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O pensamento como experiência de resistência: conversações com Friedrich Nietzsche e

Michel Foucault
Cintya Regina Ribeiro i
RESUMO

O pensamento como experiência de resistência: conversações com Friedrich Nietzsche e


Michel Foucault

Esse trabalho busca problematizar a tensão poder/resistência no horizonte político e


educacional contemporâneo, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, marcada pela
crítica da linguagem. A sofisticação das relações de poder tem suscitado a emergência de
estratégias de resistência que possam redimensionar outras formas de vida na atualidade. Para
apreender o pensamento como experiência de resistência, propomos uma interlocução com
Friedrich Nietzsche e Michel Foucault. Com o perspectivismo nietzscheano, propomos uma
crítica da linguagem e dos valores do conhecimento bem como uma analítica dos modos de
enfrentamento reativos e afirmativos travados na arena política. Com a analítica foucaultiana
propomos atentar às singularidades das relações de poder e liberdade, tendo como eixo uma
problematização acerca do pensamento, particularmente centrada na concepção de
pensamento do fora e formulada a partir dos escritos de Maurice Blanchot. Tal debate acerca
do pensamento como experiência de resistência torna-se urgente frente aos dilemas
contemporâneos do campo educacional.

Palavras-chave: conhecimento, pensamento, pensamento do fora, linguagem, resistência,


educação

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ABSTRACT

Thinking as experience of resistance: conversations with Friedrich Nietzsche and Michel


Foucault

The purpose of this work is the investigation about the relationship between power and
resistance on the political and educational contemporary horizon, from a post-structuralist
approach marked by criticism of language. The sophistication of power relations has caused
the emergence of resistance strategies that can produce other forms of life today. To study the
thought as experience of resistance, we propose a dialogue with Friedrich Nietzsche and
Michel Foucault. With nietzschean perspectivism, we propose a critique of language and
values of knowledge besides the analysis of reactive and affirmative political confrontations.
With the foucaultian approach we propose the analysis of singularities of the relations of
power and freedom, taking as analytical object the issue about thinking, particularly focused
on the thought from outside, conception formulated from the writings of Maurice Blanchot.
This debate about thinking as experience of resistance develops to fight the contemporary
dilemmas in the educational field.

Keywords: knowledge, thinking, thought from outside, language, resistance, education


No cenário das atuais configurações políticas na contemporaneidade, uma das intensas
problematizações tem sido a tensão poder/resistência constitutiva dos modos de organização
da vida social. Nessa contingência histórica, a problemática tem demandado modos inéditos
de enfrentamentos analíticos, visando expandir possibilidades de crítica e criação de outras
formas de vida.
O objetivo desse trabalho é problematizar essa tensão poder/resistência no horizonte
político e educacional contemporâneo, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, marcada
pela crítica radical da produção da linguagem. A relevância da proposta justifica-se na medida
em que a sofisticação das relações de poder na contemporaneidade tem suscitado uma
urgência de natureza ético-política, visando à produção de estratégias de resistência e criação
que possam redimensionar as condições de vida na atualidade.
Para apreender essa tensão, propomos uma discussão sobre os modos de produção do
conhecimento organizadores da vida social, bem como uma problematização dos pressupostos
da concepção de pensamento a eles subjacentes. A questão do poder/resistência será
desdobrada a partir da crítica do conhecimento, seguida de uma crítica em relação aos modos

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de pensamento. Para tal, propomos uma interlocução com Friedrich Nietzsche e Michel
Foucault.

Relações de poder e liberdade

Os estudos de Foucault (1977, 1995, 1998, 1999, 2003) acerca do poder constituem
nossa plataforma fundamental para circunscrever as questões da resistência no cenário
contemporâneo. Isso decorre da fecundidade da proposição analítica do autor, a qual investe
numa abordagem estrategista das relações de poder em detrimento das clássicas perspectivas
epistemológicas que configuravam o poder a partir de uma suposta condição ontológica,
substantivada, essencialista.
Uma das instigantes inflexões do pensador remete-nos à ideia de que as relações de
poder encontram-se articuladas aos movimentos de liberdade. Afirma Foucault (1995, p.244-
245):

não há relação de poder onde as determinações estão saturadas. (...) no


centro da relação de poder, “provocando-a” incessantemente, encontra-se a
recalcitrância do querer e a intransigência da liberdade. Mais do que um
“antagonismo” essencial, seria melhor falar de um “agonismo” – de uma
relação que é ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta.

