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COMUNICAÇÃO

ROSTIDADE E OBRA: LÉVINAS E DELEUZE COM DREYER E BERGMAN

António Maduro Guerreiro


ÍNDICE

 1. Introdução 3
 2. O Rosto na Filosofia 4
- 2.1. Lévinas 4
- 2.2. Deleuze 5
 3. O Cinema e o Rosto ao Pormenor 7
- 3.1. Dreyer 7
- 3.2. Bergman 8
 Bibliografia / Outras Fontes 10

2
1. INTRODUÇÃO

O rosto constitui uma parte peculiar da anatomia humana: possui uma certa aura
sagrada, fortemente vinculada à ideia de uma identidade inalienável de cada pessoa. De
facto, quando se pensa o rosto, sempre fica a ideia de uma impossibilidade de
aproximação, resultante da ambiguidade e do indescritível de cada rosto – o mistério de
uma vida particular, das suas motivações e dos seus significados.
Aqui reside a verdade de um rosto: na sua abertura e exposição ao mundo, mas
também na sua obscuridade; por outro lado, na minha incapacidade de nele entrar, de
verdadeiramente o compreender, de o conceptualizar. No fundo, o rosto é um enigma:
esconde aquilo que poderia revelar, cria mistério.
Desde as suas origens que o cinema tem sido um meio privilegiado para explorar
as potencialidades do rosto. De facto, esta é uma arte capaz de uma particular interacção
entre ética e estética, onde conflitos e dilemas éticos se aliam às técnicas
cinematográficas para, quantas vezes, daí resultarem sublimes obras que serão, por sua
vez, novas fontes de inspiração e de reflexão para que outras questões sejam ainda
colocadas. A obra que provoca e cria a obra.
De modos diferentes, Emmanuel Lévinas e Gilles Deleuze procuraram, partindo
do cinema enquanto meio, levantar novas questões, criar novos debates sobre o assunto.
Ambos diferem em termos filosóficos de variados modos: Deleuze desvia-se da
transcendência a favor de uma teoria da imanência e da experiência imediata; Lévinas
adopta uma poderosa aderência a uma ética da transcendência, sugerindo um potencial
para o cinema que vai além da interpretação clássica da ontologia da imagem
cinematográfica para apontar a uma dimensão transcendental do cinema na relação com
o Outro.
Todavia, e apesar das suas diferenças, alguns elementos do trabalho e do
pensamento de ambos os filósofos podem ser conectados na análise do cinema e das
questões por este colocadas, nomeadamente, e naquilo que respeita ao objectivo e ao
tema deste trabalho, no referente a dois cineastas em particular: Carl Dreyer e Ingmar
Bergman.

3
2. O ROSTO NA FILOSOFIA

2.1. LÉVINAS

“O acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os


olhos, uma testa, um queixo e se o pode descrever, é que nos voltamos para outrem
como para um objecto. […] A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela
percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele.”1
Lévinas considera que, quando há pretensão de conhecimento de algo, de um
objecto, só existe possibilidade de o fazer quando esse objecto se manifesta, se dá a
conhecer; ou seja, quando a identidade desse objecto, o seu Eu, se revela na sua
alteridade, quando se torna conteúdo. Porém, afirma, o rosto recusa-se a ser conteúdo, a
revelar-se na sua alteridade, e aí reside o facto de não poder ser compreendido.
Na opinião do autor, a abertura do rosto situa-se num outro plano. Pelo facto de
um ente ser, de possuir independência, já revela a sua capacidade de inteligibilidade.
Mas esta inteligibilidade remete-o para além do ser, ou seja, para além de si próprio.
Logo, sendo o rosto ser e sensibilidade, e considerando a sensibilidade como a abertura
por excelência, a visão da sensibilidade é a visão da própria abertura do ser, levando o
rosto a ultrapassar-se a si mesmo na sua abertura.
Deste modo, o rosto não se reduz a um pedaço de corpo; o rosto deve ser
entendido como algo mais, como uma placa sensitiva e significativa. Na sua recusa de
transformação num conteúdo, que o nosso pensamento abarcaria, o rosto impõe-se no
seu valor por si mesmo, exprime-se por si. Assim, o rosto é significação sem contexto,
pois possui um sentido só para ele, não necessita de estar incluído num contexto que lhe
atribua significação: “A apresentação do ser no rosto não tem o estatuto de um valor. O
que chamamos rosto é precisamente a excepcional apresentação de si por si, sem
paralelo com a apresentação de realidades simplesmente dadas, sempre suspeitas de
algum logro, sempre possivelmente sonhadas. Para procurar a verdade, já mantive uma
relação com um rosto que pode garantir-se a si próprio, cuja epifania também é, de algum
modo, uma palavra de honra.”2
A revelação do rosto é palavra, é linguagem. É o rosto que torna possível e
inaugura todo o discurso – na aproximação a outra pessoa, é sempre o rosto que
estabelece o primeiro contacto. Isto porque o rosto é expressão, dá a presença de
outrem: “A presença de Outrem ou expressão, fonte de toda a significação, não se
contempla como uma essência inteligível, mas entende-se como linguagem e, por isso,

