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GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA 
Disciplina: Ética II 
Prof.: Dr. Pe. Edvaldo Antônio de Melo
Mariana, nov. de 2022

A RESPONSABILIDADE A PARTIR DO ROSTO DE OUTREM NA ÉTICA


LEVINASIANA

Bruno César de Matos1


O presente texto é uma análise do diálogo entre os filósofos Emmanuel Lévinas e
Philippe Nemo na obra Ética e Infinito. A ideia do Infinito na filosofia de Lévinas não
aponta para a totalidade de um Deus onisciente, mas, para o Infinito que o Rosto de
Outrem representa ao Eu. Este Infinito pode ser considerado, numa perspectiva
filosófica-religiosa, como o manifestar do Infinito a partir de Outrem, ou melhor, como a
infinitude do Olhar de Outrem que reflete a Deus. No entanto, o propósito de Lévinas
não está em apontar para Deus, mas, para ao vestígio de Deus que se desdobra através do
Rosto de Outrem.

Lévinas ao ser entrevistado pelo filósofo Nemo se posiciona sem ressalvas e acaba
falando sobre alguns termos que compõem o corpo da sua filosofia: “rosto” e
“responsabilidade”. Assim, quando nos debruçamos no termo rosto, pode-se constatar
que o “rosto” do outro em Lévinas apresenta vestígio de Deus. Na leitura levinasiana o
rosto apresenta traços do infinito, ou seja, “o rosto significa vida, alteridade absoluta,
manifestação enigmática do Infinito.” (CHACON, 2015, p. 16).

O Infinito em Lévinas dá-se pela forma como ele articula o conceito cartesiano de
infinito, dando-o uma nova compreensão e estabelecendo-o como uma das questões
centrais de sua filosofia (CHACON, 2015, p. 17). O que se compreende, a partir de
Lévinas, é que o Ser ontológico é inteiramente conflitante com a ideia de que “o desejo
metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro”
(LÉVINAS, 1988a, p. 21). Ou seja, o que é o ser para Heidegger é o rosto para Lévinas.
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Bacharelando em Filosofia pela Faculdade Dom Luciano Mendes
Por certo, o rosto aponta-nos para o transcendente. Esse é um conceito que Lévinas o
relaciona com várias categorias bíblicas, pois, a filosofia levinasiana possui raízes no
judaísmo e segundo Chacon (2015, p.17):

A escolha e utilização deste termo provém, possivelmente, da inspiração


profética advinda da tradição hebraica, em que o termo hebraico comumente
traduzido como rosto pode indicar também as várias formas da presença de
YHWH. Destarte, é a partir dessa inspiração que Emmanuel Levinas irá
descrever o rosto como manifestação enigmática do Infinito.

Dessa forma, Lévinas apresentar os neologismos: o pobre, a viúva, o órfão e o


estrangeiro. Tais categorias bíblicas representam os miseráveis e desfavorecidos da
sociedade hebraica (CHACON, 2015, p.19). Assim, diante do rosto do outro somos
convidados assumir uma postura de misericórdia. Ademais, na perspectiva cristã, essa
postura de olhar o outro com misericórdia é descrita no texto bíblico denominada de
“parábola do Bom Samaritano” (cfr Lc 10, 25-37) e caracterizada como compromisso de
todas as pessoas. Nesse sentido, ao refletir sobre essa parábola em uma de suas
catequeses, disse o Papa Francisco (2016):

a parábola nos oferece um primeiro ensinamento: não é automático que quem


frequenta a casa de Deus e conhece a sua misericórdia saiba amar o próximo.
Não é automático! Você pode conhecer toda a Bíblia, você pode conhecer
todas as rubricas litúrgicas, você pode conhecer toda a teologia, mas do
conhecer não é automático o amar: o amar tem outro caminho, é preciso
inteligência, mas também algo a mais… O sacerdote e o levita veem, mas o
ignoram; olham, mas não providenciam. No entanto, não existe verdadeiro
culto se esse não se traduz em serviço ao próximo. [...] Se eu não me
aproximo daquele homem, daquela mulher, daquela criança, daquele idoso ou
daquela idosa que sofre, não me aproximo de Deus. Mas venhamos ao centro
da parábola: o samaritano, isso é, justamente aquele desprezado, aquele em
quem ninguém apostaria nada e que também tinha os seus compromissos e as
suas coisas a fazer, quando vê o homem ferido, não passou além como os
outros dois, que eram ligados ao Templo, mas “teve compaixão” (v. 33).

Nesse sentido, podemos fazer esta ligação da parábola com a filosofia ética de Lévinas.
Pois, Lévinas ressalta a importância do eu “sair de si mesmo” para se colocar como
presença qualitativa diante dos outros, da mesma maneira como descreve o Papa,
apontando para toda a humanidade um compromisso autêntico com o outro.

