos do Distrito Federal, como é o caso do Conselho de
Juventude do Distrito Federal (Conjuve-DF).
Por outro lado, embora seja comum as associações ciganas serem organizadas
em torno de vínculos familiares, como é o caso da “ANEC”14, entendo que esse fato não
reduz ou anula a legitimidade dessas “organizações” para atuar pelos direitos de “toda
uma nação”, como diz Seu Wanderley ou Seu Jeferson para se referir à condição dos
ciganos no Brasil. O que deve importar é a realidade, o que estas “associações” fazem
de fato em prol da coletividade cigana, qual a repercussão política de suas ações no
cenário local, regional ou nacional. Pois, é como revela a expressão comum no ambiente
de militância marxista: “a prática é o critério da verdade” (PEIXOTO, 2018, p. 218). A
prática da “ANEC” a posiciona como uma entidade cuja atuação tem repercussão em
todo território brasileiro e não o fato de adotar a expressão “nacional”.
14
O funcionamento social do Acampamento “Nova Canãa”, assim como constatou Virginia dos Santos
(2002) em relação aos grupos ciganos que vivem no município de São Paulo, de maneira geral, tem como
base fundamental a coesão de seus indivíduos, a qual é nitidamente maior entre os indivíduos de uma
mesma família - laços consangüíneos de parentesco. Para esta autora, quando se analisam os moradores
das “ruas ou bairros ciganos”, percebe-se que esses moradores geralmente pertencem a um mesmo grande
grupo e que agrupados espacialmente, podem manter mais facilmente seus traços culturais comuns e
manter mais coesa sua específica organização social.
15
Segundo a reportagem “Juventude que sonha – Daiane Rocha, divulgada em 24/08/2015, no website da
Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, Daiane, que é secretária-geral da ANEC e filha de
Seu Wanderley, é “a primeira conselheira de origem cigana do Conselho de Juventude do Distrito
Federal” (DISTRITO FEDERAL, 2018).
103
16
Darei mais atenção no quarto capítulo à descrição desta audiência pública, para compreender melhor a
construção político-jurídica do “Estatuto do Cigano”.
17
Foi esclarecido pelo Senador Paulo Paim, no início da audiência, que as pessoas sentadas na mesa da
teriam o direito de falar por 10 minutos. Quando foi aberta a possibilidade das pessoas da plateia falarem,
que deveriam se inscrever anteriormente, o Senador estabeleceu que os participantes poderiam falar por
no máximo 5 minutos.
105
18
De alguma maneira a presença da “ANEC” nesta posição de articulação legítima também os ciganos
Calon de modo geral. Isso porque, embora seja o grupo étnico mais numeroso no país e há mais tempo
neste território, as primeiras lideranças ciganas atuantes como interlocutoras em face da burocracia
estatal eram pertencentes à etnia Rom, como é o caso, por exemplo, de Cláudio Ivanovitch, Miriam
Stanescon e Mio Vacite.
19
No próximo tópico deste capítulo, abordarei sobre a audiência pública que o Senador Paulo Paim
mencionou na referida afirmação, que o levou a propor o projeto.
106
Nos diálogos que tive com Seu Wanderley, por outro lado, não houve menções
às audiências públicas que ocorreram antes de abril de 2015, mês e ano em que o “PLS”
foi proposto. Inclusive, fiz indagações diretas a estes eventos durante a minha passagem
pelo “Acampamento Nova Canãa” e não obtive respostas. A impressão que tive é que,
para estes interlocutores, as movimentações pelo “Estatuto do Cigano” se iniciaram com
a criação da ANEC, em 2011, depois, com a mudança do grupo para Brasília, em 2014,
com a instalação do “Acampamento Nova Canãa”, em junho de 2015, e, posteriormente,
com a proposição formal do projeto de lei no Senado Federal. Em outras palavras, não
houve referências dos interlocutores da “ANEC” aos eventos que ocorreram no
Congresso Nacional, entre 2011 e 2015. Por isso, o não dito é igualmente revelador.
Como já foi mencionado na introdução desta tese, é importante ressaltar que a
tramitação do PLS nº 248/2015 se iniciou com a sua submissão no Senado Federal, em
29 de abril de 2015. Desde então, o “Estatuto do Cigano” foi discutido e aprovado por
duas comissões temáticas do Senado Federal. Na 7ª Reunião Extraordinária da
Comissão de Educação, Cultura e Esporte, realizada em 27 de março de 2018, foi
aprovado o relatório do senador Hélio José (Partido MDB), favorável ao projeto. Na 15ª
Reunião da Comissão de Assuntos Sociais, realizada em 9 de maio de 2018, também foi
aprovado o relatório do senador Hélio José. Após a aprovação do Projeto de Lei
248/2015 nestas comissões temáticas, este projeto foi encaminhado à Comissão de
107
20
Durante o exame de qualificação da tese, a Profa. Dra. Mécia Rejane fez as seguintes provocações: por
que o projeto de lei, que foi proposto em 2015, só foi votado na primeira comissão em 2018? O que
aconteceu durante 2015 e 2018? O que aconteceu a partir de 2018 para que a votação na terceira comissão
não tenha ocorrido? Estas provocações serão refletidas no último capítulo da tese, “Capital das Leis”, em
que abordarei as correlações de força e a conjuntura política que a tramitação do “Estatuto do Cigano” é
atravessada.
108
Além disso, ao longo do diálogo que foi transcrito, assim como em outros
momentos em que conversei com os interlocutores da “ANEC”, as trajetórias desta
associação e do “Estatuto do Cigano” são entrelaçadas, como se constituíssem uma
única história. Nas palavras de Seu Wanderley, “a ANEC foi fundada e constituída no
ano de 2011, porque nós ciganos entendemos que também somos cidadões de direitos e
deveres, comum a todos, iguais a todos. [...] Ela foi criada simplesmente com o fim e
o propósito de levar a construção do Estatuto” (meus destaques).
Percebo ainda que é muito comum os interlocutores associarem o surgimento da
“ANEC”, do “Estatuto do Cigano”, assim como sua relação com os senadores Paulo
Paim ou Hélio José à ideia de destino, aos poderes divinos, à vontade de Deus. Esta
forma de narrativa, de associação ao divino, também foi percebida pela pesquisadora
Maria Patrícia Goldfarb (2010) quando buscou compreender como os “ciganos” mais
velhos, que vivem no município de Sousa-PB, enxergam o passado e interpretam o
surgimento do grupo.
Como nos mostra Max Weber (1982, p. 222, destaque do autor), os “ciganos”
vivem o presente explorando o passado, o que permite um senso de dignidade, “nutrido
pela crença numa missão providencial e por uma crença numa honra específica perante
Deus”, isto é, de um “povo escolhido”. Por isso, em relação às narrativas sobre o porquê
de os “ciganos” serem nômades, Goldfarb percebe que
[...] o passado fornece um status diferenciado, através dessa ideia de destino,
que produz uma ‘estimativa positiva’, que determina certa ‘honraria’ ao povo
cigano, visto aqui como um povo escolhido. Assim, o fato de serem
‘mensageiros’ ou ‘peregrinos’, tal como fora Jesus, explica a própria
constituição histórica do grupo. A peregrinação relaciona-se com o passado
de nomadismo, a vida sofrida, a tradição. Já o fato de serem mensageiros de
Deus explica a capacidade de vidência e os sentimentos de dignidade, que se
relacionam com uma positivação do seu status social. (2010, p. 169,
destaque da autora)
21
Canãa é a antiga denominação da região correspondente à área do atual Estado de Israel (inclusive as
Colinas de Golã), da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, de parte da Jordânia (uma faixa na margem oriental
do Rio Jordão), do Líbano e de parte da Síria (uma faixa junto ao Mar Mediterrâneo, na parte sul do
litoral da Síria), conforme os versículos da bíblia de Números (34:1-15) e Deuteronômio (3:8), do Antigo
Testamento.
109
toda uma “nação cigana”, para batalhar pelo fim do sofrimento que este povo vivencia
há séculos.
Entendo ser necessário destacar que esta narrativa do “povo escolhido” e da
“terra prometida”, manifestada pelos interlocutores em suas falas, está associada
também ao fato do “Acampamento Nova Canãa” ser um dos primeiros espaços
concedidos pelo Estado brasileiro para famílias e grupos “ciganos” construírem suas
moradias. Como afirma Seu Wanderley,
[...] esse lugar aqui, terra Nova Canãa, como tá na internet, na mídia, é o primeiro uso de
terra, concessão gratuita, do governo federal, se aproximando 500 anos de ciganos aqui
no Brasil, segundo os relatos, que chegamos em 1574, primeira terra, exclusiva,
especificamente do governo federal para o povo cigano. (meus destaques)
Por isso que é importante destacar que o “Acampamento Nova Canãa” é um dos
espaços centrais para compreender a tramitação do PLS nº 248/2015, foi citado na
audiência pública do dia 29 de maio de 2020, assim como nas reportagens produzidas
pela TV SENADO. A área destinada à família de Seu Wanderley é de 3,5110 hectares,
em que vivem “aproximadamente 18 famílias, sendo composta por 70 pessoas”
(PINEL; PERPÉTUO; RESES, 2019, p. 148). Fica situado a aproximadamente 32 km
do Congresso Nacional, como pode ser visualizado na imagem abaixo:
ademais, eles próprios nos informaram que a cidade sempre esteve na rota de parada do
grupo, sobretudo, pelo fato de que ali existia apoio e se tinha proteção” (2015, p. 23).
A territorialidade dos “ciganos” que vivem no “Acampamento Nova Canãa”
pode ser compreendida “através da apropriação espacial, processando no espaço
construções simbológicas, representadas pela lógica da utilização enquanto instrumento
de sobrevivência e materialização das necessidades” (MACHADO; SOUSA;
ALMEIDA, 2011, p. 4). De acordo com estes autores, por ter práticas supostamente
nômades23, a territorialidade cigana é “construída cotidianamente, não obedecendo
necessariamente uma fixação no espaço. Dessa forma os ciganos constantemente faziam
a transformação de espaços em territórios próprios” (2011, p. 4)24.
Segundo Virgínia dos Santos (2002), para o “cigano”, a utilização de um espaço
traduz suas concepções humanas, culturais, materiais e filosóficas, com base em
concepções arquitetadas e abstratas de espaço e territórios adquiridos, tendo um valor
social definido pelo grupo. De toda forma, é importante compreender que “os ciganos
formam uma comunidade imaginada, a partir de um estilo cultural singular, que une
simbolicamente aspectos essencialistas e epocalistas em uma forma de comunhão e de
solidariedade, objetivada na relação entre parentesco e espaço” (REZENDE, 2000, p.
86).
Nesse sentido, noto que as narrativas dos interlocutores da “ANEC” ou do
“Acampamento Nova Canãa” refletem suas concepções sobre si próprios e sobre sua
relação com o mundo, tanto no aspecto temporal, como espacial, na medida que
entrelaçam as suas respectivas trajetórias ao percurso do “Estatuto do Cigano”. São
narrativas que representam a construção da memória coletiva/familiar, e,
consequentemente, da identidade do grupo, como abordarei no próximo tópico.
Neste subtópico, opto por discutir a forma como as memórias dos interlocutores
do “Acampamento Nova Canãa” sobre o “Estatuto” são levantadas e de que maneira
23
Embora os interlocutores da ANEC tenham constituído (fixado) suas moradias no “Acampamento Nova
Canãa”, entendo que não é adequado chamá-los de “sedentários”, ou, simplesmente de “nômades”.
Primeiro, por se tratarem de classificações externas, atribuídas por pessoas “não-ciganas”, e não pelos
próprios “ciganos”. Também não é adequado, pois, como pesquisador, tive apenas quatro experiências
etnográficas neste acampamento. Contudo, nestas ocasiões, notei que alguns integrantes da associação
circulam constantemente em estados vizinhos ao Distrito Federal, especialmente Minas Gerais, onde tem
relações de negócio e vínculos familiares. Voltarei a abordar a questão do “nomadismo” no terceiro
capítulo desta tese.
24
A pesquisa de Machado, Sousa e Almeida levou em consideração a territorialidade dos os ciganos que
vivem na região de Piomonte da Chapada Diamantina (cidade de Jacobina-BA).
112
25
Como esclareci na introdução, este levantamento consistiu em ler as atas das reuniões e das relatorias
sobre o projeto de lei; assistir as votações que ocorreram nas Comissões temáticas, assim como a
audiência pública e as reportagens da TV Senado, sendo que todos estes materiais audiovisuais foram
transcritos.
26
Durante a observação participante em eventos políticos do Congressos ou nos espaços promovidos
pelos Conselhos Nacionais, foi possível conhecer e conversar com outras lideranças ciganas,
informalmente, e, nestes diálogos, foi possível ouvir alguns posicionamentos sobre a proposição do
“Estatuto do Cigano”.
27
Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento da tese.
28
Para o propósito desta tese, não é necessário informar o nome desta liderança.
29
O e-mail que enviei, 9 de maio de 2019, fez a seguinte pergunta à ”representação cigana”: “A senhora
estará em Brasília dia 24 de maio? Eu irei participar do evento organizado pelo PGR em comemoração ao
Dia Nacional do Cigano. Se a senhora puder, podemos conversar antes ou depois do evento”.
113
ele voltando para João Pessoa e eu indo para o Rio de Janeiro30. “Você precisa conversar
com a Susana Novisk sobre a tramitação do PLS, ela tem muitas informações sobre o
projeto”31, aconselhou o Procurador da República. Então, segui o seu conselho e o
solicitei uma entrevista.
Segue abaixo a resposta que tive de Susana Novisk, no dia 10 de maio de 2019:
Grata pelo contato. Infelizmente o mês de maio é bastante corrido. A equipe da
AXY/Brasil32 estará em ações municipais e estaduais e eu estarei em agenda fora do país.
A última versão é tão desatualizada na qual se afirma ter atendido os pedidos e floreios do
MPF em relatório, que nos dá uma sensação muito ruim e dúbia sobre os organismos de
defesa e proteção deste país.
Desde os primeiros dias desta versão, até hoje, fomos a primeira organização a alertar os
erros grotescos iniciais, e inúmeros e mail, as comissões e afins foram enviados.
A ilusão permeia as ditas autoridades, num raso e parco acolhimento, sem levar em conta
por exemplo o amplo contexto do mundo do trabalho, suas realidades de fronteira e
território dentre outras.
Sabemos que não teremos como trabalhar esse estatuto enquanto mecanismo de direito
efetivo. Quantos somos? Como criar um estatuto sem o mínimo?
Aos ciganos místicos, será aplicado o estatuto, a Romà seguirá a parte, tenho certeza disso.
Será papel sem eficiência, mais um para o senador dos estatutos. O mecanismo de um
estatuto em sí é de extrema relevância, caso tivesse sido feito com respeito, coragem e
dignidade. Não nos esqueçamos do avanço contra a romá pelos partidos de direita nos dias
atuais, Itália, Espanha, Bélgica e outros.
Por outro lado, penso e creio que seu senso crítico estará afiado e atendo. Espero e faço
votos que sim.
Grande abraço e boa sorte, ficamos em contato. (Meu acervo, destaques da informante)
30
Esta sugestão se deu após eu falar que estava planejando passar alguns dias no “Acampamento Nova
Canãa”.
31
Adota-se um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento da tese.
32
Adota-se um pseudônimo por entender não comprometer o desenvolvimento da tese.
114
33
Como será esclarecido no terceiro capítulo, falar em “cigano de espírito” ou “cigano místico” aciona a
seguinte significação: trata-se de pessoas que reivindicam “ser cigana” por uma ligação espiritual, e não
por descender de famílias ciganas, ter descendência cigana. Frisa-se que “gadjo”, em algumas línguas
ciganas, significa “pessoa não cigana”.
34
A normatização do “ser cigano”, ou seja, quem são os possíveis destinatários do PLS n° 248/2015 e
quais os parâmetros para identificar quem é “cigano” será discutido no terceiro capítulo.
115
35
Como veremos no próximo tópico, Marlete Queiroz aparece no primeiro registro audiovisual
disponibilizado pelo Congresso Nacional sobre eventos que tratavam sobre os direitos ciganos, em 2011.
116
embora tivessem tido ajuda, de outras pessoas, na produção do texto da lei. Encerramos
o assunto e não voltamos mais a falar de “Marlete”.
Se eu não mencionasse a existência de “Marlete”, provavelmente, nenhum dos
três interlocutores teriam falado sobre ela. Digo isso, pois, depois da conversa que
tivemos sobre “Marlete” nada mais foi falado sobre essa pessoa. O silêncio sobre ela já
era um dado para mim, que foi quebrado, uma única vez, por conta da minha pergunta.
A memória não é constituída apenas pelo que optamos lembrar, pelo que é dito
ou anunciado, mas, também pelo que se opta por esquecer, pelo “não-dito”. E é a partir
da memória e de como a construímos que se estabelece as identidades. Nas palavras de
Michael Pollak, a memória é um “elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si” (1992, p. 204).
Como diz Michael Pollak, em outra obra,
As fronteiras desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo e o
reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões
e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser
punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos.
(1989, p. 8, destaque do autor)
Pollak defende que “a memória é seletiva”, nem tudo fica gravado, nem tudo
fica registrado, sendo que as preocupações do momento constituem um elemento de
estruturação da memória. Dessa forma, ao concluir que a memória “é um fenômeno
construído”, este autor quer dizer que “os modos de construção podem tanto ser
conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui,
relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”
(1992, p. 203-204).
Segundo Rezende, a etnicidade cigana
permanece imersa nas experiências cotidianas dos atores e nas memórias
de um passado submerso que emerge reinterpretado e atualizado a todo
momento. No contexto do contato cultural vemos a etnicidade operando
em toda sua magnitude, instilando vigorosamente sentimentos e sentidos
nos discursos e práticas, através dos mitos de origem e experiências
pessoais das tradições culturais como a língua, as vestimentas, o
nomadismo, o parentesco etc. (2000, p. 72, grifo do autor)
Por isso, interpreto que o que estava em jogo para os interlocutores da “ANEC”,
durante nossas interações, era a identidade do seu grupo e a narrativa que
reivindicavam: os “pioneiros”, os “escolhidos de Deus” e os responsáveis por realizar a
117
missão divina de “aprovar o Estatuto do Cigano”, para o bem de “toda uma nação”; por
isso, criaram a “ANEC” e se mudaram para “Capital da Leis”.
Todavia, como sustenta Pollak, “a construção da identidade é um fenômeno que
se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros” (1992, p. 204). Este autor ressalta que a memória e identidade podem
perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser entendidos como
essências de uma pessoa ou de um grupo.
Cada um, com suas memórias e experiências privadas, poderá chegar a
elaboração de respostas a partir da ressignificação das memórias [...] toda
memória é contemporânea porque é produzida no presente, e sempre
conflitiva em sua evocação, pois seleciona e esquece algo em sua
interpretação do passado. [...] entende-se que é a partir das disputas e dos
conflitos, que essas memórias podem continuar sendo produzidas. (BRITO,
2020, p. 78-79)
isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e
intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”
(1992, p. 204).
Realizar esta etnografia, inspirado sobretudo na perspectiva de descrição densa
em Geertz (1989), como aqui me proponho, demandou identificar possíveis
interlocutores e, em seguida, selecioná-los e interpretá-los, adotando a análise
antropológica como forma de produzir conhecimento.
Selecionar e dar ênfase a alguns interlocutores não se tratou de uma escolha
neutra, pois, essas opções delinearam a rede de significados, que, no caso desta tese,
contribuíram para compreender a luta pelos direitos ciganos a partir da tramitação do
PLS 248/2015. Por isso, optei por entrevistar, apenas, os integrantes da “ANEC” sobre o
“Estatuto do Cigano”, o que foi feito durante as minhas visitas ao Acampamento Nova
Canãa. Quando advirto que a seleção dos interlocutores não foi neutra, considero a
afirmação de Cardoso de Oliveira quando diz que há um:
sistema conceitual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já,
em uma primeira instância, construídos pelo observador desde o momento de
sua descrição, guardo entre si uma relação dialética. São inter-influenciáveis.
O momento de escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete, faz
com que aqueles dados sofram uma nova refração, uma vez que todo o
processo de escrever, ou de inscrever as observações no discurso da
disciplina, está contaminado pelo contexto do being here [...] pelo ambiente
acadêmico” (1996, p. 27, destaques do autor).
longo da pesquisa etnográfica, fui percebendo que as oposições ao “PLS” diziam mais
respeito a quem pode ou deve dizer quais são os direitos dos povos ciganos e não tanto
em relação ao conteúdo da proposição legislativa do Senador Paulo Paim37.
Por fim, é necessário discutir nos próximos subtópicos como os interlocutores da
“ANEC” compreendem o papel do Estado e como categorizam os “direitos humanos”.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que como não existe uma única identidade
cigana, também não há uma única realidade, e, consequentemente, uma exclusiva
percepção sobre o papel do Estado em face do que seriam os “direitos ciganos”. Não
cabem generalizações ou essencializações. Todavia, se levarmos em consideração os
registros das discussões ocorridas no Congresso Nacional sobre os “direitos” e a
“cidadania” cigana, é possível identificar que diferentes pessoas relatando a ocorrência
de discriminação racial, miséria e exclusão social, para indicar a vivência deste povo
tradicional no Brasil, como mecanismo estratégico para cobrar ações concreta dos
Poderes Públicos.
Por sua vez, dou destaque a interpretação apresentada por Florência Ferrari sobre
como os ciganos Calons percebem o “Estado”. Segundo esta pesquisadora, é possível
argumentar que, do ponto de vista de um calon,
37
Exploro as disputas políticas e as oposições ao “PLS” no tópico “5.2” no último capítulo desta tese.
120
Sandra Lucero: A tradição dos ciganos é muito rica, já está há a mais de 1500 anos
sofrendo racismo, preconceito, sendo expulso, sem direito à escola, saúde. [...] mas que
38
Frisa-se que Florência Ferrari aborda as relações dos ciganos com o Estado sem necessariamente
apresentar a demanda criada pela agenda do “Estatuto”. Segundo a antropóloga Edilma Monteiro (2019),
existem ciganos que desejam ter essa relação com o Estado e ciganos que não desejam, como percebeu
em sua pesquisa de doutorado, que precisou levar em conta o tempo todo essas negociações de quando
para os ciganos era “interessante” se expor a querer aproximação com os jurens (não-ciganos). Para esta
pesquisadora, que trabalhou com dois contextos etnográficos diferentes no estado da Paraíba, os “ciganos
de Mamanguape” não gostam da visita do Estado, enquanto os de “Sousa” se prepararam com o melhor
que tem para aguardar estas visitas. Esse debate e cenário demonstra que é fundamental partir do
pressuposto quanto à diversidade dos povos ciganos, e que mesmo que haja os que não querem este
diálogo com o Estado, os seus direitos precisam estar assegurados como cidadãos brasileiros e enquanto
povos tradicionais.
39
Sandra Lucero é uma liderança cigana do estado do Ceará, que foi convidada por Seu Wanderley para
sentar à mesa da audiência pública.
121
já vivemos nesse sofrimento, nessa desigualdade, há muito tempo. Olha, os ciganos que
estão aqui, se você parar para pensar, que agora o nosso estatuto está sendo feito,
diferente de outras etnias, como índio, como quilombola. Não tô aqui sendo contra que
nós somos amigos, que cada um precisa dos seus direitos, o sol nasce para todos, mas só
agora, graças ao Senador Paulo Paim, que nosso estatuto sendo feito, só agora ele está
sendo criado. (TV SENADO, 2018, meus destaques)
Nova Canãa”: “O direito da gente tá sendo violado, há muitos anos nós temos o nosso
direito e nós não sabe onde ele tava, tá entendendo? E agora estamos na capital da lei,
cadê os nossos direitos?” (meu destaque).
O problema não é a previsão de instrumentos legais e de equipamentos públicos
específicos para outras minorias sociais e étnicas. A questão que muitas lideranças
levantam é a ausência de uma lei específica ou um órgão público específico voltado
para os “povos ciganos”. Por isso, há essa permanente sensação de “invisibilidade”, por
mais que nos últimos anos houvesse uma maior aproximação com o Estado. Ao insistir
na ocorrência da “violação de direito”, assim como na “invisibilidade”, busca-se chamar
atenção para um movimento de resistência, que luta pela causa cigana e, que, ao mesmo
tempo, reivindica políticas públicas.
Vale a pena compartilhar um registro, que fiz no meu caderno campo, de uma
colocação da liderança cigana Maria Jane, durante o IV CONAPIR: “se temos a
FUNAI para os amigos indígenas, se temos a Fundação Palmares para os amigos
quilombolas, cadê a fundação dos ciganos? Por que a gente não tem nosso órgão?”.
Em diversos momentos, durante minhas experiências no “Acampamento Nova
Canãa”, Seu Wanderley compartilhou uma pretensão que tem, em face da ausência de
um órgão ou um espaço nacional específico, direcionados ao povo cigano. Este, assim
como Seu Jefersson e Seu Bastita, sugerem a criação de um espaço que seria chamado
“centro de resgaste da cultura cigana”.
Não é possível dizer que Seu Wanderley estava reivindicando, explicitamente,
um órgão como a FUNAI e ou como a Fundação Palmares, como afirmou a liderança
cigana Maria Jane. Todavia, interpreto que suas pretensões se aproximam, pois,
reivindicam a criação de uma estrutura nacional voltada para os “ciganos”, com apoio e
financiamento do Estado, diante da ausência de qualquer órgão ou patrimônio público
voltado especificamente para este povo tradicional42.
Além do fato da “ANEC” ser a associação proponente do PLS nº 248/2015,
interpreto que a mobilização da realidade do “Acampamento Nova Canãa”, que aparece
em três, das quatro reportagens produzidas, em 2018, pela TV Senado, se dá também
por ser uma tentativa de ilustrar a suposta realidade geral dos povos ciganos no Brasil,
sobretudo levando em consideração os elementos presentes no imaginário social.
42
Digo isso porque me recordo que, após a gravação do diálogo, continuamos conversando sobre esse
espaço ou centro de “resgate da cultura cigana”. Os três irmãos mostraram-se bastante empolgados com
essa ideia. Seu Jefferson, inclusive, disse que já tinha a “planta” do que seria esse centro, apontava para
uma direção e dizia que seria o “estacionamento”, em outra direção para indicar os “dormitórios” para os
ciganos que precisassem estar em Brasília, e assim por diante.
123
Para se ter uma noção mais detalhada das condições do “Acampamento Nova
Canãa”, compartilho, abaixo, alguns trechos do “Relatório de Visita Técnica Território
Calon do Distrito Federal”, publicado em 10 de maio de 2016 (BRASIL, 2016a, p.
16-20). Vejamos:
Condições de acesso à água: As famílias fazem uso de uma caixa d’água,
situada no seu território, mas que é de propriedade do condomínio vizinho.
Em época de seca, o fornecimento de água não é suficiente para a demanda
de abastecimento do acampamento cigano e do condomínio provocando
escassez total de água. Há apenas uma torneira na localidade e não há sistema
de distribuição de água para todas as moradias.
43
Destaco duas questões que me marcaram durante as experiências etnográficas. A dificuldade para
dormir, por conta do frio, mesmo que estivesse numa cama confortável e com cobertores grossos,
fornecidos pelo Seu Wanderley, não eram suficientes para mim, baiano acostumado com o calor, poder
pegar no sono (as temperaturas giravam em torno dos 14º graus durante a madrugada). E o banheiro, pelo
que eu notei, havia apenas dois para todo os moradores do local, eram as únicas instalações com parede
de alvenaria, contudo, sem teto, com os canos à mostra e sem azulejos.
125
Como disse Seu Jefferson, durante o nosso diálogo que foi gravado, “os ciganos
já nasceram sem direitos. Sabendo que nossos direitos existe, só que tá lacrado, nós
tamos em Brasília, na capital da república, para quebrar o lacre. Nós quer saber os
direitos e deveres” (meus destaques). É inegável que os interlocutores da “ANEC”
defendem que o “Estatuto do Cigano” pode ser uma ferramenta fundamental para
concretizar os “direitos dos ciganos”. Todavia, creio ser importante destacar que Seu
Wanderley, em diferentes momentos em que conversamos, advertiu que o “Estatuto” é
só começo e não será suficiente sem ações concretas dos governantes.
Com base nas narrativas dos interlocutores, que compartilhei nos parágrafos
acima, faço, aqui, algumas propostas de reflexão: como seria possível mobilizar forças
para reivindicar políticas públicas por meio da ideia abstrata que os direitos humanos
são inerentes a todos? Como pleitear atenção especial aos “ciganos”, na atualidade, sem
haver previsão expressa a este povo tradicional nas leis brasileiras? Bastaria a
“positivação de direitos” para resolver a “questão cigana” no Brasil?
Creio que as teorias críticas44, que refletem os direitos humanos, são as
perspectivas mais adequadas para responder às propostas de reflexão que fiz acima e
interpretar como os interlocutores aqui selecionados compreendem o papel do Estado
em face da questão cigana. Afinal de contas, as teorias mais tradicionais restringem-se a
reproduzir uma perspectiva “positivista” ou “universalistas” dos direitos Hhmanos.
Enquanto a vertente da teoria crítica, que me filio, para pensar o objeto de estudo desta
tese, busca pensar os direitos humanos como produtos culturais, como conquistas
históricas, os quais advêm das lutas sociais e a das reivindicações dos sujeitos de
direito45.
Partindo da análise da crítica ao “universalismo”, temos a ideia de que os
direitos humanos não podem ser compreendidos sem conceber o contexto cultural em
que estão inseridos.
É infelizmente evidente que a forma ocidental de lutar pela dignidade
humana, ou seja, pelos direitos humanos, nada diz sobre as formas imanentes
e concretas de existência dos seres humanos, que aparentemente são
proporcionadas pela arte de magia dos direitos que os textos internacionais e
nacionais proclamam. O prestígio atinge o seu auge quando se afirma que os
direitos humanos são as diretrizes universalmente aplicáveis a toda a
humanidade. Ou, por outras palavras, encontramos normas, regras e
declarações que parecem funcionar por si próprias sem necessidade de ter em
44
De acordo com Wolkmen (2017), não existe um direito crítico ou um direito dogmático, o que existe é
um Direito interpretado sob um ponto de vista dogmático ou crítico.
45
Tomo como base algumas premissas inspiradas nos estudos do autor espanhol Joaquin Herrera Flores
(2009), que são: a contraposição à concepção universalista de direitos humanos, a contrariedade a razões
transcendentais para explicação dos mesmos, a ideia de que estes estancam-se e realizam-se pela sua
positivação, e a descontextualização ou ahistoricidade.
126
Herrera Flores parte de uma crítica a essa concepção abstrata de direitos, na qual
o ser humano e seu contexto social não são levados em conta. Este autor, portanto,
defende a necessidade de que os sujeitos, a quem esses direitos positivados são
destinados, tenham conexão com a realidade em que estão inseridos. Além disso, essa
compreensão de que os direitos humanos estão postos e já estancados nas leis, é uma
especial preocupação de quando se critica a compreensão “positivista” de direitos, pois,
uma vez positivado, não há mais o que se avançar. Como afirmou Seu Wanderley, “a
aprovação do Estatuto é só o começo”.
Sem contextualizar, sem trazer a história dos processos de afirmação de direitos,
estes podem ser vislumbrados como “dádivas”, como uma simples concessão das
classes políticas, ou enquanto “um presente de Deus”, expressão que ouvi ser afirmada
diversas vezes pelos interlocutores da “ANEC”. Todavia, esta ideia de “um presente de
Deus”, anunciada pelos interlocutores aqui selecionados, é em relação à proposta do
projeto de lei, isto é, em face do fato da associação poder intermediar a submissão do
“Estatuto” no Senado. Ou seja, é uma providência divina poder representar “toda uma
nação cigana” na luta pela aprovação do primeiro “Estatuto do Cigano” do Brasil e do
mundo.
Como já foi dito no tópico “2.1.2”, associar a ideia do “Estatuto” a “elementos
divinos” faz parte da própria narrativa desses sujeitos ao buscar o reconhecimento do
grupo enquanto um “povo escolhido”. Por outro lado, mesmo reivindicando esta forma
narrativa, percebo que estes interlocutores não ignoram a necessidade da luta coletiva e
de ações concretas para transformar este “presente de Deus” em realidade.
Nesse sentido, entendo, como concluiu Manuel E. Gándara Carballido, que a
validação final de qualquer teoria crítica, está nas mãos dos protagonistas das lutas. Nas
palavras deste autor, “eles são chamados a fazer a verdadeira reinvenção de direitos, no
âmbito de sua busca por condições de vida decentes” (2015, p. 35). O papel dos
estudiosos, adeptos das teorias críticas, como é meu caso, “é lançar algumas
provocações para incentivar essas lutas. O que será, apenas as lutas dirão. Mas a
incorporação do pensamento crítico pode animar e aprimorar esses processos” (2015, p.
35).
A luta dos ciganos por direitos não é exclusiva da “ANEC”, ou das lideranças
que entram e saem de cena nos espaços do Congresso Nacional ou da burocracia estatal.
E muito menos estão restritas aos ambientes institucionais. Todavia, é inegável a
127
46
Destaco, neste sentido, o caráter segregador que sugere a superação de etapas, insuflando uma falsa
ordem, progresso e evolução dos Direitos Humanos. Douzinas refere-se a esta divisão como uma
proliferação aparentemente incontível com a realidade. Segundo este autor, os Direitos Humanos
diversificaram-se de direitos civis e políticos, ou “negativos”, da “primeira geração”, associados ao
liberalismo, para direitos econômicos, sociais e culturais, ou “positivos”, da “segunda geração”,
associados à tradição socialista, e, finalmente, para direitos de grupos e de soberania nacional da “terceira
geração”, associados ao processo de descolonização. A primeira geração, ou direitos “azuis”, é
simbolizada pela liberdade individual; a segunda, ou direitos “vermelhos”, por reivindicações de
igualdade de garantias a um padrão de vida decente, ao passo que a terceira, ou direitos “verdes”, pelo
direito à autodeterminação e, tardiamente, pela proteção ao meio ambiente (DOUZINAS, 2009, p. 127).
47
Pensar os direitos humanos como etapas traduz a interpretação que alguns autores, como Bobbio,
atribuíram ao processo de reconhecimento de direitos humanos, levando em consideração, teoricamente, a
experiência de alguns países europeus e de pessoas de determinadas, para criar um preceito generalizante
sobre um fenômeno que não alcançou simultaneamente todos os seres humanos, sobretudo, os “povos
ciganos”.
48
Aryadne Bittencourt Waldely, que desenvolveu uma pesquisa de inspiração etnográfica sobre os
pedidos de refúgio no Brasil, concluiu que “ainda que as dinâmicas do processo de elegibilidade ativem a
memória do sofrimento, muitos refugiados mantêm suas estratégias para não torná-lo presente, pelo
próprio êxodo” (2016, p. 127)
128
Por um lado, ao longo da pesquisa de campo, notei que os direitos humanos são
mobilizados no sentido de “violação de direitos”, ou, sintetizando, nas palavras de Seu
Wanderley, “direitos de ter direitos, simplesmente”. Aqui, o uso da palavra direitos
humanos está associada à ideia de acesso à terra, moradia adequada, educação, trabalho,
saúde, segurança, igualdade racial etc. Esta forma de mobilização se aproxima das
categorias analíticas, e, consequentemente, minhas, enquanto pesquisador, pois, também
penso os “direitos humanos” como um instrumento que possibilita acessar uma vida,
concretamente falando, mais digna.
Por outro lado, percebi, entre os interlocutores, que há uma categorização,
específica, acerca dos direitos humanos, que difere das minhas. Noto que os direitos
humanos podem ser vistos também como uma “categoria nativa”, diante da forma que é
acionado. É uma expressão mobilizada no sentido de uma “entidade”, uma “estrutura”
ou um “órgão” que está disponível para ampará-los em caso de “violência” e também
como uma ponte para acessar “direitos” e políticas públicas49.
Ressalto que interpretar os direitos humanos como uma categoria nativa
decorreu de uma “sacada” etnográfica que tive, que só foi possível devido ao tempo que
tive em campo e por conta da minha formação teórica. Segundo Urpi Montoya Uriarte,
“a nossa formação nos familiariza com as sacadas que tiveram todas as outras gerações
de antropólogos prévias à nossa, com o qual aprendemos a ver” (2012, p. 7, grifo do
autor). Esta autora acrescenta que
a nossa formação também consiste em, mediante a leitura de textos
etnográficos múltiplos, aprender a ver pessoas, não indivíduos, pessoas com
nomes, com posições, detentores de palavras, de saber. Somos igualmente
ensinados a diferenciar a coisa do significado, o feito do dito, o emic
(categorias do pesquisador) do etic (categorias do nativo). (URIARTE, 2012,
p. 7)
49
Estas pontes seriam, por exemplo, as comissões de Direitos Humanos da Câmara ou do Senado,
responsáveis por todas as audiências públicas realizadas no Congresso Nacional, que discutiram
diretamente os “direitos ciganos”. Assim como, as secretarias de estado (municipais, mas, principalmente
estaduais/distritais e federais), geralmente, relacionadas com pastas que trabalham com políticas de
promoção da igualdade racial ou dos direitos humanos.
50
Destaco, aqui, quatro pontos que Seu Wanderley indicou como fundamentais para qualquer liderança:
ser movido pela “estrutura de amor”; se importar com o povo; não ficar longe do povo; e não deixar o
povo na batalha, devendo estar ao seu lado.
129
uma situação de violência policial, disse: “eu queria pedir uma providência à igualdade
racial, aos direitos humanos e ao senador Paulo Paim” (meu destaque).
O fazer etnográfico possibilitou-me reconhecer, aqui, os direitos humanos como
categoria nativa. De acordo com Mariza Peirano, a etnografia não é apenas uma
metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida [...] No fazer
etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências
empíricas e nos nossos dados” (2012, p. 3). É importante dizer que a teoria e a prática
são inseparáveis, pois o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria.
Constatar os direitos humanos enquanto uma “categoria nativa” pode até parecer
óbvio, pois, esta expressão é percebida em outros espaços, e, anunciada por outras
pessoas que não estão relacionadas à “questão cigana”. Acontece que, mesmo
reconhecendo como “categoria nativa”, o sentido empregado não se dá de forma isolada
do mundo, ocorre justamente na troca, principalmente no contato com os espaços
“não-ciganos”.
Como disse no início deste subtópico, na sociedade, em geral, a palavra “direitos
humanos” está relacionada a diferentes significados. Contudo, o que mais se aproxima
da categoria dos nativos é a ideia de apoio aos mais excluídos, aquilo que irá fazer
“valer os direitos”, acessar as políticas públicas. A apropriação de uma linguagem
própria da cosmologia não-cigana, como acontece com os direitos humanos, pelos
interlocutores ou por outras lideranças ciganas, é inevitável, pois não há mundos
paralelos, estamos interconectados. No caso de algumas lideranças, é possível dizer que
essa mobilização se deu, justamente, diante da aproximação com órgãos do Estado,
como é o caso do processo legislativo do “Estatuto do Cigano”.
131
51
No centro da imagem, entre Seu Jefferson (esquerda) e Seu Wanderley (direita), está o secretário da
SEPPIR, Juvenal Araújo, que integrava a equipe dos MDH do governo Temer. Com a mudança na gestão
do governo federal, ele passou a ser secretário do Distrito Federal, no governo de Ibanês (MDB).
132
perseguido, representa a busca pela construção de direitos, que é disparado pela própria
luta, institucional ou não. O que faz a resistência pela tramitação do “Estatuto” é a
construção de processos de luta. As dores das violências sofridas ou causadas pela
frustração de se sentirem invisíveis não se afastam da memória, mas os sujeitos têm a
potência de tensionar a ontologia sobre as formas de vida52.
No sentido institucional, é necessário dizer que a luta dos povos ciganos por
direitos não iniciou com a tramitação do PLS n° 248/2015. No caso do Congresso
Nacional, identifiquei, desde 2011, a presença de “associações”, lideranças ciganas e a
realização de audiências públicas, em que se pauta os “direitos” ou a “cidadania
cigana”, o que foi demonstrado no tópico “2.2”. Esse mapeamento foi fundamental para
compreender a tramitação do “Estatuto do Cigano” e a sua trajetória inicial, pois revela
os primeiros espaços de negociação pela produção dos direitos dos povos ciganos que
ocorreram na esfera do Poder Legislativo.
52
Voltarei a aprofundar a análise sobre os “direitos humanos” no subtópico “2.2.3”.
133
53
O pesquisador Franz Moonen, por meio do artigo “Ciganos Calon no Município de Sousa/PB (1993 -
2011)”, refletiu como se deu a aproximação do político paraibano Antônio Mariz com a “causa cigana”
(2013, p. 23).
135
55
Segundo Wash, colonialidade do poder “refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação
social baseado na categoria de “raça” como critério fundamental para a distribuição, dominação e
exploração da população mundial, no estilo, lugar e rols da estrutura capitalista-global do trabalho,
categoria que – por sua vez – altera todas as relações de dominação, incluindo as de classe, gênero,
sexualidade, etc. Este sistema de classificação fixou-se na formação de uma hierarquia e divisão de
identidade racializada, com o branco (europeu ou europeizado masculino) por cima [...]” (2009, p. 9).
138
56
Em 1987, ano em que se iniciou a Assembleia Nacional Constituinte, “os negros (pretos e pardos)
representavam aproximadamente 46% do contingente populacional pátrio, entretanto foram eleitos apenas
11 representantes negros de um total de 559 membros, ou seja, 2% dos constituintes” (CNTS, 2018).
140
57
Raquel Farjado identifica a existência de três ciclos, de natureza pluralista, nos processos de reformas
constitucionais, a partir da década de 1980: o ciclo do constitucionalismo multicultural (1982-1988); o
ciclo do constitucionalismo pluricultural (1989-2005) e o ciclo do constitucionalismo plurinacional
(2006-2009). Segundo esta autora, neste ciclo, as constituições introduzem o conceito de diversidade
cultural, o reconhecimento da configuração multicultural e multilíngue da sociedade, o direito - individual
e coletivo - à identidade cultural e alguns direitos indígenas específicos. Entretanto, as constituições deste
ciclo, como a brasileira, não chegam a fazer um reconhecimento explícito do pluralismo jurídico (2011, p.