Isso implica que poder e liberdade não se configurariam como estados antagônicos,
mutuamente excludentes. As possibilidades de liberdade são a condição mesma de exercício
do poder. Seria a incitação permanente dessas forças que confeririam materialidade e
movimento às relações sociais. O privilégio analítico do campo relacional em detrimento do
substancial; a insistência investigativa no percurso de fluxos em vez do aporte seguro na
estruturação de substâncias: eis a torção analítica foucaultiana fundamental que nos permite
sofisticar a problematização das questões da resistência na contemporaneidade.
Tomar poder e liberdade como forças de provocações recíprocas e jamais estados
substantivados acarreta mudanças radicais no modo de abordar as questões de resistência
política. Ora, uma vez acionada por forças de liberdade, a resistência não poderia ser
analiticamente substantivada como um estado político antagônico aos estados do poder. Da
mesma forma que poder e liberdade são forças tensionadas genealogicamente constituídas,
mecanismos de controle e movimentos de resistência também se engendram em mútua

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incitação. Resistência seria, portanto, um efeito sempre de impermanência no tensionamento
das relações de poder e liberdade.
É no horizonte desse modo de abordagem das relações de poder e liberdade que
gostaríamos de explorar a discussão do pensamento como uma possibilidade de experiência
de resistência.

Conhecimento e pensamento

A crítica de Nietzsche endereçada à modernidade, por tomar como núcleo de


problematização a questão do conhecimento, constitui-se plataforma fundamental para uma
analítica do pensamento, na contemporaneidade. O filósofo alemão, ao colocar em xeque os
processos histórico-culturais de produção do conhecimento, torna explícita a condição de
arbitrariedade da produção da verdade. Atentemos à sua provocação:

de agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga,


perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do
conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo” (...). Existe
apenas uma visão perspectivista, apenas um “conhecer” perspectivo; quanto
mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos,
diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo
será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. (Nietzsche, 1998, p.109)

Afrontando explicitamente os fundamentos kantianos de seu tempo, o autor afirma a


condição perspectiva do conhecimento e da verdade. Radical, o perspectivismo nietzscheano
arremessa sua lança em direção aos critérios de valoração dos valores. Sujeito, conhecimento
e a verdade não seriam os fundamentos do mundo e do homem, tal como a modernidade nos
propõe. Inversamente, tais categorias emergem como efeitos de processos de valoração os
quais, por conformarem incansavelmente modos de vida – promovendo uns em detrimento de
outros – demandariam nossa investida crítica implacável. Nos termos do próprio pensador:

uma nova exigência se faz ouvir (...) necessitamos de uma crítica dos
valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em
questão – para isso é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram. (ibid., p.12)

Não há dúvida de que a problematização que aqui se enuncia é de ordem política. Na


medida em que as efetivas formas de vida são rebatimentos de processos de valoração e de
produção de verdades – seja em relação ao sujeito, em particular, ou ao conhecimento, de

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modo geral – faz-se necessário tomar a própria linguagem como arena de embate de relações
de poder e liberdade. Nesse sentido, ao circunscrever o problema da valoração dos valores, a
crítica nietzscheana desponta, sobretudo, como uma analítica política da linguagem.
Por explicitar o carácter arbitrário do conhecimento e da verdade, bem como por
desconstruir a soberania do sujeito, o perspectivismo nietzscheano abre passagem para outras
problematizações acerca do pensamento.
Nos rastros de Nietzsche, Foucault toma a questão do pensamento como medula de
uma discussão ético-política, cujos ecos se fazem audíveis no percurso de suas indagações.
Ao explorar o problema da verdade a partir da chave da linguagem – ou mais precisamente,
daquilo que será nomeado como regimes de verdade (regimes discursivos, regimes de saber-
poder, enfim) – o pensador francês constrói singularidades acerca da experiência do
pensamento.
Herdeiros das luzes da modernidade, nossos atos de conhecer, marcados pela
soberania do sujeito e da razão, tem sido operacionalizados numa linguagem representacional
cujo motor demanda o pensamento como ato reflexivo.
Ora, a experiência da reflexão torna o pensamento cativo. A reflexividade supõe uma
espécie de aderência na relação entre sujeito e mundo, ocultando o carácter arbitrário da
verdade instituída nessa operação de linguagem. Nietzsche (2008, p.58) expressa tal artifício
com precisão:

quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali
mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é
assim que se passa com o procurar e encontrar da “verdade” no interior do
distrito da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida
declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam um animal mamífero”,
com isso, decerto, uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado,
quero dizer, cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que
seja ‘verdadeiro em si, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta
o homem.