1
Emmanuel Lévinas, Ética e Infinito, trad. João Gama, Lisboa, Edições 70, 2007, p.69.
2
Emmanuel Lévinas, Totalidade e Infinito, trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1988, p.181.

4
empenha-se exteriormente. A expressão ou o rosto extravasa as imagens sempre
imanentes ao meu pensamento como se elas viessem de mim.”3 Porém, o facto de o
rosto comunicar não significa que se revele na sua totalidade, logo, que eu o consiga
apreender. O rosto permanece absoluto na relação com o Outro.
Novamente aqui Lévinas destaca o carácter ético do rosto. Pelo facto de o rosto
não se dar totalmente ao Outro através do discurso, não decorre que o Outro não seja
afectado pela sua expressão. O que acontece é que, tal como o Outro não pode dominar
o Mesmo através da observação do seu rosto, o Mesmo também não consegue englobar
o Outro através da expressão do rosto; pelo contrário, através da expressão, o Mesmo,
embora imponha a revelação do seu ser, promove a liberdade do Outro, pois não lhe
impõe a sua opinião ou autoridade.
O rosto está exposto, não consegue disfarçar aquilo que é: está nu perante o
mundo.

2.2. DELEUZE

Deleuze descreve o rosto como um sistema parede branca-buraco negro: as faces


brancas com olhos negros, uma vez que a significância necessita de uma parede branca
sobre a qual inscrever os seus signos, e a subjectivação requer um buraco negro onde
alojar a sua consciência e a sua paixão: “O rosto não é um tegumento exterior àquele que
fala, que pensa ou que sente. […] O rosto constrói a parede de que o significante tem
necessidade de saltar, constitui a parede do significante, o enquadramento ou o ecrã.”4
Previamente existem os buracos negros sem dimensão e a parede branca sem forma,
sendo a formação do rosto um acontecimento posterior. Portanto, nem o significante
constrói sozinho a sua parede, nem a subjectividade cria sozinha o seu buraco negro.
Logo, é necessária a existência de uma máquina abstracta de rostidade para produzir os
rostos, dando ao significante a sua parede branca e à subjectividade o seu buraco negro.
A cabeça não é forçosamente um rosto. O rosto só se produz quando a cabeça
deixa de fazer parte do corpo, quando deixa de ser codificada pelo corpo; ou seja,
quando a cabeça se encontra descodificada e sofre uma sobrecodificação por algo que
se chama rosto. Logo, para existir rosto, todos os elementos da cabeça têm de ser
rostificados pela máquina abstracta. Assim, “se a cabeça, mesmo humana, não é
forçosamente rosto, o rosto é produzido na humanidade, mas para uma necessidade que

3
Lévinas, Totalidade e Infinito, p.277.
4
Gilles Deleuze; Félix Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia, trad. Rafael Godinho, Lisboa,
Assírio & Alvim, p.220.