3).
58
Os integrantes dos Tribunais Superiores do Judiciário (incluindo o Tribunal Constitucional
Plurinacional) são eleitos por sufrágio direto (artigos 182, 183, 188, 188, 194, 197), assim como a
possibilidade da eleição de representantes e parlamentares dos territórios autônomos indígenas por meio
de seus usos e costumes (artigo 11). Da mesma forma, está prevista uma cota mínima de deputados
pertencentes aos povos originários, no sentido de compor a Assembleia Plurinacional (artigo 146)
(BOLIVIA, 2009).
59
“Dentre as 1.626 vagas para deputados distritais, estaduais, federais e senador, apenas 65 foram
preenchidas por candidatos que se autodeclaram pretos nas eleições 2018. Eles são 4% dos eleitos neste
ano, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)” (GELAPE; DANTAS, 2018).
141
60
“A gestão Lula criou novos conselhos nacionais de políticas públicas e fortaleceu aqueles criados
anteriormente. Além disso, foram realizadas mais de 70 conferências nacionais em suas duas gestões”
(ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014, p. 325).
142
audiências públicas e os conselhos são as partes que lhes cabe neste latifúndio que é a
política brasileira.
61
Frisa-se que esta parlamentar é autora do “PL nº 7.774/2014”, que dispõe sobre “sobre a inviolabilidade
do domicílio da população cigana” (BRASIL, 2014d). Além desta proposição legislativa, há também o
“PL nº 3.547/2015”, de autoria do deputado Helder Salomão (PT/ES), que tem como finalidade “incluir a
História e Cultura Cigana no currículo oficial da rede de ensino” (BRASIL, 2015a). Ambos os projetos
não foram votados.
144
62
Trata-se do Requerimento à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa nº 65 de 2011.
63
Embora Jonatas e Marlete sejam indicados como representantes da ACEC-DF, não é possível afirmar
que sejam também ciganos da etnia Calon. O site escavador informa que Jonatas Alexandre Lima de
Oliveira é historiador que atua, principalmente, com os ciganos e suas representações sociais. Disponível
em: <https://www.escavador.com/sobre/6969148/jonatas-alexandre-lima-de-oliveira>. Acesso em 02 jun.
2020.
145
do Senado Federal para comemorar o “Dia Nacional da Consciência Negra”, evento que
foi realizado no dia 19 de novembro de 2010. A reportagem da Agência Senado informa
que “Marlete Queiroz” é “representante da comunidade cigana”. Destaco, aqui, alguns
elementos do discurso de “Marlete”, presentes na notícia, que também foram
recorrentes nas audiências públicas realizadas no Senado, a partir de 2011: a
invisibilidade dos povos ciganos, a dificuldade para obter a certidão de nascimento; e a
ausência de menção à etnia cigana no senso realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
Não tenho informações como “Marlete Queiroz”64 foi convidada para fazer parte
da sessão especial do Senado em homenagem ao “Dia Nacional da Consciência Negra”,
em novembro de 2010, assim como da audiência pública sobre a “cidadania cigana”,
realizada em maio de 2011. Tentei contato com ela, em abril de 2019, por meio de
mensagem no aplicativo Whatsapp, contudo, não obtive respostas. Por isso, cabe-me
especular que sua participação na sessão especial, em novembro de 2010, tenha
influenciado a realização, no ano seguinte, da primeira audiência pública realizada no
Congresso Nacional para discutir, diretamente, a “questão cigana”.
As informações disponibilizadas pelos Anais do Senado Federal, referente a
julho de 2011, fizeram um balanço das atividades realizadas no primeiro semestre.
Destacou-se a realização da audiência pública sobre a “cidadania cigana”, realizada na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Vejamos:
[...] iniciamos um ciclo de audiências públicas sobre o tema que incidem
diretamente sobre o interesse da sociedade, de todo o povo brasileiro.
[...] Também, Sr. Presidente, outro exemplo é o caso dos ciganos, que vivem
às margens do poder público, numa situação quase de invisibilidade, e
desprotegidos pela lei.
Em outro trecho desses “Anais”, é relatado qual a função das audiências públicas
realizadas no Congresso Nacional, e, mais uma vez, é feito referência a “questão
cigana”, sobre a necessidade de aprovação de uma legislação protetiva específica, assim
64
Marlete Queiroz criou um canal na plataforma Youtube chamado “Primeira Cigana Tagana Vale do
Amanhecer” em que narra a sua biografia de forma entrelaçada à entrada e vivência nesta religião.
Segundo o Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, trata-se de uma “uma religião
espiritualista cristã, criada para abrigar a Doutrina do Amanhecer, fundada em 1959 pela médium
clarividente Tia Neiva” (UNICAP, 2013).
147
[...] Pois bem, a partir da reunião que tivemos, surgiu a proposta de criação
do Estatuto dos Ciganos, com regras, deveres, direitos e obrigações.
A Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial realizará,
no início de 2012, a Conferência Cigana, para ouvir as demandas dos povos.
(2011c, p. 536, meus destaques)
65
O documento “Brasil Cigano - Relatório Executivo I Semana Nacional dos Povos Ciganos 20 a 24 de
maio de 2013” registrou que “em 2012, o Dia Nacional do Cigano foi celebrado com a realização da
Plenária: “Políticas Públicas e Povos de Cultura Cigana”, ocorrida no dia 25 de maio de 2012, no Rio de
Janeiro” (BRASIL, 2013, p. 9).
148
Também foi sugerida, foi determinada, por parte da população cigana, a elaboração de um
texto a ser apresentado por uma entidade nacional representativa dos ciganos como
sugestão para um possível projeto de lei que defenda os direitos dessa população.
A lei que for apresentada aqui, se for aprovada pelo Congresso Nacional, terá o nome
de Esmeralda, em homenagem a uma criança cigana que sonhava um dia frequentar
uma escola. É um começo, Srª Presidente, um caminho para mais justiça social para o povo
cigano. (2011, p. 483-484, meus destaques)
[...] Em maio do ano passado, realizamos aqui nesta Comissão outra audiência para tratar
da situação do povo cigano. Aí nós sugerimos inclusive a ideia do estatuto, uma lei que
determinaria os direitos e garantias individuais e coletivas do povo cigano, que
avançaria naturalmente no reconhecimento de uma legislação clara e transparente. O
estatuto teria, conforme entendimento, o nome que assim a comunidade entendesse
mais adequado. Alguém levantou até que poderia ter o nome de Esmeralda, em
homenagem a uma pequena criança que tinha o sonho, eu diria inusitado, de
frequentar a sala de aula. Sonhar com o direito legítimo garantido pela Constituição. É
um sonho bonito de alguém que criou na memória um mundo especial, de alguém que
mentalizou os desenhos em uma folha de caderno, que aqui me foi apresentada a
Esmeralda. Ela imaginava poder pegar o ônibus, chegar à escola, abraçar os coleguinhas,
enfim, ter o direito a uma vida normal como toda criança em qualquer parte do mundo.
Claro, aqui estamos discutindo o sonho da Esmeralda no Brasil. Ela só queria ter direito de
aula, como as outras suas coleguinhas. Em relação a tudo isso que ela escreveu, a intenção
era botar o nome da lei, uma vez aprovada, de Lei Esmeralda. Há alguns que não
entendem a importância de uma audiência pública. Naturalmente os que não
entendem é porque não têm compromisso com os movimentos sociais. (2012b, p. 958,
meus destaques)
149
66
Diferentes participantes da audiência pública fizeram menções positivas à atuação da Ministra dos
Direitos Humanos, Maria do Rosário.
150
[...] Junto com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, nós fizemos
um esforço na organização da Conferência Nacional de Direitos Humanos para inserir a
pauta cigana. Mas como o outro projeto do programa de direitos humanos já vinha quase
todo pronto, não foram aceitas as sugestões de mudança no texto para a inclusão dos
ciganos. Frans Moonen e o Cláudio Ivanovitch participaram desse esforço de inclusão dos
ciganos no Programa Nacional de Direitos Humanos I. Não é porque não tivesse havido um
esforço para inclusão. É que o formato já estava todo pronto, carimbado. Aí daria tempo,
mudar o carimbo e botar outras pautas de reivindicação. Mas insistiu-se e no Programa
Nacional de Direitos Humanos II já começou a constar da pauta os ciganos. (2012b, p.
961-962)
Marlete, essas organizações formam “uma Rede que é chamada Sujeito de Direitos”
(2011c, p. 966). Pela primeira vez, é feito menção à “ANEC”, associação que aparece
como propositora do PLS nº 248/2015.
Marlete Queiroz abordou também diferentes assuntos, entre eles, a
predominância do analfabetismo67 entre as comunidades Calons, indicando o índice de
98%, que foi questionado por pessoas na plateia; a falta de registro civil entre muitos
ciganos, o que dificulta acesso aos hospitais; a falta de políticas públicas específicas; e a
inconsistência nos dados que informam a quantidade de ciganos no Brasil, afirmando
ser um “mito esse censo”68. No momento que fez críticas aos dados do IBGE, Marlete
foi interrompida por Lucimara Cavalcanti e Elisa Costa, ambas do AMSK, que
afirmaram ter contribuído para a “Pesquisa Básica de Informações Municipais”.
67
Mirian Souza identificou, ao analisar e comparar a atuação de duas lideranças ciganas diferentes, que
no caso de Mirian Stanescon, seu discurso colabora “para a construção de uma representação pública dos
ciganos, na qual a pobreza e, consequentemente, o analfabetismo são tratados como um grande problema
entre eles (motivo pelo qual argumenta ter sido a primeira mulher cigana a se tornar advogada no Brasil”
(2013, p. 236-237).
68
A pesquisadora Edilma Monteiro compartilhou em sua tese de doutorado uma fala de um cigano Calon
que questionou esta relação da etnia ao analfabetismo. “Ao tratar dessa questão, o Calon traz para o
conhecimento que ‘não somos alfabetizados a partir dos parâmetros educacionais do grupo da sociedade
envolvente, pois a nossa educação é oral’- ele ainda ressalta, ’nossa educação não tem grafia, parte de
outras formas de aprendizagem’” (2019, p. 312).
69
No centro da fotografia está o senador Paulo Paim, que presidiu a audiência pública, e, ao seu lado
esquerdo está o Senhor Claudio Domingos Ivanovitch.
153
Após Marlete Queiroz, Ione Maria de Carvalho, representante do MinC, fez seu
pronunciamento e, em seguida, foi passada a palavra à deputada Erika Kokay, que fez
referências diretas à necessidade de um “Estatuto”. Vejamos:
[...] Por fim, queria concluir apenas dizendo da necessidade de que nós possamos, a
Câmara e o Senado, fazer a discussão do Estatuto e contemplar a questão fundiária,
que não significa a modificação da forma de ser. Como os ciganos falam: “Nós queremos
continuar comercializando, queremos continuar andando pelo mundo, mas nós queremos
que as nossas crianças tenham um espaço para que elas possam ir para a escola, tenham um
espaço para que elas possam se sentir pertencentes e ter um futuro que não seja o
casamento.” Por isso, Senador, eu concluiria, dizendo da importância e da necessidade para
o próximo ano nós realizarmos uma série de seminários de discussões temáticas a fim de
que possamos, a partir daí, criar as condições para o estatuto dos povos ciganos, enfim,
contemplar uma comunidade que é invisibilizada e, quando é vista, é vista
invisibilizada pelo Estado Democrático de Direito, pela noção de humanidade, pela
noção de solidariedade, é vista, via de regra, com os olhos da discriminação, com os olhos
da violência policial, da brutalidade que, muitas vezes, se expressa, mediante o Estado,
numa violência institucional, que precisa ser reconhecida para que possa ser desconstruída.
(2012e, p. 974-975, meus destaques)
Por fim, destaco o discurso de Elisa Costa, presidente da AMSK. Antes do seu
pronunciamento, falaram Silvany Euclênio Silva, da SEPPIR, Paul Singer, do MTE,
Letícia Miguel Teixeira e César Ramos, ambos do Ministério das Cidades, Macaé Maria
Evaristo, do MEC, Anna Flávia Schimitt, do IBGE, Padre Wallace, da Pastoral Nômade,
e Rosângela Corrêa, da professora da UnB.
A fala de Elisa Costa consistiu em cobranças ao Governo Federal, exigindo que
este comemore oficialmente, em 2013, o “Dia Nacional do Cigano”; que o MEC faça
uma pesquisa sobre o acesso à educação das crianças, jovens, adultos e idosos ciganos;
que haja mudanças na grade curricular dos cursos de Direito, Jornalismo, História,
Geografia, assim como os cursos de formação de professores e gestores, para que
abordem a “questão cigana”; e que seja criado um Observatório, envolvendo o MPF,
SDH e o Seepir.
Segundo o pesquisador Erisvelton Sávio Silva de Melo, em tese de doutorado
defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, o assunto
154
Eu sou Elias Cigano, Presidente da Associação Cigana das Etnias Calons do DF e Entorno.
Neste momento, estamos nesta audiência, e eu não estou falando só para o meu povo de
Brasília, porque o povo calon, de modo geral, são todos os povos. Eu quero falar sobre a
situação do meu povo tanto em Brasília como em âmbito nacional.
Em Brasília, a gente está sendo assistido por alguns programas, como a Deputada Erika
sabe, como uma tenda-escola, porque a maioria dos ciganos do Brasil são analfabetos —
90% dos ciganos são analfabetos, porque não existe uma política pública que fale sobre os
ciganos. Os ciganos ainda não têm uma profissão definida porque são analfabetos. O cigano
é discriminado em todo lugar que chega. É na saúde, é na escola e até no trabalho. Muitas
vezes nós temos de negar que somos ciganos para poder trabalhar e conseguir o sustento.
155
Então, a gente fala muito no nosso Estatuto dos Ciganos no Brasil. A gente acha, não só
eu, mas também todos os companheiros ciganos, todos os líderes, todas as comunidades...
A gente já discutiu isso na Câmara, houve demanda tanto na Câmara dos Deputados como
no Senado. Há mais de 4 anos que a gente teve essa demanda. A gente fala, fala, fala, mas
nunca achamos um ponto X para nos segurar para esse Estatuto.
Então, hoje estou aqui falando, quero o apoio de vocês. O grito de socorro para as
comunidades ciganas é o Estatuto da Igualdade Racial no Brasil para os ciganos, porque as
leis que existem no Brasil não falam em ciganos. Nós sabemos que a lei é para todos os
cidadãos brasileiros. O cigano é cidadão brasileiro, mas quando você fala que é cigano, é
negado. Eu falo com experiência própria. Eu sou representante de comunidade, eu rodo o
Brasil inteiro. Eu sou de Brasília, mas o meu trabalho me leva para todos os estados e
municípios não querem saber de cigano. Quando você fala que é cigano, eles querem até
prender. Muitas vezes eu chego a uma cidade para trabalhar e digo: ‘Olha, eu sou cigano,
eu trabalho com isso, isso’. ‘Aqui não. Cigano aqui não.’ Por que não? Por que não
procuram saber quem é o cigano? Só porque existe uma lenda de que o cigano é ladrão,
cigano é isso e aquilo! Pelo contrário, gente! Nós não estamos sendo mostrados na televisão
assaltando, estuprando, fazendo sequestros. Foi falado que os presídios estão todos cheios.
Contem quantos ciganos existem lá! Não há nenhum cigano. Então, por que somos
discriminados por essa razão? Nós temos que mudar isso. (Palmas)
Aqui em Brasília, a Deputada Erika Kokay sempre nos ajudou, está sempre comigo na
minha comunidade, ela conhece lá a peso. A gente a tem como se fosse uma pessoa da
família. A SEPIR/DF nos ajuda muito também no sentido da sua obrigação. Hoje, estamos
assentados graças ao Governo do Distrito Federal. Eu estou assentado em 3 hectares de
terra com 25 famílias, mais de 200 pessoas. Tenho minha escola, uma tenda-escola que foi
a primeira criada no Brasil. E a gente pretende levar esse modelo para outros estados,
porque estão necessitando. Se a pessoa não tiver estudo, como vai conseguir trabalhar no
mundo em que estamos hoje? É preciso aprender a ler. Há criança de 14 anos, de 15 anos
que nunca foi à escola. 26 Então, gente, este é um grito de socorro.
Os políticos têm que olhar pelo povo cigano, porque o povo cigano já faz diferença no
Brasil. Nós somos mais de 800 mil ciganos calons, fora as outras etnias. No Brasil, os
políticos não sabem, não reconhecem, nem procuram saber. Então, nós precisamos de
alguém que se interesse por nós, porque necessitamos. Hoje nós não vivemos sem política.
Hoje ninguém vive. Todos os companheiros que estão aqui são merecedores. Mas o povo
cigano é discriminado, não existe no papel. E nós somos cidadãos brasileiros. Então, o
recado que eu quero deixar é que nos ajudem, que deem continuidade, Deputada, como a
SEPIR/DF, que está aí também, que deem uma resposta para nós sobre o nosso Estatuto.
Nós tivemos, no ano passado, o Brasil Cigano, não só eu, mas também outras lideranças,
outros companheiros de fora, de outras etnias, como os Rom, os Caldeus, os Sintis e outras
que estão aí. A pauta mais discutida foi a do Estatuto dos Ciganos. Mas está chegando
outro ano. Dia 24 de maio é Dia Nacional do Cigano, e não tivemos nenhuma resposta.
Então, eu quero pedir à SEPIR/DF, que é do Governo do Distrito Federal, que nos ajude,
que nos dê uma resposta, porque não estamos podendo nem trabalhar mais. Quando uma
cigana sai para trabalhar, muitas vezes tem que trocar de roupa, não pode ir trabalhar com a
roupa dela. Eu não posso ir de chapéu, de bota para trabalhar, vender meus artesanatos.
Somos ferreiros. A gente fabrica as coisas. Mas quando descobrem que eu sou cigano,
pensam que roubei e estou vendendo na rua.
Então, gente, se nós não tivermos uma lei que nos ampare, como o cigano vai ficar no
Brasil? E os nossos adolescentes, os nossos idosos? Nós perdemos muitos idosos, muitas
crianças por falta de atendimento médico. Muitas vezes, a gente chega a um hospital para
consultar: ‘Você mora onde?’ ‘Não, eu sou cigano, estou de passagem.’ ‘Então, aqui não!’
Então, ele vai ficar onde? A gente não tem que consultar? A gente não tem que passar pelo
médico? Só porque é cigano não pode? Então, as demandas políticas têm que conhecer a
cultura cigana, para levá-la para dentro de todas as Secretarias. A nossa cultura é
desconsiderada.
Então, queremos resposta. Todo cigano estará apegado ao Estatuto, porque, se alguém
negar, nós falaremos: ‘Não, nós temos um Estatuto que fala de nós’. A gente sabe que
156
a lei é para todos, mas quando se fala em cigano é negado. Então, eu quero dar um
grito de socorro aqui, neste momento, para que todos os companheiros Deputados que
estão aqui — já conheço vários — deem continuidade, que nos chamem para dar
continuidade no nosso Estatuto no Brasil.
É importante salientar que “Seu Elias” fez menções ao fato da ideia de propor a
criação de um “Estatuto” ter sido abordado durante o evento “Brasil Cigano”,
promovido pelo governo federal em 2013 no mês de maio. Além disso, ressaltou que a
demanda pela criação do “Estatuto” já estava sendo discutida no Congresso Nacional
nos últimos 4 anos, provavelmente se referindo às atividades realizadas no Senado
Federal a partir do início da década de 2010, por meio das interlocuções de “Marlete
Queiroz”, que se apresentava como representada da ACEC-DF, mesma organização do
“Seu Elias”.
Por fim, não posso deixar de mencionar a audiência pública convocada pela
parlamentar Erika Kokay com a finalidade de discutir “políticas públicas para a
preservação da cultura do povo cigano no Brasil”, realizada em 22/05/2014, na
70
Seu Elias está sentado na ponta direita da mesa da audiência pública, de camisa azul e chapéu de
cawboy branco.
157
Embora durante esta audiência pública tenha sido abordada questões específicas
das comunidades ciganas participantes, como o “acesso ao atendimento básico de saúde,
a regularização fundiária das terras onde estão fixados e a educação dos agentes
policiais para os costumes ciganos”, a Deputada Erika Kokay pontuou que um dos
propósitos da reunião pública foi também tratar da criação do “Estatuto Nacional dos
Povos Ciganos”, e, assim como ocorreu na atividade realizada em 2012, mencionou que
a proposta “receberá o nome de ‘Estatuto Esmeralda’, em referência à menina cigana,
presente ao evento, que disse ser o maior sonho de sua vida poder estudar” (BRASIL,
2014b).
Além da deputada que presidiu a audiência pública, outros participantes fizeram
menções à proposta de “Estatuto” destinado ao “povo cigano”. Vejamos alguns trechos:
A Sra. Presidente (Deputada Erika Kokay): O Senador Paulo Paim, que é também um
grande defensor dos ciganos, da cultura cigana e dos direitos do povo cigano, já disse que
esse estatuto se chamará Estatuto Esmeralda, em homenagem a essa menina que queria
aprender a ler, e que aprendeu a ler, menina que tinha como brincadeira preferida a
construção de escolinhas e que dizia: Eu quero aprender a ler.
Então, Esmeralda, o estatuto que nós vamos construir vai carregar o seu nome por causa de
sua determinação e pelo que representa a possibilidade do acesso à educação, para que
possamos inclusive, através também da educação, desconstruir toda sorte de discriminação.
E eu diria que o povo cigano tem muito o que ensinar ao conjunto do País.
Fundamentalmente, não apenas respeitar, mas também homenagear nossa diversidade é
fundamental para fazer valer nossa Constituição, que fala em dignidade humana, e para
fazer valer nossa própria democracia, ainda em construção.
Então, o sentido desta audiência pública é podermos aqui traçar aspectos para compor o
Estatuto dos Ciganos. Temos a representação da SEPPIR-PR e da SEPIR-DF e vamos ter
uma discussão entre essas duas Secretarias - com a participação de outras, se necessário -,
que têm políticas específicas para a comunidade cigana, para que possamos construir o
esboço do Estatuto dos Ciganos, que vamos trazer a esta Casa para ser aprovado, de modo
que os ciganos possam dizer que sua cultura e a possibilidade de a viverem em sua inteireza
estão asseguradas em uma lei neste País.
[...]
O Sr. Elias Alves: Nós queremos lei para falar por nós, se nós não conseguirmos uma lei
para falar por nós, porque todo cigano que está aqui sabe que a lei da Constituinte do Brasil
não ampara o cigano e não quer saber do cigano; nem o Estado, nem o Município não
querem saber e não dão voz para o cigano. Inclusive nós temos aqui um Vereador cigano
que foi eleito pelo PT, mas ele, lá no Município dele, não tem força, porque ele é cigano.
[...] Então hoje eu quero - não só eu, mas todos os que estão aqui - que isso aqui seja uma
base para nós, um alicerce para levantar o nosso estatuto do cigano no Brasil, porque,
enquanto nós não tivermos nosso estatuto falando em nós, essas outras leis não quererem
saber de nós.
[...]
A Sra. Daiane da Rocha: E a criação do nosso estatuto nacional dos povos ciganos, que é
mais do que justo, porque têm pessoas que confundem a gente com religião, e na verdade
nós somos uma nação. E eu tenho orgulho de falar isto: nós somos uma nação. Como eu
havia lido lá em cima, tem uma estimativa não oficial de 800 mil ciganos. Nós somos uma
nação. E esses são os ciganos de acampamento, fora aqueles que moram em casa. Por medo
e por muito preconceito contra eles, eles acabam morando em casa para poderem ter um
trabalho mais digno. Então, com esse estatuto, nós vamos ter mais voz, com certeza.
como algo exterior. Nas suas palavras, “a alienação que se expressa na terminologia
filosófica ao separar valor de ciência, saber de agir, como também outras oposições,
preservam o cientista das contradições mencionadas e empresta ao seu trabalho limites
bem demarcados” (1980, p. 139).
É comum nos estudos antropológicos falar em “estranhamentos”, até por se
tratar de um campo de conhecimento que se propõe a compreender a cultura do “outro”
em geral. É no exercício do “estranhamento” que as pessoas se identificam, que se
reconhecem como ser único e que se afirma como sendo, da mesma forma, o “outro”.
Transportando essa técnica para os refletir os “direitos humanos”, especialmente
levando em conta o objeto de estudo desta tese, é possível questionar a função das
instituições estatais na proposição do “Estatuto” e em qual medida houve uma
autonomia e participação dos grupos que são destinatários deste projeto de lei na
tramitação.
Deve ser um pressuposto básico das teorias críticas questionar o que está posto,
“estranhar” os jogos de poder que envolvem, por exemplo, a criação de uma lei que tem
como finalidade reconhecer direitos voltados para os povos e comunidades tradicionais.
Acima de tudo por ser um processo legislativo que ocorre no Brasil, onde os povos
ciganos em sua maioria estiveram e estão excluídos dos espaços políticos em que são
tomadas as decisões mais importantes da sociedade; onde seus conhecimentos estão
atrelados ao não lugar da racionalidade; onde sua existência é tratada como tudo aquilo
que não devemos ser, enquanto o oposto de civilizado.
De acordo com o filósofo Helio Gallardo, os Estados na América Latina não
foram concebidos como Estados de direito (império das leis, divisão de poderes,
produção de uma identidade nacional, para citar três fatores), mas sim como máquinas
patrimonialistas, rentistas e clientelistas. Nas palavras deste autor,
[...] a fragilidade do Estado na América Latina fica evidente quando se olha
sua legislação, a atuação de seus órgãos burocráticos e tecnocráticos [...].
Estas são sociedades fragmentadas tanto pela dominação de classe quanto por
sua economia excludente e dependente, e os vários privilégios de status que
se opõem e discriminam em todos os níveis os senhores da multidão, os
brancos dos ‘negros’, o grupo étnico ‘nacional’ dominante dos grupos étnicos
originários, o urbano do rural, os homens das mulheres, os adultos das
crianças, os jovens e os velhos, os executivos tecnocráticos dos analfabetos.
(2010, p. 63, minha tradução)
classe não atenderá os anseios emancipatórios e por inclusão social desta minoria étnica.
Busco, na verdade, situar a questão cigana na realidade brasileira e latino-americana, em
especial por se tratar de um Estado que é predominantemente “monocultural”, como
discorri no subtópico “2.2.1”.
Se por um lado o sociólogo Ramón Grosfoquel afirma que “ninguém escapa às
hierarquias de classe, sexuais, de género, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais
do ‘sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno’”, de que maneira um povo
tradicional como os ciganos conseguiu alçar o Senado Federal e emplacar um projeto de
lei na dimensão do “Estatuto”? Como chegaram ao Senador Paulo Paim?
Ainda que o PLS 248/2015 não tenha sido aprovado, a sua proposição em si já é
um grande feito. Sendo que a etnografia deste processo político uma oportunidade para
refletir sobre os jogos de força que envolvem a “criação de uma lei”, ou seja, o que está
por trás da produção dos direitos dos povos ciganos no Brasil.
O trabalho antropológico que empreendi me possibilitou primeiro questionar, no
sentido de estranhar, e em seguida compreender em que medida a proposição legislativa
do “Estatuto” foi antecedida por um movimento de massa, resultado de uma articulação
que envolvessem diversos grupos espalhados por todo país. Nos últimos seis anos, ao
acompanhar “de perto” eventos políticos, locais, regionais ou nacionais envolvendo a
questão cigana, além da própria observação participante que faço da tramitação do PLS
248/2015, pude constatar alguns elementos que dão pistas sobre como ocorreram as
mediações políticas que perpassam o processo legislativo em tela.
Em primeiro lugar, ficou evidente que há uma dispersão no movimento cigano,
assim como uma articulação frágil, inexistindo uma rede sólida, auto organizada e
institucionalizada que envolva lideranças e representações ciganas de diferentes
localidades e etnias construindo uma agenda comum de lutas por direitos72. Faço essa
afirmação comparando com a realidade dos povos indígenas, que conquistou nas
últimas décadas, apesar de todos os ataques, mais visibilidade e apoio público, tanto
nacional, como também internacional. O papel do ativismo indigéna no processo
constituinte, por exemplo, que resultou na previsão do capítulo “Dos índios” na carta
política, por meio do art. 231, mesmo sem ter um representante direto no Congresso
Nacional, é uma expressiva amostragem dessa força73.
72
De acordo com as pesquisadoras Jamilly R. Cunha e Olga Magano, “Sem dúvida, houve avanços
importantes para o ‘movimento cigano’, mas ainda com pouca capacidade de mobilização e de
negociação comparando com outros movimentos sociais (indígenas e quilombolas) no Brasil” (2019, p.
273).
73
“Após 1988, organizações indígenas continuaram o trabalho de articulação com as agendas, como a
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB)” (LOPES, 2017, p. 84).
162
74
Voltarei a discutir essa questão das disputas sobre tais critérios nos subtópicos “3.1.1” e “3.2.4”.
163
75
O MPF, ao publicar um texto sobre uma ação de usucapião coletiva para regularizar moradias da maior
comunidade cigana Calon estudada e documentada do Brasil, cita que Luciano Maia integra o rol de
testemunhas indicadas pelo próprio órgão por ter acompanhado estes grupos “fixados em Sousa, pelo
menos, desde 1991, ano em que, a partir de inspeção de campo, realizada em 22 de agosto daquele ano,
começou a reunir material para instaurar um inquérito civil” (MPF, 2021).
164
à tutela das instituições que não estão desvinculadas dos padrões de poder disparados a
partir do colonialismo. Só que no caso dos ciganos os dados de pesquisa produzidos a
partir da descrição densa e da análise da tramitação do PLS 248/2015 provam que esta
tutela não é apenas em relação às instituições, mas acima de tudo em face de uma
autoridade, que é o caso de Luciano Maia. É como se este fosse uma espécie de voz
oculta da racionalidade, acima de qualquer suspeita ou interesse individual na causa,
dando credibilidade à demanda dos ciganos.
O que aqui chamo de “protagonismo individual” pode ser entendida como um
traço de uma “sociedade de origens tão nitidamente personalista como a nossa”, sendo
“compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até
exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os seus
componentes, tendo em vista um fim exterior a eles, foram sempre os mais decisivos”
(2004, p. 81), nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda. Em outra obra, este autor
conclui que a ordem social brasileira se constitui antes em personalismo e preferências
pessoais, “em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro que se baseia o
liberalismo” (1996, p. 185)79 80.
Ao descrever e compreender a construção político-jurídica do “Estatuto”, em
especial na sua gênese, é possível concluir que se Luciano Maia não existisse, não
haveria essa pauta em jogo. A condição de desumanização dos ciganos não os garante a
escuta. Por isso que este agente público, transbordando o próprio papel institucional do
MPF, é central para esta mediação entre os povos ciganos e o Estado na prática
legislativa, assim como em outros âmbitos. É o “dono da palavra”, no sentido
metafórico, mais que as próprias lideranças ciganas, quando se demanda discutir os
direitos destes povos. A potência da sua “voz” dá credibilidade às demandas colocadas
por esta coletividade
O questionamento que fica é se a iniciativa toda partiu do MPF, por meio de
Luciana Maia, e que buscou em seguida alguns grupos ciganos para legitimar a
articulação. Ou se foi o inverso. Esta incerteza em si já é um dado etnográfico, mas,
independentemente da resposta, está evidente que o protagonismo individual deste então
79
Cândido interpreta o livro “Raízes do Brasil” como o auge do pensamento racial brasileiro para a época,
uma vez que criticava a solução liberal do momento, que conferia às elites a função de conduzir a nação e
tutelar o povo, ao contrário disso, passava a atribuir a esse mesmo povo “a capacidade de iniciativa e
criatividade política” (1988, p. 65).
80
É possível também associar este traço personalista na sociedade brasileira ao episódio do
“salvo-conduto”, que abordei nesta tese no subtópico “1.1.3”, em que ficou claro que a aplicação deste
instituto pelo MPF no presente decorreu mais de relações pessoais do que de uma política institucional,
até porque não há previsão legal para o seu uso por brasileiro que tenham dificuldade de circular dentro
deste território.
167
81
Em ofício encaminhado pela ANEC ao Senado Federal, solicitando a realização da “consulta pública
para aprovação do Projeto de Lei 248/2015 que cria o Estatuto dos Povos Ciganos”, há 36 associações e
coletivos ciganos que subscrevem o documento, inclusive a ASPRECCE que publicou este ofício seu
blog. Disponível em: <https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
168
82
Segundo a socióloga Esther Pineda, “a interferência e penetração forçada da cultura escravista europeia
na América, juntamente com o processo de desarticulação da cultura autóctone e a introdução de uma
cultura externa racista, lançaram as bases para outra das formas operacionais do racismo, emanada do
mesmo grupo discriminado , que tem sido chamado de endorracismo” (2015, p. 198, minha tradução).
Interpreto que tal fenômeno descrito por esta autora também pode se manifestar entre os povos ciganos.
169
Nesse sentido, é fundamental ter em vista que esta luta pela criação do “Estatuto
do Cigano” surge em momento histórico concreto, cujas as regras formais e informais
que regem este processo não foram estabelecidas de forma simétrica, sendo a maioria
delas externas à vontade dos grupos ciganos envolvidos nas articulações do PLS
248/2015.
Como foi discorrido no tópico “2.1”, a “ANEC” e seus integrantes,
especialmente “Seu Wanderley”, são os principais “atores ciganos” atuantes pela
aprovação do “Estatuto”, levando em consideração a tramitação deste projeto de lei
desde abril de 2015. Todavia, foi possível identificar articulações anteriores à
proposição do PLS, como as audiências públicas de 2011 e 2012, que não tiveram a
participação da família de “Seu Wanderley”. Ou seja, há dois dados relevantes para a
presente pesquisa, são eles: o fato da primeira menção à necessidade de criação do
“Estatuto do Cigano” ter ocorrido em 2011; e que esta articulação inicial envolveu
outros atores, “ciganos” e “não ciganos”.
Por isso, posso concluir que entre as diversas representações e associações que
estavam presentes no Congresso Nacional discutindo a possível criação de um marco
regulatório para os povos ciganos no Brasil, não foi por acaso que “ANEC” se tornou e
ao mesmo tempo conquistou o posto de “associação proponente”. Uma vez que se trata
de um processo complexo, dinâmico, que muitas vezes é perpassado por uma série de
tensionamentos, tanto quando que se questiona, no sentido de pôr em dúvida, a
vulnerabilidade social dos ciganos, assim como a própria condição étnica desses grupos,
talvez a mobilização da família de “Seu Wanderley” para representar publicamente esta
170
pauta ocorresse em certa medida pelo fato destes reunirem o maior número de
elementos que que o imaginário popular espera de um “cigano de verdade”83.
Não podemos esquecer que a aprovação de uma lei, ainda mais se tratando de
um instrumento jurídico voltado para os povos tradicionais, demanda negociações
dentro e fora do Congresso Nacional, sendo indispensável identificar, compreender e
refletir sobre as particularidades que envolvem simultaneamente a questão cigana e a
construção político-jurídica do “Estatuto”.
O jurista Joaquin Herrera Flores vislumbra os direitos humanos como meios
para alcançar a dignidade. Nas suas palavras, “os direitos humanos seriam os resultados
sempre provisórios das lutas sociais por dignidade” (2009, p. 25). Por isso este
pesquisador não os encara como produtos acabados, mas conquistas a serem efetivadas
a cada dia e que demandam o envolvimento de toda sociedade. Partindo deste
entendimento, somado ao que me deparei na pesquisa de campo, não tenho dúvidas que
a luta pelos direitos ciganos é uma batalha permanente, sendo resultado da resistências
que já duram séculos, assim como articulações, mediações e também contradições que
não a deslegitimam, pelo contrário, aponta para desafios que são renovados diariamente
e que nos convida a repensar as fronteiras dos direitos humanos.
83
O estilo de vida da família extensa de “Seu Wanderley” e as condições de sobrevivência em que estão
inseridos trazem elementos que ao mesmo contribuem para ilustrar a vulnerabilidade social destes grupos
étnicos, assim como o que a sociedade em geral associa à “ciganidade”. Irei discutir no próximo capítulo
de que modo a construção político-jurídica do “Estatuto” possibilita compreender as relações de poder em
torno da produção da “ciganidade”.
171
Capítulo 3
1
“Ciganidade” consiste na qualidade ou na condição de “ser cigano”, que é definido e caracterizado
levando em conta o conjunto de elementos considerados distintivos da cultura cigana. É importante
destacar que estes elementos diacríticos foram historicamente construídos e muitas vezes buscam indicar
uma perspectiva essencialista acerca do que se entende pelos ciganos. São fatores, em regra discursivos,
que compõem o “dispositivo cigano”, que é produto e ao mesmo resultado de anos de relações
assimétricas. Foi criado e aprimorado para controlar a existência da coletividade identificada como cigana
e simultaneamente promover a gestão de todo corpo social, sendo a “ciganidade” ainda um parâmetro de
civilidade, fator de classificação étnico-racial que mantém fronteiras, que subjuga, segrega e exclui os
povos ciganos, assim como busca afastar as pessoas dos elementos relacionados à cultura cigana.
172
que ainda está presente no imaginário social e que foi mobilizada em diferentes
momentos durante o processo legislativo aqui etnografado.
Por isso, para compreender e analisar melhor as transformações que ocorreram
na proposição legislativa do “Estatuto do Cigano”, dividi o terceiro capítulo em duas
partes. A primeira parte para tratar das mudanças e das disputas em torno da
normatização da “ciganidade” que aparecem durante o processo. A segunda parte para
discutir as matérias previstas no projeto que tratam da afirmação de direitos, isto é,
como o PLS 248/2015 aborda e tutela o acesso aos bens materiais e imateriais
necessários para a reprodução social e cultural dos destinatários do projeto, que
passaram por alterações, ao longo da tramitação, entre os anos de 2015 e 2020, e que
revelam como o Estado na prática legislativa vem pensando e produzindo a
“ciganidade”. Em ambas as partes também levei em conta os posicionamentos das
lideranças e “representações ciganas” que participaram dos debates públicos acerca do
conteúdo do PLS 238/2015.
Por sua vez, o primeiro “parecer” do Senador Hélio José sugeriu mudanças nesta
definição, fundamentando as razões. Vejamos a justificativa:
Inicialmente, entendemos ser necessário reformular a definição de
população cigana que consta no inciso I do parágrafo único do art. 1º da
173
Após ser aprovado na primeira comissão, o PLS 248/2015 foi encaminhado para
a Comissão de Assuntos Sociais (CAS). O Senador Hélio José também foi escolhido
para ser relator da proposta legislativa na CAS, cujo o “relatório legislativo” foi
aprovado na 15ª Reunião Extraordinária, presidida pela parlamentar Marta Suplicy, em
09/05/2018. Manteve-se a mudança na “definição de população cigana”, aprovada na
Comissão de Educação, Cultura e Esportes.
Com a aprovação do PLS 248/2015 na CAS, este projeto passou a tramitar na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), “em decisão
terminativa”2. O Senador Hélio José, também escolhido para ser relator na CDH,
apresentou dois “relatórios legislativos”, desta vez, com novas sugestões de alterações,
inclusive, na “definição de ciganos” Compartilho, abaixo, a fundamentação do
“relatório legislativo”, apresentado em 21/06/2018, justificando a mudança.
[...] Aproveitando o ensejo do ajuste redacional do art. 1º, convém
complementar a definição de “população cigana” com a definição de
“povos ciganos”, mais condizente com a realidade sociocultural desses
grupos étnicos e com normas internacionais pertinentes à matéria, pois um
2
Segundo informação do próprio website do Senado Federal, decisão terminativa “é aquela tomada por
uma comissão, com valor de uma decisão do Senado. Depois de aprovados pela comissão, alguns projetos
não vão a Plenário, são enviados diretamente à Câmara dos Deputados, encaminhados à sanção,
promulgados ou arquivados. Só serão votados pelo Plenário do Senado se recurso com esse objetivo,
assinado por pelo menos nove senadores, for apresentado ao presidente da Casa. Após a votação do
parecer da comissão, o prazo para a interposição de recurso para a apreciação da matéria no Plenário do
Senado é de cinco dias úteis” (BRASIL, 2020f).
174
versão original do projeto de lei em tela, limita-se ao aspecto “subjetivo”, ou seja, sem
exigir uma contrapartida, também ser reconhecido, gerou “polêmicas” entre diferentes
“representações” e lideranças ciganas que vêm participando, direta ou indiretamente,
dos debates sobre o PLS 248/20153.
Por essa razão, no subtópico a seguir, apresentei e dei ênfase às posições das
“representações” e lideranças ciganas, que me deparei ao longo da pesquisa de campo,
sobre os critérios propostos no processo legislativo para definir “o que é ser cigano” no
Brasil. Levei em consideração sobretudo as manifestações ocorridas durante a audiência
pública realizada no dia 29/05/2018 e no grupo de Whatsapp criado por iniciativa da
assessoria do Senador Telmário Mota, em outubro de 2020, para discutir o conteúdo do
“Estatuto”. Apesar da proposição legislativa do Senador Paulo Paim abordar diferentes
temáticas, como por exemplo moradia, cultura, educação, saúde e acesso à terra, é o
dispositivo que traz a “definição dos ciganos” que representa o principal ponto de
divergência entre as “representações” e lideranças atuantes no processo legislativo em
tela.
3.1.1 - “Tem pessoas não ciganas que está usurpando o direito dos ciganos”
Em princípio, é importante dizer que não há uma única forma ou parâmetro para
definir a “ciganidade” ou as identidades “ciganas”, tendo em vista que estas são
construídas nas diferenças e a partir de trocas. Segundo a antropóloga Mirian Alves de
Souza, “a identidade cigana é uma identidade confrontacional porque se constrói a partir
do confronto. Os ciganos constroem sua identidade não apenas em oposição aos gadje
(não ciganos), mas os confrontando” (2013, p. 27).