É justamente nesse “sair de si mesmo”, para uma relação de face a face com o outro, que
temos o momento ético por excelência (CHACON, 2015, p.18). Philippe Nemo discute
com Lévinas se o outro também deve assumir uma responsabilidade para com aquele
que o olha face a face. “Mas o outro não é também responsável a meu respeito?”
(LEVINAS, 1988, p.81). De forma sucinta, Lévinas responde que isso é um problema
dele (do outro). Ou seja, na visão levinasiana ainda que perecemos, a nossa
responsabilidade para com outro, deve ser assumida sem esperar uma reciprocidade
(LEVINAS, 1988, p.81).

O samaritano não ficou em si, mas se lançou ao encontro do outro e fez muito além do
que imaginava devido ao vestígio de Deus experimentado através do rosto ferido de
outrem. É como afirma Lévinas (1982, p.81), “o eu sempre tem uma responsabilidade a
mais do que os outros”. Assim, a partir do momento em que reconhecemos as misérias
das pessoas, “instaura a própria proximidade do Outro” (LÉVINAS, 1988a, p. 178).

O rosto é a identidade do outro que se manifesta diante de nós. Para Lévinas (2010, p.
30): “A visão do rosto não é mais uma visão, mas uma audição e palavra [...].” Ou seja,
o nosso rosto fala quem somos, é na relação dos rostos que é revelada a nudez. Portanto,
o rosto não se resume apenas nas partes físicas, como afirma Melo (2003, p. 89):

O rosto não é uma agregação de um nariz, de uma fronte, de olhos etc, ele é
tudo isso, mas toma significado de um rosto pela dimensão nova que ele abre
na percepção de um ser. Pelo rosto, o ser não é somente fechado na sua forma
e à disposição - ele é aberto, instala-se em profundidade, em todo caso, nessa
abertura, apresenta-se pessoalmente. O rosto é um modo irredutível segundo o
qual o ser pode apresentar na sua identidade.

Nesse sentido, o rosto é algo que nos permite ir mais além daquilo que os nossos olhos
podem ver. Deste modo, a nudez do rosto torna-se resistente ao domínio e à posse do
sujeito. Ou seja, o encontro na relação de face com face impede que um domine ou tome
posse do outro. Pois, trata-se de uma descoberta de si mesmo. Assim, para Melo (2003,
p. 97):

Ser para o outro é a descoberta do para-si, dentro dos seus modos ou vivência
que não encontram seu fundamento em si, mas na aparição do outro. Assim, a
presença do outro é possibilidade de descoberta daquilo que sou, descubro-me
o que sou porque o próximo me olha, esse ser diferente de mim que
transcende a mim, revela-me um testemunho da minha realidade humana.
(MELO, 2003. p. 97)

Nessa perspectiva, estar diante do outro coloca-nos diante da nossa própria história,
identidade, misérias e grandezas. Porém, a descoberta de si mesmo através do outro pode
gerar um problema muito atual na sociedade hodierna. Trata-se de não querer confrontar
com o próprio eu, ou seja, o ser humano está cada dia mais distante de aproximar da sua
história. Segundo Melo (2003, p. 98), “o olhar do outro me expõe, coloca-me em perigo,
temporalmente”. Logo, na fuga de confrontar consigo mesmo, o homem se isola dos
outros, isto é, evita ter contato com o rosto de outrem.

Assim, a ética do rosto não significa um simples aperto de mão, mas num modo de vida,
numa atitude ética de respeito pelo outro, reconhecendo a dignidade do outro que está
além da crença, raça, idade, religião, sexo, saúde, riqueza ou pobreza. Portanto,
concluíamos que a responsabilidade a partir do rosto de outrem em Lévinas é um tema
que encanta e desafia. A responsabilidade pelo outro deve ser vista não apenas como
uma leitura filosófica que ficou no tempo com o autor, mas como uma regra de vida,
independentemente da cultura, da religião, da política ou da raça. Ademais, esse é um
tema que perpassa toda história da humanidade, pois se trata de uma postura que todos
os indivíduos deveriam ter perante o outro. Por fim, acreditamos que tudo que
apresentamos até aqui, expôs sumariamente algumas chaves de leitura para se adentrar
no pensamento levinasiano.

REFERÊNCIAS
CHACON, Daniel Ribeiro de Almeida. Rosto e Responsabilidade na filosofia da
Alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, Porto Alegre, V.8, n.2, p.15-24, dez. 2015.

FRANCISCO, Papa. Catequese do Papa: parábola do Bom Samaritano. Trad.


Jéssica Marçal, 2016. Disponível em:
https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/catequese/
catequese-do-papa-parabola-do-bom-samaritano/. Acesso em: 02 de nov. de 2022.

LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Tradução João Gama. Lisboa: Edições 70,
1988.

LEVINAS, Emanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino


Pivatto. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

MELO, Nélio de Viera de. A ética da alteridade em Emmanuel Lévinas. Porto Alegre:
Edipucrs, 2003. 311p.

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