5
não é a dos homens «em geral». O rosto não é animal, mas já não é humano em geral”5.
O rosto aproxima-se, aqui, do desumano, do inumano. O rosto faz sair a cabeça do
estrato de organismo, humano ou animal, conectando-a a outros estratos como os de
significância ou de subjectivação: “O rosto é uma fonte de organização. Pode-se dizer
que o rosto toma no seu rectângulo ou no seu círculo todo um conjunto de
características, traços de rosto que vai subsumir e pôr ao serviço da significância e da
subjectivação.”6
Percebe-se, pois, que o rosto é próprio e único do indivíduo, já que a
subjectividade de cada um seria um vazio se o rosto não funcionasse como zona de
ressonância da realidade mental. Para o justificar, o autor exemplifica com o facto de,
numa conversa, o ouvinte ter necessidade de olhar a expressão do rosto do falante; sabe
que, ao fazê-lo, está a receber de forma subtil mais informação do que aquela que é
comunicada verbalmente.
Deste modo, e perante esta caracterização de rosto, Deleuze reconhece-lhe três
funções: o rosto é individuante, pois distingue ou caracteriza cada pessoa (característica
primordial, da qual surgirão as próximas duas); é socializante, já que possui um papel
social; e é relacional ou comunicante, ao assegurar não só a comunicação entre duas
pessoas, mas também, numa mesma pessoa, o acordo interior entre o seu carácter e o
seu papel no mundo.
Porém, segundo Deleuze, o rosto, que apresenta estes aspectos tanto no cinema
como fora dele, perde-os todos quando exposto num grande plano. O método do grande
plano é esse mesmo: suspender a individuação da pessoa. Refere o filósofo que, o
grande plano do rosto é simultaneamente o rosto e o seu apagamento: da mesma forma
que o exibe, também o dissolve. Assim, não há grandes planos do rosto, pois o rosto é
um grande plano ele mesmo, na medida em que estilhaçou a sua tripla função: “Rosto,
que horror, é naturalmente paisagem lunar, com os poros, os lados de espessura plana
desigual, os mastros, os brilhantes, as brancuras e os buracos: não há necessidade de
fazer um grande plano para o tornar desumano, é naturalmente grande plano, e
naturalmente desumano, máscara monstruosa.”7 O rosto transmite o conteúdo emocional
da pessoa através da moldagem das suas formas, daí que Deleuze também o designe,
tal como ao grande plano, por imagem-afeição.

5
Deleuze; Guattari, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia, p.223.
6
Idem, ibidem, p.244.
7
Idem, ibidem, p.248.

6
3. O CINEMA E O ROSTO AO PORMENOR

3.1. DREYER

“Partir do rosto como de uma fonte em que todo o sentido aparece, do rosto na
sua nudez absoluta, na sua miséria de cabeça que não encontra lugar onde repousar, é
afirmar que o ser tem lugar na relação entre os homens, que o Desejo, mais do que a
necessidade, comanda actos.”8
Esta passagem de Lévinas dá acesso ao forte sentido dramático que Dreyer
atribuía ao menor pormenor do rosto. O próprio declara que “quem viu os meus filmes
saberá a importância que dou ao rosto humano. É uma terra que nunca nos cansamos de
explorar. Num estúdio, a mais nobre experiência é registar a expressão de um rosto
sensível à misteriosa força da inspiração, vê-lo animar-se a partir do interior e carregar-se
de poesia”9.
Dreyer considerava o rosto enquanto janela da alma, e acusava o cinema de estar
a ser dominado pela tirania da palavra. Nas suas obras, a expressão dos rostos dos
actores possuía uma importância comparável à da expressão oral dos mesmos. Por
exemplo, em A Palavra/Ordet, os monólogos da personagem Johannes (Preben Rye)
acerca dos seus conflitos interiores, derivados do estudo de Teologia, são efectuados
com uma colocação em abismo soberbamente demonstrada pela sua expressão facial,
dando uma profundidade à personagem impossível de conseguir apenas com a
verbalização do discurso. Por outro lado, em A Paixão de Joana D’Arc, o rosto adquire
uma importância tal que a câmara raramente abandona o rosto das personagens; de
facto, não abundam os planos gerais que situem espacialmente o espectador – quase
apenas existem grandes planos dos actores com fundo branco, de forma que o
espectador se concentre unicamente na expressividade dos rostos: na sua nudez
absoluta, para citar Lévinas. De todas elas, destaque óbvio para o desempenho de
Renée Falconetti na interpretação de Jeanne, numa mise-en-abyme que vai para além da
simples representação: no seu rosto transparece a paixão pela defesa dos seus
princípios e das suas crenças, mas também a dor, não só a física, mas também aquela
originada pela forma como não lhe é permitida a livre expressão da paixão.
Também Deleuze reflectiu sobre a obra de Dreyer. A propósito de A Paixão de
Joana D’Arc, refere ser um extraordinário documento sobre a vertigem do rosto. Na
opinião do filósofo, Dreyer atingiu a excelência ao separar a Paixão do processo histórico,
isto porque os afectos são uma expressão do estado de coisas, mas esta expressão não

8
Lévinas, Totalidade e Infinito, p.279.
9
Georges Sadoul, Dicionário dos Cineastas, trad. Ana Moura, Lisboa, Livros Horizonte, 2.ª Ed., 1993, p.90.