Partindo do pressuposto que a alteridade “cigana” é infinita, busquei
compreender as disputas em torno da normatização da “ciganidade” no âmbito da
tramitação do Projeto de Lei nº 248/2015. Para tanto, é necessário identificar quem são
e como atuam os atores, “ciganos” e “não ciganos”, inseridos de alguma forma neste
processo legislativo e de que maneira influenciam e pautam a “ciganidade”. Cada
liderança ou grupo pode reivindicar o que entende por “ser cigano”, e, embora haja
3
Esta questão também foi identificada pelas pesquisadoras Jamilly R. Cunha e Olga Magano que
analisaram os discursos de algumas lideranças ciganas que participaram da audiência pública sobre o
Estatuto realizada no Senado em 2018. “A ‘autodeclaração’ passou a ser então a grande objeção de
algumas lideranças que foram convidadas pelo Estado a participar da discussão acerca da elaboração e
tramitação do projeto. O debate, inicialmente, esteve direcionado à preocupação diante dos possíveis
‘aproveitadores’ (identificado por estes representantes como ‘simpatizantes’, ‘admiradores’, e
‘convertidos’) que usariam a autodeclaração para barganhar os direitos dos/as Ciganos/as, como os que
podem ser gerados com a aprovação do Estatuto.)” (2019, p. 269-270).
176
pontos em comuns, não são perspectivas homogêneas. Dou ênfase aos atores que
surgem no processo legislativo do PLS 248/2015.
A possibilidade de participação direta dos “ciganos” na tramitação do PLS está,
praticamente, condicionada à realização de audiências públicas, ou estando em contato
com a assessoria parlamentar de quem propôs ou de quem está sendo relator do projeto,
em que podem falar, ouvir e contribuir, o que não significa que todas sugestões serão
acatadas. Como foi destacado no primeiro “relatório legislativo” do Senador Hélio José,
“membros da comunidade cigana” foram consultados e indicaram não “ser suficiente a
adoção da autodeclaração como critério de identificação do grupo” (BRASIL, 2016d, p.
5). Quem este parlamentar estava se referindo e por qual motivo a “autodeclaração” não
seria suficiente?
Os materiais audiovisuais disponibilizados pela TV Senado sobre a tramitação
do “Estatuto” dão algumas pistas de quem são os “membros da comunidade cigana” que
o relator Hélio José se referiu no primeiro relatório legislativo apresentado à CE.
Trata-se da própria família do Seu Wanderley, que aparece na reportagem “A cultura
cigana e a luta pelo reconhecimento de direitos”, publicada em abril de 2018 no canal
do Senado na plataforma do Youtube, dialogando com o referido parlamentar sobre a
necessidade de mudanças na “definição dos ciganos”.
Primeiramente, a reportagem registrou Seu Wanderley entrando no Senado, com
uma camisa amarela de botão, chapéu cawboy preto e bota marrom de couro até o
joelho. Em seguida exibiu o respectivo diálogo:
Senador Hélio José (de forma eufórica e sorridente): Seu Wanderley, quanto tempo
(abraçando-o). Como é que tá a nossa comunidade cigana?
Seu Wanderley (cumprimentando os assessores que acompanham o senador): Satisfação
está aqui presente com vossa excelência, nosso amigo Fernando, satisfação, assessor
parlamentar do nosso senador.
Senador Hélio José: Obrigado.
Seu Wanderley: É uma grande satisfação, e eu trago em nome da nação cigana um forte
abraço e sinceros agradecimentos ao Senador federal Paulo Paim. E eu peço uma
explicação de vossa excelência referente essa coisa, este estatuto, como já foi aprovado na
primeira comissão, nós já temos o estatuto, doutor?
Senador Hélio José: Sim, o que que acontece. O Senado Federal, o processo legislativo
prevê que os projetos sejam analisados em várias comissões. Nós já obtivemos a primeira
vitória que foi aprová-lo na Comissão de Educação, Cultura e Esporte. Com a sequência, a
Comissão de Assuntos Sociais que trata, já que é um estatuto que envolve a questão do
meio social da vida cigana no nosso país, daí tem que passar na Comissão de Assuntos
Sociais, né? O relatório caiu comigo, eu já tenho o relatório pronto, aprovando da Comissão
de Assuntos Sociais, ela vai em caráter terminativo, ou seja, como última análise na
Comissão de Direitos Humanos cujo senador Paulo Paim inclusive também é membro,
então lá eu também pedirei a relatoria para poder agilizar o expediente. Ele sendo
aprovando na Comissão de Direitos Humanos segue para a câmara dos deputados para a
análise.
Fernando (assessor parlamentar): E lá vamos ficar torcendo para que ele aceite o projeto
do Senador e que de lá mesmo já seja mandado para a sanção do presidente.
Seu Wanderley: Nós, em toda história, tivemos prejuízos de pessoas autodeclarando
dizendo ser cigano, usufruindo da nossa cultura de formas ilegais e isoladas e que
177
para nós é prejuízo além de usufruir de uma cultura que não é dele, invisibiliza,
atrapalha nós de acessar de fato o nosso direito. A gente gostaria de perguntar deste
primeiro artigo será que teria como firmar mais ainda para que não tivesse brecha,
isso nos deixa assustado em todos lugares do Brasil. As pessoas usam o nosso nome
dizendo que é cigano, porque interessante que antes dizia, senador, que era cigano, as
pessoas fechavam a porta. De certos tempos pra cá, as pessoas estão se autodeclarando e
vestindo nossas roupas, os que nos deixa alegre e triste, ao mesmo tempo, porque
estamos sendo, tão usufruindo da nossa cultura de formas ilegais.
Senador Hélio José: Essa preocupação com a autodeclaração falsa que você coloca, ela
é realmente uma precaução necessária. Agora a gente tem que vê como é que a gente faz
para atuar na legalidade. O que vai acontecer? Deixar claro para você! Vamos perder mais
15 ou 20 dias de análise, porque isso, enquanto a consultoria, enquanto Ministério da
Justiça não se posicionar sobre essa questão, eu não poderei apresentar o relatório final na
casa. Só vou apresentar o relatório final quando a consultoria, quando o ministério da
justiça dá vista o processo.
Kamila Oton (assessora parlamentar): Tem que verificar a constitucionalidade dessa
inclusão.
Seu Wanderley: Nossa excelência, seria interessante que a gente perdesse os 20 dias...
Senador Hélio José: Eu acho que o desejo é fazer lei que possa ser aperfeiçoada da melhor
forma possível, não vai ser 20 dias a mais ou a menos que vai prejudica a nossa lei
Seu Wanderley: Confirmado.
Senador Hélio José: Se nós perdemos 20 dias, mas para aperfeiçoar a lei é melhor do que
depois tem que mudar na câmara vai ter que voltar para o senado de novo. Então se a gente
sair com o projeto todo aperfeiçoado aqui no senado não precisa a Câmara fazer mudanças
e voltar para cá, entendeu?
Seu Wanderley: Sinceramente, eu estou me sentindo tão importante de ouvir falar essas
coisas que eu tenho direito eu tô até querendo casar agora (risos). (TV SENADO, 2018c,
meus destaques)
4
Estes trechos, elaborados por servidores do MPF, são sínteses dos debates que tiveram no grupo criado
pela assessoria do parlamentar. Foram usados como base para o ofício da ANEC com o objetivo de
informar ao Senado os principais pontos que foram discutidos. Este ofício foi publicado no blog da
associação cigana ASPRECCE, que também subscreveu o documento. Disponível em:
<https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
179
5
Descrevo literalmente a descrição do site da TV Senado acerca das representações ciganas presente
durante a audiência pública e também organizo a tabela na ordem das falas que foram realizadas.
180
Das pessoas elencadas acima não participam do grupo: Jorge Nicoli, Carlos
Calon, Sandra Lucero, Luís Bruno de Moraes e Mio Vacite, que no caso do último nome
citado faleceu em 11 de março de 2020. Por outro lado, o grupo, nos três meses que
acompanhei, passou mais de 120 pessoas, algumas que entram e permanecem, outras
saem, por falta de interesse ou por ter alguma discordância ou desentendimento, que
muitas vezes envolvem a própria questão da identidade, ou seja, de “quem é” e de
“quem não é cigano”.
Como ressaltei na introdução da tese, a descrição que faço da tramitação do PLS
248/2015 envolve também os eventos políticos que ocorreram na semana da audiência
pública do Senado, pois são atividades que abordam, direta ou indiretamente, em como
o Estado deve atuar em face da pauta dos “povos ciganos” por direitos e políticas
públicas. Por isso, compartilharei, nos parágrafos abaixo, discursos realizados durante a
audiência pública da PGR, de 28/05/2018, que interpreto como falas que se integram as
que foram pronunciadas também na reunião pública do Senado que ocorreu no dia
seguinte, em 29/05/2018.
O que quero destacar é que em ambos os eventos surgiram questionamentos e
discordâncias em face do critério da “autodeclaração”. E as divergências em face deste
parâmetro podem ser percebidas nos relatos que apareceram nestas ocasiões sobre a
existência de “outras” pessoas, que circulam nos espaços institucionais afirmando serem
“ciganas”, mas que são, na verdade, “autodeclarantes”, “cigano de espírito”, “cigano de
identidade duvidosa”, usurpadores, simpatizantes, em contraposição ao “cigano puro”
ou “legítimo” – categorias nativas constantemente usadas por “ciganos” ou por pessoas
que se reivindicam como tal.
181
Mio Vacite: Eu vim aqui para falar com os ciganos, com minha cultura, não com pessoas
que se dizem ou tem um, como essa senhora que saiu daqui. (TV MPF, 2018)
Dinha: Agora, eu não concordo que a pessoa que não seja cigana chega aqui, ‘eu vou fazer
uma associação de cigano’. Eu acharia assim ‘eu sou simpatizante, eu estou ajudando’, é
mais polido, porque aí tirando os direitos. Por exemplo, uma pessoa que não é cigano vai
ocupar o lugar de outro que é cigano, que tá lá brigando por sua comunidade,
querendo requisitar seus direitos, não consegue. Eu acredito que simpatizante é
simpatizante, cigano é cigano. (TV MPF, 2018, meus destaques)
Maria Jane: Autodeclarantes não podem ser membros de diretoria de associação cigana
porque somos ciganos, já sofremos muito há mais de 500 anos que estamos no Brasil, que
viemos pro Brasil, e passamos todos os tipos de adversidade, vencemos sozinhos,
crescemos sozinhos, agora que o poder público está alcançando, tá vendo, tá enxergando,
mas eu quero deixar aqui o meu repudio para isso. (TV SENADO, 2018b, meu destaque)
6
Esta pesquisadora, em tese de doutorado, construiu uma análise etnográfica sobre o processo de
codificação política da identidade cigana a partir de uma associação política, como, por exemplo, a União
Cigana do Brasil (UCB). Embora os estudos da antropóloga Mirian Souza no âmbito do Doutorado
tenham sido fundamentais para o desenvolvimento desta tese, sobretudo para pensar o associativismo
cigano, é importante registrar que seus principais interlocutores foram liderança da etnia Rom atuantes na
região Sudeste do Brasil e que são socialmente privilegiados. Enquanto a minha pesquisa traz de forma
inédita para a ciganologia reflexões acerca de processos políticos envolvendo preponderantemente
lideranças da etnia Calon, cujo os principais interlocutores, Maria Jane e Seu Wanderley, são de origem
popular e da nascidos na região Nordeste, sendo que este último atualmente vive no Distrito Federal.
182
definição de “população cigana” que consta no “art. 1º, inciso I” do PLS 248/2015.
Vejamos:
Deve ser usada a terminologia “Povos Ciganos”, no plural, para representar a
pluralidade dos povos ciganos no Brasil e abarcar todos eles (Rom, Calon,
Sinti e outros grupos e subgrupos eventualmente existentes).
- A denominação “Povos Ciganos” deve substituir a expressão “população
cigana”, que limita o alcance da proteção e não contempla essas
especificidades.
- Houve grande discussão no grupo a respeito da autodeclaração como
critério para reconhecimento dos ciganos.
Foi manifestada, por vários integrantes do grupo, preocupação acerca de
pessoas que se atribuem falsamente a identidade de ciganos, com o
objetivo de obter vantagens financeiras, acessar políticas públicas
destinadas às comunidades ou apresentar-se publicamente, sobretudo em
atividades cultuais, como ciganos. Foi relatado, ainda, que diversas
pessoas realizam atos ilícitos, até mesmo crimes, e são associadas aos
ciganos, o que traz prejuízos graves a todas as comunidades.
Foram prestados esclarecimentos no sentido de que a autodeclaração é
bilateral, ou seja, além da declaração da própria pessoa, deve também
haver o reconhecimento da comunidade a que pertence. Isso protege as
comunidades e dificulta a falsa atribuição de identidade. A proposta do
Estatuto já avançou nesse sentido.
Ainda assim, a polêmica persiste, e é retomada na discussão dos artigos
subsequentes. (PGR, 2020, meus destaques)
Diante dos discursos das audiência públicas, assim como da síntese elaborada
pela assessoria da 6ª Câmara acerca das “contribuições do grupo”, que foram
compartilhadas acima, proponho novas reflexões. Por que haveria pessoas “usurpando”
a identidade “cigana”? Qual seria o interesse destas pessoas, “autodeclarantes”, em se
passarem por ciganas, se esta população enfrenta tantos preconceitos? Por qual motivo é
delimitado uma fronteira entre ser “cigano” versus “autodeclarante”, usurpador e
simpatizante?7 Em outros espaços que acompanhei, como encontros institucionais ou
reuniões de conselhos de Estado, notei também ser recorrente estas disputas e
questionamentos quanto à “ciganidade” de determinadas pessoas que circulam em
ambientes institucionais, falando ou atuando em nome dos “ciganos”.
Percebi que uma mesma pessoa pode ser reconhecida como “cigana” por uma
determinada liderança ou um conjunto de “referências ciganas” e simultaneamente não
ser reconhecida como “cigana” por outros grupos, o que muitas vezes quer dizer que
não está autorizada a falar em nome ou representar os “ciganos”. E o inverso também
acontece com frequência. Mas existem elementos que compõem uma unicidade neste
constructo de “ser cigano”. Trata-se de uma classificação que não é estática e que
7
Mirian Souza identificou a expressão simpatizante enquanto uma categoria nativa adotada pelo seu
principal interlocutor da pesquisa de Doutorado, Mio Vacite, que foi fundador e presidente da UCB.
Segundo a pesquisadora, esta categoria é “usada para descrever pessoas que possuem interesse pelos
ciganos, mas que não pretendem se tornar um deles, vestindo-se e adotando o seu modo de vida.
Pesquisadores são frequentemente enquadrados nessa categoria” (2013, p. 230).
183
também não deixa de ser uma forma de hierarquizar, isto é, definir quem pode e quem
não pode ocupar certos espaços na burocracia estatal.
Para Mirian Alves de Souza, no caso dos agentes públicos ciganos que atuam no
Brasil, a ideia de autenticidade pode ser mobilizada publicamente para desqualificar
agentes políticos concorrentes, que disputam espaços políticos, institucionais ou não.
“Os projetos identitários explorados ao longo da tese indicam que os agentes políticos
procuram construir seu discurso como autêntico para, desse modo, normatizar a
ciganidade e controlar a produção da etnicidade” (2013, p. 58, meus destaques).
No grupo, por exemplo, ocorreram diversos momentos em que alguns
participantes foram acusados de “não ser cigano”, cujo objetivo era justamente
questionar ou desautorizar a atuação em torno de pautas que envolvem a “questão
cigana”. Geralmente aqueles e aquelas cujo o pertencimento à identidade cigana não se
dá pela ascendência, como é o caso de uma liderança do Sudeste do Brasil, que embora
fosse reconhecida pela sua comunidade pelo fato de ser casada com um cigano da etnia
Calon, e também por outras “representações” que faz parcerias em espaços de
reivindicação de direitos, em diversos momentos foi “acusada” de “não ser cigana”.
“Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a instabilidade da
identidade, é nas próprias linhas de fronteira, nos limiares, nos interstícios, que sua
precariedade se torna mais visível” (SILVA, 2007, p. 98). As fronteiras estabelecidas, a
partir de diferentes critérios da “ciganidade”, são variáveis, perpassa por disputas de
espaços, por visibilidade e protagonismos. No caso dos ciganos, para entender este
momento entre fronteiras na questão identitário, é preciso compreender que “a tradição
cultural cigana engloba diversas subtradições que constituem um todo heterogêneo,
coexistindo muitas vezes de forma conflituosa. Entretanto, formam paradoxalmente
uma unidade que exprime uma realidade mesclada, borrada e dinâmica” (REZENDE,
2000, p. 116).
Não interpreto que a classificação “cigano de verdade” ou “cigano de sangue”
constitua uma forma de opressão em relação àqueles que estão fora desta fronteira, não
no sentido de opressão estrutural. Entendo estas disputas como uma forma de reação à
invisibilidade e à falta de representatividade que muitas pessoas que se identificam
como “ciganas” afirmam sentir, sobretudo aqueles e aquelas que viveram ou ainda
vivenciam situações de violência provocada de alguma forma pelo “anti-ciganas”.
Trata-se de um mecanismo acionado nas disputas por espaços, narrativas e
protagonismos, cuja noção de legitimidade para atuar como sujeito e interlocutor da
184
Considera-se cigano o indivíduo que se Para efeito desta Lei, considera-se povo
autodeclara e é reconhecido por outros cigano o conjunto de indivíduos de origem
indivíduos e/ou coletivos ciganos como e ascendência cigana que se identificam e
ciganos, considerando sua são identificados como pertencentes a um
consanguinidade e genealogia, podendo grupo étnico cujas características culturais
ou não apresentar uma cultura distinta da
8
Na segunda parte do último capítulo eu esclareço porque eu interpreto o segundo projeto como uma
forma de fazer oposição, no sentido de contraponto ao PLS 248/2015.
185
9
Esta definição é defendida por um agente público que se identifica como “cigano” e que atuou no
governo federal em 2019 na Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Ele reivindica a sua
“ciganidade” por alegar ser filho biológico de um pai cigano, fato que descobriu na adolescência, embora
tenha sido adotado e criado por um casal de origem japonesa e libanesa. Inclusive publicou um livro em
que defende a possibilidade de existência de cigano “reindentificado”, que assim como seu caso descobriu
a origem cigano e passou a se identificar como tal. Por essa razão eu especulo que este agente que atuou
e colaborou com o governo está entre os idealizadores do “PL”, questão que eu abordo com mais detalhes
no último capítulo desta tese.
10
“A cigana Miriam Stanescon Batuli De Siqueira é bacharel em direito e tem orgulho de declarar-se a
‘primeira cigana bacharel em direito no Brasil’ ou a ‘primeira Dra. cigana no Brasil’, conquista realizada
nos ano de 1990 na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Miriam é cartomante, presidenta da
Fundação Santa Sara Kali (FSSK) e ex-Conselheira da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ,
Delegada da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Membra do GT de Enfretamento a intolerância
e Discriminação Religiosa e Promoção dos Direitos Humanos – Superintendência de Direitos Individuais
da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) - e foi representante cigana na
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) do Estado” (MAIA; CAMPOS, 2018,
p. 12).
186
cigano se sedentariza continua sendo cigano”. Ela respondeu: “tá acontecendo um fato
sui generis porque quem é cigano escondem que é cigano por medo de preconceito e
quem não é está assumindo uma ciganidade que não é dele” (STANESCO, 2007,
meu destaque).
Ao longo do processo legislativo do PLS 248/2015, podemos perceber que a
“ciganidade” é também mobilizada para indicar ou questionar a legitimidade de
determinados atores que surgem nesta trama. Por exemplo, para algumas
“representações ciganas” que conversei durante a pesquisa de campo, os
“espiritualistas” não deveriam ser reconhecidos como uma categoria dentro da
“ciganidade”, pois são “falsos ciganos” que usurpam os espaços públicos e/ou políticos
autodeclarando-se “ciganos”.
Para Maia e Campos, “ciganos de espírito”, por exemplo, podem ser “médiuns”
que fazem parte de grupos religiosos, pessoas que afirmam incorporar “espíritos
ciganos” (2018, p. 17). Lembrando que na umbanda, doutrina brasileira que sintetiza
vários elementos das religiões africanas e cristãs, o “cigano” é uma entidade, assim
como os “caboclos”, “pretos-velhos”, “exus”, “pombas-giras”, “malandros”,
“marinheiros, “sereias” (personagens conservados no imaginário popular brasileiro),
que pode se manifestar em algumas pessoas por meio do fenômeno da possessão
(BARROS, 2012). Ou seja, são pessoas que reivindicam o pertencimento à
“identidade” ou à “cultura cigana” sem necessariamente ter descendência/
origem/sociabilidade constituída a partir de famílias/comunidades ciganas, mas sim por
ter relações espirituais.
Por sua vez, a pesquisadora Mirian Souza pondera que tais categorias , “cigano
de alma” e “cigano de espírito” - não se limitam ao aspecto religioso. Esta autora
destacou que conheceu pessoas que se afirmam “ciganos de alma” em razão de sua
identificação com a cultura cigana, em particular com dança e música. Por isso,
concluiu que “os ciganos espirituais e os ciganos de alma são categorias relacionais e
não passíveis de descrições fechadas e rigorosas” (2013, p. 221, grifo da autora)11.
Não há dúvidas que esta disputa em torno da definição da “ciganidade” se
refletiu nas mudanças ocorridas no texto do PLS nº 248/2015 com as votações nas
comissões especiais. Como se trata de um marco legal específico direcionado aos
11
Segundo a pesquisadora Claudia Bomfim da Fonseca, a construção da identidade da “cigana de alma”
se baseia no cruzamento das definições de “pomba-gira-cigana” e de “cigana espiritual”. Esta autora
percebeu na etnografia realizada em aulas de dança cigana e da dança flamenca no Rio de Janeiro um
processo de valorização da “ciganidade” que está relacionada a“um fato que parece singular na cultura
brasileira: O de extrapolar as dimensões da consangüinidade e etnia criando um cigano virtual, ou de
uma identidade étnica formal” (2002, p. 67, grifos da autora).
187
“ciganos”, são exigidos parâmetros para definir “quem são os ciganos”, como ocorre no
“Estatuto do Índio” e na “Convenção n° 169 da OIT”, ambos instrumentos citados como
referência de instrumento jurídico ao longo do processo legislativo do “Estatuto do
Cigano”. Qualquer que seja critério para definir “o que é ser cigano”, caso o projeto seja
aprovado, terá “força de lei”, normatizando o parâmetro adotado pelo Estado brasileiro
para definir “quem é” ou “quem não é cigano”.
A seguir, no próximo subtópico, compartilharei os critérios legais vigentes, que
são adotados no Brasil para validar a “autodeclaração” de ciganos, quando se é
requisitado, nas políticas públicas afirmativas ou nas demais políticas públicas.
12
Refiro-me à posição de Seu Wanderley durante o diálogo gravado com a TV Senado, assim como levo
em contas as conversas que tivemos quando visitei e passei finais de semana no Acampamento Nova
Canãa.
188
13
“Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003,
garantindo, com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. A
decisão foi tomada na sessão desta quinta-feira (8), no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 3239, julgada improcedente por oito ministros” (BRASIL, 2018j).
189
14
O Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) é um instrumento de coleta de dados e
informações com o objetivo de identificar todas as famílias de baixa renda existentes no País. As pessoas
cadastradas podem acessar os seguintes programas: Programa Bolsa Família, Tarifa Social de Energia
Elétrica, Carteira do Idoso, Programa Minha Casa Minha Vida, Programas Cisternas, Águas para Todos,
entre outros. Disponível:
<http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/mds-pra-voce/carta-de-servicos/usuario/cadastro-unico-1/quais-p
rogramas>. Acesso em 11 jul. 2020.
191
15
Este Guia traz orientações sobre as “famílias ciganas (Código 101)”, “famílias extrativistas (Código
201)” , “famílias de pescadores artesanais” (código 202), “famílias pertencentes às comunidades de
terreiro (código 203)”, “famílias ribeirinhas (código 204)”, “famílias de agricultores familiares (código
205), “famílias assentadas da reforma agrária (código 301)”, famílias beneficiadas do programa nacional
de crédito fundiário (código 302)”, “famílias acampadas (código 303)”, famílias atingidas por
empreendimentos de infraestrutura (código 304), “famílias de presos do sistema carcerário (código 305)”,
“famílias de catadores de material reciclável (código 306)”, “famílias resgatadas da condição de trabalho
análoga à escravidão (código 307)”.
192
16
Por exemplo, tanto no Acampamento Nova Canãa, como na comunidade cigana liderada pela
ASCOCIC ouvi relatos que caso haja necessidade de mudança de cidade, por exemplo, a opinião de todos
é levada em consideração, inclusive das mulheres, mas sobretudo das pessoas mais velhas.
17
Mais uma vez citando o contexto do Acampamento Nova Canãa e da ASCOCIC, neste primeiro, nos
dois finais de semana que dormi, enquanto as mulheres estavam nas feiras livres da região vendendo pano
de prato quem providenciou o meu café da manhã e o almoço, assim como quem estava responsável pela
limpeza do rancho era os homens, principalmente os mais jovens. No caso da ASCOCIC, que
acompanhei mais de perto nos últimos 6 anos, fui testemunha que durante as inúmeras viagens de Maria
Jane para participar de compromissos políticos externos quem ficava responsável pelo cuidado da casa e
dos filhos era seu marido, Antônio. Além do fato desta liderança se dividir em múltiplas funções, as
responsabilidades com a família, com os negócios feitos em conjunto com o marido, a militância política
e os estudos, uma vez que concluiu durante a fase adulta o curso de Pedagogia.
193
moradia onde as mulheres se destacam nas ocupações urbanas, que a militância política
das mulheres ciganas em face do Estado, reivindicando políticas públicas, acaba sendo
uma continuidade das responsabilidades que historicamente são atribuídas ao feminino,
relacionados ao cuidado do outro, da família, como é o caso da saúde de educação.
Quanto aos demais pontos, esclareço que as mulheres ciganas que presenciei e
acompanhei se destacando em espaços da esfera pública não necessariamente se
movimentam no sentido de enfrentar sexismo ou de serem contrárias a divisão a sexual
do trabalho, mas que agregam atribuições, tanto as funções domésticas, assim como o
ativismo em prol da coletividade. Por outro lado, notei também que a condição de
mulher de algumas referências ciganas é muitas vezes mobilizada por outras lideranças,
em especial homens de diferentes famílias ou comunidades ciganas, no sentido de
descredibilizá-las.
Ao mesmo tempo, a definição de “ciganos” no “Guia do Cadúnico” envolve
outras duas perspectivas que podem ser mobilizadas para tratar da “ciganidade”: a
étnico-racial e a sociocultural18. Em primeiro lugar, ao se afirmar que a “ciganidade” é
uma “condição [...] dada pela hereditariedade” ou “vínculo de parentesco entre os
membros do grupo”, adota-se o viés étnico-racial. Por outro lado, ao se utilizar a
expressão “viver em comunidade e participar de sua cultura”, utiliza-se a perspectiva
sociocultural.
18
Estas perspectivas, categorizadas como “étnico-racial” e “sociocultural” estão descritas na obra “Ser
cigano: a identidade étnica em um acampamento Calon itinerante”, do ativista, que se identifica como
cigano, pastor e sociólogo (I.S., 2018). Elas somam-se à tentativa de fundamentação da “ciganidade”
sintetizada pela palavra “reindetificado”, que o próprio autor da obra mobiliza para justificar seu
pertencimento étnico e atuar politicamente como cigano em espaços da burocracia estatal e no contexto
do associativismo. Por isso é importante contextualizar que o autor desta obra não cresceu, nem constituiu
sua sociabilidade em uma família cigana e supostamente descobriu na fase adulta que seu pai biológico
seria “cigano”, sendo que a partir de então passou a se “identificar” enquanto tal. Isto é, passou a
mobilizar identidade cigana para atuar politicamente em acampamentos e comunidades da região Sul do
Brasil, se inserindo também na condição de pastor, e em seguida conseguindo alcançar um cargo
comissionado de gestão no Governo Bolsonaro. Este ator social é chamado nesta tese pelo pseudônimo
“Jorge Garcia” e sua importância para a trama do PLS 248/2015 foi explorada no quarto capítulo..
194
O que acontece com aqueles e aquelas que são “filhos de ciganos”, mas não
vivem ou deixaram de viver em/na comunidade? Estas pessoas deixam de ser “ciganos”
ou “ciganas”? Para “ser cigano” é preciso preencher todos elementos previstos na
descrição do documento do governo? Com base nas minhas experiências, caso seja ou
fosse adotada uma interpretação literal destas descrições, nem todas pessoas que
reivindicam ser “ciganas”, que surgem ao longo da tramitação do PLS nº 248/2015 ou
em outros espaços políticos que discutem a condição jurídica política dos ciganos,
poderiam ser consideradas “ciganas”.
De uma certa forma, a previsão de guias e cartilhas, enquanto instrumentos
orientadores de políticas públicas, estão contribuindo em geral para a construção da
condição político jurídica dos “povos ciganos” no Brasil, já influencia o seu dispositivo,
processo que não deixa de ser atravessado pela tentativa de normatização do que é “ser
cigano”.
Além das cartilhas do governo federal, é possível identificar outras políticas que
também contribuem para este processo de normatização da “ciganidade”. Aqui,
refiro-me às políticas afirmativas de ingresso em universidades voltadas ao público
196
22
Os pesquisadores Patrick Williams, Oliver Lerch e Michael Lerch relataram a adoção do silenciamento
como estratégia de sobrevivência, entre os ciganos Kalderash que vivem no subúrbio de Paris, quando
estes ofereciam seus serviços de reparos e consertos em restaurantes ou em fábricas da cidade. Neste
contexto, segundo o autor, estas pessoas jamais revelavam ser “Kalderash rom” ou “gitan” (cigano em
francês) às pessoas “não ciganas”. “Se o Rom é questionado por causa de seu francês desajeitado ou do
exótico som de seu nome, ele declarava ser de origem russa ou ‘descendente de refugiados russos’ [...]
dizia que era espanhol ou de origem italiana, usando essa suposta origem para se apresentar positivamente
como herdeiro de uma longa tradição familiar [...]. Para evitar um choque de imagens contraditórias
(comerciante honesto verus cigano paraistário) o Kalderash oculta sua identidade étnica” (1982, p. 321).
199
***
Sem dúvidas a “definição dos ciganos” é o trecho do projeto de lei que mais
vedesperta a atenção e o interesse das lideranças que de algum modo passam ou atuam
na tramitação do PLS 248/2015. A falta de consenso deriva da própria diversidade e
infinitas identidades que são inerentes ao “dispositivo cigano”. Ao ser perpassado
justamente por relações de poder, é possível notar disputas políticas que não se limitam
ao processo legislativo em tela, mas, que na verdade, revelam instabilidades,
ambiguidades e não linearidade nas tentativas de “normatização do “ser cigano” em
todos os âmbitos.
As disputas políticas que mencionei no parágrafo anterior se dá entre atores que
reivindicam a “ciganidade” e ao mesmo tempo o lugar de interlocutores da questão,
especialmente nos espaços que envolvem a burocracia estatal. A própria variedade de
critérios que estas “referências ciganas” acionam para fundamentar e legitimar o
pertencimento identitário estão inseridos num campo de forças assimétricas.
Em termos práticos, eu notei que as lideranças e “referências” que não
construíram suas respectivas sociabilidades em comunidades mais tradicionais, e se
identificam mesmo assim como “ciganas”, principalmente nos casos, por exemplo, de
“reidentificação” ou a partir de ligações “espirituais”, levam mais vantagens em relação
àqueles cujas relações sociais se deram boa parte da vida em coletividade organizadas
em famílias extensas ciganas. Pois, de fato, são grupos mais vulnerabilizados,
historicamente subalternizados e que demandam mais atenção das políticas voltadas
para a inclusão social. A assimetria fica ainda mais clara nas disputas pelos conselhos e
na busca em geral por protagonismo na relação com as autoridades, assim como com as
instituições estatais.
200
O projeto de lei apresentado pelo Senador Paulo Paim dedicou quase a totalidade
de sua redação para abordar os chamados “direitos fundamentais”, divididos em 7
capítulos e 11 artigos. Esta abordagem não é diferente de outros “estatutos”, como o “do
Idoso”, “da Igualdade Racial” e “da Pessoa com Deficiência”, que dedicaram,
respectivamente, 10 capítulos e 32 artigos, 6 capítulos e 41 artigos, 10 capítulos e 42 e
artigos, para tratar dos “direitos fundamentais”, todos estes também situados no “Título
II”, assim como o PLS 248/2015.
Na área jurídica, quando se fala em “direitos fundamentais”, aciona-se um
sentido, que remete a um significado distinto do que é suscitado pela expressão “direitos
humanos”, tratando-se assim de um elemento classificatório. Toda classificação envolve
hierarquias, como podemos perceber em face da repercussão, na sociedade, dos
marcadores de raça, gênero, classe e assim por diante. Não é diferente no campo dos
“direitos”, que se divide em espécies, para indicar a sua natureza, sentido e alcance, o
que acaba, igualmente, reproduzindo hierarquizações. Na medida em que se fala que um
direito é fundamental, o que se quer dizer com isso? Se há direitos fundamentais, quais
seriam aqueles direitos que não são fundamentais?
Primeiramente, importa acusar a existência da diferença entre os “direitos
fundamentais” e os “direitos humanos” no campo político e jurídico. Embora o
pesquisador André de Ramos Carvalho (2011) considere essa distinção ultrapassada,
não significa que esta questão ainda não se manifeste no plano prático. Segundo este
autor, falar em “direitos humanos” remeteria a uma matriz internacional, sem maior
força vinculante, ao passo que “direitos fundamentais” estaria relacionado à previsão
constitucional, com força vinculante gerada pelo acesso ao Poder Judiciário. Ou seja, os
direitos fundamentais seriam, na verdade, os direitos humanos positivados na
Constituição Federal.
Uma das justificativas de André de Ramos Carvalho (2011) para alegar que esta
distinção estaria ultrapassada, no caso do Brasil, se deve ao fato da Emenda
Constitucional nº 45, de 2004, ter incluído a possibilidade dos tratados internacionais
que versam sobre “direitos humanos” serem equivalentes à emenda constitucional, por
meio da redação do art. 5º, § 3º23. Acontece que o Supremo Tribunal Federal consolidou
o entendimento que para haver equivalência do tratado internacional à norma
23
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.” (BRASIL, 2004).
201
constitucional, esta precisaria passar pelo mesmo procedimento de votação que uma
emenda, que exige quórum qualificado, que na prática levou a uma nova distinção: os
tratados internacionais com status de emenda constitucional e aqueles que não possuem,
seria considerado “infraconstitucional” e, ao mesmo tempo “supralegal”, ou seja, abaixo
da Constituição e acima das demais leis infraconstitucionais24. Em outras palavras,
ratificou-se no Brasil a “estatura hierárquica dos tratados de direitos humanos”
(GALINDO, 2005, p. 129).
Na verdade, as normas que compõem um ordenamento jurídico são perpassadas
por uma série de hierarquias, uma vez que estas não são homogêneas. Este
entendimento fortaleceu-se, sobretudo, a partir da teoria criada por Hans Kelsen, que
idealizou uma pirâmide, baseada no princípio da hierarquia entre as normas legais,
atribuindo o topo a norma maior, que seria a Constituição Federal, seguida das leis
produzidas pelo Poder Legislativo, logo abaixo as que são emitidas, diretamente, pelo
chefe do Poder Executivo e, por fim, as que são formuladas por meio dos ministérios.
Tal teoria, ao mesmo tempo que hierarquiza as normas, busca construir uma unidade, na
medida que qualquer dispositivo legal deve estar em conformidade com a lei
fundamental. Como diz Kelsen:
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo
plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de
diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da
conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que
foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma,
cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até
abicar finalmente na norma fundamental - pressuposta. A norma fundamental
- hipotética, nestes termos - é, portanto, o fundamento de validade último que
constitui a unidade desta interconexão criadora. (1998, p. 155)
24
Resumindo nas palavras da ministra Ellen Gracie: “A esses diplomas internacionais sobre direitos
humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da CF/1988, porém
acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos
humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja
ela anterior ou posterior ao ato de ratificação” (BRASIL, 2008).
202
III - VOTO
25
Classificações fornecidas pela página “Glossário Termos Legislativos” do Senado Federal.
204
o que não os impedem de receber e acolher sugestões dos demais parlamentares, assim
como de outros atores sociais.
Os pareceres aprovados, respectivamente, na CE e CAS, em 27/03/2018 e em
09/05/2018, trouxeram uma série de mudanças à proposição inicial do “Estatuto do
Cigano”, não apenas voltadas para a questão “identitária”, isto é, os critérios para se
definir quem serão os sujeitos destinatários do projeto de lei, como abordei na primeira
parte deste capítulo. Aqui, neste subtópico, darei ênfase às alterações que ocorreram no
“Título II – Dos Direitos Fundamentais” e no “Título III - Das Disposições Finais”. Ao
total, destaquei neste tópico duas mudanças que ocorreram ao longo da tramitação do
PLS, entre os anos 2015 e 2020, que contribuem para pensar a produção e ao mesmo
tempo as disputas em torno da “ciganidade”.
- Mudança 1
Ressalta-se que este relatório não dedicou mais parágrafos, além do citado
acima, para justificar a substituição no texto da lei. Os dois pareceres apresentados à
segunda Comissão, a CAS, em que o Estatuto é examinado, mantiveram este
entendimento, também sendo aprovado a alteração da palavra “gênero” por “sexo”.
Todavia, no último órgão colegiado em que o projeto de lei deve ser examinado,
a CDH, ambos relatores, os Senadores Hélio José e Telmário Mota, mudaram de
concepção nos respectivos relatórios legislativos protoclado na comissão, passando a
defender a manutenção da expressão “desigualdade de gênero” no texto do “Estatuto”,
ao invés de “desigualdade de sexo”.
Vale ressaltar que o Senador Hélio José submeteu dois relatórios à CDH, o
primeiro, em 21/06/2018, em que pauta a permanência da expressão “desigualdade de
gênero”, e o segundo documento, alguns dias depois, em 04/07/2018, não se refere mais
a esta questão, o que significa, tacitamente, a defesa do entendimento contrário ao que
foi aprovado na CE e na CAS.
Por sua vez, o terceiro relatório submetido nesta comissão pelo Senador
Telmário Mota, em 20/03/2019, repetiu praticamente a mesma redação do documento
de 21/06/2018, isto é, pela exclusão das “Emendas nos 3 e 4 da CE”, concluindo
206
partiu propriamente das lideranças ciganas que estão “na ponta”26, mas sim dos agentes
públicos - sobretudo ligados à burocracia estatal - que tenham interesse neste processo
legislativo ou na questão cigana como um todo.
Observem, abaixo, a síntese dos debates que ocorreram no grupo quando foi
discutida entre os/as participantes a redação do art. 4º, primeira proposta do PLS
248/2015 versando sobre o direito à educação. Frisa-se que as discussões tomaram
como base o relatório legislativo apresentado pelo Senador Telmário Mota em
20/03/2019, que sugeriu a manutenção da expressão “gênero” ao invés de “sexo”.
Vejamos:
O Representante da AEEC-MT, Aluizio, leu a proposta apresentada para este
capítulo (que consta de documento em que estão consolidadas as principais
propostas e contribuições para o texto), e ressaltou a importância dos
dispositivos nela elencados e defendeu sua inclusão no texto do PL.
Foi amplamente ressaltada a importância deste capítulo, tendo em vista o
caráter fundamental da educação, compreendido como oportunidade de
mudança social para os ciganos. Houve um consenso no sentido de que o
capítulo deve ser objeto de atenção diferenciada.
Mais uma vez foi citada a necessidade de adequação da expressão “população
cigana”, que deverá ser substituída por “povos ciganos”.
Nalva compartilhou o capítulo sobre educação existente no Estatuto da
Igualdade Racial, para subsidiar as discussões, ressaltando a necessidade de
que sejam enriquecidas as discussões do grupo sobre este tema. Citou a
participação dos conselheiros nacionais nas discussões institucionais sobre a
educação, trazendo notícias dos principais pontos dos debates para o grupo.
Na esteira da discussão sobre o Estatuto da Igualdade Racial, foi também
enfatizada a importância da constante referência e reconhecimento dos
ciganos como povos e comunidades tradicionais, com acesso às políticas
públicas destinadas a essas comunidades.
26
Trata-se de uma expressão que presenciei ser utilizada pela liderança Nalva para se referir ao fato dela
atuar “na ponta”, ou seja, por viver em acampamento, morando em tendas/barracas, e ao mesmo tempo
atuar no Estado de Minas Gerais em defesa dos direitos ciganos. É uma expressão análoga à “chão de
fábrica”, termo que é também utilizado por pessoas ligadas ao movimento sindical para se referir aos
profissionais que trabalham diretamente na produção fabril.
208
tensionamentos em torno da expressão “gênero” estão muito longe do debate entre eles.
De todo modo, é válido refletir qual seria a importância de uma lei destinada aos povos
ciganos afirmar que o “acesso à educação” deve ser promovido “sem distinção de
gênero”. Uma vez que o que está por trás dessas mudanças é uma disputa de sentidos
sobre o que “ser cigano” ou o que é “ser cigana”, envolvendo, e consequentemente
produzindo significados sobre a “ciganidade”.
A antropóloga Edilma Monteiro (2019) provoca, em sua tese de doutorado, a
pensar a educação entre os povos ciganos da etnia Calon transcendendo o ambiente
escolar e o seu aspecto formal, pois os processos de aprendizagem, dos diferentes
valores e tipos conhecimentos, já se inicia no espaço intrafamiliar, quando se ensina a
criança a “ser cigano” ou a “ser cigana”. Ou seja, é fundamental olhar para o fator
educacional numa dimensão mais ampla. Como também entendeu a pesquisadora Sílvia
Simões, ao observar que relação dos ciganos e os processos de aprendizagem
intra-étnico ocorrem desde os anos iniciais, e percebe que “as questões de gênero
passam a ser um fator determinante, que vai causar uma distinção na educação da
menina, e do menino cigano” (2007, p. 102).
