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1. Introdução 3
2. O Rosto na Filosofia 4
- 2.1. Lévinas 4
- 2.2. Deleuze 5
3. O Cinema e o Rosto ao Pormenor 7
- 3.1. Dreyer 7
- 3.2. Bergman 8
Bibliografia / Outras Fontes 10
2
1. INTRODUÇÃO
O rosto constitui uma parte peculiar da anatomia humana: possui uma certa aura
sagrada, fortemente vinculada à ideia de uma identidade inalienável de cada pessoa. De
facto, quando se pensa o rosto, sempre fica a ideia de uma impossibilidade de
aproximação, resultante da ambiguidade e do indescritível de cada rosto – o mistério de
uma vida particular, das suas motivações e dos seus significados.
Aqui reside a verdade de um rosto: na sua abertura e exposição ao mundo, mas
também na sua obscuridade; por outro lado, na minha incapacidade de nele entrar, de
verdadeiramente o compreender, de o conceptualizar. No fundo, o rosto é um enigma:
esconde aquilo que poderia revelar, cria mistério.
Desde as suas origens que o cinema tem sido um meio privilegiado para explorar
as potencialidades do rosto. De facto, esta é uma arte capaz de uma particular interacção
entre ética e estética, onde conflitos e dilemas éticos se aliam às técnicas
cinematográficas para, quantas vezes, daí resultarem sublimes obras que serão, por sua
vez, novas fontes de inspiração e de reflexão para que outras questões sejam ainda
colocadas. A obra que provoca e cria a obra.
De modos diferentes, Emmanuel Lévinas e Gilles Deleuze procuraram, partindo
do cinema enquanto meio, levantar novas questões, criar novos debates sobre o assunto.
Ambos diferem em termos filosóficos de variados modos: Deleuze desvia-se da
transcendência a favor de uma teoria da imanência e da experiência imediata; Lévinas
adopta uma poderosa aderência a uma ética da transcendência, sugerindo um potencial
para o cinema que vai além da interpretação clássica da ontologia da imagem
cinematográfica para apontar a uma dimensão transcendental do cinema na relação com
o Outro.
Todavia, e apesar das suas diferenças, alguns elementos do trabalho e do
pensamento de ambos os filósofos podem ser conectados na análise do cinema e das
questões por este colocadas, nomeadamente, e naquilo que respeita ao objectivo e ao
tema deste trabalho, no referente a dois cineastas em particular: Carl Dreyer e Ingmar
Bergman.
3
2. O ROSTO NA FILOSOFIA
2.1. LÉVINAS
1
Emmanuel Lévinas, Ética e Infinito, trad. João Gama, Lisboa, Edições 70, 2007, p.69.
2
Emmanuel Lévinas, Totalidade e Infinito, trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1988, p.181.
4
empenha-se exteriormente. A expressão ou o rosto extravasa as imagens sempre
imanentes ao meu pensamento como se elas viessem de mim.”3 Porém, o facto de o
rosto comunicar não significa que se revele na sua totalidade, logo, que eu o consiga
apreender. O rosto permanece absoluto na relação com o Outro.
Novamente aqui Lévinas destaca o carácter ético do rosto. Pelo facto de o rosto
não se dar totalmente ao Outro através do discurso, não decorre que o Outro não seja
afectado pela sua expressão. O que acontece é que, tal como o Outro não pode dominar
o Mesmo através da observação do seu rosto, o Mesmo também não consegue englobar
o Outro através da expressão do rosto; pelo contrário, através da expressão, o Mesmo,
embora imponha a revelação do seu ser, promove a liberdade do Outro, pois não lhe
impõe a sua opinião ou autoridade.
O rosto está exposto, não consegue disfarçar aquilo que é: está nu perante o
mundo.
2.2. DELEUZE
3
Lévinas, Totalidade e Infinito, p.277.
4
Gilles Deleuze; Félix Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia, trad. Rafael Godinho, Lisboa,
Assírio & Alvim, p.220.
5
não é a dos homens «em geral». O rosto não é animal, mas já não é humano em geral”5.
O rosto aproxima-se, aqui, do desumano, do inumano. O rosto faz sair a cabeça do
estrato de organismo, humano ou animal, conectando-a a outros estratos como os de
significância ou de subjectivação: “O rosto é uma fonte de organização. Pode-se dizer
que o rosto toma no seu rectângulo ou no seu círculo todo um conjunto de
características, traços de rosto que vai subsumir e pôr ao serviço da significância e da
subjectivação.”6
Percebe-se, pois, que o rosto é próprio e único do indivíduo, já que a
subjectividade de cada um seria um vazio se o rosto não funcionasse como zona de
ressonância da realidade mental. Para o justificar, o autor exemplifica com o facto de,
numa conversa, o ouvinte ter necessidade de olhar a expressão do rosto do falante; sabe
que, ao fazê-lo, está a receber de forma subtil mais informação do que aquela que é
comunicada verbalmente.