7
reenvia ao estado de coisas, mas sim aos rostos que o exprimem, e só assim foi possível
criar uma obra com tal intensidade: “Chez Dreyer, la Passion apparaissait sur le mode de
«l’éxtatique» et passait par le visage, son exhaustion, son affrontement de la limite.”10

3.2. BERGMAN

O rosto ocupa no cinema de Bergman um lugar completamente privilegiado. Tal é


justificado pelo próprio com o facto de ser sua pretensão fazer filmes com os estados de
alma e as emoções do ser humano. O rosto é a pele que esconde e que revela tudo ao
mesmo tempo, é a composição do ser tal como toma forma para si e para os outros; daí o
seu estatuto assumido pelo cineasta: “O rosto humano é o ponto de partida do nosso
trabalho. A câmara deve intervir como um observador totalmente objectivo. O mais belo
meio de expressão de um actor é o seu olhar. A simplicidade, a concentração, a
consciência dos pormenores, tais devem ser as constantes de todas as cenas e de todo o
conjunto.”11
Bergman chamou a si a tarefa de reescrever aquilo que somos desde as
possibilidades várias da expressão, procurando sondar fisionomias e rostos, em vez de
lugares ou ambientes. E viajou entre os dois pólos afectivos: foi capaz de criar, através
dos seus actores, quer expressões aterradoras, quer imagens de candura e de
serenidade.
E isso é perceptível numa obra como A Máscara/Persona. Nela apresentam-se
duas mulheres, reunidas numa casa isolada: uma, Elisabet Vogler (Liv Ullmann),
abandona o seu meio, deixa de comunicar; a outra, Alma (Bibi Andersson), tem a missão
de a acompanhar e tentar restabelecer o diálogo. Na análise de Deleuze, Elisabet perde
a sua individuação ao ponto de adquirir uma estranha semelhança com Alma, uma
semelhança por defeito ou ausência; Alma perde identicamente a sua individuação, e
abre-se em confidências cada vez mais íntimas. Assim, os grandes planos de Bergman
impelem os rostos de ambas para uma região onde o princípio de individuação deixa de
reinar – eles não se confundem apenas porque se assemelham fisicamente, mas porque
perderam a sua individuação, e as suas capacidades de socialização e de comunicação.
Também em Saraband, última obra de Bergman, as expressões do rosto
dominam, enchem o ecrã. De entre as muitas cenas que poderiam aqui ser comentadas,
destaque-se aquela em que Henrik (Börge Ahlstedt), na igreja, fala com Marianne (Liv
Ullmann) acerca da sua falecida esposa: o seu rosto entra numa dimensão de transe; ele

10
Gilles Deleuze, Cinéma I – L’Image-Mouvement, Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, p.153.
11
Georges Sadoul, op.cit., p.31.

8
já não está ali ao lado de Marianne – encontra-se algures, juntamente com a sua esposa.
O grande plano mostrado pela câmara ignora tudo o que rodeia Henrik; apenas o seu
rosto, a sua expressão, existe.

9
BIBLIOGRAFIA

- Deleuze, Gilles, Cinéma I – L’Image-Mouvement, Paris, Les Éditions de


Minuit, 1983.
- Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, Mil Planaltos – Capitalismo e
Esquizofrenia, trad. Rafael Godinho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.
- Lévinas, Emmanuel, Ética e Infinito, trad. João Gama, Lisboa, Edições 70,
2007.
- Lévinas, Emmanuel, Totalidade e Infinito, trad. José Pinto Ribeiro, Lisboa,
Edições 70, 1988.
- Sadoul, Georges, Dicionário dos Cineastas, trad. Ana Moura, Lisboa,
Livros Horizonte, 2.ª Ed., 1993.

OUTRAS FONTES

- Bergman, Ingmar, A Máscara, Filmes Castello Lopes, cop. 1966. (DVD)


(79 min.)
- Bergman, Ingmar, Saraband, Atalanta Filmes, cop. 2004. (DVD) (107
min.)
- Dreyer, Carl Theodor, A Palavra, Costa do Castelo Filmes, cop. 1955.
(DVD) (125 min.)
- Dreyer, Carl Theodor, La Pasión de Juana de Arco, Sherlock Films, cop.
1928. (DVD) (98 min.)

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