Para a pesquisadora e ativista cigana Camilla Ida Ravnbøl (2010), é fundamental
que as análises científicas e as políticas públicas levem em consideração a inter-relação
de diferentes formas de opressão, decorrentes das relações de gênero, raça e classe.
Segundo esta autora, “as mulheres ciganas são representativas de múltiplas
discriminações, que muitas mulheres pertencentes a grupos minoritários experimentam
em sociedade, discriminação como minoria étnica, como mulher, e para algumas
mulheres também em grupos de pobreza” (2010, p. 30). Nesse sentido, a jurista e
ativista cigana Alexandra Oprea (2012) defende que o racismo e a ciganofobia
experimentados pelas mulheres ciganas não são sempre idênticos ao experimentados
pelos homens, pois estão profundamente articulados com estereótipos e formas de
opressão em função do gênero.
Os pesquisadores Fernando Macías e Gisela Redondo chamam a atenção para o
fato do sexismo afetar todas as mulheres de forma semelhante, todavia, pondera que as
mulheres ciganas também sofrem discriminação social e cultural devido ao racismo que
existe contra elas. Por essa razão, estes autores concluem que em decorrência do
sexismo e do racismo, as mulheres ciganas “enfrentam maiores problemas de acesso e
participação nos processos de formação educacional, realidade que por sua vez tem um
impacto negativo na perpetuação da situação de exclusão” (2012, p. 73).
213
- Mudança 2
A alteração que aqui destaco se refere aos trechos do projeto que abordam a
“direito à saúde”, contemplados no “Capítulo IV”, do “Título II” do PLS nº 248/2015.
Como é possível perceber na “Tabela 8”, já ocorreram duas mudanças significativas
nesta matéria, que foram votadas na CE, por meio das Emendas nº 6 e 7, e na CAS,
mediante as Emendas nº 10 e 11. Tais ajustes trouxeram, praticamente, novas redações
aos arts. 10 e 11 da proposta de “Estatuto do Cigano”. Vejamos:
§ 1º As medidas previstas no
caput incluirão:
I – sensibilização e
qualificação dos profissionais
de saúde e dos demais
integrantes das equipes dos
serviços de saúde quanto às
necessidades e peculiaridades
da população cigana;
II – articulação intersetorial;
III – fortalecimento da
participação e do controle
social; IV – combate a toda
forma de preconceito
institucional.
Como foi reportado nas audiências públicas realizadas em 2011, 2012 e 2018, na
CDH do Senado Federal, a presença de pessoas ciganas sem nenhum tipo de registro
civil, como a certidão de nascimento, é ainda um grave problema que atinge este povo,
situação que eu pude constatar, empiricamente, nas comunidades e territórios ciganos
que eu conheci. Embora possam existir diferentes razões que contribuam para este fato,
não podemos descartar a relação com a condição étnica, que pode contribuir para a
dificuldade de acesso ao registro civil ou que pode ser interpretada como uma estratégia
de sobrevivência. De todo modo, trata-se de um indicativo de vulnerabilidade social,
tendo em vista que a apresentação de algum documento formal constitui um
pré-requisito mínimo para se ter acesso aos serviços básicos, públicos ou privados, na
sociedade moderna. Este fator é mais elemento que confirma que a “invisibilidade”, tão
falada para se referir aos povos ciganos no Brasil, pode ser vislumbrada como uma das
palavras-chaves para compreender a condição jurídica política deste povo tradicional.
Como se pode observar, a proposição inicial foi mais abrangente, no sentido de
permitir ao “cigano”, que não apresentasse documento de identificação civil, o acesso a
qualquer tipo de atendimento na rede pública de saúde. Contudo, o “relatório
legislativo” do Senador Hélio José, apresentado e aprovado na CAS, suprimiu essa
abordagem, sugerindo o atendimento de pessoas ciganas, sem documentos de
identificação civil, ao sistema público de saúde, apenas em casos de urgência e
emergência. Vejamos a justificativa apresentada para a mudança no “art. 10” do PLS:
No que tange à saúde, identificamos alguns reparos a fazer. Há que ressaltar
sobre a determinação contida no art. 10 – de assegurar o atendimento na rede
pública de saúde ao cigano que não for civilmente identificado – que a
dispensa da identificação civil não foi estendida a nenhuma outra área
abrangida no projeto, quais sejam: educação, trabalho, habitação, acesso à
terra, cultura e promoção da igualdade.
Percebo que classificar os ciganos enquanto uma “minoria étnica” é forma como
o “Estado”, em geral, traduz os “ciganos” na sociedade, assim como por meio da
expressão “povos e comunidades tradicionais”. Ao meu ver, a proposta teórica de Barth
dialoga com esta perspectiva que hoje tem viabilizado a reivindicação dos “ciganos”
pela criação do “Estatuto”, em pautar políticas públicas específicas, levando em conta
que as identidades étnicas não estão restritas a alguns aspectos culturais, especialmente
àqueles atribuídos pelo imaginário social que os reduzem, por exemplo, ao
“nomadismo”.
Como observou os pesquisadores Manoel Almeida, Débora Barbosa e José Ivo
Pedrosa, há elementos que estão relacionados à “etnia cigana”, embora não sejam
determinantes, como o nomadismo e suas implicações, porém, destacam também as
“péssimas condições de habitação e saneamento básico, baixa escolaridade, estrutura
familiar nuclear, preconceito marcante, dentre outros, corroboram para necessidades em
saúde que são próprias do grupo e que exigem formas especiais de atenção e cuidado”
(2013, p. 1127).
É fundamental ponderar que a prática do “nomadismo”, que é constantemente
citada ou associada à realidade dos povos ciganos, não pode e nem deve ser interpretada
como um aspecto inerente a esta “minoria étnica”, mas sim como um resultado de anos
e séculos de interação pautado em relações assimétricas, entre “ciganos” e “não
ciganos”. Esta associação, conforme irei também explorar no tópico “3.2.3” deste
capítulo, representa um dos maiores obstáculos para o reconhecimento de direitos e para
a execução de políticas públicas, especialmente no âmbito habitacional e de acesso à
terra27.
27
Destaco que produzi em parceria com a antropóloga Edilma Monteiro o “Parecer técnico sobre o direito
à moradia e o acesso à terra no projeto de lei do ‘Estatuto do Cigano’”. Este documento foi solicitado pela
219
Não há como separar a forma como alguns grupos e famílias extensas ciganas
ocupam os territórios dos “aspectos culturais”, tratando como elementos separados. A
interação com os territórios, independentemente de haver uma preponderância de
práticas nômades ou havendo um contexto entendido como sedentarização, não estão
desassociadas das relações étnico-raciais e, consequentemente, da constituição das
identidades ciganas. A condição étnica dos povos ciganos os impõe situações de
vulnerabilidade social, sendo as questões geográficas parte deste cenário, pois, assim
como é para outros grupos historicamente subalternizados, a classe, a raça, o gênero são
marcadores sociais que influenciam na divisão e na ocupação do espaço. Por isso, não é
por acaso ou por um aspecto meramente cultural que haja a presença de muitos grupos
ciganos vivendo em territórios periféricos e/ou em moradias precárias, ponto que
retomarei no tópico “3.2.3”.
Há outro aspecto a ser refletido, que deve ser compartilhado aqui neste
subtópico, que decorreu da Emenda nº 11, aprovada na CAS. Além do dispositivo do
assessoria do Senador Telmário Mota, após ouvir minha explanação sobre o tema durante o “Encontro dos
Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”, realizado em 20/08/2020. Sugerimos neste
parecer que a redação do PLS 248/2015 fosse acrescentada no sentido de ampliar as possibilidades de
políticas públicas que garantam o direito à territorialidade cigana, buscando superar os estereótipos
inseridos no imaginário social, sobretudo quanto ao nomadismo. Este documento encontra-se disponível
no portal virtual da ASCOCIC .
220
PLS 248/2015 que versa sobre o direito à educação, a questão de gênero também se
manifestou no trecho ajustado do projeto de lei que aborda o “direito à saúde”, embora
de uma forma mais sutil. Refiro-me às redações adicionadas ao “art. 11” do Estatuto do
Cigano, por meio dos incisos III e IV do art. 11, respectivamente, “saúde
materno-infantil” e “saúde do homem”.
No caso da abordagem na área de saúde direcionado às mulheres ciganas,
apresentou-se a seguinte fundamentação:
i. o casamento de adolescentes (por tradição e costume de alguns núcleos
familiares, elas se casam entre os 12 e 15 anos);
doméstico e a alocação das tarefas domésticas para as mulheres não mudaram de fato”
(2005, p. 117).
É inegável que as formulações e execuções de políticas públicas devem dar
ênfase à “saúde do homem”, como inclusive foi sugerido nas discussões do grupo
criado pela assessoria do Senador Telmário Mota. Trata-se de um público que não
costuma buscar acompanhamento regular na área de saúde, e isso é geral, não apenas
entre os homens ciganos (BRAZ, 2005). E não se trata de uma questão biológica do
homem, mas sim dos papéis gêneros que são socialmente construídos e normatizam a
masculinidade, que se afirma negando a necessidade do autocuidado, supostamente
associada ao feminino, que é tratado como sinônimo de fragilidade.
Provavelmente a redação do texto de lei alterado na Comissão de Assuntos
Sociais que versa sobre o “direito à saúde” não especificou a necessidade de atenção à
“saúde da mulher”, pois, diferentemente dos homens, estas são mais habituadas a buscar
atendimento regular de saúde. Deixa-se, assim, implícito e disperso na redação do texto
da lei a questão da saúde da mulher cigana.
Contudo, segundo o ativista e intelectual cigano Aluísio de Azevedo Silva
Júnior, em tese de doutorado, os ciganos, em geral, “não costumam frequentar as
atividades coletivas oferecidas pelo centro de saúde” (2018, p. 429), sem especificar o
gênero ou o sexo. Por isso, no aspecto da saúde, pode-se dizer que a abordagem que foi
dada no PLS 248/2015 ainda é insuficiente, por não expressar a necessidade de atenção
específica também à “mulher cigana”, que, ao invés disso, se limitou a contemplar o
âmbito da maternidade. Este autor pontua ainda que
uma das principais reivindicações específicas acerca da saúde cigana,
levantada como uma demanda fundamental por muitos grupos e ativistas
ciganos: o cuidado das instituições de saúde em colocar apenas
profissionais do sexo masculino para atender a população cigana do sexo
masculino e o mesmo procedimento de atender as mulheres ciganas com
profissionais do sexo feminino. (SILVA JÚNIOR, 2018, p. 279, meu
destaque)
29
De acordo com Mirian Souza, a atuação de Mio Vacite, liderança cigana, que em sua tese chama de
“agente político”, busca dialogar com os elementos que fazem parte da narrativa nacional brasileira, em
que permite mostrar “que os ciganos são brasileiros, mas que possuem especificidades culturais, como a
língua. No discurso de Mio, a UCB vem desde a década de 1990 promovendo a representação dos ciganos
como uma minoria étnica com língua e modo de vida diferenciados, mas parte constitutiva da nação
brasileira (a reivindicação como brasileiros é sempre fundamental e não apenas para os ciganos, sendo
comum a todos os grupos de imigrantes no país)” (2013, p. 189-190).
225
30
Embora não exista o status de “estado cigano” soberano na comunidade internacional, “em 1979, a
Romano Yekhipé (União Romani), uma organização executiva criada durante o segundo congresso
internacional, representando 71 associações em 21 países, é reconhecida oficialmente pelas Nações
Unidas, adquirindo o status consultivo. Os ciganos passam a ser considerados minorias étnicas
segundo o estatuto da ONU” (REZENDE, 2000, p. 143, grifo do autor).
31
A este respeito, Rezende concluiu que “a sensação de pertencer a um grupo, a uma comunidade, não
implica apenas a constatação e aceitação da existência de normas, valores, artefatos e sinais manifestos ou
de um território físico com fronteiras visíveis. O que se aprende com os ciganos é que esta sensação de
pertencimento é muito mais um estado de espírito, intangível por caminhos comuns, pois pode apenas ser
vivenciada, experimentada cotidianamente em momentos intensos de confraternização” (2000, p. 162,
grifo do autor).
226
Como consequência, pelo fato de acharem que são não só nômades mas vadios,
vândalos, digamos assim, que vivem em circulação, uma sociedade sedentarizada tem
medo do que não conhece e mais medo, ainda, daquilo que não conhece e não estará
aqui, amanhã, na sua concepção, quando os fatos concretos desmentem isso e os ciganos
228
não ficam vadiando pelo mundo inteiro como se não tivessem propostos econômicos.
(BRASIL, 2012e, p. 962, meu grifo)
Repórter Carla Benevides: Procurador, o senhor é muito próximo aos ciganos, quando
trabalhou na procuradoria lá na Paraíba, na procuradoria pelos direitos dos cidadãos. O que
o senhor pôde identificar, quais são as principais queixas dos ciganos?
Dr. Luciano Maia: A primeira delas é que eles não são reconhecidos na sua diferença. A
diferença significando que eles têm um modo de viver próprio, vivem em casas, alguns,
mas também em barraca, mas particularmente eles praticam o nomadismo sazonal, é o
nomadismo que procura integrar-se com outros grupos humanos para vender bens e
serviços e fazem isso periodicamente. Então as rotas de imigração econômica dos ciganos
são sempre em busca de outros nichos econômicos humanos. No Espirito Santos, por
exemplo, vão para o litoral, é, no Paraná também. Enfim, tentando identificar qual é o novo
mercado onde pode apresentar os seus bens e os seus serviços. É, por outro lado,
percebemos lá literalmente em Sousa os ciganos estão à margem da cidade, da sociedade,
com dificuldades de serem introduzidos porque são vistos não só como diferentes, mas
inferiores. Há muito de racismo nesta abordagem. Isso resulta também no processo de
urbanização terrível que o Brasil viveu nos últimos 60 anos. Nós tínhamos há 60 ou 70 anos
atrás uma população 80% rural e 20% urbana. Hoje nós temos 85% urbana e apenas 15%
rural. Qual a consequência disso? Os espaços de sombra, os espaços junto de córregos, os
espaços nas fazendas desapareceram e os ciganos deixaram de ser bem-vindos nesses
espaços tradicionais. (2018b, meus destaques)
32
Segundo Edilma Monteiro, “o modo de vida viajante põe em debate questões sobre direitos e políticas
públicas direcionadas a este grupo. Acreditamos entretanto, que, mesmo diante de populações com
identidades e cosmologias próprias, o Estado deve assistir e garantir a efetividade de direitos mínimos às
pessoas ciganas” (2019, p. 81).
33
Nas palavras de Edilma Monteiro, “os Calons se organizam socialmente a partir das contingências nas
relações familiares e de negócios que efetivam rotas, fluxos em movimentos de trânsito”, conformando,
assim, redes. Estas redes, para a pesquisadora, “atravessam e vinculam pessoas, práticas, valores, noções
de pessoa e conhecimentos”. Ao invés de trabalhar com “a dicotomia entre ser sedentário ou nômade”,
230
pesquisadora, por exemplo, refere-se aos estudos de Martin Fotta (2012), que
demonstrou que a dicotomia “nomadismo/sedentarismo” simplifica as relações entre o
“passado” e “presente”, reduzindo o “passado” a um ponto de comparação idealizado e
indiferenciado.
Ao mesmo tempo, esta dicotomia baseia-se em observações descontínuas de
manifestações externas de espacialidade (viver numa caravana versus viver
numa casa), ou seja, formas não-relativas de estar no espaço. [...] Sem
negligenciar o facto de que, no Brasil, os ciganos foram outrora comerciantes
itinerantes (mascote), artistas de rua e prestadores de serviços, desejo mostrar
aqui que existe evidência histórica suficiente do elevado grau de porosidade
que existia entre o nomadismo e o sedentarismo de que esta dicotomia já
não pode ser mantida. (FOTTA, 2012, p. 20, grifo do autor, minha tradução)
propõe “compreender como essa produção de vida nas idas e vindas compõe o repertório do modo de
produzir pessoas” (2019, p. 64-65).
34
De acordo com o art. 12 da CF/88, há duas modalidades de nacionalidade no Brasil: os “brasileiros
natos” e os “naturalizados”. Há dois critérios gerais adotados para considerarmos uma pessoa “nata”: o
sanguíneo e o territorial, sendo que a maioria dos ciganos preenchem ambos os pré-requisitos, portanto,
não são as exceções previstas no ordenamento jurídico interno. Além disso, a maioria desta população
está no território brasileiro há muitas gerações. E, como foi abordado no primeiro capítulo, há registros da
presença cigana no Brasil desde o século 16.
231
35
De acordo com o Parecer (SF) nº 20, de 2018, aprovado na CE, “considerando-se o processo em que as
chamadas minorias têm tido seus direitos reconhecidos e as especificidades de suas culturas respeitadas,
nada mais justo do que legislar sobre os povos ciganos, reconhecendo sua relevância e sua contribuição
para a formação da sociedade brasileira, como dispõe a Constituição Federal de 1988 (art. 216)” (2018e,
p. 5).
232
36
Segundo Martins, a perspectiva do cidadão como um indivíduo conhecedor de seus direitos e deveres é
amplamente conhecida e difundida por diferentes meios. Todavia, este autor pontua que “restringir o
cidadão àquele que simplesmente conhece direitos e deveres é vê-lo enquanto um indivíduo passivo, que
233
consequentemente, classificada como “errante”, pessoa que “não arca com seus
compromissos”. Na verdade, a busca pela sobrevivência, que leva a necessidade das
mudanças, desconsidera o que concluiu a antropóloga Edilma Monteiro, que muitos
“ciganos vivem basicamente do comércio, desta maneira sempre estão se deslocando
para algum lugar onde o comércio esteja sendo valorizado” (2019, p. 80).
A afirmação da identidade e a exposição da diferença traduzem a vontade dos
diferentes grupos sociais, “ciganos” e “não-ciganos”, desigualmente situados, de
garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois,
em estreita ligação com relações de poder. O poder de indicar a identidade e de marcar a
diferença não pode ser desmembrado das relações mais amplas de poder. Declarar a
identidade significa delimitar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica
dentro e o que fica fora (SILVA, 2007, p. 73). O “ser cigano” está inserido numa
fronteira tênue, ao mesmo tempo que está e se manifesta em muitos lugares, é tratado
como um “sujeito” de lugar algum.
O etnônimo “cigano” é uma expressão denominativa criada e imposto pelas
sociedades “não ciganas”, vem “de fora”, entretanto, este nome foi incorporado pelos
mais diversos grupos que a si mesmo se autodenominam “ciganos”. “Nômade” também
é uma classificação externa. Como estão situados em diferentes partes do planeta, estes
sujeitos estão segmentados e subsegmentados em distintos grupos étnicos, a
denominação “cigano” é intensamente generalizante e envolve infinitas formas de
identidades.
Além do “nomadismo”, o imaginário social, a partir de uma lente folclorizada,
muitas vezes tende relacionar os “ciganos” ao uso de roupas coloridas, a intensa
presença de músicas e danças, casamentos arranjados, a moradia em
tendas/acampamentos. Delimita-se uma única identidade, como sinônimo de cultura;
são selecionadas algumas características para reduzir os “ciganos” a uma única forma de
expressão cultural, no aspecto material e imaterial.
Embora argumente contra o essencialismo, Silva (2007) entende que muitas
vezes os grupos dominados, em sua necessidade de criar novas identidades políticas,
apelarão para laços de experiência cultural comum a fim de mobilizar seu público. Por
isso, o “nomadismo”, as perseguições e a diáspora, a dança e a música são elementos
acionados por muitos ciganos, no que Spivak (1987) chama de “essencialismo
estratégico”, para potencializar a ação política, desde que seja enquadrado do ponto de
os recebe e tem de cumpri-los passivamente, isto é, abdicando da possibilidade de ser sujeito no processo
de elaboração deles” (2000, p. 114).
234
37
Para Edilma Monteiro, “o colorido, a alegria, a música e a dança fazem parte das culturas ciganas e vão
variar de contexto para contexto, podendo ser tratados como estereótipos positivos” (2019, p. 80).
235
sociais que elegem e constituem traços físicos ou culturais, valores, instituições etc.,
como signos diacríticos entre pessoas e grupos para determinar formas, normas e
padrões de relacionamento com os mesmos, possibilitando, dessa maneira, a origem e a
manutenção das fronteiras étnicas. Em outras palavras, os grupos étnicos não surgem do
isolamento geográfico, mas de processos sociais produtores da diferença cultural.
Os “sinais diacríticos”, portanto, são as diferenças que os próprios atores
consideram como significativos; são diferenças que podem mudar, mesmo que
permaneça a dicotomia entre “eles” e “nós”, marcada pelos seus critérios de
pertencimento. Barth enfatiza “que grupos étnicos são categorias atributivas e
identificadoras empregadas pelos próprios atores; consequentemente, têm como
característica organizar as interações entre as pessoas” (2000, p. 27).
Barth influenciou o antropólogo Cardoso de Oliveira a desenvolver e refletir
sobre a categoria “identidade contrastiva”, que também é importante para esta tese.
Segundo Cardoso de Oliveira, a identidade contrastiva implica “a afirmação do nós
diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, fazem-no
como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se
defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente”
(2003, p. 120). Os “signos diacríticos” mobilizados pelos “ciganos”, como as línguas, as
vestimentas, as danças e as músicas, por exemplo, são estratégias destes de se
afirmarem perante os “não ciganos”.
Dessa forma, a noção de “manipulação” como “dissimulação” distorce a
realidade e confunde a compreensão acerca da natureza essencial das identidades
étnicas como identidades contrastivas, e também como forma de ação política, fazendo
da identidade, segundo o antropólogo Cristhian Teófilo da Silva, “algo a ser interpretado
negativamente, algo que escamoteia a verdadeira identidade” (2005, p. 117, destaque do
autor). Neste artigo, o autor se refere aos “indígenas misturados”, que são os casos dos
grupos ou indivíduos que há mais tempo e com mais intensidade interagem na
sociedade majoritária, não apresentando mais algumas características ou
comportamentos que o imaginário social julga ser do “índio puro”. Segundo o referido
autor:
Manipular não é necessariamente dissimular, de acordo com o sentido
comumente atribuído a esta palavra. A manipulação no caso dos índios
misturados (ou resistentes, como querem certas lideranças) deve apontar
antes para o uso político de conceitos, descrições, traços diacríticos e da
própria identidade que se encontra “à mão” do manipulador inserido numa
situação histórica particular dentro da qual se luta para participar de forma
mais autônoma. Trata-se, nesse sentido, de uma ação legítima (politicamente
falando). (SILVA, 2005, p. 117-118, destaque do autor)
236
38
É importante ressaltar, citando mais uma vez Rezende, que “no universo humano do cigano são todos
idealmente iguais. No entanto, nos discursos e práticas cotidianos a classificação do mundo social assume
formas diversas, separando grupos e indivíduos em determinados momentos e unindo-os em outros. Este
fenômeno se deve à diversidade étnica da qual se compõem os grupos. As relações dos ciganos entre si, e
destes com os gadjé, inscrevem-se em um sistema de relações interétnicas onde os grupos expressam a
todo instante ideologias e comportamentos diferentes uns dos outros” (2000, p. 72).
237
eventos, foram narradas pelas representações ciganas dos diferentes grupos étnicos,
Calon, Rom ou Sinti.
Ao analisar a atuação política da UCB, Mirian Souza reconheceu que o uso da
categoria “cigano” por esta associação na esfera pública, ao invés de adotar a categoria
“roma”, como é reivindicado por movimentos fora do Brasil39, “é claramente uma
escolha política para superar particularismos étnicos e linguísticos” (2013, p. 150). Em
outras palavras, “deve prevalecer uma identidade cigana mais geral, sendo irrelevante
identidades específicas como kalderash, horarano, calon, lovari etc” (2013, p. 148). A
justificativa apresentada por Mio Vacite, liderança cigana que fundou e presidiu por
muitos anos a UCB, para unificar em uma categoria identitária uma pluralidade de
identidades é “que, apesar de existirem diferenças entre eles, também existem elementos
comuns (como um histórico de perseguição, hostilidade e preconceito baseado em
estereótipos) que justificam a afirmação de uma identidade compartilhada”.
Vejamos dois trechos da audiência pública de 2012, em que se faz referência à
“variedade étnica dos ciganos”:
Sr. Luciano Maia: [...] quando eu fiz referência à variedade étnica, é para dizer que
precisam ser respeitados, pelos nomes que a si próprios atribuem, um nome que vem de
homem ou ser humano. Na expressão romani, é Rom ou Roma, como agora são conhecidos
na Europa, Roma. E, aqui no Brasil, nós tratamos três grandes grupos: os Rom, os Sinti e os
Calon.
[...]
Sra. Lucimara Cavalcante: Então, falta o quê ao IBGE? Não pode o senhor simplesmente
mandar uma carta solicitando, “vamos pedir”. Não, vamos sentar, vamos conversar,
Senador. O IBGE está no caminho certo. Só faltam orientações, orientações de como se
colocar no formulário, para daqui a 10 anos, quando vai ter o próximo censo neste País... O
senhor sabe muito bem que é de 10 em 10 anos que ocorre o censo neste País. Como o
IBGE vai colocar? Quais são as etnias hoje no Brasil dos ciganos, dos povos romani? Eles
desconhecem. Eles não sabem que tem Macwaia, eles não sabem que tem Calon, eles não
sabem que tem Horáhané, eles não sabem que tem Kalderash. (BRASIL, 2012e, p.
961-970)
39
Mirian Souza levou em consideração o trabalho de campo realizado no Canadá com a organização
Roma Community Center (RCC). A autora mencionou uma justificativa levantada por Ronald Lee, uma
das principais referências da RCC, para o uso da categoria “roma”, ao invés de “gypsy”: “Cigano evoca
todos os tipos de imagens estereotipadas de Roma na mente de expectadores e leitores. Cigano deve ser
substituído por Roma. Cigano tem sido utilizado por pessoas de fora e é ofensivo aos Roma como índio é
ofensivo aos povos nativos do Canadá” (2013, p. 72, tradução e grifo da autora).
239
Nesse sentido, ao resgatar este episódio, devo lembrar que antes do PLS
248/2015 ter sido submetido ao Senado, a proposta inicial era que este instrumento
jurídico fosse chamado “Estatuto Esmeralda” ou “Lei Esmeralda”, em homenagem a
história narrada pela Deputada Erika Kokay sobre esta criança que foi forçada a sair da
escola por conta das hostilidades enfrentadas por “ser cigana”. Observemos, abaixo, o
Senador Paulo Paim, que presidiu a audiência pública de 2012, fazendo referência a este
fato também:
Sr. Presidente: Em maio do ano passado, realizamos aqui nesta Comissão outra audiência
para tratar da situação do povo cigano. Aí nós sugerimos inclusive a ideia do estatuto, uma
lei que determinaria os direitos e garantias individuais e coletivas do povo cigano, que
avançaria naturalmente no reconhecimento de uma legislação clara e transparente. O
estatuto teria, conforme entendimento, o nome que assim a comunidade entendesse mais
adequado. Alguém levantou até que poderia ter o nome de Esmeralda, em homenagem a
uma pequena criança que tinha o sonho, eu diria inusitado, de frequentar a sala de aula.
Sonhar com o direito legítimo garantido pela Constituição. É um sonho bonito de alguém
que criou na memória um mundo especial, de alguém que mentalizou os desenhos em uma
folha de caderno, que aqui me foi apresentada a Esmeralda. Ela imaginava poder pegar o
ônibus, chegar à escola, abraçar os coleguinhas, enfim, ter o direito a uma vida normal
como toda criança em qualquer parte do mundo.
Claro, aqui estamos discutindo o sonho da Esmeralda no Brasil. Ela só queria ter direito de
aula, como as outras suas coleguinhas. Em relação a tudo isso que ela escreveu, a intenção
era botar o nome da lei, uma vez aprovada, de Lei Esmeralda. Há alguns que não entendem
a importância de uma audiência pública. Naturalmente os que não entendem é porque não
têm compromisso com os movimentos sociais. (BRASIL, 2012e, p. 959)
De toda forma, há três questões, que estão abordados no projeto de lei, assim
como foram mencionadas em todas audiências públicas realizadas no Congresso
Nacional com a participação de lideranças ciganas, que eu dei destaque neste
subtópico: a “educação”; os “dados demográficos” e “o acesso à terra e moradia”. São
pontos sensíveis, que em algum momento já abordei aqui, mas que demandam mais
atenção, por serem cruciais para compreender o processo de construção político-jurídica
do “Estatuto do Cigano” no Brasil e as próprias disputas em torno da “ciganidade”.
- Educação
Edilma Monteiro percebeu entre seus interlocutores que “a busca pela escola
desconstrói as narrativas que dizem que os povos conhecidos como ciganos não gostam
de escola” (2019, p. 328). Na verdade, é necessário entender, nos casos em que
ocorreram a evasão estudantes ciganos, o que levaram a estes saírem do ambiente
escolar, o que provocou o desinteresse, antes de taxar os ciganos como grupos avessos à
242
Seis meses antes da audiência pública em que o procurador fez esta fala, em
16/05/2012, o Ministério da Educação emitiu a Resolução nº 3, em que definiu
“diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de
itinerância”, fazendo referência direta aos “ciganos”, no art. 1º40. Como já foi abordado
aqui, as dificuldades no acesso à educação não se restringem aos grupos com práticas
consideradas nômades.
40
Destaco dois artigos desta resolução: “Art. 2º - Visando à garantia dos direitos socioeducacionais de
crianças, adolescentes e jovens em situação de itinerância os sistemas de ensino deverão adequar-se às
particularidades desses estudantes. Art. - 3º Os sistemas de ensino, por meio de seus estabelecimentos
públicos ou privados de Educação Básica deverão assegurar a matrícula de estudante em situação de
itinerância sem a imposição de qualquer forma de embaraço, preconceito e/ou qualquer forma de
discriminação, pois se trata de direito fundamental, mediante autodeclaração ou declaração do
responsável” (BRASIL, 2012c).
243
Entre 2015 e 2017, conforme relatei em artigo científico acerca de um caso que
acompanhei numa comunidade “cigana” Calon do interior da Paraíba, o fato de ser um
grupo composto por famílias que habitam casas de alvenaria e/ou por parecerem
“sedentários” foi utilizado por uma diretora escolar do município para negar a adaptação
dos recursos didáticos às crianças e jovens “ciganos”, pois, “não são mais povos
nômades” (SILVA; MEDEIROS JÚNIOR, 2017, p. 100).
Além da comunidade cigana de Condado, percebi a incidência de níveis ainda
mais baixos de escolaridade entre os ciganos que vivem no Acampamento Nova Canãa,
cujo o problema, em si, não é se matricular na escola, mas continuar nela, completar os
estudos41. Esse fato também foi exposto nas reportagens da TV Senado, divulgadas em
abril e maio de 2018.
Segue abaixo um trecho da reportagem “Povo cigano: a luta para manter a
tradição e combater o preconceito”, transmitido pelo Programa Inclusão, da TV Senado,
que foi gravado com uma das moradoras do Acampamento Nova Canãa. Vejamos:
Narração: Com uma trajetória marcada historicamente pelo preconceito, a
maioria dos ciganos não tem acesso à escola e muito menos ao mercado de
trabalho.
Repórter: Você sofria assédio, preconceito quando frequentava a escola
comum?
Tatiana da Rocha (enquanto segura uma criança no colo): Sim, era muito
difícil, porque só de ser cigana e está estudando ali tinha gente que ficava, um
falava, até a diretora do colégio.
Repórter: Mas vocês diziam que eram ciganos, era visível, você frequentava
com essa roupa ou você ia com o uniforme da escola?
Tatiana da Rocha: Nós íamos com o uniforme, mas nós nunca mentiu para
eles não, que éramos ciganos. Sempre nós falávamos que erámos ciganos.
Repórter: é honra pra você ser cigana?
Tatiana da Rocha: é uma honra sim, ser cigana! (TV SENADO, 2018D)
Este trecho da reportagem da TV Senado, que traz mais uma vez à tona a
problemática da educação62, me fez retornar às anotações do meu caderno de campo, em
que registrei um diálogo que tive com uma criança que vive no “Acampamento Nova
Canãa”, o único contato que tive sem a presença de Seu Wanderley, Seu Batista e Seu
Jefferson. A ocasião foi inesperada.
Era minha segunda vez no “Acampamento”, final de julho, estávamos no
inverno, uma noite fria, ventos fortes por todo lado. Foi acesa uma fogueira, em torno
de 10 pessoas reunidas, me ofereceram o melhor assento para que eu me acomodasse,
eu recusei, estava com tanto frio que me sentia mais aquecido ficando em pé me
movimentando. Uma discussão acalorada começou, e, então, pediram, discretamente,
para que eu fosse para a barraca e esperasse até ser chamado de volta. Foi então que eu
41
Essa questão foi abordada por Lenilda Perpétuo (2017) em sua dissertação de mestrado, pesquisa que
trabalhou a relação entre a territorialidade e a educação.
244
pude conversar com Melissa63, uma criança cigana de 10 anos que vive no local. Segue
abaixo um trecho da nossa conversa que consegui registrar no caderno de campo:
Eu: Você gosta de estudar?
Melissa: Gosto.
Eu: Você gosta de ir à escola.
Melissa: As vezes.
Eu: Por que? Você tem amigas na escola?
Melissa: As meninas não gostam de mim, elas me pirraçam, falam mal do meu cabelo, me
chamam suja. Eu fico triste.
Eu: Você já falou com a professora?
Melissa: Ela não acreditou em mim, disse para eu procurar outras amigas. Eu não tenho
amigas na escola. [...]
Eu: O que você quer ser quando crescer?
Melissa (sorrindo): Eu quero ser médica, igual a moça do posto (sorrindo).
Embora esse diálogo não tivesse tratado sobre o processo legislativo, me marcou
muito por ser um testemunho de uma “criança cigana”, que, como todos nós, tem
sonhos, mas que enfrenta diferentes desafios para concretizar-lo, no caso de Melissa,
por conta da sua condição de étnica-racial, de gênero e também de classe.
Por isso, posso concluir que a questão da educação é marcante no processo
legislativo aqui etnografado, uma vez que aparece em diferentes momentos, seja nas
audiências públicas do Congresso Nacional, nas reportagens da TV Senado ou nas
reuniões das comissões temáticas em que o PLS 248/2015 tramita.
Todavia, a forma como a “educação” foi incorporada ao PLS nº 248/2015 está à
margem do desafio que esta pauta representa para os “ciganos”. Foi essa a conclusão do
MPF concluiu na Nota Técnica sobre o “Estatuto do Cigano”, ao afirmar que “o Projeto
de Lei, portanto, perde a oportunidade de avançar nesses temas, abordando-o apenas de
forma tímida e incompleta, o que diminui o alcance dos direitos conferidos aos povos
ciganos” (2018, p. 15-16).
O que a descrição do processo legislativo do PLS nº 248/2015 me permite
revelar é que os baixos indicadores sociais da educação, envolvendo os “ciganos”, não é
um traço cultural, que lhes são inerentes. É resultado de uma série de elementos, que
estão relacionados, ou não, entre si42. Tanto as políticas voltadas para a educação, como
as que são direcionadas para a saúde, por exemplo, precisam ser elaboradas pensando o
todo, a totalidade dos bens necessários para a reprodução social da vida, como, por
exemplo, as condições de moradia e o acesso à terra, a soberania alimentar, a segurança
e o trabalho.
42
Levando em conta algumas particularidades da questão da educação entre os ciganos, Edilma Monteiro
destacou em sua tese de doutorado que “o ingresso na escola acontece num tempo diferenciado, pois, por
mais que valorizem a escolarização e o que a escola do Juron pode ensinar, os Calons valorizam o que é
apreendido e compartilhado no seu grupo” (2019, p. 243). Isto porque há uma preocupação que o ingresso
no ambiente de educação formal possa comprometer o processo de produção da “Calonidade”, cuja a
infância consiste no período central para se aprender a “ser cigano”.
245
E é por isso que há uma luta não apenas pelo reconhecimento de um direito, mas
de um conjunto de direitos, conforme está apresentado no “Estatuto do Cigano” que
tramita no Congresso Nacional. O que mais uma vez não significa dizer que nesta
proposta de instrumento jurídico se encontram previstos todos os bens que são
necessários para proporcionar o acesso dos povos ciganos a uma vida digna no Brasil.
- Dados demográficos
43
“Art. 17. Serão recolhidos, periodicamente, dados demográficos sobre a população cigana no Brasil,
destinados a subsidiar a elaboração de políticas públicas de seu interesse” (Texto inicial do PLS nº
248/2015).
246
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Pegue o microfone, por favor. Aperte ali, vai
acender uma luz verde. Acho que é bom esse contraditório. Isso aqui vai para todo o Brasil,
pela TV e pela internet.
Srª Lucimara Cavalcante – É bom, é bom, nós estamos aqui para isso. É uma audiência
pública. A Associação Internacional Maylê Sara Kalí, e também aqui representando a
Associação Internacional da Cultura Romani – Brasil. O IBGE nós consideramos como o
órgão mais respeitado internacionalmente. No trabalho que eles fizeram no censo de 2008,
faltou o quê? Informação. Falta informação. Como o senhor disse, Sr. Ivanovitch, a
ignorância gera o estereótipo, gera o preconceito e a discriminação. Portanto, eu gostaria de
lembrar a esta Casa que o trabalho que o IBGE fez foi a pedido desta Casa, desta Comissão,
e da Seppir, na época.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Qual o trabalho?
Srª Lucimara Cavalcante – Foi a pedido desta Casa, da Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa.
O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas qual é o trabalho?
Srª Lucimara Cavalcante – Munic – Pesquisa Básica de Informações Municipais44.
Devido a já uma discussão referente às questões ciganas no Brasil.
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas então foi feito?
Srª Lucimara Cavalcante – Foi feito, Senador, nós temos aqui nosso estudo.
Orador não identificado – Mas é um levantamento preliminar45.
Srª Lucimara Cavalcante – É um levantamento preliminar. O que falta?
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas já tem então um trabalho feito pelo
IBGE da questão cigana.
Srª Lucimara Cavalcante – Exatamente. Mas o que falta, Senador, é uma conversa...
Sr. Presidente (Paulo Paim. Bloco/PT – RS) – Mas é boa a sua fala, boa. Esclarecedora.
Srª Lucimara Cavalcante – Exato. A AMSK inclusive traz aqui dados do Munic 2011 que
saiu agora, dizendo que já em alguns Municípios... 29 dos Municípios já têm terrenos
destinados aos povos ciganos, em cumprimento ao Programa Nacional de Direitos
Humanos. Então, nós já temos aqui uma ação do IBGE. (BRASIL, 2012e, p. 961-970)
município só. Nós não somos minorias, essa estatística de 800 mil não existe, se nós
estamos aqui há 444 anos e não temos direito a saúde, as mulheres tem os filhos que a mãe
natureza deixa ter. Se puder ser aprovado esse ano, nós teríamos uma boa resposta para
vocês no final do ano (referindo-se às eleições de 2018).
Como podemos observar nas imagens 21, 22 e 23, com os mapas produzidos em
2009, 2014 e 2019, sobre a presença cigana no território brasileiro, houve uma evolução
no quantitativo acusado nas pesquisas que foram realizadas neste intervalo de tempo.
Não significa dizer que ocorreu, necessariamente, um aumento de pessoas, famílias ou
grupos que se identificam como “ciganos”, mas sim daqueles que foram identificados
como tais pelos pesquisadores.
Mirian Souza concluiu também desta forma ao afirmar que “a perseguição aparece no
discurso de agentes políticos e associações ciganas como um denominador comum a
todos os ciganos. Ela supõe uma unidade, porque apesar das diferenças entre eles, a
perseguição os caracteriza etnicamente ao longo da história” (2013, p. 103, grifo da
autora).
E como discuti a seguir no próximo item, a “condição universal dos ciganos”,
atrelada às “violações de direitos” e à “vulnerabilidade social”, foi também pautada no
processo legislativo do PLS nº 248/2014 por meio da questão da “moradia” e do “acesso
à terra”.
- Terra e moradia
Nesse sentido, devo destacar que o referido documento foi assinado pelo MPF
no dia 07/08/2018, ou seja, aproximadamente 3 meses após a realização da audiência
251
pública na CDH do Senado. Embora o MPF tenha pontuado estas críticas ao texto do
PLS 248/2015, ao final da Nota Técnica, nenhuma das seis sugestões apresentadas pelo
órgão contemplaram as pautas do “acesso à terra” e da “moradia”.
Quanto à questão do “acesso à terra”, os participantes do grupo de discussão
sobre o PLS 248/2015 criado pela assessoria do Senador Telmário Mota
posicionaram-se no seguinte sentido:
Quanto ao tema, Nalva trouxe a conhecimento do grupo projeto de lei do
Estado de Minas Gerais elaborado pela Câmara Técnica que trata dos direitos
dos povos ciganos. Aponta que os temas colocados no projeto, elaborado com
assessoria técnica e jurídica, são importantes para a reflexão e possível
inclusão no Estatuto. O Dr. Phelipe Cupertino, que assessorou a Câmara na
elaboração do projeto, prestou esclarecimentos ao grupo a respeito de seu
teor.
André Soares (MG) teceu considerações sobre a importância da terra para os
povos ciganos e da infraestrutura necessária para suas habitações, mesmo
aqueles em situação de itinerância, e a importância de sua proteção.
Como se pode perceber, o meu nome foi mencionado na relatoria do MPF acerca
das discussões do grupo, tendo em vista que colaborei para a elaboração de um projeto
de lei estadual, entre os meses de setembro e novembro de 2020, convidado pela
liderança Nalva, que atua na Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa dos Povos
Cigano de Minas Gerais. A finalidade desta proposição legislativa é instituir um plano
estadual de acesso à terra e ao direito à moradia culturalmente adequada dos povos
ciganos do Estado de Minas Gerais.