Nessa chave analítica, a experiência do pensamento apresenta-se como lugar


privilegiado de investimento de poder, a própria arena de linguagem na qual as verdades
acerca da valoração dos valores digladiam, se legitimam e materializam formas de vida. Se
relações de poder são indissociáveis de relações de liberdade, a experiência do pensamento
pode emergir na condição de possibilidade de resistência política. Isso se faria na própria
materialidade lingüística do território de lutas, na medida mesma do enfrentamento do

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movimento reflexivo do pensar, de modo a forçar o pensamento a alcançar o seu “fora”.
(Foucault, 2001, 2004)
No limite, tanto a obra de Nietzsche quanto a de Foucault transbordam a inquietação
ético-política da resistência, por meio de suas buscas intempestivas por outras experiências de
pensamento. A fim de explorar as possibilidades dessas formas de lutas, gostaríamos de
evocar e articular dois movimentos analíticos conduzidos pelos autores. Primeiramente, a
partir de inflexões de Nietzsche, sugerimos distinções entre as condições afirmativas e
reativas da resistência política. A seguir, nos rastros de Foucault, destacamos seus estudos
acerca da concepção de pensamento do fora, perpetrados a partir dos escritos de Maurice
Blanchot.

Pensamento e resistência

“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a


moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador”
(Nietzsche, 1998, p.29). É desse modo que o filósofo intempestivo conduz sua clássica
formulação a respeito da relação entre as condições de senhor e escravo.
Ultrapassando quaisquer incursões metafóricas bem como possíveis sugestionamentos
analógicos para o traçado de tipologias sociais a partir de classificações antagônicas, o jogo
linguístico de Nietzsche interessa-nos aqui por uma razão singular: ele traz à cena analítica o
carácter relacional dos jogos de forças como condição de posicionamento político e lastro de
subjetivação.
O modo de implicar-se como força é o segredo de distinção entre uma atitude política
afirmativa e/ou reativa. A tônica de uma postura afirmativa é o próprio gesto de
presentificação e ocupação no mundo, à revelia das condições de (re)ação do outro. Uma
postura reativa, por sua vez, acentua-se por meio de uma ação especular em relação à ação do
outro – daí sua marca de reatividade. “Sua ação é no fundo reação”, como nos diz Nietzsche
(ibid., p.29).
A situação se torna mais complexa uma vez que o problema apontado diz respeito aos
jogos de valores, com suas produções de verdades e de sujeitos políticos. O acirramento da
situação se efetiva na medida em que as forças reativas tornam-se elas próprias produtoras de
valores e, portanto, legitimadoras de conhecimentos e verdades, conformando assim sujeito e
mundo à dada linguagem, e por derivação, a certa experiência de pensamento. Tal luta é assim
narrada por Nietzsche (ibid., p. 28-29):

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a rebelião escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna
criador e gera valores (...). Esta inversão do olhar que estabelece valores –
este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo
próprio do ressentimento: a moral escrava requer, para nascer, um mundo
oposto e exterior, para poder agir em absoluto.

O ressentimento, tomado como jogo de forças, seria assim uma estratégia política
reativa de enfrentamento da condição irredutivelmente afirmativa do outro. Tal luta se trava
no campo da linguagem, por meio dos processos de valoração dos valores e
consequentemente de produção de verdades e de jogos de (des)qualificações dos sujeitos
sociais.
Uma produção social conduzida pelo ressentimento tem por matriz geracional a
negação da ação afirmativa do outro. Aqui, o sujeito reativo define sua condição de ser por
meio da negação do ser afirmativo do outro: a matéria prima da vida é o ódio; a condição
humana é rebanho (Nietzsche, ibid.).
Para o pensador, a vitoriosa rebelião escrava da moral – ápice da modernidade –
converteu fraqueza em força, assegurando o exercício do poder, porém, numa condição ético-
política de impotência. A expressão da potência seria efeito de uma atitude afirmativa: aquilo
que Nietzsche qualifica como amor fati, amor ao destino, ou seja, afirmação da condição
necessária das coisas, posicionamento afirmativo frente à contingência. A esse respeito,
Nietzsche (2001, p.187-188) diz ainda: “que a minha única negação seja desviar o olhar! E,
tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!”
Desloquemos tais formulações para nossa problematização. Dizer da resistência
política como mero enfrentamento das relações de poder parece-nos superficial. Ainda que
orientadas por relações de liberdade, os atos de resistência diferem nos seus efeitos políticos
em virtude dos modos como desestabilizam ou retroalimentam as relações de poder.
As provocações nietzscheanas nos chamam a atenção frente à necessidade de
qualificação sensível dessas formas de luta, de apreensão dos modos ético-políticos que
orientam tais enfrentamentos nos jogos de forças.
No desdobramento, poderíamos falar de lutas ou resistências reativas e/ou afirmativas.
Resistências reativas seriam aquelas que engendram atos de enfrentamento político cujas
formas encontram-se seqüestradas pelos cálculos previstos nas relações de poder. Isso ocorre
porque tais práticas tomam o poder numa chave de adversidade e negação, tornando-se elas
próprias, figuras espelhadas – imagem e semelhança invertidas do poder.

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O tom das resistências afirmativas é sua condição expansiva, de criação. Aqui, o
enfrentamento político inventa formas insuspeitas que cortam as relações de poder,
provocando-as, incitando-as, desestabilizando-as. Tal resistência não se materializa por meio
do jogo da adversidade fácil, na medida em que se recusa a ser objeto de seqüestro pela
linguagem das relações de poder.
É nessa chave que buscamos tomar a questão do pensamento como experiência de
resistência. Ora, vimos que as malhas da linguagem cativam o pensamento tendo em vista a
produção do conhecimento e da verdade, bem como o zelo pela condição de soberania do
sujeito e da razão. Historicamente, o investimento da modernidade no pensamento reflexivo
parece ter suscitado, de modo quase hegemônico, uma forma de atitude crítica cuja linguagem
é a reativividade. Em outras palavras, um pensamento reflexivo parece produzir lingüística e
politicamente, como forma de crítica, um pensamento reativo. Assim, as formas de resistência
engendradas pela modernidade e das quais somos seus herdeiros contemporâneos, parecem ter
sido marcadas por uma experiência de pensamento reativo.
Criar as condições de uma resistência afirmativa pressupõe forjar uma experiência de
pensamento afirmativo na contemporaneidade de nossa arena linguística.
Sugerimos que a discussão de Foucault (2001) acerca do pensamento do fora ou
pensamento do exterior – conduzida a partir das formulações de Maurice Blanchot a respeito
do “fora” da linguagem – parece-nos fecunda no sentido de exploração dessa experiência de
outro modo de pensamento.
A experiência do “fora” refere-se ao rompimento da linguagem com a ordem
discursiva de interioridade. Este suposto espaço interior produz, como principal efeito, a
“verdade” da soberania do sujeito. Fazer implodir a interioridade – essa condição reflexiva do
pensamento – força a linguagem a acessar um espaço vazio, sem sujeito – o próprio ser da
linguagem, sua exterioridade.
“Esse pensamento que se mantém fora de toda subjetividade” será qualificado por
Foucault (ibid., p.222) como “pensamento do exterior”.
A despeito das metáforas espaciais evocadas por Blanchot e Foucault, interessa-nos
explorar, nessas formulações, a hipótese do movimento da linguagem e do pensamento.
Alçando seu próprio limite, a linguagem rompe com sua materialidade encarnada no sujeito e
abre-se ao seu próprio ser. Da mesma forma, o pensamento reflexivo, no encontro com seu
próprio limite, abre-se ao fora da linguagem, à sua própria exterioridade, forjando assim um
pensamento do exterior.

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Foucault (ibid., p.221) explicita esse deslocamento quando afirma que a experiência
do fora implica “a abertura para uma linguagem da qual o sujeito está excluído, a revelação de
uma incompatibilidade talvez irremediável entre a aparição da linguagem em seu ser e a
consciência de si em sua identidade”.
De acordo com nosso percurso argumentativo, a intensidade das lutas se dá na arena
da linguagem e a experiência do pensamento, ainda que implicada numa perspectiva política
de resistência, pode forjar modos de vida afirmativos e/ou reativos. Isto posto, sugerimos que
a experiência de exterioridade da linguagem – o pensamento do exterior – parece alinhar-se
ao campo de possibilidades de experiências afirmativas de resistência.
A potência afirmativa do fora emerge na medida em que a ruptura da linguagem
reflexiva faz ruir o império moderno da interioridade, da subjetividade, da consciência ou da
identidade. Nas ruínas do pensar reflexivo, arrastam-se as tábuas de valoração dos valores –
matriz dos critérios de produção de conhecimento e verdade. Poderíamos afirmar que a
fecundidade da experiência do fora se encontra no rompimento radical com a condição cativa
da reflexividade.
Disso decorre dois desdobramentos: de um lado, desestabilizam-se os dispositivos de
(re)produção de valores, acirrando-se a crítica às verdades canonizadas pela racionalidade
moderna. De outro – e esse aspecto é a pedra angular desse trabalho – rompe-se com a
condição de uma crítica cativa, marcada por uma reflexividade servil frente ao jogo fácil de
antagonismos políticos [os quais insistem na oposição caricata do poder e da liberdade], jogo
este tão caro à própria conservação da economia das relações de poder.
Parece-nos que esse último ponto é crucial. É a própria condição da criticidade e,
portanto, a qualidade da experiência do pensamento, que confere à resistência uma tonalidade
política afirmativa e/ou reativa.
Em nosso entendimento, o desdobramento dessa discussão para o campo educacional
se faz imprescindível.

Articulações com o campo educacional

As implicações desse debate para o horizonte da educação são, sobretudo, de ordem


política. No sentido de sinalizar alguns desdobramentos que se fazem prementes na discussão
contemporânea, dispomos o seguinte:

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 a necessidade de problematização da produção do conhecimento e da verdade, esse
lastro histórico do domínio educacional
 a necessidade de problematização da produção de subjetividade constitutiva do fazer
educacional
 a urgência no foco analítico da experiência do pensamento no horizonte das práticas
educacionais cotidianas
 a atenção política frente aos modos afirmativos e/ou reativos de experiência do
pensamento no campo educacional
 a necessidade de atualização da discussão acerca da resistência política, atrelando-a
aos modos afirmativos e/ou reativos que configuram a experiência do pensar.

No território analítico no qual se realiza uma crítica radical dos valores constitutivos
da cultura, lastros civilizatórios como o conhecimento, a verdade e a soberania do sujeito são
inevitavelmente colocados em suspensão. Na condição de prática social, a educação não se
mantém refratária em relação a tais deslizamentos.
A questão do conhecimento e dos modos de conhecer, tendo em vista certa formação
de condição humana e seus modos de vida, tem sido objeto fundamental da educação moderna
e contemporânea. As críticas nietzscheana e foucaultiana acerca do conhecer e do pensar, bem
como das estratégias de enfrentamento do poder e de afirmação da vida, podem atuar no
sentido de convocar a educação a uma crítica radical de suas próprias produções históricas.
Dilatando a problemática, podemos afirmar que, historicamente, o campo educacional
tem se configurado como um lugar social privilegiado à experiência do pensamento e
permeável às questões acerca das formas de resistência política.
Empreender a radicalidade da crítica aqui proposta implica, particularmente, uma
problematização da experiência do pensamento nas práticas educacionais. Sendo a arena da
linguagem o espaço desse embate político, faz-se necessário situar as condições das forças
que se encontram em litígio, considerando dada configuração espaço-temporal.
Aqui, sugerimos que a atenção ao tom afirmativo e/ou reativo dos enfrentamentos
torna-se estratégia política por excelência. Tal critério se faz potência na medida em que a
qualificação dos modos de posicionamentos políticos levados a cabo no lócus educacional diz
respeito, sobretudo, ao modo como a experiência do pensamento se produz ali.
Assim, poderíamos afirmar que a experiência do pensar é indissociável dos modos de
lidar com as relações de poder e liberdade no âmbito educacional. Nesse sentido, por

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encontrar-se implicada com a discussão acerca da liberdade, a problematização da experiência
do pensamento é indissociável do problema da resistência política.
Em nosso entendimento, a crítica nietzscheano-foucaultiana acerca da linguagem e do
pensamento oferece ferramentas analíticas inestimáveis para a expansão do debate da
resistência política no campo educacional contemporâneo.

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Referencias bibliográficas

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1977.
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i
Bacharel em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).
Mestre e Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Docente do Departamento de
Filosofia e Ciências da Educação da FEUSP, onde integra o Coletivo de Pesquisadores sobre Educação e
Relações de Poder (CoPERP)

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