Deste modo, e perante esta caracterização de rosto, Deleuze reconhece-lhe três
funções: o rosto é individuante, pois distingue ou caracteriza cada pessoa (característica
primordial, da qual surgirão as próximas duas); é socializante, já que possui um papel
social; e é relacional ou comunicante, ao assegurar não só a comunicação entre duas
pessoas, mas também, numa mesma pessoa, o acordo interior entre o seu carácter e o
seu papel no mundo.
Porém, segundo Deleuze, o rosto, que apresenta estes aspectos tanto no cinema
como fora dele, perde-os todos quando exposto num grande plano. O método do grande
plano é esse mesmo: suspender a individuação da pessoa. Refere o filósofo que, o
grande plano do rosto é simultaneamente o rosto e o seu apagamento: da mesma forma
que o exibe, também o dissolve. Assim, não há grandes planos do rosto, pois o rosto é
um grande plano ele mesmo, na medida em que estilhaçou a sua tripla função: “Rosto,
que horror, é naturalmente paisagem lunar, com os poros, os lados de espessura plana
desigual, os mastros, os brilhantes, as brancuras e os buracos: não há necessidade de
fazer um grande plano para o tornar desumano, é naturalmente grande plano, e
naturalmente desumano, máscara monstruosa.”7 O rosto transmite o conteúdo emocional
da pessoa através da moldagem das suas formas, daí que Deleuze também o designe,
tal como ao grande plano, por imagem-afeição.
5
Deleuze; Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia, p.223.
6
Idem, ibidem, p.244.
7
Idem, ibidem, p.248.
6
3. O CINEMA E O ROSTO AO PORMENOR
3.1. DREYER
“Partir do rosto como de uma fonte em que todo o sentido aparece, do rosto na
sua nudez absoluta, na sua miséria de cabeça que não encontra lugar onde repousar, é
afirmar que o ser tem lugar na relação entre os homens, que o Desejo, mais do que a
necessidade, comanda actos.”8
Esta passagem de Lévinas dá acesso ao forte sentido dramático que Dreyer
atribuía ao menor pormenor do rosto. O próprio declara que “quem viu os meus filmes
saberá a importância que dou ao rosto humano. É uma terra que nunca nos cansamos de
explorar. Num estúdio, a mais nobre experiência é registar a expressão de um rosto
sensível à misteriosa força da inspiração, vê-lo animar-se a partir do interior e carregar-se
de poesia”9.
Dreyer considerava o rosto enquanto janela da alma, e acusava o cinema de estar
a ser dominado pela tirania da palavra. Nas suas obras, a expressão dos rostos dos
actores possuía uma importância comparável à da expressão oral dos mesmos. Por
exemplo, em A Palavra/Ordet, os monólogos da personagem Johannes (Preben Rye)
acerca dos seus conflitos interiores, derivados do estudo de Teologia, são efectuados
com uma colocação em abismo soberbamente demonstrada pela sua expressão facial,
dando uma profundidade à personagem impossível de conseguir apenas com a
verbalização do discurso. Por outro lado, em A Paixão de Joana D’Arc, o rosto adquire
uma importância tal que a câmara raramente abandona o rosto das personagens; de
facto, não abundam os planos gerais que situem espacialmente o espectador – quase
apenas existem grandes planos dos actores com fundo branco, de forma que o
espectador se concentre unicamente na expressividade dos rostos: na sua nudez
absoluta, para citar Lévinas. De todas elas, destaque óbvio para o desempenho de
Renée Falconetti na interpretação de Jeanne, numa mise-en-abyme que vai para além da
simples representação: no seu rosto transparece a paixão pela defesa dos seus
princípios e das suas crenças, mas também a dor, não só a física, mas também aquela
originada pela forma como não lhe é permitida a livre expressão da paixão.
Também Deleuze reflectiu sobre a obra de Dreyer. A propósito de A Paixão de
Joana D’Arc, refere ser um extraordinário documento sobre a vertigem do rosto. Na
opinião do filósofo, Dreyer atingiu a excelência ao separar a Paixão do processo histórico,
isto porque os afectos são uma expressão do estado de coisas, mas esta expressão não
8
Lévinas, Totalidade e Infinito, p.279.
9
Georges Sadoul, Dicionário dos Cineastas, trad. Ana Moura, Lisboa, Livros Horizonte, 2.ª Ed., 1993, p.90.
7
reenvia ao estado de coisas, mas sim aos rostos que o exprimem, e só assim foi possível
criar uma obra com tal intensidade: “Chez Dreyer, la Passion apparaissait sur le mode de
«l’éxtatique» et passait par le visage, son exhaustion, son affrontement de la limite.”10
3.2. BERGMAN
10
Gilles Deleuze, Cinéma I – L’Image-Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, p.153.
11
Georges Sadoul, op.cit., p.31.
8
já não está ali ao lado de Marianne – encontra-se algures, juntamente com a sua esposa.
O grande plano mostrado pela câmara ignora tudo o que rodeia Henrik; apenas o seu
rosto, a sua expressão, existe.
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BIBLIOGRAFIA
OUTRAS FONTES
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