Em relação ao “direito à moradia” e à inviolabilidade dos acampamentos e
ranchos, os participantes do grupo apresentaram as seguintes considerações:
Foi noticiada por Nardi Casanova a existência de Recomendação expedida
pelo Ministério Público Federal no sentido de que as casas e tendas dos
ciganos sejam consideradas asilo inviolável, para todos os efeitos legais,
devendo as investigações e operações policiais atender a esse parâmetro.
Nalva deu notícia de atuação do MPF na defesa da comunidade de Ibirité, no
Estado de Minas Gerais, no sentido de garantir o seu direito à moradia e
evitar sua retirada do terreno onde estava localizada, garantindo, ainda a
infraestrutura necessária à sua permanência. A atuação obteve êxito.
Foi ressaltada pela cigana Rose Winter a necessidade de acrescentar um
parágrafo ao texto conferindo proteção especial aos ciganos itinerantes, no
sentido da permissão de passagem e fixação de terreno, com a estrutura
necessária, em suas rotas de passagem.
No mesmo sentido, deve ser garantida proteção aos “ciganos de lona” (que
moram e trabalham em circo), também itinerantes.
Omar sugeriu que sejam criados centros de referência, que podem atender a
essa finalidade.
O professor Phelipe Cupertino sugeriu a seguinte redação para o parágrafo a
ser acrescentado:
‘As terras rurais e urbanas tradicionalmente ocupadas pelos povos ciganos, de
caráter temporário, deverão receber apoio do Poder Público, de modo a
garantir uma infraestrutura básica para a sua subsistência pelo tempo que
durar o período de itinerância’.
252
46
O contrato destinado à Associação Cigana da Etnia Calon do Distrito Federal refere-se ao Processo
04991.002474/2014-35 (BRASIL, 2015d, p. 123).
47
“Art. 18. A critério do Poder Executivo poderão ser cedidos, gratuitamente ou em condições especiais,
sob qualquer dos regimes previstos no Decreto-Lei no 9.760, de 1946, imóveis da União a: I - Estados,
253
A luta pela terra dos ciganos Calon do Bairro São Miguel contou com a parceria
de outros órgãos públicos, como o MPF48 e a DPU, assim como coletivos da UFMG49,
que contribuíram para intermediar com a SPU a regularização fundiária do terreno50. No
ano de 2015, tais atores alcançaram um consenso. Assim, somados com os casos da
ANEC e da ACEC-DF, neste ano, consolidaram-se três experiências em que a União,
pela primeira vez, reconheceu, formalmente, o direito à posse de populações
tradicionais ciganas em territórios por estes reivindicados.
É possível, portanto, identificar um reposicionamento do SPU na gerência das
terras públicas pertencentes à União, que ocorreram no âmbito dos governos de Dilma
Rousseff (PT), entre os anos de 2011 e 2015. Mesmo intervalo de tempo em que
aconteceram as duas audiências públicas com temáticas voltadas para os direitos dos
Distrito Federal, Municípios e entidades sem fins lucrativos das áreas de educação, cultura, assistência
social ou saúde” (BRASIL, 1998).
48
Entre vários pontos atacados pelo MPF, por meio da Nota Técnica PFDC/CAM/EB nº 07/2013, destaco
o que faz referência à mobilização do “nomadismo” para negar direitos aos ciganos: “diante de
argumentos como o parecer CGU/AGU que alegou serem nômades – com uma definição de dicionário –
para negar-lhes a validade do pleito” (MPF, 2013, p. 18). Conforme relatado por Mirian Souza, a suposta
essência “nômade” dos “ciganos” também foi acionada para negar o status de “refugiada” de uma das
suas informantes na Inglaterra. “Katrina observou que seu pedido de refúgio e imigração foi negado na
Inglaterra sob o argumento de que ela, porque era cigana, era nômade” (SOUZA, 2013, p. 276).
49
“O caso dos Calon de BH ilustra a possibilidade de redefinição de práticas estatais em razão do
alargamento das margens conceituais do Estado. O enfrentamento da categorização do nomadismo,
baseada numa identidade congelada do modo de vida cigano, e a disputa por significados outros de
direitos e justiça levaram ao inédito reconhecimento do direito ao espaço-território pelas famílias ciganas
de São Gabriel. Isso não teria sido possível sem a construção de uma rede de “parceiros” que, por meio de
uma disposição inventiva, engendraram novas formas de governar e legislar” (LIMA; DOLABELA,
2015, p. 102).
50
Este episódio foi também analisado pela pesquisadora Priscila Paz Godoy, que publicou, em 2016, o
livro “O povo invisível - os ciganos e a emergência de um direito libertador”.
254
povos ciganos, na CDH do Senado Federal, que contribuíram para o parlamentar Paulo
Paim (PT/RS) apresentar o projeto de lei propondo a criação do “Estatuto do Cigano”
em 29/04/2015. Desde então, durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro
não houve novas experiências de concessão de terras públicas para populações
tradicionais ciganas, mediadas pela União. Ao meu ver, ficou evidente que os três
episódios de regularização fundiária, envolvendo ciganos, não se consolidaram como
uma política de Estado, tratou-se de uma prática de governo.
Por essa razão, o MPF interpretou em “Nota Técnica” que os arts. 12 e 13 do
PLS 248/2015 não contemplam, de forma consistente, a questão da regularização
fundiária, assim como as demandas de infraestrutura para os acampamentos e ranchos
ciganos já existentes. Tirando os casos de 2015, que ainda são concessões temporárias,
dependendo de renovação, é possível afirmar que não existe no Brasil uma política
pública permanente de regularização fundiária de terras para os povos ciganos.
A luta e as experiências dos povos indígenas e quilombolas pelo direito à terra,
mesmo que esteja, expressamente, prevista na Constituição brasileira de 1988, não
significou que estes grupos passaram a ter suas demandas automaticamente atendidas.
Como revelam os estudos e pesquisas científicas, o conflito e a violência, seja para ter o
direito de acesso à terra ou para se manter nela, são, desde sempre, partes do cotidiano
dos indígenas e quilombolas, contudo, é importante pontuar que tais ataques a estes
povos aumentaram, demasiadamente, a partir do ano de 2016, marcado pelo
impeachment da presidenta Dilma51.
Portanto, seria fundamental que ocorresse uma alteração na redação do PLS
248/2015, incluindo pontos como: a necessidade de estruturação de uma política
permanente de regularização fundiária, assim como melhorias de infraestrutura das
moradias ciganas já existentes; e a exclusão do fator “nomadismo” como parâmetro a
ser adotado pelos Poderes Públicos, para reconhecer direitos aos “ciganos”52. Mesmo
que o “Estatuto” venha a ser aprovado, não significará que teremos no Brasil gestores
públicos voltados e interessados em cumprir políticas públicas de acesso à terra e
51
Classificando o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff de “golpe político
parlamentar/jurídico/midiático”, da mesma forma que enxergo tal episódio, os pesquisadores Silva e
Marques (2019) defendem que esta ruptura política intensificou a violência, que já estava em curso no
Brasil, em face de populações camponeses, quilombolas, ribeirinhos, indígenas.
52
De acordo com a antropóloga Ana Rita Alves, levando em consideração a realidade das comunidades
ciganas em Portugal, além da perseguição histórica sistemática vivenciada por esta minoria étnica, há
outros fatores que podem justificar a persistência do problema habitacional. A autora defende que
narrativas técnica e cientificamente superficiais mobilizadas para fundamentar a precariedade habitacional
e a falta de ações políticas estão relacionadas à “naturalização da ideia de que as comunidades ciganas são
culturalmente itinerante”, comprometendo “a efetivação do direito à habitação” e “invisibilizando os
processos contínuos de desterritorialização” (ALVES, 2019, p. 2090).
255
moradia adequada aos povos ciganos, assim como atendendo outras questões
relacionadas à educação, saúde, trabalho, cultura etc.
As condições de luta dos ciganos, indígenas, quilombolas e dos camponeses pelo
acesso à terra e pelo direito à reforma agrária confirmam a expressão que o sociólogo
José de Souza Martins (2010) chamou de “nó da terra”, a fim de caracterizar a realidade
fundiária do Brasil, um dos países do mundo onde há uma das maiores concentrações de
terras53. Por isso, especulo que a forma como o PLS 248/2015 abordou, especialmente,
o “acesso à terra”, sem clareza e com pouca ênfase, contribuíram para que não houvesse
tantas polêmicas, internas ou externas ao Congresso, em torno da proposta de criação do
“Estatuto do Cigano”.
53
Segundo informações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, divulgadas no dia 06/04/2020, por
meio do “Dossiê 27: Reforma Agrária Popular e a luta pela terra no Brasil”, este país continua sendo
palco da maior concentração de terras do mundo e onde estão os maiores latifúndios (DOLCE, 2020).
256
Ao vislumbrar o poder inserido nas relações de forças, que geram afetos, ações,
indivíduos dóceis, produzindo do mesmo modo a vida da população, Foucault (1987)
pôde, afinal, projetá-lo como difuso, expondo que o poder se situa em toda a parte,
desvelando-se em produzir indivíduos sujeitados às estratégias que transpassam todo o
campo social. Como na sua perspectiva não existe poder sem saber, e tendo em vista
que o binômio saber-poder detém a vida em dispositivos concebidos pelas práticas
sociais, o sujeito resultante de tais práticas será sempre apreendido como sujeitado.
Desse modo, a trama do “Estatuto” acaba também promovendo a constituição do
sujeito “cigano”, que ocorre em meio a um movimento dicotômico na qual este vivencia
seu processo de subjetivação. Isto é, o sujeito “cigano” é aquele sujeitado a uma
representação que se fazem dele, imagem dada, externa, pré-concebida, como também
suscetível à imagem que faz de si, à própria identidade, ao referencial que formula de si.
Ocorre, na realidade, a sujeição do “ser cigano” a uma imagem que não fora por inteiro
assimilada e idealizada por si, de modo que este sujeito não é resultado de um processo
de autoconstituição, mas impulsionado a se transfigurar sujeito pela norma, instaurada a
partir de regimes de verdade determinados por artifícios que encontram e que lhe são
apresentados, propostos e, por fim, impostos pela sociedade, pela cultura e por seu
grupo social.
A construção da agenda de lutas por direitos, assim como a emergência da pauta
pela instituição de uma lei específica voltada para os povos ciganos fundam-se na
seguinte estratégia: idealizar e construir uma imagem do “cigano” que busca justamente
legitimar a pauta pela criação do “Estatuto”. Ao mesmo tempo que há o esforço em
transcender os estereótipos, como é o caso do “nomadismo”, acaba-se muitas vezes
mobilizando o fator da itinerância no campo discursivo para fundamentar a condição
étnica do sujeito “cigano”.
Em princípio, associar o “ser cigano” ao “nomadismo” pode induzir o
imaginário popular a ter questionamentos como este: se a atuação do Estado em face da
questão cigana tem o propósito de aniquilar ou pelo menos diminuir as causas que
levam os grupos e famílias ciganas a estarem se movimentando constantemente no
espaço, entre territórios, na busca pela sobrevivência, seria o “Estatuto” uma vez
aprovado e efetivado um instrumento capaz de extinguir a própria “ciganidade”?
Além disso, esta associação vislumbra supostamente a vida “nômade” como uma
reação às perseguições e à discriminação racial, o que também pode levar a equívocos.
Neste capítulo provoquei os leitores a pensar a condição cigana para “além do
nomadismo”, sendo que para isso é importante compreender a tal itinerância como um
257
54
A autora conceitua cultura sem aspas enquanto a existência de recursos interiorizados que estruturam a
compreensão e a ação das pessoas e que asseguram um relativo grau de interlocução nos grupos sociais.
Por sua vez, cultura com aspas é uma percepção reflexiva que fala de si mesma de certa maneira. Cultura
com aspas se relaciona àquilo que é aludido acerca da cultura. Cunha empreende uma diferenciação
analítica entre cultura com aspas e cultura sem aspas pois elas se fundam em princípios diferentes de
inteligibilidade. O sentido interno da cultura não corresponde à “lógica interétnica das ‘culturas’” (2009,
p. 159). Segundo a pesquisadora Ana Caroline A. Oliveira, o interesse da autora ao trazer essa lógica é
entender “como as pessoas fazem para viver ao mesmo tempo na ‘cultura’ e na cultura” (2017, p. 301).
259
“Melquíades”55, que ganhou vida na obra “Cem anos de Solidão” graças ao escritor
Gabriel García Marquez, Rezende afirma que os ciganos “de uma maneira geral
parecem saber, desde sempre, como viver nos interstícios sociais e se adaptar de forma
inovadora, revitalizando tradições locais, intercambiando produtos e informações entre
os diversos territórios inventados e conquistados por toda a terra” (2000, p. 184).
Com base nos dados etnográficos produzidos nesta pesquisa, foi possível
perceber que algumas lideranças ciganas agenciam determinados conceitos e
simbologias que são historicamente associados à cosmologia eurocêntrica para se
afirmar enquanto um grupo de cultura distinta que deseja não apenas ser reconhecido e
respeitado, como também ter autonomia. Um desses conceitos que surgiram em
diferentes momentos no processo de construção político-jurídica do “Estatuto” é
justamente o de “nação”, isto é, a existência de uma “nação cigana”.
“Ser cigano”, portanto, pode ser ao mesmo tempo ter uma origem, fazer parte de
uma família“cigana” e se sentir pertencente a uma “nação”, como transparece no
discurso de Seu Wanderley, liderança da “ANEC”, mas que não necessariamente surge
nas falas de outras representações56. Quem mobiliza o conceito de “nação”, de forma
consciente ou não, está buscando agregar valor à “ciganidade”, uma vez que há um
sentido positivo nele, que está associado à ideia dominante de agrupamento de pessoas
que têm “cultura”, constituindo assim um povo. Ou como diz o jurista Paulo
Bonavides57, “a nação está para o Estado moderno assim como a pólis esteve para o
Estado antigo, o Estado da Antigüidade clássica. A nação é, por um certo ângulo, a pólis
da contemporaneidade” (2008, p. 2004).
Falar em “nação” consiste em uma das formas de resistir às tentativas de reduzir
a existência da coletividade cigana ao não lugar da racionalidade, enquanto um povo
sem “cultura”, ou seja, desprovidos de costumes, conhecimentos e práticas próprias. A
55
Rezende acredita que “os ciganos devam se assemelhar mais àqueles de Gabriel Garcia Marquez, como
o Melquíades de Cem Anos de Solidão, onde os ciganos são apresentados como mercadores de produtos
estrangeiros e informação, intermediários entre o mundo civilizado e os confins semi-habitados do Novo
Mundo”, fazendo um contraponto a “imagem cotidiana do cigano, tido e visto como selvagem (a bem da
verdade, sempre percebido como mau selvagem), sarraceno imoral, ignorante e herege, fascínora e
covarde (2000, p. 88, grifo do autor).
56
Por exemplo, em seis anos de convivência e parcerias com Maria Jane, liderança cigana que atua em
inúmeros conselhos de estado e que é uma das principais interlocutoras desta pesquisa, eu nunca a
presenciei usando a expressão “nação cigana”, mas sim “povo tradicional”.
57
Friso que citei Paulo Bonavides não com o intuito de refletir sua teoria com profundidade, apenas para
ilustrar que falar em “nação cigana” traz um sentido extremamente positivo, sobretudo levando em conta
o pensamento tradicional. De todo modo, uma vez que mencionei este autor, é importante que para ele
“nação”, assim como povo, que não se confundem, é um conceito imaterial, se tratam de “um conceito
espiritual”. Em outra obra, Bonavides defende que “nação” precede ao Estado e diz respeito ao conjunto
de naturais (território, língua, raça), históricos (tradição,costumes, leis e religião) e psicológicos (2012, p.
85).
260
para os povos ciganos de modo geral, são restritos, não cabe todas as lideranças e
representações, e esta condição gera portanto tensionamentos entre aqueles e aquelas
que se sentem legitimados e/ou mais preparados para falarem pelos ciganos.
Por isso, a definição dos critérios para identificar “quem são os ciganos” sempre
irá despertar polêmicas, questionamentos e discordâncias, conforme tratei no tópico
“3.1” deste capítulo. Demonstrei que há basicamente duas lógicas que se conflitam: uma
que pauta critérios mais amplos e outra que defende parâmetros mais restritivos para
caracterizar a “ciganidade”.
Quando falo em “critérios mais amplos” estou me referindo sobretudo à
autodeclaração como mecanismo de validar “quem é cigano ou cigana”. Estou tratando
daqueles que defendem normativas de caracterização da “ciganidade” fundada em
parâmetros que desvinculam o pertencimento étnico ao fator da origem, de ser de uma
família, de ter crescido e integrar uma comunidade cigana. A pesquisa etnográfica
mostrou-me que geralmente são atores sociais que se identificam como ciganos ou
ciganas a partir de ligações espirituais, com base em uma descendência e ancestralidade
longínqua. Ou simplesmente por admirar ou se sentir parte da cultura cigana. Podem
haver também outras justificativas, mas o que eu quero dizer é que todas elas em
alguma medida contribuem para ampliar a possibilidade de mais pessoas pleitearem o
lugar de interlocução com o Estado na esfera pública.
Quando falo em “critérios mais restritivos” estou fazendo alusão àqueles que
sustentam normativas que vinculam à “ciganidade” a um fator “sanguíneo”, ou seja, ter
“sangue cigano”, ser filho de “pai cigano” e “mãe cigano”. E na medida que há um
distanciamento destes preceitos, tenta-se deslegitimar um determinado ator social que
busca ocupar e exercer funções públicas relacionadas direta ou indiretamente à questão
cigana.
Em muitos ambientes onde fiz observação participante, eu presenciei mais de
uma vez situações em que diferentes lideranças ou representações faziam questão de
enfatizar o domínio da “língua cigana” durante seus discursos públicos. Ou seja, além
dos argumentos que elenquei no parágrafo anterior, a mobilização da “língua cigana”
pode ser interpretada enquanto mais um instrumento de poder na luta política em torno
da pauta identitária.
Segundo Rezende,
O caráter manipulativo, estratégico e instrumental da etnicidade fica
evidenciado no processo que transforma a linguagem, meio básico de
comunicação, em um veículo social de organização política dos grupos em
torno do poder e outros recursos sociais. Assim, a linguagem passa a ser
263
58
A nota de repúdio organizada pela “ANEC” e assinada por dezenas de associações manifestando-se
contra um evento que prometia ensinar o romani está disponível no blog da ASPRECCE, que também
subscreveu o documento. Disponível em: <https://asprecce.blogspot.com/>. Acesso em: 18 ago. 2021.
264
sentido, pode não determinar a posição dos sujeitos, mas certamente contribui para a
estruturação de uma hierarquia no contexto das redes de ativismo” (2019, p. 302).
Se ao longo da história as “línguas ciganas” foram acionadas como um
instrumento de organização política destes povos, não há outra forma de enxergar a sua
mobilização no contexto atual da emergência do ativismo cigano também como um
instrumento de resistência, embora ocorra a partir de uma nova roupagem. Não me cabe
essencializar o domínio da “língua” como um fator de gradação da legitimidade política
e da “ciganidade”. Busco, na verdade, compreender como este elemento da língua se
insere nas relações de poder que atravessam as disputas em torno da definição dos
“ciganos”, uma vez que aparece na construção político-jurídica do Estatuto do Cigano.
Entendo que a reivindicação de muitas lideranças pela adoção de um critério
mais rigoroso no PLS 248/2015 para identificar os destinatário deste possível marco
legal não ocorre apenas com o propósito de restringir o número de pessoas performando
como ciganas, e, em consequência, alçar um lugar de representante desta coletividade
na esfera pública. Além disso, parece haver também a intenção de assegurar que
principalmente sejam reconhecidos em termos de composição dos órgãos colegiados,
para o acesso às políticas afirmativas, assim como ser contemplados por editais de
captação de recursos aqueles e aquelas cujo o pertencimento étnico tenha contribuído
para obstaculizar o alcance de bens que são indispensáveis para a reprodução social
digna, como, por exemplo, o trabalho, a saúde, a educação e a moradia. Não se trata de
uma simples resposta ou reação ao aumento do interesse e de pessoas que se identificam
como “ciganas” sem ter vinculação familiar ou sem integrar de fato uma comunidade.
Significa mais uma entre as múltiplas formas de resistência existentes.
Na luta política em que as lideranças e representações ciganas concorrem aos
poucos espaços de interlocução com a burocracia estatal, acaba sendo inevitável haver
essa disputa em torno da “ciganidade”. A aprovação de um marco legal como o
“Estatuto” não será capaz de encerrar essa discussão acerca de “quem são os ciganos”,
ou seja, quais os critérios que devem ser adotados para identificá-los. Mas acima de
tudo, o processo em si do “Estatuto”, que perpassa o Estado na prática legislativa, já
produz repercussões na constituição do “sujeito de direito cigano” no Brasil.
As disputas em torno da “ciganidade”, assim como no âmbito da produção
direito voltado para este povo tradicional é parte e ao mesmo tempo resultado do
“dispositivo cigano”, constantemente atualizado para gerir não apenas tal coletividade,
mas como todo corpo social. A partir da trama do PLS, podemos perceber que além dos
atores institucionais, outros atores sociais integram esses jogos de poder. Na medida que
265
nesse processo legislativo se pauta quem são os ciganos de verdade59, como devem
viver, qual a sua relação com o território, com a educação, não há apenas o interesse em
promover um controle sobre a existência cigana, mas também de construir o sujeito
cigano e a produção dos seus direitos.
***
59
A reivindicação de algumas lideranças acerca da restrição quanto ao acesso às línguas ciganas, assim
como a mobilização do seu domínio para a caracterização da “ciganidade” é uma amostragem que o
“dispositivo cigano” é dinâmico e não se restringe à atuação das classes dominantes, não é apenas
pautado pelos agentes estatais. Aqueles que se identificam como ciganos também operam este dispositivo,
disputam-o com fins de controlar a existência cigana, de pautar o “o que é ser cigano”, sobretudo diante
da abertura no âmbito das políticas públicas voltadas para os povos tradicionais no Brasil. A atualização
do “dispositivo cigano” vai além da pauta do “Estatuto”, mas que não podem ser ignoradas diante do
impacto que a proposição do PLS 248/2015 tem nas discussões públicas sobre a questão cigana na
sociedade.
266
Capítulo 4
“A Capital das Leis”
1
De acordo com a Constituição Federal, “Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I -
emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas
provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções” (meus destaques).
2
Durante o exame de qualificação da tese, a Dra. Mércia Rejane sugeriu que eu não fizesse menções aos
nomes de integrantes do governo federal que ocupam cargos de confiança, devido a possibilidade desta
informação gerar eventuais processos judiciais para mim. Embora tivesse atendido esta recomendação,
concordo com a pesquisadora Ciméa Bevilaqua quando ressaltou a importância o anonimato, no entanto,
pontuou que o “o procedimento habitual de modificar o nome dos sujeitos envolvidos se revela
flagrantemente inócuo: tratando-se de autoridades ou de servidores públicos, a simples menção de seus
cargos e funções é suficiente para identificá-los” (2003, p. 60).
268
3
Há espécies de atos normativos no Brasil, sendo a lei ordinária um dos atos normativos de natureza
primária, que, em regra, versa sobre normas gerais e abstratas. É lei ordinária aquelas que expressamente
a Constituição não exige que a matéria seja abordada por uma “lei complementar”, que exige um quórum
superior para ser aprovado. Trata-se de um critério residual. (CUNHA JÚNIOR, 2019).
4
Conforme o Regimento Interno do Senado: “Art. 71. O Senado terá comissões permanentes e
temporárias (Const., art. 58)”. O Estatuto do Cigano, para ser aprovado, deve passar por três comissões
permanentes, que estão previstas no art. 72, do Regimento Interno do Senado Federal; são os incisos “II”
(Comissão de Assuntos Sociais - CAS); “IV” (Comissão de Educação, Cultura e Esportes - CE) e “VI”
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (BRASIL, 1970).
5
De acordo com o art. 99, inciso I, do Regimento Interno do Senado Federal, à CAE compete opinar
sobre proposições pertinentes aos seguintes assuntos, como por exemplo: “I - aspecto econômico e
financeiro de qualquer matéria que lhe seja submetida por despacho do Presidente, por deliberação do
Plenário, ou por consulta de comissão, e, ainda, quando, em virtude desses aspectos, houver recurso de
decisão terminativa de comissão para o Plenário” (BRASIL, 1970).
269
6
O regimento interno do Senado, por meio do art. 101, inciso I, informa que uma das competências da
CCJC é “- opinar sobre a constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade das matérias que lhe forem
submetidas por deliberação do Plenário, por despacho da Presidência, por consulta de qualquer comissão,
ou quando em virtude desses aspectos houver recurso de decisão terminativa de comissão para o
Plenário;” (BRASIL, 1970).
7
No caso da tramitação do “Estatuto do Cigano”, o Senado Federal cumpre o papel de “Casa iniciadora ”,
pois foi onde iniciou a tramitação da matéria, que será examinada, e que na Câmara de Deputados será
revisada. Segundo o glossário do Congresso Nacional, “Casa iniciadora” corresponde nos sistemas
legislativos bicamerais, “a Casa Legislativa onde se inicia a tramitação de uma proposição passível de
revisão pela outra” (BRASIL, 2020e).
8
Sanção significa “a concordância e anuência do presidente da República com projeto de lei ordinária ou
complementar aprovado pelo Congresso. O prazo para ocorrer a sanção é de 15 dias. Caso o presidente
não sancione o projeto nesse período, este será tido como sancionado tacitamente. Ocorrendo essa
hipótese, o projeto é promulgado pelo presidente da República ou pelo presidente do Senado” (BRASIL,
2020h).
9
“Maioria simples” dependerá do número de parlamentares presentes na sessão em que o projeto de lei
estiver sendo votado. Sendo que para iniciar uma votação, no mínimo, metade dos parlamentares que
compõe a “Casa Legislativa”. Caso estejam presentes 300 Deputados, a maioria simples será de 151
parlamentares. Caso estejam presentes 400 Deputados, a maioria simples será de 201, e assim por diante.
Por outro lado, “maioria absoluta”, exigido para aprovar “leis complementares”, corresponde ao número
inteiro superior à metade do total de integrantes, na Câmara de Deputados é 257 parlamentares, e no
Senado Federal é 41 senadores. É importante ressaltar que o número correspondente à maioria absoluta é
fixo, não varia, enquanto a maioria simples representa um número variável, dependendo da quantidade de
pessoas presentes no dia específico em que ocorre a votação da matéria (CUNHA JÚNIOR, 2019).
270
10
A possibilidade do veto presidencial está prevista no art. 66 da Constituição Federal e nos arts. 104 e
seguintes do Regimento Comum do Congresso Nacional. Veto consiste em “instrumento usado pelo
Presidente da República para recusar a sanção de projeto, no todo ou em parte, sob o argumento de
inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público. O veto poderá ser mantido ou rejeitado pelo
Congresso Nacional, nos termos do Regimento Comum” (BRASIL, 2020j).
11
Segundo o parágrafo 4º, do art. 66, da Constituição Federal: “o veto será apreciado em sessão conjunta,
dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria
absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto” (meu destaque).
12
Por meio do art. 66, parágrafo 7º, da Constituição Federal de 1988, determina-se que: “se a lei não for
promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Presidente da República, nos casos dos § 3º e § 5º, o
Presidente do Senado a promulgará, e, se este não o fizer em igual prazo, caberá ao Vice-Presidente do
Senado fazê-lo” (meu destaque).
271
13
De acordo com o regimento do Senado, “Art. 49. Na distribuição das matérias subordinadas, na forma
do art. 91, à apreciação terminativa das comissões, o Presidente do Senado, quando a proposição tiver seu
mérito vinculado a mais de uma comissão, poderá: I - definir qual a comissão de maior pertinência que
deva sobre ela decidir” (BRASIL, 1970). Ou seja, é a comissão escolhida “de maior pertinência” que terá
“decisão terminativa”, que dispensa a apreciação da matéria pelo Plenário.
14
Segundo informação do próprio website do Senado Federal, decisão terminativa “é aquela tomada por
uma comissão, com valor de uma decisão do Senado. Depois de aprovados pela comissão, alguns projetos
não vão a Plenário, são enviados diretamente à Câmara dos Deputados, encaminhados à sanção,
promulgados ou arquivados. Só serão votados pelo Plenário do Senado se recurso com esse objetivo,
assinado por pelo menos nove senadores, for apresentado ao presidente da Casa. Após a votação do
parecer da comissão, o prazo para a interposição de recurso para a apreciação da matéria no Plenário do
Senado é de cinco dias úteis” (BRASIL, 2020f).
15
De acordo com a Resolução nº 93, de 1970, que instituiu o Regimento Interno do Senado Federal: “Art.
91. Às comissões, no âmbito de suas atribuições, cabe, dispensada a competência do Plenário, nos
termos do art. 58, § 2º, I, da Constituição, discutir e votar: I - projetos de lei ordinária de autoria de
272
produção de uma lei, que tem como destinatária um povo tradicional no Brasil, e, ao
mesmo tempo, como vem se dado a construção político-jurídica do Estatuto do Cigano.
17
Segundo o texto constitucional: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões
permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento
ou no ato de que resultar sua criação. § 2º Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;” (meu destaque).
18
É válido citar como este documento jurídico aborda a convocação das audiências públicas. Vejamos:
“Art. 93. A audiência pública será realizada pela comissão para: I - instruir matéria sob sua apreciação; II
- tratar de assunto de interesse público relevante. § 1º A audiência pública poderá ser realizada por
solicitação de entidade da sociedade civil. § 2º A audiência prevista para o disposto no inciso I poderá ser
dispensada por deliberação da comissão .” (meu destaque).
275
competente abre espaço para que todas as pessoas que possam sofrer os
reflexos dessa decisão tenham oportunidade de se manifestar antes do
desfecho do processo. É através dela que o responsável pela decisão tem
acesso, simultaneamente e em condições de igualdade, às mais variadas
opiniões sobre a matéria debatida em contato direto com os interessados. Tais
opiniões não vinculam a decisão, visto que têm caráter consultivo e a
autoridade, embora não esteja obrigada a segui-las, deve analisá-las segundo
seus critérios. acolhendo-as ou rejeitando-as. (2003, p. 261)
19
Segundo o art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, “interesses ou
direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível,
de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato” (BRASIL, 1990).
276
ano de 2015, dou destaque, neste tópico, à audiência pública do dia 29/05/2018, pois,
além de ter feito observação participante nela, tive acesso a sua gravação e fiz a sua
transcrição completa20.
Entre os anos de 2015 e 2018, até a realização da audiência pública do dia
29/05/2018, houve duas tentativas de convocatória de reuniões desta natureza, que
foram requeridas no âmbito da tramitação do PLS 248/2015, porém sem sucesso. Assim
como ocorre num processo legislativo como um todo, a requisição, aprovação e a
realização de audiência pública é um jogo que envolve uma série de atos e negociações.
Após dois requerimentos solicitando a realização de audiência pública sobre o
“Estatuto do Cigano”, que não foram concretizados, finalmente, em 29/05/2018,
realizou-se tal modalidade de reunião pública. Ao ter acesso e analisar os documentos
oficiais, observei que se aprovou a solicitação desta audiência pública na CDH, em
09/05/2018, por meio do “Requerimento CDH nº 86/2018”, de autoria Senador Paulo
Paim, no mesmo dia que o “Estatuto Cigano” foi deliberado na CAS, penúltima
comissão em que o PLS 248/2015 precisa tramitar no Senado Federal. Neste dia,
ocorreu a “41ª Reunião Extraordinária da Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa”, sendo que o “RDH nº 86/2018” constou nos registros escritos como
“extrapauta”. O que significa que a requisição para realizar audiência sobre o “Estatuto
do Cigano” não estava incluída na “pauta do dia”.
Além disso, a reunião extraordinária em que o Requerimento CDH nº 86/2018
foi aprovado estava sendo presidida pelo próprio autor do requerimento, isto é, o
Senador Paulo Paim, então vice-presidente da CDH, tendo em vista que a presidenta, a
Senadora Regina Souza, do seu mesmo partido, não estava presente neste dia.
O Requerimento CDH nº 86/2018 expõe as razões para a realização da audiência
pública. Vejamos abaixo o conteúdo do documento:
Com fundamento no disposto no art. 93, inciso II, do Regimento Interno do
Senado Federal, requeiro a realização de um ciclo de audiências públicas,
nesta Comissão, para debater “O Estatuto do Cigano”.
O projeto de minha autoria, foi construído pela Associação Nacional das
Etnias Ciganas (ANEC), nos moldes do Estatuto da Igualdade Racial, como
uma forma de, enfim e definitivamente, assegurar a igualdade de
oportunidades à população cigana residente no Brasil.
O projeto abrange um catálogo de direitos voltado justamente para a solução
dos problemas vivenciados particularmente por tal população. No mês de
abril, a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do
Ministério Público Federal (6CCR/MPF) aprovou o projeto da ação
coordenada “O MPF na afirmação dos direitos dos povos ciganos”, a ser
realizada no mês de maio. A ação, que integra o calendário do projeto MPF
20
Ressalto que, entre os anos de 2017 e 2020, participei audiências públicas realizadas pelo MPF e outros
eventos desta natureza no Congresso Nacional, que tiveram a participação de lideranças ciganas, mas que
versaram sobre temáticas tangenciais, não relacionadas diretamente às políticas públicas específicas
direcionadas aos “ciganos” ou ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano”.
277
atividades. A citação acima, por exemplo, não menciona a presença de outras lideranças
ciganas que igualmente participaram da audiência, inclusive por meio pronunciamentos
públicos - pessoas que se posicionaram, todavia, a partir do “plenário” e não da “mesa”
do espaço onde se realizou a reunião pública.
Como ficou evidente ao longo da atividade do dia 29/05/2018, as pessoas que
integraram a “mesa” foram convidadas e escolhidas por “Seu Wanderley”, exceto Mio
Vacite. Digo isso porque percebi que esta liderança foi chamada, de última hora, para
sentar na mesa da audiência pública do CDH. Posso afirmar que este convite se deu
devido a um incidente que ocorreu no dia anterior, na atividade do MPF, que, na minha
interpretação, acabou influenciando em parte da dinâmica do evento realizado no
Senado21. Em um discurso realizado na noite anterior, Mio Vacite dirigiu,
expressamente, uma crítica à metodologia da audiência pública do MPF, e
indiretamente, aos seus idealizadores22. Vejamos:
Mio Vacite: [...] colocaram um jovem para sentar no lugar de uma pessoa que se eu
tivesse que sair daqui escolheria o cigano mais velho. Omar, desculpe, não é nada
pessoal [...] teria que ter oferecido a mim ou ao Jorge, que está sentado ali (apontando para
a plateia). Então aqui não está fazendo a cabeça cigana, o pensamento cigano, não interessa
se é por branco, preto ou amarelo [...] Eu nunca fui tão discriminado como num lugar
público, num lugar democrático, com pessoas que falam da minha cultura, se apossam da
minha cultura, e tem cigano de identidade duvidosa [...]. (TV MPF, 2018, meu destaque).
21
Como se pode perceber ao assistir as gravações da audiência pública do dia 29/05/2018, Mio Vacite
sentou-se na ponta esquerda da mesa do auditório da CDH, que pareceu ser pequena para acomodar a
todos.
22
Esta situação foi uma das poucas vezes em que eu presenciei uma liderança cigana manifestar
publicamente uma discordância com as autoridades que atuam no Estado. Até então, notava que as
lideranças ciganas nos espaços de interação com o Estado buscavam sempre que possível serem cordiais,
até mesmo quando se estava dirigindo alguma reivindicação ou queixa envolvendo violações e abusos de
direitos.
279
Gluckman fez ao estudar a inauguração de uma ponte na África do Sul. Nas palavras
deste autor:
[...] Quando se estuda um evento como parte do campo da Sociologia, é
conveniente tratá-lo como uma situação social. Portanto, uma situação social
é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de
uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras
ocasiões. Desta forma, a análise revela o sistema de relações subjacente
entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio
ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade. (1987, p.
238, grifo do autor)
Senador Paulo Paim: [...] E está aqui também o representante da nossa querida Senadora
Regina Souza, que eu peço uma salva de palmas para a nossa presidenta (da CDH), que por
estar aí nas outras comissões, todas correndo naturalmente. E como a gente adota aqui
uma pratica de quem entra com o requerimento que preside, uma prática que eu
adotava quando eu era presidente e que a nossa querida presidenta também adota24,
mas ele deve passar aqui depois para dar todo apoio aos senhores e senhora.
[...]
Então vamos de imediato. Wanderley Rocha, representante da Associação Nacional das
Etnias Ciganas, o espaço é dez minutos, quem precisar usa dez, quem quiser usar menos,
abre mais o espaço para o debate aberto. Mas o tradicional é 10 minutos para cada um,
com uma tolerância que eu vou controlando.
[...]
Agora eu passo a palavra a representante da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, a líder desse movimento, e por isso foi indicada como presidente, a
Natasha Barbosa25. Eu fui o relator da criação da SEPPIR. É com muita satisfação que eu
passo a palavra, pelo tempo necessário, para sua exposição.
[...]
(ao interromper umas das pessoas que falavam do plenário) Eu só peço pessoal que de
forma objetiva respeitem o tempo, porque a mesa vai falar toda de novo nas
considerações finais e nós queremos receber dentro do possível as contribuições.
[...]
Já está conosco a Senadora Fatima Bezerra26, é uma senadora comprometida com as
políticas e causas humanitárias. Queria dar uma salva de palmas para ela, e como a
prioridade de fala é sempre dos deputados e senadores, eu passo a palavra para a
senadora.
[...]
Calma, quem faz encaminhamento sou eu (interrompendo mais uma vez a mesma pessoa
do plenário que buscou interferir na dinâmica da audiência). Vocês, no plenário,
naturalmente, dão a sua contribuição como todos deram, tranquilamente, até o
momento. O problema é que quando eu abro a fala, já falaram 8 no plenário, com
mais 4 que é a mesa, isso não quer dizer que eu não possa abrir um minuto ou dois a
mais pra cada um, mas tem que ter um tempo para que a gente receba as
contribuições, encaminhe, para depois passar para o Hélio Jose. Eu não quero só que a
gente entre numa repetição. Eu peco que aquilo que eu puder abrir, vou abrir o tempo
fazendo uma consideração rápida, que sejam objetivos nas linhas das propostas para o
estatuto. Agora eu pergunto em primeiro lugar, porque isso pra mim é pra balizar o
trabalho. Se a mesa se sentiu contemplada pelas falas que já fizeram, eu vou abrir para
mais três pessoas no plenário e daí Natasha, que responde pela SEPPIR, fará o
encerramento. A mesa se sente contemplada? (aplausos). (TV SENADO, 2018c,
destaques do autor)
Um dos pontos que mais me chamaram a atenção nesta atividade, assim como
em outras audiências públicas que já participei, é a questão do controle do tempo de fala
das pessoas que estão participando. Notei que a pessoa que preside a audiência pública,
na prática, apenas impõe limites para os discursos dos participantes que não estão
ligadas à burocracia estatal. Isto é, os políticos eleitos, os servidores públicos de algum
24
Esta afirmação dá a entender que quem deveria presidir a audiência pública seria o presidente em
exercício da Comissão, no caso da CDH, a Senadora Regina Sousa e não o Senador Paulo Paim. Contudo,
friso que não encontrei no Regimento Interno nenhuma referência a esta normativa, sendo, portanto, uma
prática costumeira do Senado, que, pelo visto, é fluída.
25
Esta representante do governo federal chegou no auditório do CDH em torno de trinta e cinco minutos
após o início da audiência pública. Servidores da comissão providenciaram, imediatamente, uma cadeira
para que Natasha Barbosa pudesse sentar, posicionando ao lado esquerdo do Senador Paulo Paim.
26
Esta parlamentar integrou-se à audiência pública aproximadamente quando já estava na metade, sendo a
única, além do presidente da audiência pública, a participar desta atividade. Segundo o parágrafo terceiro,
do art. 93, do Regimento Interno do Senado Federal: “No dia previamente designado, a comissão poderá
realizar audiência pública com a presença de, no mínimo, 2 (dois) de seus membros”.
281
órgão que tenha sido convidado ou os representantes do governo, estes podem discursar
“o tempo que achar necessário”, da mesma forma que o presidente da audiência pública.
As demais pessoas, que seriam os representantes da sociedade civil, como, por exemplo,
os destinatários do projeto de lei em discussão, haveria limites. Entre os convidados, os
que se posicionaram na mesa da “audiência”, tinham mais tempo de fala27, enquanto os
que estavam participando sentados do “plenário”, tinham menos tempo. Por isso,
interpreto essa normativa que limita e atribui distintamente o tempo de fala, como uma
forma de hierarquizar, indiretamente, os participantes da audiência pública, sendo que a
diferença entre estas pessoas não se limita ao fato de estar na “mesa” ou no plenário,
mas também a função ou cargo que a pessoa desempenha.
Estas considerações que fiz no parágrafo anterior dialogam com a observação
dos antropólogos Ciméa Bevilaqua e Piero de Camargo Leirner quando afirmaram que
as “pesquisas etnográficas recentes têm revelado como nossas instituições
‘hierarquizam’, 'individualizam’ ou ‘pessoalizam’ relações que, formalmente (ou ao
menos em princípio), ’deveriam‘ ocorrer de outra forma” (2000, p. 125). Ou seja,
durante a audiência pública do dia 29/05/2018, as dinâmicas e as normativas que regem
esta reunião promoveram tanto autorizações, como desautorizações em relação às
participações, sobretudo das lideranças ciganas. Sendo, portanto, os usos e o controle
do tempo um mecanismo de poder
Além disso, devo pontuar que, ao longo dos seus discursos, o Senador Paulo
Paim esclareceu para as pessoas que estavam acompanhando a reunião pública, no
auditório do CDH ou por meio da transmissão promovida pela TV Senado, quais seriam
as finalidades desta audiência pública para a tramitação do PLS nº 248/2015, assim
como compartilhou também questões gerais do processo legislativo. Vejamos alguns
trechos:
Senador Paulo Paim: [...] (Natasha Barbosa) fez uma bela exposição, mostrando que
conhece o tema, colocando a SEPPIR totalmente à disposição, para dialogar na
construção final do estatuto28. Antes de eu passar para o plenário, eu gostaria de dizer
27
Nenhum dos participantes da audiência pública do dia 29/05/2018 ultrapassou o limite dos dez minutos,
conforme foi estabelecido pelo Senador Paulo Paim. Por sua vez, as pessoas do plenário, na qual me
incluo, tinham o direito de se pronunciar por 3 minutos. A maioria dos participantes do plenário, por sua
vez, ultrapassou esta marca, havendo prorrogações de um minuto. Recordo-me que havia no painel
eletrônico que fica no auditório que exibia a contagem regressiva, sinalizando o tempo de cada discurso
apenas das pessoas do plenário.
28
Notei durante a audiência pública que o Senador Paulo Paim foi extremamente receptivo e cuidadoso
com a representante do governo federal. O parlamentar incentivou que os participantes da audiência
pública aplaudissem a entrada de Natasha Barbosa na audiência pública, quando esta sentou na mesa do
evento, e também nas duas ocasiões em que ela fez seu discurso. Além disso, percebi que a expressão
facial do Senador Paulo Paim mudou durante os discursos de Natasha Barbosa, com sorrisos e
direcionando olhares de ternura. Essas reações marcaram-me pois Natasha Barbosa estava representando
o governo de Michel Temer que substituiu a gestão de Dilma Rousseff, do mesmo partido do Senador
Paulo Paim, mudança que ocorreu por meio de um processo de impeachment que muitos integrantes do
282
que o Senador Hélio José não está aqui mas eu li que ele teve que fazer uma viagem
para o exterior, está voltando devido à crise que o pais está passando (greve dos
caminhoneiros), e que eu fiquei de receber qualquer tipo de contribuição para
entregar para ele. E dizer que a possibilidade votar com uma certa rapidez é possível,
foi muito tranquilo nas duas comissões. Eu falava com ele, na semana passada, e ele
precisa saber se tem alguma coisa a mais que vocês entendam que deva ser
ajustado. Aí vocês dão uma contribuição, que eu entrego para ele, e nós a partir daí
podemos até marcar uma data de votação desde que haja um entendimento
pessoal. Eu sempre lembro que é preciso construir um amplo acordo para se tornar
realidade o projeto, né? Se nós chegarmos divididos, aí não passa, nem no plenário e
não passa também lá na câmara dos deputados. Então seria necessário que a gente
trabalhasse com muito carinho, com muito cuidado para a redação final. Se nós
quiséssemos votar essa matéria até hoje, poderia votar, mas não tem as últimas
contribuições da sociedade, não é? Nós queremos marcar um dia para a votação, depois
da construção final com o relator, que já vai estar aqui a partir deste final de semana, eu
creio que ele está voltando amanhã, no mais tardar, e eu passaria para ele algumas
contribuições que vocês deixarem aqui. Tem dois escritos do plenário.
[...]
Então, vamos acelerar o máximo, que é importante a redação final, que na redação final
haja uma concordância, por quê? Se for para a Câmara e a Câmara emendar tudo de
novo, volta para cá de novo, e pode passar um, dois ou três anos. Teve um estatuto
desses que eu demorei 15 anos para aprovar. 15! (TV SENADO, 2018c)
PT, assim como outras forças de esquerda do Brasil, classificou como “golpe
jurídico-parlamentar-midiático”. Voltarei falar sobre esta questão no tópico “5.1.3”.
29
No dia anterior, na audiência pública do MPF, não fiz nenhum pronunciamento, preferi apenas observar
e ouvir. Havia decidido fazer o mesmo na atividade do Senado, todavia, Maria Jane, liderança que eu
estava acompanhando e outras pessoas no plenário, insistiram para que também me posicionasse devido a
minha experiência com os povos ciganos. Então, fiz um discurso que durou aproximadamente 5 minutos.
30
Ao longo do primeiro, segundo e terceiro capítulo, selecionei trechos dos discursos das lideranças
ciganas presentes nesta audiência pública, assim como em outras, para integrar a minha análise sobre
como tem se dado a construção da condição político jurídica dos ciganos no Brasil.
283
o dia 12 já31. Então não dá pra acreditar que vocês não deixarão para última semana, não
vai cair no risco. Eu prefiro, dar como limite, até o dia 15, 20 de junho, pra chegar na
redação final, via relator.
Eu tô tomando aqui a liberdade de falar aqui na questão do relator porque ele pediu
para que eu justificasse, que eu desse os encaminhamentos adequados. Claro, a
palavra final é dele na questão da redação, mas ele vai submeter ao plenário da
comissão e o plenário da comissão, porque é terminativa aqui, tem que ter coro
naquele painel ali, tem que ter no mínimo 11 presente, pra a gente votar a matéria32.
Esse é o apelo que eu faço a vocês, se tiverem alguma contribuição, alguma
discordância, encaminhe para a secretaria da comissão ou para o gabinete do senador
Hélio José. Vamos centralizar aqui na comissão, aqui as propostas, e daqui eles
encaminham para Hélio Jose, mas aqui, de fácil acesso, pode entregar por escrito. O
senador deverá fazer uma reunião e a SEPPIR, importante a participação da SEPPIR
naturalmente, pra ver se dar para ajustar.
Já passou em duas comissões, por unanimidade, não vai ser aqui na CDH que nós
vamos travar (aplausos), aqui não pode. Então, pessoal, assim encerramos. (TV SENADO,
2018c)
31
De acordo com o art. 57, da Constituição Federal: “O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na
Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro”. Portanto,
formalmente, o recesso parlamentar do meio do ano envolve o período de 18 de julho a 31 de julho.
32
As comissões permanentes do Senado são compostas por 20 parlamentares, portanto, 11 senadores
representam a maioria simples deste quantitativo, sendo o quórum mínimo para que as votações ocorram
nas reuniões realizadas para examinar os projetos de lei.
285
sancionar o projeto de lei, após ser aprovado pelo Congresso Nacional, e então estas
interlocuções com integrantes do governo federal podem contribuir para a decisão do
Presidente da República em exercício. Segundo, pelo fato de o Poder Executivo ter
como uma das suas principais atribuições criar, desenvolver e executar políticas
públicas, ou seja, efetivar os direitos que estão afirmados numa lei que integra o
ordenamento jurídico brasileiro. Demanda-se, assim, um mínimo diálogo entre os
Poderes, Legislativo e Executivo, na produção de uma nova lei.
O Senador Paulo Paim também destacou, em seu discurso final, que é impossível
haver uma unanimidade, ou seja, um pleno consenso entre as entidades e os
movimentos que são destinatários do projeto de lei, no caso, o “Estatuto do Cigano”.
Por isso, este parlamentar fez um apelo para que as possíveis divergências sejam
resolvidas e que caso haja alguma contribuição para a matéria do projeto, que fosse
enviado até “ainda no mês de junho”.
Embora a fala final do Senador Paulo Paim tenha sido direcionada às lideranças
ciganas, sobre a busca de um “consenso”, a pesquisa de campo possibilitou-me
perceber que as lideranças ciganas presentes nesta audiência pública do dia 29/05/2018
manifestam-se, publicamente, favorável ao PLS 248/2015. As divergências existentes,
em relação a este projeto, não aparecem, de forma explícita, nas atividades realizadas no
Congresso.
Devo destacar que as manifestações contrárias ao projeto proposto com a
intermediação da ANEC ocorrem em outros espaços, por diferentes lideranças ciganas.
Em geral, estas representações questionam a abrangência do projeto em relação aos
diferentes segmentos étnicos, a capacidade e a legitimidade da associação proponente,
no sentido de estar à frente das negociações. Pelo que percebo, na maioria das críticas
que tive acesso, pouco se fala no conteúdo em si do projeto, o que me leva a interpretar
que esses embates se dão mais por haver uma disputa de protagonismo. Além disso,
reunindo uma série de informações que me deparei por meio da pesquisa etnográfica,
avalio que algumas movimentações contrárias ao projeto em tela podem ter partido e
sido articuladas por pessoas que integraram o governo federal a partir de 2019. Ter
levantado essa hipótese demandou de mim uma análise mais apurada, que reservei para
o tópico “4.2”, segunda parte deste capítulo, em que trato das disputas políticas que
perpassam a tramitação do PLS 248/2015.
As audiências públicas do Congresso Nacional podem ter, simultaneamente,
natureza consultiva e encaminhativa. Os parlamentares responsáveis por essa
modalidade de reunião pública, ou nela envolvidos, têm a atribuição de selecionar os
286
33
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese.
287
capítulo. Este documento está dividido em tópicos, entre eles está este: “necessidade de
consulta aos povos ciganos”.
Ao final do documento, o MPF apresentou seis sugestões para a tramitação do
projeto de lei, entre elas: “A consulta aos povos ciganos, em obediência ao art. 6ª da
Convenção nº 169 da OIT” (MPF, 2018, p. 18). Segundo este documento, “o projeto de
lei enquadra-se, sob todos os aspectos, entre as normas passíveis de consulta.
Considera-se, assim, que a realização da consulta livre, prévia e informada é requisito
imprescindível para a validade da norma.” (2018, p. 8).
De acordo com o artigo 6º da Convenção nº 169 da OIT, que foi ratificada pelo
Brasil por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, os governos, ao aplicar as
disposições exigidas neste tratado internacional, deverão:
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados
e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez
que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis
de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam
participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da
população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas
políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e
iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos
necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das
medidas propostas. (BRASIL, 2004, meu destaque)
34
“Enunciado, em termos jurídicos, assemelha-se à súmula. A súmula de um Tribunal ou uma turma
consiste no enunciado pelo qual este inscreve ou sintetiza o seu entendimento sobre questões que
apresentem controvérsias na jurisprudência” (MPPR, 2010).
288
direito à consulta também se encontra previsto na Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígena”, previsto no artigo 19. Segundo este relatório técnico,
“o disposto nesta Declaração também deve ser aplicado, analogicamente, aos povos
ciganos. Por ela, além de se exigir a boa-fé para aplicação de medidas legislativas [...],
há o registro expresso de que o consentimento deve ser livre, prévio e informado”
(MPF, 2018, p .8). Por fim, o tópico da Nota “necessidade de consulta aos povos
ciganos” é encerrado com um trecho de um texto publicado, em 2016, pela procuradora
da República Débora Duprat no portal “Repórter Brasil”:
A Consulta também só se qualifica como tal se for compreendido o seu
propósito em toda a sua extensão. Daí o imperativo de que seja culturalmente
situada. A primeira consequência é de que não há um modelo único de
consulta; ao contrário, ela se desenvolve de acordo com as peculiaridades
de cada grupo. (2016, meu destaque)
A referida Nota Técnica do MPF não informa quais são as peculiaridades dos
“povos ciganos” que devem ser levadas em consideração ao formular e efetivar a
consulta, tendo em vista que não há “um modelo único de consulta”. Percebe-se, assim,
que a “Nota Técnica”, somados aos enunciados da 6ª Câmara, suscita uma fronteira de
natureza conceitual: o que é “consulta” e o que “não é uma consulta”. Para o MPF, os
procedimentos realizados ao longo da tramitação do projeto de lei entre os anos de 2015
e 2018 estão fora da fronteira que o órgão entende por “consulta”.
Como para mim não ficou claro, exatamente, como deveria ser realizado a
consulta no caso do processo legislativo do “Estatuto do Cigano”, como exige o MPF,
busquei, dessa forma, sanar as minhas indagações conversando diretamente com a
servidora pública do órgão que atuou na elaboração da referida “Nota Técnica”. Dirigi a
seguinte pergunta à Laura Gabriela: “qual o protocolo de consulta que o MPF defende
para o processo do Estatuto? Há algum documento escrito que informa como deve
ocorrer a consulta?”. Obtive esta resposta, por escrito:
Laura Gabriela: A 6a Câmara não chegou a avançar nessa discussão, pelo menos não
enquanto eu estive por lá. Não tínhamos conhecimento também de outras experiências de
consulta a comunidades ciganas. Apenas estabeleceu que a consulta deveria seguir os
parâmetros da Convenção 169, ou seja, ser livre, prévia e informada, e ter uma
representatividade significativa nas comunidades. (Meu acervo, meu destaque)
A resposta dada pela servidora do MPF deixou evidente que não há um modelo
específico para a realização da “consulta” e nem uma quantidade de comunidades que
devem se pronunciar. Ou seja, o que se aponta são os princípios que devem reger a
consulta, isto é, “ser livre, prévia e informada”, além de “ter uma representatividade
significativa”. Tratam-se de parâmetros e conceitos abertos, que são ponderados e que
podem variar a depender do intérprete.
289
35
Este documento encontra-se no anexo A.
36
O currículo lattes do pesquisador Felipe Berocan Veiga informa que o próprio foi o organizador do
evento, juntamente com “Igor Shimura”, relacionado à UEM e ASAIC, e que também teve como
participantes : ”Wanderley da Rocha (ANEC), Marcelo Barbosa Almeida (ASAIC), Paulo Fernando Melo
(Câmara dos Deputados) e Zuleica Iovanovitch Torsani”. Disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/3438944499886878>. Acesso em: 06 ago. 2020.
292
de março de 2020 o distanciamento social como um das medidas restritivas para mitigar
a disseminação do vírus.
Em relação ao segundo desafio que elenquei acima, há um consenso entre os
atores do MPF e das assessorias dos Senadores envolvidos na tramitação quanto à
impossibilidade da “consulta” envolver todos os ciganos que vivem no Brasil. O que se
busca é envolver uma quantidade significativa de “comunidades” e lideranças ciganas,
e promover esta articulação é um dos propósitos do grupo criado em outubro de 2020. É
importante repetir, conforme foi sintetizado em documento elaborado pelo MPF, “que a
discussão que ocorre no grupo ainda não é considerada a consulta, para fins de
aprovação do Estatuto” e que “além de promover a discussão e disseminação do texto
do projeto de lei, o grupo pretende, ainda, elaborar e aprovar um Protocolo de Consulta
aos Povos Ciganos, que detalhe o procedimento de consulta a esses povos, para fins de
aprovação do PLS 248/2015” (MPF, 2020).
Diante da complexidade desta questão, a 6ª Câmara da PGR criou um Grupo de
Trabalho, em novembro de 2020, composto por servidores do órgão para “auxiliar na
consulta”, especialmente no “protocolo”. Como há uma preocupação em relação ao
alcance deste processo de consulta, a servidora Laura Gabriela, no mês de janeiro de
2021, enviou a seguinte mensagem para os participantes do grupo:
Boa tarde,
Eu sou Carla, trabalho no Ministério Público Federal.
A pedido do Dr. Luciano Mariz Maia, estou coletando dados das pessoas e
comunidades ciganas participantes do grupo para dar subsídio ao trabalho do
GT do MPF que auxiliará o Senado Federal na consulta.
Para tanto, solicito de V. Sa. os seguintes dados:
Nome:
RG:
CPF:
Etnia:
Comunidade:
Número de integrantes na comunidade:
Município/Estado:
Associação a que está filiado (se houver): (Acervo próprio)37
37
Esta mensagem foi encaminhada também para mim, mas, anteriormente, Laura Gabriela enviou-me a
seguinte mensagem de texto: “Quero falar com você sobre a consulta prévia aos povos ciganos. No final
do ano de 2020, o Dr. Luciano me pediu para fazer um levantamento das pessoas que estão no grupo e de
suas comunidades, para auxiliar o trabalho do GT do MPF que auxiliará na consulta. Fiz uma tabela para
inserir os dados, que compartilho com você, para ver sua opinião sobre a tabela em si e sobre uma
maneira de colher os dados.No ano passado ele chegou a enviar uma mensagem para o grupo, pedindo
para as pessoas me enviarem os dados, mas poucos responderam. O fim do ano foi bem complicado para
mim e eu interrompi o trabalho, mas quero retomar o levantamento, e penso em enviar para as pessoas do
grupo a seguinte mensagem. Quero sua opinião e ajuda, para ver quem são as pessoas que eu posso
enviar, por quem começar, etc. A princípio minha ideia é enviar para todos os que estão no grupo do
Estatuto”. Em resposta, enviei o levantamento pessoal que fiz de quem estava participando do grupo,
informando os estados e as cidades de origem, assim como qual segmento étnico pertencia.
294
4.1.3 - Os assessores
38
Na palavras do autor, “o objeto da tese é a política; o locus de pesquisa, o Congresso Nacional,
particularmente a Câmara dos Deputados. Ela contém duas hipóteses. A primeira, etnográfica, é que a
política brasileira engendra e, simultaneamente, se conforma num sistema de trocas, com propriedades
específicas, sui generis. A segunda, metodológica, é que o modelo da linguagem serve como instrumento
heurístico para descrever a política” (ABREU, 2000, p. 3).
39
“O Minotauro é um ser mítico, e o mito, como uma metáfora, pode evocar várias imagens ao longo
deste texto. O plural também tem um sentido: se o Congresso Nacional, na sua distribuição espacial,
295
faz muito sentido para mim que já estive algumas dezenas de vezes no Congresso. De
fato trata-se de uma mega construção, com dezenas de guaritas com detectores de
metais, corredores, escadas, auditórios, copas, recepções e escritórios. Além de haver
uma intensa movimentação de pessoas, entre assessores, parlamentares, representantes
de ONGs ou movimentos sociais, jornalistas, pessoas em geral que estão naquele espaço
para acompanhar alguma votação, participar de audiência pública ou alguma solenidade,
acessar os gabinetes dos parlamentares etc.
O Congresso Nacional está situado na Praça dos Poderes, o Senado fica na
semiesfera à esquerda, enquanto a Câmara à direita, sendo que entre elas há duas torres
com os escritórios de alguns Deputados e Senadores que estão em exercício. Por
exemplo, o gabinete do Senador Paulo Paim fica no 22º andar da torre à direita, que está
entre os maiores escritórios do Poder Legislativo Federal.
Minha ida ao Senado ocorreu por um motivo: buscar respostas para indagações
que não poderiam ser respondidas apenas analisando os documentos escritos, as
reportagens e os materiais audiovisuais disponibilizados pelas agências oficiais de
comunicação das Casas legislativas. Fiz inúmeras tentativas, em 2019, para tentar
marcar uma entrevista com o Senador Paulo Paim, sem sucesso. Como advertiu a
antropóloga Laura Nader, sobre fazer pesquisa “para cima”, que envolve também as
práticas estatais, “o obstáculo mais comum é fraseado em termos de acesso. Os
poderosos estão fora de alcance em vários planos diferentes: eles não querem ser
estudados; é perigoso estudá-los; eles são pessoas ocupadas; eles não estão todos em um
só lugar, e assim por diante” (2020, p. 346).
Então, devido a este “obstáculo”, meu orientador sugeriu-me entrevistar os
assessores dos parlamentares envolvidos com a tramitação do “Estatuto” e alegou que
poderia ser igualmente uma fonte valiosa de dados, pois estas pessoas têm, talvez, mais
acesso às informações dos bastidores e dos detalhes da tramitação que os próprios
Senadores.
sugere a imagem do labirinto, ao chegar ao centro, após escapar de todos os perigos reais ou imaginários,
não descobriremos uma recompensa, um velo que desvele os caminhos tortuosos do poder, mas um outro
labirinto” (ABREU, 2000, p. 52).
296
Ao longo do ano de 2019, mantive o contato com Margarida Braga40, uma das
assessoras do Paulo Paim, via whatsapp, todavia não era a pessoa do gabinete que
acompanhava de “perto” a tramitação do “Estatuto”. Por meio dela, consegui o contato
do assessor responsável pelo PLS 248/2015, a quem chamarei de Tiago Pacheco41.
Enviei algumas mensagens para ele, entre os meses de agosto e dezembro de 2019,
contudo, não obtive nenhum retorno. Mesmo assim não desisti. Minha alternativa foi ir
ao próprio Senado, em fevereiro de 2020, e lá mesmo ligar para o telefone fixo do
gabinete, perguntando se tal assessor se encontrava e se estava disponível para
conversar rapidamente, solicitação que fiz sem muitas cerimônias. E dessa forma
consegui, finalmente, conversar com Tiago Pacheco. A ligação ocorreu às 11:00 horas,
do dia 18/02/2020, e marcamos para nos encontrar logo em seguida, às 14:30.
Para chegar ao gabinete, passei por pelo menos 4 revistas com detectores de
metais e em cada uma dessas guaritas eu precisava novamente me identificar,
apresentando meus documentos. Cheguei ao gabinete no horário combinado e conversei
com Tiago Pacheco aproximadamente por uma hora, em uma sala reservada. Não foi
possível gravar nosso diálogo, mas na primeira oportunidade que tive anotei tudo que
ouvi. As principais perguntas que fiz foram as seguintes: por que não houve nenhuma
deliberação acerca do projeto entre os anos de 2015 e 2017? O que aconteceu neste
período? Por quais razões o PLS 248/2015 ainda não foi votado na CDH, uma vez que o
Senador Telmário Mota, relator do projeto, já havia apresentado seu relatório
legislativo, faltando apenas incluí-lo na pauta da comissão e votá-lo? O que levou o
“Estatuto do Cigano” ser retirado de pauta no dia 12/02/2020, data em que estava
marcada para ocorrer a votação do PLS na CDH, em “decisão terminativa”?
Tentando, de alguma forma se justificar, por não poder me responder todas as
indagações, o Tiago Pacheco, primeiramente, afirmou que acompanha o projeto desde
de 2017, quando passou a integrar a equipe de Paulo Paim como assessor, logo, não
teria informações anteriores a esta data. Em seguida, enquanto fazia consultas ao site do
40
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese, tendo em vista
também que algumas informações que compartilho na tese possa comprometê-la. Todavia, ressalto que
esta assessora parlamentar, que acessei por conta de amigos em comum que ambos são próximos, foi a
mais gentil e disposta a compartilhar informações entre os assessores que eu conheci no Congresso
Nacional. Todas as perguntas que a dirigi foram respondidas, além de ter sido uma pessoa fundamental
para que eu pudesse acessar fisicamente o gabinete do Senador Paulo Paim, e também por ter me passado
o contato de outros assessores que eu poderia conversar sobre o “Estatuto do Cigano”, do MPF e do
Senado.
41
Adotei um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese. Outra razão
que justifica o não uso do nome real do assessor em tela é pelo fato deste não ter autorizado a gravação do
nosso diálogo. Comentei com meu orientador sobre esta recusa, que me tranquilizou alegando que talvez
tenha sido melhor não ter havido gravação, uma vez que poderia comprometer as informações que eu
estava buscando, além de nos deixar mais à vontade durante o nosso diálogo.
297
partidos, que não necessariamente estão alinhados ao PT, pode ter, de alguma forma,
comprometido o andamento do processo do “Estatuto”.
Sobre o Senador Hélio José, primeiro relator do projeto, que aprovou os
relatórios legislativos na CE e CAS, o assessor destacou que o Senador Paulo Paim
sempre teve uma relação “muito boa” com este parlamentar, embora fosse do “MDB”,
entre os anos de 2016 e 2017, partido que trabalhou para que o impeachment fosse
aprovado e que, inclusive, teve o voto favorável deste Senador. Porém, Tiago Pacheco
fez questão de ressaltar que o Senador Paulo Paim conseguiu “puxá-lo para o seu lado”
na votação contra a “Reforma Trabalhista”42, que ocorreu em 2017. Resumindo, o
assessor quis dizer que apesar das diferenças partidárias e do cenário político instável, o
Senador Hélio José sempre trabalhou para que a tramitação do “Estatuto do Cigano”
avançasse.
No caso do segundo relator do projeto, o Senador Telmário Mota (PROS/RR),
que substituiu Hélio José na relatoria do PLS 248/2015 na CDH, a partir de fevereiro de
2019, o assessor Tiago Pacheco também ponderou que não avaliava que as eventuais
diferenças políticas com o Senador Paulo Paim atrapalhassem a aprovação do Estatuto,
pelo contrário, que o parlamentar apresentou um relatório legislativo favorável ao
projeto de lei e que mantém um bom diálogo, já que ambos compõem o mesmo “bloco
parlamentar” no Senado43. Porém, este assessor ressaltou que embora no Senado Federal
o partido de Telmario Mota, o PROS, fosse formalmente aliado do PT, no seu estado de
origem, em Roraima, é base aliada do presidente Jair Bolsonaro.
Por fim, encerrei a conversa com Tiago Pacheco abordando o fato do “Estatuto
do Cigano” ter sido retirado de pauta quando seria votado no CDH no dia 12/02/2020.
Este assessor alegou não saber informar exatamente quais as razões para o PLS ter sido
“retirado de pauta”, não mencionando, por exemplo, a questão da “consulta”.
Entretanto, apontou uma possível causa. Segundo ele, às vezes um projeto de lei é
retirado da pauta quando o relator ou o autor do projeto de lei avalia que não há
“quórum” ou um “cenário favorável”, naquele momento, para aprovar a matéria, sendo,
assim, retirado do pleito para evitar uma derrota. Trata-se de uma especulação, não
significa que tenha de fato ocorrido essa situação.
42
No entanto, o assessor Tiago Pacheco não mencionou que o Senador Hélio José votou pela
admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff no plenário do Senado e também pela aprovação da
“PEC do Teto dos Gastos Públicos”.
43
Segundo o art. 61, do Regimento Interno do Senado Federal: “As representações partidárias poderão
constituir bloco parlamentar. Parágrafo único. Somente será admitida a formação de bloco parlamentar
que represente, no mínimo, um décimo da composição do Senado” (BRASIL, 1970).
299
Não conversei mais presencialmente com o assessor Tiago Pacheco, por conta
do contexto da pandemia, que mudaram radicalmente as dinâmicas de trabalho do
Congresso, em que passou a estimular e permitir que os parlamentares, os servidores
públicos e os comissionados pudessem cumprir suas atribuições, em boa parte, de forma
remota. A pandemia, que impôs medidas de distanciamento social no Congresso
Nacional a partir do mês de março de 2020, inevitavelmente, atingiu também a minha
forma de fazer pesquisa. Continuei em contato, por whastapp, com Tiago Pacheco e,
principalmente, com Margarida Braga, que também acompanha, indiretamente, a
tramitação do Estatuto, embora tenha prioridade em outros projetos do Senador Paulo
Paim.
É válido ressaltar que cada Senador ou Deputado dispõe de uma verba específica
para contratar assessores parlamentares que irão lhe auxiliar nas suas atribuições. Pelo
que notei em minhas observações, cada assessor fica responsável por acompanhar e
trabalhar com um projeto, seja naqueles que são de autoria do próprio parlamentar,
assim como os que estão na condição de relatores. E nem sempre um projeto de lei,
como é o caso do PLS 248/2015, é acompanhado pela mesma pessoa, ao longo da sua
tramitação.
Por exemplo, segundo o portal da transparência do Senado Federal, o “Pessoal
do Gabinete do Senador Paulo Paim”, levando em conta o ano 2020, é, ao total,
composto por 19 pessoas, sendo 18 comissionados e 1 efetivo, que exerce uma função
comissionada. No caso do “Pessoal do Gabinete do Senador Telmário Mota”, em 2020,
estão inscritas 13 pessoas, 10 comissionados e 3 efetivos. Enquanto o “Pessoal do
Gabinete do Senador Hélio José”, em 2018, último ano do seu mandato, era integrado
por 61 assessores, 56 comissionados e 5 efetivos.
O portal da transparência também indica quantas proposições foram
apresentadas por cada parlamentar. Entre os anos de 2015 e 2018, foram registradas 49
matérias, ou seja, “PLS” que foram de autoria do Senador Hélio José; acusou-se 59
matérias de lei apresentadas pelo Senador Telmário Mota. Em relação ao Senador Paulo
Paim, entre 2003 e 2018, há registrados 412 proposições legislativas de sua autoria. Não
sei por qual motivo o site oficial do Senado Federal não acusou os projetos de lei que
foram apresentados a partir do ano de 2019. É pertinente também pontuar a quantidade
de matérias que os referidos parlamentares estão atuando como “relatores”. Obtive
apenas as informações sobre o Senador Paulo Paim, que tem atuado na relatoria de 81
proposições, e do Senador Telmário Mota, que é relator em 31 proposições.
300
44
“Entre os dias 17 de março e 18 de maio foram propostos na Câmara dos Deputados 1.261 projetos de
lei (PL) com as palavras-chave ‘coronavírus’ e ‘Covid-19’” (FERREIRA; LIBÓRIO, 2020).
301
Alguns dias depois de ter conversado com Margarida Braga, fiz observação
participante no “Encontro dos Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo
Milenar”, realizado no mês de agosto de 2020 e que teve a presença dos assessores
parlamentares do Senador Paulo Paim e do Senador Telmário Mota, que estavam na
condição de convidados especiais, anunciados no folder do evento, representando os
respectivos mandatos. Nesta ocasião, os representantes dos parlamentares fizeram um
resumo da tramitação e o que estaria “faltando” para o projeto ser aprovado. E aqui
destaco que nenhum dos dois presentes afirmaram que o PLS não foi votado por falta de
“entendimento” com o MPF, pelo contrário, apresentaram outras razões, que envolvem
articulações políticas dentro do Senado.
O Tiago Pacheco, com quem conversei em fevereiro de 2020, representou o
Senador Paulo Paim na ocasião, sendo o segundo a se pronunciar quando o ponto de
pauta do “Encontro” passou a ser o “Estatuto do Cigano”, que primeiramente foi tratado
pelo “Seu Wanderley”, presidente da “associação proponente”. Este assessor falou por
aproximadamente 10 minutos e compartilhou uma série de informações, inclusive novas
para mim, que não foram ditas na entrevista que fiz com ele.
Após sintetizar o conteúdo do projeto45, Tiago abordou questões referentes ao
processo, em si; foi quando ressaltou que o “empecilho não é a oposição ao projeto”,
sendo que “o quórum é uma das travas” na tramitação do PLS 248/2015 na CDH, pois,
diferente das duas primeiras comissões, nesta última comissão “precisa haver a presença
física dos Senadores por ser uma decisão terminativa”46. Em seguida, pontuou que o
PLS 248/2015, comparado com outros processos legislativos, tem “até tramitado
rápido”, citando que o processo do Estatuto da Igualdade Racial que durou “7 anos”, o
“Estatuto do Idoso” que tramitou entre “1997 e 2003” e o “Estatuto da Pessoa com
Deficiência” entre “2003 e 2015”, afirmando que foi “uma longa batalha aprovar estes
projeto”. Ao finalizar sua participação, pediu “ajuda no quórum”, solicitando às pessoas
do “Encontro” para pressionarem os parlamentares e garantiu que “quando o Senado
voltar, após pandemia, quer colocar na primeira ou na segunda reunião (do CDH)”.
Antes de falar sobre a participação de Armando Caribé47, assessor de Telmário
Mota, que sucedeu a fala do Tiago Pacheco no “Encontro” do dia 20/08/2020, devo
dizer que o procurei algumas semanas antes para conversar sobre a tramitação
45
Segundo o assessor Tiago Pacheco, o PLS 248/2015 trabalha com três viés: a inclusão dos povos
ciganos nas políticas públicas; a previsão de ações afirmativas; e o combate à discriminação.
46
Neste momento, Tiago ponderou que nas decisões “não terminativas ”, que ocorrem nas comissões, não
é necessário a presença física dos parlamentares ao longo da reunião, basta alcançar o quórum no início
das suas atividades.
47
Adoto um pseudônimo por não comprometer o desenvolvimento desta tese.
302
“Estatuto”, por sugestão e indicação de Margarida Braga, que me passou o seu contato
de telefone. Ao abordá-lo, no contato inicial, fiz, ao total, quatro perguntas, em diálogo
pelo whatsapp48, contudo, eu não obtive respostas do assessor, pois este alegou que
havia assumido “este assunto há poucos dias”, se comprometendo a buscar as
informações que precisava. E, desde então, mantivemos alguns contatos por whatsapp,
até que Armando Caribé me perguntou se eu poderia participar de uma reunião virtual
com ele, sem me dizer o motivo do convite. Tratou-se de uma conversa que aconteceu
no dia 18/08/2020, com a presença de Nalva, organizadora do “Encontro” e que durou
menos de 30 minutos, em que este assessor nos solicitou um breve resumo sobre a
tramitação, pois ele havia começado a acompanhar a tramitação do Estatuto há pouco
tempo. Da minha parte, fiz um relato sobre o aspecto formal do processo, citei a “Nota
Técnica”, ressaltando a relevância de haver um “consenso” com o MPF. Já Nalva, por
sua vez, de maneira mais breve, fez questão de reivindicar a realização da “consulta
prévia”, e, ao mesmo tempo, pediu urgência na aprovação do projeto, devido ao
aumento da vulnerabilidade dos ciganos durante a pandemia. Enquanto falávamos,
Armando fazia apenas anotações e agradecia pelos “esclarecimentos”. A impressão que
tive da nossa interação é que parecia que este assessor não tinha sequer lido o projeto de
lei e os relatórios legislativos aprovados nas duas comissões. Por outro lado, é possível
também que o aparente desconhecimento do assessor em face do “Estatuto” tenha sido
uma estratégia deste com o objetivo de obter a nossa leitura sobre a tramitação e o
máximo de informações possíveis.
Dois dias depois, no “Encontro”, observei uma radical mudança de postura do
assessor parlamentar Armando Caribé, o que confirmou a minha desconfiança, que
discursou logo após a representação da assessoria do Senador Paulo Paim. Embora
tenha dito, em princípio, ser um “gadjon novato”, se referindo ao pouco conhecimento
que detém sobre a “questão cigana”, aqui destaco a desenvoltura do assessor ao abordar
a tramitação do PLS 248/2015 e, principalmente, por ter dedicado boa parte da sua fala
para tratar estratégias nas articulações políticas pela aprovação do “Estatuto”. Além
disso, minha surpresa também se deu por conta das novas informações que foram
compartilhadas pelo assessor do Senador Telmário Mota, que, de algum modo,
48
Apresentei, ao total, quatro perguntas. Foram elas: “De que modo o Senador Telmário Mota construiu
os relatórios legislativos que foram apresentados à CDH? Houve consulta às comunidades cigana? Ou
diálogos com o antigo relator, o Senador Hélio José”; “O Senador Telmário Mota tem mantido diálogo
com o Senador Paulo Paim, autor do projeto de lei?”; “O governo federal tem manifestado interesse na
tramitação do Estatuto do Cigano? De que modo os representantes do governo têm participado deste
processo legislativo?”; “Por qual razão o projeto de lei, que seria votado em decisão terminativa na CDH
no dia 12/02/2012, foi retirado de pauta e voltou para o Senador Telmário Mota para reexame?”.
303
respondiam parte daquelas perguntas que havia feito no nosso primeiro contato, que ele
me informou não ter conhecimento.
Quanto às estratégias políticas, este assessor fez as seguintes afirmações: que o
“Estatuto só não foi aprovado por conta de um ruído que fez tirar o projeto de pauta”,
contudo, não especificou de quem se tratava, apenas dando a entender que seria alguém
do “movimento cigano”; que o autor do projeto e o relator deram um “cheque em
branco” a ele, isto é, “faça o que tenha que fazer” para aprovar o projeto; frisou que era
“muito amigo de Augusto Aras (Procurador-Geral da República)49”; sugeriu que fosse
criado um “comitê” ou uma “campanha” em torno do “Estatuto”, alegando que a
“política está ligada a linguagem da guerra”, por isso o uso destas palavras; propôs que
as lideranças e os apoiadores da causa cigana se mobilizassem para articular com os
prefeitos, vereadores, deputados “das bases” para que estes pudessem pressionar os
Senadores a estarem presentes na votação da matéria na última comissão, justificando
que esta articulação é necessário tendo em vista que o “Senado” está “no topo da cadeia
alimentar” da política.
Como se pode perceber, embora as funções desempenhadas pelos assessores
parlamentares possam estar relacionadas aos “bastidores” do Congresso Nacional, não
se trata de um trabalho secundário, pelo contrário, a atuação de cada Senador ou
Deputado depende da equipe que o acompanha, mesmo que a última palavra seja do
parlamentar.
Realizar a observação participante no “Encontro” do dia 20/08/2020
permitiu-me acessar uma série de informações, assim como ter insights sobre a
tramitação do Estatuto do Cigano. A partir desta experiência, obtive novos dados,
comparei com as informações anteriores, complementando-as, consegui responder a
algumas indagações, mas também acabaram surgindo novas perguntas.
Comparando as falas dos assessores Armando Caribé e Tiago Pacheco, notei um
relativo alinhamento entre ambos, quando se cobrou das lideranças ciganas e dos
apoiadores, os simpatizantes, uma articulação política para alcançar o quórum
necessário que o PLS 248/2015 demanda para ser votado na CDH. Por outro lado,
observei diferentes narrativas para justificar as razões do “Estatuto” ter “travado” na
última comissão; enquanto o representante do autor do projeto destacou que o “quórum”
tem sido o principal entrave no avanço da tramitação, o interlocutor do relator citou a
49
Ressalto que na conversa que tivemos antes do Encontro, quando pontuei sobre a Nota Técnica do MPF
e a necessidade de haver um “consenso” com a Sexta Câmara, o assessor Armando Caribé comentou
também que era “muito amigo de Aras”, dando a entender que poderia mobilizar a relação pessoal com o
Procurador Geral da República para tratar do “Estatuto”.
304
50
Adoto um pseudônimo por entender que não compromete o desenvolvimento desta tese.
305
Hélio Jose se manteve relator na CAS, comissão que assessoro, e a matéria foi aprovada em
09 de maio de 2018. Sem AP, pois o relator pediu para que o tema fosse debatido na CDH,
onde a matéria é terminativa, ou seja, não passa pelo Plenário para seguir para a Casa
revisora, a Câmara dos Deputados.
Tanto na CE quanto na CAS, nos dias de votação, várias lideranças ciganas se faziam
presente e Hélio Jose, em nome delas, pedia a pressa pela aprovação.
Paralelo a isso tudo a 6ª Câmara produziu um texto substitutivo ao PL, tendo incorporada
demandas históricas dos povos ciganos nas Conferências Nacionais de Direitos Humanos.
Pessoalmente gostei muito da proposta e passei, como assessora da Liderança, a trabalhar
por sua aprovação, mas o gabinete do senador Paim, representado pelo André, esteve
sempre à frente das negociações.
O senador Hélio Jose manteve seu relatório na CDH. Enquanto se tentava negociar, o ano
de 2018 acabou e com ele o mandato do relator.
O novo relator, Telmário Mota, manteve o parecer do Helio José, seu colega de partido. A
negociação com o gabinete dele foi feita pelo Tiago. Mas a coisa não avançou muito em
2019. Sei que o senador Paim foi procurado pela equipe da Damares (André pode te
explicar, eu não estava presente), que fez uma série de sugestões para o texto.
Vale falar que não sou assessora da CDH, mas minha colega lá, Rosi Gomes, pediu que eu
continuasse acompanhando a matéria na CDH e fazendo as orientações de voto.
O senador Telmário retirou seu parecer para reexame umas duas ou três vezes, a última em
fevereiro de 2020.
Eu defendia que era melhor o texto ser modificado, na forma das sugestões da 6ª. Câmara,
ainda no Senado. Assim sairia um texto redondo, combinado, consensuado, para que a
matéria não fosse modificada na CD (Câmara de Deputados).
Infelizmente, não aconteceu nem uma coisa, nem a outra.
Eu: Quem são os principais agentes políticos, pessoas, associações e instituições,
envolvidos no processo legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Paula Andrade: Creio que, hoje, os principais atores são o Senador Paim, Senador
Telmário Mota, 6ª. Câmara, diversas Associações de Povos Ciganos, o Procurador Mariz, a
Ministra Damares.
Eu: A senhora avalia que o impeachment da Presidenta Dilma influenciou, de alguma
forma, na tramitação do “Estatuto do Cigano”? Ou questões da conjuntura política que
precedeu e sucedeu a saída da Presidenta Dilma?
Não.
Eu: A senhora avalia que houve alterações nas negociações pela aprovação do Estatuto do
Cigano com as mudanças que ocorreram no Governo Federal, com as gestões “Temer” e
“Bolsonaro”? Como este último governo tem atuado nesta tramitação?
Paula Andrade: Sim, a entrada em campo da Ministra Damares, de meu ponto de vista
pessoal, parece ter sido para barrar a proposta do Ministério Público. Não tive acesso às
propostas de seu Ministério para melhor avaliar. O André tem essas informações. Como a
Ministra é evangélica e o senador Telmário também, imagino que ele seja receptivo às
sugestões. (Acervo próprio, meu destaque)
A partir das respostas acima, passei a ter uma nova dimensão acerca das
dinâmicas e das complexidades que envolvem a tramitação do “Estatuto do Cigano”.
Independente das informações serem novas ou que confirmam os dados que eu já tinha
registrado, o fato de ter sido compartilhadas por Paula Andrade tem um significado
especial. Primeiro, por ela acompanhar este processo desde o seu início. Segundo, pela
sua organicidade com o projeto político do PT, partido do parlamentar que propôs o
“Estatuto”. E, principalmente, por ser servidora pública de carreira, que detém
estabilidade e não estar vinculada diretamente a nenhum gabinete. Interpreto estes dois
últimos dados como uma das razões que contribuíram para que esta assessora técnica
pudesse falar mais abertamente. Diferentemente de Tiago Pacheco ou Margarida Braga
que, ao meu ver, não emitiram nenhum juízo de valor em relação aos integrantes ou
306
aliados do governo federal, cujo partido e o próprio Senador Paulo Paim fazem
oposição política.
Em síntese, o pesquisador Luiz Abreu identificou a existência de dois tipos de
funcionários do Congresso Nacional, a parte fixa, que decorre das “necessidades
objetivas da existência do legislativo e são criados pelo regimento interno” (1999, p.
128, destaque do autor), que integram o corpo administrativo e técnico, e a parte
rotativa, que são os Deputados e Senadores, os assessores parlamentares – funcionários
de cada parlamentar que atuam no gabinete ou em polos no estado de origem – e os
cargos de confiança (altos escalões). Com base na descrição e análise deste autor, é
possível dizer que Paula Andrade compõe a parte fixa e integra o corpo técnico dos
experts do Poder Legislativo, funcionários públicos com estabilidade que dominam os
diversos procedimentos sem os quais não se poderia produzir, por exemplo, as “leis”;
enquanto os assessores parlamentares integram a parte rotativa do Poder Legislativo,
que não é necessariamente uma condição absoluta51.
Vale salientar, mais uma vez, que a presente pesquisa foi viabilizada mediante a
construção de uma teia de informantes, que não seria possível sem as pessoas que
exercem as funções de assessoria dos órgãos públicos e instituições. Nesse sentido,
ainda que não trabalhe no Poder Legislativo, dou destaque neste tópico ao papel da
servidora pública do MPF, Laura Gabriela, que já mencionei no subtópico “4.1.2”.
Embora já a conhecesse de vista das audiências públicas do MPF sobre os direitos
ciganos, tanto em Brasília, como na Paraíba, fui incentivado por Paula Andrade a
procurá-la para conversar também sobre o “Estatuto”. E foi o que fiz em 27/08/2020,
quando a abordei e encaminhei algumas perguntas, que foram respondidas dois dias
depois por whatsapp. Seguem abaixo:
Eu: Qual foi seu papel, enquanto assessora da 6ª Câmara da PGR, no âmbito do processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”?
Laura Gabriela: Assessorei a 6a Câmara na elaboração da Nota Técnica n. 05/2018, que
analisou e propôs alterações no Estatuto dos Ciganos. Também intermediei o diálogo entre
a 6a Câmara, as lideranças indígenas, setores do Governo Federal responsáveis pelo tema e,
posteriormente, o autor e o relator da Proposta, no Senado Federal, por meio de suas
assessorias.
Eu: Qual o papel do “6ª Câmara” nas negociações pela criação do “Estatuto do Cigano”?
Laura Gabriela: A 6a Câmara promoveu o diálogo com as comunidades interessadas, não
na forma da Convenção 169, mas apenas no sentido de ouvir suas observações, como
subsídio para a nota técnica e o diálogo com as instituições responsáveis no âmbito do
Executivo e Legislativo.
Eu: A “6ª Câmara” costuma atuar também em outros processos legislativos que envolvem
matérias relacionadas aos povos e comunidades tradicionais?
51
Abreu pondera que essa parte rotativa não é sempre alterada, parcial ou integralmente, a cada nova
eleição, já que parlamentares podem ser (e são) reeleitos, assim como os assessores parlamentares têm a
tradição de distribuir currículos para outros gabinetes quando seu Deputado ou Senado não permanece no
próximo mandato (ABREU, 2000, p. 131).
307
Devo registrar que Laura Gabriela é uma personagem fundamental não apenas
para a questão do “Estatuto”, mas, sobretudo, para a luta dos povos ciganos por direitos
de modo geral, fato que motivou a sua mudança de João Pessoa à Brasília, para poder
acompanhar esta pauta na “6ª Câmara”. Este fato não é reconhecido só por mim, mas
pelos próprios ciganos, pesquisadores e demais apoiadores desta causa.
Como disse antes, por mais que Laura Gabriela não seja servidora pública do
Senado, faço referência ao seu trabalho aqui neste tópico, pois, assim como assessores
parlamentares e legislativos, ela desempenha uma função de “bastidores”. Participou,
diretamente, da elaboração da “Nota Técnica”, mas quem assinou o documento foi o
Subprocurador Geral. Da mesma forma como acontece nos “relatórios legislativos” que
308
são apresentados nas comissões onde tramita um projeto de lei, quem assina é o Senador
ou Deputado, não se fazendo referência aos “assessores”, parlamentares ou legislativo,
que contribuíram para a elaboração deste documento.
Abélès (2000), em etnografia no contexto francês do legislativo, percebeu
justamente a dissimetria na relação parlamentar funcionário, sendo que o trabalho deste
fica no anonimato. Como destacou este autor, em qualquer documento escrito ou nos
registros das comissões, o nome dos funcionários dos gabinetes não aparece. Graças à
pesquisa etnográfica, transcendendo o aspecto documental, pude notar a importância
dos “assessores”, atores que são tão importantes quanto os próprios Senadores,
Ministros, Procuradores da República, pessoas do alto escalão dos “Poderes”, cujo os
nomes ganham notoriedade pública. São cruciais para o processo de construção
político-jurídica do Estatuto do Cigano.
É válido lembrar que os “assessores” que cito neste tópico não são os únicos que
atuaram ao longo da tramitação do “Estatuto”. Além disso, as performances dos
assessores não se limitam aos aspectos técnicos da função, há aqueles que atuam
também como articuladores políticos dentro do Congresso Nacional52.
52
Destaco o caso da assessora parlamentar do Senador Magno Malta, que se tornou Ministra no Governo
Bolsonaro, personagem que também acompanhou “de perto” a pauta dos ciganos no Senado Federal e
que, desde 2019, passou a comandar a pasta mais diretamente ligada às demandas dos povos e
comunidades tradicionais brasileiros. Embora passasse a trabalhar no Poder Executivo, a pesquisa
etnográfica possibilitou-me perceber que atuação da ex-assessora parlamentar, que trabalhou para
diferentes parlamentares também ligados à “bancada evangélica”. Enquanto “ministra” continuou
acompanhando e atuando no Poder Legislativo, seja monitorando os projetos, como também propondo.
309
4.1.4 - As votações
nesta tese, as interpreto também como “rituais”, por serem mais estáveis, por haver uma
ordem que as estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo, e uma
percepção de que elas são diferentes de outras ocasiões. E refiro-me não apenas às
reuniões em que ocorrem as deliberações das matérias legislativas, como também
aquelas que acontecem as audiências públicas, pois igualmente seguem um rito. O que
não significa dizer que todos procedimentos realizados nestas ocasiões são
padronizados ou que se guiam, exclusivamente, pelo arcabouço formal extraído dos
instrumentos jurídicos escritos.
Nesse sentido, ao disciplinar o meu olhar para observar e analisar algumas
dezenas de reuniões, realizadas em algumas comissões (CE, CAS e CDH) e presidida
por parlamentares diferentes, embora tenha notado uma preponderância de atos
repetitivos e previsíveis, identifiquei, por outro lado, algumas práticas mais maleáveis,
não tão redundantes, que variam conforme os atores envolvidos, especialmente
dependendo de quem esteja responsável pela mediação. Na condição de pesquisador que
não vivenciava, até o início do Doutorado, o cotidiano das atividades legislativas no
Senado Federal, ao perceber tanto as aproximações, como os distanciamentos entre as
práticas realizadas no âmbito das “reuniões extraordinárias”, compreendi que são
justamente nos detalhes destas ocasiões que se pode extrair algumas normativas que
atravessam a maioria dos processos legislativos, inclusive a tramitação do próprio
“Estatuto do Cigano”.
Os elementos que entram no ritual, aliás, já existem em sociedade, eles
surgem apenas reinventados, rearranjados e reforçados no ritual. Mas o
caminho de volta também pode ser traçado: o instrumental desenvolvido para
analisar rituais pode ser reapropriado para o exame de outros eventos,
fazendo dos rituais estratégia analítica e abordagem etnográfica para eventos
em geral. (PEIRANO, 2015, p. 9)
53
Segundo o art. 197, do Regimento Interno do Senado Federal: “transformar-se-á em secreta a sessão: I -
obrigatoriamente, quando o Senado tiver de se manifestar sobre: a) declaração de guerra (Const., art. 49,
II); b) acordo sobre a paz (Const., art. 49, II); c) (Revogado); d) escolha de chefe de missão diplomática
de caráter permanente (Const., art. 52, IV); e) requerimento para realização de sessão secreta (art. 191); II
- por deliberação do Plenário, mediante proposta da Presidência ou a requerimento de qualquer Senador”
(BRASIL, 1970).
54
Segundo informações disponibilizadas pelo Senado Federal, “o presidente do Senado, no início de
cada legislatura, designa os senadores que integrarão as comissões, a partir da indicação dos líderes
partidários, com observação, se possível, à proporcionalidade da representação partidária na Casa.
Segundo o regimento, a vaga na comissão pertence ao partido ou bloco parlamentar, e cabe ao líder tanto
fazer a indicação do senador que vai ocupá-la, como substituí-lo. Designados os membros titulares e
suplentes, cada comissão reúne-se para instalar seus trabalhos e eleger, em votação secreta, o presidente e
vice-presidente do colegiado para mandato de dois anos” (JUSBRASIL, 2013, meu destaque).
55
Segundo o art. 46 do Regimento Interno do Senado, “a Mesa se compõe de Presidente, dois
Vice-Presidentes e quatro Secretários” (BRASIL, 1970).
312
56
Esta previsão consta no caput do art. 58, da Constituição Federal, que diz: “O Congresso Nacional e
suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições
previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação”.
57
Por exemplo, de acordo com o Regimento Interno do Senado, conforme diz art. 107, inciso I, “as
reuniões das comissões permanentes realizar-se-ão: se ordinárias, semanalmente, durante a sessão
legislativa ordinária, nos seguintes dias e horários: d) Comissão de Assuntos Sociais: às quintas-feiras,
onze horas e trinta minutos; f) Comissão de Educação, Cultura e Esporte: às terças-feiras, onze horas; h)
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa: às terças-feiras, doze horas;” (BRASIL, 1970).
58
Conforme estabelecido no art. 107, inciso II, do Regimento Interno do Senado, “se extraordinárias,
mediante convocação especial para dia, horário e fim indicados, observando-se, no que for aplicável, o
disposto neste Regimento sobre a convocação de sessões extraordinárias do Senado” (BRASIL, 1970).
59
Segundo o art. 107, parágrafo único: “em qualquer hipótese, a reunião de comissão permanente ou
temporária não poderá coincidir com o tempo reservado à Ordem do Dia das sessões deliberativas
ordinárias do Senado” (BRASIL, 1970).
60
Entende-se por “propostas legislativas”: “projetos de lei ordinária - aprovados, em geral, por votação
simbólica - ou projetos de lei complementar - que estipulam regras em temas especificados pela
Constituição e exigem quórum qualificado [...], os projetos de iniciativa popular [...], sugestões
legislativas [...], propostas de emenda à Constituição [...], Projetos de resolução, de decreto legislativo,
emendas, indicações, requerimentos, recursos, pareceres e propostas de fiscalização e controle têm sua
313
Por exemplo, no dia 12/02/2020, o “Estatuto do Cigano” era a quinta pauta a ser
deliberada. Contudo, ao longo da 5ª Reunião Extraordinária da CDH, que durou,
aproximadamente, 1 hora e 38 minutos, não houve menção direta ao PLS 248/2015.
Antes mesmo de começar a reunião, o item “PLS 248/2015” já havia sido retirado de
pauta pelo relator. Nesta ocasião, estavam programados para serem deliberados 42 itens,
incluídos na pauta do dia, destes: a) 13 tratavam de requerimentos de audiência pública,
sendo que 8 foram aprovados, 3 adiados e 2 retirados de pauta; b) 5 sugestões
legislativas61, 2 adiados e 3 aprovados; c) 24 projetos de lei, 4 adiados, 7 retirados de
pauta, que foi caso do “Estatuto do Cigano”, 1 “lido o relatório; adiadas a discussão e
votação”, 1 “lido o relatório, logo após é concedida vista coletiva”, e, por fim, 11
aprovados, significando que o relatório lido, colocado em discussão e votado, passou a
constituir enquanto “Parecer da CDH, favorável ao Projeto”.
Como abordei no subtópico anterior, tentei obter respostas, por meio das
assessorias parlamentares envolvidas na presente trama política, acerca das razões que
contribuíram para o PLS 248/2015 ter sido “retirado de pauta”. Ao se observar as
informações oficiais sobre o processo legislativo do “Estatuto do Cigano” no Senado
Federal, foi possível notar outras ocasiões em que este projeto de lei também foi
“retirado de pauta” ou que a “a apreciação da matéria foi adiada”, quando o item “PLS
248/2015” seria deliberado nas Comissões onde tramita.
Levou-se, aproximadamente, três anos, desde o início de sua tramitação, até o
“Estatuto do Cigano” ser votado pela primeira vez no Senado Federal, no dia
28/03/2018, na 7ª Reunião Extraordinária da CE. Resumindo, incluiu-se o “PLS
248/2015” na pauta das reuniões desta comissão oito vezes, sendo que em quatro
ocasiões se pretendeu votar o relatório legislativo apresentado pelo Senador relator,
havendo três adiamentos nos dias 04/10/2016, 18/10/2016 e 18/04/2017. Nas demais
circunstâncias, incluiu-se o “Estatuto do Cigano” na pauta do dia para se deliberar sobre
o requerimento de audiência pública, nos dias 10/11/2015, 13/09/2016, 25/04/2017 e
19/09/2017.
Por sua vez, no caso das movimentações do “Estatuto do Cigano” na segunda
comissão onde tramita, nota-se que houve uma maior agilidade. Aprovou-se o relatório
legislativo do Senador Hélio José na primeira tentativa em que se incluiu o PLS
248/2015 entre as pautas da 15ª Reunião Extraordinária da CAS, que ocorreu no dia
iniciativa reservada a deputados, às comissões técnicas e à Mesa [...] medidas provisórias” (BRASIL,
2020c).
61
“Forma de participação da sociedade civil no processo legislativo por meio de apresentação de minuta
de proposta legislativa” (BRASIL, 2020i).
314
09/05/2018. Por outro lado, na terceira e última comissão, a CDH, incluiu-se esta
matéria na pauta das reuniões extraordinárias, pelo menos, 5 vezes, havendo três
adiamentos, em 07/08/2018, 17/10/2018 e 06/02/2018, e duas vezes “retirado de pauta”,
em 30/10/2018 e 12/02/2020.
Para compreender melhor como funciona as votações de um projeto de lei nas
comissões em que uma determinada matéria é examinada, descrevi e analisei,
separadamente, em dois subtópicos, o que aconteceu em cada uma das duas únicas
ocasiões em que o “Estatuto do Cigano” foi votado no Senado Federal. Ao mesmo
tempo, tentei comparar com outras reuniões extraordinárias em que o PLS 248/2015
também esteve incluído na “pauta do dia” para ser deliberado, ainda que tenha sido
“adiada” ou “retirada de pauta”. Inspirado no que diz Peirano, “nunca é demais repetir
que a comparação é o caminho seguro para o refinamento teórico” (2002, p. 8).
E, pelo que presenciei, quando ocorre alguma atividade no turno da tarde nestes
espaços, são nas comissões mistas, que começam no máximo até às 15:30, uma vez que
as sessões no plenário do Senado, normalmente, estão marcadas para começar às 16:00
horas. Além disso, não é comum haver compromissos marcados para as segundas ou
sextas-feiras nas Comissões.
A principal sensação que tive ao passar algumas manhãs no Congresso Nacional
é em relação a sua intensidade, sobretudo, devido à quantidade exorbitante de atividades
que acontecem ao mesmo tempo. Inclusive, numa mesma manhã e num mesmo horário,
ocorre mais de uma reunião nas diferentes Comissões. Por essa razão, os parlamentares,
que integram, como titular ou suplente, diversas comissões de forma simultânea,
precisam inevitavelmente escolher qual das reuniões irá dar mais prioridade. Por
exemplo, durante o ano de 2020, o Senador Paulo Paim integrou simultaneamente 11
comissões; enquanto o Senador Telmário Mota fez parte de 22 comissões.
Além da 7º Reunião Extraordinária da CE do ano de 2018, que se iniciou às
11:30 da manhã, dia em que se votou o “Estatuto do Cigano” pela primeira vez no
Senado Federal, aconteceram outras quatro reuniões extraordinárias. Foram elas na
Comissão de Serviços de Infraestrutura, às 9:00; na Comissão de Assuntos Econômicos,
às 10:00; na Comissão de Meio Ambiente, às 10:30; na Comissão de Agricultura e
Reforma Agrária, às 11:00.
É importante ponderar que a presença de um determinado parlamentar, durante
uma manhã, no Congresso Nacional, não garante que este estará participando das
reuniões das comissões, uma vez que além destes momentos, há inúmeros outros
eventos e compromissos políticos que acontecem na sede do Poder Legislativo federal.
E, mesmo quando estão presentes nas reuniões das comissões, a impressão que eu tive é
que os parlamentares não ficam necessariamente concentrados acompanhando as pautas
que estão sendo discutidas. Provavelmente, podem estar resolvendo outras demandas.
No dia 18/02/2020, enquanto esperava o horário para me reunir com a assessoria
do gabinete do Senador Paulo Paim, acompanhei algumas atividades que estavam
ocorrendo no Congresso durante o turno da manhã. Nesta ocasião, chamou-se a atenção
o comportamento de uma deputada do Rio de Janeiro, que conhecia de vista, pelo fato
dela ter passado quase todo tempo em que esteve presente na Reunião da Comissão
manuseando o celular, poucas vezes direcionando o olhar para quem estava se
pronunciando na mesa ou no plenário. Um dos poucos momentos em que não estava
mexendo no aparelho telefônico foi quando realizou seu próprio discurso. Num
primeiro momento, não levei este fato tão a sério. Todavia, ao observar outras reuniões
316
das comissões, percebi que esta prática é extremamente comum, ou seja, o fato do
parlamentar, seja o que está presidindo ou aqueles que estão no plenário, passar a maior
parte do tempo realizando várias funções simultâneas. Praticamente o parlamentar não
se desconexa do celular, seja para mandar mensagens ou para atender ligações, usando
as mãos para abafar o som; interage com a sua assessoria, que cochicha em seu ouvido,
entra, sai, entrega papéis, solicita algumas assinaturas, depois volta com mais
documentos e assim por diante.
Há uma série de práticas e dinâmicas que acontecem ao longo das reuniões das
comissões que não estão abertas para improvisações, pelo contrário, seguem uma
liturgia rigorosa. Da forma que se inicia, até a maneira como se encerra. Porém, percebi
algumas variações no modo em que alguns procedimentos são realizados, sem perder de
vista a finalidade que exige o momento: deliberar sobre as pautas do dia. A flexibilidade
mais marcante que eu pude perceber ocorre no âmbito da ordem de como os itens do dia
são colocados em discussão pelo parlamentar que está presidindo a reunião. Em
nenhuma reunião que acompanhei se seguiu a ordem previamente estabelecida. Como
sugeriu o antropólogo Luiz Abreu, a descrição das atividades do Senado Federal
demanda dar ênfase ao “plano das regras e não das palavras” (1999, p. 51).
Todas as reuniões das comissões começam e terminam da mesma forma como se
sucedeu, por exemplo, a 7º Reunião Extraordinária da CE, do ano de 2018. Vejamos,
abaixo, como se procedeu este rito que se repete em todas estas ocasiões rigorosamente:
Senador Pedro Chaves: Pelo número regimental, eu declaro aberta a 7ª Reunião
Extraordinária da Comissão de Educação, Cultura e Esportes, da 4º Sessão Legislativa
ordinária, da 55ª legislatura. Antes de iniciarmos os nossos trabalhos, proponho a dispensa
da leitura e a aprovação das atas das reuniões anteriores. Os senhores Senadores e senhoras
Senadoras que aprovam queiram permanecer como se encontram (ninguém se opõe). As
atas estão aprovadas e serão publicadas no diário do Senado Federal:
[...]
Meus queridos amigos Senadores e ouvintes, encerramento. Convoco para o dia 3 de abril,
terça-feira, em caráter excepcional, às 11:30, reunião extraordinária desta comissão
destinada à deliberação de proposições. Nada mais havendo a tratar declaro encerrada a
presente reunião. Muito obrigado pela presença de todos. (BRASIL, 2018c)
estava de fato presente. Isto porque muitas proposições que demandam ser deliberadas,
entre requerimentos e matérias legislativas em “decisão não terminativa”, são
procedidas mediante uma “votação simbólica”, que não se verifica quantos e quem de
fato se posicionaram, favorável ou contrário ao relatório legislativo lido e colocado em
discussão, a exemplo de como se dispensa a leitura, assim como se aprova a ata das
reuniões anteriores.
É justamente na possibilidade de se proceder a maioria das deliberações
mediante votações simbólicas, por não exigir a presença física no plenário, que se
permite aos parlamentares estarem presente em diferentes compromissos no Congresso
Nacional concomitantemente, ou, darem conta de outras atribuições. Além disso,
interpreto também que é graças a esta metodologia que se garante a agilidade necessária
para se poder deliberar em face da grande quantidade alta de proposições previstas para
uma mesma ocasião. A maioria das proposições, quando não se exige “votação
nominal” ou quando não se trata de uma matéria “polêmica”, são aprovadas sem muitas
dificuldades, poucas vezes notei haver discussões, embates, até mesmo quando eu sabia
que existia divergência políticas entre os parlamentares presentes na “reunião”.
Neste dia 27/03/2018, embora o “Estatuto do Cigano” constasse como o
primeiro “item” a ser deliberado, o Senador Pedro Chaves inverteu algumas pautas do
dia e tratou primeiro de cinco outros projetos de lei e um requerimento. Isto é, antes de
discutir e aprovar o relatório do PLS 248/2015, o Senador Pedro Chaves apresentou ao
órgão colegiado a discussão dos seguintes projetos, nesta ordem: o PLS 339/2017, que
originalmente estava incluído como o quarto item do dia; o PLC 171/2017, previsto
para ser a segunda pauta do dia; o PLC 98/2017, acusado como ”extrapauta”; o RCE
18/2018, programado para ser o décima quarta pauta do dia, e, por fim, o PRS
24/201762, previsto para ser o terceiro item do dia.
Num primeiro momento, eu interpretei que as inversões de pauta aconteceram
para que o relator do “Estatuto do Cigano” na CE, o Senador Hélio José, que ainda não
se encontrava na sala onde acontecem as reuniões desta comissão quando iniciou a 7ª
62
O PLS 339/2017, que dispõe sobre o apoio financeiro da União aos Municípios e ao Distrito Federal
para ampliação da oferta da educação infantil, teve o relatório legislativo apresentado pelo Senador
Telmário Mota, favorável a matéria, aprovado. O PLC 171/2017, que propõe a promoção da cultura de
paz nas escolas, teve o relatório legislativo apresentado pela Senadora Simone Tebet, favorável a matéria,
aprovado. O PLC 98/2017, que propõe a instituição do Dia Nacional do Profissional de Comunicação de
Mídia Eletrônica e Mídia Digital, teve o relatório legislativo apresentado pelo Senador Telmário Mota
aprovado. O RCE 18/2018 propõe sobre a realização de audiência pública sobre a isenção em pagamentos
de taxar pelas Rádios Comunitárias, proposta da Senadora Fátima Bezerra. O PRS 24/2017, que propõe a
acrescentar as denominações Chico Mendes, José Antônio Kroeff Lutzenberger e Almirante Ibsen de
Gusmão Câmara às categorias Responsabilidade Ambiental, Gestão Sustentável e Inovação Ambiental,
respectivamente, do Prêmio Mérito Ambiental, teve o relatório legislativo da Senadora Fátima Bezerra
aprovado.
318
63
Com base nas gravações disponibilizadas, é possível perceber o momento que o Senador Hélio José se
integrou à Reunião, por volta dos 34 minutos, contando do seu início.
319
ressaltou que o projeto de lei em questão foi fruto de “várias audiências públicas nesta
Casa”. Após falar de forma espontânea, afirmou que faria “rápidas palavras, antes de ir
direto ao ponto”, e passou a ler, literalmente, o relatório, por volta de oito minutos.
Após finalizar a leitura do documento, o relator chamou de “intenso trabalho” o diálogo
com o “governo federal” e as “representações ciganas”, propondo o “prosseguimento da
matéria às outras comissões por não ser terminativo”. Ao “colocar em discussão a
matéria”, a primeira pessoa a falar, praticamente interrompendo o vice-presidente da
Comissão, foi a Senadora Fátima Bezerra, que discursou por três minutos64. Em seguida,
a Senadora Lídice da Mata (PSB/BA), que se pronunciou por quase um minuto65
(BRASIL, 2018c).
Após as participações da Senadora Fátima Bezerra e da Senadora Lídice da
Mata, o vice-presidente da comissão abriu mais uma vez a possibilidade para a
“discussão” da matéria. Em poucos segundos, como nenhum parlamentar pediu a
palavra, o Senador Pedro Chaves declarou “encerrada a discussão”. Imediatamente este
falou: “em votação, o relatório. Os senhores Senadores e Senadoras que aprovam o
relatório queiram permanecer como se encontram”. Todos e todas que estavam
presentes não saíram do lugar, continuaram sentados. “Resultado, aprovado o relatório
(aplausos e gritos)66 que passa a constituir relatório favorável ao projeto com as
emendas 1CE à 9CE, matéria vai para a Comissão de Assuntos Sociais. Parabéns ao
povo cigano”, encerrou o Vice-Presidente da Comissão, dando seguimento às demais
pautas. Ou seja, o “relatório legislativo” apresentado pelo Senador Hélio José foi
aprovado de forma unânime, mediante votação simbólica (BRASIL, 2018c).
64
Ao longo do seu pronunciamento, a Senadora Fátima Bezerra afirmou que o projeto de lei é “muito
importante, de fazer justiça, um povo que historicamente foi abandonado, foi desrespeitado,
historicamente foi marginalizado”. Pontuou que o povo cigano “tem uma rica cultura, uma rica história e
que merece, portanto, de acordo com nossa constituição, ser tratado com dignidade. O Estatuto vem nessa
direção. Temos o estatuto do idoso, ECA, tá na hora sim do Estatuto do Cigano”. Ressaltou também, em
seu discurso, “a sensibilidade do governo que o presidente Lula teve, e o governo da presidenta Dilma,
pelo quanto nesse período, foi possível dar passos para reivindicações históricas dadas pelo povo cigano”.
Em seguida, afirmou que “vota a favor do projeto, sem prejuízo”. Ao finalizar sua fala, fez a seguinte
declaração: “o importante é que tenhamos o projeto aprovado fruto do entendimento dos povos ciganos e
expresse aquilo que eles querem, e para nós que dialogue, e promova ao povo cigano dignidade, respeito
e direitos” (BRASIL, 2018c).
65
Durante o seu breve discurso, a Senadora Lídice da Mata parabenizou o Senador Hélio José pelo
trabalho e afirmou que acompanha o desenvolvimento do projeto desde o início. Nas suas palavras: “esse
projeto exige negociação, e o senador fez de uma forma absolutamente correta, e atendendo aos pleitos
de diversos segmentos, especialmente dos povos ciganos” (meu destaque). Ao encerrar sua fala fez uma
saudação, mais vez, ao relator e também ao autor do projeto de lei, afirmando ser favorável à aprovação
do relatório (BRASIL, 2018c).
66
As gravações disponibilizadas pela TV Senado não me permitiram identificar de onde partiu os
“aplausos e gritos”, pois filmou apenas o Senador Pedro Chaves enquanto falava. Todavia, como observei
também as fotografias desta reunião extraordinária, notei que a família de Seu Wanderley, 4 adultos e três
crianças, estavam presentes, acompanhando a votação no fundo do plenário. Por isso, deduzo que esta
comemoração, calorosa, partiu deles.
320
houve deliberação envolvendo o PLS 248/2015, que sequer foi incluído nas pautas das
reuniões da CDH, onde deve ser votado em “decisão terminativa”.
Voltando a ocasião em que se votou pela segunda vez o PLS 248/2015 no
Senado, a 15º Reunião Extraordinária da CAS, referente ao ano de 2018, teve duração
de 1 horas e 20 minutos, aproximadamente. Iniciou-se com os esclarecimentos da
presidente da comissão, a Senadora Marta Suplicy (MDB/SP), sobre as atribuições e as
questões que seriam deliberadas no dia, destacando haver “três itens não terminativos” e
“nove itens terminativos, conforme pauta previamente divulgada”. Antes de dar início à
deliberação das “pautas”, a presidente da Comissão fez a leitura de alguns informes
(BRASIL, 2018d).
Nesta reunião, a leitura, discussão e votação do relatório legislativo sobre o
“Estatuto do Cigano” estava programada para ser o segundo “item da pauta do dia”. No
entanto, a presidente da comissão em exercício verbalizou que iria esperar o Senador
Otto Alencar (PSD/BA) se integrar à reunião, pois, a primeira pauta do dia era de
relatoria deste parlamentar. As atividades desta comissão ficaram interrompidas por,
aproximadamente, um minuto, até que uma servidora entregou um conjunto de papéis à
Senadora Marta Suplicy. Tratava-se do “RAS 11/2018”, requerimento “extrapauta” para
realização de audiência pública, proposta pela Senadora Ana Amélia (PP/RS). Mais
uma vez esta Senadora que presidia a reunião da comissão expressou que faria a leitura
do requerimento “enquanto aguardamos o Senador Otto Alencar que é o primeiro item
da pauta” (BRASIL, 2018d).
Em outras reuniões que analisei, percebi que as pautas são invertidas sem
necessariamente expressar que o propósito é ganhar tempo para que um determinado
parlamentar pudesse se incorporar à reunião. Na prática, esta intenção fica implícita.
Notei que os parlamentares que presidem as comissões gozam de ampla liberdade para
conduzir as suas atividades. Esta discricionariedade pode ser percebida, por exemplo,
quando um mesmo parlamentar propõe votação do plenário para inverter a ordem ou
para incluir um item “extrapauta”, e em outras situações simplesmente altera a ordem
das deliberações sem consultar os pares.
Então, com a chegada do parlamentar que se aguardava, deu-se prosseguimento
às “pautas” do dia, seguindo a ordem programada, inicialmente, no que tange aos três
primeiros itens do dia, que eram “não terminativo”, sem haver deliberação nas pautas
que demandam votação nominal, que foram, tacitamente, adiadas.
Aproximadamente aos 36 minutos que a reunião do dia 09/05/2018 havia se
iniciado, a Senadora Marta Suplicy fez uma breve leitura sobre a tramitação do PLS
323
eles querem fazer esse debate no mês de maio e no máximo junho. Então, nós
poderíamos fazer ainda neste semestre a votação final. Faço um apelo que a gente vote o
projeto aqui, não é terminativo, vai ter um ciclo de debate, provavelmente com a
participação do relator (e aperta, com força, a mão do Senador Hélio) (BRASIL, 2018d).
67
Este parlamentar, primeiramente, parabenizou o Senador Paulo Paim pela “iniciativa” e também o
relator da matéria. Ao longo da sua fala, o Senador Otto Alencar destacou que o seu estado, a Bahia, é
onde há umas das populações ciganas mais expressivas no Brasil e compartilhou impressões pessoais no
Plenário, afirmando que os ciganos estão integrados aos municípios que vivem, se referiu ao cantor
“Tayrone Cigano, que é um craque lá na Bahia, que faz shows”, a presença de vereadores ciganos,
ressaltou que “eles possuem uma cultura milenar” e que “infelizmente sofrem muita discriminação”. Por
fim, manifestou apoio a aprovação do projeto, alegando também que os ciganos do seu estado são
importantes para a economia, havendo muitos fazendeiros e produtores rurais.
325
para exercer a função de relator tem para apresentar o seu parecer? Qual o intervalo de
tempo entre a apresentação do relatório legislativo e a votação da matéria? Em caso do
relator retirar de pauta um projeto de lei para reexame, em quantos dias este parlamentar
teria que devolver a proposição para ser apreciada pelos seus pares? Acontece que as
respostas para entender tais problematizações não são facilmente obtidas a partir da
leitura dos regimentos internos do Congresso ou estão dispostas expressamente em
algum manual sobre o funcionamento do Poder Legislativo. Na prática, poucos
procedimentos possuem um prazo a ser cumprido que esteja estabelecido de forma
prévia, sobretudo quando se trata de uma decisão política a ser tomada.
Por exemplo, o Regimento do Senado, por meio do art. 122 § 1º, determina
prazos específicos para que outros parlamentares apresentem emendas ao projeto de lei
submetido à apreciação da “Casa”, todavia não informa o prazo de uma série de atos
que são cruciais para o andamento do processo. Não há nenhuma previsão formal
quanto ao tempo que o relator de uma determinada proposição deve cumprir para emitir
o relatório legislativo pelo qual foi designado, podendo levar dias, semanas, meses ou
anos. Da mesma forma que na maioria dos casos o presidente de uma comissão temática
não está vinculado a nenhum prazo expresso para colocar um projeto de lei em pauta e
ser então apreciado pelos parlamentares que compõem o órgão colegiado.
Motivado pelas reflexões de Vera Telles (2015), é possível afirmar que o Estado
na prática legislativa é também permeado por fronteiras porosas entre o formal e o
informal, entre normas explícitas e implícitas. Isto porque em geral os regimentos
internos do Congresso, das Assembleias ou das Câmaras de Vereadores não dispõem de
forma taxativa qual deve ser a duração de cada ato que se demanda num processo
legislativo, delimita alguns e deixa em aberto outros. Este fator permite apontar para a
possibilidade dos usos do tempo como estratégia nas relações de poder no âmbito da
criação de leis. E falo em relações de poder levando em conta o pensamento
foucaultiano, porque as variações na duração do processo legislativo encontram muitas
vezes resistências, geram tensionamentos entre as múltiplas partes envolvidas, sejam
entre os parlamentares, sejam entre os setores sociais interessados na aprovação, assim
como entre as instituições. Foucault (2001) não só diz que a resistência antecede a
relação de poder, como também que não existe poder sem resistência.
Tais tensionamentos decorrem justamente da instabilidade e das disputas que
atravessam a questão do tempo no processo legislativo. Levando em conta o objeto de
estudo desta tese e os dados etnográficos produzidos, posso dizer que a expectativa dos
movimentos ciganos quanto à duração do processo entra em colisão com a dinâmica e o
326
lutar para que os projetos de seus interesses sejam colocados em pauta pelo presidente
da comissão. Ressaltando que a flexibilidade deste “ritual” reside na sequência e no
momento em que se coloca em pauta os itens previstos para uma determinada reunião, e
não no modo em que se dá as deliberações, que necessariamente envolvem três atos: a
leitura do relatório legislativo, a discussão da matéria, e, por fim, a votação68.
Em outras palavras, embora a cada reunião sejam incluídas dezenas de
proposições a serem deliberadas, na prática, boa parte das decisões acabam sendo
adiadas. Adiamentos que acontecem, sobretudo, pelas próprias condições das reuniões,
que num tempo curto e limitado, precisam tomar decisões sobre inúmeras matérias
legislativas, de diferentes naturezas. Portanto, é possível dizer que a flexibilidade do
“ritual” de funcionamento das comissões se dá sobretudo na gestão do tempo, o que
leva muitas vezes uma proposição legislativa sequer ser apreciada na primeira comissão
onde deveria ser votada. Uma singela metáfora pode nos ajudar a entender esta
inferência, o caso das tartarugas marinhas: a cada mil que nascem, algumas dezenas
conseguem chegar ao mar, contudo apenas uma ou duas sobrevivem - da mesma forma
enxergo as propostas legislativas.
Como pontuaram os assessores dos Senadores Paulo Paim e Telmário Mota, em
suas avaliações sobre o processo legislativo em tela, durante o encontro organizado pelo
movimento cigano em 20/08/2020, não há resistência dos parlamentares em relação ao
“Estatuto do Cigano”, a dificuldade para aprová-lo reside na própria articulação política.
A princípio, interpretei esta ponderação como uma tentativa de transferência de
responsabilidade para os atores ciganos envolvidos ou interessados na tramitação do
PLS 248/2015, para que estes mobilizem os parlamentares a darem atenção a tal matéria
quando esta estiver em pauta. Por outro lado, a pesquisa de campo me fez perceber que
a referida ponderação dos assessores também possui um fundo de veracidade, tendo em
vista que há uma dispersão no movimento cigano, além das disputas políticas entre as
lideranças e associações, como apontei no subtópico “2.1.1”, questão que irei explorar
mais na segunda parte deste capítulo.
Com base nas observações, comparações e análises que promovi em face das
reuniões das comissões do Senado, posso afirmar que a matéria do PLS 248/2015, de
fato, não desperta profundas tensões entre os parlamentares. Para sustentar esta
conclusão, destaco um episódio da reunião do dia 25/04/2017, realizada na CE, em que
mais de uma vez uma Senadora insistiu para que uma determinada matéria do seu
68
É possível que a leitura, discussão e votação não ocorram no mesmo dia, o que significa o adiamento da
deliberação sobre a matéria.
330
interesse fosse deliberada naquele momento, com rapidez, e fez o seguinte apelo: “não é
polêmica, presidente, não se preocupe”. Ou seja, o ponto que eu queria chegar ao
resgatar este episódio é dizer que o “Estatuto do Cigano” também não é uma matéria
polêmica, diferentemente de projetos ou pautas que envolvem temáticas tais como
direitos reprodutivos das mulheres, questões trabalhistas ou previdenciárias. Na lógica
suscitada pela referida parlamentar, se uma proposição legislativa não é “polêmica”,
logo não seria necessário tomar muito tempo com debates, podendo ser votada com
“agilidade” assim que a matéria é colocada em pauta.
Por isso, além da questão do “tempo”, um dos principais desafios para aprovar o
“Estatuto do Cigano” consiste em mobilizar um quantitativo mínimo de Senadores para
estar presente no momento que este for colocado em votação pela presidência da
comissão e, assim, alcançar o “quórum” que se demanda nas “decisões terminativas”, o
que não é tão simples, uma vez que este projeto não tramita sozinho, pelo contrário,
concorre com dezenas e centenas de outras matérias que também estão sendo
deliberadas em comissões diferentes ou disputando a atenção do parlamentar que pode
estar envolvido em outro compromisso que este avalie ser mais relevante. Para se ter
uma ideia da dimensão desta dificuldade, na reunião da CE que ocorreu no dia
19/09/2017, a presidente da comissão em atividade fez vários apelos para que os
parlamentares não saíssem do local para se obter o “quórum” necessário para deliberar
as matérias em “decisão terminativa”, que, ao ser alcançado, gerou aplausos e gritos de
comemoração no local.
Para compreender o papel dos parlamentares nas práticas legislativas, citando
mais uma vez Foucault, que concluiu que a moral pode ser apreciada tanto como
código, tanto como comportamento, refletindo, os dois, os saberes e os poderes, é
necessário esclarecer como este autor entende que deve ser a constituição de um
“sujeito moral”, que implica algo mais
Com efeito, uma coisa é uma regra de conduta; outra, a conduta que se pode
medir a essa regra. Mas, outra coisa ainda é a maneira pela qual é necessário
‘conduzir-se’ - isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como
sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que
constituem o código. Dado um código de ação, e para um determinado tipo
de ações ( que se pode definir por seu grau de conformidade ou de
divergência em relação a este código), existem diferentes maneiras de ‘se
conduzir’ moralmente, diferentes maneiras para o indivíduo que age, de
operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa
ação. (2001, p. 27, grifo dos autores)
através das quais os parlamentares e todo conjunto de pessoas que trabalham neste
ambiente ou que de algum modo atuam na tramitação do PLS 248/2015, que são
sujeitos morais, fixam as regras de conduta, procurando igualmente “se transformar”,
assim como intervir na realidade que estão inseridos.
Pode parecer óbvio o que vou afirmar agora, mas para se atingir o “quórum” nas
votações nominais que ocorrem nas comissões, demanda-se, sobretudo, que os
parlamentares mantenham, minimamente, relações amistosas entre si, mesmo que
estejam em polos ideológicos distintos, ou quando vivenciam disputas políticas em
outros espaços. É necessário muitas vezes sensibilizar o Deputado ou Senador a dedicar
parte do seu escasso tempo a participar ou permanecer na reunião até uma determinada
matéria ser colocada em pauta, diante das inúmeras atividades que acontecem
simultaneamente no Congresso Nacional. Ou seja, constrói-se dia a dia um código
moral para reger as relações e as práticas estatais no exercício legislativo, que não é
estático, pelo contrário, é dinâmico e instável.
Não foi raro os momentos em que eu observei e, em primeira mão estranhei,
parlamentares de forças políticas opostas, tomando como base, por exemplo, o
impeachment da Presidenta Dilma, a votação da “reforma trabalhista” ou a redução da
maioria penal, dialogando de forma harmônica, sentados um ao lado do outro, entre
risos, abraços, gentilezas, quando se está discutindo e deliberando matérias “não
polêmicas”, que é o caso do “Estatuto do Cigano”. Trata-se do “reconhecimento
empírico de que a ambigüidade é constitutiva da política” (ABREU, 2000, p. 51).
“Se política é troca, quem não tem o que trocar não faz política” (ABREU, 2000,
p. 262). Há infinitas possibilidades de trocas no Congresso Nacional, entre os
parlamentares, entre estes e o governo federal, e assim por diante. Por isso deduzo que
contribuir para que haja “quórum” numa determinada votação de autoria ou relatoria de
outro parlamentar, mesmo que seja um adversário político em diferentes agendas, faz
parte das trocas, mesmo que sutis, que permeiam o jogo político das atividades
desenvolvidas no Poder Legislativo. Diferentemente de como vislumbra o imaginário
popular, as trocas na política vão além da indicação de cargos ou do apoio para as
eleições internas das Casas legislativas. Portanto, é perfeitamente possível a
mobilização dos usos do tempo nas moedas de trocas que ocorrem no Congresso
Nacional, seja para acelerar a tramitação de um projeto de lei, seja para retardar a
deliberação sobre uma determinada matéria em discussão.
Não há dúvidas que o parlamentar que preside uma reunião extraordinária ou
uma sessão do plenário desempenha diversas atribuições, sendo o controle do tempo a
332
forma mais eficiente de exercer o seu poder. Uma vez que é este que organiza a ordem
da pauta a ser discutida, o que e quando é colocado em votação, a ordem dos
pronunciamentos, se concede ou não alguns minutos a mais para um determinado
deputado/senador concluir seu discurso, podendo inclusive encerrar as atividades do dia
antes do esperado caso seja o interesse da sua base política.
Como foi discutido no subtópico “4.1.1”, a gestão do tempo como mecanismo de
poder também pode ser observada nas audiências públicas que são realizadas no
Congresso Nacional. Mesmo sendo um momento pensado para ouvir pessoas externas
ao Poder Legislativo, são os agentes públicos estatais e os próprios parlamentares que
geralmente mais falam. Tais percepções não seriam possíveis sem a descrição densa do
processo legislativo em tela. Nas palavras dos pesquisadores Kant de Lima e Bárbara
Baptista, “a etnografia possibilita exatamente que esses mecanismos, obscurecidos pela
forma de produção e circulação do saber jurídico, se revelem e, tornando-os explícitos,
permite uma melhor compreensão do campo e de sua lógica” (2014, p. 10).
Etnografias, bem como outras formas narrativo-imaginativas, podem ajudar
nesse alargamento de espaços e percepções intelectuais, afetivos e morais,
apresentando-nos outras combinatórias semânticas que não obscureçam
lacunas e assimetrias entre ‘as nossas’ combinatórias e as ‘dos outros’.
Justamente, evidenciar tais lacunas e assimetrias não implica concordar com
elas ou destruí-las, mas nos valer delas para melhor pensar.
(SCHRITZMEYER, 2012, p. 34)
momento não o questionei por conta da sua experiência e também porque o sentido da
analogia seria devido à complexidade que é o nascimento de um ser humano, assim
como de uma nova lei. Porém com a pesquisa de Doutorado que empreendi passei a
problematizar esta comparação justamente pela questão do tempo no processo
legislativo. Por mais que haja diferenças na duração das gestações, ainda assim há uma
margem de tempo que não é ultrapassada na gravidez, necessariamente há um fim, que
independe do nascimento com vida. Só que o mesmo não acontece com a tramitação de
um projeto de lei, há uma absoluta imprecisão quanto ao transcurso de um processo,
dependendo do jogo de forças, das articulações políticas, dos interesses envolvidos,
pode haver tanto um aceleramento, como um retardo, e no fim acabar nem sendo
aprovado ou simplesmente arquivado por falta de ação.
Problematizando mais a referida comparação, associar a“criação de lei” a um
“parto” pode nos induzir a alguns equívocos, acabar enxergando com naturalidade os
usos do tempo no processo legislativo como mera casualidade, sem refletir as
contradições, os jogos de poder que estão envolvidos. Isso porque a “gestação” e o “ato
de dar a luz” são fenômenos genuinamente da natureza, o que os tornam fatos sociais,
inspirado no pensamento de Durkheim (2005), é como se conduz a gravidez,
certamente havendo variações de acordo com a classe, origem, raça ou etnia, por
exemplo. Por outro lado, o processo legislativo é um fenômeno essencialmente político,
a incerteza quanto ao tempo é algo inevitável, mas talvez a comparação ao “parto” nos
remeteria à ideia de “natural”, o que não é adequado, uma vez que “criar uma lei”
envolve relações e negociações entre pessoas reais com interesses que nem sempre
convergem. O que não significa que há sempre um binarismo no processo, isto é, ser
contra ou ser a favor de um projeto de lei. Na verdade, é muito mais complexo do que
isso, sendo possível teoricamente um parlamentar apoiar uma proposição legislativa,
sem demandar esforços para aprová-la, tendo que priorizar outras articulações por uma
questão de estratégia e de interesse político.
Acaba sendo até redundante dizer que um processo legislativo tem essência
política, não há como ser diferente. Por isso, finalizo esta primeira parte do quarto
capítulo afirmando que assim como um processo legislativo não se restringe a uma
somatória de procedimentos formais, o tempo que se leva para a aprovar um projeto de
lei, como é caso do PLS 248/2015, também não decorre de uma sucessão natural de
acontecimentos.
Aqui peço licença aos leitores para emitir a seguinte declaração: o tempo é
político! Adoto a palavra “tempo”, na condição de sujeito, para ilustrar que não é por
334
69
“Na verdade, a ideia de instrumentalizar a gestão urbana por meio de uma legislação específica precede
a ‘constitucionalização’ do tema, ocorrida em 1988, e o movimento político-social estruturado a partir do
final da década de 1970. Ainda em 1963, no contexto efervescente das "reformas de base" propostas
durante o governo João Goulart, realizou-se o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, coordenado
pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB)” (BASSUL, 2002).
70
Não posso deixar de mencionar que a Constituição Federal estabelece o dever do Estado em dispor lei
“sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos
nacionais” (art. 215, § 2º), todavia o “Dia Nacional do Cigano” foi instituído no ano de 2006 por meio de
decreto presidencial.
335
apontavam para um caminho interpretativo nada óbvio, que me fizeram notar alguns
movimentos contrários ao PLS 248/2015.
A pandemia causada pelo “Novo Coronavírus” repercutiu diretamente na
tramitação do PLS 248/2015. Por questões de biossegurança, a presidência do Senado,
por meio de Ato da Comissão Diretora nº 7, de 2020, modificou a forma de
funcionamento desta Casa Legislativa, instituindo restrições e, ao mesmo tempo, regras
para a utilização do sistema virtual nas votações e demais atividades. Este ato normativo
passou a ter validade a partir do dia 20 de março de 2020. Promoveu uma mudança
radical nas formas de trabalho, no funcionamento do Senado Federal (e também da
Câmara de Deputados), e principalmente no tempo de tramitação dos processos
legislativos, impondo uma outra dinâmica.
No caso da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado
Federal, a última “reunião extraordinária” do ano de 2020 ocorreu em 19 de março,
significando que o mecanismo remoto não foi implementado para realizar as reuniões
deliberativas da CDH. Portanto, o sistema virtual limitou-se às atividades de algumas
comissões e do plenário para proposições legislativas consideradas urgentes e/ou
relacionadas ao enfrentamento da pandemia, o que não incluía a matéria do PLS
248/2015, que ficou sem deliberação na CDH ao longo no ano de 2020.
De antemão, poderia-se deduzir que o fato das atividades da CDH estarem
paralisadas significaria não haver movimentações ou novidades em torno do processo
legislativo do “Estatuto do Cigano”. Levando em consideração o aspecto formal, não há
nenhum equívoco na respectiva dedução. Por outro lado, graças a minha proximidade
com os principais atores envolvidos no processo legislativo e ao fato de realizar
observação participante, pude perceber que as negociações políticas pela aprovação do
PLS 248/2015 não foram interrompidas por conta da pandemia. Isso porque a criação de
uma lei não se dá apenas no espaço físico ou durante as atividades oficiais promovidas
pelo Poder Legislativo Federal.
De que maneira tem ocorrido a tramitação em torno do PLS 248/2015 fora do
Senado Federal durante a pandemia? E como foi possível notar as disputas políticas que
perpassam tal processo legislativo?
Primeiramente devo dizer que a existência de negociações que transcendem o
locus do Congresso Nacional não significa que este fenômeno decorre do fato das
atividades estarem remotas por conta da pandemia. Antes mesmo das medidas
restritivas no espaço físico do Senado, eu já vinha notando que nem tudo que dizia
respeito ao processo legislativo do “Estatuto do Cigano” acontecia apenas no âmbito do
338
Senado Federal. Porém, com a pandemia, isso ficou mais explícito para mim,
especialmente, por ter havido uma intensificação de reuniões e atividades profissionais,
políticas e/ou acadêmicas, sendo realizadas de forma online, por meio das lives ou
chamadas de vídeos, por exemplo.
Em segundo lugar, antes mesmo do início da pandemia, percebe-se que a
tramitação do PLS 248/2015 “travou” desde maio de 2018, mês em que foi aprovado na
segunda comissão e seguiu para a CDH, não havendo votação da matéria até o final do
ano de 2020. Lembrando que quando o projeto seria votado em “decisão terminativa”,
no dia 12/02/2020, este foi retirado de pauta pelo próprio relator, o Senador Telmário
Mota, para “reexame”.
Ressalto que foi a partir do dia 20 de agosto de 2020, devido à realização do
“Encontro dos Povos Ciganos: Resistências e Direitos de um Povo Milenar”, que
ocorreu uma mudança radical nos rumos da tramitação e, sobretudo, nas negociações
políticas em torno do “PLS 248/2015”. Isso porque a assessoria do Senador Telmário
Mota passou a trabalhar para “fazer o que for necessário” para o projeto de lei ser
aprovado no Senado. Um dos primeiros atos neste sentido foi a convocação e a
realização de uma reunião no dia 9 de outubro de 2020, entre servidores do Senado
Federal e representantes ciganos, com a participação do Ministério Público Federal.
Segue abaixo, na íntegra, a “minuta de relatório/ata da reunião”:
Data: 09/10/2020
Início: 10h00
Término: 12h00
Meio: Plataforma Zoom
Mediador: Samuel Gomes, assessor do senador Telmário Mota
Desenvolvimento:
1. Samuel Gomes saudou os participantes e reiterou os objetivos da reunião.
2. Wanderley (ANEC) saudou os participantes.
3. Valdinalva (CONEPIR-MG) saudou os participantes.
4. André Guillermo apresentou o conteúdo do projeto e os próximos passos
da tramitação no Senado.
5. Luciano Mariz Maia (MPF) apresentou suas considerações a respeito do
projeto.
6. Philipe Cupertino (doutorando na matéria) apresentou suas considerações a
respeito do projeto.
7. Nos debates fizeram uso da palavra Valdinalva, Carla Paiva, Rose Winter,
Maria Jane, Cláudia Nunes, Luciano Mariz Maia, André Guillermo,
Marcilânia.
8. Conclusões:
a. A reunião foi gravada e constitui documento constitutivo do processo
parlamentar de aprovação do Estatuto.
b. O projeto está pronto para consulta aos povos ciganos.
c. A consulta:
i. Abrangerá decisão a respeito do uso do termo “população cigana” ou
“povos ciganos”.
ii. Será precedida de popularização e massificação do conteúdo do Estatuto,
através de:
1. Vídeos, podcasts, cartilhas.
339
No mesmo dia em que ocorreu a supracitada reunião, foram criados não só um,
como dois grupos de Whatsapp: um “geral”, para ser adicionado o maior número
possível de lideranças, “representações” e “aliados” da luta cigana; e outro, alguns
instantes depois, mais “restrito”, ou seja, com poucas pessoas, para discutir questões
mais operativas do processo legislativo a serem compartilhadas com todos do outro
grupo. Em menos de 24 horas de funcionamento dos grupos, surgiram os primeiros
conflitos entre os participantes.
Antes de tratar destes conflitos, preciso pontuar que os dois principais propósitos
que levaram a criação do tal grupo “geral” de Whatsapp foram: em primeiro lugar,
tornar mais público, entre lideranças e representações ciganas de todo país (pelo menos
se almeja alcançar o máximo de pessoas), sobre a tramitação do PLS 248/2015 e acerca
do conteúdo do projeto; e, em segundo lugar, discutir como seria realizado e planejar a
consulta livre, prévia e informada da proposição legislativa em tela, pois não havia
nenhuma experiência do tipo realizada pelo Senado Federal.
A primeira divergência, explicitamente manifestada, deu-se justamente por
existir o outro grupo mais “restrito”. Surgiram, então, acusações de estar havendo
“favoritismos” e “falta de transparência”, o que rendeu muitas discussões. Então o
segundo grupo, o “restrito”, foi desfeito pelo seu próprio criador, o assessor do Senador
Telmário Mota - a principal intenção dele era discutir de forma mais direta o que
precisava ser feito para avançar na tramitação e padronizar as informações que seriam
repassadas. Tendo em vista que tal demanda permaneceu e para evitar novos conflitos,
ao invés de criar novamente um outro grupo, as conversas mais “internas” passaram a
acontecer por meio de chamadas coletivas de áudio pelo aplicativo Whatsapp, sempre
340
71
Entre os meses de outubro e novembro de 2020, na condição de pesquisador e também por ser
reconhecido como um aliado da luta dos ciganos por direitos, fui convidado pela assessoria do Senador
Telmario Mota a participar destas conversas mais reservada. Ao total, ocorreram cinco chamadas, que
tiveram a duração média de 1 (uma) hora. Além da minha presença e do assessor parlamentar do relator,
que coordenava as conversas, também estiveram presentes um representante do mandato do Senador
Paulo Paim, e o Procurador da República Luciano Maia. Tais encontros tinham o propósito de avaliar o
andamento do “grupo geral”, como melhor geri-lo, de modo a evitar conflitos e também para não haver
desvio de finalidade, e, principalmente, planejar a consulta pública sobre o PLS 248/2015. Ressaltando
que estes “encontros” não eram públicos e não tiveram a presença de lideranças ciganas, todavia, os seus
encaminhamentos eram posteriormente compartilhados no grupo geral.
72
A maioria das pessoas que entraram no grupo “geral” de Whatsapp se apresentaram informando a etnia
a qual pertenciam. Foram citadas as seguintes etnias e sub-etnias: Calon, Sinti, Rom (Horahabô,
Kalderash, Romanichal, Lowara e Machuaia). Notei também que algumas pessoas que se apresentavam,
se identificando como ciganas sem declarar a etnia ou a família de origem, eram justamente aquelas mais
questionadas quanto o real condição de cigana ou cuja as ligações com a identidade cigana eram fundadas
em relações espirituais.
341
foi uma das exceções que saiu do grupo após algumas brigas e voltou a fazer parte dele,
o que motivou a saída de outras pessoas.
De todo o modo, essa movimentação intensa foi resultado, sobretudo, dos
conflitos que se manifestaram nas conversas do grupo, que nem sempre se tratava do
assunto principal, o PLS 248/2015, mas sim as disputas políticas em torno das vagas
dos conselhos de Estado. Contudo, eu pude notar que estes conflitos refletiam também
divergências, explícitas e implícitas, em relação ao PLS 248/2015.
Ou seja, realizar a observação participante no grupo permitiu-me captar
algumas pistas sobre os conflitos que se dão neste processo, percebendo, com mais
clareza, que não há necessariamente um consenso em relação ao “Estatuto do Cigano”
proposto pelo Senador Paulo Paim. Além do mais, seria impossível existir pleno
entendimento sobre uma matéria desta natureza, tendo em vista a diversidade étnica dos
seus destinatários, como também diante das diferenças políticas, de escolaridade, de
classe, de origem, gênero, e principalmente, na forma como a sociabilidade cigana foi
construída.
Por isso, por meio da minha participação diária no grupo e também por dialogar
diretamente com algumas lideranças, em privado, sobre os conflitos que surgiram neste
espaço fui percebendo, aos poucos, que as oposições ao projeto de lei não se davam
necessariamente em face do seu conteúdo. Como já discorri no segundo capítulo desta
tese, a minha interpretação é que o principal ponto de discordância em relação ao PLS
248/2015 se deve ao fato deste ter sido proposto por Paulo Paim e, acima de tudo, ter
sido articulado pela “ANEC”, especialmente a pessoa de “Seu Wanderley”.
Quando me refiro às divergências em relação ao projeto, é no sentido de ter
testemunhado questionamentos em torno da legitimidade, da capacidade e da
representatividade de “Seu Wanderley” para atuar como um interlocutor da criação do
“Estatuto”, mobilizando argumentos do tipo: “ele é analfabeto”, “está sendo usado pelo
Senador para alimentar a sua fama de rei dos Estatuto”, “só representa uma etnia, a si
mesmo”.
As situações em que se questionaram a legitimidade e a capacidade de “Seu
Wanderley” não aconteceram obviamente no grupo criado pela assessoria do Senador
Telmário Mota. Por sua vez, eu identifiquei algumas lideranças e “representações” que
passaram pelo grupo sem se opor diretamente ao PLS 248/2015, mas que, por sua vez,
se manifestaram contrários ao projeto em outros espaços públicos de debates, como, por
342
4.2.2 - O PL 2703/2020
74
Segundo informações do portal de notícias “Gazeta do Povo”: “o deputado federal paranaense Filipe
Barros (PSL) tem sido um dos mais destacados cães de guarda do bolsonarismo na Câmara dos
Deputados. [...] exercendo seu primeiro mandato em Brasília, ele tem demonstrado faro aguçado para
identificar focos de embates ideológicos e disposição em adotar – especialmente nas redes sociais – a
retórica que marca o grupo político alinhado ideologicamente por Olavo de Carvalho” (FREY, 2020, meu
destaque).
344
75
Mobilizei o uso do paradigma indiciário proposto por Ginzburg por ser um método capaz de despertar o
meu olhar enquanto pesquisador para detalhes aparentemente tidos como secundários, mas que podiam
esconder a chave de entendimento das disputas políticas que perpassam a questão cigana no período de
tempo que analisei nesta tese. Em outras palavras, a partir do “método interpretativo centrado sobre os
resíduos, sobre os dados marginais”, considerando-os reveladores, foi possível identificar as oposições ao
PLS 248/2015 (1992, p. 149).
76
Adoto um pseudônimo tendo em vista que não compromete o desenvolvimento da tese. É importante
registrar que Jorge Garcia se relaciona e ao mesmo tempo articula grupos, lideranças e associações
ciganas, especialmente da região sul do Brasil, que tem se manifestado publicamente e atuado de forma
contrária ao PLS 248/2015. Inclusive devo destacar que houve um reposicionamento do próprio Jorge
Garcia em relação ao projeto de lei proposto pelo Senador Paulo Paim, uma vez que ajudou Seu
Wanderley a organizar a reunião sobre o Estatuto que ocorreu entre 31/03 e 01/04/2016. O convite deste
evento encontra-se no “Anexo A” desta tese.
346
é um ator político que colabora, direta ou indiretamente77, com o Governo Federal desde
o ano de 2019, é um dos ou o principal idealizador da proposição legislativa apresentada
pelo Deputado Filipe Barros em 15 de maio de 2020. Por isso afirmo que houve um
cuidado de não se expor o(s) proponentes(s) com a finalidade de evitar desgastes
públicos, pois, poderia transmitir a ideia que o Governo Federal ou que o próprio Jorge
Garcia, que se identifica como cigano, seria contrário o PLS 248/2015.
Há outros indícios que nos levam a relacionar o PL 2703/2020 à atuação política
de Jorge Garcia. A estreita relação entre o Deputado Filipe Barros e a ministra dos
Direitos Humanos, sendo que ambos são um dos políticos mais comprometidos com a
agenda dos costumes e com as pautas mais conservadoras do Governo Bolsonaro -
sendo Jorge Garcia parte deste projeto, uma vez que é pastor e atua na mesma igreja
ministra. Além disso, este agente público atua politicamente e em especial no estado do
Paraná, onde articula e lidera diferentes associações ciganas, ou seja, mesmo ente
federativo que elegeu o parlamentar autor do segundo projeto de lei que propõe a
criação de um “Estatuto”.
Não obstante, ao analisar o conteúdo do “PL”, é possível perceber outras pistas
que me conduziram a concluir que quem o elaborou/articulou tem vinculação ou diálogo
direto com grupos religiosos mais conservadores atuantes na política brasileira, como é
o caso de Jorge Garcia. Primeira pista: a redação do projeto de lei adota duas vezes a
expressão “sem distinção de sexo” nos dispositivos que versam sobre o “direito à
educação”, ao invés de usar a palavra “gênero”78. Segundo indício: a previsão do
“Capítulo IX - Do Direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos
cultos religiosos”, que integra o rol dos direitos fundamentais previsto no Título II do
“PL”. Vejamos:
Art. 40. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Art. 41. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício
dos cultos religiosos em contextos ciganos, compreende:
I – a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e
a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para
determinados fins;
II – a celebração de festividades, ritos e cerimônias de acordo com preceitos
das religiões acolhidas por cada indivíduo ou comunidade cigana;
III – a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições
beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;
77
Quando menciono “direta” e “indiretamente” é pelo fato de Jorge Garcia ter exercido um cargo de
diretoria no MMFDH e continuou colaborando com o governo, mesmo após ao seu pedido de exoneração,
tendo em vista que foi indicado e ocupa uma cadeira no CNPIR na condição de “notório saber”.
78
No subtópico “3.2.1”, refleti sobre as investidas políticas que ocorreram para retirar a expressão “sem
distinção de gênero” presente na redação inicial do PLS 248/2015.
347
79
“O avanço da cultura secular, como a noção de casamento homoafetivo, as discussões de gênero, [...] e
até mesmo a separação entre religião e Estado, tem sido alvo da ação de muitos desses parlamentares que
legislam com base em valores religiosos. Fala-se de perseguição religiosa, intolerância de outros grupos e
chegou-se a cunhar um neologismo, cristofobia” (SOUSA, 2020, p. 78-79, destaque do autor).
80
Discurso da chefe do MMFDH em 10/04/2019, durante a audiência pública realizada na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados: “[...] a questão da cristofobia. Quero dizer que
existe preconceito religioso contra os cristãos no Brasil. O que aconteceu comigo nos primeiros meses,
nos primeiros dias, também teve uma pitada de discriminação religiosa, pelo fato de uma pastora assumir
o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Eu senti isso na pele” (BRASIL, 2019a, meu
destaque).
81
“A expansão pentecostal não se limitou apenas ao âmbito da ação religiosa, mas alcançou também a
política, onde os embates de seus representantes com outros movimentos e suas ações legislativas
reverberam na inserção de princípios religiosos na legislação e na esfera pública” (SOUSA, 2020, 78).
82
Constatei, por meio de uma pesquisa empírica, analisando casos concretos, a ineficiência do Sistema de
Proteção dos Direitos Humanos, no Brasil, diante de situações em que pessoas ciganas são vítimas do
crime de preconceito - ocasiões que sequer são apuradas, investigadas e processadas pelos órgãos
competentes (SILVA; LIMA FILHO, 2018).
349
83
As lideranças Rose Winter, da etnia sinti, Maria Jane e Jucelho Dantas, ambos da etnia Calon e Maria
Cristina Garcia Teixeira, diretora executiva da Pastoral dos Nômades, são pessoas que eu elenco que
participam das articulações no sentido de fortalecimento do movimento pela aprovação do PLS 248/2015.
350
político jurídico do “Estatuto do Cigano”, que podem ou não estarem atravessadas pela
atuação de grupos religiosos e suas respectivas agendas políticas.
Todas as disputas que perpassam a tentativa de produção dos direitos ciganos
estão inseridas em “relações de poderes” que pretendem, de algum modo, definir “o que
é ser cigano”, como foi aprofundado no terceiro capítulo desta tese. Para Foucault, “o
problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é tentar libertar o
indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos libertarmos tanto do
Estado quanto do tipo de individualização que a ele se liga”. Este autor sugere, por sua
vez, a promoção de “novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de
individualidade que nos foi imposto há vários séculos” (2009, p. 08). Lembrando o
papel das “instituições religiosas”, sobretudo de base “cristã-judaica”, ao longo da
história do Brasil, que mesmo em diferentes intensidades, nunca deixaram de exercer
influência na política e nas relações de poder.
Para reforçar a argumentação que faço nos parágrafos acima, cito o artigo
científico de Cleiton Machado Maia e Ana Paula de Souza Campos (2018) que resgata a
participação da Pastoral dos Nômades e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), por meio da liderança cigana Miriam Stanescon, nas articulações que
culminaram no decreto presidencial de 2007 que instituiu o “Dia Nacional do Cigano”.
A data escolhida, 24 de maio, se deu em referência à “Santa Sara Kali”, o que gerou,
segundo os autores, algumas divergências com outras lideranças ciganas, em especial,
Mio Vacite84. De todo modo, mais uma vez, fica evidente as disputas que atravessam a
questão cigana no Brasil.
Por fim, devo mencionar que a existência do PL 2703/2020 foi citada algumas
vezes no grupo de Whatsapp criado para discutir o PLS 248/2015, e, coincidentemente,
por lideranças do estado do Paraná. E estas referências ao “PL” sempre foram no
sentido de comparação, em especial, por conta da quantidade de artigos da proposição
legislativa do Deputado Filipe Barros ser superior ao do projeto apresentado pelo
Senador Paulo Paim, 52 propostas de artigos versus 19. Tais comparações, que se
concentraram nas primeiras semanas do início do funcionamento do grupo, não
84
Maia e Campos resgataram em seu artigo falas da liderança Mio Vacite sobre o assunto. Vejamos: “Até
1986, os ciganos brasileiros não conheciam Santa Sara. Sabíamos que na França tinha uma cigana
chamada ‘mãezinha’. Mas no Brasil, a nossa santa é Nossa Senhora Aparecida. Quiseram escolher uma
santa escura” [...] não deveria utilizar a imagem de Santa Sara como símbolo da etnicidade cigana no
decreto presidencial que institui o Dia Nacional do Cigano [...] existem evangélicos, mulçumanos e
membros de outras religiões ou ateus e agnósticos, que não se identificam com Santa Sara ou Nossa
Senhora de Aparecida” (2018, p. 21).
351
86
Quando participei do evento organizado pelo governo federal em 2019 para comemorar o “Dia
Nacional do Cigano” percebi que a mudança de gestão no âmbito do Poder Executivo significou também
uma mudança de quais comunidades ciganas passaram a acessar o governo federal.
354
para ser um interlocutor entre o governo federal e a agenda política dos povos ciganos
no Brasil. E por que digo de forma específica?
Na noite de 9 de abril de 2019, após um dia intenso de reuniões do CNPIR,
acompanhei a liderança Maria Jane, na condição de conselheira nacional, numa reunião
com Jorge Garcia, que à época atuava como servidor comissionado do MMFDH,
enquanto diretor do Departamento de Igualdade Racial e Étnica. O encontro foi
solicitado por Jane, com o objetivo de apresentar uma carta reivindicativa com
demandas dos povos ciganos, uma vez que o diretor de tal órgão se identifica,
publicamente, como “cigano”. Por outro lado, tentando se esquivar de qualquer
responsabilidade em face das demandas apresentadas, Jorge Garcia argumentou que não
foi convidado para trabalhar no governo federal por “ser cigano”, mas sim por “ser
sociólogo” e “ser irmão de igreja de longa data da Ministra”87. Além disso, afirmou
também que as reinvindicações deveriam ser encaminhadas, na verdade, para o diretor
do Departamento de Promoção de Igualdade Racial para Povos e Comunidades
Tradicionais.
Embora afirme que não tenha sido chamado para fazer parte do governo por ser
“cigano”, o discurso adotado por outros integrantes da gestão é totalmente diferente em
relação ao papel de Jorge Garcia. A secretária nomeada para ocupar a chefia do SNPIR,
também anunciada como “1ª indígena a assumir uma secretaria nacional”, em entrevista
concedida à imprensa, que foi publicada em 04 de janeiro de 2019, ressaltou que
“dentro da diretoria, também temos um cigano. Ou seja, o governo Bolsonaro está
dando uma visibilidade inédita para minorias, até então nunca dada” (SCORTECCI,
2019, meu destaque). Frisa-se que a supracitada referência indígena, titular da secretaria
durante um ano e nove meses, foi demitida em setembro de 2020, sendo que até o final
deste ano, a pasta permaneceu sem chefia88.
Além disso, durante a abertura da 64ª Reunião Ordinária do CNPIR, primeira
atividade do órgão colegiado no Governo Bolsonaro, que ocorreu na manhã do mesmo
87
“Sou irmão de fé da ministra, somos da mesma igreja” também foi uma resposta padrão que ouvi de
outros integrantes do MMFDH, quando perguntei a três pessoas diferentes como “eles foram parar no
Ministério”, durante a hora do “cafezinho” do evento de comemoração ao “Dia Nacional do Cigano”, que
foi promovido no primeiro ano de governo de Bolsonaro (SILVA, 2020, p. 118). É importante dizer que
identifiquei durante a observação participante uma ambiguidade na atuação política de Jorge Garcia nesta
sua relação com a religião, e não por conta da sua vinculação com uma determinada doutrina, mas o fato
de não se referir expressamente em espaços da esfera pública (atividades acadêmicas ou do Estado) que
além de ser “sociólogo” e “teólogo” como costuma se apresentar, é também “pastor”, sendo esta função a
que mais prepondera na sua relação com os ciganos com quem se articula e mobiliza. Inclusive, embora
se apresente como “cigano”, ainda que não tenha construído sua sociabilidade em uma comunidade ou
família cigana, este agente público em alguns momentos imprime críticas negativas à prática da “leitura
de mão”, ficando ainda mais claro sua adesão à dogmas cristãos religiosos mais conservadores.
88
“Titular foi demitida por ter tido, segundo a Polícia Federal, envolvimento com atos antidemocráticos.
Movimento negro ataca vacância” (AUGUSTO, 2020).
355
dia que a liderança Jane encontrou o então diretor do Departamento de Igualdade Racial
e Étnica, Jorge Garcia, que estava na plateia, foi chamado pelo presidente da mesa para
sentar ao seu lado, sendo verbalizado expressamente que ele era um “cigano” na gestão
federal enquanto se aproximava.
Está mais que evidente que Jorge Garcia, na condição de “cigano”, assim como a
titular do SNPIR, anunciada como a “primeira indígena” a chefiar a pasta da “promoção
da igualdade racial” desde a sua criação, foram mobilizados para transmitir uma
mensagem política à sociedade: o compromisso do Governo Bolsonaro com a
diversidade. Diante de uma série de polêmicas envolvendo o presidente eleito em 2018
e as pautas relacionadas aos Direitos Humanos e as relações étnico-raciais89, antes,
durante e após o pleito, é possível dizer, em outras palavras, que a nomeação para
cargos do segundo e terceiro escalão de atores políticos como Jorge Garcia representa
um esforço em rechaçar a ideia de ruptura com a pauta da “igualdade racial”, embora na
prática, levando em consideração os dois primeiros anos de governo, não tenha
significado um aumento de recursos destinados às políticas públicas ou de um maior
diálogo com as minorias políticas raciais e étnicas no Brasil.
Se por um lado uma parte considerável dos movimentos negros e indígenas não
tinham boas expectativas no âmbito das políticas raciais, com o início do governo
Bolsonaro, entre as pessoas que constroem o movimento cigano no Brasil havia uma
esperança com a nova gestão, principalmente, diante da presença de Jorge Garcia no
MMFDH.
Destaco, mais uma vez, a conversa que tive com integrantes da assessoria do
Senador Paulo Paim, em fevereiro de 2020. Na verdade, aproveitei a ocasião para
compartilhar um estranhamento que tinha acerca da tramitação do PLS 248/2015: por
que o Estatuto do Cigano ainda não havia sido votado na CDH? E se a falta de
movimentação processual do PLS 248/2015 no ano de 2019 teria relação com o fato de
estarmos em um governo mais alinhado ao que se pode chamar de “extrema-direita”?
Em resposta, o assessor respondeu que não vê o governo Bolsonaro trabalhando para o
projeto não ser aprovado. Pelo contrário, foi declarado que esta gestão se mostrava
sensível à “pauta dos ciganos” e que a chefe da pasta dos Direitos Humanos conhece de
“perto” o PLS e ressaltou que o autor do projeto de lei tem uma “boa relação” com a
ministra de Estado.
89
Em reportagem publicada no dia 5 de novembro de 2018, “o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL),
voltou a dizer [...] se depender dele, não haverá mais demarcação de terras indígenas no país”
(RESENDE, 2018).
356
90
“Anunciada oficialmente como futura ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos no dia
6 de dezembro, despertou o interesse da mídia desde o princípio devido às suas frases polêmicas. Com
posicionamentos claros sobre assuntos como aborto e feminismo, a ministra é advogada e pastora
evangélica.” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2018).
357
91
Os únicos atos normativos secundários, emitidos pelo Poder Executivo Federal, que fazem referência
direta aos “ciganos”, no Brasil, começaram a ser produzidos a partir do ano de 2002, e, principalmente, a
partir do primeiro de governo do ex-presidente Lula, com o decreto que instituiu o “Dia Nacional do
Cigano” (MOONEN, 2011, p. 8), sendo que o último documento desta natureza que foi emitido ocorreu
em 28 de dezembro 2018, por meio da Portaria nº 4.384, do Ministério da Saúde.
92
O Ministério da Cultura, em 2008, lançou o primeiro edital “Prêmio Culturas Ciganas”, destinado a
pessoas jurídicas e físicas. Ao total, ocorreram três edições, sendo que a última edição foi lançada no ano
de 2014. “O Prêmio Culturas Ciganas compõe o conjunto de políticas públicas da SCDC/MinC destinadas
a apoiar e dar visibilidade às expressões culturais de grupos étnicos da diversidade cultural brasileira.
Celebrações e festas tradicionais dos Povos Ciganos; música, cantos, danças, narrativas simbólicas,
culinária, vestuário, joalheria, grafismos e artesanato são algumas das atividades culturais que estão sendo
apoiadas nesta edição do prêmio” (BRASIL, 2014e).
93
Jorge Garcia permaneceu no Departamento de Igualdade Racial e Étnica até o dia 1º de julho de 2019,
quando pediu exoneração do cargo (BRASIL, 2019c).
94
Jorge Garcia continuou como uma referência do Estado e permaneceu colaborando com o governo
federal, por exemplo, participando de órgãos colegiados, como o CNPIR, que integra na condição de
“conselheiro governamental”, indicado para a uma das três vagas de “notório saber” para o “Biênio
2019/2020” (BRASIL, 2020k).
359
exibir, um tipo de ação que disfarça a crueldade do sistema e a exploração que lhe é
intrínseca, sendo também um procedimento que confere status social. O exibicionismo
descrito por Lispector aproxima-se da ação de marketing do governo federal ao fazer
questão de publicizar o fato de ter nomeado o “primeiro cigano” para um cargo de
direção na administração pública brasileira.
Trata-se de uma concepção de representatividade voltada para o indivíduo em si,
e não para a coletividade, uma vez que não há qualquer articulação com o
enfrentamento do racismo e das desigualdades sociais enquanto problemas estruturais
que são potencializados no sistema capitalista. Inspirado na pesquisa do historiador
Asad Haider (2019), que refletiu sobre a relação das identidades com o Estado e a
cooptação de uma “política identitária” por ideais liberais individualistas, é possível
dizer que o Governo Bolsonaro pode estar atuando, na verdade, para enfraquecer das
instituições e políticas voltadas para a promoção da igualdade racial e para a inclusão
social dos povos e comunidades tradicionais. Faço esta afirmação levando em
consideração os seguintes fatos: a extinção de ministérios95 e órgãos colegiados96, assim
como corte de verbas públicas97 que possuem conexão com a agenda dos Direitos
Humanos98 e das minorias99. Além de ser uma gestão que promove embates mais diretos
95
“A Medida Provisória 870/19 reduz de 29 para 22 o número de órgãos com status ministerial no
governo federal. [...] Pela decisão, ficam extintos os seguintes ministérios: Cidades; Cultura;
Desenvolvimento Social; Esportes; Fazenda; Indústria, Comércio Exterior e Serviços; Integração
Nacional; Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; Segurança Pública; e Trabalho” (BRASIL, 2019b).
96
“Editado em 11 de abril pelo governo, o decreto 9.759/2019 determina a extinção de todos os
conselhos, comitês, comissões, grupos e outros tipos de colegiados ligados à administração pública
federal que tenham sido criados por decreto ou ato normativo inferior”, entre eles estão o Conselho
Nacional dos Povos e Comunidade Tradicionais. A medida foi declarada inconstitucional pelo STF
(BRASIL, 2019g).
97
Segundo o relatório técnico preliminar “Direitos da População Negra e Combate ao Racismo”,
elaborado pela Consultoria Legislativa e pela Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, “a
Fundação Cultural Palmares teve o orçamento drasticamente reduzido. Em 2012, foram executados cerca
de R$ 6,5 milhões nas políticas da fundação. Em 2019, o valor caiu para R$ 837,7 mil. Até o final de
setembro de 2020, a fundação executou menos da metade do dinheiro empenhado para este ano. Foram
reduzidos ainda os recursos para a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Em
2012, foram executados cerca de R$ 5 milhões. No ano passado, pouco mais de R$ 800 mil. Na estrutura
da secretaria, foi extinto, por decreto do governo federal, o Comitê de Articulação e Monitoramento do
Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial” (BRASIL, 2020d).
98
“[...] os recursos destinados para a saúde sofreram corte de mais de R$ 34 bilhões em relação ao gasto
no ano anterior. O montante aprovado foi de R$ R$ 125,7 bilhões. Em 2020, o valor executado com a área
foi de R$ 160 bilhões. Já o orçamento destinado à Educação sofreu corte de 27% em relação ao ano
passado, ficando em R$ 74,56 bilhões. A área de Ciência e Tecnologia sofreu corte ainda maior, com
diminuição de 28,7% em relação aos recursos executados em 2020, ficando com apenas R$ 8,36 bilhões”
(ANDES, 2021).
99
“Levantamento do Inesc mostra que cortes pouparam setores historicamente privilegiados, como o
Legislativo e o Judiciário, e atingiram áreas relacionadas com a garantia de direitos humanos. [...] poucos
serão os recursos para a garantia de direitos das minorias brasileiras” (ZIGONI et al., 2019).
360
***
Considerações finais
uma vez sendo aprovado este instrumento jurídico, além de indicar quem deve ser os
destinatários das políticas públicas, têm o potencial de estabelecer novos parâmetros de
“quem pode” e de “quem não pode” falar pelos povos ciganos no Brasil, em especial na
interlocução com a burocracia estatal, espaço que é restrito, não está acessível a todos
que o desejam, devido aos próprios limites da nossa democracia.
No quarto capítulo, a pesquisa etnográfica, dando ênfase ao processo
legislativo em si, pude constatar empiricamente que há uma margem porosa, um
conjunto de regras formais e informais, que regem a “criação de uma lei”, sendo a falta
de previsão expressa quanto ao “tempo” que algumas atos procedimentais devem ser
realizados um fator que torna instável e imprevisível a aprovação de uma proposição
legislativa. Ao identificar e tentar compreender as “pausas” que ocorreram no processo
do PLS 248/2015, ficou evidente os potenciais usos do tempo como mecanismo de
exercício do poder. Ou seja, o tempo é uma questão central nos processos legislativos.
A trama do “Estatuto” tem como pano de fundo justamente o gerenciamento da
alteridade, isto é, a gestão da diferença, como lidar com o outro. No caso do Brasil, há
uma série de disputas, entre diferentes forças, no sentido macropolítico, assim como
envolvendo lideranças e outros atores não ciganos, pela prerrogativa de poder dizer os
direitos ciganos, e sobretudo “quem deve” falar por esta coletividade. O aparecimento
de uma segunda proposição legislativa, o “PL 2703/2020”, praticamente com o mesmo
objeto do PLS 248/2015, não há como ser visto de outra forma que não seja enquanto
uma resposta política em oposição ao primeiro projeto de lei submetido ao Congresso.
Os processos legislativos são produtos e ao mesmo tempo partes de uma série de
fatores conjunturais; envolvem articulações que transcendem o universo do Estado. A
presente pesquisa possibilitou-me entender que as práticas estatais não só versam sobre
a produção de leis ou a definição das políticas públicas, elas também constituem os
sujeitos, como acontece com os ciganos na trama que envolve o Estatuto.
Esta tese trouxe para a produção de conhecimento acadêmico no Direito duas
questões centrais, repensar as fronteiras dos direitos humanos, levando em conta as
lutas ciganas e suas formas de resistências, assim como expor as tensões, os jogos e
relações de poder que ocorrem na “criação das leis”, considerando o processo de
construção político-jurídica do “Estatuto”. A proposição de um “marco legal” é
assumida, portanto, como um instrumento, não enquanto um fim em si mesmo. E como
foi refletido, tal empreitada mobiliza múltiplos atores, instituições, narrativas, práticas
discursivas e não discursivas que têm interesse e culminam por intervir na constituição
do sujeito cigano no Brasil.
366
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397
ANEXO A
CONVITE
Acredito ser de conhecimento de todos que o PLS 248/2015 tramita no Senado Federal
tratando da criação do ESTATUTO DO CIGANO. O tema deve ser reconhecido por todos nós
ciganos como algo de extrema importância, haja vista ser algo inédito, inclusivo e
potencialmente transformador da nossa realidade social neste país.
Tendo um Estatuto próprio, tratando especificamente do nosso povo, muitos problemas
enfrentados tanto por indivíduos como por comunidades ciganas em todo o território nacional
poderão ser resolvidos, crimes de preconceito e racismo serão punidos adequadamente e nós
ciganos poderemos desfrutar de uma melhor qualidade de vida.
Estamos nos articulando para que em 2016 consigamos avançar um pouco mais na
elaboração dos textos do Estatuto com o objetivo de concluí-lo, todavia é fundamental que
haja participação das lideranças ciganas interessadas, demonstrando e promovendo nossa
unidade e respeito mútuo, valorizando a contribuição que cada um pode dar.
Nossa intenção é agendar o quanto antes possível algumas Audiências Públicas que
tratarão do tema, todavia acreditamos ser de suma importância que, antes de cada Audiência,
discutamos “entre nós” mais aberta e profundamente alguns itens, como por exemplo “a
definição de cigano” no Brasil (“autodeclaração”, “autodefinição”, “filho de cigano, neto de
cigano”).
Importante é informar também que no dia 10 de dezembro de 2015 foi realizado um
belíssimo Seminário, promovido pela Frente Parlamentar da Família, ocasião em que foi criada
uma Comissão para discutir o Estatuto do Cigano. Todavia, como queremos mais
participação das Representatividades na elaboração do referido Estatuto, nossa solicitação
respeitosa aos assessores parlamentares envolvidos é que uma nova Comissão seja constituída,
de forma mais inclusiva, com maior número de lideranças, históricas e recentes, para que tanto
cumpramos o que reza Convenção 169 da OIT1, como possamos avançar em vínculo de
unidade do nosso povo.
1
Conferir em Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e resolução referente a OIT. Disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf
398
Wanderley da Rocha
Presidente Administrativo da Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC)