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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUCSP

Sybil Safdie Douek

Sujeito e alteridade em Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas:


proximidades e distâncias

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2009
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUCSP

Sybil Safdie Douek

Sujeito e alteridade em Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas:


proximidades e distâncias

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Filosofia, sob a orientação da Prof.
Dra Jeanne Marie Gagnebin

SÃO PAULO

2009
Banca Examinadora
RESUMO

A presente tese se propõe a confrontar as filosofias de Paul Ricoeur e Emmanuel


Lévinas, a partir de uma questão essencial: a relação do sujeito com a alteridade. Questão
cuja relevância se coloca de modo dramático após a experiência histórica das duas Guerras
Mundiais, em particular da Shoah: que sentido dar, hoje, às palavras: sujeito, homem ou
ética? Conscientes da necessária e incontornável crítica ao humanismo clássico e, desejosos
de retirar o sujeito da posição central que vem ocupando na filosofia, desde Descartes,
ambos parecem querer reabilitar o sujeito, fazer-lhe novamente confiança, sem por isso,
render-lhe irrestritas homenagens. O resultado é uma concepção de sujeito que inclui em si
próprio a alteridade: “si mesmo como um outro”, diz Ricoeur; “o outro no mesmo”, diz
Lévinas: mas que lugar dar a outrem? Lévinas insiste na prioridade absoluta do outro,
propondo a deposição do sujeito em favor de outrem: o sujeito se substitui ao outro, é refém
do outro, sendo absolutamente passivo na relação; Ricoeur, por seu lado, defende a
importância dos dois pólos e prefere falar em reciprocidade da relação e em receptividade
do sujeito. As diferentes perspectivas na relação sujeito-outrem implicam em duas
concepções de ética: em Lévinas, ética da responsabilidade e da eleição; em Ricoeur, ética
da promessa, do bem viver-junto e da mutualidade. Como também em duas atitudes
diferentes, no que diz respeito a uma questão nem sempre considerada filosófica: a
transcendência ou o nome de Deus. Se para ambos Deus é uma questão que merece
atenção, Ricoeur O exclui de seu discurso filosófico, construindo uma hermenêutica do si
que não necessita da transcendência para se sustentar; enquanto para Lévinas, o problema
da subjetividade e o da transcendência caminham juntos. Nasce uma questão: a presença ou
a ausência do nome de Deus nas filosofias do sujeito de Ricoeur e Lévinas poderia ter
conexões ou correspondências com suas respectivas tradições religiosas - o protestantismo
de Ricoeur e o judaísmo de Lévinas? Tradições que eles nunca negaram, embora as tenham
mantido afastadas, cada um a seu modo, de suas reflexões filosóficas.
Palavras Chave: subjetividade, alteridade; si mesmo, outrem; ipseidade, unicidade;
atestação, eleição; autonomia, heteronomia; identidade narrativa, hermenêutica do si,
substituição, refém; ética, responsabilidade, promessa; transcendência, judaísmo e
protestantismo.
ABSTRACT

The present dissertation intends to confront Paul Ricoeur and Emmanuel Levinas’
philosophy, from an essential point of view: the relationship between the subject and the
other, subjectivity and alterity. Question which relevance seems to be dramatic after the
Two World Wars, particularly after the Shoah: which could be, subsequent to this historical
experience, the meanings of words such as subject, man and ethics? Aware of the necessary
and indispensable critics toward classic humanism, and willing to withdraw the subject of
his central position in philosophy, since Descartes, both authors seem to rehabilitate the
subject, and put again faith in him, without paying to the subject unrestricted reverence.
The result is the idea of a subject that includes in itself alterity: “self as another”, says
Ricoeur; “the other in the same”, says Levinas. But which is the place assigned to the
other? Levinas insists in the absolute priority of the other, and proposes the deposition of
the subject in behalf of the other: the subject substitutes himself to the other, it is hostage of
the other, being absolutely passive in his relationship with him. Ricoeur, in his turn,
defends the importance of both (oneself and other) and prefers to think in terms of
reciprocity, and receptivity of the subject. These different perspectives concerning
relationship between subject and other imply two conceptions of ethics: for Levinas, ethics
of responsibility and election; for Ricoeur, ethics of promise, of good living together and
mutuality. It implicates also two different attitudes in regard of a question not always
considered as philosophical: transcendence or the Name of God. For both, God is a
question which deserves attention, but Ricoeur excludes the Name of his philosophical
speech, building a hermeutics of the self without the support of transcendence; while for
Levinas, the problem of subjectivity goes along this the problem of transcendence.
Therefore, a question is born: the presence or absence of the Name of God in their
philosophy of subjectivity could have connections or correspondences with their respective
religious traditions – Ricoeur´s Protestantism and Levinas’ Judaism? Traditions never
denied by both of them, although kept far from their philosophical reflections, each one in
his own way.
Keywords: subjectivity, alterity; self, other; ipseity, unicity; attestation, election;
autonomy, heteronomy; narrative identity, hermeunitcs of the self, substitution, hostage;
ethics, responsibility, promise; transcendence, Judaism, Protestantism.
“A proximidade do próximo ... o
dom gratuito ou a graça da vinda
do outro ao meu encontro...”
(Lévinas)

A meus pais, Zaki e Emma, que me agraciaram com suas


presenças, e continuam a faze-lo, do fundo de suas ausências...
A Yola e Bero, que me ensinaram a graça de viver...
A meus filhos, Alberto e Daniel, graça maior não há...
Ao Zouki, graça da presença, presente da graça...
AGRADECIMENTOS

Sim, claro, escrever é solitário, pensar é solitário. Mas não se poderia nem escrever, nem
pensar não fossem os outros, estes outros, tantos outros, muitos outros. A todos, agradeço
imensamente... A muitos, os mais próximos, peço desculpas por ter estado ausente quando,
talvez, minha presença pudesse ser reconfortante .... A alguns, um agradecimento especial:

Aos professores que estiveram presentes em meu Exame de Qualificação: Helio Salles
Gentil, cuja leitura cuidadosa e elegante de meu trabalho permitiu que eu pensasse mais e
melhor, e Marcelo Perine, que, com suas argutas e precisas observações, me pôs diante de
questões que deram um novo alento ao trabalho.

Ao professor e coordenador Edélcio Gonçalves de Souza que, com sua generosa acolhida,
não permitiu que eu desistisse...

A Ilana Viana do Amaral, de quem eu devesse talvez dizer o mesmo que Lévinas disse de
Rosenzweig, “demasiado presente, neste trabalho, para ser citado”... Se algo aprendi de
Lévinas, é a ela que devo... Agradeço também sua leitura atenta, dedicada e entusiasmada
de meu trabalho, em suas várias fases de preparação.

A Talitha Ferraz de Souza, amiga generosa e incansável interlocutora, pelo seu olhar
sensível e inteligente que soube ver nas entrelinhas, e me reorientar nas inúmeras vezes em
que me senti perdida. Seus comentários sobre os vários textos que teve que ler e reler e sua
presença no Exame de Qualificação foram decisivos para a forma definitiva deste trabalho.

A Maria Isabella de Santis, por não desistir de mim...

E por fim, mas também por início e desde o princípio, minha imensa gratidão a Jeanne
Marie Gagnebin: ‘mais’ e ‘melhor’ do que simplesmente orientadora, presença
‘desorientadora’, graças a qual pude me orientar...
ÍNDICE

INTRODUÇÃO. QUE SUJEITO? ............................................................................. 1

CAPÍTULO I. PAUL RICOEUR: A IDENTIDADE NARRATIVA E A


HERMENÊUTICA DO SI ................................................................. 11

1. As intenções filosóficas e éticas ....................................................................... 13


2. O Cogito exaltado de Descartes e o cogito humilhado de Nietzsche ............... 17
3. Uma hermenêutica do si ................................................................................... 22
4. A identidade narrativa ....................................................................................... 28
5. A dialética ipseidade – alteridade ..................................................................... 40
6. A ética: desejo de uma vida boa compartilhada ............................................... 48
7. O fio da meada: costurando a multiplicidade ................................................... 53
8. A transcendência: Nas Fronteiras da Filosofia ................................................ 64

CAPÍTULO II. EMMANUEL LÉVINAS: O SUJEITO COMO REFÉM E A


SUBJETIVIDADE COMO SUBSTITUIÇÃO ................................ 77

1. Sair do ser: a evasão ......................................................................................... 80


2. Do ser ao il y a: da evasão à hipóstase .............................................................. 89
3. Do tempo ao outro como Eros .......................................................................... 101
4. Totalidade e infinito: Rosto e ética ................................................................... 107
5. Outramente que ser: a substituição e o refém .................................................. 126
6. A caridade e a justiça: a inclusão do terceiro ................................................... 142
7. A transcendência: De Deus que vem à Idéia .................................................... 145

CAPÍTULO III. PAUL RICOEUR E EMMANUEL LÉVINAS: PROXIMIDADES


E DISTÂNCIAS .............................................................................. 159

Preâmbulo. Uma nota de entusiasmo ................................................................ 159

Primeira Parte. Itinerários que se cruzam : uma “nota de intimidade” .............. 161

Segunda Parte. O Debate Teórico: Cumplicidade no elegante desacordo ......... 177

I. Os Estilos: o excesso e a prudência .......................................................... 183


II. Subjetividade e Alteridade ...................................................................... 187
III. Ética, Moral e Justiça ............................................................................. 219
IV. A Transcendência .................................................................................. 228

CONSIDERAÇÕES FINAIS. UM OLHAR RETROSPECTIVO ............................. 252

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 256


NOTA PRÉVIA: Sobre traduções e abreviaturas

As citações para as quais não existe – ou não foi encontrada – tradução já publicada,
tiveram que se submeter à minha própria tradução. No caso das citações mais longas (mais
de 3 linhas), o texto original encontra-se em nota de rodapé.
As inúmeras citações das obras consultadas de autoria de Paul Ricoeur e Emmanuel
Lévinas virão acompanhadas de parênteses, com a abreviatura do nome da obra seguida do
número da página da qual a citação foi retirada, de acordo com esta nomenclatura:

PAUL RICOEUR

CC – Critique et Conviction. Entretien avec François Azouvi et Marc de Launay. Paris:


Calmann-Lévy, 1995. Tradução portuguesa de António Hall. A Crítica e a Convicção.
Conversas com François Azouvi e Marc de Launay. Lisboa: Edições 70, 1997.

CI – Le Conflit des Interprétations. Essais d´herméneutique. Paris: Seuil, 1969

E - “L´Identité Narrative” In: L´Esprit, número 7-8 (julho-agosto 1888)

IIP - “Individu et Identité Personnelle”. In: Sur L´Individu. Colloque de Royamont. Paris:
Seuil,1987.

L2 - Lectures 2. La Contrée Des Philosophes. Paris: Seuil, 1999.

L3 – Lectures 3. Aux Frontières de la Philosophie. Paris: Seuil, 1994. Tradução brasileira


de Nicolás Nyimi Campanário. Leituras 3. Nas Fronteiras da Filosofia. São Paulo:
Edições Loyola, 1996.

L3EL – “Emmanuel Lévinas, penseur du témoignage”. In: Lectures 3. Aux Frontières de la


Philosophie. Paris: Seuil, 1994. Nota: este artigo, embora conste de Lectures 3, não foi
traduzido em Leituras 3, motivo pelo qual uma outra nomenclatura lhe foi designada,
indicando que a edição e a página se referem ao texto francês de origem.

MHE - La Mémoire. L´ Histoire. L´Oubli. Paris: Seuil, 2000. Tradução brasileira de Alain
François. A Memória. A História. O Esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp,
2007.
OUT- Autrement. Lecture d´Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence d´Emmanuel
Lévinas. Paris: PUF, 1997. Tradução brasileira de Pergentino Stefano Pivatto:
Outramente. Leitura do livro Autrement qu´Être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel
Lévinas. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

PC – Parcours de La Reconnaissance. Trois études. Paris: Stock, 2004. Tradução brasileira


de Nicolás Nyini Campanário. Percurso do Reconhecimento. São Paulo: Edições
Loyola, 2006.

PVI – Philosophie de la Volonté I. Le Volontaire et l´Involontaire. Paris: Aubier, 1950, 2ème


édition, 1988.

RF - Réfexion Faite. Autobiographie Intelectuelle. Paris: Esprit, 1995.

RSCH - “L´Identité Narrative” In: Revue des Sciences Humaines – Tome LXXXXV -
no221 – Janvier-mars 1991.

SA - Soi-même Comme Un Autre. Paris: Seuil,1990

TAC – Du Texte à l´Actio. Essais d´herméneutique II. Paris: Seuil, 1986.

TR - Temps et Récit 3. LeTemps Raconté. Paris: Seuil, 1985

EMMANUEL LÉVINAS

AE- Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974.


Reimpressão em: Biblio Essais. Le livre de Poche.1991

AT – Altérité et Transcendance. Paris, Le Livre de Poche, Fata Morgana, 1995.

DL- Difficile Liberté: Essais sur le Judaïsme, Paris, Albin Michel, 1963 et 1976. Livre de
Poche, Série Biblio Essais, 3ème édition, 1997.

DMT – Dieu, la Mort et le Temps. Paris: Grasset, Le lLivre de Poche,1993.

DVI- De Dieu Qui Vient á l´Idée. Paris: Vrin, 2ème édition, 1986. Tradução brasileira de
Pergentino Steffano Pivatto, Marcelo Fabri, Marcelo Luiz Pelizolli, Evaldo Antônio
Kuiava. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2008

EDE- En Découvrant l´Existence avec Husserl et Heidegger. Paris: Vrin, 3ème edition,
2001.

EE- De l´Existence à l´Existant. Paris: Vrin, 2ème édition, 1963.Tradução brasileira de Paul
sAlbert Simon e Ligia Maria Castro Simon. Da existência ao Existente. São Paulo:
Papyrus, 1998.
EI- Éthique et Infini. Paris: Fayard et Radio-France, 1982. Tradução portuguesa de João
Gama e Artur Morão. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.

EN- Entre nous. Essais sur le penser-à-l´autre. Paris: Grasset & Frasquelle, 1991.
Tradução brasileira de Pergentino Pivatto. Entre nós. Ensaios sobre a Alteridade.
Petrópolis: Vozes, 1997.

EPP- Éthique Comme Philosophie Première. Paris: Rivage Poche/ Petite Bibliothèque,
1998.

EV- De l´Évasion. Paris: Fata Morgana/Poche, 1982.

HOH- Humanisme de l´Autre Homme. Paris: Fata Morgana, 1972. Tradução de Pergentino
Pivatto.O Humanismo do Outro Homem. Petrópolis: Vozes, 1993.

HS- Hors Sujet. Paris: Fata Morgana/Poche, 1987.

LC- Liberté et Commandement.. Paris: Fata Morgana, 1994.

QRPH- Quelques Réflexions Sur la Philosophie de l´Hitlérisme. Paris: Payot/Rivages


Poche/ Petite Bibliothèque, 1997

TA- Le Temps et l´Autre. Paris: Quadridge/PUF, 1983

TI- Totalité et Infini. Essai sur l´Exteriorité. Paris: Kluwer Academic/ Biblio Essais/Poche,
sem ano. Edição original La Haye: Martinus Nijhof, 1971. Tradução portuguesa de José
Pinto Ribeiro. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.
1

INTRODUÇÃO

Que Sujeito?

“... contemporâneo nu, deitado como um recém


nascido nas fraldas sujas de nossa época”
(Walter Benjamin)

Este trabalho se dedica a pensar, como indica o próprio título, a noção de sujeito em
relação com a alteridade nas filosofias de dois autores franceses do século XX: Paul
Ricoeur e Emmanuel Lévinas. Tal tema não apresenta aparentemente grandes dificuldades,
uma vez que se adequa às expectativas e exigências acadêmicas, no que diz respeito a uma
tese de doutorado: toma-se dois autores, faz-se um recorte temático e considera-se assim o
trabalho aceitável. No entanto, tal escolha, muito embora tenha aprovação acadêmica, de
antemão me parece problemática.
Efetivamente, o problema não está resolvido, uma vez que é possível escolher
quaisquer dois autores e, de modo mais ou menos honesto ou aceitável, colocá-los em
confronto, buscando as convergências e divergências, similitudes e diferenças,
consonâncias e dissonâncias, proximidades e distâncias. A este respeito, evoco uma frase
de Shattuck que, ao se debruçar sobre a obra de Proust, diz: “Pode-se demonstrar quase
tudo com citações da Busca”1. E adverte: “Mas devemos ir além das citações isoladas,
escolhidas astutamente em 3.000 páginas de uma longa prosa.”2
Pode-se demonstrar quase tudo escolhendo astutamente dois autores, e, em suas
vastas respectivas obras, escolher certas passagens, trechos, citações, sem por isso ser
acusado de deturpação, ou má fé. O mesmo, certamente, pode aqui ser aplicado. Em minha
defesa, portanto, devo salientar que minha escolha, se é arbitrária - uma vez que toda
escolha tem um quê de arbitrariedade – também procede. Por vários motivos.
Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas não somente se conheceram pessoalmente e se
encontraram em inúmeros colóquios, debates e conferências, como também trabalharam
juntos – Lévinas tendo sido convidado por Ricoeur - na Universidade de Nanterre, um

1
Roger Shattuck. As Idéias de Proust. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1985, p. 120
2
Idem, p. 114
2

anexo da Sorbonne, palco privilegiado das famosas manifestações estudantis de maio de


1968. Nutriam um pelo outro profundo respeito e admiração, como ressalta François Dosse
em sua admirável biografia sobre Ricoeur.3 Entretiveram mesmo uma relação de amizade,
ao mesmo tempo, próxima e distante, na feliz expressão de Salomon Malka.4 Proximidade
e distância que se verifica também em suas respectivas produções teóricas.
Não se trata aqui, evidentemente, de expor de maneira objetiva a totalidade da obra
destes autores, mas sim de ressaltar o modo como Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas
fizeram frente a algumas questões que a eles se apresentaram em seu – nosso - tempo, e
que a mim, através deles, se apresentam. Dentre tantas questões possíveis – não são poucos
os temas afins ou coincidentes nas obras destes dois pensadores contemporâneos! –
privilegio neste trabalho, a questão do sujeito em sua relação com a alteridade, questão que,
com certeza, não ocupa um lugar marginal em suas respectivas obras: sujeito e alteridade
são temas privilegiados tanto em Soi-même comme un Autre (1990) de Paul Ricoeur,
quanto em Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence (1974) de Emmanuel Lévinas, obras
que ocupam um lugar de destaque na trajetória destes filósofos, e por conseguinte, neste
trabalho.
Estes dois textos, se não são os únicos a postular de modo claro a questão do que é o
sujeito, são sem dúvida, incontornáveis. Incontornáveis e fundamentais não somente por
apresentarem uma nova visão de sujeito na qual se rompe a identificação entre este e o
indivíduo, e se coloca em questão a auto-suficiência do sujeito soberano, mas também por
possibilitarem uma discussão no âmbito da ética: com efeito, as concepções de sujeito que
se depreendem destas obras têm como motor essencial uma preocupação ética, nutrida pela
importância da categoria da Alteridade.
O sujeito, tanto para Ricoeur quanto para Lévinas, não pode ser pensado sem o
outro, e é só nesta medida que se pode falar em sujeito. Nesse sentido, pode-se dizer que
ambas as filosofias, embora de modos diversos, encerram uma certa defesa de um certo
sujeito: ferido para Ricoeur, deposto para Lévinas, mas ainda assim um sujeito.

3
Cf. François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie. Paris: La Découverte, 2001, p. 750 e seguintes. Digo
admirável, a começar pelo próprio título, que ‘joga’ com a palavra essence, transformando-a em les sens, a
essência (essence) significando agora: “os sentidos (les sens)”, feliz formulação que parece condensar os
propósitos filosóficos de Ricoeur.
4
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace. Paris: J.C. Lattès, 2002, p. 196 e seguintes.
3

Tal defesa evidentemente não é nem ingênua, nem inocente. E nem poderia ser,
uma vez que passou pelo crivo das investidas contra o sujeito que marcaram a paisagem
intelectual francesa dos anos sessenta dominada, por assim dizer, pelo estruturalismo. Sem
dúvida, eles adotaram atitudes diferentes diante do estruturalismo, como afirma o próprio
Lévinas, em entrevista a François Poirié: “Certamente não é o estruturalismo que pôde me
tentar (...) Há espíritos bem notáveis, o melhor de nossa época – o de Ricoeur – que levam
isso bastante a sério” 5. Embora de modos diversos, ambos se encontram na contracorrente
da “moda” estruturalista dos anos sessenta e setenta.
Tanto Ricoeur quanto Lévinas parecem recriminar ao estruturalismo o
desaparecimento do sujeito: seja o sujeito da enunciação (Ricoeur), seja o da assignação à
responsabilidade, ou convocação (Lévinas). Ambos parecem querer reabilitar o sujeito,
fazer-lhe novamente confiança, sem por isso, render-lhe irrestritas homenagens. É
precisamente esta reabilitação ou defesa do sujeito que motivou minha escolha, tanto dos
autores quanto do tema.
Par a par com a defesa do sujeito uma certa defesa do homem. Neste terreno
portanto - como em outros – uma cumplicidade se estabelece entre nossos autores,
cumplicidade nascida das mesmas interrogações acerca do fim do sujeito e do fim do
homem. Na “polêmica entre humanismo e estruturalismo”,6 poder-se-ia situar tanto
Ricoeur quanto Lévinas do lado do humanismo. Evidentemente tal afirmação deve ser lida
com todas as nuances necessárias, uma vez que, se defesa há do humanismo, esta não é
nem ingênua e nem apressada. O próprio Ricoeur, que nunca apreciou os ‘ismos’, estranha
ser rotulado de humanista.7 Quanto a Lévinas, se sua obra Humanismo do Outro Homem
pode ser entendida como uma resposta à Carta sobre o Humanismo de Heidegger, trata-se
de um outro humanismo, do humanismo do outro homem: “a idéia da defesa do outro
homem que não eu (moi), preside ao que, em nossos dias, se chama crítica do humanismo”
(HOH, 127). “O humanismo só pode ser denunciado porque ele não é suficientemente
humano” (AE203). Não se trata portanto, por parte de nenhum dos dois autores, de
defender “o humanismo clássico criticado pelo anti-humanismo e/ou pelas ciências

5
François Poirié. Emmanuel Lévinas. Essais et Entretiens. Paris: Babel, 2006. Tradução brasileira de J.
Guinsburg, Marcio Honório de Godoy e Thiago Blumenthal. Emmanuel Lévina. Ensaio e Entrevistas. São
Paulo: Editora, 2002, p. 126
6
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie. Op.cit., p.599
7
Cf. Olivier Mongin.. Paul Ricoeur. Paris: Seuil, Édition de Poche, 1998, p.18
4

humanas no século XX” 8, mas de tentar pensar um outro tipo de humanismo, no qual a
arrogância do homem seja colocada em questão.
Eis o motivo pelo qual comparecem aqui Ricoeur e Lévinas, dois autores que
conscientes do perigo contido nas palavras sujeito e humanismo, nem por isso delas
desistiram. Dois autores que, ao renunciarem tanto a Hegel quanto a Heidegger, sabem que
pensam depois de Hegel e Heidegger. O próprio Lévinas afirma em De l´Existence à
l´Existant que, se deseja abandonar o clima da filosofia de Heidegger, não é para retornar a
uma filosofia pré-heideggeriana (Cf. EE18). E se Ricoeur, “a contragosto”, como ele
próprio confessa, renuncia a Hegel 9, não esconde a origem hegeliana de sua insistência na
reciprocidade, como se verá adiante. Assim, se Ricoeur e Lévinas de algum modo não se
sentem estrangeiros aos temas do fim do sujeito, do homem, também defendem a coragem
de um recomeço, um recomeço que só pode se legitimar enquanto sustentado como
abertura ao Outro, ou a Outrem. Será ainda possível uma defesa do sujeito? Tanto Ricoeur
quanto Lévinas, de modos diversos, apostam nisto...
De modo certamente diversos, pois se ambos estão próximos, como admite o
próprio Ricoeur, eles de modo algum se confundem. Não se pode, portanto, negar as
diferenças: elas aparecem não somente nas duas obras acima citadas, como também em
dois estudos de autoria de Ricoeur10 e, de modo menos sistemático, em comentários
esparsos dos próprios autores ou de comentadores, em entrevistas e/ou cartas. Entre estas,
merecem destaque a troca de cartas entre Lévinas e Ricoeur, e um debate organizado pela
Radio France Culture em 1985. 11
Para situar e antecipar a problemática, citemos Ricoeur:

“Subsiste entre nós uma diferença de acento: ele parte sempre do outro, é
sempre o outro que me provoca, é responsável, etc. Sou mais sensível à idéia –

8
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas. Paris: Ellipses Editions, 2002, p.33
9
Cf. Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann”. In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur. Textes réunis par Jean-Christophe Aeschlimann. Neuchâtel: Baconnière,
1994, p. 33: “uma vez que se assumiu, como o faço a contragosto, o desejo de ‘renunciar a Hegel’”.
10
A saber, Outramente – Leitura do livro Autrement qu´être ou au delà de l´essence de Emmanuel Lévinas; e
“Emmanuel Lévinas, penseur du témoignage”, publicado originalmente em Répondre d´autrui, Emmanuel
Lévinas, La Baconnière, 1989, e retomado em Lectures 3. Aux frontières de la philosophie.
11
Cf. Emmanuel Lévinas et Paul Ricoeur. Échange de lettres: “L´Unicité Humaine du Pronom Je”. In:
Éthique et Responsabilité. Paul Ricoeur. Textes réunis par Jean-Christophe Aeschliman, op.cit., p.35 a 37.
E também o debate entre Ricoeur e Lévinas, ocorrido na Radio France Culture (21 de fevereiro de 1985).
Publicado em Emmanuel Lévinas. Philosophe et Pédagogue. Paris: Éditions du Nadir de l´Alliance Israélite
Universelle, 1998.
5

talvez hegeliana de origem – da reciprocidade, do reconhecimento do outro. Ou


seja, caso eu não constitua originalmente um foco de afirmação, não pode haver
solo de acolhimento, em razão mesmo do que Lévinas chama o ‘apelo à
responsabilidade’”12

Para Lévinas, tal solo de acolhimento se dá no “moi pur”, eu puro, subjetividade


pré-original, materialidade pura, pura existência imediata que se faz receptividade: é
somente o apelo do outro que possibilita a emergência da subjetividade propriamente dita.
No limite, poder-se-ia dizer que não há sequer solo de acolhimento, nem tampouco
receptividade, mas sim “passividade mais passiva que a receptividade”, como não se cansa
de repetir Lévinas em Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence.
A diferença mencionada acima se explicita no próprio vocabulário dos autores:
enquanto Ricoeur fala de “um cogito ferido”, Lévinas se refere a um “eu deposto”. Lévinas
parece, se for permitido o termo um pouco forte, “explodir” a subjetividade, ressaltando a
dimensão de passividade ou de sujeição presente no sujeito face a face com um outro, mais
elevado, mais alto que o eu. No limite, quase não se poderia dizer: “eu”. Sim, responderia
Lévinas, se se pensar na subjetividade tal como esta vem sendo definida pela tradição
filosófica. Lévinas dirá que Ricoeur permanece ao nível do saber tal como o entende a
tradição filosófica13. A própria terminologia de Ricoeur - identidade narrativa - aponta
claramente para isto. É preciso sair da esfera do saber e do conhecimento para pensar um
outramente que ser, uma subjetividade outra que não a da tradição filosófica grega, mas
“uma concepção de subjetividade heterônoma”. Esta “substituição do Eu por Outrem (...)
pareça talvez ainda estranha demais ao Logos, ao Ocidente, ao berço de Ricoeur” 14, como
afirma Marcelo Pelizzoli na apresentação da edição brasileira do livro de Ricoeur,
Outramente. Leitura do livro Autrement qu´Être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel
Lévinas.
Como se vê, a despeito de uma grande aproximação e até mesmo, cumplicidade, as
perspectivas diferem, as diferenças se impõem. Neste confronto, uma pergunta parece se

12
Paul Ricoeur e Jean Daniel. “A Estranheza do Estrangeiro.” In: Les Grandes Questions de la Philo. Paris:
Le Nouvel Observateur, 1998. Tradução de Procópio Abreu; revisão de Danilo Marcondes. Café Philo. As
Grandes Indagações da Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p.18
13
Cf. Ilana Viana do Amaral. “Do Eros À Ética: Caminhos do Desejo nos Ditos e no Dizer de Emmanuel
Lévinas”. In: Kalagatos. Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE, Fortaleza,
v.2, n.4, Verão 2005, p 63 a 84
14
Marcelo Pelizzoli. Apresentação da edição brasileira do livro de Ricoeur, Outramente. Leitura do livro
Autrement qu´Être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel Lévinas. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p.14.
6

insinuar – talvez nem sequer uma pergunta, mas uma certa inquietação: teriam as
concepções de sujeito em Ricoeur e Lévinas raízes em suas tradições religiosas? Pergunta
que pode, assim colocada de modo abrupto, parecer insensata, mas que encontra sua
justificativa nas freqüentes referências, por parte de ambos, a questões teológicas e
religiosas.
Sabe-se que tanto um quanto outro nunca negaram sua inclusão na tradição religiosa
- protestante (Ricoeur), ou judaica (Lévinas). Sabe-se também que eram pensadores e
comentadores de escritos religiosos e teológicos. Ricoeur, mais do que Lévinas, sempre fez
questão de manter os dois registros separados, embora aqui e ali, ensaie linhas de
intersecção entre os dois domínios. Respeitando tal constelação, seria possível estabelecer
correspondências entre a noção de sujeito, construída no interior mesmo da ética, e sua
pertença às tradições religiosas, notadamente no que se refere ao que é comumente
chamado transcendência, ou, para dizê-lo de forma menos tímida, da presença de Deus?
A pergunta, assim formulada, pode se prestar a algumas confusões, notadamente
àquela que concerne à diferenciação essencial entre teologia e religião. Nessa perspectiva,
digamos, embora de modo rápido e bastante geral, que a religião pode ser definida como o
conjunto de crenças e práticas que dizem respeito à relação do homem com o divino ou o
sagrado, com o que está portanto fora do alcance humano, ou transcendente. A teologia,
por sua vez, não precisa incluir em si própria nenhuma crença: é comumente definida a
partir de sua raiz etimológica grega: discurso ou saber (logos) sobre Deus (theos). Trata-se
assim de uma disciplina que sabe que seu objeto é inapreensível e lhe escapa, um certo tipo
de discurso que, ao reconhecer a inapreensão de seu objeto, inclui a transcendência.
Como diz Jeanne Marie Gagnebin:

“O uso correto da teologia lembraria assim, contra a hybris dos saberes


humanos, que nossos discursos são incompletos e singulares, e vivem dessa
preciosa fragilidade. Seria o caso de citar Paul Ricoeur afirmando com força que
a função do referente ‘Deus’ não é a de oferecer uma solução a questões
insolúveis: ele é, muito mais, ‘o ponto de fuga, o índice de incompletude de (...)
discursos parciais’(TAC129)”15

15
Jeanne Marie Gagnebin. “Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin”. In: Estudos
Avançados 13 (37), 1999, p. 200. Sem querer antecipar demasiadamente, veremos como esta reflexão de
Ricoeur está em obra em Soi-même comme un Autre, cujo término coïncide com a introdução da palavra
“Deus”.
7

O que é comum a Ricoeur e Lévinas é aceitar este tipo de discurso, cujo objeto é
transcendente, e introduzem assim, no logos filosófico, a noção de transcendência. A
questão é aqui de saber como o fazem. Uma vez que a noção de transcendência diz respeito
tanto ao religioso quanto ao teológico, nossas reflexões terão um olho voltado para uma e
outro para outra. O que conduz a duas perguntas; a primeira sendo: se - e como - aparece o
nome de Deus em suas filosofias, e a segunda: se – e como – suas concepções acerca da
religião perpassam suas reflexões filosóficas.
É importante frisar, entretanto, que, a exemplo de Ricoeur e Lévinas, o problema
pessoal da crença não terá lugar em nossas reflexões. Isto quer dizer também e, sobretudo:
não se referir ao primeiro como “filósofo cristão” e ao segundo como “filósofo judeu”: este
cuidado se impõe sobremaneira, pois “como o observa Olivier Mongin (...), a pecha de
filósofo cristão foi, e é, um dos motivos mais freqüentemente alegados para rejeitar – aliás
16
geralmente sem estudá-la minimamente – a reflexão de Ricoeur” . As mesmas palavras
podem ser aplicadas a Lévinas. Ouçamos Ricoeur a este respeito: “Eu tampouco [...] gosto
que se diga filósofo protestante. ‘Protestei’ contra isso. Eu disse que tinha uma leitura
filosófica do cristianismo. Eu tenho um cristianismo de filósofo. Ousarei dizer que ele tem
um judaísmo de filósofo”.17
Mais do que uma exploração metódica, tratar-se-á de visitas esporádicas ao
universo da teologia e/ou da religião.. Visitas guiadas pelo mesmo espírito que, por assim
dizer, anima tanto Ricoeur quanto Lévinas: colocando-se, segundo o belo título do livro de
Ricoeur, Nas fronteiras da filosofia, quer dizer: manter a perspectiva filosófica acerca de
questões religiosas e teológicas; mas, tal como um hóspede bem educado que se apresenta
sem invadir, respeitando as possibilidades e os limites destas duas formas de expressão
humana, quer dizer: ter como regra de ouro não reduzir uma à outra, não explicar uma pela
outra, procedimento privilegiado tanto por Ricoeur quanto por Lévinas.
Evitando estas armadilhas, coloquemo-nos pois propriamente na fronteira. A
questão fronteiriça poderia ser assim formulada: como pensam Ricoeur e Lévinas a noção
de Deus e de transcendência, e como estariam presentes estas noções em seus escritos sobre
a construção do sujeito ético? Questão ampla e ambiciosa, que só pode ser conduzida, bem

16
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: editora 34, 2006, p.176
17
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 204
8

ao gosto de Ricoeur, de modo mais humilde ou modesto, isto é, indicando algumas pistas,
sugestões mais do que reflexões, nas quais possam se entrecruzar a ética e a transcendência
nas obras dos dois filósofos.
Se as obras de ambos parecem autorizar tal extravagância, poder-se-ia talvez dizer
que, no que se refere a Ricoeur, todo cuidado é pouco. O prefácio de Soi-même comme un
Autre é muito claro a este respeito: em sua filosofia, “a nominação efetiva de Deus está
ausente” (SA36). Não se encontra a mesma reserva em Lévinas: não só a palavra Deus não
está ausente, como é título de um livro de 1982: De Dieu Qui vient à l´Idée: “Não tenho
receio da palavra Deus, que aparece muitas vezes nos meus ensaios” afirma Lévinas
(EI97). O que diz de uma filosofia a ausência ou a presença da palavra Deus? A filosofia
do sujeito e da alteridade de Ricoeur prescindiria da transcendência, enquanto a de Lévinas
a pressuporia? Teria este hiato alguma relevância na construção das respectivas obras
filosóficas, ou tratar-se-ia apenas de uma questão de estilo: a justa medida de Ricoeur em
oposição à hipérbole de Lévinas?
O debate está posto. Para que se possa realizar, apresento inicialmente o conceito de
identidade narrativa em Ricoeur (cap.I), concentrando-me em seguida na perspectiva de
Lévinas (cap.II), para depois colocá-los face a face (cap. III): tanto nos momentos em que
efetivamente se encontraram (primeira parte), quanto em relação a suas convergências ou
divergências teóricas (segunda parte), destacando alguns temas relativos ao sujeito e à
subjetividade - questão privilegiada deste trabalho - tais como a reciprocidade e a
substituição, a promessa e a responsabilidade, a atestação e a eleição. Neste mesmo
capítulo, são abordadas as relações entre ética e justiça, ao mesmo tempo em que nascem
algumas incipientes reflexões na zona fronteiriça entre filosofia e religião: tento aqui seguir
algumas pistas que possibilitem pensar a transcendência nas filosofias do sujeito de
Ricoeur e Lévinas, reflexões estas que levam a pensar algumas peculiaridades do
pensamento cristão e do judaico, notadamente acerca da graça cristã e da lei mosaica.
Algumas considerações finais, porém não conclusivas, se limitam a lançar um olhar
retrospectivo sobre o modus operandi deste trabalho ou sobre o possível sentido do que foi
escrito.
Exposto o programa geral deste trabalho, não haveria ainda algo a ser dito? Afinal
entre tantas questões que se cruzam nas filosofias de Ricoeur e Lévinas, porque se ater à
9

questão do sujeito e da alteridade? Certamente, como já o disse acima, este não é um tema
marginal nas obras de nossos filósofos, mas há algo mais...
Falta aqui uma última observação ou quase uma confissão: uma certa paisagem, em
pano de fundo, ronda este trabalho, paisagem que nasce das belíssimas palavras finais de
Michel Foucault em As palavras e as Coisas: “se pode apostar que o homem se
18
desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto na areia.” . Não resisto à tentação de
descontextualizar tal afirmação, deslocando-a do âmbito epistemológico ao qual pertence,
para pensar exclusivamente na aposta do fim ou do desaparecimento do homem.
Aposta fascinante, mas ao mesmo tempo bastante perigosa, perigo talvez
pressentido por Walter Benjamin. Em Experiência e Pobreza, Benjamin sonha com um
novo homem, que possa se livrar do passado, começar do zero e deixar para trás “a imagem
do homem tradicional, solene, nobre, adormecido com todas as oferendas do passado, para
dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém nascido nas fraldas sujas de nossa
19
época” . Benjamin quer construir, em oposição ao homem civilizado, um novo bárbaro,
pensando a barbárie de modo positivo. Mas a barbárie real do nazismo o impede de
continuar nesta trilha20, e num texto quase contemporâneo, O Narrador, Benjamin já não
fala mais em barbárie.21
Pela mesma razão que talvez tivesse motivado Benjamin, isto é, pelo excesso ou
saturação de um humanismo desumano, mas ao mesmo tempo, pelo perigo pressentido de
um mundo inumano, convoco aqui Ricoeur e Lévinas, dois autores que viveram, cada um a
seu modo, os horrores da segunda guerra e os ecos da palavra Auschwitz: é o indizível que
permeia, tal qual um palimpsesto, o pensamento destes filósofos: e, se suas filosofias do
sujeito e da alteridade, não podem ser, de modo reducionista, explicadas e compreendidas
apenas a partir deste ponto de vista, não há como não pensar que elas são filhas de seu

18
Michel Foucault. Les Mots et Les Choses. Paris: Gallimard, 1966. Tradução de Salma T. Muchail. As
Palavras e As Coisas. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1981, p.536
19
Walter Benjamin. Experiência e Pobreza in: Obras Escolhidas, Volume I, Magia e Técnica, Arte e Política.
Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p.116
20
Cf Jeanne Marie Gagnebin. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Editora Perspectiva,
2004, p. 71 e Sérgio Paulo Rouanet.. O Édipo e o Anjo. Itinerários Freudianos em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda,1981, p. 52/53.
21
Cf Walter Benjamin. O Narrador: Observações Sobre A Obra de Nikolai Leskow, Tradução de Modesto
Carone, no volume Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas da série Os Pensadores, São Paulo, Editora
Abril Cultural, 2ed.,1983. Há também a tradução de Sérgio Paulo Rouanet em Obras Escolhidas, Volume I,
Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
10

próprio tempo, tempo em que a exceção se transformou em norma22 e, tempo em que o


homem se tornou coisa 23.
Olivier Mongin conclui seu livro sobre Paul Ricoeur com a seguinte afirmação: “No
seio de um mundo desprovido da solidez e da segurança de um fundamento no seio da pós-
modernidade, a reflexão que incide sobre o Si tornou-se ‘maior’ (‘majeure’). E, até certo
ponto, tranqüilizadora (quelque peu rassurante)”24. Nestes tempos, talvez a reflexão sobre
si, possa trazer algo assim como uma espécie de reconforto. Pessoalmente, eu não iria tão
longe, mas, sem dúvida, considero uma espécie assim de privilégio poder pensar, a partir
de Ricoeur e Lévinas, sobre um sujeito possível, um sujeito como outro: seja ele “si mesmo
como um outro” (Ricoeur), ou “o si como outro no mesmo” (Lévinas), sobre um homem
que possa viver na fragilidade de sua atestação (Ricoeur) ou em sua inelutável substituição
(Lévinas).

22
Cf. Giorgio Agamben. Homo Sacer. O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: editora UFMG,
2002, p. 175: “O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra.”
23
Cf. Stéphane Mosès. Un retour au judaïsme. Entretiens avec Victor Malka. Paris: Seuil 2008, p. 170.
24
Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit., 1998, p.251
11

CAPÍTULO I

Paul Ricoeur:

A identidade narrativa e a hermenêutica do si

“É mais fácil do que se crê odiar-se. A graça é


esquecer-se. Mas, se todo orgulho estivesse morto
em nós, a graça das graças seria amar a si mesmo
humildemente, como qualquer um dos membros
sofredores de Jesus Cristo.”1
(Bernanos. Journal d´un Curé de Campagne)

O objetivo deste capítulo é apresentar e discutir o conceito de identidade narrativa


tal como cunhado por Paul Ricoeur. Este aparece pela primeira vez nas conclusões de
Temps et Récit III. (Cf. TRIII 439-448) Como ele próprio conta, em A Crítica e A
Convicção, foi ao reler e escrever a conclusão de Tempo e Narrativa para François Wahl:
“que aparece formalmente a expressão, como representando, a meu ver, a principal
aquisição do trabalho.” (CC 126). E, em Réflexion Faite, pode-se ler:

“Terminei Temps et Récit em 1984 (demorei mais ou menos um ano para


redigir as conclusões cujo tom tornou-se mais problemático do que a própria
obra); me pus então logo em busca de uma continuação, a fim de responder ao
convite feito pela universidade de Edimburgo de dar nesta cidade as Gifford
Lectures em 1986. A idéia se impôs a mim de propor um balanço provisório de
minhas pesquisas concernentes à noção de sujeito.” (RF 75).2

O resultado destas Lectures, com algumas modificações (notadamente a supressão


das duas últimas conferências, de cunho mais religioso), é Soi-même Comme Un Autre, que

1
Georges Bernanos. Journal d´un curé de campagne. Paris: Plon, 1936 e Pocket, para a presente edição,
1974, p.311: “Il est plus facile que l´on croit de se haïr. La grâce est de s´oublier. Mais si tout orgueil était
mort en nous, la grâce des grâces serait de s´aimer humblement soi-même, comme n´importe quel des
membres souffrants de Jésus-Christ.” O próprio Ricoeur se encantava com esta frase de Bernanos. (Cf. SA
36, nota 3)
2
“Temps et récit fut achevé d´écrire en 1984 (j´employai près d´une année à rédiger les conclusions dont le
ton devint plus problématique que l´ouvrage lui-même); je me mis aussitôt en quête d´une suite, afin de
répondre à l´invitation venue de l´université d´Edimbourg de donner dans cette ville les Gifford Lectures en
1986. L´idée s´imposa à moi de proposer un bilan provisoire de mes recherches concernant la notion de
sujet.”
12

foi publicado em 1990. Segundo o próprio autor, da publicação de Temps et Récit em 1985
à de Soi-même Comme Un Autre de 1990, o conceito de identidade narrativa ganhou
consistência.(Cf. SA138, nota 1 e E 295/296).
Este é o motivo pelo qual, sem esquecer Temps et Récit, privilegia-se aqui Soi-
même Comme Un Autre, - obra, segundo Domenico Jervolino, considerada pelo próprio
autor “uma recapitulação de todo seu trabalho filosófico”3- notadamente, o Prefácio, que
oferece um panorama do percurso dos dez estudos que compõem o livro, e o quinto e sexto
estudos que se referem de modo mais direto ao conceito de identidade narrativa. Ao lado
destes textos, dois artigos com o mesmo título: “A Identidade Narrativa”, um publicado na
revista Esprit (1988) e o outro na Revue des Sciences Humaines (1991), também serão
objeto de atenção mais detalhada.
Inicio minhas colocações do mesmo modo que André Dartigues em seu artigo “Paul
Ricoeur e a questão da identidade narrativa”:

“Em princípio, o problema é simples: a identidade pessoal, ou a resposta à


questão: ‘Quem é você?’ não pode operar pelo simples enunciado do nome, mas
implica a narração da vida – no mínimo curriculum vitae – que indica o
contexto das ações e situações a partir do qual podemos identificar a pessoa. A
pessoa é o que ela fez e o que ela sofreu.” 4

Questão simples, mais cara à psicologia do que à filosofia propriamente dita: com
efeito, especialmente para nossa geração, por assim dizer, ‘psicanalisante’, de Freud a
Lacan, não é mais possível pensar a identidade sem o auxílio de um discurso sobre si
mesmo. No entanto, a preocupação de Ricoeur - para o qual a psicanálise não é, de modo
5
nenhum, estranha, como atesta seu ensaio sobre Freud - e a meu ver, o interesse que
desperta sua noção de identidade narrativa, nada tem a ver com uma leitura psicológica ou
psicanalítica da mesma. Trata-se mais propriamente, de uma construção filosófica e ética
do sujeito; o que, espero, fique claro ao longo desta exposição.

3
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine. Paris: Ellipses, 2002, p.39.
Embora seja necessário frisar, com Olivier Mongin, que “Seria absurdo ver em Soi-même comme un Autre
uma síntese do que precede, a obra última que dominaria (surplomberait) os escritos anteriores, correndo o
risco de desvalorizá-los.” Cf. Olivier Mongin. Paul Ricoeur. Paris: Seuil, Édition de Poche, 1998, p.160.
4
André Dartigues. “Paul Ricoeur e a questão da identidade narrativa”. In: Constança Marcondes César (Org.).
Paul Ricoeur – Ensaios. São Paulo: Paulus, 1998, p.7
5
Cf. Paul Ricoeur. De L´Interprétation: essai sur Freud. Paris: Seuil, 1965.
13

Isto posto, passemos a, bem ao gosto de Ricoeur, explicitar os passos do percurso


deste capítulo: numa primeira parte, serão analisadas as questões filosóficas e éticas,
implicadas no conceito de identidade narrativa, numa segunda parte será abordada a crítica
de Ricoeur às filosofias do Cogito, em Descartes e Nietzsche, para em seguida (parte 3)
apresentar a proposta alternativa à estas filosofias: a hermenêutica do si. Até este ponto do
trabalho, tratar-se-á de uma retomada do Prefácio de Soi-même Comme Un Autre que,
como já se disse, oferece um panorama geral do percurso do livro. Em seguida (parte 4),
tratar-se-á de examinar o conceito de identidade narrativa, e a dialética idem–ipse (um dos
momentos da hermenêutica de si), para então se deter na dialética ipseidade-alteridade
(parte 5), uma vez que a alteridade é constitutiva da própria identidade. A hermenêutica do
si de Ricoeur, em sua dialética idem-ipse-alter, conduz à discussão do que Ricoeur
denomina sua “pequena ética”, objeto de análise na sexta parte deste capítulo. Finalizo com
algumas considerações acerca de um certo modo de trabalhar que se depreende dos escritos
6
de Ricoeur: a primeira diz respeito ao caráter fragmentário de sua obra, o que conduz à
questão de saber se é possível encontrar um ‘fio da meada’ em meio à multiplicidade dos
temas por ele tratados (sétima parte); a segunda se refere à sua insistência em separar seus
escritos filosóficos de suas reflexões acerca da teologia e da religião, o que o levou a pensar
em termos de “intersecções” entre as duas esferas: nesta oitava e última parte, arriscarei
algumas reflexões acerca da possível articulação entre a noção de sujeito e a questão da
transcendência.

1. As intenções filosóficas e éticas:

Soi-même comme un Autre: nas entrelinhas deste título, no mínimo enigmático,


figuram três intenções filosóficas:

6
Certamente não afirmo aqui que Ricoeur escreve em ou por fragmentos, bem ao contrário: qualquer um que
tenha se aproximado minimamente de um texto seu, logo percebe que seu estilo não é afeito a fragmentos,
mas obedece, por assim dizer, a uma lógica cartesiana, na qual os passos do percurso de sua reflexão são
explicitados, por vezes, até à exaustão. Se digo “fragmentário”, é no sentido em que o próprio Ricoeur
emprega o termo, isto é, como se verá a seguir, cada livro que ele escreve trata de uma questão ou um
problema particular, específico. Tal característica freqüentemente confundiu seus comentadores, alguns dos
quais se colocaram a tarefa de encontrar, na rica multiplicidade dos temas abordados, uma certa constância
de problemas, isto é, uma unidade.
14

1. “Marcar o primado da mediação reflexiva sobre a posição imediata do sujeito, tal


como se expressa na primeira pessoa do singular: ‘eu penso’, ‘eu sou’. Esta primeira
intenção encontra apoio na gramática das línguas naturais, que permite opor ‘si’ a
‘eu’”(SA11) O ‘eu’ (imediato) se opõe ao ‘si’ (reflexivo). O ‘si’ é pronome reflexivo da
terceira pessoa. Mas, o ‘se’ de ‘se apresentar’, ‘se nomear’, etc., designa a reflexividade de
todos os pronomes pessoais e também impessoais: o ‘si’ pode ser tomado como reflexivo
omnipessoal.

2. Dissociar os dois significados dos termos ‘idêntico’ ou ‘identidade’: idem e


ipse. Idem implica permanência no tempo, e neste caso, o oposto seria a mudança, a
variabilidade enquanto ipse indica que não há núcleo não mutante da personalidade,
embora apresente certa permanência de outro tipo, cujo modelo deve ser procurado na
“sustentação de si” (“maintien de soi”) 7 que exige a promessa. A sinonímia entre mesmo e
idêntico – o ‘mesmo’ é empregado no quadro de uma comparação – permite então
considerar a mesmidade como sinônimo da identidade idem, enquanto a ipseidade refere-se
à identidade ipse.

3. A identidade ipse remete à dialética entre o ‘si’ e o ‘outro que si’. A alteridade
nada é para a identidade idem, ela é apenas comparativa. Mas no caso da ipseidade, a
alteridade lhe é constitutiva: ambas só podem ser pensadas conjuntamente. O como do Si
mesmo como um outro não é comparação, mas “implicação: si mesmo enquanto... outro.
(en tant que... autre)” (SA14).
Do ponto de vista filosófico, o problema da identidade diz respeito às filosofias do
sujeito, cujo nascimento pode ser detectado em Descartes: neste, tanto o sujeito quanto seu
corolário, o cogito, são “exaltados”, e tal exaltação deve ser questionada. Mas deve também
ser posto em questão seu contrário: a humilhação do sujeito e do cogito, a partir de
Nietzsche. Ricoeur destrona o cogito exaltado de Descartes e reabilita o cogito destronado
de Nietzsche, ao propor a idéia de um cogito ferido. O Cogito assemelha-se um pouco à

7
A palavra francesa maintien pode ser traduzida por: manutenção ou conservação. Uma vez que ambas me
pareceram inadequadas no presente contexto: ‘manutenção’ soando excessivamente técnica (manutenção de
máquinas!) e ‘conservação’ francamente conservadora (!) , poder-se-ia escolher ‘permanência’. No
entanto, a escolha mais precisa e elegante me foi sugerida, no decorrer do exame de qualificação, por Hélio
Salles Gentil: ‘sustentação’, uma vez que se encontra em consonância com o que Ricoeur quer dizer: trata-
se do esforço do sujeito em manter, em sustentar sua palavra, de uma “escolha contínua” (CC198), ou
melhor, constantemente renovada. Cf. p. 31/32 deste trabalho.
15

figura do pai: “ora, há de mais ora não há suficiente” (CC129). Do lado do demais:
Descartes, Kant, Hegel, Husserl, o idealismo alemão. Do lado do pouco: Locke, Hume e
Nietzsche, assim como certas correntes contemporâneas, que vêm pregando os fins. Entres
estas, vale destacar o fim do sujeito lógico, de Frege a Russel, para os quais a existência
passa a ser um quantificador,8 ou o fim da importância da identidade, para autores como
Derek Parfit, um dos principais adversários de Ricoeur com respeito à questão da
identidade – lê-se na conclusão de Reasons and Persons: “a identidade pessoal não é o que
importa.”9 Do lado da chamada filosofia continental, além de Nietzsche, pode-se invocar
Lévi-Strauss e o desaparecimento do sujeito nas teias da estrutura, desaparecimento
também desejado por Foucault, como se pode ver em seu texto “O que é um autor”.10
Na contramão da abolição do sujeito, Ricoeur responde com sua defesa do “cogito
ferido”, e com sua “hermenêutica de si”: um sujeito, nem Rei, nem escravo, sujeito
destronado, “modesto” (tomando emprestada a expressão de Talitha Ferraz de Souza)11: um
cogito “ferido” ou “quebrado”, mas ainda assim um cogito, um sujeito, alguém que diz ‘eu’
- ou melhor, ‘si’ - distante claro, de Descartes, ou de Nietzsche, ainda assim, apesar dos
pesares, um sujeito. Cogito ferido, sujeito modesto, que deve doravante colocar-se em seu
devido lugar. Lugar a partir do qual deve reconhecer lugares que o antecedem ou o
ultrapassam. (Cf. CC 230).
A segunda intenção filosófica, ou seja a distinção entre idem e ipse, responde a
uma problemática de ordem ética. Com efeito, admitir a sinonímia entre o si e o mesmo,
isto é, considerar que a identidade é sempre igual devido a algum núcleo imutável, equivale

8
Para Frege e Russell, a existência não é predicado, mas quantificador. Em especial Russell conclui que “O
homem existe” ou “Deus existe” são expressões que não têm significado, pois uma expressão só adquire
sentido na proposição na qual ocorre. “Deus” ou ”homem” é x, e dizer “Deus existe” ou “o homem existe”
é somente dizer ∃ x, expressão que só adquire significado numa proposição. Por exemplo “O homem é
mortal” torna-se “∃x tal que x é mortal”. Só se pode falar da existência, se se puder atribuir ao sujeito da
sentença um predicado. Se não há nenhum predicado que se possa atribuir ao sujeito, não se pode falar da
existência. É do predicado que deriva a existência, é o predicado que dá consistência ao sujeito, e que, por
assim dizer, lhe confere existência. Mais ainda, esta não qualifica nada, apenas quantifica: existe um,
alguns, ou todos. A existência em si mesma não significa nada, e o sujeito torna-se um predicado. Ele
parece quase desaparecer neste mundo da lógica simbólica.
9
Derek Parfit. Reasons and Persons. Oxford University Press, 1986, p.156. Citado e traduzido por Ricoeur
(SA 156): “Personal identity is not what matters”
10
Cf. Michel Foucault. “Qu´est-ce qu´un auteur?” in: Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard.
Tradução portuguesa de A.F. Cascais e E. Cordeiro: O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992.
11
Talitha Ferraz de Souza. Criação e Sublimação: Uma Leitura inspirada em Freud e Ricoeur da obra de
Proust Em busca do Tempo Perdido. Tese de doutorado. Puc/SP, 2007, p. 79 a 87. A expressão “sujeito
modesto” me pareceu muito pertinente. Não poucas vezes o leitor a encontrará neste trabalho.
16

a substancializar o sujeito. A recusa desta sinonímia implica em dessencializar o sujeito,


em submetê-lo às contingências existenciais e históricas, em, portanto, admitir sua
impermanência, não lhe conferindo uma mesmidade. O problema ético que aí surge é de
fundamental importância: se tudo muda e o sujeito é instável como garantir seu
comprometimento, ou como diz Ricoeur, sua promessa? Como contar com alguém que
sempre muda? O que fazer com a responsabilidade e o comprometimento? Aqui reside o
problema essencial do filósofo, ao qual ele tentará responder com a noção de ipseidade,
contraposta à de mesmidade, ambas presentes, no entanto distintas, na noção mais geral de
identidade narrativa.
A terceira intenção de Ricoeur, também de inspiração filosófico-ética, sublinha a
presença do outro, ou da alteridade, na ipseidade. Ambos são correlativos: não há si sem
outro. Nesse sentido, é imprescindível estabelecer uma distinção fundamental entre sujeito
e indivíduo. “O individualismo é um produto ideológico da cultura contemporânea ligado a
um fenômeno de classes” (E311). Para o indivíduo, a sociedade é, por assim dizer, um
inimigo que o impede de ter direitos próprios, direitos estes que lhe pertencem antes
mesmo de entrar em sociedade. Esta idéia nasce nos três últimos séculos, e é urgente que se
faça sua crítica, crítica esta que poderia nos possibilitar pensar numa pessoa ou num sujeito
situado para além do individualismo. Se o indivíduo configura “a reivindicação da
satisfação própria, no desconhecimento do outro” (E311), há que se pensar na ligação que
Mounier estabelece entre pessoa e comunidade. Aqui, ”trata-se de uma relação fundadora
pela qual se constituem simultaneamente a identidade pessoal e a identidade coletiva.” (E
311). A dialética ipse – alteridade lança luz sobre esta questão.
Se estas três preocupações, centrais na filosofia de Ricoeur, aparecem em Soi-
même Comme Un Autre, fina e rigorosamente articuladas, vale lembrar que elas
acompanharam a trajetória do autor de modo bastante constante. Já em 1983, portanto antes
mesmo de Temps et Récit III (no qual pela primeira vez aparece o conceito de identidade
narrativa), ele busca uma nova forma de falar do sujeito, forma esta que ponha em
evidência tanto sua capacidade quanto sua fragilidade, sua possibilidade e seu limite, sua
potência e sua impotência. Em seu ensaio de 1983: “Morre o personalismo, retorna a
pessoa”, Ricoeur, consciente da infeliz escolha do termo “personalismo”, continua no
17

entanto a preferir o termo “pessoa” (falará de uma atitude ou de uma atitude-pessoa) aos
termos “consciência”, “sujeito” ou “eu”. Citemos esta longa passagem:

“Em relação à ‘consciência’, ‘sujeito’, ‘eu’, a pessoa aparece como um conceito


que sobrevive e é ressuscitado. Consciência? Como acreditar ainda na ilusão de
transparência que se liga a este termo depois de Freud e da psicanálise? Sujeito?
Como ainda nutrir a ilusão de uma fundação última em algum sujeito
transcendental, após a crítica das ideologias da escola de Frankfurt? O eu?
Quem não ressente a impotência do pensamento em sair do solipsismo teórico,
visto que ele não parte, como Emmanuel Lévinas, do rosto do outro,
eventualmente numa ética sem ontologia? Eis porque prefiro dizer pessoa que
consciência, sujeito, eu.” (L2 198).12

Sem querer estabelecer uma continuidade na vasta obra de Ricoeur, me parece


ficar clara aqui sua busca de uma forma alternativa de falar e de conceber o sujeito para
além das alternativas oferecidas pelo Cogito cartesiano, no qual o eu, em sua soberania, se
põe e pela perspectiva de Nietzsche, no qual este eu é deposto.

2. O Cogito exaltado de Descartes e o cogito humilhado de Nietzsche.

1) O Cogito se põe:
A tese de Ricoeur é a de que o Cogito encontra seu valor filosófico em sua ambição
de ser verdade primeira e fundamento último. Mas, de acordo com o estudo de Martial
Guéroult,13 nas Meditações14 de Descartes, da Primeira Meditação à Terceira Meditação, a
primeira verdade do “eu penso” é transformada em verdade segunda. Ricoeur percorre as
três primeiras Meditações, no intuito de mostrar como se deu este deslocamento.
Descartes inicia a primeira meditação duvidando de tudo, dúvida radical,
hiperbólica e metafísica, que duvida do próprio entendimento. Esta dúvida é dramatizada a

12
“Par rapport à ‘conscience’, ‘sujet’, ‘moi’, la personne apparaît comme un concept survivant et ressuscité.
Conscience? Comment croirait-on encore à l´illusion de transparence qui s´attache à ce terme, après Freud
et la psychanalyse? Sujet? Comment nourrirait-on encore l´illusion d´une fondation dernière dans quelque
sujet transcendental, après la critique des idéologies de l´école de Francfort? Le moi? Qui ne ressent
l´impuissance de la pensée à sortir du solipsisme théorique, dès lors qu´elle ne part pas, comme Emmanuel
Lévinas, du visage de l´autre, éventuellement dans une éthique sans ontologie? Voilà pourquoi j´aime
mieux dire personne que conscience, sujet, moi.”
13
Cf. Martial Guéroult. Descartes Selon l´Ordre des Raisons, 2 vol. Paris: Aubier-Montaigne, 1953. Citado
por Ricoeur (SA 19)
14
Cf Descartes. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. In: Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Nova Cultural Ltda, 1996, p. 241-337.
18

partir da hipótese do gênio maligno, que me engana em tudo. Alguém conduz a dúvida.
Pergunta Ricoeur:
“Mas este ‘eu’ que duvida, assim desancorado em relação a todas as referências
espaço-temporais solidárias do próprio corpo, quem é ele? (..) O ‘eu’ que
conduz a dúvida e que se pensa no Cogito é tão metafísico e hiperbólico quanto
o é a própria dúvida em relação a todos os seus conteúdos. Ele é, na verdade,
ninguém” (SA 16)15.

Na segunda meditação, este “‘eu’ desancorado” quer “encontrar somente uma coisa
que seja certa e indubitável”.16 A primeira certeza é a certeza de minha existência: “Não há,
pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá
jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.”17. O que sou?
“Sou uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento, ou uma razão”18. Diz
Ricoeur: “o pensamento se põe pondo a dúvida. É nesse sentido que o ‘existo pensando’ é
uma primeira verdade, isto é, uma verdade que nada precede.” (SA 18)
Mas, como nota Guéroult, esta certeza é apenas subjetiva: o gênio maligno não
garante uma certeza objetiva: a certeza só ocorre no interior do Cogito, isto é “para meu eu
fechado em si próprio”19 e “somente a demonstração de Deus permitirá responder a
questão”.20 Na terceira meditação, esta demonstração deveria partir do eu até a existência
de Deus, se obedecesse à ordo cognoscendi (ordem da descoberta), mas esta ordem
inverte-se em favor da ordo essendi (ordem da verdade da coisa), na qual Deus torna-se o
primeiro degrau: a certeza do Cogito torna-se segunda em relação à veracidade divina. “A
idéia de mim mesmo aparece profundamente transformada pelo simples fato do
reconhecimento deste Outro que causa a presença em mim de sua própria representação. O
Cogito escorrega (glisse) para o segundo plano ontológico.” (SA 20). O próprio Descartes
afirma: “tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes
que de mim mesmo”.21 Se Deus é ratio essendi de mim, ele se torna ratio cognoscendi de

15
“Mais ce ‘je’ qui doute, ainsi desancré au regard de tous les repères spatio-temporels solidaires du corps
propre, qui est-il? (...) Le ‘je’ qui mène le doute et qui se réfléchit dans le Cogito est tout aussi
métaphysique et hyperbolique que le doute l´est lui-même par rapport à tous ses contenus. Il n´est à vrai
dire personne.”
16
Descartes. Meditações, op.cit., p.266
17
Idem, p.266
18
Idem, p.269
19
Martial Guéroult. Descartes Selon l´Ordre des Raison, op.cit., p. 87. Citado por Ricoeur (SA 19)
20
Idem, p.137. Citado por Ricoeur (SA 19)
21
Descartes. Meditações, op.cit., p.289
19

mim, pois minha imperfeição que me faz duvidar, só me é conhecida a partir da perfeição
divina: “Deus, ao me criar, [pôs] em mim esta idéia para ser como que a marca do operário
impressa em sua obra.”.22 Resultado: “a eliminação da hipótese insidiosa de um Deus
mentiroso que nutria a dúvida a mais hiperbólica” (SA 20/21): a hipótese do gênio maligno
dá lugar a um Deus verídico. Mas há que se perguntar se Descartes, ao querer arrancar o
“eu” de sua solidão, não produziu na verdade um círculo vicioso, ao invés de, como
aspirava inicialmente, construir uma cadeia de razões.
Uma alternativa surge: ou bem o Cogito tem valor de fundamento e é uma verdade
estéril, ou bem, a idéia de perfeito funda o Cogito em sua imperfeição, e a verdade primeira
perde seu teor de fundamento. Malebranche e Spinoza se situaram na segunda alternativa,
enquanto o idealismo, Kant, Fichte et Husserl (o das Meditações Cartesianas) na primeira,
o cogito se fundando a si próprio. O “eu penso” kantiano da Dedução Transcendental “deve
poder acompanhar todas as minhas representações”23 ; já não é mais Deus que põe em mim
representações. Para Ricoeur, perde-se assim “o eu-tu da interlocução, (...) a identidade de
uma pessoa histórica,(...) o si da responsabilidade.” (SA 22).

2) O Cogito “quebrado”
O ataque de Nietzsche ao Cogito cartesiano deriva de uma análise da linguagem –
na qual, justamente, a filosofia se diz - que põe em questão a pretensão fundacional da
filosofia. Nietzsche enfatiza as estratégias retóricas esquecidas e negadas em nome da
imediaticidade da reflexão.
No Curso de Retórica (1872), Nietzsche põe em relevo o caráter essencialmente
metafórico da linguagem: não haveria, por um lado, uma linguagem pura e transparente e,
por outro, figuras de linguagem que, por assim dizer, ornariam ou se sobreporiam a uma
linguagem original ou natural. Toda a linguagem é, ela própria, figurativa.
A linguagem é, toda ela, metafórica, e portanto mentirosa: é o que se pode ler em
Verdade e Mentira no Sentido Extra Moral (1873). Para Ricoeur, isto constitui um
paradoxo: “o paradoxo do mentiroso” (SA 23). Duplo paradoxo: em primeiro lugar, porque
a noção de vida, poderia ser colocada no mesmo diapasão que o Cogito cartesiano, como

22
Idem, p.295
23
Kant citado por Ricoeur (SA 22).
20

“revelação de um novo imediato (...) com as mesmas pretensões fundacionais do Cogito”


(SA 23) – a isto, sucumbiram alguns comentadores de Nietzsche, embora nele próprio, de
acordo com Ricoeur, deva ser priorizado seu “gesto de desconstrução” (SA 23), e não seu
desejo de reconstrução. Em segundo lugar, se levarmos este paradoxo até o fim, a própria
filosofia de Nietzsche estaria nele incluída, seu discurso sendo assim, como qualquer outro
discurso filosófico, tomado como mentiroso.24
A fronteira entre verdades (notem o plural...) e ilusões é, ela própria, ilusória: “as
verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são”.25 Assim como no Curso de
Retórica, não havia oposição entre linguagem literal e linguagem metafórica, aqui, a
linguagem do mentiroso não tem como referência uma linguagem verdadeira. As verdades
“parecem a um povo sólidas, canônicas, obrigatórias”26: as verdades não são, parecem a
um povo verdadeiras, por terem sido convencionadas como tais em função de sua utilidade
para a vida.
É assim que a verdade do Cogito “eu existo pensando” é também sonho. Diz
Ricoeur: “Assim como a dúvida de Descartes procedia da indistinção suposta entre sonho e
realidade, a de Nietzsche procede da indistinção mais hiperbólica entre mentira e verdade.”
(SA24). O gênio maligno de Nietzsche é mais maligno que o de Descartes, pois este não
inclui em sua dúvida o “instinto de verdade” (“instinct de vérité”) (SA24), enquanto a
dúvida hiperbólica nietzscheana atinge até mesmo o próprio instinto de verdade. Ricoeur
quer “mostrar no anti-Cogito de Nietzsche não o inverso do Cogito cartesiano, mas a
destruição da questão mesma para a qual o Cogito deveria supostamente trazer uma
resposta absoluta.” (SA25).
O “eu penso” cartesiano é uma verdade da qual nem mesmo o gênio maligno
poderia me fazer duvidar. Mas Nietzsche, ele próprio transformado em gênio maligno, e
mais maligno que o de Descartes, justamente duvida do “eu”, do “penso”, e da relação
estabelecida entre os dois. Em primeiro lugar, o que tomamos imediatamente como “eu”,
está longe de ser realidade imediata. Diz Nietzsche, em seus fragmentos do Nachlass:

24
Cf SA 25: poder-se-ia, a partir destes dois paradoxos, mapear os seguidores de Nietzsche, por um lado, os
“fiéis” ou os defensores da Vida, e por outro, os “ironistas”, entre os quais Ricoeur coloca os comentadores
franceses.
25
F. Nietzsche. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. Tradução brasileira de Rubens Rodrigues
Torres Filho. In: Os Pensadores. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996, p.57
26
Idem, p.57
21

“Me detenho (ich halte) na fenomenalidade do mundo interior: tudo o que para
nós se torna consciente é, do inicio ao fim, previamente arranjado, simplificado,
esquematizado, interpretado – o processo real da ‘percepção’ interna, o
encadeamento causal entre os pensamentos, os sentimentos, os desejos, como
aquele entre o sujeito e o objeto, nos são absolutamente escondidos – e talvez
pura imaginação.” (Nietzsche in: SA 25/26)27.

Freudiano avant la lettre, Nietzsche vê, sob este suposto ‘eu’ unitário e coerente,
uma multiplicidade de instintos, multiplicidade negada, por Descartes, ao “imaginar um
substrato de sujeito.” (SA26). Assim como o ‘eu’ não é uma unidade autônoma e soberana
-“minha hipótese, o sujeito como multiplicidade”, diz Nietzsche - o pensamento enquanto
tal também é uma ficção. “É ainda colocar uma unidade totalmente arbitrária, esta ficção
chamada ‘pensar’, à parte da abundante multiplicidade dos instintos” (SA26). Mais grave
ainda: imagina-se que neste “substrato de sujeito”, teriam origem os atos do pensamento,
como se o sujeito produzisse os pensamentos, como se o pensamento fosse criação e
propriedade do sujeito. Tomamos o ‘eu’ como causa do pensamento quando ele é apenas
efeito: “arranjo, simplificação, esquematização, interpretação” (SA26)28. Dizer ‘eu penso’ é
“colocar uma substância sob o Cogito ou uma causa por detrás dele” (SA27), mas isto, para
Nietzsche “é um simples hábito gramatical, o de associar um agente a cada ação” (SA27)
29
, quando “tanto o fazer quanto o ator são ficções” (SA26)30.
Conclusão: trata-se de “um exercício de dúvida hiperbólica levado mais longe que o
de Descartes, voltado contra a certeza mesma que este pensou poder subtrair à dúvida.
Nietzsche não diz outra coisa, ao menos nestes fragmentos, que isto: duvido melhor que
Descartes.” (SA27).

27
Não tendo acesso ao texto de Nietzsche, retiro do próprio texto de Ricoeur esta citação, que traduzi aqui a
partir do francês: “Je retiens [ich halte] la phénoménalité également du monde intérieur: tout ce qui nous
devient conscient est d´un bout à l´autre préalablement arrangé, simplifié, schématisé, interprété – le
processus réel de la ‘perception’ interne, l´enchaînement causal entre les pensées, les sentiments, les
convoitises, comme celui entre le sujet et l´objet, nous sont absolument cachés – et peut-être pure
imagination.”
28
Nietzsche citado por Ricoeur (SA26).
29
Idem (SA27).
30
Idem (SA26, nota 1).
22

3. Uma hermenêutica do si.

Nem exaltado, nem humilhado, o Cogito de Ricoeur é “ferido”. Entre dois pólos
extremos, Ricoeur busca construir uma hermenêutica do si que quer “se manter à igual
distância do Cogito exaltado por Descartes e o Cogito proclamado decaído por Nietzsche.”
(SA35). Jean Greisch chama a atenção para o fato de que esta “igual distância” não
constitui de modo algum uma média medíocre:

“É preciso aplicar à hermenêutica do si o que Ricoeur nos diz da idéia


aristotélica da ‘justa medida’: longe de representar um compromisso bastardo,
que teria sua fonte numa falta de audácia, a capacidade de superar os
radicalismos ‘extremistas’ é a expressão da ‘força tranqüila’ de um pensamento
cuja preocupação primeira é a de ‘salvar os fenômenos’. É nesse sentido que a
hermenêutica do si se encontra ‘à igual distância’ das duas posições antagônicas;
ela consegue ocupar um lugar epistêmico e ontológico ‘situado para além desta
alternativa’(SA27)”31

Para além desta alternativa cogito e anti-cogito, Ricoeur, a partir das três intenções
filosóficas, que encontram apoio na gramática, propõe uma hermenêutica do si que ponha
em relevo:
“os três traços gramaticais evocados acima, a saber: o uso do se e do si em
casos oblíquos, o desdobramento do mesmo segundo o regime do idem e do ipse
e, a correlação entre si e outro que si. A estes três traços gramaticais
correspondem os três traços maiores da hermenêutica do si, a saber, o desvio da
reflexão pela análise, a dialética da ipseidade e da mesmidade, e enfim a da
ipseidade e da alteridade.” (SA28)32

Estes três traços estão presentes nos estudos que compõem Soi-même comme un
Autre: 10 estudos subdivididos em quatro conjuntos, cada um dos quais corresponde a um
modo da questão quem? cuja resposta é si, a saber: Quem fala? Quem age? Quem se narra?
Quem é o sujeito moral da imputação?

31
Jean Greisch. Paul Ricoeur. L´Itinérance du Sens. Paris: Millon, 2001, p.380: “Il faut appliquer à
l´herméneutique du soi ce que Ricoeur nous dit de l´idée aristotélicienne du ‘juste milieu’: loin de
représenter um compromis bâtard, qui aurait sa source dans un manque d´audace, la capacité de dépasser
les radicalismes ‘extrémistes’ est l´expression de la ‘force tranquille’ d´une pensée dont le souci premier est
de ‘sauver les phénomènes’. C´est en ce sens que l´herméneutique du soi se trouve ‘à égale distance’ des
deux positions antagonistes: elle réussit à occuper un lieu épistémique et ontologique ‘situé au-delà de cette
alternative’ (SA27)”
32
“aux trois traits grammaticaux évoqués plus haut, à savoir l´usage du se et du soi en cas obliques, le
dédoublement du même selon le regime de l´idem et de l´ipse, la corrélation entre soi et autre que soi. À ces
trois traits grammaticaux correspondent les trois traits majeurs de l´herméneutique du soi, à savoir: le
détour de la réflexion par l´analyse, la dialectique de l´ipséité et de la mêmeté, celle enfin de l´ipséité et de
l´altérité.”
23

O primeiro conjunto (estudos I e II), que se refere à questão quem fala?, diz respeito
a uma filosofia da linguagem, tanto em seu aspecto semântico quanto pragmático. No nível
semântico, “a linguagem é tomada em seu movimento referencial, isto é a designação de
uma coisa.” (IIP57). Aqui, trata-se “os enunciados independentemente da enunciação e do
enunciador” (IIP58). É a pragmática que situará os enunciados no contexto, levando em
conta as condições da interlocução: falar é dirigir-se a. Aqui, os aportes da filosofia
analítica são primordiais, e Ricoeur dialoga com Frege, Russel, Strawson, Austin e Searle,
entre outros. Também convoca autores de outras linhagens, como por exemplo, Émile
Benveniste33 que, a partir de uma análise estrutural da linguagem, desloca a unidade do
sentido da linguagem: esta não deve ser buscada na palavra, como queria Saussure, mas na
frase ou “instância de discurso” (RF 39), discurso que põe em evidência “o sujeito da
enunciação”. Ricoeur salienta o parentesco entre os “speech acts” dos analistas de língua
inglesa Austin e Searle e a “instância de discurso” do lingüista francês Benveniste (Cf. SA
58, nota 1)
Não se trata de tentar casar teorias freqüentemente contraditórias entre si, mas sim
de, através do recurso à filosofia analítica, marcar o desvio necessário para a hermenêutica
do si, uma vez que esta se recusa a aceitar a imediaticidade do sujeito, acentuando o caráter
reflexivo do si.
“O recurso à análise, no sentido dado a este termo pela filosofia analítica, é o
preço a pagar para uma hermenêutica caracterizada pelo estatuto indireto da
posição do si. Por este primeiro traço, a hermenêutica se revela uma filosofia do
desvio: o desvio pela filosofia analítica” (SA 28)34

Como bem lembra Jervolino, o questionamento do sujeito vem acompanhado da


“exploração das formas múltiplas para falar de modo não subjetivista deste ser si-mesmo
que somos”35, modo este largamente proporcionado pela filosofia analítica. A questão
quem fala? encerra duas outras: de quem se fala ao designar de modo referencial a pessoa
(semântica)? e quem fala ao se designar si mesmo enquanto locutor (pragmática)?

33
Como se verá adiante, Émile Benveniste ocupa um importante lugar na obra de Ricoeur, por ter percebido o
que o estruturalismo perdeu de vista : “a implicação do sujeito no discurso” (RF 45).
34
“Le recours à l´analyse, au sens donné à ce terme par la philosophie analytique, est le prix à payer pour une
herméneutique caractérisée par le statut indirect de la position du soi. Par ce premier trait, l´herméneutique
se révèle être une philosophie du détour: le détour par la philosophie analytique.”
35
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, op.cit., p.39
24

O segundo conjunto (estudos III e IV) diz respeito a uma filosofia da ação, e aqui
também os aportes da filosofia analítica são essenciais, notadamente em sua abordagem
pragmática. Conforme explica Edgar Antonio Piva, em seu artigo: “A questão do sujeito
em Paul Ricoeur”: enquanto autores como Anscombe e Davidson desenvolvem uma teoria
semântica da ação, que se ocupa da análise lógica da ação, “a abordagem pragmática da
ação, na medida em que leva em conta a situação de interação, é capaz de abordar a questão
da atribuição explícita da ação a um sujeito, o poder do agente de designar-se a si mesmo
como autor de suas ações”36; é justamente isso que interessa a Ricoeur: “a implicação do
agente na ação, a atribuição (‘ascrição’) ou referência da ação a seu agente, a questão
quem?, quem age?, mas suspendendo as determinações ético-morais tanto da ação quanto
do agente”37. (Ao nível ético-moral, a ascrição se torna imputação). Este segundo
subconjunto liga-se ao primeiro: a problemática da ação está vinculada à da linguagem em
dois sentidos: em primeiro lugar, pois a ação se diz nos enunciados e “é nos atos de
discurso que o agente da ação se designa como aquele que age” (SA29) e, além disso, “os
atos do discurso são eles próprios, ações e (...), por implicação, os locutores são também
agentes” (SA29). Os estudos de Austin e Searle evidenciam este entrelaçamento entre dizer
e fazer. “A questão quem fala? e a questão quem age? aparecerão assim estreitamente
entrelaçadas” (SA29).
O terceiro subconjunto (estudos V e VI) responde à terceira questão: “quem se
narra”, remete portanto à problemática da identidade pessoal ou identidade narrativa.

“A questão da identidade, ligada à da temporalidade, será retomada no ponto


onde a havia deixado Temps et Récit III sob o título de “identidade narrativa”,
mas com novos recursos obtidos pela análise da identidade pessoal em função
de critérios objetivos de identificação.” (SA29)38

Aqui também a passagem pela filosofia analítica tem uma dupla função: a de
“desvio”, que permite escapar da imediaticidade da posição de sujeito, como também
possibilita tratar do sujeito de modo não subjetivista, como tinha sublinhado Jervolino.

36
Edgard Antonio Piva. “A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur”. In: Síntese, Belo Horizonte, v.26, n.85,
1999, p.215
37
Idem, p.215
38
“La question de l´identité, liée à celle de la temporalité, sera reprise au point où l´avait laissée Temps et
Récit III sous le titre de l´ “identité narrative”, mais avec des ressources nouvelles procurées par l´analyse
de l´identité personnelle en fonction de critères objectifs d´identification.”
25

Tratar-se-á de abordar a dialética idem-ipse, que constitui o segundo traço gramatical da


hermenêutica de si. Esta problemática está estreitamente ligada à da linguagem e da ação,
na medida em que ao falar de si, o sujeito é “sujeito da ação narrada”. Neste estágio, será
possível falar do sujeito como homem agindo e sofrendo.
O quarto subconjunto (estudos VII,VIII e IX) aborda as determinações éticas e
morais da ação: o autor analisa “as dimensões éticas e morais de um sujeito a quem a ação,
boa ou não, feita por dever ou não, pode ser imputada (imputée).” (SA30) Trata-se de
responder à questão: quem é o sujeito moral da imputação? Embora a dialética ipseidade-
alteridade esteja presente nos estudos anteriores, pois o si não pode ser separado do outro, é
aqui, no âmbito da ética e da moral, que ela atingirá sua plena significação. “A autonomia
do si aparecerá intimamente ligada à solicitude pelo próximo e à justiça para cada homem”
(SA30). Aqui reside o que Paul Ricoeur gosta de denominar “sua pequena ética”, que ele
assim define: “a visada da vida boa, com e para outrem, em instituições justas” (SA
202)39, definição que será examinada pormenorizadamente adiante. É suficiente, por ora,
comentar que a ética ricoeuriana, diferenciada da moral, permite articular a problemática
do si e do outro.
Estes estudos mostram bem a distância existente entre a hermenêutica do si e as
filosofias do Cogito. “Dizer si, não é dizer eu. O eu se põe – ou é deposto. O si é implicado
a título reflexivo em operações cuja análise precede a volta a ele mesmo” (SA30). Nesse
sentido, é preciso ainda apontar duas características que evidenciam a oposição da
hermenêutica do si tanto em relação à imediaticidade do ‘eu sou’ quanto à ambição de este
‘eu sou’ ser fundamento último.
A primeira diz respeito ao “caráter fragmentário” (SA30) dos nove estudos,
necessário em função do desvio pela análise, como também em função da polissemia
inerente à questão quem?: quem fala de que? quem faz o que? de quem e de que se faz a
narração? quem é moralmente responsável de que? Diversas maneiras de falar do si,
decomposto em quatro modos de ser. No entanto, por entre as linhas da fragmentação,
pode-se entrever certa unidade temática: o agir humano. Nesse sentido, “a filosofia que se
depreende da obra mereceria ser chamada filosofia prática e ser recebida como ‘filosofia
segunda’” (SA31). Uma ressalva deve ser feita aqui, pois tal unidade temática não

39
“La visée de la ‘vie bonne’ avec et pour autrui dans des institutions justes.”
26

privilegia nenhum dos termos da questão quem? “O sentido primeiro do agir humano
consiste na autodesignação de um sujeito falante? Ou na potência de fazer do sujeito da
ação? Ou na imputação moral da ação? Cada uma destas respostas tem seu próprio direito.”
(SA32). A diversidade do agir é analisada sob uma tripla perspectiva: descrever, narrar,
prescrever. A abordagem narrativa, que tinha sido privilegiada em Temps et Récit, serve
aqui de ponte de ligação entre o descritivo (filosofias analíticas da linguagem e da ação) e a
dimensão prescritiva (ética e moral).
O último estudo se caracteriza não somente por ser fragmentário, como francamente
“exploratório” (SA32) caráter posto em evidência pela forma interrogativa de seu título:
“Em direção a que ontologia?” Trata-se de um estudo mais propriamente ontológico, no
qual a pergunta é “Que modo de ser é o do si , que tipo de ente ou entidade é o si?”
(SA345), ou mais especificamente, se é possível colocar o agir humano sob a égide de um
modo de ser fundamental. Aqui, é convocado Aristóteles acerca de sua polissemia do termo
‘ser’, não do ser enquanto substância, mas do ser enquanto ato e potência. Segundo Edgar
Antonio Piva, Ricoeur
“reinterpreta a ontologia aristotélica do ato-potência, do ser como ato, através
de Spinoza e de Leibniz. Ele relaciona o ato de ser com o conatus de Spinoza e
com o appetitus de Leibniz (...) O ato reflexivo mediante o qual o sujeito se
retoma, se apreende e se identifica, é manifestação do ato de ser, do esforço por
existir.” 40

A segunda característica, que sublinha a distância entre hermenêutica de si e


filosofias do Cogito, refere-se à noção de atestação. Esta diz respeito ao tipo de certeza à
qual pode pretender uma hermenêutica do si. O tipo de certeza oferecido pela atestação se
encontra, por assim dizer, no meio do caminho que nasce na hiper-certeza que o Cogito
reivindica, e morre na diluição nietzscheana entre verdade e mentira.

“Enquanto créance (crédito?) sem garantia, mas também enquanto confiança


mais forte do que qualquer suspeita, a hermenêutica do si pode pretender se
manter à igual distância do Cogito exaltado por Descartes e o Cogito
proclamado decaído por Nietzsche.” (SA 35)41.

40
Edgard Antonio Piva. “A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur”, op. cit., p. 236
41
“En tant que créance sans garantie, mais aussi en tant que confiance plus forte que tout soupçon,
l´herméneutique du soi peut prétendre se tenir à égale distance du Cogito exalté par Descartes et du Cogito
proclamé déchu par Nietzsche.”
27

Entre a necessidade de absoluta garantia oferecida por Descartes (que possibilita ao


Cogito sua pretensão de fundação última) e a ameaça generalizada da suspeita provinda de
Nietzsche (que abala qualquer fundamento), Ricoeur busca um outro critério de
verificabilidade, ou mesmo de verdade: aí se situa a atestação, que não deixa de ser um
certo tipo de verificação dos saberes. Digo ‘um certo tipo’, pois se os termos
verificabilidade ou verificação sugerem exclusão do erro, a atestação passa sempre pela
suspeita.42 O tipo de saber a que pode pretender a hermenêutica do si ultrapassa a oposição
clássica entre doxa (opinião) e episteme (ciência ou saber). Aproxima-se da doxa, enquanto
é crença, mas dela se diferencia, pois não se trata de “crer que”, e sim de “crer em”.
Nesse sentido está próxima do testemunho “na medida em que é na palavra da testemunha
que se crê” (SA33). Mais do que crença, créance (crédito?).

“O parentesco entre atestação e testemunho se verifica aqui: não há


‘verdadeiro’ testemunho sem ‘falso’ testemunho. Mas não há outro recurso
contra o falso testemunho que um outro testemunho mais crível: e não há outro
recurso contra a suspeita que uma atestação mais fiável.” (SA34)43.

Se atestação e testemunho se aproximam, de modo nenhum se confundem, pois a


atestação é sempre atestação de si: ‘eu’ atesto, sendo este ‘eu’ entendido como ipse e não
idem. Trata-se de um certo tipo de confiança, “confiança no poder de dizer, no poder de
fazer, no poder de se reconhecer personagem da narrativa, no poder enfim de responder à
acusação pelo acusativo: eis-me! segundo uma expressão cara a Lévinas.” (SA34/35).
(Atestação aqui, é consciência moral ou Gewissen). É assim atestação de si em todos os
níveis (lingüístico, práxico, narrativo, prescritivo) é, enfim, confiança de ser si mesmo
agindo e sofrendo. A atestação de si impede que a questão quem? se eclipse para dar lugar
à questão o que? ou por que? A atestação assim não é apenas da ordem epistemológica,
mas sobretudo ética: é confiança na capacidade do homem em dizer, fazer, se reconhecer e
assumir sua responsabilidade moral. Trata-se de uma confiança, uma aposta44, por assim

42
Devo a Hélio Salles Gentil tal cuidado com a precisão dos termos, que põe em relevo a dimensão de
suspeita presente na noção de atestação.
43
“La parenté entre attestation et témoignage se vérifie ici: il n´y a pas de ‘vrai’ témoin sans ‘faux’ témoin.
Mais il n´y a pas d´autre recours contre le faux témoignage qu´un autre témoignage plus crédible; et il n´y a
pas d´autre recours contre le soupçon qu´une attestation plus fiable.”
44
A noção de aposta é essencial na filosofia de Ricoeur: “A aposta que o melhor de todas as diferenças
converge. A aposta que os avanços do bem se acumulam, mas que as interrupções do mal não formam um
28

dizer, na capacidade do homem que pode agir e sofrer, na possibilidade de humanidade do


homem. Confiança no entanto sempre posta à prova, uma vez que, insiste Ricoeur, “a
atestação da ipseidade é inseparável de um exercício de suspeita” (SA393)
Exposto o panorama geral da hermenêutica de si, concentremo-nos agora em um de
seus momentos: a dialética idem-ipse, que diz respeito ao conceito de identidade narrativa e
que responde a um dos modos da questão quem: “quem se narra?”

4. A identidade narrativa

Como já se mencionou no início deste trabalho, desde Temps et Récit III (1985) até
Soi-même Comme Un Autre (1990) o conceito de identidade narrativa ganhou consistência,
segundo o próprio autor. Em Temps et Récit III, a identidade narrativa aparece sobretudo
como o possível lugar de cruzamento entre narrativa ficcional e narrativa histórica. Já
então, o conhecimento de si foi considerado como sendo uma interpretação de si, que
encontra na narrativa uma mediação privilegiada; esta narrativa apresenta uma mistura de
elementos ficcionais e históricos, fazendo da história de uma vida, uma história ficcional ou
uma ficção histórica. Mas, diz Ricoeur, “faltava uma clara compreensão do que está em
jogo na própria questão da identidade aplicada a pessoas ou a comunidades” (E296), isto é,
das dificuldades presentes na questão, e de como a resolução destas dificuldades pode
contribuir para esclarecer “a noção de identidade pessoal, tal como vem sendo atualmente
discutida em largos círculos filosóficos, em particular na filosofia analítica de língua
inglesa.” (E296).
Sabe-se que as tentativas de Ricoeur para repensar um novo sujeito, em suas
dimensões tanto de potência e quanto de impotência, de capacidade e de incapacidade -
preocupação que pode ser sintetizada na fórmula: “o homem agindo e sofrendo” - não
nascem com Soi-même Comme Un Autre, mas com suas reflexões em O Voluntário e o
Involuntário45, e ganham mais consistência com a noção de identidade narrativa que

sistema. Isto, eu não posso provar. Não o posso verificar: só posso atestá-lo se a crise da história tornou-se
meu intolerável e se a paz – tranqüilidade da ordem – tornou-se minha convicção.” (L2 202).
45
Como bem lembrou Hélio Salles Gentil, no exame de qualificação.
29

concentra, por assim dizer, esta dupla condição vivida pelo homem. Olivier Mongin
salienta a importância fundamental do conceito de identidade narrativa na obra do filósofo:

“Soi-même Comme Un Autre não é concebível sem a análise prévia da


identidade narrativa, da relação entre ‘idem e ipse’. Se esta, na obra de 1990, é
somente um dos níveis de apreensão do Si, ela tem no entanto, um papel
determinante (...). Ricoeur (...) conseguiu lançar as bases de uma hermenêutica
do si graças à temática da identidade narrativa.” 46

Feito este longo preâmbulo vamos enfim ao conceito de identidade narrativa, que
retomo no ponto onde o deixei, ou seja, a partir da citação de Dartigues: “(...) a identidade
pessoal, ou a resposta à questão: ‘Quem é você?’ (...) implica a narração da vida (...). A
pessoa é o que ela fez e o que ela sofreu” 47. Nas palavras de Ricoeur:

“Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade, é responder à


questão: quem fez tal ação, quem é seu agente, ou seu autor? (...) A resposta só
pode ser narrativa. Responder à questão ‘quem’, como o tinha enfaticamente
dito Hannah Arendt, é narrar a história de uma vida. A história narrada diz o
quem da ação. A identidade do quem é portanto ela própria uma identidade
narrativa.” (TR III 442/443).48

A crítica contemporânea vem confundindo a noção de identidade pessoal,


sobrepondo dois significados nela contidos. Ricoeur distingue a identidade como idem
(mesmidade) e como ipse (si-mesmo, idêntico a si). A ipseidade não é a mesmidade.
Na identidade como mesmidade se sobrepõem quatro significados: 1) no sentido
numérico, identidade significa unicidade e seu contrário é pluralidade. A identificação aqui
é reidentificação do mesmo; 2) a idéia de semelhança extrema. O contrário aqui é:
diferente. Estes dois critérios podem se sobrepor: quando a reidentificação do mesmo é
objeto de dúvida, quando se trata, por exemplo, de dizer que um X, réu e acusado hoje, e o

46
Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit., p. 126/127: “Soi-même comme un Autre n´est pas concevable sans
l´analyse préalable de l´identité narrative, de la relation entre ‘l´idem et l´ipse’. Si celle-ci n´est plus dans
l´ouvrage de 1990 qu´un des niveaux d´appréhension du Soi, elle n´en assure pas moins un rôle déterminant
(...) Ricoeur (...) est parvenu à jeter les bases d´une herméneutique du soi grâce à la thématique de l´identité
narrative.”
47
André Dartigues. “Paul Ricoeur e a questão da identidade narrativa”, op.cit., p.7.
48
“Dire l´identité d´un individu ou d´une communauté, c´est répondre à la question: qui a fait telle action? qui
en est l´agent, l´auteur? (...) La réponse ne peut être que narrative. Répondre à la question ‘qui?’, comme
l´avait fortement dit Hannah Arendt, c´est raconter l´histoire d´une vie. L´histoire racontée dit le qui de
l´action. L´identité du qui n´est donc elle-même qu´une identité narrative.”
30

autor de um crime antigo são uma mesma e única pessoa. É a fraqueza do critério de
similitude no caso de uma grande distância no tempo que sugere outro critério, ou outro
significado da identidade como mesmidade; 3) continuidade ininterrupta de um ser entre o
primeiro e o último estágio de sua evolução: tomemos um X, de feto ou bebê a homem ou
velho, é uma única e mesma pessoa. O contrário aqui é a descontinuidade. Vemos como
entra em jogo aqui a mudança no tempo; 4) o quarto sentido da identidade–mesmidade é a
permanência no tempo. O contrário seria: diversidade ou mutabilidade.
A permanência no tempo da identidade nos levaria a postular uma espécie de
substrato ou de substância inerente à identidade (como fizeram Aristóteles e Kant). Aí
começam os problemas. Pois as pessoas não são sempre as mesmas: da infância à velhice,
pode-se dizer que nada mudou? “Nada na experiência interior escapa à mudança”
(RSCH36): o si é caracterizado pela mudança e por experiências de descontinuidade, como
o atestam, por exemplo, de modo bastante dramático, as experiências de conversão. Por
isto, identidade não é apenas mesmidade, mas é também ipseidade: “no sentido de ipse,
‘idêntico’ está ligado ao conceito de ipseidade, de um si mesmo. Um indivíduo é idêntico a
si mesmo. O contrário aqui é ‘outro’, ‘estranho’” (RSCH35). A diferença dos contrários
pode nos esclarecer aqui; os contrários de mesmidade são: pluralidade (em oposição à
unicidade), diferente (contrário de similitude), descontinuidade (contra continuidade), e
diversidade (oposto à permanência), o contrário de ipseidade é alteridade (deixo para mais
tarde a relação dialética entre ambas, essencial para a identidade narrativa).
O que nos ensina esta explicitação dos contrários? Que não se pode confundir
mesmidade e ipseidade49: esta distinção fundamental permite escapar da armadilha de ver
no sujeito uma essência ou substância imutável: a ipseidade não está submetida à camisa de
força da essência, do sempre igual da repetição; enquanto a mesmidade implica uma
permanência no tempo, a ipseidade dela prescinde, embora não totalmente. Mas o que
fazer com a conseqüência ética de uma ipseidade que perdeu o suporte da mesmidade?
49
Embora este comentário não seja suficientemente acadêmico, seu valor pedagógico é inestimável, razão pela
qual deve aqui constar. A melhor, isto é, a mais elucidativa, diferenciação entre mesmidade e ipseidade me
foi oferecida no decorrer das aulas de Jeanne Marie Gagnebin, sobre a filosofia de Ricoeur (na PUCSP,
primeiro semestre de 2005). Disse ela, aproximadamente: Idem e ipse são duas palavras latinas para falar de
identidade. Referem-se a coisas e a pessoas. Quando alguém diz: “Esta sacola é a mesma que você estava
usando naquele dia”, encontramo-nos no âmbito da mesmidade. Situação totalmente diferente se dá nesta
pequena conversa telefônica: “- Alô, quero falar com X. - É ela mesma”: este “ela mesma” significa,
justamente, ipseidade. Idem refere-se a coisas; ipse refere-se a pessoas. A ipseidade evita que a questão
quem se transforme na questão que.
31

Pois, como se mencionou no início do trabalho, o problema ético que surge da recusa da
repetição é de fundamental importância: se tudo muda e o sujeito é instável, como garantir
seu comprometimento, ou sua promessa? Como contar com alguém que sempre muda? O
que fazer com a responsabilidade e o comprometimento? Por isto, é necessário que subsista
na ipseidade um certo tipo de permanência, ou “sustentação de si” (maintien de soi), que
permite que outrem possa contar comigo. “Há outro modelo de permanência no tempo que
o do caráter. É o da palavra mantida na fidelidade à palavra dada (...) Uma coisa é o
perseverar do caráter50; outra, a perseverança da fidelidade à palavra dada” (SA148). Trata-
se propriamente de, a despeito de todas as mudanças, manter a promessa dada. “A este
respeito, a manutenção (tenue) da promessa (...) parece constituir um desafio ao tempo,
uma negação da mudança; ainda que meu desejo mudasse, ainda que eu mudasse de
opinião, de inclinação, ‘eu manterei.’” (SA149). É a categoria ética da promessa feita ao
outro que, de certo modo, põe um fim à errância da ipseidade. “Se o si é fiel a sua
promessa, é porque o outro conta com ele. (...) É a expectativa (attente) de outrem que
torna a ‘sustentação de si’ (‘maintien de soi’) possível” 51.
Não se trata do fato de que a promessa venha se sobrepor a uma identidade ipse, já
constituída, mas deve-se compreender que é a própria promessa que, por assim dizer, a
define: trata-se de uma “identidade, superior, que é a identidade da promessa mantida
(tenue)”.52 Ipseidade e promessa estão intrinsecamente ligadas, remetendo necessariamente
uma à outra.
Não se pode deixar de apontar aqui um certo paradoxo presente na noção de
promessa, tal como concebida por Ricoeur: por um lado, ela constituiria uma certa renúncia
a si, na medida em que, a despeito do que desejo e penso hoje, “a despeito das
intermitências do coração” (RF104), mantenho a promessa feita, mas, por outro, a
promessa também diz respeito a uma certa reafirmação de si: trata-se propriamente de um

50
Embora o conceito de caráter tenha sofrido modificações ao longo da obra de Ricoeur, pode-se considerar,
de modo geral, que este diz respeito à mesmidade. Não se entrará aqui nesta longa discussão, bastando-nos
remeter o leitor interessado a Soi-même Comme Un Autre, p.144 a 150. Como também ao supracitado texto
de Edgard Antonio Piva, p.219.
51
Gaëlle Fiasse. “Asymétrie, gratuité et réciprocité”. In: Paul Ricoeur. De l´homme faillible à l´homme
capable. Coordonné par Gaëlle Fiasse. Paris: PUF, 2008, p.119/120
52
Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann”. In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur. Textes réunis par Jean-Christophe Aeschliman. Neuchâtel: Baconnière, 1994,
p.26
32

esforço do sujeito para existir53, para se manter, para sustentar sua palavra. Ricoeur, em A
Crítica e A Convicção, se refere à religião em termos de “um acaso transformado em
destino por uma escolha contínua” (CC198 e SA38): o mesmo tipo de escolha,
constantemente renovada, parece constituir o cerne da promessa.54
Ricoeur, em A Memória, A História e O Esquecimento lembra o lugar que ocupa
a promessa em Nietzsche, e cita o longo trecho da segunda dissertação da Genealogia da
moral:
“Criar um animal que possa prometer, não é essa a tarefa paradoxal que a
natureza se propôs, em se tratando do humano; não é esse o problema
verdadeiro do homem? Mas o fato de esse problema ser resolvido numa ampla
medida, eis o que não deixará de espantar aquele que sabe bem que força a isso
se opõe: a força do esquecimento.”55

Como diz Jean Greisch, ao comentar este trecho, “é propriamente o ato de


prometer que define o que há de mais humano no homem”56 O homem é o único animal
que pode prometer, e se pode prometer, é porque tem a capacidade de lembrar de sua
promessa: esta possibilidade lhe é dada pela memória. “Na segunda dissertação de La
généalogie de la morale, (...) a promessa se anuncia como ‘memória da vontade’,
conquistada sobre a preguiça do esquecimento.” (MHE495) A promessa é assim resultado
de sua vitória contra o esquecimento. Se Nietzsche fala em “memória da vontade”, Ricoeur
prefere dizer “memória da ipseidade”:

“esta memória que confere ao homem o poder de cumprir sua promessa, de se


manter; memória de ipseidade, diríamos, memória que ao regular o futuro sobre
o compromisso do passado, torna o homem ‘previsível, regular, necessário’ – e
assim capaz de ‘responder por si mesmo como por vir’” (MHE 495, nota 39).

53
A este respeito, diz Bernard Ilunga Kayombo em: Paul Ricoeur. De l´attestation du soi. Paris:
L´Harmattan, 2004, p.188: “A sustentação de si, identidade propriamente ética do si, surge na conjunção
entre o desejo de ser e o esforço para existir. O desejo reenvia ao lado passivo da existência humana, o
esforço, ao seu lado ativo. É dizer que o desejo se enraiza na carne do homem, enquanto involuntário, ao
passo que o esforço diz respeito a seu querer. O si ético é, já neste nível, si-mesmo enquanto outro.” É de
Jean Nabert que Ricoeur retira a noção de “desejo de ser e esforço para existir” (Cf. CC213).
54
Agradeço a colaboração de Helio Salles Gentil, que me chamou a atenção para o fato de que a promessa
não constitui somente uma renúncia a si, mas também diz respeito a uma “sustentação de si”, um esforço do
sujeito em se manter, em função da palavra empenhada.
55
Nietzsche citado por Ricoeur (MHE 495, nota 39). Sigo aqui a tradução feita por Alain François em MHE,
ligeiramente diferente daquela de Paulo César de Souza em Friedrich Nietzsche. Genealogia da Moral.
Uma Polêmica. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 47.
56
Jean Greisch. Paul Ricoeur. L´itinérance du sens, op.cit., p.350.
33

Deste ponto de vista, a promessa constituiria quase um escândalo, revelaria, no


mínimo, uma arrogância: o sujeito soberano, tem a ilusão de poder controlar a si próprio e
ao tempo: como responder pelo por vir, pelo futuro, pelo desconhecido? Como prometer?57
Assim, se o homem tornado “previsível, regular, necessário” pela promessa, tem,
aos olhos de Nietzsche, um valor, por assim dizer, polêmico, para Ricoeur um mínimo de
previsibilidade ou regularidade é fundamental: a sustentação de si presente na promessa é
necessária pois estabelece regras mínimas de possibilidade de convivência comum, de
linguagem comum, de ação comum. De fato, entendida de modo mais trivial, a promessa
diz respeito aos pequenos compromissos cotidianos, do tipo “virei dar aula toda terça feira
às 14 horas”, ou então dizer ao filho: “você estuda e depois vamos passear”, ou ainda “te
ligo amanhã”, etc.... , compromissos sem os quais o viver junto seria impossível.58
No entanto, não se deve confundir a permanência no tempo que implica a
mesmidade e a sustentação de si exigida pela promessa na ipseidade: entre as duas, parece
haver um vazio, vazio este preenchido pela noção de identidade narrativa. Vê-se, neste
terreno mediano, “a identidade narrativa oscilar entre dois limites, um limite inferior, onde
a permanência no tempo expressa a confusão do idem e do ipse, e um limite superior, onde
o ipse põe a questão da identidade sem o socorro e o apoio do idem.” (SA150). Ricoeur não
quer se “encerrar em uma alternativa ipse/idem pois precisamos de um mínimo de
mesmidade para continuar a colocar a questão ‘quem sou eu’” (E314). Tal solução não
surpreende por parte deste filósofo, amigo de Aristóteles e da justa medida. No entanto, é
necessário sublinhar a palavra ‘mínimo’ para marcar a ênfase ou predominância, na
hermenêutica do si, da ipseidade. Ainda assim, é preciso manter um mínimo: não parece
possível falar de abandono da mesmidade, uma vez que talvez, não se possa abrir mão de
uma mesmidade tornada necessária pela própria língua, que pressupõe uma identidade
entre sujeito e atributo. 59
É assim que Ricoeur propõe uma dialética ipse-idem, uma dialética permanência-
mudança. Dialética esta que o conceito diltheano de “coesão da vida”

57
A este respeito, vale lembrar o interessante comentário de Kayombo, que articula as categorias de
ipseidade, alteridade e promessa. Precisamente por desconhecer o amanhã, é como outro que prometo: “O
si promete sempre enquanto um ‘si mesmo como um outro’”. Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De
l´attestation du soi, op.cit., p. 359.
58
‘Trivialidade’ da promessa que me foi apontada por Jeanne Marie Gagnebin.
59
Esta observação é fruto dos comentários de Jeanne Marie Gagnebin e Hélio Salles Gentil, no decorrer do
exame de qualificação.
34

(Lebenszusammenhag) parece implicar: “a identidade narrativa (...) pode incluir a


mudança, a mutabilidade, na coesão de uma vida.” (TRIII 443). Ao contar sua história, o
sujeito, por assim dizer, costura “elementos que são articulados pela narrativa em uma
60
totalidade dotada de sentido” , elementos concordantes e discordantes que se reúnem no
que MacIntyre denominou “unidade narrativa de uma vida” (SA186). O sujeito se atesta ao
ao costurar sua história e - vale lembrar - esta história não é fixa nem definitiva, mas vai se
refazendo, “história à qual vão se incorporando outras histórias, outros elementos não
considerados, circunstâncias e acontecimentos não previstos, projetos não delineados,
61
aventuras” . Múltiplas narrativas que, a cada vez, reinventam uma nova unidade, uma
outra identidade, tecida de uma “mistura de signos de persistência e signos de mudança”
(RSCH37). Diz Ricoeur: “É justamente neste ponto que a narrativa oferece sua mediação”:
nesse sentido, a narrativa oferece uma mediação privilegiada, pois é nela que se dá a ver a
dialética própria da identidade, qual seja, a da mesmidade e ipseidade, ou a da permanência
e mudança. De que modo esta dialética aparece na narrativa, é o que se verá agora, e
Ricoeur o faz inspirando-se novamente em Aristóteles.
Em Temps et Récit, Ricoeur recorre à teoria da narração de Aristóteles na Poética:
ela fornece elementos para pensar a questão da identidade através da figura do personagem
da história narrada. Não se entrará nos detalhes desta teoria da narração, oferecendo
apenas algumas explicações básicas, especialmente em relação à noção de configuração e
refiguração.
O que interessa aqui é pensar a identidade do personagem na medida em que esta
poderá lançar luz sobre o conceito de identidade narrativa. Mas, a identidade do
personagem encontra-se em estreita dependência com a história narrada. E esta história
narrada, ao mesmo tempo em que apresenta certa coerência ou coesão (concordância da
narrativa) – e, na tragédia, segundo Aristóteles, isto obedece a certas regras necessárias na
arte da composição – traz também acontecimentos inesperados: reviravoltas ou mudanças
no destino. Tais reviravoltas, além de serem contingentes - poderiam ter acontecido de
outra forma ou mesmo não ter acontecido - causam surpresa no espectador. Mas tanto a

60
Hélio Salles Gentil. Para Uma Poética da Modernidade, uma aproximação à arte do romance em Temps et
Récit de Paul Ricoeur. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.239
61
Idem, p.240
35

contingência quanto a surpresa devem coordenar-se de modo harmonioso com os


elementos concordantes da narrativa. Configuração é justamente resultado da:

“arte da composição que articula concordância e discordância, e regula esta


forma mutante que Aristóteles denomina muthos e que traduzimos por ‘mise en
intrigue’ (tecer do enredo). Prefiro o termo de ‘configuração’ ao de ‘estrutura’ a
fim de sublinhar o caráter dinâmico desta mise en intrigue.”(RSCH39). 62

Voltemo-nos agora ao personagem, que pode ser considerado como “figura da


ipseidade” (RSCH39). A este respeito, pode ser dito que: “a identidade narrativa do herói
só pode ser correlativa à concordância discordante da história ela própria” (RSCH40). No
personagem, suporte do enredo, misturam-se os elementos concordantes e discordantes em
consonância com a concordância discordante presente no enredo. Vale aqui lembrar o
trabalho de Propp63 que desenvolve uma tipologia dos personagens de acordo com a função
que estes têm na história, estabelecendo assim estreita correlação entre os personagens e a
história narrada. Assim como os personagens estão a serviço do enredo, se transformando
de acordo com o ritmo dos acontecimentos, pode também acontecer que o enredo esteja a
serviço dos personagens. Por exemplo, nos romances de formação ou nos de fluxo da
consciência, “a transformação do personagem constitui o momento central da narrativa. (...)
contrariamente ao modelo aristotélico, o enredo está a serviço do desenvolvimento do
personagem.” (RSCH40).
As reflexões de Ricoeur acerca do romance moderno põem em relevo não somente
a diferença fundamental entre mesmidade e ipseidade, mas também, e isso é essencial, a
importância da questão quem? mesmo quando esta parece perder todo o sentido. No
romance moderno, a perda da identidade (trata-se, neste caso da perda da mesmidade, dirá
Ricoeur) assume papel preponderante: o eu quase desaparece, ele já não é mais nada.
Ricoeur se inspira no romance de Robert Musil: O Homem Sem Qualidades, ou sem

62
“art de la composition qui articule concordance et discordance, et règle cette forme mouvante qu`Aristote
nomme muthos et que nous traduisons par ‘mise en intrigue’. Je préfère le terme de ‘configuration’ à celui
de ‘structure’ afin de souligner le caractère dynamique de cette mise en intrigue”. Intrigue pode ser
traduzido por intriga ou, como o faz Jeanne Marie Gagnebin, por enredo. Em seu artigo: “Uma filosofia do
Cogito ferido: Paul Ricoeur”, diz a autora: “Prefiro a tradução enredo à de intriga, em razão das conotações
palacianas dessa última palavra. Enredo também remete a rédeas e a outros fios tecidos pelo texto.” In:
Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 171, nota 12.
63
Cf. V.J. Propp. Morphologie du Conte. Paris: Seuil, 1965. Citado por Ricoeur (RSCH40). Propp classifica
sete personagens no conto russo: o agressor, o doador, o auxiliar, a pessoa que se busca, o mandatário, o
herói, o falso herói.
36

propriedades (ohne Eigenschaften), ou até mesmo em autobiografias modernas como a de


Michel Leiris em L´Âge d´Homme.64 Sustentou-se até aqui que personagem e enredo estão
em correlação: o que dizer do enredo num romance moderno no qual o personagem
desaparece? Não haveria então mais nada a dizer? A resposta é surpreendente: “A hipótese
de um não sujeito (...) não é a de um nada, sobre o qual não haveria mais nada a dizer. Esta
hipótese conduz, ao contrário, a dizer muito: é o que testemunha a imensidão de uma obra
como O Homem Sem Qualidades” (RSCH46)65. Mas, sem dúvida, pode-se dizer que a
narrativa entra em crise:

“À perda da identidade do personagem, corresponde, em seguida, uma perda da


configuração da narrativa e sobretudo uma crise do fim da narrativa (...) A
erosão dos paradigmas afeta ao mesmo tempo a figuração do personagem e a
configuração do enredo.” (RSCH41)66.

A correlação entre enredo e personagem se verifica também no romance


moderno, e a “erosão dos paradigmas” que faz com que, muitas vezes, a obra se aproxime
da forma do ensaio, como na autobiografia de Leiris. O que o romance moderno põe em
questão não é a identidade enquanto tal, mas um modo desta, ou seja a mesmidade. A
ipseidade ainda está aí mesmo sem o auxílio da mesmidade: por isso, há ainda tanto a
dizer. No romance moderno,

“A identidade não é o que importa. Mas é ainda alguém que diz isto. A frase ‘eu
não sou nada’ deve guardar sua forma paradoxal: ‘nada’ não significaria mais
nada, se não fosse imputado a ‘eu’. O que é ainda ‘eu’ quando eu digo que ele é
‘nada’ senão precisamente um si privado do auxílio da mesmidade” (E304).67

Quando digo “não sou nada”, o que está em questão é a “categoria da substância e
de seu esquema, da permanência no tempo” (RSCH46), portanto da mesmidade e não da

64
Robert Musil e Michel Leiris, citados por Ricoeur (RSCH 41 e 46; SA 177 e 196)
65
“L´hypothèse d´un non-sujet (...) n´est pas celle de rien, sur quoi il n´y aurait rien à dire. Cette hypothèses
conduit au contraire à dire beaucoup: c´est ce dont témoigne l´immensité d´un ouvrage comme L´Homme
sans qualités.”
66
“À la perte d´identité du personnage correspond, par suite, une perte de configuration du récit et surtout une
crise de clôture du récit. (…) L´érosion des paradigmes touche en même temps la figuration du personnage
et la configuration de la mise en intrigue.”
67
“L´identité n´est pas ce qui importe. Mais c´est encore quelqu´un qui dit cela. La phrase: ‘je ne suis rien’
doit garder sa forme paradoxale: ‘rien’ ne signifierait plus rien, s´il n´était impute à ‘je’. Qu´est encore ‘je’
quand je dis qu´il n´est ‘rien’, sinon précisément un soi privé du secours de la mêmeté.”
37

ipseidade: esta diferenciação entre os dois termos faz com que se possa perceber o
paradoxo presente na afirmação: “eu não sou nada”.

“Um não-sujeito não é nada em relação à categoria do sujeito (...) O não sujeito
[é] ainda uma figura do sujeito, mesmo que no modo negativo. Alguém
pergunta: quem sou eu? Responde-se: nada ou quase nada. E trata-se ainda de
uma resposta à questão quem, mas reduzida à nudez da questão ela própria.”
(E302).68

É o que acontece nas experiências extremas em que a identidade–permanência é


nula ou quase nula, nas experiências dramáticas de mudança, como as da conversão, por
exemplo. “A resposta nula, longe de declarar vazia a questão, remete a ela e a mantém
enquanto questão. Somente não pode ser abolida a questão mesma: quem sou eu?” (E304).
Quem sou eu? Alguém que diz eu.
Este alguém que diz eu não pode se compreender de modo imediato: a
compreensão parte necessariamente da linguagem. “O si não se conhece imediatamente,
mas apenas indiretamente, por um desvio através de diferentes signos culturais.”
(RSCH44). O conhecimento de si é interpretação de si. Ricoeur salienta inclusive que
prefere a expressão ‘reflexão de si’ à palavra ‘auto-reflexão’, pois teme “o curto circuito
de si a si, onde a mediação do outro é tornada inútil pela coincidência absoluta consigo
próprio. Para mim, a reflexão passa sempre pelo desvio da história, da cultura, enfim, dos
outros.” (E308). Já em Temps et Récit III, eram apontadas a não imediaticidade do
conhecimento de si, a necessidade do exame e da interpretação para o autoconhecimento, o
que implica uma passagem necessária pelo desvio do outro que si, do que precede e
ultrapassa o sujeito, desvio pela alteridade:

“O si do conhecimento de si é o fruto de uma vida examinada, segundo a


palavra de Sócrates na Apologia. Ora, uma vida examinada é, em grande parte,
uma vida depurada, clarificada pelos efeitos catárticos das narrativas tanto
históricas quanto fictícias veiculadas por nossa cultura. A ipseidade é assim a de
um si instruído pelas obras da cultura que ele aplicou a si próprio” (TR III
443/444).69

68
“Un non-sujet n´est pas rien, quant à la catégorie du sujet (...) le non-sujet [est] encore une figure du sujet,
même sur le mode négatif. Quelqu´un pose la question: qui suis-je? Rien ou presque rien est la réponse.
Mais c´est encore une réponse à la question qui, simplement ramenée à la nudité de la question elle-même.”
69
“Le soi de la connaissance de soi est le fruit d´une vie examinée, selon le mot de Socrates dans l´Apologie.
Or une vie examinée est, pour une large part, une vie épurée, clarifiée par les effets cathartiques des récits
38

Se a configuração diz respeito às formas do enredo e à construção dos personagens,


a refiguração é “a transformação da experiência viva sob o efeito da narrativa” (CC118).
Ao ler um texto, dou-lhe novo sentido, e a leitura ou releitura que faço do texto me conduz
a uma releitura do si que sou.

“Pois embora o leitor viva no mundo irreal da fábula, é ao mesmo tempo


um ser de carne que é mudado pelo acto de leitura. Como dizia Proust no
fim do Tempo Reencontrado, graças ao livro que lhe serve de aparelho
óptico, o leitor pode ler a sua própria vida.” (CC123)70

Ler em si mesmo a partir da apropriação de um personagem: a identificação


consigo passa pela identificação com o outro. A refiguração portanto implica em alteridade.
“O que a interpretação narrativa traz de próprio, é precisamente o caráter de figura do
personagem que faz com que o si, narrativamente interpretado, se encontre ser ele mesmo
um si figurado (imaginado) (un soi figuré) – que se figura (imagina) tal ou tal” (E304). Este
‘eu’ é refigurado pelo ato de leitura, no qual ele se apropria de uma figura de personagem, e
por meio da identificação “se submete si mesmo ao jogo das variações imaginadas, as quais
se tornam variações imaginadas de si. Verifica-se por este jogo a célebre palavra de
Rimbaud (que tem mais de um sentido): Eu é um outro.” (RSCH45).
A construção da ipseidade - pois se trata propriamente de uma construção - passa
necessariamente pelo outro, ou melhor por outrem. A ipseidade não existe sem alteridade.
Neste contexto, pode-se apreciar este belo comentário Ricoeur: “É preciso que o eu egoísta
se apague afim de que nasça o si, obra da leitura.” (RF76). Ou ainda: “Troco o eu, mestre
de si próprio, pelo si, discípulo do texto.” (RF57). A subjetividade, assim pensada, é
dessubstancializada, e construída a partir da presença do outro. A consciência de si é
correlativa à da alteridade: “É ao mesmo tempo que há ‘eu’ e ‘outrem’” (E308): se há

tant historiques que fictifs véhiculés par notre culture. L´ipséité est ainsi celle d´un soi instruit par les
oeuvres de la culture qu´il s´est appliquées à lui-même.”
70
Transcrevo aqui a passagem à qual se refere Ricoeur, a partir da tradução modificada de Jeanne-Marie
Gagnebin em Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.174: “Mas, para voltar a mim, pensava mais
modestamente em meu livro, e seria mesmo inexato dizer, pensando naqueles que o leriam, em meus
leitores. Pois não seriam, segundo mim, meus leitores, mas os próprios leitores de si mesmos, meu livro não
passando de uma espécie de lentes de aumento como aquelas que oferecia a um freguês o dono da ótica de
Combray; meu livro graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem em si mesmos” Marcel Proust. Em
Busca do Tempo Perdido, v.VII. O Tempo Redescoberto. Rio de Janeiro: Globo, 1983, p.240, tradução
modificada.
39

‘outro’ mesmo na identidade idem, é só na medida em que o indivíduo se torna um ipse,


que este ‘outro’ se transforma em ‘outrem’ (Cf. IIP56) .
É precisamente, entre outras coisas, o que esquece Derek Parfit em sua obra
Reasons and Persons, diz Ricoeur, que toma tal autor como um adversário exemplar de sua
teoria da identidade narrativa. A exemplo de outros autores, Parfit, ao falar de identidade,
confunde mesmidade e ipseidade, como se verá a seguir. Sua tese principal é a de que a
identidade pessoal pode e deve ser reduzida a certos fatos de ordem psicológica ou
corporal, que podem ser descritos de modo impessoal, sem supor uma identidade pessoal:

“sem pressupor a identidade da pessoa ou sem sustentar explicitamente que as


experiências na vida desta pessoa são possuídas por ela ou mesmo sem
pretender explicitamente que esta pessoa exista. Pode-se descrever estes fatos de
modo impessoal (...) Minha tese, diz Parfit, nega que sejamos entidades
existindo separadamente, distintas de nosso cérebro e de nosso corpo e de nossas
experiências. Mas a tese sustenta que, embora não sejamos entidades existindo
separadamente, a identidade pessoal constitui um fato suplementar” (E299)71.

E este fato suplementar não importa: “a identidade pessoal não é o que importa”
(E299). Para ilustrar sua tese, o autor recorre a puzzling cases que são retirados da ficção
científica, tais como “transplante do cérebro, bissecção do cérebro e fabricação de uma
cópia exata do cérebro” (E300). Suponhamos que seja feita uma réplica de meu cérebro e
que esta seja enviada a outro planeta, e que eu mesmo vá a este planeta, mas que no meio
de minha viagem eu tenha um acidente qualquer, de modo a que eu não consiga alcançar
meu próprio cérebro copiado. A questão é: eu sobrevivo em minha réplica? A resposta é
indecidível. E “se a resposta é indecidível, diz Parfit, é que a questão ela própria é vazia;
donde a conclusão: a identidade não é o que importa” (E300).
Ricoeur se opõe ponto por ponto a este modo de ver a identidade pessoal. Em
primeiro lugar, como bem mostrou o conceito de identidade narrativa, dizer que a
identidade pessoal é um fato suplementar não é o único modo possível de se opor a uma
substancialização da identidade. Em segundo lugar, “o si não pertence de modo algum à

71
Derek Parfit. Reasons and Persons. Oxford University Press, 1986, p.210. Citado e traduzido por Ricoeur:
“sans présupposer l´identité de la personne ou sans soutenir explicitement que les expériences dans la vie de
cette personne sont possédées par elle ou même sans prétendre explicitement que cette personne existe. On
peut décrire ces faits d´une manière impersonelle. (…) Ma thèse, dit Parfit, nie que nous soyons des entités
existant séparément, distinctes de notre cerveau et de notre corps et de nos expériences. Mais la thèse
soutient que, bien que nous ne soyons pas des entités existant séparément, l´identité personnelle constitue
un fait supplémentaire.”
40

categoria dos eventos e dos fatos” (E299), como quer Parfit em sua definição da identidade
pessoal enquanto um fato suplementar. Além disso, e isto é essencial, enquanto um trabalha
com relatos de ficção científica, o outro, como vimos, recorre à literatura. As escolhas
feitas por um e outro autor não são de modo nenhum arbitrárias ou inocentes, revelando as
profundas divergências entre eles. “Pode-se dizer que as variações imaginativas da ficção
científica são variações imaginativas da mesmidade, enquanto as da ficção literária são
relativas à ipseidade, ou mais exatamente à ipseidade em sua relação dialética com a
mesmidade” (SA179). Nas experiências imaginadas por Parfit, “o cérebro é considerado
como equivalente substituível da pessoa” (E302; SA178). Assim fazendo, ele esquece
nossa incontornável condição terrestre e existencial, presente nas narrativas de ficção
literárias. Em relação a estas experiências que dizem respeito à tecnologia do cérebro,
Ricoeur se pergunta “se não estaríamos violando o que mais que uma regra, que uma lei, ou
ainda que um estado de coisas, mas a condição existencial sob a qual existem regras, leis,
fatos” (E303 e SA179). Além disso, e isto para Ricoeur também é incontornável, nas
imaginações tecnológicas, o outro está simplesmente ausente: “somente estão presentes
meu (?) cérebro e o cirurgião experimentador” (E303), o outro sendo um manipulador. Se a
mesmidade pode ser pensada sem o outro, a ipseidade não pode de outrem prescindir: nas
narrativas, “a ipseidade e a alteridade são dois existenciais correlativos” (E303). Nunca é
demais repetir esta bela expressão: “é ao mesmo tempo que há ‘eu’ e ‘outrem’” (E308). A
ipseidade não pode ser pensada sem a alteridade, o que nos conduz à dialética essencial
ipseidade-alteridade.

5. A dialética ipseidade - alteridade.

Embora a dialética ipseidade-alteridade apareça de modo mais explícito nos


estudos VII, VIII e IX de Soi-même Comme Un Autre, ou seja, no âmbito da ética e da
moral, ela já presente nos estudos anteriores, uma vez que o si não pode ser separado do
outro. Reservo para mais tarde a discussão acerca da “pequena ética” de Ricoeur,
concentrando-me por ora na questão da alteridade, essencial para a própria compreensão da
noção de ipseidade e portanto de identidade narrativa.
41

Como já se disse e repetiu, a ipseidade e a alteridade implicam-se mutuamente de


tal modo que uma não pode ser pensada sem a outra. Daí o título Soi-même Comme Un
Autre: O si enquanto outro. De modo que a alteridade se faz presente já na dialética
mesmidade-ipseidade, notadamente através do conceito de identificação na refiguração,
como também na categoria da promessa que demanda uma certa sustentação (maintien) de
si. “A sustentação (maintien) de si, é para a pessoa uma maneira de se comportar tal que
outrem pode contar com ela.” (SA195). Trata-se “de uma resposta à questão ‘Onde estás’,
colocada pelo outro que me requer. Esta resposta é ‘Eis-me’72. Resposta que diz a
sustentação (maintien) de si.” (SA195). Eis porque ipseidade e alteridade andam juntas: o
que propriamente define a ipseidade é que o si se mantém enquanto promessa feita ao
outro. A ipseidade remete assim à resposta do sujeito que se torna responsável pela
demanda do outro.
No limite, pode-se dizer que o outro tem precedência sobre o si. E é somente nesse
sentido que se pode concordar com a colocação de Parfit, de que a identidade pessoal não é
o que importa: o que importa é o outro. É em vista do outro que a identidade pessoal perde
sua importância. Se a ipseidade requer “a modéstia da sustentação (maintien) de si”, esta é
totalmente diferente do “orgulho estóico da rígida constância a si.” (SA198). Pela modéstia,
o si se oferece ao outro, o que implica uma ‘despossessão’, um despojamento, ou desapego
de si. A este respeito, Jeanne Marie Gagnebin observou que Ricoeur inaugura o território
do “des”: dépossession, dessaisissement, despojamento, despreocupação, desapego, etc.
Este território aponta para uma dupla experiência de passividade: o si que se oferece, que
se doa ao outro, na promessa, mas também o si que não é “mestre do jogo nem mestre do
sentido” (CC205)73.
Ricoeur, a exemplo de Lévinas74, sublinha o caráter de passividade presente na
noção de sujeito. Ser sujeito não implica apenas em atividade. Quando se diz que se está ou

72
Esta fórmula presente em Lévinas (Cf. AE180/181) é não somente muito cara a Ricoeur, como também
decisiva para pensar a categoria da promessa, que possibilita a sustentação de si na ipseidade. No entanto, o
significado que cada um dos autores lhe empresta assume diferentes conotações, como se verá de modo
detalhado no capítulo 3 deste trabalho.
73
A frase no original é: “ni le maître du jeu, ni le maître du sens”(CC 228). A tradução portuguesa de Antonio
Hall em A Crítica e A Convicção é: “nem dono do jogo nem do sentido” Prefiri traduzir por “nem mestre do
jogo, nem mestre do sentido”. Outra possível tradução, freqüentemente utilizada por Jeanne Marie
Gagnebin é: “senhor”. Cf. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p 174.
74
Cf Edgard Antonio Piva. “A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur”, op.cit., p. 228. Esta questão da
passividade em Lévinas e Ricoeur será retomada adiante, ao confrontarmos as concepções de ambos.
42

se é ‘sujeito’ a algo, não teria esta expressão algo a nos ensinar? O sujeito não é apenas
ativo, não apenas age, mas ‘é agido’, como indica, por exemplo, a expressão ‘estar sujeito
a’; o sujeito é marcado por experiências de passividade. Tal conotação de passividade está
claramente indicada nas origens da palavra sujeito, tanto em sua versão latina: subjectus75,
quanto grega: hypokeimenon.76
A oposição entre ativo e passivo encontra lugar de expressão na própria gramática,
na distinção entre voz ativa (sujeito age) e voz passiva (sujeito sofre uma ação). Entre as
duas porém, encontra-se, por assim dizer, um vácuo deixado pela voz média, existente na
gramática do grego antigo, mas que caiu em desuso... A voz média expressa uma ação na
qual o sujeito, ao mesmo tempo, age e sofre tal ação; ela é usada quando o sujeito faz a
ação para si próprio, em seu interesse, indicando um retorno da ação para o sujeito; em tais
casos, usa-se em português a reflexividade. Mas há verbos que se conjugam apenas na voz
média, e que correspondem aos verbos latinos, chamados depoentes, como nascer, morrer,
sofrer. A este respeito, escreve Jean Lauand em seu artigo: “Voz ativa, passiva ou ...
média?”:

“A voz média é um rico recurso – encontrado por exemplo no grego – que


permite expressar (e perceber e pensar) situações de realidade que não se
enquadram bem como puramente ativas nem como puramente passivas. Isto é,
há ações que são protagonizadas por mim, mas que, na realidade, não o são em
grau predominante: há tal influência do exterior e de outros fatores que não
posso propriamente dizer que são plenamente minhas (...) O latim se vale de
verbos chamados depoentes precisamente para essas ações minhas mas que não
são predominantemente minhas; eu as protagonizo, mas não sou senhor delas,
estou condicionado fortemente por fatores que transcendem o eu e sua vontade
de ação. É o caso, por exemplo do verbo nascor, nascer (nascer-nascido). O

75
Cf. E. Sommer. Lexique Latin-Français. Paris: Hachette, 1960, p. 418: “Subjectus: (…) particípio passado
do verbo subjicio, [pode significar:] posto sob, colocado embaixo, que está num lugar mais baixo,
aproximado, colocado sob ou diante (dos olhos), exposto a, submetido, sujeito, sujeitado, subjugado,
dependente, que está sob a mão, que se tem à disposição, pronto, substituído, suposto, subornado.” Pode-se
notar que a metáfora espacial é aqui privilegiada para indicar uma certa passividade.
76
Cf. Marilena Chauí. Introdução à História da Filosofia. Dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Volume I. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.351: “Hypokeímenon – Sujeito, substrato, suporte, fundamento. Vem de
hypokeímai que significa: estar estendido sob, servir de base ou de fundamento, alicerce e suporte; estar
colocado sob os olhos ou sob a mão, à disposição de; estar proposto ou posto como base ou fundamento; ser
admitido como princípio. Aristóteles afirma que a substância – o que existe em si e por si mesmo – é o
hypokeímenon que é o suporte, a base, o fundamento onde se assentam os atributos ou predicados da ousia,
da essência. É o sujeito que recebe os predicados.” Aqui, tal como na palavra latina subjectus, a metáfora
espacial também é privilegiada. Porém chama atenção um novo significado, que me parece estar ausente da
versão latina: a noção aristotélica de substância. Noção que, para Ricoeur, diferencia a mesmidade
(identidade idem) da ipseidade (identidade ipse). O que garante uma certa constância da ipseidade, não é a
substância, mas a promessa.
43

verbo nascer, a rigor, não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim,
certamente sou eu que nasço, mas estou longe de exercer de modo totalmente
ativo e independente esta ação (‘Com licença, eu vou nascer...’); e por isto o
inglês usa nascer na passiva: I was born in 1952. O mesmo acontece, por
exemplo, com o morrer, a ação é minha, mas não o é... Procuramos suprir a
lacuna da voz média, tornando reflexivos verbos como esquecer. ‘Eu me
esqueci’. E a língua espanhola vale-se desse recurso muito mais freqüentemente,
como por exemplo: yo me muero (...). Com a perda da voz média, o português
perdeu não apenas um recurso de linguagem, mas sobretudo um poderoso
recurso de pensamento, de captação/expressão de imensas regiões da
realidade.”77

Este mergulho na antiguidade greco-latina não é preciosismo fortuito, mas


indicação de uma possibilidade de pensamento e de existência: recuperação de um certo
modo de conceber o sujeito, em consonância com a fórmula ricoeuriana do “homem agindo
e sofrendo”: que o sujeito possa ser ativo, mas também passivo, é o que tal feliz fórmula
nos ensina.
As experiências de passividade são experiências que provêm de fora do si,
experiências portanto de alteridade. Ricoeur refere-se ao “tripé da passividade, e portanto
da alteridade” (SA368). Tripé este constituído pela experiência do próprio corpo, pela
relação com o outro, e pela consciência moral (Gewissen). E aqui intervem a polissemia da
palavra alteridade, polissemia esta que me parece muito interessante pois, ao contrário de
muitos autores, entre eles Lévinas78, o outro de Ricoeur não é apenas o outro homem, “mas
todas as formas múltiplas de alteridade que o si encontra no caminho de sua existência e de
seu questionamento”79. Pode-se assim falar em várias figuras da alteridade, e é disto que
tratam as últimas páginas de Soi-même Comme Un Autre (367 a 410): o próprio corpo, o
outro tanto no face a face da intersubjetividade sob o modo da solicitude, quanto ao nível
político institucional, sob o modo da preocupação com a justiça, e finalmente, a
consciência moral, a voz da consciência ou o “foro interior” (em alemão Gewissen): “voz
do outro homem ou dos antepassados ou de Deus” 80 .
Ricoeur, ao analisar cada um deste diferentes modos – ou figuras – da alteridade,
quer pôr em relevo “o grau de passividade vivida própria a estes diversos níveis de
77
Pesquisa Google: Luiz Jean Lauand. “Voz ativa, passiva ou... média?” in: “FEUSP EDF-119-História da
Educação Medieval.” Disponível em <http://jean_lauand.tripod.com.page00l.html> Acesso em 12/07/2008.
78
Cf Edgard Antonio Piva. “A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur”, op.cit., p.228. Novamente, remeto o
leitor ao capítulo que versa sobre o debate entre Ricoeur e Lévinas.
79
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, op.cit., p. 42.
80
Idem, p. 42.
44

experiência e assim identificar o tipo de alteridade que lhe corresponde no plano


especulativo” (SA369). Uma equivalência portanto se estabelece claramente entre
passividade e alteridade.
No entanto, é necessário aqui um pequeno excurso acerca da noção de passividade,
de modo a superar uma certa oposição tradicional entre atividade e passividade, e assim
romper com o velho esquema de sujeito versus objeto.
Ao definir a matéria, hylé, Aristóteles a caracteriza como essencialmente passiva: a
matéria não é ativa. A hylé é como o útero da mulher, que não é ativo, mas que contém; o
Eidos, espírito é o único lugar da atividade. Esta tripla correspondência entre matéria-
mulher-passividade está hoje sendo posta em questão. O cogito entra em crise, entram
também em crise seus contrários, como a passividade, por exemplo. A passividade também
pode ser ativa.81
A oposição entre passividade e atividade deve levar em conta um terceiro elemento:
a receptividade, de tal modo que a passividade possa ser pensada não como contrário da
atividade, mas como receptividade ativa. Pode-se assim se pensar num tipo de
receptividade que não é só passiva.
Na filosofia de Ricoeur, o sujeito não pode ser pensado sem alteridade: sem a
presença do outro, não se pode falar em sujeito propriamente dito. Isto implica, como o
próprio Ricoeur deixou claro, em passividade do sujeito enquanto ipse. Mas a ipseidade
não pode ser reduzida a uma passividade absoluta, pois o sujeito responde ao apelo do
outro – e é este o sentido da palavra responsabilidade – responder ao outro. A resposta ao
apelo ou à demanda do outro, isto é, a promessa. Nesta, a passividade torna-se ativa: a
categoria da promessa põe em relevo esta passividade ativa, ou receptividade. Por isso,
pode-se pensar a ipseidade, em sua relação com a alteridade, como receptiva.
Alteridade polissêmica, como já se viu, na qual “o outro não se reduza, como
considerado muito facilmente, à alteridade de um outrem” (SA368), e que marca o teor
passivo, ou melhor receptivo, da ipseidade. Nem por isto esta deve ser apagada, como, de

81
Pode-se aqui evocar o conceito de atenção flutuante de Freud, a memória involuntária de Proust, o conatus
de Spinoza, Bartleby - personagem criado por Melville - que com sua passividade produz efeitos, até
mesmo o sofrer que remete ao pathos grego que não é necessariamente passivo, ou a omissão na esfera
jurídica, a greve cuja aparente passividade produz efeitos, e até mesmo a experiência de maternidade. Nota:
estes comentários são fruto de discussões ocorridas nas aulas de Jeanne Marie Gagnebin sobre Ricoeur, na
PUCSP, no primeiro semestre de 2005.
45

acordo com Ricoeur, faz Lévinas82, pois ainda subsiste a figura do homem capaz de falar,
de agir, de se narrar, de ser responsável. Assim como Ricoeur quer escapar de uma
alternativa idem/ipse, também quer evitar esta outra entre posse e despojamento,
costurando os dois pólos extremos numa ‘dialética da justa medida’, dialética esta que me
parece ser uma marca registrada, por assim dizer, de sua obra.

“Em uma filosofia da ipseidade como a nossa, deve-se poder dizer: a posse não
é o que importa. O que sugerem os casos limites engendrados pela imaginação
narrativa, é uma dialética da posse e do despojamento, da preocupação e da
despreocupação, da afirmação de si e do desaparecimento de si.” (SA198)83.

Trata-se propriamente de uma dialética entre posse e despojamento, dialética esta


que evita a substituição de uma estima exacerbada de si por um não menos orgulhoso ódio
de si:

“Que este despojamento ... tenha relação com o primado ético do outro em
relação a si, isto é claro. É necessário ainda que a irrupção do outro, que quebra
o fechamento do mesmo, encontre a cumplicidade desse movimento de
desaparecimento pelo qual o si se torna disponível ao outro. Pois não é
necessário que a crise da ipseidade tenha como efeito substituir a estima de si
pelo ódio de si.”(SA198)84

Esta dialética ipseidade-alteridade pode ser melhor pensada a partir do paradigma


85
da tradução, conforme a sugestão de Ricoeur em sua obra Sur La Traduction , retomada
por Jervolino: a tradução nos põe frente a problemas que dizem respeito à identidade e
alteridade. Traduzir significa passar de uma língua a outra, da língua do outro à sua própria.
Em seu livro Walter Benjamin. Tradução e Melancolia, Susana Kampff Lages aponta que:
“A tradução ocupa um espaço de passagem.”86 Neste espaço, “o texto de uma tradução ao
mesmo tempo destrói aquilo que o define como original – sua língua – e o faz reviver por
intermédio de uma outra língua, estranha, estrangeira. Nesta tensão entre destruição e

82
Embora ambos se refiram ao despojamento de si, as perspectivas diferem: Lévinas subverte tais noções, de
modo radical, falando em: substituição de si por outrem, conceito que será discutido por Ricoeur. Remeto
novamente o leitor à discussão posterior acerca do confronto entre os dois autores.
83
“Dans une philosophie de l´ipséité comme la nôtre, on doit pouvoir dire: la possession n´est pas ce qui
importe. Ce que suggèrent les cas limites engendrés par l´imagination narrative, c´est une dialectique de la
possesion et la dépossession, du souci et de l´insouciance, de l´affirmation de soi et de l´effacement de soi.”
84
Tradução de Edgard Antonio Piva. “A Questão do Sujeito em Paul Ricoeur”, op.cit., p. 224-225.
85
Paul Ricoeur. Sur La Traduction. Paris: Bayard, 2004.
86
Susana Kampff Lages. Walter Benjamin. Tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002, p.215
46

reconstrução opera o tradutor.”87 O tradutor frente ao autor, ao original, a um outro que si,
tem por tarefa transformá-lo, recriá-lo, reconstruí-lo, e, no dizer de Jeanne Marie Gagnebin,
ele “oscila, todo o tempo, entre duas atitudes opostas e complementares: ele é ou um
‘coitado’ ou um ‘herói’ (Paulo Ronái), ele passa da ‘humildade’ à ‘soberba’ (José Paulo
Paes)”.88 Num extremo, o tradutor se anula em beneficio do autor, numa espécie de
transparência e invisibilidade, que tornaria a tradução perfeita. No outro, seu vaidoso
narcisismo apropria-se do discurso do outro, passando por cima da alteridade presente na
escrita do outro, e da diferença implicada nas diversidades das línguas. Para retornar à
terminologia ricoeuriana, perguntaríamos: estima excessiva de si ou ódio de si?
Ambas as atitudes decorrem da impossibilidade de atingir um objeto perdido para
sempre e, nesse sentido, como bem o demonstrou Susana Kampff Lages, tradução e
melancolia se aproximariam. Segundo esta autora, Benjamin supera a tradicional visão
segundo a qual a tarefa da tradução seria a de assemelhar-se o mais possível do original -
tarefa impossível e melancólica. A tradução implica necessariamente em transformação, na
qual, sim, algo se perde mas também algo se cria. Trata-se, como já se apontou, de uma
passagem, na qual há o reconhecimento da perda e como que uma tentativa de criação a
partir da perda. Perda e criação: esta é a tarefa do tradutor. Tarefa que não é somente a do
tradutor, mas também, como lembra Jeanne Marie Gagnebin, do trabalho intelectual e
espiritual que se define “pelo reconhecimento pleno da alteridade (...) e pela liberdade
89
subjetiva” . É nesse sentido que Ricoeur fala em hospitalidade lingüística. Nas palavras
de Jervolino:
“É preciso saber renunciar ao fantasma da tradução perfeita e da apropriação
sem resíduos do que é estranho, para abrir-se ao outro em sua alteridade,
acolhendo-o como hóspede em nossa língua. (...) O conceito de hospitalidade
lingüística – que se torna modelo de todo tipo de hospitalidade – sublinha o
valor ético do paradigma da tradução para fins de um novo universalismo
respeitoso das diferenças.”90

87
Idem, p.125
88
Jeanne Marie Gagnebin. Prefácio ao livro de Susana Kampff Lages. Walter Benjamin.Tradução e
Melancolia, op.cit., p.14/15.
89
Idem, p.14/15.
90
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine,op.cit, p. 42. “Il faut
savoir renoncer au fantasme de la traduction parfaite et de l´appropriation sans résidus de ce qui est
étranger, pour s´ouvrir à l´autre dans son altérité, en l´accueillant en hôte dans notre langue. (...) Le concept
d´hospitalité linguistique – qui devient modèle de toutes sortes d´hospitalité – souligne la valeur éthique du
paradigme de la traduction aux fins d´un nouvel universalisme respectueux des différences.”
47

A tradução, na medida em que explicita de modo mais claro a relação entre o eu e o


outro, ou melhor, entre ipseidade e alteridade, dramatizaria, assim, o próprio ato da fala,
pois no simples ato de falar, o Outro está implicado: falar é levar a sério o Outro. É o que
diz Maurice Blanchot que, em seu artigo “Être Juif”, toma a fala como paradigma da
relação com a alteridade: falar é falar ao outro, isto é, reconhecer a alteridade, e ao acolhê-
la, permitir que a diferença não se anule. Este me parece ser o sentido da hospitalidade
lingüística à qual alude Ricoeur, hospitalidade também ressaltada por Blanchot:

“Falar com alguém é aceitar não introduzi-lo no sistema das coisas a saber ou
dos seres a conhecer, é reconhecê-lo desconhecido e acolhê-lo estrangeiro, sem
obrigá-lo a romper sua diferença. Nesse sentido, a palavra é a terra prometida,
onde o exílio realiza-se enquanto estadia, pois não se trata de estar em sua
própria casa, mas sempre para Fora, num movimento onde o Estrangeiro
entrega-se sem renunciar a si”91.

A mesma preocupação anima Franz Rosenzweig – autor com o qual Ricoeur


também dialoga92 - que, em O Novo Pensamento, opõe o método da filosofia tradicional, o
do pensar, a um novo método: o do falar.

“A diferença entre o pensamento velho e o novo, entre pensamento lógico e


gramatical, não consiste em exprimir-se em voz alta ou em voz baixa, mas na
necessidade do outro ou, o que é o mesmo no levar a sério o tempo; aqui, pensar
significa pensar para ninguém e falar a ninguém (e, se soar melhor para alguém,
em vez de ninguém se pode colocar também todos, a famosa ‘coletividade’),
quando falar significa, pelo contrário, falar a alguém, e esse alguém é sempre
muito preciso e não tem apenas orelhas, como a coletividade, mas também uma
boca.”93

91
Maurice Blanchot: “Être Juif”, in: L´Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969, p.187. “Parler à quelqu´un,
c´est accepter de ne pas l´introduire dans le système des choses à savoir ou des êtres à connaître, c´est le
reconnaître inconnu et l´accueillir étranger, sans l´obliger à rompre sa différence. En ce sens, la parole est la
terre promise où l´exil s´accomplit en séjour, puisqu´il ne s´agit pas d´y être chez soi, mais toujours au
Dehors, en un mouvement où l´Étranger se délivre sans se renoncer.” Noto aqui que esta bela formulação
de Blanchot “entregar-se sem renunciar a si”, parece condensar, de certo modo, a figura da ipseidade tal
como concebida por Ricoeur .
92
Cf. o artigo de Ricoeur acerca de Rosenzweig : “A ‘Figura’ em L´Étoile de la Rédemption, de Franz
Rosenzweig (1988)”. In: Leituras 3. Nas Fronteiras da Filosofia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 63-80.
93
Franz Rosenzweig, Der Mensch und sein Werk, Gesammelte Schriften III, Haia, M. Nijhoff, 1983,
p.151/152, citado por E. Baccarini. “Franz Rosenzweig (1886-1929). O ‘Novo Pensamento’ como narração
da experiência de Deus. In: Giorgio Penzo e Rosino Gibelini (Orgs). Dio nella filosofia Del novecento.
Brescia: Editrice Queriniana, 1993. Tradução brasileira de Roberto Leal Ferreira. Deus na filosofia do
século XX. São Paulo: Loyolla, 1998, p.279-280. “O Novo Pensamento” encontra-se também traduzido
para o português por Jacó Guinsburg em O Judeu e a Modernidade: Súmula do Pensamento Judeu. São
Paulo: Perspectiva, Coleção Judaica, 1970, p.508 a 521.
48

Sem querer anular as diferenças entre estes três autores, penso que não seria um
abuso dizer que uma nova perspectiva delineia-se com eles: uma nova filosofia que leve a
sério o falar, que tenha necessidade do outro, que não se baste a si própria, mas que, sem
renunciar a si, acolha o diferente, o estrangeiro, a alteridade: uma filosofia que inclua a
dialética ipseidade-alteridade, isto é, uma filosofia na qual a ética, se não ocupa o lugar de
filosofia primeira (como para Lévinas), não possa ser pensada sem o outro de si mesmo. Na
hermenêutica do si que Ricoeur constrói, a ética ocupa lugar privilegiado, como o atesta
seu longo estudo que ocupa três capítulos de Soi-même comme un Autre.

6. A ética: desejo de uma vida boa compartilhada 94

Embora as considerações sobre ética e moral em Soi-même comme un Autre


ocupem os estudos VII, VIII e IX, optou-se por fixar a atenção no sétimo estudo, cujo título
é: “O si e a visada ética”, e que oferece elementos essenciais para enriquecer a discussão
aqui proposta, a saber, o sujeito em sua relação com a alteridade. Em primeiro lugar
permite pensar a ética, desligada da moral, do âmbito do nomos, para ressaltar nela a
incontornável presença da alteridade. E em segundo lugar, amplia a noção de outro que si,
incluindo nela, não somente a relação do face a face, mas a presença do terceiro. São
portanto estas duas intenções mestras que conduzem esta reflexão sobre o que Ricoeur
denominou sua “pequena ética”: “a visada da vida boa, com e para outrem, em
instituições justas” (SA 202) 95
Nesta definição, aparecem três componentes ou elementos ligados entre si: o
primeiro, que diz respeito ao desejo ou intenção de uma vida boa, articula-se com a estima
de si ou preocupação com o si; o segundo termo da definição “com e para o outro” remete
à preocupação com o outro ou solicitude; finalmente, o terceiro termo: “em instituições
justas” reenvia ao nível político e institucional (preocupação com as instituições). Assim
embora Ricoeur desmembre os três componentes da definição de ética: vida boa, com e
para o outro, instituições justas, estes só podem ser pensados um em relação ao outro: “A

94
“Vie bonne partagée”, como bem disse Olivier Abel, em sua conferência: “O Paradoxo Ético”, no Simpósio
sobre Teoria Literária e Hermeneûtica Ricoeuriana, realizado na Unicamp, em setembro de 2008.
95
“La visée de la ‘vie bonne’ avec et pour autrui dans des institutions justes.”
49

estima de si só tem sentido pleno ao fim de um percurso de sentido demarcado pelos três
componentes da visada ética” (SA202).
Mas tal definição ficaria incompleta se não viesse acompanhada da diferença
estabelecida por Ricoeur entre ética e moral: enquanto a primeira se refere à vida boa, a
segunda diz respeito ao que é obrigatório, isto é, às “normas caracterizadas ao mesmo
tempo pela pretensão à universalidade (universalisation) e por um efeito de coação
(contrainte)” (SA200). Ética e moral não podem ser ditas uma sem a outra: a vida boa deve
passar pelo obrigatório e o obrigatório se fundamenta na vida boa. Duas tradições se
cruzam aqui: a ética teleológica aristotélica (bom) e o ponto de vista deontológico kantiano
(obrigatório), tradições que estabelecem entre si “uma relação ao mesmo tempo de
subordinação e complementaridade” (SA201), pois, se a ética tem um primado sobre a
moral, ela deve passar pelo crivo da norma, e esta, por sua vez, quando conduz a impasses
práticos, recorre à ética para deliberar acerca das soluções mais justas possíveis. Trata-se da
aplicação da norma, subordinada à ética, em situações práticas, o que é denominado
sabedoria prática, ou “a arte do julgamento moral em situação” (RF 80)96.
Mas a relação de subordinação e complementaridade entre ambas não se esgota
neste primeiro movimento. A ética, por assim dizer, chama a moral, pois “o desejo da vida
boa encontra a violência sob todas suas formas” (RF 80), daí a necessidade de normas para
conter a violência. Como ressalta Jeanne Marie Gagnebin em sua apresentação à tradução
do livro de Giorgio Agamben: “As normas éticas podem fornecer limites constitutivos à
ação humana, no duplo sentido da palavra limites: podem nos obrigar a obedecer, mas
também nos ajudar a dar uma forma construtiva ao turbilhão de nossos desejos” 97
Se ética e moral devem assim ser pensadas conjuntamente, isto não permite que
sejam confundidas: a ética diria respeito a um desejo de vida boa, enquanto a categoria do
nomos estaria reservada para a esfera moral. A ética, tomada em si, se refere a um desejo,
uma intenção, uma visada em direção ao bem. A moral, por outro lado, parte da
necessidade de conter ou limitar a periculosidade humana, portanto a existência do mal.

96
Ricoeur aproxima a noção de sabedoria prática e e de phronesis aristotélica, retomada por São Tomás de
Aquino em sua Suma Teológica, sob o nome de prudência, e definida como “ratio recta agibilium”, ou:
“razão reta aplicada à ação, ao que devemos fazer”. Esta questão não será desenvolvida aqui, mas remeto o
leitor interessado ao estudo IX de SA, p.279 a 344.
97
Jeanne Marie Gagnebin. Apresentação à tradução brasileira do livro de Giorgio Agamben. Quel Che Resta
de Auschwitz, 1998. Tradução brasileira de Selvino J. Assmann O que resta de Auschwitz. O Arquivo e a
Testemunha. Homo Sacer III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 12.
50

Nesse sentido, Olivier Abel nota o paradoxo presente nesta concepção: não se pode ser ao
mesmo tempo ético e moral.98
Encontra-se na ética de Ricoeur, a mesma confiança que perpassa sua concepção de
sujeito: não somente o homem é capaz de agir, mas sua ação orienta-se para o bem, seu
desejo é o de viver bem com os outros. Novamente, aparece a idéia de uma aposta: a de
que “os avanços do bem se acumulam, mas que as interrupções do mal não formam um
sistema” (L2 202).
A ética se dirige ao bem, mas em que sentido? No sentido aristotélico, como diz
claramente Ricoeur: “O primeiro componente da visada ética é o que Aristóteles chama:
‘viver bem’, ‘vida boa’” (SA202). É em Aristóteles que Ricoeur se inspira, o que, de
imediato, significa que o bem visado pelo homem não se confunde com o Bem de Platão:
“Na ética aristotélica, só pode se tratar do bem para nós” (SA203), e não do Bem em si.
Mas, nesta fórmula da “vida boa”, a própria palavra vida deve ser tomada em que
sentido?
“A aparição da palavra ‘vida’ merece reflexão. Ela não é tomada num sentido
puramente biológico, mas num sentido ético-cultural, bem conhecido dos
Gregos quando eles comparavam os méritos respectivos dos bioi oferecidos à
escolha mais radical: vida de prazer, vida ativa no sentido político, vida
contemplativa. A palavra ‘vida’ designa o homem inteiro em oposição a suas
práticas fragmentadas.” (SA208/209)99.

E o que ainda dizer do adjetivo acoplado à palavra vida: boa? Ricoeur aqui
estabelece uma conexão entre o conceito de MacIntyre de “unidade narrativa de uma vida”
e o bem viver de Aristóteles. O médico, o orador, o político, dizia Aristóteles, têm cada
qual uma função, uma tarefa, um ergon. Haveria um ergon para o homem enquanto tal?
Para Ricoeur “Este ergon é para a vida, tomada em seu conjunto, o que o padrão de
excelência é para uma prática específica.” (SA209). A noção de “padrão de excelência”
(“standards of excellence”) de McIntyre100, se refere a preceitos avaliativos “que permitem

98
Reflexão retirada da supracitada conferência de Olivier Abel: “O paradoxo ético”. Poder-se-ia talvez dizer
que a phronesis ou sabedoria prática viria, de certo modo, suavizar tal incompatibilidade entre ética e
moral?
99
“L´apparition du mot ‘vie’ mérite réflexion. Il n´est pas pris en un sens purement biologique, mais au sens
éthico-culturel, bien connu des Grecs, losrqu´ils comparaient les mérites respectifs des bioi offerts au choix
le plus radical: vie de plaisir, vie active au sens politique, vie contemplative. Le mot ‘vie’ désigne l´homme
tout entier par opposition avec les pratiques fragmentées.”
100
A. MacIntyre. After Virtue, a study in moral theory. Notre Dame (ind.): University of Notre Dame Press,
1981. Citado por Ricoeur (AE207)
51

qualificar bons um médico, um arquiteto, um pintor, um jogador de xadrez.”(SA207).


Assim como os padrões de excelência permitem uma avaliação em relação às práticas
específicas, o ergon, ou, para Ricoeur, o plano de vida permite uma avaliação da própria
vida, a partir da unidade narrativa desta vida. Tal plano de vida diz respeito ao projeto
existencial elaborado voluntariamente, mas está também submetido aos acasos e
imprevistos de qualquer vida: o homem aparece como agindo e sofrendo. “Em relação ao
conteúdo, a ‘vida boa’ é, para cada um, a nebulosa de ideais e sonhos de realização em
função da qual uma vida é considerada mais, ou menos realizada ou irrealizada.” (SA210).
No entanto, a vida boa não pode ser pensada sem o segundo componente: “com e
para o outro”, ao qual Ricoeur dá o nome de solicitude. Novamente é a Aristóteles que ele
recorre para pensar a presença incontornável do outro na relação ética, mais
especificamente em seu tratado da amizade (philia), que se encontra nos livros VIII e IX da
Ética a Nicômaco101. Ricoeur salienta nesta passagem três pontos: 1) A amizade situa-se
entre a visada da vida boa e a justiça. 2) A amizade é uma virtude e, como tal, diz respeito à
ética. 3) “O homem feliz necessita de amigos” (livro IX, 9). Pontos que encontram
equivalência na “pequena ética” de Ricoeur: 1) O “com e para o outro” é intermediário em
relação à “vida boa” e as instituições. 2) A presença do outro é propriamente o que define a
relação ética. 3) A estima de si passa necessariamente pela solicitude ao próximo.
A amizade (philia) remete à questão da philautia (estima de si): seria preciso amar a
si para amar outro? Tal questão “conduz diretamente ao coração da problemática do si e do
outro que si” (SA214). Dos três tipos de amizade existentes: segundo o bom, segundo o útil
e segundo o agradável, é o primeiro que faz com que ser o amigo de si mesmo passe pela
presença do outro: o amor a si não se consuma sem o amor ao outro. “A philautia - que faz
de cada um o amigo de si mesmo – não será jamais predileção não mediatizada de si
mesmo, mas desejo orientado pela referência ao bom” (SA214). A amizade é uma relação
mútua: a reciprocidade, inerente à amizade vai até um “viver junto” (suzèn). É
precisamente tal “ética da mutualidade, do compartilhar, do viver junto” (SA219), presente
em Aristóteles, que interessa a Ricoeur, pois lhe permite pensar a noção de reciprocidade
na relação eu-outrem. “A amizade diz efetivamente respeito à ética, sendo o primeiro

101
Cf. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de
W.D. Ross. In: Aristóteles, volume II de Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, Editor Victor Civita,
1984.
52

desdobramento do desejo de viver bem, mas principalmente, ela traz para o primeiro plano
a problemática da reciprocidade” (SA 214/215). Problemática essencial para Ricoeur,
notadamente, como se verá, em sua discussão com Lévinas: à dissimetria proposta por este,
na qual o pólo do outro adquire prioridade ao pólo do si, Ricoeur contrapõe a importância
da estima de si, imprescindível na solicitude pelo próximo. A este ponto da discussão,
Ricoeur abandona Aristóteles, pois nele não haveria um verdadeiro lugar para a alteridade
– “O amigo é o ‘outro si’” (allos autos) (IX,4, 1166 a 32)” (SA 216) - e, não por acaso,
inicia seu confronto com Lévinas, do qual se tratará adiante.
O terceiro componente “em instituições justas” está aqui para marcar que o desejo
de bem viver junto não envolve apenas a situação do face a face, ou das relações
interpessoais (plano da solicitude), mas também a sociedade em seu sentido mais amplo: a
vida das instituições, o sentido de justiça e a exigência de igualdade, de modo a que cada
um possa ter seu direito. Tal vocabulário pareceria remeter à esfera política e jurídica, das
normas e regras coercitivas, dizendo mais respeito portanto à vertente deontológica e moral
do que propriamente à ética teleológica. A argumentação de Ricoeur irá no sentido de
mostrar que, ainda que tal vocabulário pareça relativo à moral, ele pode ser entendido no
plano da ética, do desejo do viver bem em comum.
Por instituição, Ricoeur entende “a estrutura do viver-junto de uma comunidade
histórica (...) É por costumes comuns e não por regras coercitivas (contraignantes) que a
idéia de instituição se caracteriza fundamentalmente. Somos reconduzidos ao ethos, de
onde a ética retira seu nome.” (SA 227). Ricoeur recorre a Hannah Arendt que “separa o
poder-em comum da dominação” (SA 227). As relações políticas e institucionais não
funcionam somente a partir do princípio de dominação que se estabelece entre
governadores e governantes. Outro tipo de poder está em funcionamento nas instituições: o
poder-em-comum. Hannah Arendt retira da palavra poder o significado de violência que
encerra, para emprestar-lhe novo significado: o de capacidade de ação. “O poder
corresponde à capacidade do homem de agir, e a agir de modo concertado (de façon
concertée). O poder nunca é uma propriedade individual: ele pertence a um grupo.”102 Esta
forma de poder é freqüentemente invisível, encoberta pelas relações de dominação. Mas a

102
Hannah Arendt. Du mensonge à la violence. Paris: Calman-Lévy, 1972, p.153. Citado por Ricoeur
(SA228, nota 2). Ricoeur se refere à noção de concertação (concertation) de Hannah Arendt: agir de modo
concertado, isto é, na base do pacto, do acordo.
53

partir da noção de poder-em-comum, pode-se conceber as instituições de modo mais


amplo: como uma espécie de teatro que permite a durabilidade no seio de uma vida
conjunta.103
Quanto à noção de justiça, ela não é tomada em seu sentido jurídico, mas no sentido
de “senso de justiça e de injustiça”, à qual somos mais sensíveis, como quando gritamos:
“Isto é injusto!” O justo olha para dois lados: do lado do bom, e do lado legal. Ricoeur
recorre novamente a Aristóteles: a justiça é uma virtude, cuja justa medida (mésotès) está
ligada à noção de distribuição que é “a repartição de funções, de tarefas, de vantagens, de
desvantagens entre os membros da sociedade.” (SA233). A justiça distributiva garantiria, a
partir da igualdade proporcional, que cada um tenha o direito que lhe cabe.
É assim que Ricoeur pode falar da ética como “visada da vida boa, com e para
outrem em instituições justas”, apoiando-se na tradição teleológica aristotélica,
diferenciando-a da moral deontológica kantiana: em seu verbete “ética”, que consta do
Dicionário de Ética e Filosofia Moral,104 ele se refere a uma ética anterior às normas,
relativa ao desejo grego de uma vida boa, e a uma ética posterior às normas (sabedoria
prática). Ricoeur retira assim da palavra ética a noção de nomos (reservando esta para a
esfera moral) ao mesmo tempo em que a prende à noção de alteridade, presente não
somente no segundo componente “com e para outrem”, mas na própria concepção do que é
uma vida boa, como também em sua noção de instituição, que amplia a relação face a face
com a inclusão do terceiro: trata-se de uma vida boa compartilhada..

7. O fio da meada: costurando a multiplicidade...

Percorreu-se aqui apenas uma pequena, mas nem por isso menos importante, parte
da obra de Ricoeur – evidentemente acerca de sua concepção de sujeito em relação com a
alteridade. Apesar desta limitação, algumas questões mais gerais de sua obra se fizeram
presentes, questões que dizem respeito a um certo modo que tem Ricoeur de trabalhar:
destaco aqui um dos aspectos deste modus operandi particular que me parece ter estreita

103
Nas palavras de Olivier Abel, durante sua conferência, citada acima: “O Paradoxo Ético”.
104
Dictionnaire d´éthique et de philosophie morale, sous la direction de Monique Canto-Sperber. Paris: PUF,
1996. O verbete: “ética” foi redigido por Paul Ricoeur. Tradução brasileira de Ana Maria Ribeiro Althoff,
Magda França Lopes, Maria Vitória Kessler de Sá Brito, Paulo Neves, com revisão de Marcelo Perine.
Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003.
54

conexão com sua filosofia, e que concerne à rica multiplicidade de temas presentes em sua
obra, multiplicidade que freqüentemente confunde seus comentadores, ansiosos por
encontrar um “fio da meada”.
Cada livro de Ricoeur trata de um problema fragmentário, determinado, específico:
“Os meus livros sempre tiveram sempre um carácter limitado; nunca abordo questões
maciças do tipo: O que é a filosofia? Trato de problemas particulares.”(CC115). Se há uma
ligação ou certo tipo de continuidade em seus livros, esta se deve a um modo muito
particular de trabalhar, que, a meu ver, reflete sua própria filosofia.

“Após terminar um trabalho, encontro-me confrontado com qualquer coisa que


lhe escapa, que se exorbita dele, que se torna para mim obsidiante e constitui o
próximo assunto a tratar (...) Creio que quem escreve tem a experiência de um
tema que, em primeiro lugar, gira nas margens da consciência, e, depois, se vem
instalar no centro e, finalmente, se torna obsidiante.”(CC 115/116).

Duas características da própria filosofia de Ricoeur me parecem estar aí em


consonância com esta forma de trabalhar. A primeira diz respeito a uma determinada
concepção de filosofia que, na contramão de Hegel, desconfia da totalidade - que explica e
engloba tudo - e que, no mesmo diapasão, prescinde do absoluto. A este respeito, nota
Jeanne Marie Gagnebin que Ricoeur desconfia “da pretensão à totalização”, e de uma
“tendência a uma hybris totalizante”105, e que sua reflexão “poderia ser chamada (...) uma
‘filosofia sem absoluto’”106.
A segunda articula-se em torno da expressão: “qualquer coisa que lhe escapa, que se
exorbita dele”. Embora Ricoeur use esta expressão em um contexto específico: o da
confecção de sua obra, permito-me aqui uma certa licença ‘exorbitante’, associada à
palavra ‘escapar’: assim como o pensamento não pode abarcar tudo, sempre tendo que se
haver com algo que lhe escapa, assim também o sujeito “não é mestre do jogo nem do
sentido”. A reflexão de Ricoeur parece ter sido freqüentemente animada por aquilo que
escapa ao sujeito, aquilo que põe um certo limite ou impotência à soberania do sujeito ou
do homem; a própria escolha dos diversos temas presentes em sua obra parece apontar
nesta direção: assim, por exemplo, sua reflexão sobre a finitude, sobre o mal, sobre o

105
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p. 167
106
Idem, p.176. Esta questão será abordada de modo mais cuidadoso adiante.
55

involuntário, sobre a psicanálise, sobre o tempo e, finalmente, sobre o cogito ferido e o


sujeito modesto – tema aqui privilegiado.
Tal rica diversidade de temas freqüentemente confunde seus comentadores, como
afirma Jervolino:

“Frente a uma obra filosófica como a de Ricoeur que se apresenta multiforme e


variada, é natural que os interpretes tenham dificuldade em encontrar um fio
condutor, um tema unificador (...) Ricoeur foi, em geral, muito reservado acerca
deste ponto, reconhecendo os direitos do leitor, mas se dizendo mais sensível em
relação às rupturas que à continuidade em sua obra, ao mesmo tempo em que
afirmou que cada um de seus livros nasce de uma espécie de resíduo que restou
não resolvido no precedente.”107

A despeito de tal descontinuidade, a filosofia de Ricoeur me parece ser atravessada


pelo reconhecimento de ‘algo’ maior que o sujeito, ‘algo’ que lhe escapa, sobre o qual o
sujeito não tem poder nem controle. Como se viu no decorrer deste trabalho, o próprio
conceito de identidade narrativa, em suas dialéticas idem-ipse-alter, aponta para um sujeito
não somente ativo, mas também passivo, isto é, para: “o homem agindo e sofrendo”.
É a partir desta dupla condição do homem que se pode encontrar o frágil fio da
meada de sua obra. De acordo com Jervolino, o próprio autor situa “a problemática
dominante” em sua obra na temática do “homem agindo ou do homem capaz” ou ainda, do
“tema do ‘eu posso’”108, em suas quatro modalidades: falar, agir, narrar, se responsabilizar.
Para Jervolino, também se poderia encontrar

“um tema unificante da obra de Ricoeur na questão do sujeito (...) não um


sujeito egotista e auto fundado que faz do mundo seu espetáculo e o terreno de
sua vontade de potência, mas mais um sujeito compreendido como esforço e
desejo de ser, como corporeidade viva e plural, como esforço e desejo de ser que
tenta se apropriar, na reflexão e na práxis, de uma vida inteira (...) Poderia eu

107
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une Herméneutique de la condition humaine, op.cit., p. 43/44: “Face à
une oeuvre philosophique comme celle de Ricoeur qui se présente multiforme et variée, il est naturel que
les interprètes aient peine à trouver un fil conducteur, un thème unifiant (...) Ricoeur a été en général très
réservé sur ce point, reconnaissant les droits du lecteur mais se disant plus sensible aux ruptures qu´à la
continuité dans son oeuvre, tout en affirmant que chacun de ses livres naît d´une sorte de résidu resté
irrésolu dans le précédent.”
108
Paul Ricoeur. Promenade au Fil d´un Chemin. In: Fabrizio Turoldo. Verità del metodo. Indagini su Paul
Ricoeur. Padue: Il Poligrafo, 2000, p.15-16. Citado por Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une
Herméneutique de la condition humaine, op.cit., p. 44
56

formular, neste ponto, a hipótese que a resposta à ‘questão do sujeito’ coincide


com o ‘homem agindo e capaz’?”109

François Dosse relata que tal hipótese recebeu aprovação por parte de Ricoeur,
como ele próprio sublinha no prefácio ao livro de Jervolino: Il Cogito e l´Ermeneutica. La
questione Del Sogeto in Ricoeur.

“Sou grato ao autor por ele ter percebido a continuidade da crítica do cogito.
Estou sobretudo grato a ele por ter percebido que esta crítica não constituía a
liquidação da questão mesma do sujeito, mas da reconquista do eu sou sobre a
função representativa que a recobre.”110

Ricoeur estabelece aqui uma distinção, presente em sua obra, entre a crítica do
cogito e a do sujeito: o eu do cogito cartesiano não é o si da hermenêutica do si. “Dizer si,
não é dizer eu” (SA30). Esta insistência em trocar o pronome ‘eu’ pelo pronome ‘si’ não é
de modo nenhum preciosismo verbal, mas o coração de sua hermenêutica do si: é
precisamente esta troca, aparentemente trivial, que permite ao filósofo articular uma defesa
do sujeito.
Uma defesa, entretanto, que está longe de ser apressada e ingênua, mas que também
passa pela crítica do sujeito, presente na paisagem intelectual francesa dos anos sessenta.
Como lembra o próprio Ricoeur em Réfléxion Faite: “Este período é marcado pela crítica
vinda de varias frentes e dirigida não somente contra o existencialismo e as filosofias da
existência, mas, em geral, contra todas as filosofias do sujeito.” (RF32)
Entre estas frentes, Ricoeur menciona os discípulos franceses de Heidegger que
defendem “um modelo de pensamento poetizante, de onde qualquer resíduo de posição
egocêntrica seria expulso, [modelo] violentamente oposto ao ‘humanismo’ pretendido das

109
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, op.cit., p. 45, nota 1:
“(...) un thème unifiant de l´oeuvre de Ricoeur dans la question du sujet. (...) non pas un sujet égotiste et
autofondé qui fait du monde son spectacle et le terrain de sa volonté de puissance, mais plutôt un sujet
compris comme effort et désir d´être, comme corporéité vivante et plurielle, comme effort et désir d´être
qui essaie de s´approprier dans la réfléxion et dans la praxis d´une vie entière. (...) Puis-je avancer à ce stade
l´hypothèse que la réponse à la ‘question du sujet’ coincide avec ‘l´homme agissant ou l´homme capable’
?”
110
Paul Ricoeur. Prefácio a Domenico Jervolino. Il Cogito e l´Ermeneutica. La questione Del sogetto in
Ricoeur. 1ª edição: Napoli: Procaccini, 1984. 2a edição: Génova: Casa Editrici Marietti, 1993. Citado por
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.636: “Je sais gré à l´auteur d´avoir perçu la
continuité de la crise du cogito. Je lui suis surtout reconnaissant d´avoir aperçu que cette critique ne
constituait pas la liquidation de la question même du sujet, mais la reconquête du je suis, sur la fonction
représentative qui la recouvre.”
57

filosofias reflexivas, fenomenológicas ou hermenêuticas” (RF 32), como também o


estruturalismo antropológico de Levi-Srauss, o lingüístico de Saussure, o marxismo de
Louis Althusser e, finalmente, a psicanálise de Lacan. Ricoeur não foi surdo a estas
correntes do pensamento francês e nem à crítica do sujeito nelas contida:

“Já nos ensaios dedicados a Husserl após a tradução de Ideen I – ensaios


reunidos mais tarde sob o título A l´école de la phénoménologie (1986) - eu
tomava minhas distâncias em relação a uma consciência de si imediata,
transparente a si própria, e defendia a necessidade do desvio pelos signos e pelas
obras desdobradas no mundo da cultura.” (RF34)111.

Ricoeur já então, “colocava em questão uma pressuposição comum a Husserl e a


Descartes, a saber, a imediaticidade, a transparência, a apodicticidade do Cogito” (RF30).
O sujeito não se conhece de modo direto, a consciência de si não é imediata mas passa pelo
desvio da cultura, a reflexão sobre si é uma reflexão indireta; por isso Ricoeur, embora não
compartilhe plenamente destes movimentos, é capaz de compreender a pertinência das
investidas contra o sujeito. Como ressalta Jeanne Marie Gagnebin:

“Os três movimentos [heideggeriano, estruturalista, lacaniano] têm em comum a


convicção de que não há sujeito algum que seja mestre de sua fala, como se
possuísse liberdade e soberania sobre ela, mas que o discurso do sujeito
representa muito mais o veículo através do qual algo, muito maior que ele, se
diz: a dinâmica de encobrimento e descoberta do Ser, o sistema de relações que
estruturam o corpo social, o inconsciente. (...) Este debate (...) encontra um
observador atento, mas distanciado. Como já vimos, Ricoeur andava desde
sempre desconfiado com relação à afirmação idealista clássica da soberania do
sujeito. Não sente, portanto, como alguns de seus colegas, a necessidade de sair
apressadamente em defesa dessa figura contestada. Mas tampouco aceita um
certo entusiasmo desvairado pelos novos modelos teóricos que deviam
engendrar muitos fanáticos.”112

A leitura de François Dosse vai nesta mesma direção: a passagem pelo


estruturalismo permitiu a Ricoeur enriquecer sua problemática do sujeito e, por isso, “ele
acolhe com a maior benevolência o que vai poder colocar em questão, problematizar,

111
“(…) dejà dans les essais que j´ai consacrés à Husserl à la suite de la traduction des Ideen I – essais
rassemblés plus tard sous le titre À l´école de la phénoménologie (1986) - , je prenais mes distances à
l´égard d´une conscience de soi immédiate, transparente à soi, directe et plaidais pour la nécessité du détour
par les signes et les oeuvres déployés dans le monde de la culture.”
112
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.166
58

complexificar o cogito cartesiano”113, organizando inclusive um grupo de estudos com os


filósofos da revista Esprit acerca da obra de Levi-Strauss: O Pensamento Selvagem 114, que
culminou com um debate com o próprio autor, em junho de 1963. 115
E se Ricoeur não rejeita o estruturalismo em bloco – “Fiz sempre uma grande
diferença entre uma filosofia estruturalista e um estudo estrutural de textos determinados.
Aprecio consideravelmente esta última abordagem” (CC110) – ele se coloca finalmente
contra a “filosofia estruturalista que, da sua prática, extrai uma doutrina geral em que o
sujeito é eliminado da sua posição de enunciador do discurso. (...) [Levi-Strauss] foi para
mim um adversário do qual minha própria filosofia do sujeito procurou tornar-se digna”
(CC 110/111).
É em Émile Benveniste116 que Ricoeur colhe seus argumentos para afirmar a
“implicação do sujeito no discurso” (RF 45). Discurso no qual “apenas a primeira e a
segunda pessoa gramaticais merecem este nome, a terceira sendo não-pessoa (...) Bastam o
‘eu’ e o ‘tu’ para determinar uma situação de interlocução” (SA 62). Diz Ricoeur: “o eu
(...) permanece, à diferença dos termos gerais, um termo vazio tal que qualquer um que
dele se apodera, apodera-se da língua inteira para fazê-la sua.” (IIP 62). Daí a importância
da semântica de Benveniste para a hermenêutica do si :

“Contra um estruturalismo estreito que defenderia a extinção da noção de


sujeito, a semântica de Benveniste, em particular sua definição do discurso
como um enunciado estruturado pela relação entre aquele que toma a palavra e
aquele a quem se endereça esta palavra, permite uma reelaboração da noção de
sujeito sem cair nas rédeas do individualismo costumeiro.” 117

A este debate não faltou Foucault: tanto o de As Palavras e As Coisas quanto o do


texto “O que é um autor?” Em relação a As Palavras e As Coisas, diz Ricoeur, ao

113
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 345.
114
Cf. Claude Lévi-Strauss. La Pensée Sauvage. Paris: Plon, 1962. Tradução brasileira de Maria Celeste da
Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editorial
Nacional, 2a edição, 1976.
115
Cf. François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 349.
116
Cf. Emile Benveniste. Problèmes de Linguistique Générale, em dois volumes publicados por Paris:
Gallimard, o primeiro em 1966, o segundo em 1974. Citado por Ricoeur (SA 62)
117
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.168.
59

comentar a famosa frase final da obra – “se pode apostar que o homem desvaneceria, como,
na orla do mar, um rosto na areia” 118

“A idéia de que o homem é uma invenção recente parecia-me muito


simplesmente fabulosa. Penso, por exemplo, na ‘Ode ao homem’ na Antígona de
Sófocles, onde podemos ler: “Existem muitas maravilhas (pollá ta deiná) neste
mundo, mas nada é mais deinón do que o homem”(v.332-337). Mais
maravilhoso? Mais terrível? Mais formidável, no sentido próprio do termo?
Como esquecer também a preocupação estóica, o domínio dos desejos e das
paixões, aos quais precisamente Foucault regressa sob muitos aspectos nos seus
últimos textos, que muito admiro, L´usage des plaisirs e Le souci de soi.”
(CC112/113).

Se Ricoeur se recusa a admitir, com Foucault, que o homem seria uma invenção
recente, também dele discorda em outro aspecto: no que diz respeito à abolição da questão
“quem”. Como se viu ao discutir a identidade narrativa, a distinção entre mesmidade e
ipseidade permite a Ricoeur recuperar a centralidade da questão quem - “A resposta nula,
longe de declarar vazia a questão, remete a ela e a mantém enquanto questão. Somente não
pode ser abolida a questão mesma: quem sou eu?” (E304). Situa-se assim na contracorrente
da abolição do sujeito, presente, por exemplo, na formulação de Beckett, retomada por
Foucault em seu texto de 1969, O que é um autor : “Que importa quem fala; alguém disse:
que importa quem fala”119. Como ressalta Salma T. Muchail em seu artigo: “Michel
Foucault e o dilaceramento do autor”, “este gesto (...) aponta para o desejo pessoal de
impessoalidade”120. É bem verdade que Ricoeur também compartilha da idéia de que “as
obras falam por si próprias, e o que faz a força de uma obra é o fato de que ela sobrevive a
seu autor. E, portanto, de certo modo, o autor foi como que apagado (effacé) por sua
obra”121, mas o que ele não pode aceitar é a impessoalidade defendida por Foucault, isto é a
abolição da questão quem, entendida enquanto ipseidade.
Num certo sentido, Ricoeur acolhe as investidas de Foucault contra o sujeito;
como afirma Jeanne Marie Gagnebin, ele

118
Michel Foucault. Les Mots et Les Choses. Paris: Gallimard, 1966. Tradução de Salma T. Muchail. As
Palavras e As Coisas. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1981, p.536
119
Michel Foucault. “Qu´est-ce qu´un auteur?” In: Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, p.
820. Tradução portuguesa de A.F. Cascais e E. Cordeiro: O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992, p. 34.
120
Salma T. Muchail. Foucault Simplesmente. Textos reunidos. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.124.
121
Paul Ricoeur, em entrevista a Gwendolyne Jarczyk in: Rue Descartes, no 1, Paris: Albin Michel, 1991,
p.229. Citado por Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit., p.20, nota 1.
60

“não teme em lembrar a crítica de Heidegger ao humanismo e o questionamento


das pretensões do sujeito em Foucault, pois iriam, segundo ele, na mesma
direção que ‘minha convicção, a saber que o sujeito não é o centro de tudo, que
ele não é o senhor do sentido’” 122.

Mas ele não o acompanha no seu desejo de impessoalidade: a critica do sujeito


não autoriza o desaparecimento do mesmo, e nem da questão quem, mas desemboca num
sujeito ferido em seu narcisismo, mas ainda assim um sujeito, alguém que diz eu, ou
melhor, si.
A partir destas colocações, arrisco dizer, na esteira do próprio Jervolino, que se
poderia também falar de um certo ‘humanismo’ na obra de Ricoeur: “Como ele próprio o
disse num texto de juventude dirigido a jovens estudantes cristãos: ‘O combate pela
verdade é agora um combate por um novo humanismo’”123. Algumas ressalvas, no entanto,
se impõem: sabe-se que Ricoeur não tem muita simpatia pelos termos que terminam em
“ismo”, pois estes sugerem uma “pretensão à totalização”124. Vimos como ele próprio
criticou o termo personalismo: “(...) deploro a infeliz escolha, pelo fundador do movimento
Esprit, de um termo em -ismo.” (L2 195). Desconfiança dos “ismos”, particularmente do
humanismo, como aponta Mongin, que vê um paradoxo no fato de Ricoeur aparecer hoje
“como um dos principais beneficiários da recrudescência (regain) contemporânea do
humanismo, quando ele nunca outorgou o menor crédito a este termo ambíguo”125. Mongin
também comenta que “Em inúmeras entrevistas, Ricoeur se surpreende por ser acusado de
humanismo, quando ele quase nunca recorreu a este termo no plano especulativo.”126
O termo ‘acusação’ reflete bem em que posição se encontrava então a palavra
‘humanismo’. A despeito desta compreensível desconfiança geral – ela não é privilégio
exclusivo de Ricoeur – e mesmo a antipatia despertada pelo termo humanismo, penso que
se pode depreender da obra de Ricoeur um ‘certo humanismo’, que tenta recuperar a
humanidade do homem, sua qualidade humana:
122
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p. 177. A citação de Ricoeur encontra-se em
Temps et Récit en débat, Cristian Bouchindhomme e Rainer Rochlitz (orgs). Paris: Seuil, 1990, p. 35
123
Domenico Jervolino. Paul Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, op.cit., p.45. Citação de
Ricoeur retirada de Vérité. Jésus et Ponce Pilate, “Le Semeur”, 1946, n.4-5, p.391.
124
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op. cit., p. 166.
125
Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit, p. 18.
126
Idem, p.18, nota 1. Mongin remete ao seguinte texto de Ricoeur “Que signifie ‘humanisme’?”. In:
Comprendre. Revue de la Société Européene de Culture, n.15, 1956. Mas também comenta que tal texto
data de 1956, antes portanto da “moda” do estruturalismo (anos 60 e 70), e do renascimento nietzcheano
(anos 80) na França.
61

“É, em última instância, a humanidade o que chamo o “Si”, a qualidade


humana, o fato de poder se considerar como autor de seus próprios atos, como
sendo capaz de ações intencionais, de iniciativas que mudam realmente o curso
das coisas, como podendo se situar numa narrativa de vida, como sendo ao
mesmo tempo o narrador e o personagem de sua própria história. É isto a
humanidade, não no sentido extensivo do conjunto dos homens, mas intensivo
da qualidade humana: o que faz que um homem é um homem.”127.

Se, como diz Kayombo, “Na fenomenologia hermenêutica do sujeito, em Ricoeur,


os termos ‘si’, ‘humanidade do homem’ e ‘homem capaz’ são praticamente
128
intercambiáveis” , pode-se então dizer que os temas do “si” e do “homem capaz”
constituem uma resposta ao proclamado fim do sujeito ou do homem: no lugar do fim,
Ricoeur coloca um sujeito modesto, um “homem agindo e sofrendo”
Assim fazendo, responde com um novo humanismo, no qual o homem não é mais
centro do mundo, nem senhor de si próprio, admitindo que sempre algo lhe escapa e o
ultrapassa, é sujeito, precisamente “sujeito a”, marcado por experiências de passividade e
de alteridade, mas ainda assim, um sujeito, um “homem capaz”, um homem que diz “eu
posso”, reconhecendo no entanto “uma antecedência, uma exterioridade e uma
superioridade” (CC230), modos pelos quais o sujeito é “precedido no mundo do sentido”
(CC230).129
Poder-se-ia então falar de um novo humanismo130, não mais centrado no poder
ilimitado e triunfante do homem, mas em sua humanidade, em suas possibilidades ou

127
“Un entretien Paul Ricoeur. Soi-même comme un autre” (propos recueillis par G. Jarczyk). Rue Descartes.
Revue du Collège International de Philosophie, 1-2, p. 225-237, citado por B.I. Kayombo. Paul Ricoeur.
De l´attestation du soi, op.cit., p.16: “C´est l´humanité, ce que j´appelle le ‘Soi’ en définitive, la qualité
humaine, le fait de pouvoir se considérer comme l´auteur de ses propres actes, comme étant capable
d´actions intentionelles, d´initiatives qui changent réellement le cours des choses, comme pouvant se situer
dans un récit de vie, comme étant à la fois le narrateur et le personage de sa propre histoire. C´est cela
l´humanité, non pas au sens extensive de l´ensemble des homes, mais intensif de la qualité humanine: ce
qui fait qu´un homme est un homme.”
128
B.I. Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p.16.
129
“une antécédence, une exteriorité et une superiorité – ces trois notions étant constitutives de la façon dont
je suis précédé dans le monde du sens.” (CC 255). A tradução publicada é: “uma antecedência, uma
exterioridade e uma superioridade – três noções constitutivas, da maneira como procedi no mundo do
sentido.” (CC 230). A tradução de “précédé” por “procedi” sendo francamente incorreta, modifiquei-a por
“precedido”
130
Aqui, importa a distinção entre humanismo, inspirado na famosa frase de Protágoras, segundo a qual “O
homem é medida de todas as coisas” e humanidade, que se refere precisamente às características ou
qualidades que fazem com que um homem seja um homem. Cf. André Lalande. Vocabulaire Technique et
Critique de la Philosophie. Paris: Presses Umiversitaires de France, 1926, p. 420 a 425.
62

capacidades, uma espécie de confiança ou aposta de que o homem ainda continua humano,
uma resposta dolorida à questão desesperada de Primo Levi: É isto, um homem?131
Tratar-se-ia de um certo humanismo, por assim dizer, trágico. É sempre bom
lembrar que a fórmula ricoeuriana do “homem agindo e sofrendo” aponta ao mesmo tempo
tanto para a potência e quanto para a impotência do homem. Ao mesmo tempo significa que
não se pode privilegiar nenhum dos termos da relação. “Não é mais possível falar
simplesmente do homem agindo sem designar com o mesmo sopro o homem sofrendo”
(RF106).
Talvez seja este o sentido radical da justa medida ou da “via mediana” (metaxu)
trilhada por Ricoeur: não um compromisso para agradar gregos e troianos – e, nesse
sentido, um conforto - mas muito mais o desafio de pensar conjuntamente as duas faces da
condição humana 132.
Assim, se como diz Jervolino, o frágil fio da meada da obra de Ricoeur encontra-se
nesta dupla condição, a temática do “homem capaz” anda par a par com a do homem que
sofre, sofrimento sendo entendido aqui como aquilo que põe um limite à potência humana.
O “homem agindo e sofrendo” significa que, ao mesmo tempo, ele age em meio ao
sofrimento e que ele sofre em sua ação: a práxis se conjuga com o pathos.
Não se pode perder de vista esta dimensão sofredora ou trágica da obra de Ricoeur,
sob pena de permanecer numa perspectiva um tanto quanto edulcorada de sua filosofia.
Escapando desta armadilha, acompanhemos Olivier Abel:

“Quanto mais se lê Ricoeur (...), mais se sente a condição humana, a condição


histórica, como uma condição trágica. Uma condição que comporta o mal agido
e sofrido, sua amplitude, sua profundidade, sua desproporção: uma condição que
comporta o tempo, a distensão e o afastamento de si a si. O sujeito é dilacerado .
E os dois termos devem ser levados a sério: não há dilaceramento se não há
sujeito; mas só há sujeito dilacerado”133.

131
Primo Levi. Se questo è un uomo. Torino: Giulio Enaudi editore, 1958 e 1976. Tradução brasileira de
Luigi Del Re. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
132
Cf Richard Kearney. “Entre soi-même et un autre: l´herméneutique diacritique de Ricoeur” In: Cahier de
l´Herne. Ricoeur. Paris: Éditions de l´Herne, 2004, p. 212
133
Olivier Abel. “Le discord originaire. Épopée, tragédie et comédie”, op.cit., p.229. “Plus on lit Ricoeur (...)
plus on éprouve la condition humaine, la condition historique comme une condition tragique. Une condition
qui comporte le mal agi et subi, son ampleur, sa profondeur, sa disproportion; une condition qui comporte
le temps, la distension et l´écart de soi a soi. Le sujet est déchiré. Et les deux termes doivent être pris aux
sérieux: il n´y a pas déchirure s´il n´y a pas de sujet; mais il n´y a sujet que déchiré.”
63

Não se trata assim somente de um cogito ferido ou de sujeito modesto mas, mais
radicalmente, de um sujeito dilacerado. Dilacerado não somente porque está marcado por
experiências de passividade, mas também, e principalmente, pelo próprio trágico da ação
humana, que coloca em evidência a fragilidade da responsabilidade. 134

“Pois tal é a situação do sujeito sofrendo e agindo: ele carrega esta dupla face da
capacidade, capaz também de qualquer coisa e do pior, e da vulnerabilidade, da
impotência balbuciante. Ele a carrega até mesmo no nó trágico da culpa
involuntária, do pequeno erro criminal, da liberdade predestinada em que
querendo fazer algo, faz-se o contrário”135.

Os atos e as palavras do sujeito lhe escapam, e acabam por “dizer o que ele não
queria dizer (...) Pois, querendo fazer o bem, eu posso fazer sofrer” 136.
O trágico da ação se agrava pelo fato de que o sujeito é obrigado a tomar decisões
em situações não ideais: “a escolha se faz, mais frequentemente, entre o cinza e o cinza do
que entre o preto e o branco” (RF 81).
Deste dilaceramento, somente a tragédia pode dar conta, como o atesta, não por
acaso, o Interlúdio, no capítulo IX de Soi-même comme un Autre, que abre suas
considerações acerca da sabedoria prática: esta não merece tal nome, a menos que tenha
atravessado o pathos. “É o trágico da ação, para sempre ilustrado por Antígona de
Sófocles” (SA291).

“A fim de restituir ao conflito o lugar que todas as análises conduzidas até aqui
evitaram conceder-lhes, nos pareceu apropriado fazer ouvir outra voz que a da
filosofia – até mesmo da filosofia moral ou prática – uma das vozes da não
filosofia – a da tragédia grega” (SA281)137.

É dizer, de modo um tanto quanto apressado, que Ricoeur só se arrisca a dizer


extremos em uma linguagem não filosófica. É dizer que se sua filosofia se basta a si

134
Como me indicou, muito acuradamente, Hélio Salles Gentil, no decorrer do exame de qualificação.
135
Olivier Abel. “Le discord originaire. Épopée, tragédie et comédie”, op.cit., p.229: “Car telle est la situation
du sujet souffrant et agissant, qu´il porte ce double visage de la capacité, capable aussi de n´importe quoi et
du pire, et de la vulnerabilité, de l´impuissance balbuciante. Il le porte jusque dans le noeud tragique de la
faute involontaire, de la petite erreur criminelle, de la liberté prédestinée où voulant une chose on fait
l´inverse.”
136
Idem, p.230.
137
“Afin de restituer au conflit la place que toutes les analyses conduites jusqu´ici ont evité de lui accorder, il
nous a paru approprié de faire entendre une autre voix que celle de la philosophie – même morale ou
pratique – une des voix de la non-philosophie: celle de la tragédie grecque.”
64

própria, ao mesmo tempo não pode prescindir do não filosófico: os prelúdios, interlúdios, a
tragédia e ... a teologia

8. A transcendência: Nas Fronteiras da Filosofia.

Mencionou-se acima a tripla referência: “antecedência, exterioridade e


superioridade” (CC230) para sublinhar a necessidade de descentramento do sujeito, deve-se
agora confessar que a escolha destes três termos não foi de modo nenhum inocente, pois
remete justamente ao modo como Ricoeur concebe a esfera religiosa138, esfera que, como
se sabe, ele nunca negou, mas que ele, insistente e metodicamente, sempre separou de seus
trabalhos filosóficos: para o filósofo, a crítica, ao religioso, a convicção, embora haja algo
de convicção no filósofo e de crítica na convicção religiosa (Cf.CC191), crítica e convicção
implicando em duas diferentes atitudes de leitura (Cf. CC198).
Chega-se assim ao último ponto que quero destacar: trata-se da insistência de
Ricoeur em manter afastados seus escritos filosóficos de suas reflexões religiosas e
teológicas. Ele próprio admite que tal insistência é responsável pela supressão, em Soi-
même Comme Un Autre, de duas conferências proferidas nas Gifford Lectures – ciclo de
palestras que deu origem ao livro - a saber: “Le soi dans le miroir des écritures” e “Le soi
mandaté”, textos que dizem respeito às figuras religiosas da ipseidade. Embora seu editor
Jean Wahl não tivesse feito nenhuma objeção à inclusão destes dois textos, e o próprio
Ricoeur reconheça a possibilidade desta exclusão ser “discutível e talvez lastimável
(regrettable)” (SA36), ele permaneceu firme na decisão de apresentar, aos seus leitores,
“um discurso filosófico autônomo”, oferecendo-lhes “somente argumentos que não
engajam a posição do leitor, seja ela de rejeição de aceitação ou de suspensão em relação à
fé bíblica.” (SA36). A hermenêutica do si sustenta-se a si própria e a filosofia da alteridade
em Ricoeur não necessita do apelo a transcendência divina.
A decisão de manter afastados os dois registros não é exclusiva de Soi-même
Comme Un Autre, mas remonta a seus tempos de juventude:

138
Não é sem importância assinalar que este belo modo de conceber a religião ultrapassa, e em muito, a
clássica definição do termo, enquanto conjunto de crenças e práticas.
65

“Parece-me que, tanto quanto recuo no passado, sempre andei sobre duas
pernas. Não é só por precaução metodológica que não misturo os gêneros, é
porque gosto de afirmar uma referência dupla, absolutamente primeira para
mim.” (CC191)

Em Réfléxion Faite, Ricoeur afirma desde sempre ter vivido o que ele chama de
“guerra intestina (intestine) entre a fé e a razão” (RF15): seu trabalho de mestrado (1934)
que leva o título de O Problema de Deus em Lachelier e Lagneau, constituiu para ele uma
espécie de armistício.

“Que pensadores tão apaixonados por racionalidade e preocupados com a


autonomia do pensamento filosófico tenham dado à idéia de Deus, a Deus
mesmo, um lugar em sua filosofia, me satisfazia intelectualmente, sem que nem
um nem outro destes mestres me convidasse a cometer um amálgama qualquer
entre a filosofia e a fé bíblica” (RF15)139

Em sua autobiografia intelectual, Ricoeur conta que o projeto inicial de Philosophie


de la Volonté incluía uma terceira parte, na qual a vontade humana seria pensada em
relação com a transcendência, termo usado por Jaspers, “que designava pudicamente o deus
dos filósofos” (RF25). Ricoeur pretendia então desenvolver “uma filosofia da
transcendência que seria ao mesmo tempo uma poética” (RF25). Tal projeto foi, no
entanto, abandonado: Ricoeur optou por evitar a inclusão do nome de Deus em seus
escritos filosóficos:

“Observar-se-á que esse ascetismo do argumento, que marca, creio eu, toda a
minha obra filosófica, conduz a uma filosofia da qual a nominação efetiva de
Deus está ausente e na qual a questão de Deus, enquanto questão filosófica,
permanece em um suspense [melhor:em suspensão] que podemos chamar de
agnóstico” (SA36)140

A este respeito lembra Jeanne Marie Gagnebin que se pode dizer de Ricoeur o que
Benjamin disse de Kafka: “Já se observou que na obra inteira de Kafka o nome de Deus

139
“Que des penseurs aussi épris de rationalité et soucieux de l´autonomie de la pensée philosophique aient
ainsi fait à l´idée de Dieu, à Dieu même, une place dans leur philosophie, me satisfaisait intellectuellement,
sans que l´un ni l´autre de ces maîtres m´invitât à commettre un amalgame quelconque entre la philosophie
et la foi biblique.”
140
Tradução de Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.176.
66

não aparece. (...) Quem não entende o que proíbe a Kafka o uso desse nome não entende
nenhuma linha dele” 141.
A proibição que se impôs Ricoeur é tal que, no momento em que aparece o nome de
Deus em Soi-même Comme Un Autre, “o discurso filosófico pára” e, com este, termina o
próprio livro: as palavras finais de Soi-même comme un Autre marcam claramente o ponto
final a que pode chegar a filosofia, seu limite, notadamente no que diz respeito à questão da
alteridade:

“Talvez o filósofo, enquanto filósofo, deva confessar que ele não sabe e não
pode dizer se este Outro, fonte da injunção, é um outro que eu possa olhar ou
que possa me olhar, ou meus antepassados, dos quais não há representação, a tal
ponto minha dívida em relação a eles é constitutiva de mim mesmo, ou Deus –
Deus vivo, Deus ausente – ou um lugar vazio. Sobre esta aporia do Outro, o
discurso filosófico pára.” (SA409)142

O filósofo não pode saber se este Outro é outro homem, Deus ou os antepassados:
se ele não sabe, não pode dizer: este é o ponto de não ultrapassagem. Se tal interrupção ou
arrêt não deixa de causar certa inquietação ou, até mesmo, certa angústia, é preciso saber
suportá-las; nesse sentido, Ricoeur exige do filósofo que saiba, por assim dizer, agüentar
sua ignorância e exercer sua humildade.
Mas não se trata apenas de um exercício de humildade. Esta recusa em misturar os
gêneros, de acordo com Olivier Mongin, tem sua origem no fato de que ele “se defende
contra uma imagem ‘religiosa’ que pesa sobre a compreensão e a recepção de sua
filosofia”.143 Ricoeur foi freqüentemente estigmatizado como “filósofo cristão”, numa
tentativa “que pode suscitar em espíritos ‘anti-religiosos’ o desejo, confesso ou não, de
bani-lo (mettre au ban) da comunidade filosófica.” 144
Por isso, ele sempre fez questão de construir sua filosofia a partir de um conjunto de
argumentos que não necessita da fé ou da crença para se sustentar. O vice-versa também
vale aqui: sua experiência religiosa não pode ser explicada a partir de suas reflexões

141
Walter Benjamin citado por Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.176/177
142
“Peut-être le philosophe, en tant que philosophe, doit-il avouer qu´il ne sait pas et ne peut pas dire si cet
Autre, source de l´injonction, est un autrui que je puisse envisager ou qui puisse me dévisager, ou mes
ancêtres dont il n´y a point de représentation, tant ma dette à leur égard est constitutive de moi-même, ou
Dieu – Dieu vivant, Dieu absent – ou une place vide. Sur cette aporie de l´Autre, le discours philosophique
s´arrête.”
143
Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit, p. 202.
144
Idem, p. 201.
67

filosóficas, estas não servem para fundamentar sua crença. Nem sua filosofia é cripto-
teológica, nem sua fé tem uma função cripto-filosófica, isto é, a fé não traz “uma solução
definitiva às aporias que a filosofia multiplica.” (SA37). Nas palavras de Jeanne Marie
Gagnebin:

“Rejeitado como criptoteólogo por alguns, reivindicado como pensador cristão


por outros, Ricoeur teve de lutar em ambas as frentes: contra seus críticos,
mostrar que sua filosofia não se reclama, na sua argumentação interna, de sua fé;
contra seus admiradores, que seu pensamento filosófico não oferece
fundamentação racional para crença alguma”145.

François Dosse, ao se perguntar sobre os motivos de tal atitude, menciona em


primeiro lugar a importância que tem para ele a escola pública e a laicidade: Ricoeur
sempre recusou usar de sua autoridade de professor para passar qualquer convicção Dosse
evoca igualmente a radical exigência de laicidade e recusa de qualquer elo com a religião
que marcaram a universidade francesa nos anos sessenta.146
Mas também, paradoxalmente, tal gesto de Ricoeur proviria de sua própria tradição
religiosa protestante, e do ensinamento de Karl Barth acerca da “separação instituída por
Lutero entre os dois reinos” – divino e humano. A mesma separação está em jogo na
filosofia de Pierre Thévenaz, segundo Ricoeur, “uma filosofia sem absoluto.” (L3150)

“A filosofia, segundo ele, não tem a tarefa de falar sobre Deus, ainda menos do
ponto de vista de Deus; ver-se-á mesmo que ela atinge sua autenticidade
quando admite a sua impotência, melhor ainda, a sua renúncia em tornar-se
filosofia do divino, filosofia divina.” (L3 148)147

Paradoxalmente, é a própria pertença a uma tradição religiosa que exclui da


filosofia a possibilidade de falar sobre Deus, de manter portanto a reflexão filosófica no

145
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op. cit. p. 176
146
Tal clima fervorosamente anti-religioso aparece no seguinte relato de Dominique Bourel: um aluno de
Ferdinand Alquié insistia em lhe dizer: “tenho uma intuição ontológica”, ao que respondeu Alquié: “Meu
caro amigo, há monastérios para isso. Estamos aqui na Sorbonne e portanto as intuições são mal acolhidas
(les intuitions ont mauvaise presse).” Cf. Idem, p. 656.
147
Continuação da citação: “A uma filosofia divina ele oporá constantemente uma filosofia responsável
diante de Deus, uma filosofia em que Deus não é mais o objeto supremo da filosofia, mas onde ele está
implicado a título de pólo de chamado e de resposta do próprio ato filosófico.” A despeito de minha
ignorância acerca da filosofia de Pierre Thévenaz, não resisto à tentação – ou mesmo ao convite suscitado
por esta leitura de Ricoeur – de evocar o lugar que Deus ocupa na filosofia de Lévinas. Embora este não
hesite em empregar com freqüência o nome de Deus – e esta diferença é essencial –, ele não o faz a partir
de uma perspectiva onto-teológica, mas éticos, isto é, gravitando em torno de termos tais como: apelo,
resposta, responsabilidade. Cf. o capítulo 3 deste trabalho.
68

âmbito do humano, sem recorrer ao divino, ao absoluto, à transcendência. E é propriamente


o que faz Ricoeur, que, nas palavras de Michel Haar “não misturou suas águas” 148 ; o que
lhe valeu o respeito de Dominique Janicaud, Ricoeur sendo um dos poucos que se recusou
a ultrapassar a barreira entre a fenomenologia e a teologia, na contramão de autores como
Lévinas ou Jean-Luc Marion.149
Se essa barreira é ou não merecedora de elogios, deixo a Janicaud tal avaliação,
limitando-me a observar, com Olivier Mongin, que Ricoeur não defende “um corte entre
filosofia e não-filosofia” 150 , como o atesta seu livro Nas fronteiras da Filosofia. Ao invés
de corte, Ricoeur prefere falar de uma “relação conflitual-consensual entre minha filosofia
sem absoluto e minha fé bíblica nutrida mais de exegese do que de teologia” (RF82), ou de
“intersecção”: “Creio ter avançado suficientemente na vida e na interpretação de cada uma
dessas duas tradições para me arriscar sobre os lugares de intersecção” (CC217).
É justamente nesta zona fronteiriça que eu gostaria de penetrar agora: as
correspondências entre crítica e convicção, em Ricoeur, constituem, a meu ver, uma marca
própria de sua obra. Falo justamente em ‘correspondências’ ou ‘afinidades’ para evitar o
estabelecimento de qualquer antecedência de uma esfera em relação à outra, ou mesmo de
causalidade. Pode-se, sem dúvida dizer que sua concepção do religioso, ou do sagrado, é
decisiva para a hermenêutica do si, notadamente no que se refere à noção de sujeito, à
promessa na ipseidade, à concepção de alteridade e à elaboração de sua “pequena ética”.
Ele próprio o diz: “Não digo que, ao nível profundo das motivações, estas convicções não
tenham tido efeito sobre meu interesse acerca de tal ou tal problema, até mesmo do
conjunto da hermenêutica do si.” (SA36) Mas isto, deve-se insistir, não quer de modo
nenhum dizer que sua hermenêutica possa ser, de modo redutivo, explicada a partir de sua
experiência religiosa, ou, como diz Jeanne Marie Gagnebin, do reconhecimento do
sagrado:

“a definição por Ricoeur do religioso como a ‘referência a uma antecedência, a


uma exterioridade e a uma superioridade’, sendo que estas três noções são

148
Transcrevo aqui, na íntegra, o depoimento de Michel Haar a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une
vie, op.cit, p. 655: “Como diz Nietzsche: ‘Alguns misturam sua água para fazê-la aparecer mais profunda.’
Ora, Ricoeur não misturou sua água de fenomenólogo com relações com a teologia.”
149
Cf. Idem, p. 660/661. E também: Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op. cit., p. 203. Cf. Dominique Janicaud.
Le Tournant théologique de la phénoménologie française. Paris: l´Éclat, 1991, p.13.
150
Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit., p. 204.
69

constitutivas da maneira como sou precedido no mundo do sentido’, aponta não


tanto para uma confissão determinada, mas, muito mais, para o reconhecimento
do sagrado como aquilo que, simultaneamente, nos precede e nos ultrapassa.”151

Para Ricoeur, a atitude religiosa “é um momento de adesão a uma palavra que se


considera vir de mais longe e de mais alto do que eu (...). Encontramos, portanto, a este
nível a idéia de uma dependência ou submissão a uma palavra anterior” (CC198). Chama a
atenção esta aproximação feita entre religião e linguagem, que Ricoeur usa mais de uma
vez, como por exemplo:

“Aceitarei, no limite, dizer que uma religião é como uma língua em que
nascemos ou para a qual fomos transferidos por exílio por ou hospitalidade; em
todo caso estamos nela em casa (chez soi); o que implica também reconhecer
que existem outras línguas faladas por outros homens.” (CC199).

Está sem dúvida presente, nesta analogia entre língua e religião, o reconhecimento
da alteridade, aqui figurado pelos vários credos religiosos, reconhecimento este que
implica na já mencionada hospitalidade lingüística, paradigma de todo tipo de
hospitalidade. Mas esta analogia não é tão simples como parece a primeira vista, e nela
gostaria de me deter um pouco mais. A religião, assim com a linguagem, põe em relevo a
dimensão de passividade presente na noção de sujeito.
Nos perguntávamos, a certo momento deste trabalho, se a expressão ‘estar ou ser
sujeito a algo’ não poderia nos ensinar que o sujeito é ativo, mas também passivo.
Evocamos, na ocasião a palavra latina “subjectus” e a grega “hypokeimenon”: ambas
remetem a algo que está “sob”: esta metáfora espacial implicaria no reconhecimento de que
o sujeito não se basta a si próprio, que há algo que o antecede e o ultrapassa. Algo maior,
no qual ele nasce: pode-se aqui invocar Deus ou qualquer outra transcendência espiritual,
mas seria também suficiente pensar na linguagem.
O sujeito nasce numa linguagem que já vem pronta, da qual ele certamente se
apropria e, ao assim fazer, também cria, mas que ele não escolhe: é, por ela, escolhido. O
mesmo pode ser dito de sua tradição religiosa. Ambas indicam que o sujeito é por elas
precedido, e tal precedência impõe limites a sua ilusória soberania.

151
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p. 177.
70

Como diz o próprio Ricoeur, desde as primeiras páginas de sua autobiografia


intelectual Réflexion Faite: ele sempre teve a profunda “convicção de que a palavra do
homem era precedida da ‘Palavra de Deus’” (RF14). A precedência do sujeito, no registro
filosófico, é pensada a partir da linguagem.

“(...) há algo que nos ultrapassa e é a linguagem que nos precedeu e que nos
sucederá (...) Entrei numa conversação que me precedeu, tentei, o melhor que
pude, fazer dela parte e ela continuará depois de mim.(...) Dou ao mesmo tempo
um sentido sociológico a esta continuação, a linguagem sendo a instituição das
instituições, e um sentido religioso, a linguagem como logos que me
precedeu...”152

Tal interessante aproximação entre linguagem e religião não deixa no entanto de


causar surpresa. Ao confrontar a definição de religião em sua tripla referência à
“antecedência, exterioridade e superioridade”, vê-se mal como atribuir à linguagem uma
dimensão de superioridade. Pode-se, sim, considerar que o sujeito é precedido pela
linguagem e pela religião – nesse sentido seria legítimo estabelecer uma proximidade entre
linguagem e religião. Entretanto, tal proximidade passa ao largo de uma fundamental
diferença, pois se a linguagem vem certamente de mais longe (antecedência e precedência),
e irá mais longe (continuação), não vem necessariamente de mais alto. A metáfora da altura
talvez marque a necessária distância entre linguagem e religião: Ricoeur não se demora
nesta diferença que pareceria no entanto decisiva. Aqui, talvez se possa atribuir esta, por
assim dizer, ‘omissão’ de Ricoeur, à sua insistência rigorosa em manter separadas as
dimensões filosóficas das religiosas: a reflexão filosófica sobre a linguagem permite por si
só pensar em um sujeito precedido, sem a necessidade de recorrer a assuntos religiosos.
É com o conceito de Gewissen que aparece a metáfora da altura. Se, como afirma
Ricoeur, o momento religioso diz respeito “a uma palavra que se considera vir de mais
longe e de mais alto do que eu” (CC198), esta palavra, inscrita no registro religioso, é
retomada por Ricoeur no registro filosófico, com seu conceito de Gewissen ou voz da
consciência:

152
Cf. o debate na Radio France Culture publicado em Emmanuel Lévinas. Philosophe et Pédagogue, op.cit.,
p.24: “il y a quelque chose qui nous dépasse et c´est le langage qui nous a précédés et qui nous succédera
(…) Je suis entré dans une conversation qui m´a précédé, j´ai essayé d´y prendre part de mon mieux et elle
continuera après moi (...) Je donne à la fois un sens sociologique à cette continuation, le langage étant
l´institution des institutions, et un sens religieux, le langage comme logos qui m´a précédé...”
71

“Em Si-mesmo como um Outro (...) só abordo o religioso nas últimas páginas do
capítulo sobre a voz da consciência, ao dizer que a consciência moral me fala de
mais longe do que eu; não posso dizer então se é a voz dos meus antepassados, o
testamento de um Deus morto ou o de um Deus vivo. Nesse caso, sou agnóstico
no plano filosófico.” (CC204).

Uma questão cabe aqui: porque justamente é em relação a este conceito de


Gewissen que Ricoeur admite a dimensão religiosa? Efetivamente, bastaria, neste
momento, evocar Freud e seu conceito de Superego. Porque Ricoeur resolve ir mais longe?
Precisamente porque a definição freudiana de Superego é insuficiente aqui. E, se Ricoeur
não deixa de mencioná-la, ele a amplia: não se trata apenas da “interiorização das
exigências e das interdições parentais”, como o definem Laplanche e Pontalis em
Vocabulário de Psicanálise153, mas, para além da interiorização, da “palavra dos
antepassados ressoando em minha cabeça” (SA408).
O conceito de Gewissen poderia ser traduzido por: ‘consciência moral’, mas
Ricoeur prefere dizer: foro interior, isto é o “fórum do colóquio de si consigo” (RF107),
formulação que põe em relevo a metáfora da voz: a consciência como voz interior e, ao
mesmo tempo, exterior:

“Neste colóquio íntimo, o si aparece interpelado e, nesse sentido, afetado de


modo singular. À diferença do diálogo da alma consigo própria, da qual fala
Platão, esta afecção por uma voz outra apresenta uma dissimetria notável, que se
pode dizer vertical, entre a instância que chama e o si chamado. É a
verticalidade do apelo, igual a sua interioridade, que faz o enigma do fenômeno
da consciência.” (SA394 - sublinho).154

Enigma, diz Ricoeur... Pois, no fórum interior, conjugam-se interioridade e


exterioridade: o enigma de uma voz que provém de fora de mim, mas que é “a mim
dirigida do fundo de mim mesmo.” (RF105). Desta metáfora da voz, Ricoeur quer guardar
“a idéia de uma passividade sem par, ao mesmo tempo interior e superior a mim.” (RF107).
A voz provém não somente de fora, mas também de mais alto: o que constitui uma

153
J. Laplanche e J.B. Pontalis. Vocabulaire de la Psychanalyse. Paris: PUF, 1967. Tradução brasileira de
Pedro Tamen. Vocabulário da Psicánalise. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1970, p. 643.
154
“Dans cet intime colloque, le soi apparaît interpellé et, en ce sens, affecté de façon singulière. À la
différence du dialogue de l´âme avec elle-même, dont parle Platon, cette affection par une voix autre
présente une dissymétrie remarquable, qu´on peut dire verticale, entre l´instance qui appelle et le soi appelé.
C´est la verticalité de l´appel, égale à son intériorité, qui fait l´énigme du phénomène de la conscience.”
Verticalidade e dissimetria que, como se verá, Lévinas leva às últimas conseqüências.
72

“dissimetria (...) vertical, entre a instância que chama e o si que é chamado”. Voz e altura:
duas metáforas privilegiadas que se aliam para dar conta do significado que empresta
Ricoeur ao conceito de Gewissen. Mas ainda permanece uma questão, igualmente
enigmática: que instância é esta que chama, de que voz se trata? Há uma voz, mas há
155
também uma “indeterminação desta voz” : “não posso dizer então se é a voz dos meus
antepassados, o testamento de um Deus morto ou o de um Deus vivo” (CC204). A este
respeito, Olivier Abel e Jerôme Porée comentam: “É notável que Ricoeur conclua aqui da
‘equivocidade’ à ‘aporia’ do outro. A filosofia da alteridade encontra neste momento o
outro da filosofia ela própria”.156
Se a filosofia encontra, neste momento, seu outro, não é somente por causa da
presença da altura, mas também porque o conceito de Gewissen implica em um chamado
(appel) que distinguiria a fé bíblica da filosofia. Em sua conferência “Le soi mandaté”157,
Ricoeur diferencia duas possíveis formas de resposta: uma coisa é responder a uma
questão, outra é responder a um chamado (appel).

“[Há uma] diferença de princípio que distingue a relação epistemológica entre


pergunta e resposta da relação especificamente religiosa entre chamado e
resposta. A resposta religiosa é obediente, no sentido forte de uma escuta na
qual é reconhecida, admitida, confessada a superioridade, entendamos, a posição
de Altura do chamado” (L3 167)158

Certamente seria excessivo considerar que o conceito de Gewissen implica


necessariamente em obediência, no sentido forte da palavra, mas se obediência, neste caso,
significa reconhecer a “Altura do chamado”, pode-se então compreender os motivos pelos
quais Ricoeur considera que com a voz da consciência, toca-se, de algum modo, no
religioso.

155
Segundo a feliz formulação de Hélio Salles Gentil, no decorrer do exame de qualificação.
156
Olivier Abel e Jerôme Porée. Le Vocabulaire de Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007, p. 10.
157
Trata-se justamente da conferência que, juntamente com “Le soi dans le miroir des écritures”, foi excluída
de Soi-Même comme un Autre, em virtude de sua conotação mais religiosa, como explica Ricoeur no
Prefácio. No entanto ela foi publicada, sob o título de “Le sujet convoqué. À l´école des récits de vocation
prophétique” In: Revue de l´Institut Catholique de Paris, octobre-novembre 1988.
158
Esta citação foi retirada do artigo: “Phenoménologie de la religion” (1993), publicado em Lectures 3 (e
traduzido em Leituras 3). Junto com outro artigo: “L´enchevêtrement de la voix et de l´écrit dans le
discours bibliques” (1992) também publicado em Lectures 3 (porém não traduzido em Leituras 3), forma o
texto completo da conferência das Gifford Lectures: “Le soi dans le miroir des écritures”, que pode ser lido
em Revue de L´Institut Catholique de Paris, no 45, janvier-mars 1993.
73

Eis porque, dentre as figuras da alteridade, a voz da consciência - ao lado do próprio


corpo e do outro - constitui uma das figuras mais complexas da passividade-alteridade;
todas elas entretanto fraturam a soberania de um ‘eu’ fechado em si mesmo. Quando
Ricoeur diz que “eu não creio ser o mestre do jogo nem do sentido” (CC205), não se pode
esquecer seu diálogo com Freud e sua noção de inconsciente, e com Proust, notadamente
no que tange à memória involuntária: ambos ‘destronam’ o sujeito, retirando-o de sua
ilusória posição soberana e colocando-o face a face com aspectos de si próprio que ele não
controla nem domina. Mas é sempre bom lembrar que o conceito de détachement
(desapego ou desprendimento) de mestre Eckhart é essencial para a noção de despojamento
de si, central na filosofia da ipseidade.
É bem verdade que Ricoeur cita mestre Eckhart ao ser perguntado acerca do
problema da ressureição pessoal, isto é, no âmbito de uma questão religiosa ou teológica –
no âmbito, em todo caso, da crença: “Que esta cultura do ‘desapego’ – para retomar o título
magnífico de um escrito de mestre Eckhart e para se inscrever com ele na tradição da
mística flamenga – implica pôr entre parênteses a preocupação da ressureição pessoal
parece-me cada vez mais evidente.” (CC212).
No entanto, logo a seguir, a questão da ressureição transforma-se em preocupação
pela sobrevivência pessoal, perdendo assim sua conotação teológica. E aqui, Ricoeur
promove um surpreendente encontro entre mística e psicanálise: “Vejo aqui fundir-se o
vocabulário de mestre Eckhart e o de Freud: ‘desprendimento’ e ‘trabalho de luto’. No fim
das contas, a vida só avança à custa de abandonos e renúncias.” (CC213)
Seria demais ver na própria noção de promessa uma espécie de renúncia a si, de
desprendimento? O despojamento de si não se faria ver nesta sustentação de si (maintien
de soi), presente na promessa? Aparente paradoxo, já comentado, entre o esforço do sujeito
para se manter e a doação de si; mas é precisamente porque mantenho minha palavra dada
e empenhada, a despeito do que sou, precisamente porque, a despeito de onde eu esteja,
respondo “Eis-me” ao chamado do Outro, que me despojo de mim, me dou ou doou ao
outro: nesse sentido a categoria da promessa poderia ser lida no registro da “economia do
dom” (“économie du don”) 159.

159
As palavras ‘dom’ (don) e ‘doação’ (donation) são aqui consideradas equivalentes. Este esclarecimento se
faz necessário, em virtude da objeção apresentada, no decorrer do exame de qualificação, por Hélio Salles
Gentil, para quem a tradução exata de don neste contexto seria ‘doação’. Embora Ricoeur diga
74

E se Ricoeur reserva este vocabulário para seu discurso religioso, mais


precisamente para sua concepção de cristianismo, aproximações entre a hermeneutica do si
e o cristianismo não estão excluídas, como bem aponta Jeanne Marie Gagnebin:

“(...) quando se lhe perguntou sobre o papel do cristianismo para seu


pensamento. [Ricoeur] responde pela presença de uma economia do dom, mais
fundante que uma economia estritamente racional da troca ou do lucro, e por
uma relação com o sagrado, intimamente ligada a essa economia da dádiva e da
graça, e cuja conseqüência essencial é destronar o sujeito desse lugar central
outorgado pela tradição filosófica moderna desde Descartes.”160

O próprio Ricoeur não se furta a estabelecer conexões entre seu cristianismo e sua
filosofia, entre o regime da “economia do dom” e a primazia conferida à alteridade,
presente tanto em sua concepção de ipseidade quanto em sua “pequena ética”:

“Um deles [lugares de intersecção] é provavelmente o facto da compaixão.


Posso ir muito longe, de um ponto de vista filosófico, na idéia da prioridade do
outro, e disse muitas vezes que a ética se define para mim pelo desejo da vida
boa, com e para o outro, e no desejo de instituições justas.” (CC217).

É interessante notar que o termo escolhido por Ricoeur, “compaixão”, poderia ser
161
situado na intersecção entre filosofia e religião . Mas a questão agora é: o quão longe

efetivamente, em A Crítica e a Convicção, don (dom) e não donation (doação), a objeção procede, uma vez
que, em sua obra posterior Percurso do Reconhecimento, ele discute a questão do dom cerimonial, a partir
das colocações de Marcel Mauss em sua obra Essai sur le Don; neste contexto o dom se refere a um sistema
de trocas simbólicas. Apesar da pertinência do tema e das belas páginas que Ricoeur consagra à questão,
não se entrará aqui nos detalhes da discussão, sob pena deste trabalho se tornar interminável. Só me resta
recomendar a leitura de: “A luta pelo reconhecimento e os estados de paz”, último capítulo de Percurso do
Reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 233 a 258. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário
de: Parcours de la Reconnaissance. Trois études. Paris: Stock, 2004.
160
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.177.
161
Vale a pena que nos detenhamos um pouco no significado da palavra ‘compaixão’. O Dicionário Aurélio a
define como: “pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o mal de outrem; piedade, pena, dó,
condolência.” Não se encontra portanto aí nenhuma referência à dimensão religiosa ou teológica, o que
parece ser confirmado pelo fato de que tal verbete não consta do Dicionário Crtico de Teologia. No
entanto, o Dicionário Aurélio utiliza a palavra “compaixão” para definir a misericórdia, cujo significado,
entre outros, é: “compaixão suscitada pela miséria alheia” ou: “indulgência, graça, perdão”. O Dicionário
Crítico de Teologia destaca a etimologia da palavra: esta “emana do homem misericors, aquele cujo
coração reage diante da miséria de outrem”; o mesmo dicionário reenvia o termo a Deus: “é como um
atributo divino que a bíblia latina apresenta a misericordia.” Não pretendo aqui entendiar o leitor, nem
sobrecarregá-lo com o peso dos dicionários: se a eles me refiro, é apenas para salientar a arguta escolha de
Ricoeur do termo compaixão que, ele próprio, se situa na fronteira entre o laico e o religioso. Cf. Jean Yves
Lacoste. Dictionnaire Critique de Théologie. Paris: Puf/Quadridge, 1998. Tradução brasileira de Paulo
Meneses, Maria Estela Gonçalves, Nicolas Nyimi Campanário, Marcos Bagno. Revisão de Marcelo Perine.
Dicionário Crítico de Teologia.. São Paulo: Loyola-Paulinas, 2004
75

pode ir Ricoeur, na compaixão? Dito de outro modo, até que ponto o dom (doação) de si
absoluto é possível no plano religioso e no plano filosófico?
Em relação à dimensão religiosa, mais propriamente, no plano moral religioso, a
vida de Jesus seria, no sentido de uma economia do dom (doação) exemplar, se
retirássemos dela o colorido sacrificial, substituindo a noção de sacrifício pela de doação
(Cf. CC217). Ao nível portanto da santidade, encontra-se, na pura acepção da palavra, o
vocabulário da gratuidade, da graça e da agapè, termo bíblico, mais especificamente
cristão, que designa o amor ao próximo, amor incondicional que dá sem esperar nada em
troca, amor no qual não se espera nenhuma retribuição. Distinta da philia (amizade), que
diz respeito à reciprocidade ou mutualidade, e também do eros platônico, do qual se
diferencia por desconhecer a privação ou falta, a agapè se caracteriza pela “abundância do
162
coração”, pela “ignorância do contradom na efusão do dom ” e pela “ausência de
referência (...) a toda idéia de equivalência” (PR235).
“A agapè bíblica diz respeito a uma economia do dom (doação) de caráter meta-
ético” (SA37): com ela se conjuga todo um vocabulário da gratuidade, da graça ou da
compaixão absoluta. Estas não dizem respeito apenas a santas figuras, da qual a expressão
máxima seria Jesus Cristo, mas também podem se encontrar em “pessoas simples que não
são de modo algum filósofos [ou santos], mas [que] escolheram tranquilamente a
humildade, decidiram imitar o caminho de generosidade, de compaixão” (CC218).
163
Apesar do testemunho dessas “pessoas simples” , a questão ainda permanece: ao
nível humano, seria pensável o dom (doação) absoluto? O filósofo Ricoeur resiste a esta
idéia: se um certo esquecimento de si é essencial na relação com a alteridade, este
esquecimento não pode se transformar em apagamento ou abolição de si. E, se, como

162
Neste caso, os termos dom e contradom se referem a um sistema de trocas simbólicas.
163
Dentre estas, vale a pena mencionar dois personagens do romance de Georges Bernanos em Journal d´un
curé de campagne, personagens cujos nomes – até onde posso me lembrar! –, significativamente, não são
revelados: o jovem padre, senão herói, ao menos personagem principal e narrador da história, autor da frase
que Ricoeur tanto apreciava e que consta da epígrafe deste capítulo; e uma mulher simples (companheira do
amigo do curé, Louis), mulher do povo, que aparece nas últimas páginas do romance: de uma simplicidade
e bondades ímpares, esta moça parece vir para mostrar que a verdadeira salvação se encontra entre as
pessoas do povo. Idéia cara ao cristianismo: “Vinde a mim, os pobres de espírito” (Mateus 5, 1). Mas
também ao judaísmo, sob outra forma, presente na lenda ou tradição dos 36 justos escondidos, dentre os
quais um seria o Messias. Ver, a esse respeito: “La tradition des trente-six juifs cachés”. In: Le Messianisme
Juif. Essais sur la spiritualité du judaísme. Paris: Calmann-Lévy, 1974, p. 359 a 365.
76

afirma Gaëlle Fiasse, a ética de Ricoeur enfatiza a doação ou a gratuidade, nelas também
estão presentes a reciprocidade ou mutualidade:

“Um dos traços maiores da obra ética de Ricoeur é a insistência na gratuidade,


mas uma gratuidade que não despreza, de nenhum modo, a consideração de
outrem nem a do si. Uma generosidade muito grande se arriscaria efetivamente a
tornar outrem devedor. Se é grande dar sem esperar retorno, a pessoa que recebe
pode se encontrar em uma situação de inferioridade (...) A gratuidade não
corresponde à generosidade de um indivíduo majestuoso, magnificamente
condescente (...). Além disso, trata-se de um si que se dirige ao outro e este si
não tem que se anular em proveito de outrem.”164

Frente às pretensões redutoras e mesmo negadoras do si, Ricoeur parte em defesa


do sujeito e do homem capaz. “Permaneço filósofo reflexivo, portanto filósofo do si, do
ipse.” (CC212). Vale aqui novamente evocar a expressão de Blanchot: “entregar-se sem
renunciar a si”. No entanto, a absoluta renúncia a si também deveria ser pensada: é o que
Ricoeur faz no que chama modestamente de “exercícios de exegese bíblica” (RF26), em
que é desenvolvida “uma reflexão sobre o estatuto de um sujeito convocado e chamado ao
despojamento de si” (RF26). No plano religioso, este ‘si’ talvez devesse ser abandonado.
(Cf. CC212). E é nesse sentido, e apenas neste, que Ricoeur concorda com seu adversário
Parfit, quando este afirma que “a identidade pessoal não é o que importa”: a idéia de
détachement que Ricoeur encontra em Mestre Eckhart, leva-o a dizer que: a “passagem do
moral ao religioso supõe uma renúncia (dessaisissement) de todas as respostas à questão
‘Quem sou eu?’ e implica, talvez, renunciar à urgência da própria questão, em todo caso a
renunciar à sua insistência assim e à sua obsessão.” (CC212).
Com esta observação, Ricoeur parece colocar sua reflexão, por assim dizer, em seu
“devido lugar”, devolvendo-lhe as necessárias modéstia e humildade, tal como faz com o
sujeito. É assim também que Ricoeur duvida de seu próprio trabalho, ao menos de sua
urgência. Duvidaria ele melhor do que Descartes e Nietzsche?

164
Gaëlle Fiasse: “Asymétrie, gratuité et réciprocité”. In: Paul Ricoeur. De l´homme faillible à l´homme
capable. Coordonné par Gaëlle Fiasse. Paris: Puf, 2008, p.119/120: “Un des traits majeurs de l´oeuvre
philosophique de Ricoeur est l´insistance sur la gratuité, mais une gratuité qui ne fait aucunement fi de la
considération d´autrui ni celle du soi. Une trop grande générosité risquerait en effet de rendre autrui
débiteur. S´il est grand de donner sans rien attendre en retour, la personne qui reçoit peut se trouver dans
une situation d´infériorité. (…) La gratuité ne correspond pas à la générosité d´un individu majestueux,
magnifiquement condescendant (…) Par ailleurs, c´est un soi qui s´adresse à l´autre et ce soi n´a pas à
s´annihiler au profit d´autrui.”
77

CAPÍTULO II

Emmanuel Lévinas:

O sujeito como refém e a subjetividade como substituição

“Levinas fala da subjetividade do sujeito; se se


quiser manter esta palavra - porque? mas porque
não? – talvez se devesse falar de uma
subjetividade sem sujeito ...” (Maurice Blanchot)

Gostaria de iniciar com uma frase de Lévinas - por me parecer emblemática de sua
própria obra - dirigida a Steinsaltz, estudioso e tradutor do Talmud 1: “A dificuldade com a
tradução do Talmud é a de conservar a opacidade na abertura, de saber que a clareza nunca
dissipa completamente a névoa.”2 Assim acontece com os escritos de Lévinas: se há
clareza, a névoa a acompanha.
Logo de início, portanto, uma advertência ao leitor: não parece ser possível ler
Lévinas como se lê Descartes, na busca lógica de uma apreensão de conceitos (já aqui se
insinua uma das idéias fundamentais de Lévinas: compreender é também prender). A
própria confecção dos textos de Lévinas, segundo testemunho de seu filho Michael,
constituía-se de idéias esparsas que ele ia anotando aqui e ali, utilizando qualquer pedaço
de papel que estivesse à sua disposição, convites de casamento, de Barmitzva, etc...,
fragmentos que iam se juntando e formavam então um livro.

“Não havia a idéia de um projeto filosófico que deveria dar nascimento a um


texto. Havia uma espécie de vazio, de vertigem, e depois elementos esparsos,
rascunhos e conceitos que se definiam nas costas de um convite de casamento. É

1
Os dois livros básicos do judaísmo são a Torá, ou Antigo Testamento, e o Talmud. O Talmud é um tratado
que contém todas as leis e regulamentos rabínicos, leis que se referem aos ritos, às cerimonias, aos
costumes, e também às leis civis e criminais que regulamentam a vida do homem judeu. Inicialmente essas
leis foram transmitidas oralmente, mas foram posteriormente compiladas por Judá Há-Nassi, por volta de
220 da Era Cristã. Ele é composto da Mishná, corpo central, código das Leis Orais, e da Guemará, corpo
periférico, discussão e comentário destas Leis. Ver a esse respeito, Adin Steinsaltz, The Essential Talmud,
London, Weindenfeld and Nicholson. Tradução: O Talmud Essencial, Volume 7 da Enciclopédia Judaica,
Rio de Janeiro, Koogan, 1989. Ainda acerca do Talmud, um interessante estudo brasileiro pode ser
encontrado em O Talmud (Excertos), Tradução, Introdução e Posfácio de Moacir Amâncio, São Paulo, Ed.
Iluminuras, 1992.
2
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 154
78

uma relação muito particular com o papel. A vertigem da página branca não
existia, não havia páginas brancas, mas um reviramento de folhas de papel.” 3

Não somente a escrita de Lévinas, mas o próprio desenvolvimento dos temas não
parece obedecer a uma lógica cartesiana – pelo menos, é o que sugere a tentativa de
acompanhar a gênese da obra de Lévinas.
Em entrevista a Lévinas, publicada sob o nome de Ética e Infinito, Philippe Nemo,
retomando o percurso do filósofo, afirma que este, inicialmente, foi apenas estudioso de
Husserl e Heidegger, portanto, historiador de filosofia, e que “o primeiro livro em que
exprime seu pensamento é uma pequena obra intitulada De l´Existence à l´Existant.” (EI
39).
É, de fato, bastante comum dizer que os escritos de Lévinas se iniciaram com uma
produção voltada a comentar outros autores, notadamente Husserl e Heidegger, e que as
primeiras obras que expuseram seus pontos de vista são De l´Existence à l´Existant de 1947
e Le Temps et l´Autre de 1948. Depois destas, a obra considerada maior seria Totalité et
Infini de 1961, seguida anos depois por Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence em
1974. O que não está de todo incorreto, embora esta sumária classificação peque em dois
pontos, ambos, aliás, relembrados por seu comentador Jacques Rolland: esquece a
primeiríssima obra De l´Évasion de 1935 que, segundo Rolland, contém já em germe as
intuições posteriores de Lévinas, e talvez também não dê devida importância a De Dieu qui
Vient à l´Idée, de 1982, que, ainda segundo Rolland, encerra o que se poderia chamar de
quarta fase no pensamento de Lévinas.4
Mas o que parece bastante seguro é o fato de que Autrement qu´être seja, de algum
modo, o ápice da obra, como confirma o depoimento de seu filho Michael a Salomon
Malka. “Meu pai – penso lembrar-me – ao terminar Autrement qu´être, teria dito que ele
havia mais ou menos concluído sua obra”5. Essas palavras parecem bastar para colocar
Autrement qu´être em seu devido lugar ou lugar devido no percurso da obra do autor.

3
Michael Lévinas em depoimento a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 261:
“Il n´y avait pas l´idée d´un projet philosophique qui devait donner naissance à un texte. Il y avait une
espèce de vide, de vertige, et puis des éléments épars, des brouillons et des concepts qui se définissaient au
dos d´une carte de visite, au dos d´une invitation de mariage. C´est une relation très particulière avec le
papier. Le vertige de la page blanche n´existait pas, il n´y avait pas de pages blanches mais le retournement
de feuilles de papier.”
4
Cf. Jacques Rolland. “Surenchère de l´éthique”. Prefácio a EPP, p.13, nota 1
5
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.263
79

Efetivamente, a maioria dos comentadores de Lévinas considera este livro sua obra
máxima, uma espécie de apogeu, um “mestre livro”6 ou um “livro tempestade”7
No entanto, o que mais surpreende, ou até mesmo espanta, nas tentativas de situar
Autrement qu´être no contexto da obra de Lévinas, é a suspeita de uma certa continuidade.
É um pouco estranho pensar numa espécie de progressão, ou para dize-lo mais diretamente,
de progresso, na obra de Lévinas, quando se trata de um autor que pensa o instante ou o
tempo como diacronia e não sincronia8. Seu comentador François-David Sebbah chega a
dizer que há como que um progresso no caminho do pensamento de Lévinas:

“(...) aos olhos de Lévinas, há uma ‘evolução de seu pensamento’ que se quer um
‘progresso’, um progresso na radicalização de uma compreensão do Infinito
como não contaminado pelo ser, e da capacidade em sugeri-lo numa linguagem
que escapa da ontologia: um ‘progresso’ no testemunho da experiência de
Outrem.” 9

As aspas colocadas por Sebbah indiquem talvez que, hoje, ainda falar em
‘progresso’ de um pensamento soa senão ingênuo ou anacrônico, francamente incorreto.
Mas talvez, na trilha de alguns comentadores pudesse se falar de uma “intuição primeira”10,
intuição que se aprimorou e tomou forma a cada passo do caminho, caminho não
necessariamente reto ou linear, mas dirigido por uma espécie de obsessão, animada por
apenas uma questão: sair do ser... Isto é, abandonar Heidegger ...
Falar de uma intuição primeira não encerraria um certo perigo? É a pergunta de
Marie Anne Lescourret: “Não seria por demais tentador querer encontrar o depois no

6
Cf. Michael de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas. 1992-1994. Paris: Le Livre de
Poche/Biblio Essais, 2006, p.63.
7
Guy Petitdemange. “Éthique et transcendance: sur les chemins d´Emmanuel Lévinas”. In: Lévinas, édition et
présentation de Danielle Cohen-Lévinas, op.cit., p.108: “Livro áspero no entanto, duro e seco para a pele
como tempestade de areia.”
8
Este ponto será explicitado adiante
9
François-David Sebbah. Lévinas. Paris: Les Belles Lettres, 2003, p.18: “(...) aux yeux de Lévinas il y a une
‘évolution’ de sa pensée qui se veut un ‘progrès’, un progrès dans la radicalisation d´une entente de l´Infini
non contaminé par l´être, et de la capacité de le suggérer dans un langage échappant à l´ontologie: un
‘progrès’ dans le témoignage de l´épreuve d´Autrui.”
10
Muitos comentadores de Lévinas parecem convergir nesta idéia de uma primeira intuição do autor, sendo
seus escritos posteriores apenas ajustes, requeridos pela exigência da linguagem filosófica - e, neste
caminho, não se pode deixar de evocar a análise de Derrida, que parece ter sido decisiva para Lévinas. No
entanto, não posso deixar de agradecer a Ilana Viana do Amaral que insistiu nesta hipótese um tanto
bizarra, mas verossímil, de que Lévinas, talvez, já de inicio, soubesse o que queria dizer, só não sabia como
dizer. Os comentários de Rolland, nos quais nos deteremos aqui com cuidado, se não explicitam esta
‘bizarra’ idéia, parecem apontar nesta mesma direção.
80

11
antes, e condenável ceder a esta tentação?” , ao que responde que o próprio Lévinas
parece legitimar tal démarche, pois seus textos, nunca fechados e acabados, são sempre
reaproveitados, de tal “modo que a perspectiva se persegue, se alarga mesmo, desde o texto
intitulado De l´Évasion, que começa pela ‘revolta da filosofia tradicional contra a idéia de
ser’ (EV91) até o último Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence.”12 .
Jacques Rolland, em seu prefácio a De l´Évasion, defende a mesma idéia: trata-se
de um livro que já contém em germe o caminho posterior de Lévinas. E, em parceria com
Silvano Petrosino em La verité nomade, notam que: “O texto de Lévinas se repete, mas é
precisamente nesta repetição que ele deve ser lido: nesta repetição, a escrita não progride,
13
ela se aprofunda.” Repetição: foi Derrida o primeiro a apontar este modus operandi
essencial na escrita deste pensador:

“(...) o desenvolvimento dos temas não é, em Totalidade e Infinito, nem


puramente descritivo, nem puramente dedutivo. Ele se desenvolve com a
insistência infinita das águas contra a praia: retorno e repetição, sempre da
mesma onda contra a mesma orla, na qual, no entanto, a cada vez que se resume,
tudo infinitamente se renova e se enriquece.” 14

Talvez se pudesse falar nestes mesmos termos da gênese da obra de Lévinas: não o
caminho reto da dedução ou a flecha do progresso da certeza, mas a espiral de uma
obsessão e de um pensamento lutando consigo mesmo, a explicitação crescente de uma
única idéia fixa: sair do ser.

1. Sair do ser: a evasão

Sair do ser: é este o tema privilegiado de De l´Évasion, escrito em 1935: este


pequeno texto só ganhou devida atenção quando de sua reedição em 1982 por Jacques
Rolland. O prefácio de Rolland, que se colocou como tarefa a de ler “num texto de

11
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas. Paris: Flammarion, 1994, p.211
12
Idem, p. 211/212
13
Silvano Petrosino. La Vérité nomade. Paris: La Découverte, 1984, p.13
14
Jacques Derrida L´Éciture et la Différence. Paris: Seuil, p. 124, note 1. Existe uma tradução em português
de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005, da qual
está, infelizmente, ausente o artigo sobre Lévinas. No original: “(...) le développement des thèmes n´est,
dans Totalité et Infini, ni purement descriptif ni purement déductif. Il se déroule avec l´insistance infinie des
eaux contre une plage: retour et répétition, toujours de la même vague contre la même rive, où pourtant
chaque fois se résumant, tout infiniment se renouvelle et s´enrichit.”
81

juventude, a inscrição, mesmo que no vazio, de uma escrita futura”15 , tem o mérito de
ressaltar a potência de florescimento, a gravidez, por assim dizer, destes escritos iniciais.
Surpreende nesta pequena obra a forma ou o estilo, que não poderia estar mais
distante dos futuros escritos de Lévinas: de uma clareza e transparência quase didática,
lembra o comentário de Xavier Tilliette acerca do livro sobre Husserl: “Havia este livro
sobre a intuição em Husserl, de uma escrita muito francesa, muito clara, muito diferente
daquela adotada mais tarde e que, em Autrement qu´être, se tornará muito tarabiscotée” 16.
Mas esta aparente simplicidade da escrita e da démarche, de cunho fenomenológico, não
esconde a complexidade do projeto levinasiano, já, em germe, presente aí. Lévinas põe em
questão o problema fundamental da filosofia, insistindo na necessidade de evadir-se do ser.
Segundo a interessante hipótese de Rolland, a pesquisa ulterior de Lévinas
17
“conseguiu dar um sentido e uma direção a esta evasão” que, neste texto de 1935 é
apenas colocada como “pura exigência”: “De l´Évasion fala somente em ‘sair do ser por
uma nova via’ (EV127) sem precisar de nenhum modo o que esta poderia ser”18. O que está
em jogo neste texto é o problema filosófico do Ser, como muito claramente aponta Lévinas:
“A necessidade de evasão (...) nos conduz ao coração da filosofia. Ela permite renovar o
antigo problema do ser enquanto ser” (EV99).
Assim, a presença de Heidegger seria inegável neste ensaio, embora, como nota
Rolland, o nome deste filósofo não seja aí citado nenhuma vez. Mas o problema do ser, que
Lévinas descobre com Heidegger é igualmente inseparável do problema da diferença
ontológica, que distingue entre ser e ente, ou, como prefere dizer Lévinas, entre existência
e existente19, entre “o que é” e “o ser do que é”.20 Em Noms Propres, Lévinas diz: “E,

15
Jacques Rolland. “Sortir de l´être par une nouvelle voie”. Préface à De l´Évasion. Paris. Fata Morgana,
1982, p. 13
16
Xavier Tiliette em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.161. A
palavra francesa tarabiscotée é de difícil tradução: poderia significar cheia de preciosismos, cheia de nós,
complexa, ou até mesmo confusa.
17
Jacques Rolland. Prefácio a EV14
18
Idem, p. 16
19
Idem, p.76, nota 9: “Para evitar qualquer ambigüidade, lembremos que o par existência-existente vale para
Lévinas para o de ser-ente. O que ele precisará, aliás, mais tarde, do seguinte modo: ‘Voltemos ainda a
Heidegger. Vocês não ignoram sua distinção (...) entre Sein e Seindes, ser e ente, mas que, por razões de
eufonia, prefiro traduzir por existir e existente, sem emprestar a estes termos um sentido especificamente
existencialista’ (TA24)”
20
Idem, p.76, nota 10: “quase todos os livros de Lévinas começam pela referência, sob formas diversas, desta
diferença ontológica. Ver assim De l´Existence à l´Existant, p.15, Totalité et Infini, p.13, Autrement qu´être
ou Au-delà de l´Essence, p.IX.”
82

graças a Heidegger, nosso ouvido se educou a escutar o ser em sua ressonância verbal,
sonoridade inédita e inesquecível.” (NP9) Ainda outra dívida para com Heidegger: a idéia
de que “o ser que se revela ao Dasein não lhe aparece sob a forma de uma noção teórica
que ele contempla” (EDE88). Mas as dívidas parecem parar por aí, pois Heidegger é
justamente aquele que “aceita o ser” (EV127), enquanto Lévinas busca sair do ser, quer ir
“para além do ser” (EV126), isto é, despregar-se da admiração que Ser e Tempo tinha lhe
causado, e abandonar o clima desta filosofia. Por isto, afirma Rolland que a necessidade
expressa em 1947 com De l´Existence à l´Existant de abandonar ou de “deixar o clima
desta filosofia [sem] sair dela em favor de uma filosofia que se poderia classificar de pré-
heideggeriana” (EE18), vale também para este ensaio doze anos mais jovem.
Logo na primeira página, pode-se ler:

“Esta concepção do eu como se bastando a si próprio é uma das marcas


essenciais do espírito burguês e de sua filosofia.(...) O ser é: não há nada a
acrescentar a esta afirmação enquanto considerarmos em um ser apenas sua
existência. Esta referência a si próprio, é precisamente o que dizemos quando
falamos da identidade do ser. A identidade (...) é a expressão da suficiência do
fato de ser do qual ninguém, ao que parece, poderia colocar em dúvida o caráter
absoluto e definitivo.” (EV91/92/93)21.

Esta “inamovibilidade mesma de nossa presença” (EV95) este peso de sermos nós
mesmos, este fato irrefutável de estarmos atracados, fixos, unidos, imobilizados, aderidos a
nós mesmos, como a minha própria sombra que me segue e persegue sem cessar, é uma
prisão, encadeamento a si próprio, cadeia. Sair disto, sair desta cadeia:

“Na evasão, aspiramos apenas a sair. (...) Busca de uma saída, mas não
nostalgia da morte, pois a morte não é saída tampouco solução. O fundo deste
tema é constituído (...) por uma necessidade de excendência. (...) Assim, a
evasão é a necessidade de sair de si próprio, quer dizer, de quebrar o
encadeamento o mais radical, o mais irremissível, o fato de que o eu é si
próprio.” (EV97/98)22

21
“Cette conception du moi comme se suffisant à soi est l´une des marques essentielles de l´esprit bourgeois
et de sa philosophie. (...) L´être est: il n´y a rien à ajouter à cette affirmation tant que l´on envisage dans un
être que son existence. Cette référence à soi-même, c´est précisément ce que l´on dit quand on parle de
l´identité de l´être. L´identité (...) est l´expression de la suffisance du fait d´être dont personne, semble-t-il,
ne saurait mettre en doute le caractère absolu et définitif.”
22
“(...) dans l´évasion, nous n´aspirons qu´à sortir. (...) Recherche d´une sortie, mais non point nostalgie de la
mort, car la mort n´est pas une issue comme elle n´est pas une solution. Le fond de ce thème est constitué
(...) par un besoin d´excendance. (...) Aussi l´évasion est-elle le besoin de sortir de soi-même, c´est-á-dire
de briser l´enchaînement le plus radical, le plus irrémissible, le fait que le moi est soi-même.”
83

É esta a questão fundamental que perpassa toda a história da filosofia. Diz Lévinas:
“O acontecimento fundamental de nosso ser: a necessidade de evasão.” (EV106). E já então
aí, neste seu primeiro escrito, se põe em questão o problema filosófico por excelência,
desde Parmênides, passando por Platão e Aristóteles, para desembocar em Heidegger: o
problema do ser. Não mais o ser, mas a saída ou evasão do ser. Convenhamos: não se trata
de pouca coisa! Apenas e tão somente de pensar a filosofia de outro modo, deslocando seu
“coração”: do ser à evasão (grifo meu)23

“A necessidade da evasão (...) nos conduz ao coração da filosofia. Ele permite


renovar o antigo problema do ser enquanto ser. Qual é a estrutura deste ser puro?
Teria a universalidade que Aristóteles lhe confere? Seria o fundo e o limite de
nossas preocupações como pretendem alguns filósofos modernos? Não seria ele
ao contrário apenas a marca de uma civilização, instalada no fato consumado do
ser e incapaz daí sair? E, nestas condições, a excendência seria possível e como
se realizaria? Qual é o ideal de felicidade e de dignidade humana que ela
promete?” (EV99)24

A partir desta questão central: como sair do ser? que, como já se disse, não será
resolvida, Lévinas lança mão de análises fenomenológicas do besoin (necessidade), do
prazer, da vergonha e da náusea.
Gostaria de ressaltar a importância destas duas últimas: a vergonha, por me parecer
extremamente promissora, quase que - ousaria dizer - profética em relação aos depoimentos
dos sobreviventes dos campos de extermínio nazistas25, e a náusea por ser, justamente, a
experiência mesma do ser puro, isto é, da impossibilidade de evasão.

23
Este texto de Lévinas – e talvez também seus textos posteriores - me sugere uma imagem: a de alguém
que diz a si próprio diante do espelho: “Vê se me esquece”, ou numa tradução mais filosófica: “Esquece-se
de ti mesmo”, isto é, o oposto da famosa recomendação socrática: “Conhece-te a ti mesmo”. É preciso no
entanto salientar – para evitar mal entendidos, como observou Ilana Viana do Amaral - que este
esquecimento do eu seria estéril se pensado fora da relação com outrem: ele só se sustenta em proveito do
outro, isto é, na medida em que outrem ocupa o lugar do eu. Não se trata portanto, como se verá a seguir, de
uma crítica à subjetividade, mas, no mesmo diapasão de Ricoeur, de uma crítica ao sujeito soberano e dono
de si, no esquecimento do outro.
24
“Le besoin de l´évasion (...) nous conduit au coeur de la philosophie. Il permet de renouveler l´antique
problème de l´être en tant qu´être. Quelle est la structure de cet être pur? A-t-il l´universalité qu´Aristote lui
confère? Est-il le fond et la limite de nos préoccupations comme le prétendent certains philosophes
modernes? N´est-il pas au contraire rien que la marque d´une certaine civilisation, installée dans le fait
accompli de l´être et incapable d´en sortir? Et, dans ces conditions, l´excendance est-elle possible et
comment s´accomplit-elle? Quel est l´idéal de bonheur et de dignité humaine qu´elle promet?”
25
Esta questão será abordada adiante
84

“A vergonha não depende, como se poderia acreditar, da limitação de nosso ser,


enquanto ele é suscetível de pecado, mas do ser mesmo de nosso ser, de sua
incapacidade de romper consigo próprio. (...) A vergonha aparece a cada vez
que não conseguimos fazer esquecer nossa nudez. Ela tem relação com tudo o
que gostaríamos de esconder e que não podemos esconder. (...) que queremos
esconder aos outros, mas também a si próprio. (...) O que aparece na vergonha é,
pois, precisamente o fato de estar preso a si próprio, a impossibilidade radical de
fugir de si para se esconder de si próprio, a presença irremissível do eu a si
mesmo. A nudez é vergonhosa quando ela é a patência de nosso ser, de sua
intimidade última. (...) A nudez de nosso ser total em toda sua plenitude e
solidez. (...) é a necessidade de se desculpar por sua existência. (...) O que a
vergonha descobre é o ser que se descobre. (...) O ser é, em seu fundo, um peso
para si próprio.” (EV111 a 114)26.

Mas é a análise da náusea que permitirá a Lévinas descrever esta experiência do ser
puro. Como diz ironicamente Lescourret: “Ele teve esta intuição da náusea, que fará a
27
fortuna de outro” . No instante em que é vivida, a náusea “adere a nós” (EV115/116).
Nela estamos, inteiros, queremos sair e não podemos.

“Há, na náusea uma recusa em nela permanecer, um esforço de dela sair. (...)
Na náusea, que é uma impossibilidade de ser o que se é, se é, ao mesmo tempo,
preso a si próprio, encerrados num círculo estreito que sufoca. (...) é a
experiência mesma do ser puro. (...) A náusea como tal apenas descobre a nudez
do ser em sua plenitude e sua irremissível presença. Eis porque a náusea é
vergonhosa sob uma forma particularmente significativa (...) quase no fato
mesmo de ter um corpo, de estar aí. (...) O fenômeno da vergonha de si diante de
si, do qual falávamos acima, faz um com a náusea. (...) É a afirmação mesma do
ser. Ela só se refere a si própria, está fechada para todo o resto, sem janela para
outra coisa. (...) É a impotência do ser puro em sua nudez.” (EV116 a118)28

26
“La honte ne dépend pas, comme on serait porté à le croire, de la limitation de notre être, en tant qu´il est
susceptible de péché, mais de l´être même de notre être, de son incapacité de rompre avec soi-même. (...)
La honte apparaît chaque fois que nous n´arrivons pas à faire oublier notre nudité. Elle a rapport à tout ce
que l´on voudrait cacher et que l´on ne peut pas enfouir. (…) que l´on veut cacher aux autres, mais aussi à
soi-même. (...) Ce qui apparaît dans la honte c´est donc précisément le fait d´être rivé à soi-même,
l´impossibilité radicale de se fuir pour se cacher à soi-même, la présence irrémissible du moi à soi-même.
La nudité est honteuse quand elle est la patence de notre être, de son intimité dernière. (...) La nudité de
notre être total dans toute sa plénitude et solidité (...) est le besoin d´excuser son existence. (...) Ce que la
honte découvre c´est l´être qui se découvre. (...) L´être est, dans son fonds un poids pour lui-même.”
27
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.118
28
“Il y a dans la nausée un refus d´y demeurer, un effort d´en sortir. (...) Dans la nausée, qui est une
impossibilité d´être ce qu´on est, on est en même temps rivé à soi-même, enserré dans un cercle étroit qui
étouffe. (...) c´est l´expérience même de l´être pur. (...) La nausée comme telle ne découvre que la nudité de
l´être dans sa plénitude et son irrémissible présence. C´est pourquoi la nausée est honteuse sous une forme
particulièrement significative (...) presque dans le fait même d´avoir un corps, d´être là. (...) Le phénomène
de la honte de soi devant soi, dont nous parlions plus haut, ne fait qu´un avec la nausée. (...) C´est
l´affirmation même de l´être. Elle ne se réfère qu´à soi-même, est fermée sur tout le reste, sans fenêtre sur
autre chose. (...) C´est l´impuissance de l´être pur dans toute sa nudité.”
85

Se me demorei neste texto, e transcrevi longamente as próprias palavras de Lévinas,


é para chamar a atenção do leitor para o léxico aqui empregado: sair do ser, ir para além do
ser, nudez, excendência, léxico que não será jamais abandonado pelo autor, embora tome
formas ou coloridos diferentes nas obras futuras. Mas, já nesta, o ser sufoca, o ser é náusea,
o ser cola a pele, a sombra do ser não descola do sujeito, como na história de João, o bobo,
evocada em De l´Existence à l´Existant: neste conto popular russo, João “para escapar de
sua sombra, lançhe como o almoço que ele foi encarregado de levar ao pai nos campos”
(EE29) e assim, nada sobra para João, nem mesmo o almoço, apenas sua sombra.
Se aqui o ser é náusea, mais tarde o ser é mal, o que assusta alguns dos críticos de
Lévinas, como por exemplo Didier Franck, para quem: “Dizer que o Ser é o mal, dizer que
se é culpado de ser, é enorme. Não é alias nem mesmo bíblico, pois a criação é boa. Não
vejo como se pode afirmar uma tal proposição. E ao mesmo tempo, vejo bem que ela
sustenta o conjunto de sua obra.” 29
Didier Franck tem razão: o Ser é mal, nas pegadas de Pascal, nesta frase que
Lévinas gostava de recordar e que consta na epigrafe de Autrement qu´être : “‘... É aqui
meu lugar ao sol.’ Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra”. Longe estamos
de Heidegger: a questão, como sublinha Saint-Cheron, já não é o esquecimento do ser, mas
o esquecimento do bem. “A filosofia teria esquecido o ser e perdido o sentido da ontologia,
como pensava Heidegger, ou, ao invés disso, o Bem, como pensava Lévinas?”30 A pergunta
que Lévinas se faz em De l´Évasion: “Qual é o ideal de felicidade e de dignidade humana
que ela [excendência] promete?” é de certa forma respondida em De l´Existence à
l´Existant: “O que pode haver a mais do que a questão do ser, não é uma verdade, mas o
bem.” (EE23). A questão do esquecimento do ser é segunda em relação à do Bem.
Novamente, talvez Didier Franck tenha razão: é de fato enorme dizer que o ser é o
mal, e talvez também isto não seja de modo algum bíblico. Mas talvez seja judaico. E vale
aqui evocar a experiência judaica nos campos de extermínio nazista. Embora tal tragédia
não houvesse então ainda ocorrido – pareceria que é em De l´Existence à l´Existant que o
impacto de tal tragédia se faz sentir de modo mais contundente31 – a ascensão de Hitler ao
poder foi suficiente para transtornar Lévinas. “Minha vida ter-se-ia ela passado entre o

29
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 281
30
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas (1992-1994), op.cit., p. 62 , cf nota 2.
31
Ver as análises sobre o esforço e a fadiga em De l´Existence à l´Existant, p. 31 a 38
86

hitlerismo incessantemente pressentido e o hitlerismo se recusando a todo esquecimento?”


se pergunta Lévinas numa entrevista concedida a François Poirié32. E, muito a propósito,
Jacques Rolland lembra um ensaio de 1934, intitulado “Algumas reflexões sobre a filosofia
do hitlerismo”: que seria, de acordo com o comentador, “em muitos aspectos, anunciador
33
de De l´Évasion” . Lévinas fala aí de uma aderência do corpo ao eu, aderência da qual
não se escapa, aderência a partir da qual o espírito está submetido ao corpo:

“O biológico com tudo o que ele comporta de fatalidade torna-se mais do que
um objeto da vida espiritual, torna-se seu coração (...) Uma sociedade a base
consangüínea decorre imediatamente desta concretização do espírito. E então, se
a raça não existe, é preciso inventá-la!” (QRPH 18-20)34

O hitlerismo funda uma sociedade na qual se “reivindica o corpo como lugar de


aderência”35. A conseqüência de tal perspectiva? Já em 1934, respondia Lévinas: a
expansão, a guerra, a conquista.36
Não menos surpreendente é esta idéia, que ganhará cada vez mais força nos escritos
de Lévinas da “vergonha de estar aí”, vergonha que aliás, é freqüentemente neste ensaio,
ligada a fenômenos físicos e corporais37, mas que é sobretudo, vergonha simplesmente, de
ser: “O que a vergonha descobre é o ser que se descobre.” (EV114). A vergonha de estar aí
ou de ser aí, a vergonha do sobrevivente: não se pode deixar de evocar os relatos dos
sobreviventes dos campos de concentração: a vergonha de ter sobrevivido, de estar
vivendo, talvez, fortuitamente, no lugar de outro, talvez, por sua própria culpa... Giorgio
Agamben, entre outros, em O que resta de Auschwitz38, fala longamente desta experiência
de estar a mais, de ser um homem a mais, da vergonha de ser. Por que eu estou aqui e não
ele? Questão crucial que, me parece, perpassa grande parte da filosofia de Lévinas, e que
se inicia neste texto de 1935, antes do horror impensável/indizível. E que, após o horror,

32
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., p.73.
33
Jacques Rolland. Prefácio a EV48
34
“Le biologique avec tout ce qu´il comporte de fatalité devient plus qu´un objet de la vie spirituelle, il en
devient le coeur. (...) Une société à base consanguine découle immédiatement de cette concrétisation de
l´esprit. Et alors, si la race n´existe pas, il faut l´inventer!”
35
Jacques Rolland. Prefácio a EV51
36
Cf. Idem, p.51 e QRPH, p.22/23.
37
Cf. Idem, p.48
38
Cf. Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz. O Arquivo e a Testemunha. Homo Sacer III, op.cit.,
notadamente o capítulo III: “A Vergonha, ou Do Sujeito”, p. 93 e seguintes
87

ganhará firmeza e concretude real, “eu me interrogo já se meu ser é justificado, se o Da de


meu Dasein não seria já a usurpação do lugar de alguém.” (EPP 105).
Mas talvez se deva recorrer novamente aqui a Agamben e sua interessante distinção
entre as palavras gregas bios e zoé: ambas se referem à palavra vida. Os gregos se
reportavam a “zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos
(animais, homens ou deuses) e bios, que indicava a forma ou maneira de viver própria de
um indivíduo ou de um grupo”39 : enquanto a primeira se refere apenas à vida física,
orgânica, biológica, ou vida natural, a segunda diz respeito à vida em um contexto humano
e cultural. Poder-se-ia ler a vergonha de ser da qual fala Lévinas nesta chave: não se
trataria assim somente da vergonha de ser no lugar do outro (o que, por si só, seria
suficiente!), mas também da vergonha de ser reduzido e confrontado com a zoé, com a
“vida nua”, vida nua que, sob a pluma de Lévinas, é precisamente a aderência do espírito
ao corpo.
Maurice Blanchot, ao meditar acerca do livro de Robert Antelme, L´Espèce
Humaine, se refere nestes mesmos termos à experiência do homem nos campos de
concentração: um agarramento à vida nua, à existência pura e simples.

“E, sem dúvida trata-se ainda de um certo tipo de egoísmo, e mesmo do mais
terrível egoísmo, de um egoísmo sem ego, em que o homem, obstinando-se em
sobreviver, empenhando-se - de um modo que se deve dizer abjeto - a viver e
sempre viver, carrega esta ligação como ligação impessoal à vida, e carrega esta
necessidade como a necessidade que não é mais a sua própria, mas a
necessidade de certo modo vazia e neutra, assim, virtualmente a de todos.” 40

É entre De l´Évasion e De l´Existence à l´Existant, que o horror ganhará face real.


Entre as duas obras: os campos de extermínio nazistas, nos quais, importa dizer, Lévinas
perdeu toda sua família, salvando-se apenas sua mulher e sua filha, escondidas por um
certo tempo na casa de amigos como Maurice Blanchot, ou Suzanne Poirier, e também no

39
Giorgio Agamben. Homo Sacer I. Il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Giulio Eunaudi editore, 1995.
Tradução brasileira de Henrique Burigo. Homo Sacer I. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002, p. 9. Ver, também, a esse respeito, Peter Pál Pelbart. Vida Capital. Ensaios de
Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 60.
40
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op.cit., p.196. “Et sans doute s´agit-il encore d´une sorte d´égoïsme,
et même du plus terrible égoïsme, celui d´un égoïsme sans ego, où l´homme, acharné à survivre, attaché
d´une manière qu´il faut dire abjecte à vivre et à toujours vivre, porte cet attachement comme l´attachement
impersonnel à la vie, et porte ce besoin comme le besoin qui n´est plus le sien propre, mais le besoin vide et
neutre en quelque sorte, ainsi virtuellement celui de tous.”
88

convento das freiras de Saint-Vincent-de Paul41. Lévinas nunca esqueceu o que devia a
estas pessoas: “não me canso de relembrar do papel que desempenhou – com tantos ardis e
riscos – no salvamento de minha esposa e de minha filha, um monastério de São Vicente de
Paula nas cercanias de Orléans.” 42
Dos seus parentes de Kovno, nenhum sobrevivente....
É este o horizonte sombrio a partir do qual Lévinas tenta construir sua ética para
além do ser, isto é, como mencionado acima, pensar o bem como mais importante que o
ser. Não seria assim demais supor que esta colocação de Lévinas em De l´Évasion tem
como pano de fundo o hitlerismo e o nazismo: “Toda civilização que aceita o ser, o
desespero trágico que ele comporta e os crimes que ele justifica, merece o nome de bárbara
(...) Trata-se de sair do ser por uma nova via” (EV126/127). A exemplo de alguns autores,
notadamente os da chamada escola de Frankfurt, Lévinas não pensa os campos como uma
exceção, uma espécie de tumor temporário no coração de nossa civilização, mas ao
contrário vê na racionalidade ocidental as condições de possibilidade deste desastre.
A reabilitação deste texto de juventude de Lévinas me parece essencial e, se nele
insisti, não é só porque contem em germe suas idéias posteriores, mas também e
principalmente porque ele marca de modo indelével de onde parte a reflexão de Lévinas: de
um esforço para se desfazer de Heidegger e ... de Hitler. A Segunda Guerra mundial e o
genocídio do povo judeu são decisivos para o pensamento levinasiano: de acordo com
Poirié, é a própria noção de sujeito que está a partir daí posta em questão: “Pela primeira
vez na história, sem dúvida, o ser humano não valia nada. Não havia um inimigo a
combater, um prisioneiro para trocar; havia um objeto a ser destruído (...) Foi por ódio ao
43
outro homem que se pôde concretizar (...) o horror nazista.” Com este ponto de vista,
também concorda Maurice Blanchot:

“Como filosofar, como escrever com a lembrança de Auschwitz, daqueles que


nos falaram, às vezes em notas enterradas perto dos crematórios: saibam o que
se passou, não se esqueçam e ao mesmo tempo, vocês jamais saberão. É esse

41
Para mais detalhes acerca dos anos de guerra na vida de Lévinas, ver Marie Anne Lescourret, Emmanuel
Lévinas, op.cit., p.119 a 128. E também Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit.,
p.80 a 97
42
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., p. 75
43
Idem, p.17.
89

pensamento que atravessa e carrega toda a filosofia de Lévinas, e que ele nos
propõe, sem dizê-la, para além e antes de toda e qualquer obrigação.” 44

Este ponto de partida parece oferecer elementos para por em questão uma
interpretação da obra de Lévinas, que insiste demasiadamente na irmandade ou fraternidade
ou boa vontade. Esta interpretação, quiçá um pouco edulcorada, não dá conta da
insistência levinasiana acerca do excesso do Ser, e de que, por este excesso mesmo, o Ser é
mal. Uma afirmação, um tanto quanto escandalosa - a crer ao menos Didier Franck - que
me parece ser o ponto incontornável a partir do qual Lévinas constrói suas reflexões.
O ser é mal, não devido a sua finitude, mas à sua presença excessiva. (cf. TA29),
excesso de ser, excesso de vida orgânica, bios reduzido a zoé. Daí, uma certa obsessão,
uma idéia fixa ou idéia ‘mestra’, que parece ter acompanhado a trajetória de Lévinas: sair
do ser. E, se neste primeiro texto, não há nenhuma indicação de como sair do ser, suas
obras posteriores, embora sem mencionar a noção de evasão, parecem ser uma resposta a
esta urgência essencial. Por isso, Jacques Rolland considera o abandono da noção de
evasão “extremamente fecundo, pois ele daria lugar a metamorfoses sucessivas da noção
abandonada, metamorfoses tais que retraçar seu devir seria também retraçar a evolução
mesma da obra em seu percurso.” 45

2. Do ser ao il y a : da evasão à hipóstase

A mesma questão-obsessão – sair do ser - segue nesta obra, que Lévinas escreveu
no campo de prisioneiros de guerra, no qual trabalhou como lenhador. As análises
fenomenológicas aí empreendidas têm por objeto – talvez não por acaso! - a fadiga, a
preguiça, o esforço, fenômenos que também são pensados em função da necessidade de
evasão: tentativas frustradas de sair do ser, ou para usar a nova terminologia levinasiana:
recuo impotente diante do il y a. “Mostrava, nestes fenômenos, um terror perante o ser, um
recuo impotente, uma evasão e, por conseqüência, também aí, a sombra do il y a.” (EI42)
De acordo com Jacques Rolland, a pregnância, aderência, prisão do ser se
transforma aqui em horror do il y a,46 ou seja, o há, existência sem existente, há neutro e

44
Maurice Blanchot. Textes pour Emmanuel Lévinas. Citado por François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio
e Entrevistas, op.cit., p. 18.
45
Jacques Rolland. Prefácio a EV65
46
Cf. Idem, p. 41/42
90

impessoal, como quando se diz “chove”, “é noite”, “faz frio”, etc..., expressões nas quais o
sujeito está ausente, ou é anônimo: “Ser anônimo que nenhum ente reivindica, ser sem
entes ou sem seres, incessante ‘burburinho’ [‘remue-ménage’] - para retomar uma metáfora
de Blanchot -, há impessoal como um ‘chove’ ou um ‘anoitece’” (EE11)
Se Heidegger, como se viu, não foi mencionado na obra anterior, conta Lévinas que
este livro “apareceu com uma faixa onde eu mandara escrever: ‘Onde não se trata de
angústia.’” (EI41), marcando assim não somente uma indelével distinção entre o há
levinasiano e o es giebt47 heideggeriano, como também a oposição entre o horror de ser e a
angústia do nada.

“Ponto essencial de toda esta análise. O nada puro da angústia heideggeriana não
constitui o há. Horror do ser oposto à angústia do nada; medo de ser e não para o
ser (...) Opomos, portanto, o horror da noite (...) à angústia heideggeriana; o medo
de ser ao medo do nada.(...) O horror da noite ‘sem saída’ e ‘ sem resposta’ é a
existência irremissível.” (EE73 - sublinho).

A existência irremissível, a vergonha e a náusea de ser descritas em De l´Évasion


transformam-se, com o il y a, em terror e horror de ser: as imagens evocadas ou, se
quiserem, as metáforas escolhidas são, no limite, terrificantes; o vocabulário se torna mais
radical: coisa horrível, horror e desvario, caráter desértico, obsedante e horrível do ser,
atmosfera densa e sufocante, campo de forças do existir impessoal, inumana neutralidade,
impessoalidade, desarrumação, desastre, sem-sentido (non-sens), noite, escuridão, insônia,
vigilância impessoal, despersonalização, dessubjetivação, experiência enlouquecedora,
plenitude do vazio, rumor incessante, murmúrio do fundo do nada, silêncio que ressoa,
impossibilidade de parar a música – são estes alguns dos modos de Lévinas se aproximar
do il y a.
Não seria fora de propósito pensar que este terrificante e sufocante vocabulário é
resultado do contexto no qual foi criado, isto é, num campo de prisioneiros de guerra48. De
acordo com Alexandre Leone: “Isso caracteriza o fenômeno da existência impessoal, o

47
Diz Lévinas no Prefácio à segunda edição de De l´Existence à l´Existant , datado de 1981, com relação ao il
y a: “Termo profundamente distinto do ‘es giebt’ heideggeriano. Ele nunca foi nem a tradução nem a
transposição da expressão alemã e de suas conotações de abundância e de generosidade” (EE11)
48
Salomon Malka, em Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, parece insinuar esta idéia: “O primeiro livro de
Lévinas publicado depois da guerra se chamará De l´Existence à l´Existant. Foi parcialmente escrito em
captividade. Com suas páginas fascinantes sobre o il y a, sobre a angústia diante do ser e sobre o horror do
ser” (p.96)
91

horror de um ser indefinido que exclui a humanidade e desafia a existência (...) a existência
se dá como sujeito inexistente. Isso se refere ao humano como nada, objeto manipulável
durante a guerra, transportado nos trens para ser dizimado.” 49
No entanto, Lévinas não poucas vezes aproxima a experiência do il y a de
lembranças de infância: o há “remonta a uma dessas estranhas obsessões que se guarda da
infância e que reaparecem nas insônias quando o silêncio ressoa e o vazio permanece
pleno.” (EE11). Terror que se sente quando, criança, se é arrancado da convivência com os
adultos e mandado para a cama mais cedo: “isolado no silêncio, (...) se ouve o tempo
absurdo em sua monotonia, como se as cortinas se mexessem sem mover-se... Meu esforço
em Da Existência ao Existente consistia em buscar a experiência de uma saída deste ‘não-
senso’ anônimo.” 50 Também em Ética e Infinito, pode-se ler:

“A minha reflexão sobre este tema parte de lembranças da infância. Dorme-se


sozinho, as pessoas adultas continuam a vida: A criança sente o silêncio de seu
quarto de dormir como ‘sussurrante’ 51.(...) Algo que se parece com aquilo que se
ouve ao aproximarmos do ouvido uma concha vazia, como se o vazio estivesse
cheio, como se o silêncio fosse um barulho.(...) De l´Existence à l´Existant tenta
descrever esta coisa horrível, e, aliás, descreve-a como horror e desvario.”
(EI39/40)

Embora esta noção apareça pela primeira vez em De l´Existence à l´Existant,


encontra-se também em Le Temps et l´Autre uma admirável descrição desta experiência
terrificante que constitui o il y a:

“Imaginemos o retorno ao nada de todas as coisas, seres e pessoas.


Encontraríamos o puro nada? Resta após esta destruição de todas as coisas, não
alguma coisa, mas o fato de que il y a. A ausência de todas as coisas retorna
como uma presença: como o lugar em que tudo desapareceu, como uma
densidade de atmosfera, como uma plenitude do vazio ou como o murmúrio do
silêncio. Há, após esta destruição das coisas e dos seres, o ‘campo de forças’ do
existir, impessoal. Algo que não é nem sujeito nem substantivo. O fato de existir
que se impõe, quando não há mais nada. E é anônimo: não há ninguém nem
nada que tome esta existência sobre si. É impessoal como ‘chove’ ou ‘está

49
Alexandre Leone.”Emmanuel Lévinas: o outro como espelho de si mesmo.” In: Revista 18, p.60.
50
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaios e entrevistas, op.cit., p.81
51
Embora Proust não tenha evocado tal experiência, para além das conhecidas explicações acerca do desejo
pela presença da mãe, me pergunto se este terrificante silêncio sussurrante não poderia ser uma via de
acesso às belíssimas descrições de Proust sobre sua angústia na hora de ir dormir. O desejo pela presença
materna poderia, neste contexto, ser lido como um desejo de salvação, da saída deste silêncio pleno e
terrificante.
92

quente’ Existir que retorna qualquer que seja a negação pela qual afastemos. Há
como que a irremissibilidade do existir puro.” (TA 25/26)52

Então tudo desaparece... Lévinas evoca as imagens da noite - “A noite é a própria


experiência do há.” (EE68) - e do silêncio: uma noite e um silêncio que não são ausência
ou espaço vazio (de luz ou de palavras), mas preenchimento e presença, como o diz tão
53
bem Blanchot: “Mas, quando tudo desapareceu na noite, ‘tudo desapareceu’ aparece” .
“Não é mais isto, nem aquilo: não há ‘alguma coisa’. No entanto, esta universal ausência é,
por sua vez, uma presença absolutamente inevitável.” (EE68), como se a escuridão tivesse
olhos, na bela imagem evocada por Clarice Lispector54 – autora que provavelmente Lévinas
jamais leu - em sua crônica “A geléia viva como placenta”: “(...) vi os olhos do escuro. Não
‘os olhos no escuro’: mas os olhos do escuro. O escuro me espiava com dois olhos grandes,
separados. A escuridão, pois, também era viva” 55. Estes olhos da escuridão não seriam da
mesma ordem que a presença viva do il y a? Pode-se suspeitar que sim: “A escuridão,
como presença da ausência, não é um conteúdo puramente presente. Não se trata de
‘alguma coisa’ que resta, mas da própria atmosfera de presença.” (EE74), atmosfera na
qual a escuridão tem olhos, sem que haja olhos na escuridão. Noite e escuridão plena de
silêncio: “Nada responde. Mas esse silêncio, a voz desse silêncio é ouvida e apavora como
‘o silêncio desses espaços infinitos’ de que fala Pascal” (EE68). Experiência da noite e do
silêncio de que fala Clarice Lispector de modo tão preciso e agudo em sua pequena crônica
“Noite em Berna”:

52
“Imaginons le retour au néant de toutes choses, êtres et personnes. Allons-nous rencontrer le pur néant? Il
reste après cette destruction imaginaire de toutes choses, non pas quelque chose, mais le fait qu ´il y a.
L´absence de toutes choses, retourne comme une présence: comme le lieu où tout a sombré, comme une
densité d´atmosphère, comme une plénitude du vide ou comme le murmure du silence. Il y a, après cette
destruction des choises et des êtres, le ‘champ de forces’ de l´exister, impersonnel. Quelque chose qui n´est
ni sujet, ni substantif. Le fait d´exister qui s´impose, quand il n´y a plus rien. Et c´est anonyme: il n´y a
personne ni rien qui prenne cette existence sur lui. C´est impersonnel comme ‘il pleut’, ou ‘il fait chaud’.
Exister qui retourne quelle que soit la négation par laquelle on l´écarte. Il y a comme l´irrémissible de
l´exister pur.”
53
Maurice Blanchot. L´Espace Littéraire. Paris: Gallimard, 1968, p.215. Citado por Jacques Rolland. Prefácio
a EV44..
54
Lévinas recomenda, numa nota (EE103), a leitura da obra Thomas l´Obscur de Maurice Blanchot na qual o
il y a estaria admiravelmente descrito. Porque então não recomendar igualmente a leitura de Clarice
Lispector, em duas pequenas crônicas que constam do livro A Descoberta do Mundo? Devo aqui confessar
que tanto a lembrança de Clarice Lispector,quanto a escolha destes trechos específicos cuidadosamente
‘pescados’ na imensidão de sua vasta e imensa obra, me foram generosamente oferecidos, como o melhor
dos presentes, por Talitha Ferraz de Souza. A ela, Talitha - e também a Clarice - só me resta agradecer...
55
Clarice Lispector. A Descoberta Do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.402
93

“A noite em Berna tem o silêncio (...) É um silêncio que não dorme: é insone;
imóvel mas insone, e sem fantasmas (...) Pois se no começo o silêncio parece
aguardar uma resposta – como ardemos por ser chamados e responder – cedo se
descobre que de ti ele nada espera, talvez apenas o teu silêncio (...) Então, se há
coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos
fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da
escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssemos num navio tão
descomunalmente enorme que ignorássemos estar num navio. E este singrasse
tão largamente que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não
pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias
podem suportar.”56

Pois é bem disso que se trata: “Viver na orla da morte e das estrelas”. Expressão
feliz que remete ao que Blanchot chama “desastre”, “como se o ser se separasse de sua
fixidez de ser, de sua referência a uma estrela, de toda a existência cosmológica, um des-
astre.” (EI42).
Esta presença do il y a, da noite e do silêncio, aparece de forma quase dramática na
insônia, na qual, mais até do que na náusea, o ser puro atormenta. Se em De l´Évasion a
náusea era vista como a “experiência mesma do ser puro”, em De l´Existence à l´Existant, a
insônia é a experiência mesma do il y a:

“Na insônia, pode-se e não se pode dizer que há um ‘eu’ que não chega a dormir.
A impossibilidade de sair da vigília é algo de ‘objectivo’, de independente de
minha iniciativa. Esta impersonalidade absorve a minha consciência; a
consciência está despersonalizada. Eu não velo: ‘isto’ vela. (...) Na
enlouquecedoura experiência do il y a, tem-se a impressão de uma
impossibilidade total de dela sair e de ‘parar a música’. É um tema que encontrei
em Maurice Blanchot, embora ele não fale do il y a, mas do ‘neutro’ ou do ‘fora’.
Há aqui uma abundância de formas muito sugestivas: fala da ‘desarrumação’ do
ser, do seu ‘rumor’, do seu ‘múrmurio’ Uma noite, num quarto de hotel em que,
por detrás da divisória, ‘não se acaba de remexer’; ‘não se sabe o que fazem ao
lado’. Já não se trata de ‘estados de alma’, mas de um fim da consciência
objectivante, de uma inversão do psicológico. Provavelmente é este o tema dos
seus romances e dos seus contos.”(EI41).

Belas páginas de Lévinas, Blanchot e Clarice Lispector sobre a noite, o silêncio e a


57
insônia para falar do horror que constitui a experiência do il y a, existência sem existente,

56
Idem, p.128/129
57
Mas “pode-se falar de noites em plenos dias” diz Lévinas ... e também Clarice: “Depois nunca mais se
esquece. Inútil fugir para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo – de repente. Ao
atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de
uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia –
ei-lo. E dessa vez ele é fantasma.” (p.129).
94

isto é, “ser em geral” (EE67) ou universal , que “permanece como que um campo de forças,
como uma pesada ambiência que não pertence a ninguém” (EE68), “corrente anônima do
ser [que] invade, submerge todo sujeito, pessoa ou coisa” (EE68). Horror pois o eu é
“submergido pela noite, invadido, despersonalizado, sufocado por ela” (EE68), a
subjetividade é, por assim dizer, anulada, não há nem sujeito nem objeto: “No horror, o
sujeito é despojado de sua subjetividade, de seu poder de existência privada.. Ele é
despersonalizado (...) O horror põe às avessas a subjetividade do sujeito, sua
particularidade de ente.” (EE71).
Sair do horror do il y a, isto é sair do anonimato, ser consciência, ser “arrancado ao
há il y a, já que a existência de uma consciência constitui uma subjetividade, uma vez que
ela é sujeito de existência, isto é, em certa medida, senhora do ser, já nome, no anonimato
da noite” (EE70). Anonimato e neutralidade a serem ultrapassados “na hipóstase onde o
ser, mais forte que a negação, submete-se, por assim dizer, aos seres: a existência ao
existente.” (EE12).
Antes de abordar o conceito de hipóstase, que também figura pela primeira vez sob
a pluma de Lévinas em De l´Existence à l´Existant, é importante retomar o comentário de
Jacques Rolland segundo o qual, contrariamente à noção de evasão – que sofrerá
modificações ao longo da obra de Lévinas - a de il y a (do ser enquanto neutro ou il y a)
não somente não será jamais abandonada nas obras posteriores, mas também se tornará
chave em Autrement qu´être, para então aí indicar a essência.58
A noção de hipóstase é explicitada pela primeira vez em De l´Existence à
l´Existant, e reaparece em Le Temps et l´Autre. A partir do il y a, este ser sem existente, é
possível o existente, num processo que Lévinas denomina hipóstase. O ser se separa deste
terrificante il y a para existir enquanto existente: entra no instante, no tempo presente, e,
por assim dizer, começa a existir. É a aparição de um sujeito, de um nome, de um
substantivo:

“a própria aparição de um existente, de um substantivo no seio dessa existência


impessoal que, para falar rigorosamente, não se pode nomear, pois ela é puro
verbo. (...) Para indicar essa aparição retomamos o termo hipóstase que, na
história da filosofia designa o evento pelo qual o ato expresso por um verbo
torna-se um ser designado por um substantivo. A hipóstase, a aparição do

58
Cf. Jacques Rolland. Prefácio a EV46/47.
95

substantivo (...) significa a suspensão do há anônimo, a aparição de um domínio


privado, de um nome. Sobre o fundo do há surge um ente. (...) O ente – o que é –
é sujeito do verbo ser e, por isso mesmo, exerce um domínio sobre a fatalidade
do ser que se tornou seu atributo. Existe alguém que assume o ser, de agora em
diante seu ser.” (EE99/100)

Aparição do existente no seio da existência, de um nome no seio do anonimato, de


um ente que se torna sujeito do verbo ser, aparição portanto da consciência e do presente:

“A hipóstase, o existente é uma consciência (...) ela é presente, isto é, ainda vem
ao ser a partir de si mesma. O presente não é uma porção da duração, ele é uma
função dela: ele é essa vinda a partir de um si mesmo, essa apropriação da
existência por um existente que é o ‘eu’. Consciência, posição, presente, ‘eu’,
não são inicialmente – embora o sejam finalmente – existentes. Eles são eventos
pelos quais o inominável verbo ser se transforma em substantivo. Eles são a
hipóstase.” (EE100)

Se, pela hipóstase se sai do ser, então, poder-se-ia, num primeiro olhar, identificar
esta como possibilidade de evasão. A crer Jacques Rolland, de fato, a noção de evasão, ao
mesmo tempo em que é abandonada, sofre metamorfoses ao longo da obra de Lévinas: a
primeira delas seria justamente a hipóstase, designada em De l´Existence à l´Existant como
“evasão em si” (EE87). Mas como se verá adiante, se a hipóstase permite a saída do ‘ser
em geral’, de modo nenhum corresponde à saída de si, pois o sujeito que nasce do il y a
anônimo, continua preso e colado a si próprio.
Pela hipóstase, o existente domina seu existir: passa-se do império da existência ao
controle desta existência por um existente. “A aparição de ‘algo que é’ constitui uma
verdadeira inversão no seio do ser anônimo. Ele carrega o existir como atributo, ele é dono
deste existir assim como o sujeito é dono do atributo” (TA31).
A este respeito, vale aqui evocar uma polêmica lembrada por Jacques Rolland em
seu prefácio, e que envolve uma crítica de Jean Luc Marion, escrita em 1977, segundo a
qual Lévinas, embora quisesse, não conseguiu se afastar de Heidegger, apenas invertendo
os termos da diferença ontológica. No entanto, numa conferência de 1986, publicada em
1993, cujo título é “Nota sobre a Indiferença Ontológica”59, Marion elabora uma
autocrítica, reconhecendo que, se isto vale para Totalité et Infini, de modo nenhum, vale
para Autrement qu´être.

59
Cf. Jean Luc Marion. “Nota sobre a indiferença ontológica.” In: Emmanuel Lévinas. L´Éthique Comme
Philosophie Première. Paris: Cerf, 1993, p. 47 a 64
96

O próprio Lévinas teria se referido a esta crítica em seu prefácio a segunda edição
de De l´Existence à l´Existant:

“Entrever no ‘existente’, no ente humano, e no que Heidegger chamará ‘entidade


do ente’ (‘étantité de l´étant’) não uma ocultação e uma ‘dissimulação’ do ser,
mas uma etapa para Bem e para a relação com Deus e, na relação entre entes,
outra coisa que a ‘metafísica que está terminando’, não significa que se invertam
somente os termos da famosa diferença heideggeriana, privilegiando o ente em
detrimento do ser [como supõe Jean-Luc Marion em sua notável obra L´Idole et
la Distance] Essa inversão só terá sido o primeiro passo de um movimento que,
abrindo-se para uma ética mais velha do que a ontologia, dará margem à
significações que irão além da diferença ontológica - o que, sem dúvida, é a
própria significação do Infinito. É a démarche filosófica que vai de Totalité et
Infini a Autrement qu´être.” (EE13 – sublinho)

Primeiro passo, portanto, de um percurso no qual a noção de hipóstase, senão


definitivamente esquecida e abandonada, ao menos relegada a um segundo plano,
precisamente como primeiro passo. Pois a hipóstase é necessária para que surja um nome
ou substantivo do fundo do il y a anônimo e a-substantivo, para que surja, do fundo do
horror de ser, um ente. Para que apareça um ‘eu’, pois afinal, ser é melhor do que não ser
ou, como diz Lévinas: “ser vale mais do que não ser” (EE9). No entanto, ‘ser’ ainda não é
suficiente, pois este ‘eu’, que surge na hipóstase, continua fechado em si, preso a si próprio,
grudado, por assim dizer, a sua existência, emblema portanto da solidão. Não é pela
hipóstase que se sai do ser:

“A hipóstase, pelo fato de participar do há, descobre-se como solidão, como o


definitivo do acorrentamento de um eu a seu próprio si.(...) Essa impossibilidade
para o eu de não ser si-mesmo 60, marca o trágico profundo do eu, o fato de ele
estar indissoluvelmente preso a seu ser.” (EE 101)

O domínio da existência pelo existir, através da hipóstase, não se constitui em


evasão pois a substantivação do verbo existir, o descolamento do neutro ser, ou a de-
neutralização do il y a, isto é, o nascimento de um sujeito, no coletivo sem nome do ser, é o
nascimento de um sujeito colado, preso a si próprio, um ser de absoluta solidão, uma
solidão a dois diz Lévinas, pois a sombra se cola ao sujeito, mesma imagem já evocada em
De l´Évasion .
60
Aqui, modifiquei a tradução original. No francês: “Cette impossibilité pour le moi de ne pas être soi...”, foi
originalmente traduzido por: “Essa impossibilidade de ser si-mesmo...”, o que me pareceu o oposto do que
quer dizer Lévinas, que é: “Essa impossibilidade para o eu de não ser si-mesmo.”
97

“Ser eu comporta um acorrentamento a si mesmo, uma impossibilidade de


desfazer-se desse si mesmo (...) O acorrentamento a si mesmo é a
impossibilidade de desfazer-se de si mesmo. (...) Ser eu não é somente ser para si
mesmo, é também ser consigo mesmo. (...) A solidão do sujeito é mais do que um
isolamento de um ser, a unidade de um objeto. É, se se pode dizer, uma solidão a
dois; este outro que não é o eu corre como uma sombra acompanhando o eu.(...)
em nossas viagens, levamo-nos conosco.” (EE105/106)

“A solidão aparece aqui como o isolamento que marca o evento do próprio ser” (EI
49/50). Sair da solidão significa sair de si. Nesse sentido é que diz Lévinas: “a solidão não
é em si o tema primeiro destas reflexões. É apenas uma das notas do ser. Não se trata de
sair da solidão, mas de sair do ser” (EI51).
Diz Jacques Rolland que esta questão- obsessão?- presente desde De l´Évasion: sair
da solidão, ou melhor, do ser, só será respondida em Autrement qu´être, onde a própria
subjetividade será pensada como evasão. Em Totalité et Infini, embora não se fale mais de
hipóstase, a subjetividade ainda está calcada no modelo, por assim dizer, ‘hipostático’, o
eu ainda é o mesmo, um eu já constituído que se encontra face a face com o outro. Em
Autrement qu´être, o eu constitui-se na e pela aproximação do outro. “Para isso, será
preciso pensar o sujeito como, em si mesmo ou em sua subjetividade enquanto tal, já
61
‘evadido’, porque já expulso” . Esta seria, segundo Rolland, a metamorfose essencial e
decisiva operada na noção de evasão. Mas não antecipemos...
Nas páginas finais de De l´Existence à l´Existant (EE102 a 114)62, mas
principalmente em Le Temps et l´Autre, pela primeira vez, Lévinas parece apontar um
caminho de possibilidade de evasão, ou melhor, de saída do ser: para que se rompa este
círculo vicioso que vai ‘do eu ao eu’. Para sair da solidão, para sair de si e do ser, é
necessária a presença do outro, de outrem. Há uma “impossibilidade de se salvar por si
mesmo e de salvar-se sozinho.” (EE111): somente a relação com outrem separa ou “desliga
o eu de seu si” (EE106).
Mas é também preciso que este outro permaneça outro, isto é, que ele não se deixe
absorver por mim, o que significa que não posso atingi-lo pela luz ou compreensão, pela
consciência, pelo conhecimento. Para Lévinas, “não há ruptura do isolamento do ser no

61
Jacques Rolland. Prefácio a EV68.
62
Como afirma o próprio Lévinas: “A primeira metade do livro gira em torno do sujeito e, perto do fim,
aparece outrem.” In: François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., p.82.
98

saber” (EI.49). Para sair da solidão, ou melhor, do ser, há que haver um inteiramente outro,
que escapa a minha compreensão, pois com-preendendo, prendo o outro em mim, outro que
não é de modo algum um alter ego. “O conhecimento foi sempre interpretado como uma
assimilação. Mesmo as descobertas mais surpreendentes acabam por ser absorvidas,
compreendidas, com o que há de ‘prender’ no ‘compreender’” (EI52/53).
Aqui, as diferentes línguas têm algo a ensinar, o prender presente no com-preender,
o greifen (agarrar) presente no Begriff (conceito), o saisir que tem dois significados:
entender mas também agarrar: como se os conceitos ou as idéias agarrassem as coisas,
como se conhecer fosse dominar. Embora a partir de preocupações diferentes, esta mesma
temática, isto é a estreita relação entre poder e conhecimento, se encontra em Adorno e
Horkeimer, mais especificamente na Dialética do Esclarecimento, cuja primeira frase é
precisamente: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem
perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de
63
senhores” . O conhecimento é assim concebido a partir de um sujeito que tem medo
diante de um objeto a ser dominado, resultando no fato de que “Nada mais pode ficar de
fora, porque a simples idéia do ‘fora’ é a verdadeira fonte de angústia” 64.
Para Lévinas, a alteridade do outro é precisamente o que está ‘fora’, e que não pode
ser abarcado pelo sujeito do conhecimento, sob pena de perder, justamente, sua alteridade.
Na fenomenologia, o sujeito, pensado enquanto intencionalidade da consciência65, visa
apreender o objeto, isto é, se encontra na esfera do saber e do conhecimento, na qual o
Outro é com-preendido pelo Mesmo, e entra na esfera do Mesmo, retirando-lhe sua
alteridade de Outro: enquanto saber e luz, a fenomenologia não dá conta da saída da
solidão e do ser:

63
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
1985, p.19
64
Idem, p.29.
65
Na intencionalidade da consciência, sujeito e objeto se co-constituem, são correlativos. Lévinas tentará
superar esta correlação: pensar o que está ‘fora’ da consciência do sujeito, o que é lhe é exterior e
transcendente. Como se verá, é a partir da idéia do Infinito (de Descartes) que Lévinas rompe a correlação
sujeito-objeto, tornando possível “fazer mais e melhor do que pensar” (TI36).
99

“Com a ajuda de nenhuma das relações que caracterizam a luz, seria possível
entender a alteridade de outrem que deve quebrar o definitivo do eu 66 (...) A
descrição fenomenológica que, por definição não pode deixar a luz, isto é o
homem só, encerrado em sua solidão, na angústia e na morte-fim, não basta –
quaisquer que sejam as análises da relação com outrem que ela traz. Como
fenomenologia, ela permanece no mundo da luz, mundo do eu só que não tem
outrem como outrem, para quem outrem é um outro eu, um alter ego conhecido
pela simpatia, isto é, pelo retorno a si mesmo.” (EE102)

A relação com a alteridade não passa pelo saber, pelo intelecto, ou por qualquer
esforço de empatia ou comunhão67, mas diz respeito à simples presença do outro, que
talvez exija uma certa ‘desistência’, desistência de querer agarrar o outro no meu universo
organizado, um certo ‘curvar-se’, para não dizer ‘entregar-se’ a uma presença que me exige
e ao mesmo tempo me escapa.
Talvez aqui, valha a pena evocar novamente Clarice Lispector, em A Descoberta do
Mundo, no qual está escrito:

“Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E


dissesse: cure meu filho. Eu diria; como é que se faz? Ela responderia: cure
meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então
porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite
– então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou
sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim,
porque tenho duas mãos para sacrificar a melhor delas e porque não tenho
escolha.” 68

Estar “sozinha na noite de outra pessoa” é não ter outra escolha além de estender a
melhor das duas mãos que se tem para salvar outrem. Para Lévinas, isto quer dizer: ser
perdoado. Sem entrar na discussão, aliás, essencial, acerca do perdão69, pode-se dizer, um

66
Aqui, modifiquei a tradução. Em francês: “À l´aide d´aucune des relations qui caractérisent la lumière, il
n´est possible de saisir l´altérité d´autrui qui doit briser le définitif du moi”. A tradução publicada me
pareceu francamente incorreta: “Não é possível apreender a alteridade de outrem que deve romper o
definitivo do eu, sem a ajuda das relações que caracterizam a luz”. Trata-se do oposto: com a ajuda de
nenhuma ...
67
A este respeito, pode-se lembrar aqui a crítica de Benjamin ao conceito de empatia que Dilthey tanto
apreciava. Cf. Walter Benjamin. Sobre o Conceito da História, in: Obras Escolhidas, Volume I, Magia e
Técnica, Arte e Política, São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Há
também a tradução de Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller in: Michael Löwy. Walter Benjamin:
aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo editorial,
2005.
68
Clarice Lispector. A Descoberta Do Mundo, op.cit., p. 128.
69
Cf. Luci Buff. Horizontes do perdão a partir de Paul Ricoeur e Jacques Derrida. Tese de doutorado. São
Paulo: PUCSP, 2008.
100

tanto ‘à queima roupa’, que conseguir sair de si para atingir outrem constitui um dos modos
do perdão, um dos possíveis modos de ser perdoado: “atingir outrem” é sair de si, é “ser
perdoado”. Seria demais ver aqui uma certa antecipação da concepção do sujeito como
refém do outro ou da subjetividade pensada como substituição?

“Atingir outrem não se justifica por si mesmo. Não é sacudir meu tédio.
Ontologicamente, é o evento da mais radical ruptura das próprias categorias do
eu, pois é, para mim, estar alhures e não em si mesmo; é ser perdoado, é não ser
uma existência definitiva. A relação com outrem não pode ser pensada como um
acorrentamento a um outro eu; nem como a compreensão de outrem que faz
desaparecer sua alteridade, nem como a comunhão com ele em torno de algum
terceiro termo.” (EE102)

Mas o que significa atingir outrem? Já nestas páginas finais de De l´Existence à


l´Existant, que introduzem a temática do tempo, Lévinas antecipa: não se trata de estar com
o outro, mas face ao outro; a relação com o outro aponta mais uma desigualdade: relação
assimétrica e não recíproca: relação de paternidade e não de fraternidade, que põe em
relevo “a heterogeneidade do eu e de outrem” (EE114). Relação na qual o outro não é meu
alter ego, mas:

“Ele é o que eu não sou: ele é o fraco enquanto sou o forte; ele é o pobre; ele é
‘a viúva e o órfão’. (...) Ou então ele é o estrangeiro, o inimigo, o poderoso. O
essencial, é que ele tem esta qualidade em virtude de sua própria alteridade. O
espaço intersubjetivo é inicialmente assimétrico.” (EE113)70

O inimigo e o poderoso também são figuras da alteridade, no entanto ganham


destaque, na obra de Lévinas, as figuras bíblicas do pobre, da viúva, do órfão, do
estrangeiro: elas, por assim dizer, personificam a alteridade, precisamente por sua falta de
recursos ou fragilidade, isto é, pela necessidade que têm do outro. Na obra de 1961, escrita
quinze anos mais tarde, são precisamente estas figuras da alteridade e da fragilidade que
retornam: “Outrem que me domina na sua transcendência é também o estrangeiro, a viúva e
o órfão, em relação aos quais tenho obrigações” (TI193).

70
A este respeito, cf. o artigo de Ilana Viana do Amaral: “A quatríade profética interpela a quadrindade: do
escuta do ser à aproximação do próximo. A ética como filosofia primeira contra a ontologia fundamental.”
Manuscrito.
101

Personagens da alteridade que significam a assimetria da relação com outrem: o


espaço intersubjetivo é assimétrico precisamente pela alteridade do outro, que não me
permite conhecê-lo ou reconhecê-lo, compreendê-lo, apreendê-lo. É propriamente esta
assimetria que possibilita a evasão, a saída de si, sair do ser: “É no eros que a
transcendência pode ser pensada de uma maneira radical, que ela pode trazer ao eu preso
no ser, retornando fatalmente a si, outra coisa que não esse retorno, desembaraçá-lo de sua
sombra.” (EE114). A ultrapassagem de si e do ser é possibilitada pelo Eros, quer dizer: no
amor e na filiação, temas privilegiados em seu próximo livro: Le Temps et l´Autre. Importa,
no entanto, investigar o próprio título, isto é a relação entre o tempo e o outro.

3. Do tempo ao outro como Eros:

Le Temps et l´Autre é um livro constituído por quatro conferências apresentadas


em 1946/1947, no Colégio Filosófico fundado por Jean Wahl. Logo na abertura, Lévinas
apresenta sua tese central: “O tempo não é o fato de um sujeito isolado e solitário, mas é a
própria relação do sujeito com outrem” (TA17). Esta frase, embora bastante enigmática,
tem o mérito de nos introduzir, por assim dizer, de chofre, nesta questão – ou novamente
deveria se falar em obsessão? - tão cara a Lévinas: o outro, ou como se dirá mais tarde,
outrem. É assim o tema da temporalidade que permitirá a Lévinas abrir a porta ao outro.
Tema que, se é explicitamente exposto nesta obra de 1947, igualmente aparece nas páginas
finais de De l´Existence á l´Existant (EE103 a 114): nelas, antecipando a obra futura,
embora quase contemporânea, o tempo já não pode ser pensado sem o outro.
Lévinas contrapõe, bem ao gosto benjaminiano71, a uma concepção linear e
cronológica do tempo, um tempo no qual os instantes não se sucedem harmoniosamente,
mas irrompem e rompem a linha do tempo, surgindo, a cada instante, como novos, como
outros. O tempo não como sincronia, mas como diacronia: o instante seguinte não é
continuação do instante anterior, mas “ressurreição”:

“Trata-se de perguntar se o evento do tempo não pode ser vivido mais


profundamente como a ressurreição do insubstituível instante. No lugar do ‘eu’

71
Cf Walter Benjamin. Sobre o Conceito da História, in: Obras Escolhidas, Volume I, Magia e Técnica, Arte
e Política, op.cit. Cf. também a tradução de Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller in: Michael
Löwy. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, op.cit.
102

que circula no tempo, colocamos o ‘eu’ como o próprio fermento do tempo no


presente, o dinamismo do tempo.(...) Exigência de um recomeço de ser e, em
cada recomeço, esperança de seu não-definitivo. O ‘eu’ não é o ser que, resíduo
de um instante passado, tenta um instante novo. Ele é essa exigência do não-
definitivo. A ‘personalidade’ do ser é sua própria necessidade do tempo como
de uma fecundidade milagrosa no próprio instante pelo qual ele recomeça como
outro.” (EE110/11)

O tempo sincrônico, no qual os instantes se sucedem, “de forma que em cada


instante o ‘eu’ se reencontra consigo mesmo (...) é um mesmo tempo ou tempo do mesmo”
72
. É somente na dimensão temporal diacrônica que se pode falar de alteridade: cada
instante é novo, outro, sem medida com o instante anterior, e a cada novo instante, o ‘eu’
pode surgir como novo ‘eu’, como outro ‘eu’.

“A alteridade absoluta do outro instante (...) não pode se encontrar no sujeito que
é definitivamente ele próprio. Essa alteridade só me vem de outrem. (...) Se o
tempo é constituído por minha relação com outrem, ele é exterior ao meu
instante, mas ele também é outra coisa que não um objeto dado à contemplação.
A dialética do tempo é a própria dialética da relação com outrem.” (EE111)

A despeito desta antecipação, e da quase simultaneidade entre as obras citadas,


parece haver uma espécie de salto entre uma e outra. Encontramos em ambas, as mesmas
teses de partida da obra de Lévinas, isto é, o ser como excesso e como mal, a necessidade
de evasão, mas também novas postulações, tais como o il y a e, na hipóstase, o surgimento
de um nome, de um existente no seio da existência anônima, sem nome, a-substantiva. A
saída do ser, desejada em De l´Évasion, vislumbrada em De l´Existence à l´Existant, toma
forma mais consistente em Le Temps et l´Autre, a partir da tematização da temporalidade.
Aqui Lévinas se põe a pensar sobre o tempo: o tempo é aquilo sobre o qual eu não
posso poder. Portanto é paradigma da alteridade, sobre a qual, justamente, eu não posso
poder. Permite assim sair da solidão e deste mal que é o ser. Como isto é possível? Só é
possível se algo de outra ordem, totalmente fora e exterior a mim vem, por assim dizer,
‘bagunçar’ o meu ser tranqüilo e grudado a mim: somente o que é absolutamente outro
pode me fazer sair do mesmo. Só aquilo que não posso prender, segurar, controlar, fazer
caber em mim pode me fazer sair de mim mesmo: isto é, somente fora da luz do

72
Marcio Luis Costa. Lévinas. Uma introdução. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 90
103

conhecimento e da razão, diante do mistério do absoluto desconhecimento, o sujeito pode


ser desapossado de si.
Diante da morte, por exemplo, o sujeito experimenta o desconhecimento absoluto,
pois está diante de algo que não vem dele, e sobre o qual ele nada pode, ele “perde seu
domínio próprio de sujeito” (TA62). A aproximação da morte é “uma experiência de
passividade.” (TA57), que “indica que estamos em relação com algo que é absolutamente
outro, algo que porta a alteridade (...) algo cuja experiência mesma é feita de alteridade.
Minha solidão, assim, não é confirmada pela morte, mas quebrada pela morte.” (TA63)73
A proximidade da morte é um acontecimento da ordem do mistério, pois ele não
pode ser nem antecipado, nem apreendido, nem pode entrar num presente (Cf.TA65).
Assim como a morte, o tempo abre as portas para a alteridade, pois : “O que não é, de
nenhum modo apreendido, é o futuro. (...) O futuro, é o outro. O futuro é a relação mesma
com o outro. Falar de tempo num sujeito solitário, falar de uma duração puramente pessoal,
nos parece impossível” (TA64). O tempo é, assim, paradigma da alteridade.
Mas na morte o eu se anula, daí a questão: “O ente poderia entrar em relação com o
outro sem deixar esmagar pelo outro seu si mesmo?” (TA65). É possível uma relação com
a alteridade na qual o eu não seja anulado, como na morte, ou absorvido pelo outro como
no êxtase? Não se trata, portanto, nem de morte nem de êxtase, mas de uma relação na
qual o eu se encontra diante de algo sobre o qual não possa poder, impotente e passivo. Que
relação seria esta, se pergunta Lévinas:

“Esta situação na qual o acontecimento acontece a um sujeito que não o assume,


que não pode poder nada em relação a ele, mas na qual no entanto ele está face a
ele de algum modo, é a relação com outrem, o face a face com outrem, o
encontro com um rosto que, ao mesmo tempo, oferece e oculta outrem. O outro
assumido – é ‘outrem’” (TA67 – grifo meu)74

Sublinho este último trecho pois, nele, já se encontra o léxico predileto, por assim
dizer de Lévinas: outro, outrem, face a face, e, notadamente, a palavra chave que se
encontrará 12 anos mais tarde, em Totalité et Infini: visage, ou seja, rosto. Além disso, a

73
Mais um importante distanciamento em relação a Heidegger. Ao “ser para a morte” heideggeriano, Lévinas
oporá o “ser para o outro”. Cf. o artigo “Morrer por...” In: Emmanuel Lévinas. Entre nós. Petrópolis:
Editora Vozes, 1997, p.250 a 262.
74
“Cette situation où l´évènement arrive à un sujet qui ne l´assume pas, qui ne peut rien pouvoir à son égard,
mais où cependant il est en face de lui d´une certaine façon, c´est la relation avec autrui, le face-à-face avec
autrui, la rencontre d´un visage qui, à la fois, donne et dérobe autrui. L´autre ‘assumé’ – c´est autrui.”
104

última frase anuncia uma sutil diferenciação entre outro e outrem, diferença esta que foi
apontada como essencial por um dos eminentes comentadores de Lévinas: o outro,
enquanto absolutamente outro, sem medida comum comigo, é outrem.75
Outrem que é procurado, não mais na morte, mas no Eros, “Penso na relação erótica
que nos fornece o protótipo. O Eros, forte como a morte, nos fornecerá a base da análise
desta relação com o mistério” (TA64). Ao “ser para a morte” de Heidegger, Lévinas
responde com o “ser para o outro”: decisiva ultrapassagem da alteridade da morte pela
alteridade erótica76. A relação erótica - mais especificamente, com o feminino - e a relação
de filiação, poderiam ser pensadas como relações com o mistério, pois nelas me encontro
face a face com o outro, um outro totalmente estranho a mim, fora de mim, totalmente
outro, e sobre ele não só não tenho poder algum, como ainda mais, não posso poder, não
tenho o poder de ter poder; ele me escapa, me ultrapassa, ele me retira de meu lugar ao sol,
a ele me dobro, pois não tenho outra escolha. Eros e Filiação: duas figuras da alteridade.
Assim, entre De l´Existence à l´Existant e Le Temps et l´Autre77, ‘algo’ aconteceu:
um salto, que poderia se inscrever numa certa despedida da fenomenologia, cuja
necessidade, como se viu, é apontada pelo próprio Lévinas. Diferentemente de em De
l´Évasion e De l´Existence à l´Existant, ele parece centrar menos sua atenção nas análises
fenomenológicas de estados como a vergonha, a náusea, a preguiça, o cansaço, a insônia,
etc... abandonando o registro descritivo para pensar sobre o tempo. Para pensar, como direi,
de modo mais, por assim dizer, ‘abstrato’. Sem dúvida, este léxico não é muito apropriado
– a palavra ‘abstrato’ talvez não se aplique de modo adequado. O que tento dizer aqui é que
Lévinas parece abandonar as descrições de estados existentes para pensar a partir de
metáforas: Eros e Filiação. Sem dúvida, estes podem ter representantes na realidade das
coisas, podem se objetivar, mas mais do que estados, são possibilidades de existência que,
concretizadas ou não, têm um lugar na existência. Poder-se-ia pensar as duas figuras

75
Cf. Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas. Paris: Ellipses Editions, 2002,
p.8.
76
Ver a este respeito, o supracitado artigo de Lévinas em Entre Nós: “Morrer por...”. Noto que a relação
erótica também será por sua vez ultrapassada pela ética: em Totalité et Infini, o Desejo erótico será
substituído pelo desejo metafísico, como indica o belo e preciso título do ensaio de Ilana do Amaral: “Do
Eros a Ética: caminhos do Desejo nos ditos e dizer de E. Lévinas.”
77
Talvez seja mais preciso dizer: entre as páginas iniciais e finais de De l´Existence à l´Existant (mais
precisamente ainda: a partir da p.102), algo aconteceu. Como se Lévinas tivesse escrito De l´Existence à
l´Existant em dois tempos: um primeiro a partir do próprio horizonte de De l´Existence à l´Existant, e um
segundo, com os olhos já voltados para Le Temps et l´Autre!
105

paradigmáticas da alteridade, isto é, a Mulher e o Filho como “personagens conceituais”,


aqueles mesmos dos quais falam Deleuze e Guattari78 – evidentemente, sob os protestos de
seu próprio criador, cujo projeto é o de ir para além do ser, e do conceito que diz este ser.
Ao mesmo tempo em que Lévinas se distancia das descrições fenomenológicas, ele
também encontra uma via de saída do ser: a do outro, ou de outrem. No entanto, como nota
Ilana Viana do Amaral, ele “busca ainda um ser que detenha a alteridade a título positivo,
encontrando-o, no âmbito da relação erótica, no feminino”79. Sem querer levantar nenhuma
bandeira feminista, me parece bastante evidente que colocar o feminino como figura da
alteridade só é possível a partir de um ponto de vista masculino. Devo confessar que estes
trechos de Le Temps et l´Autre, notadamente os que Lévinas dedica à figura do feminino,
me deixam pouco à vontade. Cito um deles: “O modo de existir do feminino é o de se
esconder, e este fato de se esconder é precisamente o pudor” (TA79). O pudor faria parte
de uma essência ou substância feminina? Não deveria Lévinas – e especialmente Lévinas –
dessubstancializar? Causa estranheza que um pensador do ‘para além da essência’ pareça
estar, de algum modo, buscando uma certa essência feminina. E mais: porque se, no face a
face com o outro, este outro não tem medida comum com o eu, haveria medida comum
entre as mulheres? Ou, para dizê-lo de mais espirituoso, como o faz Ilana Viana do Amaral:
“alguém pode seriamente pensar que apresentar o feminino como alteridade, embora mais
simpático que o retrato daquela Xantipa rabugenta de Platão, no Fédon, é por isso menos
misógino e universalista que aquele?” 80
É bem verdade que Lévinas abandona posteriormente a identificação do feminino e
da alteridade, como ele próprio declara numa entrevista realizada em 1982: “outrora eu
pensava que a alteridade começa no feminino. É, efetivamente uma alteridade muito
estranha: a mulher não é nem o contraditório, nem o contrário do homem” (EN131). Mas
apenas para ‘situá-la’ na interioridade: “A mulher é a condição do recolhimento, da
interioridade da Casa e da habitação” (TI138).

78
Gilles Deleuze e Felix Guattari. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. “A filosofia não é
contemplação nem reflexão nem comunicação, mas fabricação, criação, invenção de conceitos; estes “têm
necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição” (p.10). Para uma melhor
compreensão, reenvio ao capítulo sobre personagens conceituais (p.81 a 109)
79
Ilana Viana do Amaral. “A quatríade profética interpela a quadrindade: do escuta do ser à aproximação do
próximo. A ética como filosofia primeira contra a ontologia fundamental.” Manuscrito.
80
Ilana Viana do Amaral. “Do Eros a Ética: caminhos do Desejo nos ditos e dizer de E. Lévinas.” In:
Kalagatos, op.cit., p.83.
106

Prefiro os trechos nos quais Lévinas fala da relação amorosa, ou erótica, nos termos
de uma não posse e não fusão:

“É somente mostrando no que o eros difere da posse e do poder, que podemos


admitir uma comunicação no eros. Ele não é nem luta, nem fusão, nem
conhecimento. É preciso reconhecer seu lugar excepcional entre as relações. É a
relação com a alteridade, com o mistério, isto é, com o futuro. (...) Là onde
todos os possíveis são impossíveis, là onde não se pode mais poder, o sujeito
ainda é sujeito pelo eros. O amor não é uma possibilidade, ele não se deve a
nossa iniciativa, ele é sem razão, nos invade e nos fere e, no entanto, o eu
sobrevive nele.” (TA81/82) 81

Mais interessante também me parecem ser suas páginas acerca da filiação:

“A paternidade é a relação com um estrangeiro que, ao mesmo tempo em que é


outro, é, também, ‘eu’; a relação do eu com um si próprio, que é no entanto
estrangeiro a mim.(...) Eu não tenho meu filho; eu sou, de algum modo, meu
filho.(...) A alteridade do filho não é a de um alter ego. A paternidade não é uma
simpatia pela qual eu posso me colocar no lugar do filho. É pelo meu ser que
sou meu filho e não pela simpatia” (TA85/86)82

Feminino e paternidade, figuras que se desvanecerão em Totalité et Infini, para dar


lugar à metáfora do Rosto, ultrapassando assim a busca de uma positividade na alteridade.
Esta ultrapassagem parece andar par a par com um certo abandono da ontologia em direção
à ética. Rosto e ética: duas noções inauguradas em Totalité et Infini e incontornáveis na
trajetória de Lévinas.

81
“C´est seulement en montrant ce par quoi l´eros diffère de la possession et du pouvoir, que nous pouvons
admettre une communication dans l´eros. Il n´est ni une lutte, ni une fusion, ni une connaissance. Il faut
reconnaître sa place exceptionelle parmi les relations. C´est la relation avec l´altérité, avec le mystère, c´est-
à-dire avec l´avenir (...) Là où tous les possibles sont impossibles, là où on ne peut plus pouvoir, le sujet est
encore sujet par l´eros. L´amour n´est pas une possibilité, il n´est pas dû à notre iniciative, il est sans raison,
il nous envahit et nous blesse et cependant le je survit en lui.”
82
“La paternité est la relation avec un étranger qui, tout en étant autrui, est moi; la relation du moi avec un
moi-même, qui est cependant étranger à moi. (...) Je n´ai pas mon enfant; je suis en quelque manière mon
enfant. (...) L´altérité du fils n´est pas celle d´un alter ego. La paternité n´est pas une sympathie par laquelle
je peux me mettre à la place du fils. C´est par mon être que je suis mon fils et non par la sympathie.”
107

4. Totalidade e infinito: Rosto e ética 83

Talvez valha a pena mencionar o histórico deste trabalho que marcou uma virada na
vida e obra de Lévinas, não somente permitindo que este tenha acesso a Universidade,
como também tornando-o conhecido no mundo das letras filosóficas. Este prestígio – pois a
fama veio muito mais tarde – não se deu sem percalços e hesitações. Segundo conta seu
filho Michael em depoimento a Malka, este livro quase foi rasgado pelo autor, por ter sido
84
recusado pelo editor da Gallimard, Brice Parrain . Foi Jean Wahl, mais uma vez, que
prestou socorro a Lévinas, aconselhando-o a não publicar, e a apresentá-lo thèse d´État ou
exame de Estado, isto é, como tese para poder dar aula na universidade. Na banca, o
comparecimento de grandes figuras, tais como Jankelevitch, Gabriel Marcel, Blin, Jean
Wahl, Blanchot e Ricoeur. Este último, segundo Lescourret, teria comentado: “De agora
em diante, deve-se contar com Lévinas”85. E parece que de fato, Ricoeur não esqueceu
Lévinas, passando a convidá-lo freqüentemente: em conferências, nos colóquios Castelli,
ou nos encontros com o Papa João Paulo II, em Castel Gandolfo, para dar aulas em
Nanterre, etc.
Também foi através de Ricoeur que Derrida conheceu Totalité et Infini86,
acontecimento decisivo que não somente contribuiu para a divulgação da obra de Lévinas
como também foi essencial na trajetória deste: o artigo “Violence et Métaphysique. Essai
sur la pensée d´Emmanuel Lévinas”87 foi resultado de uma leitura atenta e crítica de
Totalité et Infini, e parece ter sido em parte responsável pelo ‘salto’ operado entre esta obra

83
Como indica o título, não se tratará aqui de abordar todos os temas presentes em Totalité et Infini. Deixando
propositadamente de lado as análises fenomenológicas da morada, da interioridade e daquilo que Lévinas
denomina “economia”, me concentrarei nos trechos relativos ao Rosto e à Ética (p.173 a 197), os dois
conceitos fundamentais inaugurados nesta obra, não sem fazer algumas incursões no trecho intitulado
“Metafísica e Transcendência” (p.21a39), na medida em que, como se verá, a metafísica para Lévinas está
indissoluvelmente ligada à ética, e a noção de Rosto não pode ser pensada sem a de transcendência.
84
Cf. Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.271
85
Marie-Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.218
86
É o próprio Derrida que lembra o acontecido in: François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit.,
p. 256. Dosse lembra também que, na ocasião da morte de Lévinas, Derrida pronunciou um elogio fúnebre,
o que o reaproximou de Ricoeur (p.751). Tal elogio foi publicado e traduzido em português: Jacques
Derrida. Adieu à Emmanuel Lévinas. Paris: Éditions Galilée, 1997. Tradução brasileira de Fábio Landa e
Eva Landa. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004. Acerca das relações entre Derrida e
Ricoeur , ver também o belo artigo de Jacques Derrida. “La Parole. Donner, Nommer, Appeler.” In: Cahiers
de L´Herne. Paul Ricoeur. Paris: Éditions de l´Herne, 2004, p.19 a 25.
87
Cf. Jacques Derrida. “Violence et Métaphysique. Essai sur la Pensée d´Emmanuel Lévinas”. In: L´Écriture
et la Différence, op. cit., p. 117 a 228.
108

de 1962 e a de 1974: Autrement qu´être. Lévinas se referiu a este artigo como um


“assassinato sob narcose”88. Vale aqui igualmente evocar seu espirituoso comentário
dirigido ao próprio Derrida: “No fundo, você me recrimina por ter tomado o logos grego,
como se toma um ônibus, para descer”89.
Mas como é totalmente injusto iniciar a apresentação de uma obra a partir das
críticas a ela dirigida, deixo de lado, por ora, o artigo de Derrida para me concentrar no
próprio texto de Lévinas, quer dizer, em primeiro lugar pensar acerca de seu elucidativo
título: Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a Exterioridade.90
Como nota Jacques Rolland, o “e” que liga Totalidade a Infinito, não significa uma
conjunção, mas marca uma oposição: à Totalidade, Lévinas opõe o Infinito91, retomando a
crítica à noção hegeliana de totalidade, que ele encontra “pela primeira vez” (EI67) em
Stern der Erlösung de Franz Rosenzweig, autor “demasiadas vezes presente neste livro
para ser citado” (TI15)92. Já nas primeiras páginas desta obra monumental, escrita no fronte
balcânico, na Primeira Guerra Mundial, sob a forma de cartões postais que Franz
Rosenzweig enviava à sua mãe, pode-se ler:

“Não queremos uma filosofia que se coloca a reboque da morte e que nos
engana acerca de seu reino duradouro graças aos acordos universais e unos de
sua dança. Não queremos a ilusão do todo. Se a morte é ‘alguma coisa’, então

88
Cf. Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.318 a 320.
89
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et La Trace, op.cit., p.185. Cf. também p. 181 e 184.
90
É preciso aqui notar, não sem certa surpresa, que a tradução portuguesa simplesmente omitiu o subtítulo!
91
Cf. Jacques Rolland. “L´Ambiguité comme façon de l´Autrement. In: Emmanuel Lévinas. Éthique Comme
Philosophie Première, op.cit., p. 428. E também: “Un chemin de Pensée”. In: Rue Descartes. Emmanuel
Lévinas. Paris: PUF, 1998, p. 41. Me pareceu muito interessante trabalhar um texto a partir de seu título,
como o faz J. Rolland nestes dois ensaios, motivo pelo qual “imito” aqui este modus operandi.
92
Lévinas conheceu a obra de Rosenzweig desde 1935, e nela encontrou fonte inesgotável de inspiração:
Sem dúvida, encontra-se neles uma convergência de temas, tais como o rosto do homem e o rosto de Deus,
“o pensamento que fala”, o tempo não cronológico, a ruptura da totalidade, a revelação (que se dá na
relação entre Deus e o homem), a salvação e a redenção (que não vem de Deus e sim do próprio homem), as
relações entre judaísmo e cristianismo, etc... Mas, para além dos temas comuns, pode-se falar de uma
intimidade do pensamento. Cf. a este respeito os escritos de Lévinas sobre Rosenzweig , notadamente:
“Entre Deux Mondes. La voie de Franz Rosenzweig. In: Difficile Liberté: Paris: Albin Michel. Livre de
Poche, 1976, p.253 a 281. Como também: “Franz Rosenzweig. Une Pensée Juive Moderne”. In: Hors Sujet.
Paris: Fata Morgana/Poche, 1987. E o Prefácio ao livro de Stéphane Mosès. Système et Révélation. La
Philosophie de Franz Rosenzweig. Paris: Seuil, 1982, p. 7 a 16. Acerca das aproximações entre os dois
pensadores, consultar Stéphane Habib. Lévinas et Rosenzweig. Philosophies de la Révélation. Paris: PUF,
2005. Stéphane Mosès. Au-delà de la guerre. Trois études sur Lévinas. Paris-Tel-Aviv: Éditons de l´Éclat,
2004 (especialmente p.19 a 46). Como também Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 353
a 358.
109

nenhuma filosofia deve desviar nosso olhar com sua afirmação de que ela não
pressupõe nada.” 93

É assim, para Rosenzweig, o grito da morte que faz explodir a Totalidade. Pela
morte, o sujeito se experimenta como sujeito que não pode ser englobado na totalidade.
Mas esta também se rompe na “experiência pessoal da Revelação, em que ele descobre o
sentimento de alteridade” 94. Se, para Lévinas, a angústia da morte não é ponto de partida, o
mesmo não pode ser dito da alteridade. “A experiência irredutível da relação, parece-me,
de facto, estar noutra parte: não na síntese, mas no frente e frente dos humanos (...) O não-
sintetizável por excelência é, certamente, a relação entre os homens” (EI68/69). A relação
“frente a frente” ou, como preferem os tradutores brasileiros, “face a face”, expressão
recorrente em Lévinas, designa a relação entre um homem e outro, em sua absoluta
separação e alteridade. É pela alteridade que o Infinito quebra a totalidade. Enquanto esta é
soma, ainda que dialética, o Infinito vem quebrar o sistema, não cabe, não tem lugar, não
totaliza, mas apresenta-se como ruptura da ontologia, como saída de si e do ser, no face a
face com Outrem. “Este livro apresenta-se, pois, como uma defesa da subjetividade, mas
não a captará ao nível de seu protesto puramente egoísta contra a totalidade, nem na sua
angústia perante a morte, mas como fundada na idéia do infinito” (TI13).
É na Terceira Meditação de Descartes que Lévinas se inspira para pensar a idéia de
infinito. Este, diz Descartes, não pode ser pensado pelo homem que é finito: “Eu não teria,
todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido
colocada em mim por uma substância que fosse verdadeiramente infinita” 95. Segue-se que
eu não posso ter sido o próprio autor da idéia de infinito: esta idéia foi posta em mim por
Deus e que, portanto, seja “da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e
limitada, não possa compreendê-lo”96. Longe de fazer do infinito uma idéia ou um
conceito, ou de querer provar a existência de Deus, o que importa a Lévinas é apontar a
não coincidência entre noese e noema: “A idéia de infinito tem de excepcional o facto de

93
Franz Rosenzweig. L´Étoile de la Redemption. Traduzido do alemão por Alexandre Derczanski e Jean-
Louis Schlegel. Paris: Seuil, 1982, p. 14: “Nous ne voulons pas d´une philosophie qui se place à la
remorque de la mort et qui nous donne le change sur son règne durable grâce aux accords universels et uns
de sa danse. Nous ne voulons pas l´illusion du tout. Si la mort est ‘quelque chose’, alors nulle philosophie
ne doit désormais en détourner notre regard avec son affirmation qu´elle ne présuppose rien.”
94
Stéphane Mosès. Système et Révélation. La Philosophie de Franz Rosenzweig., op.cit., p.19
95
René Descartes. Meditações, op.cit., p. 289.
96
Idem, p. 289
110

seu ideatum ultrapassar a sua idéia” (TI36), isto é, o fato de que o que é pensado não pode
caber no pensamento, que o pensamento pensa mais do que pode conter: ele não pode
apreender, compreender, prender a idéia de infinito. É assim que se afirma a exterioridade
da idéia do infinito: “Na idéia do Infinito pensa-se o que fica sempre exterior ao
pensamento” (TI13). É propriamente isto que ensina Descartes: “A noção cartesiana da
idéia do Infinito designa a relação com um ser que conserva sua exterioridade total em
relação àquele que o pensa” (TI37). O infinito não é um objeto do pensamento, é a ele
exterior e transcendente. Trata-se de um transbordar, de uma excedência, de uma
transcendência:
“A distância que separa ideatum e idéia constitui aqui o conteúdo do próprio
ideatum. O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é
o absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode
haver uma idéia em nós; está infinitamente afastado de sua idéia – quer dizer:
exterior – porque é infinito. Pensar o infinito, o transcendente, o Estrangeiro,
não é pois pensar um objeto. Mas pensar o que não tem os traços de objeto é na
realidade fazer mais ou melhor do que pensar.”(TI36)

Fazer mais e melhor do que pensar? Esta fórmula levinasiana, freqüentemente


repetida, toca num ponto essencial das considerações de Totalité et Infini: “A diferença
entre objetividade e transcendência vai servir de indicação geral a todas as análises deste
trabalho” (TI36, em itálico no texto). Vale lembrar aqui a crítica de Lévinas à
fenomenologia, na qual, pela intencionalidade da consciência, sujeito e objeto se co-
constituem e são correlativos. É o infinito que vem romper esta correlação, uma vez que,
nele, o objeto ultrapassa, por assim dizer, o sujeito. O sujeito pensa mais do que pode
pensar. Na leitura de André Dartigues, não se trata de negar a intencionalidade, mas por
assim dizer, de ampliá-la:

“Se Lévinas rejeita a estrutura noese-noema como ‘estrutura primordial’


é, no seu modo de ver, apenas para melhor extrair o alcance verdadeiro da
intencionalidade, sua profundidade que é a ‘de ser desejo de transcendência
metafísica em direção ao outro, além de fenômeno do ser’ (TI271)” 97.

97
André Dartigues. Qu´est-ce la phénoménologie? Tradução de Maria José J.G. de Almeida. O que é
Fenomenologia. São Paulo: Centauro editora, 7a edição, sem data, p. 158
111

Nesse sentido é que “a ‘intencionalidade’ da transcendência é única.” (TI36): é uma


intencionalidade que faz mais e melhor do que pensar: é desejo do infinito e de
transcendência.
Infinito, exterioridade e transcendência se ecoam assim mutuamente, de modo que o
subtítulo: Ensaio sobre a Exterioridade vem ampliar o sentido de ‘Infinito’ no título:
Totalidade e Infinito. Por um lado, Totalidade e Interioridade, e por outro, Infinito,
Exterioridade e Transcendência. Três noções que se encontram indissoluvelmente ligadas,
como ressaltam Calin e Sebbah: “Para Lévinas, o desenvolvimento rigoroso do conceito de
transcendência, ou exterioridade, que reluz no Rosto de Outrem, se expressa pelo termo de
infinito” 98.
Se a totalidade tudo explica e engloba, pela interioridade, a realidade externa
também é capturada e reduzida, transformada no conhecido, já sabido, no que Lévinas
chama de o Mesmo: “A maneira do Eu contra o ‘outro’ do mundo consiste em permanecer,
em identificar-se existindo aí em sua casa (chez soi)” (TI25). No mundo do mesmo, estou
em minha casa: estar em sua casa significa que as coisas estão à minha disposição e eu
posso dispor delas: sobre elas tenho o poder, sobre elas posso poder. Só não posso poder
sobre o Outro: “O poder do Eu não percorrerá a distância indicada pela alteridade do
Outro” (TI26). O Outro é Absolutamente Outro, isto é, não relativo a mim, não depende de
mim, é exterior a mim, não tem medida comum comigo: “O Absolutamente Outro é
Outrem; não faz número comigo” (TI26). A alteridade de Outrem, como o infinito, é
irredutível a mim, me é exterior, me transcende. Por transcendência, Lévinas entende “uma
relação com uma realidade infinitamente distante da minha”, quer dizer: “uma relação
metafísica” (TI29), na qual o desejo pelo outro é insaciável, desejo que não pode ser
satisfeito e que cresce, por assim dizer, por sua própria insatisfação, desejo do
absolutamente outro desejo do invisível, desejo de transcendência, desejo do infinito.
Na esteira de Platão, Lévinas lembra que se deseja o que não se tem: aquele que
deseja, “deseja o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e
o de que é carente” (O Banquete, 200 e) 99 .

98
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p.37
99
Platão. O Banquete ou Do Amor. Tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcante de Souza. Rio de
janeiro, Bertrand Brasil, 7a edição, 1995, p. 150.
112

“O outro metafisicamente desejado não é ‘outro’ como o pão que como, como o
país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para
mim próprio, este ‘eu’, esse ‘outro’. Dessas realidades, posso ‘alimentar-me’ e,
em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem
faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de
pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa
inteiramente diversa, para o absolutamente outro.” (TI21)

Como nota Ilana do Amaral, o desejo pelo outro, erótico em Le Temps et l´Autre,
100
se torna, em Totalité et Infini, desejo metafísico, desejo pela alteridade de Outrem . Vê-
se que, aqui, Lévinas ultrapassa o sentido clássico ou tradicional de metafísica, definida
como um campo do conhecimento filosófico: metafísica não é apenas uma parte da
filosofia, ela “não designa portanto simplesmente uma ‘disciplina’, a raiz da árvore da
filosofia, mas qualifica a relação com a alteridade enquanto tal”101. No entanto, o próprio
uso que Lévinas faz da palavra metafísica permite opô-la à ontologia: esta se ocupa do ser e
do Mesmo, enquanto a metafísica não pode ser pensada sem a alteridade que põe em
102
questão o Mesmo, sem o infinito e a transcendência que quebram a totalidade . Pode-se
assim falar de uma reabilitação da metafísica, em detrimento da ontologia, na contramão do
programa heideggeriano:

“A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo Mesmo, de


Outrem por Mim produz-se concretamente como a impugnação do Mesmo pelo
Outro, isto é, como a ética que cumpre a essência critica do saber. E tal como a
crítica precede o dogmatismo, a metafísica precede a ontologia.” (TI30).

Eis que a metafísica se fusiona com a ética! O desejo metafísico é desejo ético.
Novamente pode ser aqui evocado Platão e a relação que estabelece entre Eros103 e Ética: o
Amor deseja o Belo, e como o que é bom, é belo, o Amor deseja o bom: “Se portanto o
Amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele
carente” (O Banquete, 201 c)104.

100
Cf. Ilana Viana do Amaral. “Do Eros á Ética: caminhos do Desejo nos ditos e no dizer de E. Lévinas.” In:
Kalagatos, op.cit., p. 80 e seguintes.
101
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p.45
102
Cf. Idem, p.45.
103
Embora Blanchot ressalte uma diferença essencial entre o Eros de Platão que seria “desejo nostálgico da
unidade perdida” e o desejo metafísico de Lévinas, “desejo daquilo com o qual jamais se esteve unido (...),
o desconhecido, o estrangeiro: outrem”. Cf. L´Entretien Infini, op.cit., p. 76.
104
Platão. O Banquete ou Do Amor, op.cit., p. 151
113

Lévinas pensa a ética a partir da perspectiva de Platão: ela é desejo do Bem. Por
isso, a ética, assim como a metafísica, não se restringe apenas a um ramo da filosofia, mas
designa propriamente a relação com a alteridade de Outrem, ou mais especificamente: “a
impugnação de minha espontaneidade pela presença de Outrem.” (TI30), que significa
precisamente o Bem.
A própria idéia de que o Bem está além da essência e do ser, Lévinas a encontra em
Platão, no fim do livro VI da República: “As coisas inteligíveis não somente devem ao bem
sua inteligibilidade, mas também lhe devem seu ser e sua essência, embora o bem não seja
a essência, mas esteja muito acima desta em dignidade e potência. (509a)” 105.

“O poder haver um mais que o ser ou um acima do ser traduz-se na idéia de


criação que, em Deus, ultrapassa um ser eternamente satisfeito de si. Mas a
noção do ser acima do ser não vem da teologia. Se não desempenhou um papel
na filosofia ocidental saída de Aristóteles, a idéia platônica do Bem assegura-lhe
a dignidade de um pensamento filosófico que, por conseqüência, não há que
reduzir a uma qualquer sabedoria oriental” (TI196).

Lévinas não poucas vezes, tanto em Totalité et Infini quanto em Autrement


qu´être106, se refere à idéia platônica do bem para além da essência, embora confesse que
nela se inspire de um modo pessoal: “Encontramos assim, à nossa maneira, a idéia
platônica do Bem para além do Ser” (TI273). À nossa maneira?107 Isto é: não em direção à
luz ou ao Sol, filho do Bem, mas em direção a Outrem.108

105
Platão. La République. Paris: Garnier Flammarion, 1966, p. 267: “(...) les choses intelligibles ne tiennent
pas seulement du bien leur intelligibilité, mais tiennent encore de lui leur être et leur essence, quoique le
bien ne soit point l´essence, mais fort au-dessus de cette dernière en force et en dignité” (509a)
106
Lê-se nas primeiras páginas de Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence: “Entre os cinco ‘gêneros’ do
Sofista, falta o gênero oposto ao ser; embora desde a República, seja questão do para além do ser” (AE13).
Ou ainda: “O para além do ser ou o outro do ser ou o outramente que ser – aqui situado na diacronia, aqui
enunciado como infinito – foi reconhecido como Bem por Platão. Que Platão tenha dele feito uma idéia e
uma fonte de luz – que importa.” (AE36)
107
Este “à nossa maneira” dá o que pensar. Lévinas foi, algumas vezes, criticado por se apropriar do
pensamento alheio para reforçar seu próprio pensamento. A relação de Lévinas com a história da filosofia
não é sem arestas, como se pode notar a partir de frases contundentes, para não dizer bombásticas tais como
“a filosofia é uma egologia” (TI31). Tal relação é objeto de análise de Jacques Rolland em Parcours de
L´Autrement. Paris: PUF, 2000, no capítulo intitulado: “À quelques instants d´éclair”, meditação acerca
deste comentário de Lévinas: “A história da filosofia, em alguns momentos de relampejo, conheceu esta
subjetividade rompendo, como que numa juventude extrema, com a essência. Desde o Uno sem o ser de
Platão e até o Eu puro de Husserl, transcendente na imanência, ela conheceu o arrancar metafísico do ser,
mesmo se imediatamente na traição do Dito, como sob o efeito de um oráculo, a exceção, restituída à
essência e ao destino, entrasse na regra e só levasse aos trás-mundos. Sobretudo o homem
nietzcheano.”(AE21)
108
Cf. Jacques Derrida. L´Écriture et la Différene, op. cit., p.127
114

A presença de Outrem põe em questão o Eu em sua tranqüilidade e mesmidade


(para usar uma expressão ricoeuriana!), pois Outrem não se apresenta para mim como um
objeto que posso prender em minha com-preensão, do qual posso dispor reduzindo-o a meu
saber sobre ele: a presença de Outrem me ultrapassa, me transcende, me abre para o
Infinito; a partir de sua aproximação, Outrem me põe diante de seu Rosto – metáfora, se
assim se pode dizer, absolutamente essencial na obra de Lévinas, notadamente em Totalité
et Infini.
Rosto, face, olhar, visão: metáforas não somente presentes na Bíblia (“a face de
Deus”), como também na filosofia: “o amado, no espelho do amante viu-se a si mesmo”
(Fedro, 255d)109. Rosenzweig, no final da Estrela da Redenção110, retoma a expressão
bíblica da “face de Deus”, face cuja visão só é possível através da aparição da face ou do
rosto do homem: como se verá, é precisamente nesta idéia que se inspira a noção
levinasiana de Rosto. 111
Mas se as metáforas ligadas à visão estão presentes na Bíblia, não se pode esquecer
que “a face de Deus” não se dá a ver: “Não poderás ver meu rosto, pois não poderá ver-me
o homem, e viver” (Êxodo 33,20). Não somente Deus não pode ser visto, como tampouco
pode ser representado, como afirma Maimônides em seus “Treze Princípios da Fé”:
“Acredito com perfeita fé que o Criador, abençoado seja Seu nome, não possui forma
corpórea e que nenhuma forma pode representá-lo”. Trude Weiss-Rosmarin, em seu livro
Judaísmo e Cristianismo: As Diferenças, cita tal princípio e comenta: “Essa convicção é
responsável pela ‘pobreza de imagens’ das sinagogas das quais toda e qualquer ‘forma’ é
banida” 112.
Nesse sentido, se na tradição filosófica grega, predominam as metáforas relativas à
visão, na judaica, o vocabulário acentua a importância da escuta: é o ouvir que é primordial,
como se pode claramente perceber pela oração fundamental do povo judeu, o Shemá, que

109
Platão. Diálogos. Ménon. Banquete. Fedro. Tradução brasileira de Dr. Jorge Paleikat. Rio de Janeiro,
Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, sem data, p. 239.
110
Franz Rosenzweig. L´Étoile de la Redemption, op.cit., p. 498/499. Cf Stéphane Mosès. Système et
Révélation. La Philosophie de Franz Rosenzweig, op.cit., p. 299 a 302.
111
Marie-Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.355. Retomo a frase de Lescourret, para novamente
sublinhar a importância de Rosenzweig na obra de Lévinas: “Encontra-se igualmente nele [Rosenzweig]
uma prefiguração do ‘rosto’, do qual Lévinas fará seu rosto sem nariz, nem sobrancelhas, nem olhos, nem
boca, conceito tão singular de sua filosofia , onde ele escuta a ressonância do primeiro mandamento, ‘não
matarás’, que chama o ser em sua responsabilidade por outrem”.
112
Trude Weiss-Rosmarin. Judaísmo e Cristianismo: As Diferenças. São Paulo: Editora Sêfer, 1996, p. 25
115

quer dizer literalmente “escuta”: “Escuta, Israel! o Eterno, é o nosso Deus, o Eterno é Um”
(Deuteronômio, VI 4). Além disso, embora Deus (ou o anjo de Deus) possa aparecer (como
113
na luta com Jacob) , o que mais aparece é a voz de Deus: Ele fala aos homens sem
intermediários e estes O escutam e Lhe respondem114.
Como se verá, os significados da noção de Rosto em Lévinas encontram-se em
consonância com a concepção bíblica do Rosto de Deus115: no limite, poderia se dizer que
o rosto é uma voz, voz do mandamento bíblico, que ordena: “não matarás”. O que Ricoeur
logo compreendeu. “O rosto não é um espetáculo, é uma voz. Esta voz me diz: ‘Não
matarás’” (SA388). Mas não nos apressemos...
O Rosto de Outrem se impõe a mim, que o acolho em sua alteridade, tal como o
hóspede116 acolhe o estrangeiro. Diz Lévinas: “a presença em face de um rosto, a minha
orientação para Outrem só pode perder a avidez do olhar transmutando-se em
generosidade, incapaz de abordar o outro de mãos vazias” (TI37) ou então: o “eu,
existência separada na sua fruição e que não acolhe o rosto e sua voz que vem de uma outra
margem, de mãos vazias” (TI194). O que pressupõe que haja um ‘eu’, já formado, já
existente, de mãos cheias, por assim dizer, que, por vontade própria, vai em direção ao
outro para recebê-lo. De fato, Lévinas fala da “orientação inevitável do ser ‘a partir de si’
para ‘Outrem’”(TI193) ou ainda: “Uma relação, cujos termos não formam uma totalidade,
só pode pois produzir-se na economia geral do ser como indo de Mim para o Outro, frente
a frente, como desenhando uma distância em profundidade – a do discurso, da bondade, do
Desejo”(TI27). A subjetividade é pensada em termos de generosidade, de recepção, de
acolhimento, de hospitalidade, como fica claro nas primeiras páginas de Totalité et Infini:

113
Genêsis XXXII relata a luta de Jacob com Deus, ou melhor, como está escrito na Torá, com “(o anjo de)
Deus”: note-se o parêntese, cuja presença sugere a ambigüidade da aparição: Deus ou (o anjo de) Deus?
Particularmente interessante é o versículo 31: “E chamou Jacob o nome do lugar: Peniel (rosto de Deus)
porque vi (o anjo de) Deus face a face, e foi salva a minha alma.”
114
Estas reflexões fazem parte de uma análise que desenvolvi em Memória e Exílio. São Paulo: Escuta, 2003,
p. 172-185, acerca do artigo de Maurice Blanchot sobre o significado de ser judeu em L´Entretien Infini,
op.cit., p. 180-190.
115
Não se deve, no entanto, esquecer, como notou Ilana Viana do Amaral, a presença do tato nas metáforas
levinasianas. Para evitar que a escuta a que se refere Lévinas possa ser ‘contaminada’ pela escuta
heideggeriana do ser, talvez deva ser lembrado que Lévinas, ao falar de “aproximação do próximo”, evoca
metáforas relativas ao tato. É bem verdade, comentou Ilana, que o Rosto é voz, mas ele é também a nudez
que se apresenta aos sentidos (o tato), aos quais também alude Lévinas.
116
A palavra exata a ser usada aqui, seria: ‘hospedeiro’ ou ‘anfitrião’, significando: aquele que recebe.
Permito-me uma licença, motivada por questões de simpatia e autorizada pelo Dicionário Aurélio, segundo
o qual hóspede pode ser tanto aquele que aloja quanto aquele que dá hospedagem.
116

“Este livro apresentará a subjetividade como acolhendo Outrem, como hospitalidade”


(TI14).117 Acolhimento e hospitalidade que se transformam em resposta e responsabilidade.
O Rosto se apresenta a mim em sua fragilidade e nudez, como possível alvo de um
assassinato, e exige de mim uma resposta, resposta da qual não posso fugir (pois a não
resposta é também uma resposta): respondendo ao Rosto de Outrem, respondo por Outrem,
isto é, me responsabilizo por ele. Esta é a relação ética por excelência, na qual a injunção
bíblica: “não matarás” se transmuta em responsabilidade infinita. Ouçamos Lévinas, neste
trecho absolutamente essencial, no qual se articulam rosto, ética e mandamento:

“Só posso querer matar um ente absolutamente independente, aquele que


ultrapassa infinitamente os meus poderes e que desse modo não se opõe a isso,
mas paralisa o próprio poder de poder. Outrem é o único ser que eu posso querer
matar. (...) Mas [Outrem] pode opor-me uma luta, isto é, opor a força que o
ataca, não uma força de resistência, mas a própria imprevisibilidade da sua
reação. Opõe-me assim não uma força maior (...), mas a própria transcendência
(...), precisamente o infinito de sua transcendência. Esse infinito, mais forte do
que o assassínio, resiste-nos já no seu rosto, é o seu rosto, é a expressão original,
é a primeira palavra: ‘não cometeras assassínio’. O infinito paralisa o poder pela
sua infinita resistência ao assassínio que, dura e intransponível, brilha no rosto
de outrem, na nudez total dos seus olhos, sem defesa, na nudez da abertura
absoluta do Transcendente. (...) A epifania do rosto suscita a possibilidade de
medir o infinito da tentação do assassínio, não como uma tentação de destruição
total, mas como impossibilidade - puramente ética - dessa tentação e tentativa.
(...) A epifania do rosto é ética” (TI177/178).

O Rosto é, por assim dizer, o próprio mandamento “não matarás”. A necessidade


mesma do mandamento atesta a possibilidade que um homem tem de matar o outro:
“Outrem é o único ser que posso matar”. Posso matar, mas ao mesmo tempo não posso
matar, pois o outro sempre me escapa: ele paralisa o meu próprio poder de poder matá-lo:
como se mesmo que eu o mate, não possa matá-lo. Em seu rosto, expressa-se o infinito da
transcendência que resiste à tentativa de assassinato. Como se Lévinas dissesse algo
semelhante a Maurice Blanchot: “O homem é o indestrutível, que pode ser destruído”118.
Ou como se Blanchot dissesse algo semelhante a Lévinas: “E no entanto, este poder que

117
Antecipando: tal concepção de subjetividade sofrerá uma reviravolta em Autrement qu´être: é a partir da
aproximação de Outrem que se dá o nascimento do sujeito.
118
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op.cit., p.192. O artigo leva o título de “O indestrutível”, e o
subtítulo “A experiência-limite”, isto é a experiência – impensável e indizível – do homem nos campos de
concentração e de extermínio, experiência sobre a qual Blanchot medita a partir do livro de Robert
Antelme: L´Espèce Humaine.
117

pode tudo tem um limite; e aquele que literalmente não pode mais nada ainda se afirma
neste limite no qual a possibilidade cessa: na pobreza, na simplicidade de uma presença que
119
é o infinito da presença humana” . O infinito da presença humana, quer dizer: o Rosto;
este, pela sua simples presença, atesta a impossibilidade do assassinato, que se revira em
responsabilidade pela morte e vida de outrem: “A epifania do rosto é ética”.
Como se pode perceber, não se trata mais de concentrar a alteridade em figuras
paradigmáticas ou “personagens conceituais”120, tais como a Mulher ou o Filho, mas de
recorrer a uma ampliação, por assim dizer, da alteridade: o Rosto121. Rosto que, para
Derrida, “é presença. O rosto não é uma metáfora, o rosto não é uma figura”122, pois “o
outro não se assinala através de seu rosto, ele é este rosto”123. E Derrida cita Lévinas:
“absolutamente presente, em seu rosto, Outrem – sem nenhuma metáfora – me faz face”124.
Somente neste me fazer face, isto é, no face a face, a face se torna rosto125. Isto significa
que não se trata do rosto propriamente dito, rosto sensível; este não deve ser entendido em
sua concretude empírica, em sua forma física, em sua fisicalidade: “Manifestar-se como
rosto é impor-se para além da forma” (TI178). Ou ainda: “O rosto de Outrem destrói em
cada instante e ultrapassa a imagem plástica que ele me deixa” (TI37). Por isto, Jacques
Rolland insiste no fato de que o rosto “não deve ser compreendido como figura ou como
fisionomia, como imagem ou como retrato”126. Rosto “sem nariz, nem sobrancelhas, nem
olhos, nem boca” ou rosto, como diz Jean Luc Marion, que está nos “olhos e os olhos em
seu centro – este ponto, negro sempre, pois se trata, de fato, de um simples buraco – a

119
Idem, p.194.
120
Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a Filosofia?, op.cit., p. 81-109.
121
A maioria dos tradutores de Lévinas, não sem razão, emprega a palavra “Rosto” para falar de “Visage”.
Encontra-se no entanto na tradução de Maria José J.G. de Almeida do livro de André Dartigues. O que é a
Fenomenologia?, a palavra “Semblante” para designar “Visage”, tradução que me pareceu muito
interessante, pois sublinha ou enfatiza a não correspondência entre o rosto propriamente físico e a
concepção levinasiana de rosto que ultrapassa a forma ou eidos, como se verá logo a seguir. Cf. André
Dartigues. O que é a Fenomenologia?, op. cit., p. 155 a 165.
122
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p.149. Num certo sentido, sim, o rosto é presença,
pois ele não significa e nem assinala nada além de si próprio, ele não é signo de outra coisa, como bem
aponta Derrida, mas ele é também ausência na medida em que abre para o infinito da transcendência, como
aliás, notou o próprio Derrida: “Somente o outro, o totalmente outro, pode se manifestar (...) numa certa
não-manifestação e numa certa ausência. Somente dele se pode dizer que seu fenômeno é uma certa não-
fenomenalidade, que sua presença (é) uma certa ausência.” (p. 135).
123
Idem, p.149.
124
Emmanuel Lévinas .”A Priori et Subjectivité” in Revue de Métaphysique et de Morale, 1962. Citado por
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p.149.
125
Cf. Idem, p.146
126
Jacques Rolland. “L´Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op.cit., p.435.
118

pupila”127. Mas não nos apressemos, pois o próprio Rolland vê aí uma certa ambigüidade,
“ambigüidade que é a estrutura mesma deste rosto”128, ambigüidade entre encarnação e
desencarnação:
“De modo que, transcendência aberta pela des-encarnação, o rosto é ao mesmo
tempo, encarnação em uma carne ou em um ‘rosto sensível’, a partir do que ele
se des-encarna ou se decompõe para ganhar sua dimensão de altura e, assim, sua
liberdade em relação ao sensível.(...) É precisamente no espaço desta
ambigüidade, é no écart (afastamento ou distância) que, no rosto, se abre ou se
écarte (afasta ou distancia) entre sua encarnação e sua desencarnação, que o
assassinato encontra sua possibilidade, e, ao mesmo tempo, sua
impossibilidade.” 129

Entre encarnação e desencarnação, ou como diz o próprio Lévinas entre “a


caricatura e a santidade” (TI177), o rosto é “nudez e desnudamento da expressão enquanto
tal, quer dizer, a exposição extrema, o sem-defesa, a própria vulnerabilidade” (EPP95).
Diante dele me curvo, pois nele habita a fragilidade do humano, fragilidade que me
perturba, me instiga, me convida à violência, e por este convite mesmo, me pede
compaixão, pedido que se transforma em ordem, em mandamento. Pode-se matar a carne,
mas não o rosto, pois ele “não é do mundo” (TI177): a tentação ou tentativa de assassinato
é interrompida pelo infinito da transcendência que se expressa no rosto de outrem, e que
me diz: “não matarás”, mandamento que se transforma em responsabilidade pelo outro.
“Como se a morte invisível a quem faz face o rosto de outrem fosse assunto meu” (EPP96),
“como se eu tivesse que responder pela morte do outro antes de ter que ser” (EPP98). A
morte invisível no rosto de outrem me olha130, me diz respeito, me concerne, e por ela
respondo, resposta que é responsabilidade pelo outro.

127
Jean Luc Marion. “L´Intentionalité de l´amour”, in: Cahiers de la Nuit Surveillée, n.3, p. 232.
128
Jacques Rolland. “L´Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op.cit., p.439.
129
Idem, p.440 : “De sorte que, transcendance ouverte par la dés-incarnation, le visage est en même temps
incarnation dans une chaire ou un ‘visage sensible’, à partir de quoi il se dés-incarne ou se décompose pour
gagner sa dimension de hauteur et, ainsi, sa liberté à l´egard du sensible. (...) C´est précisément dans
l´espace de cette ambiguïté, c´est dans l´écart qui, dans le visage, s´ouvre ou s´écarte entre son incarnation
et sa dés-incarnation, que le meurtre trouve sa possibilité – et, en même temps, son impossibilité.”
130
Embora este modo de falar soe um pouco estranho, resolvi manter a expressão “me olha” em função de sua
duplicidade na língua francesa. Lévinas diz freqüentemente: “La mort de l´autre me regarde”; “me
regarder” significa tanto “me olha” quanto “me diz respeito, me concerne” (Cf EPP96). Aqui, uma pequena
observação: de acordo com Jacques Rolland, somente nos últimos escritos de Lévinas, - portanto em
Éthique Comme Philosophie Première - a “vulnerabilidade se vê interpretada como mortalidade. Esta
qualifica o temor, que, de ‘temor por outrem’ em geral, torna-se ‘temor pela morte do outro homem’ e, para
além, ‘temor por tudo que meu existir (...) pode realizar em termos de violência e assassinato.’ Por aí se
legitima a ‘questão do direito de ser’ (...) ou da justificação do ser.” In: “Surenchère de l´éthique”. Prefácio
119

Assim é que o rosto, sem propriamente falar, me ordena, me fala, se expressa. O


que significa dizer que o rosto se expressa? Sigo aqui os passos de Derrida: “O rosto não
significa, não se apresenta como um signo, mas se expressa, dando-se em pessoa, em si”131.
E se dá no face a face, “simultaneamente como expressão e palavra. Não somente olhar,
mas unidade original do olhar e da palavra, dos olhos e da boca”132. Expressão e palavra
que são essência da linguagem e do discurso: é pela linguagem que o ‘eu’ entra em relação
com Outrem. Ecos de Maurice Blanchot: “Se há de fato separação, é função da palavra ser
o lugar do entendimento, e se há um abismo insuperável, a palavra atravessa o abismo”133.
A distância permanece, mas a palavra chega, por assim dizer, do outro lado. “Face a Face
com o outro num olhar e numa palavra que mantêm a distância e interrompem todas as
134
totalidades” . A linguagem possibilita que o Mesmo entre em relação com o Outro, de
maneira a preservar a alteridade, a transcendência, a exterioridade e a infinitude do Outro.
Relacionar-me com Outrem, “não fundindo-me com outrem, mas falando com ele.” (TI39).
Dito de outro modo: é pelo discurso que “O Mesmo, recolhido na sua ipseidade de eu – de
ente particular e autóctone – sai de si.” (TI27), não para se fundir com o Outro e assim
formar uma totalidade, mas para falar a Outrem. Na contramão de um pensamento
totalizante, Lévinas propõe um pensamento que, face ao Outro, lhe fale. Como não evocar
aqui “o pensamento que fala” de Franz Rosenzweig?135

“Melhor que a compreensão, o discurso põe em relação com o que permanece


essencialmente transcendente (...) A linguagem é uma relação entre termos

a EPP48/49. É interessante notar a reviravolta operada aqui: da angústia por sua própria morte em
Heidegger ao temor pela morte do outro em Lévinas.
131
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 150
132
Idem, p. 148. Esta referência direta, por parte de Derrida, a órgãos corporais, parece marcar o que foi dito
anteriormente acerca da presença, em Lévinas, das metáforas relativas ao corpo, entendido como tato.
Talvez se deva entender a expressão de Derrida: “dando-se em pessoa” no sentido dessa sensibilidade.
133
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op.cit., p.187.
134
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 142
135
Franz Rosenzweig, em um pequeno texto intitulado: “O novo Pensamento”, que deveria servir de prefácio
a posteriori de Stern der Erlösung, afirma que: “A diferença entre o pensamento velho e o novo, entre
pensamento lógico e gramatical, não consiste em exprimir-se em voz alta ou em voz baixa, mas na
necessidade do outro ou, o que é o mesmo no levar a sério o tempo; aqui, pensar significa pensar para
ninguém e falar a ninguém (e, se soar melhor para alguém, em vez de ninguém se pode colocar também
todos, a famosa ‘coletividade’), quando falar significa, pelo contrário, falar a alguém, e esse alguém é
sempre muito preciso e não tem apenas orelhas, como a coletividade, mas também uma boca”. Cf. Franz
Rosenzweig, Der Mensch und sein Werk, Gesammelte Schriften III, Haia, M. Nijhoff, 1983, p.151/152,
citado por E. Baccarini in: Deus na filosofia do século XX, op.cit., p.279/280. “O Novo Pensamento”
encontra-se também traduzido para o português por Jacó Guinsburg em O Judeu e a Modernidade: Súmula
do Pensamento Judeu, op.cit., p. 508 a 521.
120

separados. A um, o outro pode sem dúvida apresentar-se como um tema, mas a
sua presença não se funde no seu estatuto de tema. A palavra que incide sobre
outrem como tema parece conter outrem. Mas já se diz a outrem que, enquanto
interlocutor, abandonou o tema que o englobava e surge inevitavelmente atrás
do dito. A palavra diz-se quando mais não seja pelo silêncio guardado e cujo
peso reconhece a evasão de Outrem.(...) Falar, em vez de ‘deixar estar’, solicita
outrem.136 No discurso, a distância que se nota entre Outrem como meu tema e
Outrem como meu interlocutor, liberto do tema que por momentos retê-lo,
contesta de imediato o sentido que dispenso ao meu interlocutor. Assim, a
estrutura formal da linguagem anuncia a inviolabilidade ética de Outrem e, sem
qualquer bafio de ‘numinoso’, a sua ‘santidade’.” (TI174)

Contra Heidegger, para o qual a questão do ser é inseparável da questão da


compreensão do ser, Lévinas afirma que “a compreensão do ser em geral não pode dominar
a relação com Outrem” (TI34/35). Nesta, há algo melhor do que a compreensão que opera
uma fusão entre dois termos absolutamente separados (eu e outro), melhor do que um
discurso que toma o outro como tema e como objeto, melhor do que um pensamento que
reduz o Outro a um alter ego. Melhor, quer dizer: um discurso que fala ao Outro, que leva a
sério o Outro, que se dirige ao Outro como interlocutor, enfim um “dizer a Outrem” (TI35).
Sutil e decisiva distinção entre dois tipos de discursos: Outrem como tema e Outrem como
interlocutor. Como não ver aqui o anúncio, prenúncio, ou a antecipação de uma diferença
que se tornará essencial em Autrement qu´être: o Dito e o Dizer? De fato a questão do dizer
e do dito já se encontra presente, ainda que timidamente em Totalité et Infini, já no
prefácio:
“[a] própria essência de linguagem que consiste em desfazer, em cada instante,
a sua frase pelo preâmbulo ou pela exegese, em desdizer o que foi dito, em
tentar redizer sem cerimônias o que já foi mal entendido no inevitável
cerimonial em que se compraz o dito.” (TI17)

Se já portanto havia uma certa ‘intuição’ da diferença entre Dizer e Dito, é somente
em Autrement qu´être que esta diferença perderá sua timidez: ela será colocada no próprio
corpo, por assim dizer, de sua filosofia da subjetividade e da alteridade. Diferença

136
Em francês: “Parler, au lieu de ‘laisser être’, sollicite autrui.” (Totalité et Infini, p.212). Embora a tradução
portuguesa traduza ‘laisser être’ por ‘deixar estar’, eu teria preferido dizer ‘deixar ser’ e não ‘deixar estar’,
uma vez que se trata, mais uma vez aqui, de ‘sair do ser’: o ‘falar a outrem’ como possibilidade de evasão.
Não obstante, deve se notar, como o fez Jeanne Marie Gagnebin, que o ‘être’ francês pode significar ‘ser’
como também ‘estar’. O termo francês se revela assim mais geral, englobando indiferentemente estados
passageiros e estados permanentes ou essenciais., enquanto na língua portuguesa, a essência é mais
marcadamente diferenciada da transitoriedade. A meditar... enquanto agradeço a Talitha Ferraz de Souza a
lembrança desta lacuna francesa ou deste excessivo cuidado português!
121

essencial, que pôde também ser pensada a partir do já citado e famoso artigo de Derrida:
“Violência e Metafísica”.
Segundo Stephane Mosès: “O único que compreendeu muito rápido, muito cedo, é
Derrida.”137. Não me deterei aqui nos finos e exaustivos comentários de Derrida neste
longo texto, centrando-me na crítica acerca da linguagem, ou melhor das relações entre
linguagem e pensamento: Lévinas busca ir para além do ser e da ontologia, mas o faz numa
linguagem do ser, ontológica.
Derrida inicia seu artigo apontando as três direções que orientam toda filosofia: em
primeiro lugar, sua fonte grega, isto é o fato de que é impossível filosofar fora dos
conceitos da filosofia que são gregos; em segundo lugar, a filosofia, com Husserl e
Heidegger, tem se caracterizado por uma redução da metafísica; finalmente, a categoria da
ética é pensada a partir de uma outra instância, anterior a ela. O esforço de Lévinas
consistiria precisamente em colocar em questão estes três motivos essenciais da filosofia,
convidando-nos a “abandonar o local grego (...), em direção a uma respiração, a uma
palavra profética (...) em direção ao outro do Grego”138, a um pensamento que reabilite a
metafísica e que se sustente na primazia da ética. Mas, pergunta Derrida, “o outro do
Grego, seria o não-Grego? E sobretudo, poderia ele se denominar (se nommer) o não-
Grego?”139: a própria noção de metafísica que Lévinas quer reabilitar não seria
precisamente grega?
A filosofia de Lévinas pode ser lida como “uma vontade de explicação com a
história da palavra grega”140: trata-se de colocar em questão o saber, a compreensão, a
razão clássica, a adequação sujeito-objeto, a ontologia, para dar lugar à metafísica, à
transcendência, ao Infinito, à alteridade; no entanto ele não consegue fazê-lo senão,
precisamente, situando-se na luz. “É difícil erigir um discurso filosófico contra a luz.” 141 e
Lévinas não foge à regra: toda a linguagem de Totalité et Infini gira em torno do ser,
linguagem ontológica, linguagem do saber e da luz, linguagem espacial: termos como
epifania, separação, exterioridade, Altíssimo, etc... atestam o inconforto no qual se move o

137
Stephane Mosès citado por Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.192.
138
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p.122
139
Idem, p.122
140
Idem, p.123
141
Idem, p.126
122

pensamento de Lévinas, e talvez mais do que isso, atestam a impossibilidade de sair da luz
– para ir aonde?

“(...) Borges tem razão: ‘Talvez a história universal seja apenas a história de
algumas metáforas.’ Destas ‘algumas metáforas’ fundamentais, a luz é apenas
um exemplo, mas que exemplo! Quem o dominará, quem dirá jamais seu
sentido sem se deixar antes dizer por ele? Que linguagem jamais dele escapará?
Como se libertará, por exemplo, a metafísica do rosto enquanto epifania do
outro? A luz não tenha talvez contrário, sobretudo não a noite. Se todas as
linguagens nela se batem, somente modificando a mesma metáfora e escolhendo
a melhor luz, Borges, algumas páginas adiante, ainda tem razão: ‘Talvez a
história universal seja apenas a história de diversas entonações de algumas
metáforas.’ (A esfera de Pascal. Grifo nosso).”142

Assim, as metáforas não são instrumento da linguagem, elas não lhe são exteriores,
mas elas são a própria linguagem: o logos filosófico, indissoluvelmente ligado à estrutura
‘dentro/fora’, só pode ser dito e pensado em termos de luz, mesmo que queira se situar
além da luz. Às perguntas: porque dizer epifania para se referir a um rosto “que não é do
mundo”? Porque dizer Altíssimo para significar precisamente a superação do espaço?
Porque dizer exterioridade para se referir a uma relação não espacial? Porque dizer que “a
verdadeira exterioridade não é espacial, isto é, não é exterioridade?”143, pode-se
simplesmente responder: porque é impossível não fazê-lo. A linguagem “levanta-se com o
sol. Mesmo se ‘o sol não é nomeado, ... seu poder está entre nós.’ (Saint-John Perse)”144.
Lévinas poderia escapar desta impossibilidade se reconhecesse, a exemplo da
teologia negativa, a insuficiência do logos grego e da palavra na relação com Deus, ou
ainda, se, como Bergson, recorresse à intuição da duração em oposição à espacialização do
tempo, isto é, se nele houvesse um “desprezo pelo discurso”145. Tal não é o caso: a relação
com o infinitamente outro é discurso e palavra.

142
Idem, p.137: “Borges a raison: ‘Peut-être l´histoire universelle n´est-elle que l´histoire de quelques
métaphores.’ De ces ‘quelques métaphores’ fondamentales, la lumière n´est qu´un exemple, mais quel
exemple! Qui en dominera, qui en dira jamais le sens sans se laisser d´abord dire par lui? Quel langage y
échappera jamais? Comment s´en délivrera, par exemple, la métaphysique du visage comme épiphanie de
l´autre? La lumière n´a peut-être pas de contraire, surtout pas la nuit. Si tous les langages se battent en elle,
modifiant seulement la même métaphore et choisissant la meilleure lumière, Borges, quelques pages plus
loin, a encore raison: ‘Peut-être l´histoire universelle n´est-elle que l´histoire des diverses intonations de
quelques métaphores’ [La Sphère de Pascal. Nous soulignons].”
143
Idem, p.165
144
Idem, p.167
145
Idem, p. 170
123

De fato parece impossível, a não ser que se considere que há um écart entre
pensamento e linguagem, que se pode pensar sem linguagem, que a linguagem restringe o
pensamento, que o pensamento pode pensar mais e melhor do que a linguagem, etc..., “mas
Lévinas não nos ensinou que não se pensa antes da linguagem?”146.
Trata-se portanto de uma questão de linguagem, e uma vez que linguagem e
pensamento não podem ser dissociados, é do próprio pensamento que se trata. Derrida
aponta uma contradição essencial em Totalité et Infini, ou o inconforto de um pensamento
que quer ir para além da luz, mas que não consegue.
Derrida tem razão. E um olhar retrospectivo permita talvez dizer que Totalité et
Infini constitui um ponto de estrangulamento na trajetória de Lévinas ou na construção de
um ‘estilo Lévinas’, pois é nesta obra que a imbricação entre forma e conteúdo se apresenta
em toda sua complexidade e revela a amplitude do projeto levinasiano. Por um lado, há um
verdadeiro salto: em relação aos livros anteriores, a linguagem muda sensivelmente, assim
como o tratamento que dá a alteridade. Por outro a linguagem talvez não mude
suficientemente em relação a um pensamento que quer sair do ser, a uma filosofia que se
quer ética e não ontologia.
Na segunda parte do livro, intitulada “Interioridade e Economia” abundam as
descrições e análises fenomenológicas da morada147 e daquilo que Lévinas entende por
economia; estas se referem à interioridade, àquilo Ricoeur denominou um eu fechado em si
mesmo, que, por assim dizer, ainda não conheceu o outro, “um eu obstinadamente fechado,
trancado, separado” (SA389) que, como diz Lévinas, “ignora outrem” (TI34). Se o âmbito
descrito é o do mesmo e o do ser, o fato da linguagem permanecer no nível da ontologia
não faz problema.
A contradição aparece de modo mais contundente quando Lévinas busca descrever
ou falar daquilo que transcende o ser: por exemplo, na primeira parte do livro, intitulada o
“Mesmo e o Outro”, e que se abre com um discurso sobre Metafísica e Transcendência, não
parece restar dúvidas de que Lévinas opera um verdadeiro salto: do desejo erótico, no qual

146
Idem, p. 169
147
Ressalto aqui o trecho “A habitação e o feminino” no qual o tratamento dado à mulher não deixa de
surpreender, por parte de uma pensador que, justamente, busca ir além da ontologia! “A mulher é a
condição do recolhimento, da interioridade da Casa e da habitação” (TI138). Tal substancialização do
feminino fará Derrida comentar que Totalité et Infini não poderia, de nenhum modo, ter sido escrito por
uma mulher. “O sujeito filosófico é aí um homem”, e Derrida reenvia o leitor ao trecho sobre “A
Fenomenologia do Eros” na quarta parte do livro. L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 228, nota 1.
124

a mulher e o filho figuravam como personagens essenciais, ao desejo metafísico, no qual o


objeto do desejo – se é que ainda pode-se falar em ‘objeto’ – é precisamente a ausência de
qualquer personagem! Desejo do invisível, desejo do infinito que nunca pode se alcançar,
desejo pela alteridade de Outrem, desejo ético. Persiste no entanto o problema apontado
por Derrida: dizer que se quer alcançar o invisível é ainda estar sob a linguagem da luzes,
sob a forma da negação das luzes, mas ainda não em algum lugar que não seja nem luz nem
sombras. Em outro lugar, que não comporta luzes, nem sombras, nem lugar, nem não lugar.
Como é possível dizer isto?
Diante desta impossibilidade, Wittgenstein, no Tractatus Logico-Philosophicus,
aconselha o silêncio. “Tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente; e aquilo de que
não se puder falar deverá ser calado”148. Mas, quem não se conforma com o silêncio, deve
enfrentar a insuficiência da linguagem, ou seu limite: Lévinas é apenas um deles. A questão
de como dizer o que, em última instância, não pode ser dito, não é privilégio exclusivo
deste filósofo, mas, sim, um problema estreitamente relacionado à própria história da
filosofia e às suas origens149, a começar por Platão: nesse sentido, pode-se dizer que uma
das funções das alegorias ou dos mitos em Platão é precisamente a de vir preencher o
vácuo deixado pela linguagem racional para poder dizer o que está além da essência, o que
está além daquilo que pode ser conhecido pelo logos. Assim, por exemplo o famoso mito
da caverna permite compreender a idéia do Bem, para além do ser, idéia que, como se viu,
inspirou Lévinas ‘à sua maneira’. Também Santo Agostinho, nas Confissões, ao buscar
Deus nos “campos e vastos palácios da memória” (Livro X, 8, 12), chega à conclusão de
que mesmo estes lugares privilegiados não podem servir de morada à memória, pois esta é
uma atividade da alma cuja profundidade não pode ser traduzida em termos de espaço: a
presença divina dentro e fora da memória faz explodir as metáforas espaciais, pois: “Nessa
região não há espaço absolutamente nenhum.” (Livro X, 26, 37)150.
Se não é com o uso de metáforas que se pode escapar de uma linguagem do ser –
pois, no limite, toda linguagem é metafórica – poder-se-ia talvez dizer que as metáforas de

148
Wittgenstein citado por Denis Huissman. Dicionário de Obras Filosóficas. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 537.
149
Evidentemente tal questão não será examinada aqui em profundidade, mas apenas indicada, a partir de
afirmações que estão, em grande medida, calcadas sobre notas pessoais das aulas de Jeanne Marie
Gagnebin acerca de Platão, de Santo Agostinho e do problema do limite da linguagem.
150
Santo Agostinho. Confissões in: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 3a edição,1984.
125

um livro a outro de Lévinas vão, por assim dizer, perdendo sua ‘concretude’, o que se
verifica na terceira parte de Totalité et Infini, intitulada “Rosto e Exterioridade”. Aqui, a
alteridade não se fixa, por assim dizer nesta ou naquela figura, mas, mais genericamente,
diz respeito ao Rosto, “no limite entre a caricatura e a santidade”, entre o sensível e o
transcendente. Com a abertura para a santidade, as descrições propriamente
fenomenológicas vão perdendo terreno: numa feliz expressão, Jacques Rolland fala de uma
“contra-fenomenologia do rosto”151, embora ele também, na esteira de Derrida, lamente
termos como o de epifania do Rosto, “metáfora infeliz porque metáfora luminosa e
metáfora muito unívoca”152. Assim como Santo Agostinho, Lévinas parece lutar com as
palavras: “a epifania do infinito é expressão e discurso” – estranho assemblage de mots
contraditório em si. O discurso de Lévinas aqui, é um discurso da contradição contínua,
que põe a nu as dificuldades de uma linguagem que quer sair do ser.
Derrida tem razão, parece dizer Lévinas no prefácio à edição alemã de Totalité et
Infini, escrito em 1987:

“Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence já evita a linguagem ontológica –


ou, mais exatamente, eidética – à qual Totalité et Infini não cessa de recorrer,
para evitar que sua análise, ao questionar o conatus essendi do ser, dê a
impressão de repousar sobre o empirismo de uma psicologia.” (EN282)153

Autrement qu´être não somente evita uma linguagem ontológica, mas introduz esta
diferenciação, que fará toda a diferença, entre Dito e Dizer. Derrida perguntava “Lévinas
não nos ensinou que não se pensa antes da linguagem?” Certamente não há pensamento
sem linguagem, mas há, escreve Lévinas no mesmo prefácio, uma “linguagem de antes das
palavras”, “linguagem original do rosto humano”, “linguagem do inaudível, linguagem do
inaudito, linguagem do não-dito” (EN283), isto é: “o dizer”. Este Outro, “impensável,
impossível, indizível”154, só o é pelo dito, que trai o dizer: pelo dizer, sim, pode-se ouvir o
apelo de Lévinas para além do ser e do Logos (da tradição). E, de novo, Derrida tem razão:
“O pensamento de Lévinas não nos proporia somente uma ética sem lei, mas também uma

151
Jacques Rolland. Notas a EPP, p.118, nota 18.
152
Jacques Rolland. “L´Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op.cit., p.444
153
Tal prefácio, escrito em 18 de janeiro de 1987, não consta da tradução portuguesa de Totalité et Infini,
publicada pelas edições 70, em 1988. Mas se encontra traduzida na tradução brasileira de Entre Nós.
154
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit, p.168
126

linguagem sem frase”155. Linguagem sem frase: dizer. Ou, na expressão de Ricoeur:
“Deserto de palavras” (OUT41).
Assim, entre Totalité et Infini e Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence, se
construiu um “caminho de pensamento”156. Salomon Malka conta que Stephane Mosès
“perguntou um dia a Lévinas: ‘O que se passou entre estes dois livros? O que houve em sua
vida?’ E obteve esta resposta, sobre a qual ele continua a se interrogar: ‘Há que me tornei
bom!’”157. Desconcertante comentário, que talvez permita dizer que apesar da indubitável
importância de Totalité et infini no conjunto da obra de Lévinas, possa-se considerá-la uma
obra em andamento ou, como se diz hoje, a work in progress: “o pensamento ainda não
tinha encontrado seu léxico próprio”158.

5. Outramente que ser: a substituição e o refém

Se fosse necessário resumir em poucas palavras o tema desta obra monumental, eu


escolheria esta formulação: “Este livro interpreta o sujeito como refém e a subjetividade
como substituição do sujeito rompendo com a essência do ser” (AE282). Tese central de
Autrement qu´être formulação repetida inúmeras vezes, sob outra roupagem, desde o início.
De acordo com Ricoeur, Autrement qu´être “não oferece – não permite – nenhuma
introdução; é-se de chofre jogado in media res” (OUT16/17)159 e “tudo está dito no texto
denominado Argumento” (OUT17)160 Mas até mesmo antes do Argumento (capítulo I),
logo na nota preliminar, Lévinas explica a que veio:

“Reconhecer na subjetividade uma ex-ceção desregrando a conjunção da


essência, do ente e da ‘diferença’; perceber na substancialidade do sujeito, no
núcleo duro do ‘único’ em mim, em minha identidade sem par, a substituição a

155
Idem, p. 219
156
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p. 38.
157
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.192.
158
Jacques Rolland. “L´Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op. cit., p.444
159
Numa espécie de provocação, Ricoeur aproxima este modus operandi de Lévinas ao de seus maiores
‘adversários’: Hegel e Heidegger ! Cito: “(...) como em Hegel, negando a possibilidade de uma introdução à
filosofia que já não seja a própria filosofia, e como em Heidegger para quem a enunciação do esquecimento
da questão do ser, na primeira linha da primeira página de Ser e Tempo, vale como esboço de prefácio.”
160
Se isto é verdade, é também verdade que Lévinas, na nota preliminar de AE, diz que o livro foi escrito em
torno do capítulo IV intitulado A Substituição, “que foi o trecho central”.
127

outrem161 ; pensar esta abnegação, anterior ao querer, como uma exposição sem
trégua ao traumatismo da transcendência conforme uma suscepção mais – e
outramente – passiva que a receptividade, a paixão e a finitude; fazer derivar
desta susceptibilidade inassumível a praxis e o saber interiores ao mundo – eis
as proposições deste livro que nomeia o além da essência. Noção que não
saberia, certamente, pretender-se original, mas cujo acesso em nada perdeu de
seu antigo escarpamento. As dificuldades da ascensão – e seus fracassos e
retomadas – se inscrevem numa escrita que, sem dúvida também, atesta o ofegar
do explorador. Mas entender um Deus não contaminado pelo ser é uma
possibilidade humana não menos importante e não menos precária que tirar o
ser do esquecimento no qual ele teria caído na metafísica e na ontoteologia.”
(AE10)162

Este pequeno trecho, no limite da compreensão, lembra o comentário de Xavier


Tiliette acerca da “linguagem tarabiscotée”163 de Autrement qu´être: linguagem cheia de
preciosismos, ou de floreios, quase barroca. Tratar-se-ia apenas de uma questão de
preciosismo? Pode-se, junto com Jacques Rolland, apostar que não: para ele, os dois livros:
Totalité et Infini. Essai sur l`Exteriorité e Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence
dizem talvez a mesma coisa, mas não a dizem do mesmo modo164 – e este modo faz toda a
diferença. Decisiva diferença já anunciada nos próprios títulos dos livros: enquanto o
primeiro faz uso de substantivos: Totalidade, Infinito e Exterioridade, no segundo,
encontra-se um outro modo de dizer, expresso, precisamente, por um advérbio de modo,
um estranho advérbio: Outramente (Autrement), do qual se queixava Silvano Petrosino a

161
A palavra Autrui, usualmente traduzida por ‘Outrem’, recebeu por parte de Felix Duque, novo tratamento,
que prefere dizer: Outro-aí. Cf. Felix Duque.“Introdução à tradução espanhola de Le temps et l´autre”. El
Tiempo y el outro, Ediciones Paidós. ICE de la Universidad Autónoma de Barcelona. Barcelona, 1993. A
este respeito, comenta. Ilana Viana do Amaral, em seu artigo: “Do Eros à Ética: caminhos do Desejo nos
ditos e no dizer de E. Lévinas”. In: Kalagatos, op.cit., p.68: “A proposta de traduzir o Autrui de Lévinas
por ‘Otro-ahi’ é justificada por Felix Duque, pela ênfase no polêmico que este termo guardaria com o
Dasein heideggeriano, como ‘Ser-aí’”. Interessante e pertinente tradução, que não se adota aqui, por
prudência, isto é, para não complicar mais as já suficientemente difíceis traduções das obras de Lévinas.
162
“Reconnaître dans la subjectivité une ex-ception déréglant la conjonction de l´essence, de l´étant et de la
‘différence’; apercevoir dans la susbstancialité du sujet, dans le dur noyau de l´ ‘unique’ en moi, dans mon
identité dépareillée, la substitution à autrui; penser cette abnégation, d´avant le vouloir, comme une
exposition, sans merci, au traumatisme de la transcendance selon une susception plus – et autrement –
passive que la réceptivité, la passion et la finitude; faire dériver de cette susceptibilité inassumable la praxis
et le savoir intérieurs au monde – voilà les propositions de ce livre qui nomme l´au-delà de l´essence.
Notion qui ne saurait, certes, se prétendre original, mais dont l´accès na rien perdu de son antique
escarpement. Les difficultés de l´ascension – et ses échecs et ses reprises – s´inscrivent dans une écriture
qui, sans doute aussi, atteste l´essoufflement du chercheur. Mais entendre un Dieu non contaminé par
l´être, est une possibilité humaine non moins importante et non moins précaire que tirer l´être de l´oubli où
il serait tombé dans la métaphysique et dans l´ontothéologie.”
163
Xavier Tiliette em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.161
164
Cf. Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p. 41. A mesma frase encontra-se também em
“L’Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op.cit., p.429: “os dois títulos se mostram ao mesmo tempo
idênticos e diferentes: idênticos pois dizem a mesma coisa; diferentes pois não a dizem do mesmo modo.”
128

Jacques Rolland, “Altrimente que essere não podendo se dizer em bom italiano”165 E nem
em português! Advérbio portanto inexistente – ao menos em algumas línguas (não em
francês!) – que vem substituir a ‘exterioridade’ apontada no primeiro título e “por esta
substituição, com efeito, o próprio título do livro-tempestade anuncia a de-substantificação
e a de-substancialização que vai aí se arriscar”166 Advérbio de modo que vem significar o
“para além da essência”, e que o próprio Lévinas qualificou de “expressão bárbara”
(AE273)
O que faz Guy Petitdemange comentar que Lévinas reconhece, em seu próprio
discurso filosófico, sua estranheza: “o estranho discurso aqui empreendido” (AE281) e
assume este como fruto de um rompimento com a linguagem do ser e do saber (isto é, do
dito). “A busca de ‘uma linguagem que rompe com o saber’ (AE120, nota) se opera no
interior da ordem filosófica (‘o próprio discurso que fazemos neste momento .... discurso
que se quer filosófico... [AE242]’)”167.
A este respeito, Ricoeur parece ter visto muito claro: “As páginas consagradas à
tríade proximidade, responsabilidade e substituição são pronunciadas num tom que se pode
dizer declarativo, para não dizer querigmático, sustentado por um uso insistente, para não
dizer obsedante, do tropo da hipérbole” (OUT36). Tom declarativo e querigmático, ou, em
termos menos elegantes, discurso arrogante e autoritário – Autrement qu´être é
freqüentemente lido nesta chave: a de um discurso praticamente incompreensível, violento
e chocante, que causa certo mal estar, devido precisamente ao que Ricoeur denominou
linguagem hiperbólica, linguagem do excesso, ou mesmo “terrorismo verbal” (OUT42).
Terrorismo e violência que paradoxalmente visam a ética, o bem, ou a santidade168.
A questão é portanto: a que vem este paradoxo de uma linguagem da violência para
falar precisamente da não violência? No que este excesso e exagero poderiam se justificar?
Ou, em outras palavras, qual seria a função de uma tal linguagem hiperbólica? Não seria
um modo possível de construir uma linguagem fora do ser? Como pensar uma linguagem
que busca sair do ser, senão pelo excesso ou exagero? O próprio pensamento do para além

165
Jacques Rolland.“L’Ambiguité comme façon de l´Autrement”, op.cit., p.429
166
Idem, p.429
167
Guy Petitdemange. “Éthique e transcendance. Sur les chemins d´Emmanuel Lévinas” In: Lévinas. Édition
et présentation de Danielle Cohen-Lévinas. Paris: Bayard, 2006, p. 111.
168
Agradeço a Alexandre Leone ter me chamado a atenção para o fato de que Lévinas, em seus últimos textos
ou entrevistas, se refere cada vez mais à ética em termos de santidade, como por exemplo na entrevista
concedida a Michael de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Levinas. 1992-1994.
129

do ser e da essência não seria excessivo? É de certa forma o próprio Lévinas que responde,
ao dizer: “É o superlativo, mais do que a categoria da negação que rompe o sistema”
(AE19, nota 1). A negação não é suficiente para quebrar, por assim dizer, a linguagem: a
própria negação deve se fazer superlativa. Já Derrida tinha notado em relação a Totalité et
Infini, numa clara referência a Kierkegaard, que “a escritura de Lévinas se move sempre
(...), progredindo com maestria por negações e negações contra negação. Sua via própria
não é a de um ‘ou.... ou...’, mas de um ‘nem... tampouco’”169.
Nem afirmação pura, nem dialética, a linguagem de Lévinas é a da interrogação:
“(...) Interrogar-se sem cessar e apesar de tudo afirmar. A obra de Lévinas é escrita sob este
duplo movimento. Ele é, por um lado, o livro da questão; ‘este estudo se pergunta se todo
sentido procede da essência’(AE271)”170. Não se trata de uma destruição do discurso mas
de uma “defecção do discurso”, pois: “Lévinas critica a forma tradicional deste discurso,
mas sua admirável proeza não é ruptura. Esta forma é modificada, mas é retomada e
justificada”171.
Lévinas, aliás, ao menos em seu argumento, não faz economia dos pontos de
interrogação e, este modo interrogativo é freqüentemente associado ao modo negativo, o
que torna o texto um pouco ‘pesado’, eu diria, talvez tão ‘pesado’ quanto a carga de
responsabilidade imputada ao sujeito na sua relação com o outro até o paroxismo da
doação, da expiação, da substituição.
Por tudo isto, pode-se falar, como o faz Marie Anne Lescourret, de uma “virada
lingüística”172, na qual Lévinas consegue ir além de “nossas línguas tecidas em torno do
verbo ser” (AE14), driblá-lo, por assim dizer. Silvana Rabinovich observa que, na língua
hebraica, o verbo ser não pode ser conjugado no presente: “Para o verbo hayah, que de
forma imprecisa se traduziria pelo verbo ‘ser’, não há conjugação possível no presente”173.
Como se o ser só pudesse ser dito no passado e no futuro, ser portanto em movimento, que

169
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p.134/135.
170
Guy Petitdemange. “Éthique e transcendance. Sur les chemins d´Emmanuel Lévinas”, op.cit., p. 111
171
Idem, p. 112
172
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 357
173
Silvana Rabinovich. “Emmanuel Lévinas: a ética como filosofia primeira. Jerusalém interpela Atenas.”
Apresentação do livro de Marcio Luis Costa. Lévinas. Uma introdução., op.cit., p. 16. A partir desta
ausência primordial, a autora questiona a tradução do nome de Deus, ou do Tetragrama: Eheyé asher eheyé
- nome pelo qual Deus se apresenta a Moisés (Êxodo 3,14) - por “Sou o que Sou”. Acerca desta questão e,
em geral, da concepção de tempo do homem bíblico, ver o interessante livro de Walter I. Rehfeld. Tempo e
Religião. A experiência do Homem Bíblico. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1988.
130

não pode ser fixado no presente, que não pode se substancializar, de-substancialização e
de-substantificação que Jacques Rolland via no advérbio “outramente”. Lacuna hebraica,
mas também russa, lembra Silvana Rabinovich!
Muito se fala do que há de judeu em Lévinas, e poucos lembram do que há nele de
russo, embora ele mesmo sempre tenha feito questão de dizer que suas interrogações acerca
do sentido do humano ou do sentido da vida começaram com a leitura dos romances russos:
Puchkine, Lermontov, Gogol, Dostoïevsky e Tolstoi. (Cf.EI15). Nesse sentido, Ricoeur
talvez tenha sido uma exceção: para ele o uso da hipérbole, seria mais russo do que judaico,
como diz na entrevista concedida a Salomon Malka:

“Penso hoje que é o lado russo de Lévinas. Quando ele diz ‘Sou mais culpado
que os outros’, na minha opinião, não é judeu, é Dostoïevski, é Os Irmãos
Karamazov. O Sr. sabe que ele podia recitar de cor Pouchkine, que ele se nutria
dos grandes autores russos. A meu ver, não se dá importância suficiente a esta
influência. Isto faz parte de meu pequeno debate com ele acerca do uso da
hipérbole. Dizer mais para dizer menos, é isso a hipérbole levinasiana, mas é
uma hipérbole dostoïevskiana”174.

Linguagem russa ou judaica - exagero, excesso, hipérbole, superlativo,


interrogação: modos de dizer e de pensar o outramente, o para além do ser e da essência.
Ao contrário de Totalité et Infini, aqui, diz Jacques Rolland, “o pensamento e a prosa na
qual ele se faz estão extraordinariamente unidos”175. E, em outro artigo, o mesmo
comentador cita Lévinas para reiterar tal feliz união:

“Foi possível apresentar, desde Totalité et Infini, esta relação com o Infinito
como irredutível à ‘tematização’ (...) A linguagem ontológica, usada ainda em
Totalité et Infini para excluir a significação puramente psicológica das análises
propostas, é doravante evitada. E as análises elas mesmas, remetem, não à
experiência na qual sempre um sujeito tematiza o que o iguala, mas à
transcendência na qual ele responde por aquilo que suas intenções não
mediram.” (Signatures, DL 411/412)176

174
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 202: “Je crois aujourd´hui que c´est le
côté russe de Lévinas. Quand il dit: ‘Je suis plus coupable que les autres’, à mon avis, ce n´est pas juif, c´est
Dostoïevski, c´est Les Frères Karamazov. Vous savez qu´il pouvait réciter par coeur du Pouchkine, qu´il
était nourri des grands auteurs russes. On ne relève pas suffisamment à mon sens cette influence. Cela fait
partie de mon petit débat avec lui sur l´usage de l´hyperbole. Dire plus pour dire moins, c´est cela
l´hyperbole lévinassienne, mais c´est une hyperbole dostoïevskienne.”
175
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p. 53.
176
“Il a été possible de présenter, depuis Totalité et Infini, cette relation avec l´Infini comme irréductible à `la
‘thématisation’ (...) Le langage ontologique dont use encore Totalité et Infini pour exclure la signification
purement psychologique des analyses proposées – est désormais évité. Et les analyses, elles-mêmes,
131

Por isso, diz Rolland: “é somente graças ao abandono da linguagem ontológica que
as análises puderam passar da experiência à transcendência. De modo que o tour de
pensamento que se inventou em Autrement qu´être é indissociável do tour de escritura no
qual ele se expressa”177.
A fratura ou rachadura do conceito que Michael Lévinas vê na obra do pai178, foi
assumida no próprio interior do discurso de Autrement qu´être, resultando naquilo que Guy
Petitdemange chamou de “defecção do discurso”, defecção que não é destruição, nem
ruptura: discurso que inclui em si próprio o dito e o dizer, o discurso de Lévinas é um dito
que se desdiz continuamente, como fica claro desde as primeiras palavras do Prólogo de
Humanismo do Outro Homem: o Prólogo, diz Lévinas, não significa repetição, mas “pode
exprimir o primeiro - e urgente – comentário, o primeiro ‘quer dizer’ – que é também o
primeiro desdito – das proposições em que, atual e reunida, se absorve e se expõe, no Dito,
a inconjugável proximidade do um-pelo-outro, a significar como Dizer.” (HOH 11).
O dito do discurso é da ordem do saber e da consciência, da tematização e da
compreensão, universo da ontologia e do mesmo, na qual se toma outrem como tema. Mas
o discurso - o dito, enquanto frases com palavras - não dá conta do que se passa no
discurso, que não se esgota no efetivamente dito. Para além do dito, na relação do face a
face, o discurso também é dizer, isto é falar a Outrem, dizer do qual Lévinas, em Ética e
Infinito, fala de modo muito simples, até mesmo trivial:

“O dizer é o facto de, diante do rosto, eu não ficar simplesmente a contemplá-lo,


respondo-lhe. O dizer é uma maneira de saudar outrem, mas saudar outrem já é
responder por ele. É difícil calarmo-nos diante de alguém: esta dificuldade tem
seu último fundamento na significação própria do dizer, seja qual for o dito. É
necessário falar de qualquer coisa, da chuva e do bom tempo pouco importa,
mas falar, responder-lhe e já responder por ele.” (EI80).

E que, de modo menos trivial, significa linguagem pré-original, que ao mesmo


tempo antecede e excede a nossa linguagem tecida em torno do verbo ser, linguagem do
dito. O dito é linguagem do ser, ontologia, essência, enquanto o dizer aponta para além

renvoient non pas à l´expérience où toujours un sujet thématise ce qu´il égale, mais à la transcendance où il
répond de ce que ses intentions n´ont pas mesuré.”
177
Jacques Rolland. Prefácio a EV87/88, nota 69.
178
Cf. Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.267 a 269.
132

dela, não se traduz em palavras. O dito domina o dizer: “O destino sem saída onde o ser
imediatamente encerra o enunciado do outro do ser não se deveria à dominação que o dito
exerce sobre o dizer, ao oráculo onde o dito se imobiliza?” (AE16).
Num certo sentido, dizer e dito são correlativos, isto é, o dizer deve se submeter ao
dito, não pode prescindir de ser dito, mesmo que ao preço de uma traição: “A correlação do
dizer e do dito, isto é, a subordinação do dizer ao dito, ao sistema lingüístico e à ontologia é
o preço que a manifestação exige. Na linguagem como dito, tudo se traduz diante de nós –
ainda que ao preço de uma traição.”(AE17/18). Manifestação é traição: eis porque
permanecer nesta correlação significa precisamente reduzir o dizer ao dito, isto é passar ao
largo da significância do dizer que não pode ser englobado pelo dito e que nele não se
esgota: o dizer excede o dito, é excedência; é, no limite, Deus: “Este primeiro dizer é
certamente apenas uma palavra. Mas é Deus” (EDE330)179.
O dito é, claro, indispensável, pois é pelo dito que o ‘outramente que ser’ pode se
dizer: “Linguagem que permite dizer – ainda que traindo-o – este fora do ser, esta ex-
ceção ao ser, como se o outro do ser fosse acontecimento de ser.” (AE18). Mas o outro do
ser não é acontecimento de ser, e por isso, o dizer ultrapassa o dito.

“Anterior aos signos verbais que ele conjuga, anterior aos sistemas lingüísticos e
às cintilações semânticas – prólogo das línguas – ele é proximidade de um ao
outro, compromisso da aproximação, um para o outro, a significância mesma da
significação. (...) O dizer original ou pré-original – o tema do pré-temático –
tece uma intriga de responsabilidade. Ordem mais grave que o ser e anterior ao
ser.” (AE17)180

Sem a proximidade, sem a aproximação, sem a intriga de responsabilidade que se dá


no face a face, face ao rosto, a significação do dito perde sua significância: sem o dizer o
dito nada significa. A linguagem do dito, do ser e da ontologia, só significa num dizer que a
ultrapassa: esta excedência, que anuncia uma “ordem mais grave que o ser e anterior ao
ser” é, precisamente, a ética. Dizer e dito entretêm assim uma relação paradoxal: são, ao
mesmo tempo em que independentes, interdependentes: o dito domina o dizer, mas o dizer

179
A questão da concepção de Deus em Lévinas será retomada adiante.
180
“Antérieur aux signes verbaux qu´il conjuge, antérieur aux systèmes linguistiques et aux châtoiements
sémantiques – avant-propos des langues – il est proximité de l´un à l´autre, engagement de l´approche, l´um
pour l´autre, la signifiance même de la signification. (...) Le dire originel ou pré-originel – le propos de
l´avant-propos – noue une intrigue de responsabilité. Ordre plus grave que l´être et antérieur à l´être.”
133

escapa ao dito, este, por sua vez, parece auto-suficiente mas se torna vazio sem o dizer : é
dizer que enuncia o dito: “O ser, seu conhecimento e o dito em que ele se mostra
significam em um dizer que, em relação ao ser, faz exceção; mas é no dito que se mostram
e esta exceção e o nascimento do conhecimento.” (AE19).
Se o dito está no plano da consciência e do presente, o dizer é de antes da
linguagem e de antes do tempo, remonta a um passado mais passado que o passado, a um
tempo pré-original, anárquico, irrecuperável “pela retenção, memória, pela história”
(AE22). Passado que não pode ser tornado presente, que fica passado. “Imemoriável,
irrepresentável, invisível” (AE25): não faz mais sentido aqui falar de um tempo sincrônico,
em que os instantes se sucedem; aqui, “assinala-se um lapso de tempo sem retorno, uma
diacronia refratária a toda sincronização, uma diacronia transcendente.”(AE23). A
temporalização do tempo não deve mais ser pensada “como essência, mas como Dizer”
(AE23).
Mas o discurso sobre o outramente que ser não correria o risco de ser englobado
pelo dito que domina o dizer que o enuncia? “Um problema metodológico se coloca aqui.
Ele consiste em se perguntar se o pré-original do Dizer (se o anárquico, o não original,
como o designamos) pode ser levado a se trair mostrando-se em um tema (se uma an-
arqueologia é possível) – e se esta traição pode se reduzir” (AE19). A questão é portanto,
se o dizer torna-se ele próprio um tema, como é o caso aqui, de que modo seria possível
que o dito não dominasse o dizer a ponto de esgotá-lo, esvaziá-lo? Como é possível falar do
dizer sem que ele próprio se transforme em dito? Ou ainda: como falar do outramente que
ser, sem que este se transforme em ser outramente? Pelo desdizer, diz Lévinas: o desdizer
impede que o dizer seja dominado pelo dito: “O outramente que ser enuncia-se em um
dizer que deve também se desdizer para arrancar assim o outramente que ser ao dito em
que o outramente que ser põe-se já a significar apenas um ser outramente” (AE19).
Outramente que ser e não ser outramente, isto é passar ao outro do ser: o outro do
ser não é o não-ser, é o outramente que ser, isto é, ir para além do acontecimento de ser,
para além do esse, para além da essência: é esse o sentido de transcendência para Lévinas.
Suas primeiras palavras em Autrement qu´être são: ”Se a transcendência tem um sentido,
ela só pode significar o fato para o acontecimento de ser – para o esse – para a essência, de
passar ao outro do ser (...) Passar ao outro do ser, outramente que ser. Não ser outramente,
134

mas outramente que ser.” (AE13). Por essência (essence), Lévinas entende “o ser diferente
do ente, o Sein alemão distinto do Seiendes, o esse latim distinto do ens escolástico. Não se
ousou escrever essance como o exigiria a história da língua na qual o sufixo ance (anciã),
proveniente de antia ou de entia, deu nascimento a nomes abstratos de ação.” (AE9, Nota
Preliminar).
Trata-se então da mesma questão desde De l´Évasion: a de sair do ser, isto é, nos
termos de Autrement qu´être, ir para além da essência. Para além da essência, pois “esse é
inter-esse”. Este interesse se confirma como conatus essendi, persistência dos seres em seu
ser, egoísmos em guerra, cada qual lutando por seu lugar ao sol. “... ‘Aqui está meu lugar
ao sol.’ Eis o início e a imagem da usurpação de toda a terra”: esta expressão de Pascal que
Lévinas gostava de citar, poderia ser considerada uma espécie de leit motiv de sua filosofia
do sujeito, na qual este abandona seu lugar ao sol em benefício do outro, permanecendo por
assim dizer, na sombra – que me desculpem Lévinas e Derrida por esta expressão
demasiado solar! Trata-se, dito de forma muito simples, de dar passagem ao outro, como
quando digo, “diante de porta aberta: ‘Primeiro o senhor!’. É um ‘Primeiro o senhor!’
original que eu procuro descrever.” (EI81) Ruptura da essência, do inter-esse que se dá na
priorização ao outro.
“O eu humano é primeiro? Não seria aquele que, ao invés de se por, deve ser
‘deposto’? O verdadeiro sentido da subjetividade não consiste em ser, em vez de
substância, devoção a outrem e assim, sujeição ao próximo?”181 Dar prioridade ao outro,
renunciar a si, deposição do sujeito, subjetividade entendida não como substância, mas
como sujeição ao outro: estes são os temas essenciais de Lévinas.
Eis que aparecem novas formulações, inexistentes em Totalité et Infini: priorizar o
outro, renunciar, deposição, sujeição. Tais termos, referidos à subjetividade, indicam que
esta, em Autrement qu´être, é concebida de modo totalmente diverso. Lembremos que em
Totalité et Infini, o sujeito era pensado num primeiro tempo como constituído e, num
segundo, no face a face com o Rosto. Formulações como estas vêm confirmar este ponto de
vista, sustentado por Jacques Rolland:

“A alteridade, a heterogeneidade do Outro, só é possível se o Outro é


realmente outro em relação a um termo cuja essência é permanecer no

181
Lévinas em entrevista a Salomon Malka in: Lire Lévinas.Paris: Cerf, 1984 , p. 109.
135

ponto de partida, servir de entrada na relação, ser o mesmo não


relativamente, mas absolutamente. Um termo só pode permanecer
absolutamente no ponto de partida da relação como Eu.” (TI24).

Ou ainda: “É para que a alteridade se produza no ser que é necessário um


“pensamento” e que é preciso um Eu. (...) O pensamento, a interioridade são a própria
fractura do ser e a produção (não o reflexo) da transcendência. (...) A Alteridade só é
possível a partir de mim.”(TI27). Tal concepção de um ‘eu’ que se forma, antes do face a
face com outrem e com o rosto de outrem leva Lévinas a construir toda uma fenomenologia
da interioridade e da economia, antes de falar da Exterioridade e do Rosto. O rosto assim se
depara com o ‘eu’ da interioridade, fechado em si mesmo, em sua mesmidade. Mesmidade
interrompida num segundo momento pela presença de Outrem, isto é, pelo Rosto. Somente
a partir da impugnação do mesmo pelo outro se tornam possíveis o acolhimento e a
hospitalidade.
Tal paisagem, por assim dizer, está ausente em Autrement qu´être; não se trata mais
de um eu constituído perturbado ou transtornado por Outrem: a própria perturbação e o
próprio transtorno, provocados pelo outro, criam o ‘eu’. A grande novidade deste livro
consiste em: “inverter a ordem das prioridades e de pensar o eu humano como
originariamente – pré-originariamente, dirá precisamente o texto – obcecado por Outrem, e
somente num segundo tempo, capaz de existir num mundo que se oferece a sua captura
(prise)”182.
Assim, se em Totalité et Infini, o sujeito é um hóspede que não acolhe o outro de
mãos vazias, tal não é o caso na obra posterior, pois é a própria aproximação do outro ou
aproximação do próximo que dá nascimento ao sujeito, a partir de um seqüestro de mim
pelo outro: passa-se de hóspede a refém, do hôte ao otage.
Sujeito como refém do outro: radicalização da linguagem que, não somente vira às
avessas a concepção de subjetividade presente no livro anterior, mas também se dá a ver,
de modo mais brando, na noção de Rosto: não se fala mais em “epifania do rosto”,
expressão abandonada em favor da “ambigüidade do rosto”. Além disso, segundo Calin e
Sebbah:

182
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p.46.
136

“Se notará, sobretudo, que, desde Totalité et Infini, a vulnerabilidade do rosto é


apresentada como apelo ao assassinato invertendo-se em injunção de
responsabilidade infinita para com outrem, mas que este movimento hiperbólico
se radicaliza em Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence, a ponto de
transmutar a responsabilidade em obsessão pelo outro, e mesmo em perseguição
por ele.”183

Mas é a subjetividade que sofrerá uma reviravolta, a ponto de Lévinas ter dito a
Jacques Rolland que “Totalité et Infini é um livro sobre o outro, enquanto Autrement
qu´être é um livro sobre o sujeito”184.
As colocações de Georges Hansel em seu artigo “Éthique et politique dans la pensée
d´Emmanuel Lévinas” caminham na mesma direção: “A palavra mestra não é mais o
‘rosto’ encontrado por um sujeito já constituído, mas a ‘responsabilidade’ em relação a
outrem, uma responsabilidade que estrutura de imediato (d´emblée) o eu humano”185.
O sujeito é pensado a partir de noções incontornáveis tais como: unicidade, eleição,
passividade mais passiva que qualquer passividade, sujeição pelo outro, sujeição para o
outro e pelo outro, responsabilidade infinita pelo outro, sujeito como refém do outro,
substituição, expiação.
Para Jacques Rolland, “o que caracteriza em primeiro lugar este eu, é de ser um, (...)
esta unicidade não lhe vem de si próprio mas ele a recebe”, recebe-a do outro a partir do
que Lévinas chama de eleição, que é o fato de que Outrem se dirigiu a este sujeito
específico, que é o único portanto de deve responder, e esta resposta é “eis me” resposta de
responsabilidade186.

“(...) A individuação de mim, aquilo pelo que qual o eu não é simplesmente um


ser idêntico, uma substância qualquer, mas aquilo pelo qual ele é ipseidade,

183
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p. 61: “On notera surtout
que, dès Totalité et Infini, la vulnerabilité du visage est presentée comme appel au meurtre s´inversant en
injonction de responsabilitá infinie pour autrui, mais que ce mouvement hyperbolique se radicalise dans AE
au point de transmuer la responsabilité en obsesión de l´autre, et même en persécution par lui.”
184
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée, op.cit., p.49
185
Georges Hansel. “Éthique et politique dans la pensée d´Emmanuel Lévinas” in: Lévinas à Jerusalém , sous
la direction de Joëlle Hansel. Paris: Klincksieck, 2007, p. 153/154. O autor acrescenta, em nota que “a
palavra ‘rosto’ aparece 259 vezes em Totalité et Infini e 67 vezes em Autrement qu´être, enquanto a palavra
‘responsabilidade’ aparece 37 vezes em Totalité et Infini e 270 vezes em Autrement qu´être” (p.189, nota
4).
186
Vale a pena mencionar estas palavras de Lévinas em entrevista a Catherine Chalier: “Esta eleição é
precisamente a responsabilidade. Para mim, é uma das partes mais importantes de meu modo de ver. Às
vezes, é preciso, ao se criticar, achar algo de bom. É precisamente esta unicidade da responsabilidade.”
Disponível em <http//vídeo.google.fr> Pesquisar: Levinas. Acesso em 13/01/2009.
137

aquilo pelo qual ele é único, sem extrair sua unicidade de nenhuma qualidade
exclusiva, é o fato de ser designado ou assignado ou eleito para se substituir sem
poder se esquivar. Por esta assignação indesviável, do ‘Eu’ em geral, do
conceito, se arranca aquele que responde na primeira pessoa – eu, ou
diretamente no acusativo: ‘eis me aqui’” (DVI130)

“Eis me”: estas duas palavras concentram, por assim dizer, a subjetividade tal como
a pensa Lévinas: é resposta a um apelo ou chamado de Outrem dirigido a mim, Outrem que
assim me elege, eu, o único ser que pode responder a este apelo, resposta que cria minha
intimidade, me faz ipseidade:

“Toda minha intimidade se investe em contra-minha-vontade – para-um-outro.


Apesar de mim, para-um-outro – eis a significação por excelência e o sentido do
si mesmo, do se – acusativo que não deriva de nenhum nominativo – o fato
mesmo de reencontrar-se perdendo-se.”(AE26)187

Inaudita idéia na qual a identidade do sujeito lhe vem contra sua vontade, é
involuntária, se faz apesar e malgrado ele próprio, sem que ele possa ter escolhido: inaudita
idéia que coloca em primeiro plano o teor passivo da palavra “sujeito”. Sujeito enquanto
subjectum, isto é: o que é posto sob ou embaixo, o que está submetido a, sujeito a, exposto
a, subjugado, ou dependente188. Pela eleição, “a subjetividade (...) se passa como uma
passividade mais passiva que qualquer passividade” (AE30), ou “mais passiva que
qualquer receptividade”, expressões freqüentemente, para não dizer exaustivamente,
repetidas por Lévinas. Nesse sentido, diz Jacques Rolland, pode-se aproximar a eleição da
criação: “Passividade da eleição que só se iguala àquela da criação na qual eu sou criado

187
“Toute mon intimité s´investit en contre-mon-gré – pour-un-autre. Malgré moi, pour-un-autre – voilà la
signification par excellence et le sens du soi-même, du se – accusatif ne dérivant d´aucun nominatif – le
fait même de se retrouver en se perdant.”
188
É interessante notar que a palavra latina subjectus - ou a grega hypokeimenon.- possui várias acepções, a
maioria delas em perfeita consonância com a concepção levinasiana de subjetividade. “O Si é Sub-jectum:
ele está sob o peso do universo – responsável de tudo” (AE183). O mesmo tinha sido comentado acerca da
presença da passividade na identidade narrativa de Ricoeur. Remeto o leitor às notas 75 e 76 do capítulo
sobre Ricoeur, em que se trouxe as definições do subjectus latino, a partir de E. Sommer. Lexique Latin-
Français, op.cit., p. 418, e do hypokeimenon grego, a partir de Marilena Chauí. Introdução à História da
Filosofia. Dos Pré-Socráticos a Aristóteles. Volume I, op.cit., p. 351. Observou-se , entretanto, na ocasião,
que a noção de substância está mais claramente presente na versão grega. O que fará Jacques Rolland
afirmar que a subjetividade levinasiana não deve ser interpretada no sentido do hypokeimenon. Cf. Jacques
Rolland. Parcours de l´Autrement, op.cit., p. 275.
138

sem mesmo poder, pelo fato da diacronia que nela se inscreve, assistir ao ato pelo qual sou
criado”189.
Esta intimidade é para um outro, quer dizer, resposta: o sujeito responde de
responsabilidade para com o outro, responsabilidade também passiva - “O Si é Sub-jectum:
ele é sob o peso do universo – responsável de tudo” (AE183) – responsabilidade que não é
uma decisão minha pois também é fruto do apelo que o outro me dirige e do qual não posso
fugir.
“O paradoxo desta responsabilidade consiste em que eu sou obrigado sem que
esta obrigação tenha começado em mim – como se, em minha consciência, uma
ordem tivesse se introduzido como um ladrão, tivesse se insinuado por
contrabando (...) O que, para uma consciência é impossível e atesta claramente
que não estamos mais no elemento da consciência (...) Como se o primeiro
movimento da responsabilidade não pudesse consistir, nem em esperar, nem
mesmo em acolher a ordem (o que seria ainda uma quase-atividade), mas em
obedecer a esta ordem antes que ela se formule. Ou como se ela se formulasse
antes de todo presente possível, num passado que se mostra no presente da
obediência, sem disso recordar-se (souvenir), sem vir da memória, formulando-
se por aquele que obedece nesta obediência mesma.” (AE28)190

Não se está mais no âmbito da consciência e do dito, mas no Dizer, que “tece uma
intriga de responsabilidade”, na qual o “esse do ser se põe às avessas” (Cf. AE17). Se
Lévinas põe “o esse do ser às avessas”, é porque o sujeito não é mais pensado em termos
ontológicos, mas em termos de Dizer (Cf. AE35).

“A responsabilidade por Outrem – em sua anterioridade em relação à minha


liberdade – em sua anterioridade em relação ao presente e à representação – é
uma passividade mais passiva que toda passividade – exposição ao outro, sem
assunção desta exposição mesma, exposição sem reserva, exposição da
exposição, expressão, Dizer” (AE31)191

189
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p.46.
190
“Le paradoxe de cette responsabilité consiste em ce que je suis obligé sans que cette obligation ait
comencé en moi – comme si en ma conscience un ordre s´était glissé en voleur, s´est insinué en
contrebande (...) Ce qui pour une conscience est impossible et atteste clairement que nous ne sommes plus
dans l´élément de la conscience. (...) Comme si le premier mouvement de la responsabilité ne pouvait
consister, ni à attendre, ni même à accueillir l´ordre (ce qui serait encore une quasi-activité) mais à obéir à
cet ordre avant qu´il ne se formule.Ou comme s´il se formulait avant tout présent possible, dans um passé
qui se montre dans le présent de l´obéissance sans s´y souvenir, sans y venir de la mémoire, em se
formulant par celui qui obéit dans cette obéissance même.”
191
“La responsabilité pour Autrui – dans son antériorité par rapport à ma liberté – dans son antériorité par
rapport au présent et à la représentation – est une passivité plus passive que toute passivité – exposition à
l´autre sans assomption de cette exposition même, exposition sans retenue, exposition de l´exposition,
expression, Dire.”
139

Eis que a responsabilidade para com o outro se torna responsabilidade pelo outro:
“Para com outrem (envers autrui), culmina em um por outrem (pour autrui), em um
sofrimento pelo seu sofrimento, sem luz, isto é, sem medida” (AE35). Nesta passagem
decisiva do ‘para’ (par) ao ‘pelo’ (pour), diz Jacques Rolland , “se desenha o sem limite da
exposição a outrem. Quando o para o outro (par l´autre) se agrava em pelo outro (pour
l´autre), a assignação à unicidade em que o eu se origina, torna-se o infinito ou ‘a
hemorragia do pelo outro’(AE119)”192.
Sofrimento como “hemorragia pelo outro”, quer dizer: sofrer o sofrimento do outro,
não somente sofrer com o outro, por simpatia - ou empatia - pelo outro, mas sofrer o
próprio sofrimento do outro. Trágica condição, na qual o sofrimento não proviria apenas
da limitação humana em fazer frente ao mal, como na filosofia de Ricoeur, mas residiria
no simples fato de existir, que seria, por si só, “já a usurpação do lugar de alguém” (EPP
105). A culpa é simplesmente a de existir: o perdão só pode advir a partir da renúncia a sua
própria existência, cuja única justificativa é a existência do outro. Se Salomon Malka não
vê “nenhuma visão dolorista nesta concepção”193, é talvez porque esta concepção não seja
apenas dolorista, mas seja absolutamente trágica, quase insuportável...
Hemorragia pelo outro, isto é responsabilidade infinita, sem reserva, até a obsessão:
o sujeito é “irresponsável do bem que ele faz, mas culpado pelo mal que os outros lhe
fazem”194, responsável pelos erros do outro, pela culpa do outro, pelo mal que ele faz,
responsável pela responsabilidade do outro, responsável a ponto de se substituir ao outro, e
nessa substituição involuntária, o sujeito carrega os erros dos outros que nem sequer
cometeu, seus sofrimentos e suas culpas. Extravagante idéia, pela qual a própria unicidade
do eu, a própria ipseidade, “em sua passividade sem arché da identidade, é refém. A
palavra eu significa: eis me, respondendo por tudo e por todos” (AE180/181). Como na
famosa frase de Dostoievsky: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu
mais do que os outros” (citado em EI93).

“A subjectividade ao constituir-se no próprio movimento em que lhe incumbe


ser responsável pelo outro, vai até a substituição por outrem. Assume a condição
- ou a incondição de refém. A subjetividade como tal é inicialmente refém;

192
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p. 47
193
Salomon Malka. Lire Lévinas, op.cit., p. 78.
194
Marie Anne Lescourret, Emmanuel Lévinas, op.cit., p.366
140

responde até expiar pelos outros. (...) Trata-se de afirmar a própria identidade do
eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da
deposição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a
sua responsabilidade por outrem.” (EI91/92/93)

A substituição – um no lugar do outro - pela qual o sujeito se torna refém do outro


é a própria subjetividade: pela substituição, o eu já não é apenas o mesmo: nesse sentido é
um eu deposto, pois se constitui como, precisamente, “outro no mesmo”:

“O Outro no Mesmo é a minha substituição ao outro segundo minha


responsabilidade, para a qual, insubstituível, sou assignado. Para o outro e pelo
outro, (...) alteridade no mesmo sem alienação, à guisa de encarnação, como ser-
em-sua-pele, como ter-o-outro-em-sua-pele”(AE181)195.

Substituição: ser não em si, mas ser no outro, isto é se colocar no lugar do outro, ou
ter o outro em si; a subjetividade é pensada como “evasão”, como evadida ou expulsa de
si196. Sujeito refém do outro, expulso de si, sujeito destronado por sua substituição quase
sacrificial, até a expiação. A identidade ou subjetividade não é mais pensada como
substância ou essência: rompe-se assim a cadeia do ser que vai de si a si, que permanece
em si, no inter-esse, na essência:

“Substituição como subjetividade mesma do sujeito, interrupção da identidade


irreversível da essência, no encargo que me incumbe sem escapatória possível e
onde a unicidade do eu toma somente um sentido: onde não se trata mais do Eu,
mas de mim. (...) É preciso pronunciar a palavra expiação e pensar a
subjetividade do sujeito, o outramente que ser como expiação?” (AE29/30)197

Definitivamente, não se pode dizer que Lévinas “doura a pílula”! Escolher um


termo como expiação, além de exagerado ou hiperbólico, carrega fortes conotações
religiosas: significa sofrer um castigo ou penitência para reparar uma falta ou culpa ou
pecado. Como se existir, por si só, fosse não somente uma culpa, mas um pecado. No
Dicionário Crítico de Teologia, a expiação é definida como “substituição do culpado, no
195
“ L´Autre dans le même est ma substitution à l´autre selon la responsabilité, pour laquelle, irremplaçable,
je suis assigné. Par l´autre et pour l´autre, (...) altérité dans le même sans aliénation, en guise d´incarnation,
comme être-dans-sa-peau, comme avoir-l´autre-dans-sa-peau.”
196
Jacques Rolland. Prefácio a EV68
197
“Substitution comme subjectivité même du sujet, interruption de l´identité irréversible de l´essence, dans la
prise en charge qui m´incombe sans dérobade possible et où il n´est plus question du Moi, mais de moi.
(…) Faut-il prononcer le mot expiation et penser la subjectivité du sujet, l´autrement qu´être comme
expiation?”
141

lugar do qual se coloca uma vítima (inocente) que morre em seu lugar”198. No Novo
Testamento, “O vocabulário do ‘mártir’ se fundamenta na execução histórica de Jesus o
Justo, o de expiação se fundamenta na graça da reconciliação”199. Graça, gratuidade ou
gratidão, a substituição é desinteressamento que interrompe a essência; e esta ruptura é
ética (Cf.AE29/30) “ética da eleição e não (...) uma ética da vontade”200. O Bem, diz
Lévinas “me escolheu antes que eu o tenha escolhido. Ninguém é bom voluntariamente”
(AE25). A ética não é voluntária, ela é uma exigência: “exigência de santidade” (EI97),
infinita responsabilidade, “hemorragia pelo outro” - inscritas nestas duas pequenas
palavras tantas vezes repetidas por Lévinas: “eis me”.

“Quando, na presença de outrem, digo: ‘Eis me aqui!’, é o espaço por onde o


Infinito entra na linguagem, mas sem se deixar ver (...) Direi que o sujeito que
diz: ‘Eis me aqui!’ dá testemunho do Infinito. É por este testemunho, cuja
verdade não é verdade de representação ou de percepção, que se produz a
revelação do Infinito. É por este testemunho que a próprio glória do Infinito se
glorifica.”(EI98)

O “eis me” é exposição extrema à exposição do rosto de outrem, no qual reluz a


ambigüidade do rastro deixado pelo infinito – “O rastro se desenha e se apaga no rosto
como o equívoco de um dizer e modula assim a modalidade mesma do Transcendente.”
(AE27). Na exposição sem reserva e sem fim da responsabilidade pelo outro, na doação ou
renúncia involuntária da substituição, se mostra, sem se mostrar, o Dizer do Infinito:

“O infinito não se assinala a uma subjetividade – unidade já feita – com sua


ordem de virar-se em direção ao próximo. A subjetividade em seu ser desfaz a
essência substituindo-se a outrem. Enquanto um-para-o-outro – ela se reabsorve
em significação, em dizer ou verbo do infinito. A significação precede a
essência (...) Ela é a glória da transcendência.” (AE29)201

Por isso, para Lévinas a subjetividade não pode ser pensada sem a transcendência.
“O problema da transcendência e de Deus e o problema da subjetividade irredutível à
essência - irredutível à imanência essencial – andam juntos”(AE33) Mas de que

198
Jean-Yves Lacoste. Dictionnaire Critique de Théologie, op.cit., p. 453.
199
Idem, p.454
200
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p. 18
201
“L´infini ne se signale pas à une subjectivité – unité dejà toute faite – par son ordre de se tourner vers le
prochain. La subjectivité dans son être défait l´essence en se substituant à autrui. Em tant que l´un-pour-
l´autre – elle se résorbe en signification, en dire ou verbe de l´infini. La signification précède l´essence. (...)
Elle est la gloire de la transcendance.”
142

transcendência se trata? Qual é, por assim dizer, o Deus de Lévinas? A importância desta
questão não pode ser minimizada e dela se tratará adiante. Não sem antes mencionar o
segundo ponto que, ainda segundo Jacques Rolland, diferencia Totalité et Infini de
Autrement qu´être.

6. A caridade e a justiça: a inclusão do terceiro.

É somente em Autrement qu´être que a presença do terceiro ao lado do próximo,


romperá a, por assim dizer, lisura da relação face a face: Lévinas se refere à diferença entre
misericórdia ou caridade e justiça, diferença esta ignorada por Totalité et Infini, como se
pode ler no prefácio à edição alemã:

“Não há (...) nenhuma diferença terminológica entre misericórdia ou caridade,


fonte de um direito de outrem passando antes do meu, por um lado, e a justiça,
por outro, no qual o direito de outrem – mas obtido após inquérito e julgamento
– se impõe antes daquele do terceiro. A noção ética geral de justiça é evocada
nas duas situações indiferentemente.” (TI II)

Jacques Rolland aponta que o mesmo não acontece em Autrement qu´être, na qual a
presença do terceiro ao lado do outro implica em uma “correção de trajetória”, pois a
situação real da alteridade não é um face a face entre dois, mas implica sempre um terceiro.
A entrada do terceiro, que está ao lado do próximo, e que também é meu próximo, mas
também próximo de meu próximo, introduz uma nova situação, conflitante em relação à
primeira situação do face a face. Na caridade, devo tudo a outrem e excluo todos os outros;
mas a situação real não é dual: devo eu falar do mesmo modo ao terceiro que também é
meu próximo? E o que é o próximo em relação ao terceiro? A multiplicidade me conduz da
caridade à justiça: a presença do terceiro junto ao outro requer justiça, e portanto,
tematização e sincronia, diz Lévinas:

“(...) na provocação anárquica que me ordena para o outro, impõe-se a via que
leva à tematização e a uma tomada de consciência: a tomada de consciência é
motivada pela presença do terceiro ao lado do próximo aproximado; o terceiro
também é aproximado: a relação entre o próximo e o terceiro não pode ser
indiferente a mim que me aproximo. É preciso uma justiça entre os
incomparáveis (...); é preciso tematização, pensamento, história e escrita. Mas é
preciso compreender o ser a partir do outro do ser. Ser, a partir da significação
da aproximação, é ser com outrem, para o terceiro ou contra o terceiro; com
143

outrem e o terceiro contra si (...) Neste desinteressamento – quando,


responsabilidade pelo outro, ele é também responsabilidade pelo terceiro – se
desenham a justiça que compara, reúne e pensa, a sincronia do ser e a paz.”
(AE33)202

Eis nos de volta, com o tema da justiça, ao âmbito do dito e da ontologia. Como
entender este retorno do dito ou esta “repetição da ontologia”, para usar uma expressão de
Ricoeur (OUT50)?203 Ao lado do próximo também está o distante. Estes dois planos, o da
proximidade, da misericórdia ou caridade, e o do terceiro ou da justiça, embora sejam
absolutamente diferenciados são, no entanto, contemporâneos, diz Jacques Rolland, este
comentador exaustivamente chamado aqui. A gravidade da questão é reconhecida pelo
próprio Lévinas que, em determinado momento da entrevista concedida a Philippe Nemo,
confessa: “Receava uma objecção muito mais grave: Como é possível haver uma justiça?”
(EI81), e responde a uma questão que nem sequer lhe foi colocada:

“Respondo que é o facto da multiplicidade dos homens e a presença do terceiro


ao lado de outrem que condicionam as leis e instaura a justiça. Se estou sozinho
perante o outro, devo-lhe tudo; mas há o terceiro. Saberei eu o que é o próximo
relativamente ao terceiro? Saberei eu se o terceiro está de acordo com ele ou é
sua vítima? Quem é meu próximo? Por conseqüência, é necessário pesar,
pensar, julgar, comparando o incomparável. A relação interpessoal que
estabeleço com outrem, também a devo estabelecer com outros homens; logo, há
necessidade de moderar este privilégio de outrem; daí a justiça. Esta, pelas
instituições, que são inevitáveis, deve ser sempre controlada pela relação
interpessoal inicial.” (EI81)

A gravidade da questão não diz respeito apenas ao fato de que além da caridade, há
a justiça, mas de que estas são contemporâneas. É assim que a “correção de trajetória” que
complexifica a relação face a face, introduz em seu seio, uma contradição: “O terceiro
introduz uma contradição no Dizer cuja significação caminhava em sentido único”

202
“(...) dans la provocation anarchique qui m´ordonne à l´autre, s´impose la voie qui mène à la thématisation
et à une prise de conscience: la prise de conscience est motivée par la présence du tiers à côté du prochain
approché; le tiers aussi est approché; la relation entre le prochain et le tiers ne peut être indiferente à moi
qui approche. Il faut une justice entre les incomparables (...); il faut thématisation, pensée, histoire et
écriture. Mais il faut comprendre l´être à partir de l´autre de l´être. Être, à partir de la signification de
l´approche, c´est être avec autrui pour le tiers ou contre le tiers; avec autrui et le tiers contre soi. (...) En ce
désintéressement – quand, responsabilité pour l´autre, il est aussi responsabilité pour le tiers – se dessinent
la justice qui compare, rassemble et pense, la synchronie de l´être e la paix.”
203
Este é o tema privilegiado de Ricoeur em Outramente. Leitura do livro Autrement qu´être ou Au-delà de
l´Essence de Emmanuel Lévinas. Reservo o exame mais detalhado dos interessantes argumentos de Ricoeur
para o capítulo sobre o confronto entre ambos.
144

(AE245) O que significa dizer que a incomensurabilidade entre Dito e Dizer se torna
comensurável. Como compreender tal paradoxo?
O paradoxo não se resolve, mas produz efeitos. Em primeiro lugar, não é sem alívio
que se pode acompanhar Lévinas na idéia de que o possível diálogo entre dizer e dito
chama uma moderação: “moderar este privilégio de outrem”, ou em termos mais
hiperbólicos, parar a sangria desatada da “hemorragia pelo outro” (AE119).
Em segundo lugar, Lévinas assinala que é propriamente esta situação – a
necessidade do terceiro e da justiça - que faz nascer a consciência. O saber não é relação
primeira, mas nasce na proximidade204.

“Se a proximidade me ordenasse apenas a outrem, ‘não haveria problema’ – em


nenhum sentido, mesmo o mais geral, do termo. A questão não teria nascido,
nem a consciência nem a consciência de si. A responsabilidade para o outro é
uma imediatidade anterior à questão: precisamente proximidade. Ela é
perturbada e se faz problema com a entrada do terceiro.” (AE245)205

Em terceiro e último lugar, Lévinas – e esta me parece ser sua contribuição


essencial206 - a partir de um comentário acerca de uma página do Talmud (Tratado Nidda,
folio 70b), coloca em relação caridade e justiça, a partir do trinômio: caridade-justiça-
caridade que, para Jacques Rolland, parece ser, justamente, a seqüência que marca o ritmo
de Autrement qu´être:

“‘Antes da sentença’, isto designa o momento no qual se faz a deliberação, no


qual se faz justiça, e este momento implica o esquecimento da identidade dos
rostos: implica uma norma e o respeito desta norma. ‘Após a sentença’, isto
designa a caridade necessária à justiça (e por conseguinte dela distinta), a
caridade que só reconhece rostos, uns (unicidades) Mas isto por sua vez

204
Esta questão do “nascimento latente do saber na proximidade” (AE245) é essencial para Ricoeur . Cf.
capítulo sobre o confronto entre ambos.
205
“Si la proximité ne m´ordonnait qu´autrui tout seul, ‘il n´y aurait pas eu de problème’ – dans aucun sens,
même le plus général du terme. La question ne serait pas née, ni la conscience, ni la conscience de soi. La
responsabilité pour l´autre est une immédiatité antérieure à la question: précisément proximité. Elle est
troublée et se fait problème dès l´entrée du tiers.”
206
Particularmente interessante me parece ser a idéia de que por detrás da excelência do Rosto, uma outra
sabedoria lógica, que nos traz a Grécia, introduz a unidade de gênero, a justiça entre os incomparáveis. Tal
justiça, exercida pelo Estado, pode sofrer rupturas. Neste momento, surge a função profética, ou seja, a
consciência inspirada pela caridade. É preciso, diz Lévinas, admitir na vida política, esta função profética.
E... surpresa: tal função profética nada tem de bíblico, mas se exerce na literatura ou na imprensa: profecia
como poética e denúncia! Cf. a entrevista com Catherine Chalier. Disponível em <http//vídeo.google.fr>
145

significa que a justiça só é justiça – só é justiça humana- se ela provem da


caridade, se ela é desde já in-formada de e por caridade.”207

A justiça é freqüentemente representada por uma figura com os olhos vendados,


diz-se que ela é cega: isto é, implica precisamente “o esquecimento da identidade dos
rostos”, ou a ignorância da presença de Outrem. Momento necessário da convivência entre
os homens, que exige a regulação através do nomos, da regra, da lei. Mas tal justiça, diz
Lévinas, só é verdadeiramente humana, se ela atravessou a caridade e a misericórdia, isto é,
se, em sua necessária cegueira, ela se abre para a santidade. Não se pode evitar a ontologia,
mas esta, doravante, não pode ser concebida sem a ética. Daí o título de um dos últimos
livros de Lévinas: “Ética como filosofia primeira”: último livro no qual, a exemplo do
primeiro, De l´Évasion, o que se põe em questão é o ser. Não mais para buscar uma saída
do ser, mas para se perguntar pela justificativa do ser. “Questão do sentido do ser – não a
ontologia da compreensão deste verbo extraordinário, mas a ética de sua justiça. Questão
por excelência ou a questão da filosofia. Não mais: porque o ser ao invés do nada, mas
como o ser se justifica” (EPP109). E precisamente, o ser só se justifica a partir de sua saída,
isto é, da presença, ou melhor, da “revelação de outrem”208, este “outrem, o
Transcendente”209, pelo qual Deus vem à Idéia.

7. A transcendência: De Deus que vem à Idéia

Partiu-se das descrições fenomenológicas de De l´Évasion, acompanhadas por um


certo desespero sem saída, para chegar às interrogações superlativas de Autrement qu´être,
em que o dito quer dizer um Dizer e em que “o sujeito humano – eu – [é] chamado, à beira
das lágrimas e do riso” (AE36), até a flor da pele e dos nervos, a ser santo, Messias ou

207
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p. 48. Rolland relata a lição bíblica de Lévinas de sábado
21 de junho de 1986: “‘Avant la sentence’, cela désigne le moment où se fait la délibération, où la justice
est rendue, et ce moment implique l´oubli de l´identité des visages; il implique une norme et le respect de
cette norme. ‘Après la sentence’, cela désigne la charité nécessaire à la justice (et par conséquent distincte
d´elle), la charité qui ne reconnait que des visages, des un´s. Mais cela signifie à son tour que la justice
n´est proprement justice - n´est justice humaine – que si elle provient de la charité, si elle est d´ores et déjà
in-formée de et par la charité.” Seria demais aquí estabelecer correspondências entre o ritmo ternário de
Levinas: caridade-justiça-caridade, e o movimento, igualmente ternário, proposto por Ricoeur: ética-moral-
sabedoria prática?
208
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op.cit., p.78.
209
Idem, p. 77.
146

Jesus, cujo desejo já não é mais erótico mas metafísico, no qual a carícia é substituída pela
“aproximação do próximo” 210. Delineia-se, sem dúvida, uma trajetória, na qual o abandono
da linguagem fenomenológica e ontológica em direção a uma linguagem do excesso e da
desmedida, da hipérbole e do superlativo anda par a par com uma ruptura da ontologia em
favor da metafísica e da ética, ao mesmo tempo em que a alteridade perde sua positividade,
indo em direção à transcendência, e que a subjetividade se “põe às avessas”, a ponto de ter
que se falar em um sujeito não mais autônomo, mas heterônomo! Concepção, no dizer de
Pelizzoli, “estranha demais ao Logos, ao Ocidente, ao berço de Ricoeur”211. Talvez o Logos
deva, sim, ser visitado nem que seja “como se toma um ônibus, para descer”212. Pois os
ônibus, em algumas ocasiões, tomaram a feição de trens cujo destino era a câmara de gás.
É nesse sentido que o pensamento de Lévinas não pode ser dissociado de sua
condição de judeu. Mas não somente nesse sentido. Vale aqui evocar a influência deste
personagem estranho, do qual pouco se sabe além do nome, Chouchani, no modo pelo qual
Lévinas concebe o judaísmo: “Certamente a história do holocausto representou um papel
muito maior que o encontro com esse homem em meu judaísmo, mas o encontro com esse
homem me deu uma nova confiança nos livros.” 213 Os livros, isto é: a Bíblia e o Talmud.
Já se mencionou que a obra de Lévinas não se resume apenas a seus escritos
filosóficos, mas abrange igualmente seus comentários sobre o Talmud. Lévinas afirma
sempre ter separado estas duas vertentes de seu pensamento, mantendo inclusive dois
editores diferentes: um para seus escritos confessionais, outro para os filosóficos214. O que
não o impediu de ser freqüentemente criticado por misturar os gêneros e, de modo por
vezes pejorativo, por vezes entusiasmado, ser ‘taxado’ de “filósofo judeu”, quando não de

210
Ilana Viana do Amaral. “Do Eros à Ética: caminhos do Desejo nos ditos e no dizer de E. Lévinas”. In:
Kalagatos, op.cit., p. 81. Aquí, reencontra-se a presença do tato nas imagens evocadas por Lévinas.
211
Marcelo Pelizzoli. Apresentação à edição brasileira do livro de Ricoeur, Outramente. Leitura do livro
Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 12.
212
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.185. Lembremos a reação de Lévinas à
crítica de Derrida acerca de Totalité et Infini: “No fundo, você me recrimina por ter tomado o logos grego,
como se toma um ônibus, para descer”.
213
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., p. 124. Sobre a relação entre Lévinas e
Chouchani, ver: Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.164 a 169.
214
Cf. Idem, p.103. A este respeito, um interessante comentário de Stéphane Mosès, que dá a pensar: “O que é
bastante paradoxal, é que seus textos filosóficos foram editados por um holandês que publicava livros de
teologia e que seus textos sobre as leituras talmúdicas apareceram nas Éditions de Minuit, o editor por
excelência da vanguarda e do ateísmo.” Cf Stéphane Mosès. Un Retour au Judaïsme. Entretiens avec
Victor Malka. Paris: Seuil, 2008, p.109.
147

ser um “pregador filosófico”215. Judaísmo e exageros à parte, a questão do estatuto da


teologia na filosofia de Lévinas merece ser examinada: toca-se aqui em um ponto polêmico
e delicado, para não dizer nevrálgico, da obra de Lévinas: seria ele um criptoteólogo, isto é,
um teólogo disfarçado de filósofo? 216
Já Derrida, autor que não se pode acusar de não ter compreendido Lévinas,
levantava a questão: “Tornado independente de seu ‘contexto teológico’ (expressão que
Lévinas recusaria sem dúvida) todo este discurso não desmoronaria”?217. Tal questão,
evidentemente, não é inocente nem ingênua, pois poderia carregar em si, uma espécie de
interdição, ou anátema: a obra de Lévinas não mereceria fazer parte do corpo da história da
filosofia, “desmoronaria”, uma vez que necessita do auxílio da teologia para ficar de pé.
Lévinas, nesta perspectiva, estaria construindo um discurso pretensamente filosófico, na
base do qual haveria um a priori de transcendência religiosa que ele não explicita.
Sua própria concepção de subjetividade, como se mencionou acima, é impensável
sem a noção de transcendência. Citemos novamente: “O problema da transcendência e de
Deus e o problema da subjetividade irredutível à essência - irredutível à imanência
essencial – andam juntos” (AE33), e tratemos agora daquelas questões deixadas em
suspenso: Mas de que transcendência se trata? Transcendência de outrem, certamente. Mas
que dizer deste outrem Transcendente?

“Digamo-lo com atenção e gravidade, pois poderia ser que tudo que pode se
afirmar da relação de transcendência - relação de Deus com a criatura – deva
antes (eu diria, de minha parte: somente) se entender da relação social. O
Altíssimo, seria outrem.” 218

Tal afirmação não surpreende por parte de um pensador para o qual : “Mesmo onde
Deus está nominalmente presente, é ainda do homem que se trata, do que há entre o homem

215
É o caso de Ami Bouganim que, em La Rime et le Rite. Essai sur le prêche philosophique. Paris:
l`Harmattan, 1996, afirma que Lévinas, Cohen, Buber e Rosenzweig seriam pregadores filosóficos:
“Pregadores, pois invocam Deus e preconizam em seu nome um culto, filosóficos, pois eles demonstram
um raro domínio da literatura filosófica que submetem a uma crítica caústica.” Citado por David Banon:
“La tentation de la théologie?” In: Pardès, número 42. Paris: In Press Éditions, 2007, p.42, nota 4.
216
Lembremos que tal acusação também atingiu Ricoeur, embora ele tenha sido poupado por Dominique
Janicaud.
217
Jacques Derrida L´Éciture et la Différence, op.cit., p. 152.
218
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969, p. 77: “Disons-le avec attention et gravité,
car il se pourrait que tout ce qui peut s´affirmer du rapport de transcendance - rapport de Dieu à la créature
– doive d´abord (je dirais pour ma part: seulement) s´entendre du rapport social. Le Très-Haut, ce serait
autrui.”
148

219
e o homem.” . O mesmo poderia ser dito de Lévinas, este pensador que diz não temer a
palavra Deus (Cf. EI97)? Tal destemor, como nota, com propriedade, Catherine Chalier,220
confunde seus leitores quando estes se deparam com uma afirmação como esta: “Meu
ponto de partida é absolutamente não teológico. Faço muita questão disso. Não é teologia
que faço, mas filosofia.” (LC116).
Enfática declaração, que alguns autores compreenderam, entre os quais, Ricoeur,
que lê o discurso de Lévinas como sendo “violentamente antiteológico” (OUT41), mas de
que outros duvidam, a saber, Dominique Janicaud que, em seu polêmico livro Le tournant
théologique de la phénoménologie française, acusa Lévinas de “torcer o pescoço” da
fenomenologia, de modo à “torná-la refém de uma teologia que não quer dizer o seu
nome.” 221
Em seu artigo: “La tentation de la théologie” David Banon, contra Dominique
Janicaud, quer mostrar que Lévinas permaneceu filósofo e que não há nenhum ‘religious
turn’ em sua filosofia, mas que sua distinção entre filosofia e pensamento, liberou este
último “da forma fenomenológico-filosófica do pensamento para encontrar, a seu modo, o
222
‘novo pensamento’” , um pensamento que inclua o infinito e a transcendência. O que
parece ser confirmado por uma das inúmeras falas de Lévinas a este respeito: “O que quero
mostrar, é a transcendência no pensamento natural, na abordagem de outrem.” (AT178)
Instalada a polêmica, detenhamo-nos na aparente contradição apontada por
Catherine Chalier: como é possível um discurso no qual, ao mesmo tempo, a palavra Deus
apareça sem cessar e a teologia não seja convidada a entrar? Deve-se então daí deduzir que
para Lévinas, o fato de falar de Deus não permite, por si só caracterizar um discurso como
sendo teológico. Ulpiano Vásquez Moro, comenta, no início de seu cuidadoso estudo O
Discurso sobre Deus na obra de E. Levinas, que “para o autor, negar a teologia não
223
significa recusar toda forma de discurso sobre Deus” , atitude que não é exclusiva de
Lévinas, mas que diz respeito a um certo modo de conceber o judaísmo. Diz o mesmo
219
Idem, p. 188
220
Catherine Chalier. “Témoignage et Théologie” In: Pardès, número 42. Paris: In Press Éditions, 2007, p.
17.
221
Dominique Janicaud. Le tournant théologique de la phénoménologie. Éditions de l´Éclat, Combas, 1991.
Citado por David Banon: “La tentation de la théologie?” In: Pardès, número 42. Paris: In Press Éditions,
2007, p.32.
222
David Banon: “La tentation de la théologie?” In: Pardès, número 42. Paris: In Press Éditions, 2007, p. 42
223
Ulpiano Vasquez Moro. El Discurso sobre Dios en la obra de E. Levinas. Madrid: UPCM, 1982, p. XXIX.
Agradeço a Marcelo Perine pela indicação desta obra.
149

autor: “A teologia (...) é também estranha ao judaísmo, para quem, conforme a frase de A.
Heschel, que Lévinas poderia ter feito sua, ‘a Bíblia não é uma teologia do homem, mas
uma antropologia de Deus’” 224.
A pergunta é: de que Deus se trata? Não se trata do Deus da fé : “A frase em que
Deus entra no jogo das palavras não é ‘eu creio em Deus’” (DVI,110), nem do Deus dos
filósofos.
“Perguntar-se, como tentamos fazê-lo aqui, se Deus pode ser enunciado num
discurso sensato (raisonnable), que não seria nem ontologia nem fé, é,
implicitamente, duvidar da oposição formal estabelecida por Yehuda Halévy e
retomada por Pascal, entre o Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó, invocado sem
filosofia na fé, por um lado, e o deus dos filósofos, por outro: é duvidar que esta
oposição constitua uma alternativa.” (DVI88).

Não se trata de pensar Deus como um ser, o mais perfeito ou o mais poderoso: Deus
não é uma presença: “Deus é subtraído à objetividade, à presença e ao ser. Nem objeto,
nem interlocutor” (DVI103). Absolutamente afastado, Deus é “transcendente a ponto da
ausência” (DVI103). De acordo com Stéphane Mosès: para Lévinas, “Deus, é o Ausente.
Mas trata-se de uma ausência que deixa rastros.”225 Deus ab-soluto e ir-representável,
manifesta sem se manifestar, em um enigma: e deixa seu rastro (trace) no Rosto de
Outrem, mas é rastro, não de uma presença, mas de uma ausência, como “o rastro traçado
na areia [que] não é o elemento de um caminho, mas o próprio vazio da passada (passée).”
(EDE290), ou na bela imagem sugerida por Ionesco, como quando “se tocou a campainha,
e não há ninguém na porta”(EDE290) 226. Belas imagens evocadas por Lévinas para indicar

224
Cf. Idem, p.XXIX. A citação de Heschel é retirada de: Man is not alone. A Philosophy of Religion. New
York, 1951, p.129. Acerca de Heschel, cuja obra, em muitos aspectos, pode ser aproximada à de Lévinas,
remeto o leitor ao estudo de Alexandre G. Leone. Mística e Razão na Dialética Teológica Rabínica: A
Dinâmica da Filosofia de Abraham J. Heschel. Doutorado: USP, 2008. Segundo o autor, o que Heschel
propõe é “em vez de uma teologia sistemática, uma tese sobre por que o judaísmo desenvolveu uma
dialética teológica que se polariza entre duas visões antitéticas, ético-racionalista e místico-esotérica”
(p.95), a primeira a partir de Rabi Ishmael, a segunda sob inspiração de Rabi Akiva. Neste ponto do
trabalho, não deveria constituir nenhuma surpresa para o leitor, o fato de que Lévinas se situe na linhagem
de Rabi Ishmael.
225
Stéphane Mosès. Un Retour au Judaïsme, op.cit., p.111. Ao lado deste comentário, outro surpreendente:
Mosès diz que “Lévinas só se serve da palavra Deus, embora ele teria podido não o fazer, apenas porque é
uma palavra central da tradição filosófica.” A meditar...
226
Remeto aqui às belíssimas páginas do artigo de Lévinas em En Découvrant l´existence avec Husserl et
Heidegger: “Enigma e fenômeno”, cuja epígrafe é precisamente a imagem evocada por Ionesco em La
Cantatrice Chauve: “Em suma, ainda não sabemos se, quando se toca a campainha da porta, há alguém ou
não.” (EDE 283)
150

que: “Ir em direção a Ele, não é seguir este rastro (trace) que não é um sinal (signe), é ir em
direção aos Outros que se mantêm no rastro (trace)” (EDE282).
Tal concepção antiteológica de Deus encontra-se em consonância com o Deus do
Antigo Testamento. Em Nas Sendas do Judaïsmo, Walter I. Rehfeld comenta que “o
Antigo Testamento é rigorosamente antiteológico; ele recusa toda e qualquer procura
sistemática ou não sistemática do ser divino”.227 O autor narra o episódio de Êxodo
XXXIII, no qual “Moisés pede a Deus que Se mostre a ele. E Deus disse: ‘Não. Não há ser
mortal que possa ver a minha face e continuar vivo’”228. Mas Deus mostra então a Moises
“o máximo que o homem pode conhecer: Os rastros de Sua passagem, nunca Ele
mesmo”229. Evidentemente, devem ser guardadas as devidas proporções: até onde posso
pensar, não me parece haver, no Antigo Testamento, a noção - colocada enquanto tal - da
ausência de Deus.
Para Lévinas, trata-se de um Deus ausente, mas “que vem à idéia”, a partir da
presença, da proximidade, do Rosto de Outrem, um Deus que só pode ser pensado a partir
da relação inter-humana, da relação ética: “Deus não está no céu (...) mas no sacrifício e na
responsabilidade dos homens uns para os outros.” 230

“A metafísica tem lugar onde se joga a relação social – nas relações com os
homens. Não pode haver nenhum ‘conhecimento’de Deus, separado da relação
com os homens. Outrem é o próprio lugar da verdade metafísica e indispensável
à minha relação com Deus. Não desempenha de modo nenhum o papel de
mediador. Outrem não é a encarnação de Deus, mas precisamente pelo seu rosto,
em que está desencarnado, a manifestação da altura em que Deus se revela. São
as nossas relações com os homens (...) que dão aos conceitos teológicos a única
significação que comportam. (...) A metafísica tem lugar nas relações éticas.
Sem a sua significação tirada da ética, os conceitos teológicos permanecem
quadros vazios e formais.”(TI65)

Ou então:

“Eu gostaria de nada definir por Deus, porque é o humano que eu conheço. É
Deus que quero definir pelas relações humanas e não inversamente. À noção de
Deus, sabe Deus, eu não me oponho! Mas quando devo dizer algo de Deus, é

227
Walter I. Rehfeld. Nas Sendas do Judaïsmo. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 102
228
Idem, p.103
229
Idem, p.104
230
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas (1992-1994). Paris: Le Livre de Poche/
Biblio Essais, 2006, p. 17
151

sempre a partir das relações humanas. A abstração inadmissível, é Deus; é em


termos da relação com Outrem que falarei de Deus. Não recuso o termo
‘religioso’, mas eu o adoto para designar a situação em que o sujeito existe sem
poder se esconder. Não parto da existência de um ser muito grande ou muito
poderoso.” (LC114/115)231

Não só Lévinas não recusa o termo religioso, como propõe “chamar religião esta
situação em que - fora de qualquer dogma, de qualquer especulação acerca do divino ou –
Deus nos livre – acerca do sagrado e suas violências – fala-se a outrem.” (LC57). Ou ainda,
em outro texto: “Propomos que se chame religião ao laço que se estabelece entre o Mesmo
e o Outro, sem constituir uma totalidade.” (TI28, grifo meu). Estranho modo de definir o
conceito de religião, explicitado algumas páginas adiante: “Tudo o que não pode reduzir-se
a uma relação inter-humana representa, não a forma superior, mas a forma definitivamente
primitiva da religião”(TI66).232 A religião, para Lévinas, longe de ser um sistema de
crenças, é uma questão entre homens, é a própria relação ética: esta é a forma superior da
religião que não é relação com um ser transcendente - uma vez que é preciso pensar “Deus
como não contaminado pelo Ser” (AE, nota preliminar) - mas relação com o infinito da
presença de Outrem.
Se insisto em convocar a própria fala de Lévinas, correndo o risco de entediar o
leitor com tantas citações, é porque a importância da questão pede que se vá, por assim
dizer, direto à fonte. Lévinas parece não deixar dúvidas quanto a que Deus se refere: Deus
entre homens, mas não por isso Deus encarnado – e esta diferença é essencial – “Deus que
vem à idéia” precisamente no único lugar (ou não lugar?) possível: entre os homens.
Não mais O Deus, nem sequer Um deus, mas A-Deus, palavra da qual diz Derrida
que é um ensinamento: “esta palavra de adeus, ‘a Deus’ que de uma certa maneira, recebi
dele, esta palavra que ele me ensinou a pensar ou a pronunciar de outra forma”233.

231
“Je ne voudrais rien définir par Dieu, parce que c´est l´humain que je connais. C´est Dieu que je peux
définir par les relations humaines et non pas inversement. La notion de Dieu – Dieu le sait – je n´y suis pas
opposé! Mais, quand je dois dire quelque chose de Dieu, c´est toujours à partir des relations humaines.
L´abstraction inadmissible, c´est Dieu; c´est en termes de relation avec Autrui que je parlerai de Dieu. Je ne
refuse pas le terme de religieux, mais je l´adopte pour designer la situation où le sujet existe dans
l´impossibilité de se cacher. Je ne pars pas de l´existence d´un être très grand ou très puissant.”
232
Sublinho a palavra “não”, que foi omitida na tradução portuguesa, mudando todo o sentido da afirmação
original: “Tout ce qui ne peut se ramener à une relation interhumaine représente, non pas la forme
supérieure, mais à jamais primitive de la religion.” (TI78)
233
Jacques Derrida. Adeus a Emmanuel Lévinas, op.cit., p.15.
152

Interessante desmembramento da palavra adeus: Adeus, e a-Deus, que joga com o duplo
significado nela inscrito: ao mesmo tempo despedida, indicando aí uma certa ausência, mas
“O a-deus (à-dieu), o para Deus ou o diante de Deus antes de tudo e em toda relação com o
outro, em qualquer outro adeus. Toda relação com o outro seria, antes e depois de tudo, um
adeus”234. Palavra, portanto, que só pode ser dita de um homem a outro, em relação:
presença e ausência de um Deus que, em si mesmo, não existiria, um Deus cujo nome só
teria significado ao se misturar com os assuntos humanos. Nesse sentido, Lévinas poderia
tomar emprestada, ‘à sua maneira’, esta palavra de Edmond Jabès: “Deus talvez seja uma
palavra sem palavras. Uma palavra sem significado”235. Significado que, para Lévinas, só
adquire sentido pleno na relação entre os homens: questão, portanto, na qual transcendência
e imanência implicam-se mutuamente.
A esse respeito, é bastante esclarecedora, uma entrevista que Lévinas concede a
Saint-Cheron, na qual afirma que a transcendência, embora não possa ser reduzida à
imanência, é dela inseparável “A relação do homem com o homem não seria, por si só, já o
essencial da relação do homem com o Eterno? (...) A descoberta do rosto do outro homem
na responsabilidade em relação a ele, é o modo pelo qual se ouve a voz de Deus”236. Deus
seria assim, como para Blanchot, uma questão entre homens: “Utilizo a expressão ‘sob as
espécies’ do outro homem, mas não digo que outrem é a encarnação de Deus (...) Encontra-
se Deus na intimidade através do outro homem”237. Nesse sentido, diz Saint-Cheron, Deus
viria à idéia, mesmo “no agnosticismo, mesmo no ateísmo”238. Não só Deus não é uma
questão de fé, mas também vem se misturar ao ateísmo: “O ateísmo do metafísico significa
positivamente que a nossa relação com o Metafísico é um comportamento ético e não a
teologia, não uma tematização, mesmo que ela fosse conhecimento por analogia dos
atributos de Deus’” (TI64).
A referência a Deus nada tem, portanto a ver com a fé. Mas será que isto resolve a
questão? Falar de um “a-Deus” constituiria por si só uma despedida da teologia, ou seria,
como quer Dominique Janicaud, um modo disfarçado de fazer a teologia penetrar na

234
Idem, p.15, nota 1. Citação retirada de Jacques Derrida. “Donner la mort”, em L´Éthique du don. Paris: Éd.
Métailié-Transition, 1992, p.50/51.
235
Edmond Jabès em entrevista a Paul Auster. The Art of Hunger. Los Angeles: Sun & Moon Press, Tradução
de Ivo Korytowski. A Arte da Fome. São Paulo: José Olympio editora, 1996, p. 149.
236
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas (1992-1994), op.cit., p. 44
237
Idem, p.44
238
Idem, p. 17
153

filosofia? A equivalência entre ética e religião não poderia ser lida como “um estratagema
comum das filosofias ‘pós-seculares’”239? Estratagema a partir do qual, todos ficam, por
assim dizer, felizes: transcendência e imanência podem se conjugar, se harmonizar.
Não me parece, entretanto, haver harmonia neste modo de conceber Deus: ao invés
de uma relação harmônica, eu falaria em uma relação paradoxal, na qual a transcendência é
inseparável da imanência, mas nem por isso a ela reduzida: “Procuro pensar uma
transcendência que não esteja na modalidade da imanência, que não caia na imanência: no
menos procuro o mais que não pode ser abarcado” (DVI 137) Permanece a transcendência
enquanto tal, ao mesmo tempo em que, por assim dizer, eleva-se à imanência. A
transcendência divina comparece na relação com Outrem: a dimensão de elevação e altura
desenha uma dissimetria na relação entre um homem e outro. É o que diz, de modo
delicado, Blanchot: a transcendência divina é “uma vertente do pensamento de Lévinas:
assim, quando ele diz que Outrem deve ser sempre considerado por mim como mais
próximo de Deus do que eu. Mas ele também diz que somente o homem me é
absolutamente estrangeiro”240. Blanchot tem razão: em uma entrevista, publicada em Entre
Nós, Lévinas, ao especificar a relação que estabelece entre Deus e Outrem, diz: “Não digo
que Outrem é Deus, mas que, em seu Rosto, entendo a palavra de Deus” (EN151), mas
também diz “Para mim, Outrem é o outro homem” (EN151). Nesse sentido, o rosto é
“relação de responsabilidade e por conseguinte a palavra de Deus” 241. Outrem não é Deus,
Outrem é o outro homem, em cujo Rosto escuto a palavra de Deus: a transcendência não é
assunto do homem com um Deus que estaria no céu, mas está presente na relação do
homem com o outro homem. Assim, se habitualmente se reserva o nome de transcendência
para significar uma relação com Deus, ou com o ‘para além do homem’ e o de imanência
para se referir aos assuntos humanos, Lévinas parece desordenar as categorias.
Esta desordem ou desordenação faz com que se possa ler sua obra num sentido ou
noutro. A questão, finalmente, é a de saber qual seria o Lévinas definitivo: o pensador
judeu ou o filósofo?

239
Benjamin C. Hutchens. Levinas - A guide for the perplexed. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne.
Compreender Lévinas. Petrópolis: Editora Vozes, 2007, p.156.
240
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op.cit., p. 82.
241
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas (1992-1994), op.cit., p. 45.
154

Posso compreender que alguns comentadores, entre os quais Dominique Janicaud,


considerem que sua filosofia é, na realidade, uma criptoteologia, uma teologia disfarçada
de filosofia, excluindo assim Lévinas do rol dos filósofos. Sua filosofia talvez não
corresponda à filosofia propriamente dita: esta é posta em questão já em sua primeira obra
De l´Évasion, em que se trata de sair do ser – o ser, questão filosófica por excelência. O
próprio Lévinas afirma se situar na contramão da “Filosofia [que] é uma egologia” (TI31);
para sair do ser e da ‘egologia’, Lévinas construiu uma filosofia na qual Outrem, o Infinito
e a Transcendência são convidados a entrar. No mesmo gesto, convocou a voz dos
profetas, isto é, recorreu a uma linguagem religiosa. Deveria, por isso, esta filosofia não
mais merecer o nome de filosofia?
Posso também compreender o entusiasmo de outros comentadores - cristãos mas
sobretudo, judeus - felizes em ver que a voz dos profetas pode se propagar além dos muros
dos seminários ou das ieshivot (colégios rabínicos ou talmúdicos), merecendo, doravante, a
atenção e o respeito de ‘doutos’ filósofos, isto é, a bênção que, paradoxalmente, se pede,
hoje em dia, aos pagãos.
Se a opção colocada é, portanto, Atenas ou Jerusalém?, eu responderia Atenas e
Jerusalém. Formulação que nada tem de original: a ela, já tinha se referido Derrida em
“Violence et Métaphysique”. Mas Derrida não se contenta apenas em apontar esta dupla
referência de Lévinas: pode-se dizer que todo seu artigo é uma meditação acerca de uma
questão, colocada enquanto tal em suas últimas linhas: “Qual é a legitimidade, qual é o
sentido da cópula nesta proposição [de James Joyce]: ‘Jewgreek is Greekjew. Extremes
meet.’” 242
Sem ter a pretensão de responder a Derrida, eu notaria, entretanto, que a cópula -
‘Atenas e Jerusalém’ - implica em um diálogo paradoxal, ao fim do qual nem Atenas,
nem Jerusalém, permanecem enquanto tais. O que equivale a dizer que nem a filosofia
pode mais ser entendida em seu sentido habitual, uma vez que seu discurso não recusa
aquilo que, no limite, não pode ser dito, aquilo portanto, que ultrapassa o logos filosófico,
quer dizer, a transcendência; tampouco o podem a teologia e a religião, cujos significados

242
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op. cit., p.228.
155

comumente aceitos são revirados por Lévinas, nada mais tendo a ver com um Deus que
está no céu, Deus Pai, que pode consolar, e trazer algum sentido a este mundo profano e
‘desencantado’.243
O que significa, dizer que, de minha parte, decidir por um ou outro Lévinas –
filósofo ou judeu? - seria perder de vista, precisamente, a tensão entre transcendência e
imanência, entre ‘teologia’ (termo que, como se viu, Lévinas recusaria) e filosofia que é
característica de seu pensamento. Nesta tensão, Deus é absolutamente transcendente,
“transcendente até a ausência”, mas por isso mesmo, assunto entre homens: “Seu
afastamento absoluto, sua transcendência vira em minha responsabilidade (....) por
outrem.” (DVI103). A transcendência não é teológica, mas ética244.
O que parece ser confirmado por estas palavras, que Derrida diz ter ouvido de
Lévinas: “você sabe, fala-se freqüentemente de ética para descrever o que faço, mas o que
me interessa, afinal das contas, não é a ética, não apenas a ética, é o santo, a santidade do
santo”245. Ética e santidade ecoam-se mutuamente: a ética sendo elevada à categoria da
santidade, e a santidade, ‘profanando-se’, ao se referir à relação entre homens. Eis porque,
finalmente, em se tratando de Lévinas, deva-se colocar a teologia, no sentido clássico da
palavra, ‘em suspenso’. E quanto à filosofia? Deveria ela também ser colocada ‘em
suspenso’?
Nem filosofia ‘clássica’, nem teologia e religião ‘clássicas’, mas tensão entre elas:
tensão entre Deus presente e ausente, tensão entre transcendência e imanência, já operando
em Totalité et Infini, obra que no entanto, foi recebida como um discurso filosófico, ao
menos para Paul Ricoeur: “Não há citações da Bíblia, salvo talvez uma ou duas vezes, em
Totalité et Infini. É Platão. É Descartes.”246. Bastaria, para dar razão a Ricoeur, se
concentrar no seguinte trecho, que atesta a vontade ou decisão de Lévinas em se manter no
registro eminentemente filosófico:

243
Cf. a esse respeito, o artigo de Jeanne Marie Gagnebin. “Teologia e Messianismo no pensamento de W.
Benjamin”, op.cit., p 196 e seguintes.
244
Como bem disse Marcelo Perine, de modo claro, preciso e objetivo, no decorrer do exame de qualificação.
245
Jacques Derrida. Adeus a Emmanuel Lévinas, op.cit., p.19.
246
Paul Ricoeur em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et La Trace, op.cit., p. 204.
156

“O poder haver um mais que o ser ou um acima do ser traduz-se na idéia de


criação que, em Deus, ultrapassa um ser eternamente satisfeito de si. Mas a
noção do ser acima do ser não vem da teologia. Se não desempenhou um papel
na filosofia ocidental saída de Aristóteles, a idéia platônica do Bem assegura-lhe
a dignidade de um pensamento filosófico que, por conseqüência, não há que
reduzir a uma qualquer sabedoria oriental” (TI196).

No entanto, mesmo que não haja propriamente citações da Bíblia, há, sem dúvida
figuras e metáforas bíblicas: Outrem, quando não é ‘a viúva, o orfão, o pobre, o
estrangeiro’, torna-se o Rosto, no qual se ouve o mandamento de Deus: “não matarás”, sem
falar da expressão “eis-me”, que aparece inúmeras vezes na Bíblia247, a maioria das quais
em resposta ao chamado de Deus, ou ainda expressões como o Altíssimo (Très Haut), ou
de termos como santidade – trata-se, sem dúvida, de uma linguagem religiosa.248
Se tudo isso pode ser dito de Totalité et Infini, como então falar de Autrement
qu´être, obra bem menos ‘palatável’ e nem sempre tão bem recebida no meio
acadêmico?249 Não somente pelo fato de que, nela, a linguagem se torna excessiva e
hiperbólica, mas também porque as hipérboles se verificam no uso de termos religiosos: a
santidade não está associada apenas à bondade, mas se transforma em expiação, fala-se em
glória da transcendência, em testemunho do infinito, e a noção de eleição ganha estatuto de
conceito250. E também, porque se as citações bíblicas não estão presentes em Totalité et

247
Na pesquisa feita a partir do site: sefarim.fr, a expressão: “me voici” aparece 28 vezes
248
Se a filosofia de Lévinas está impregnada de expressões bíblicas, deve também ser dito que, quando se trata
de ler a Bíblia, Lévinas o faz a partir de uma perspectiva ética: “A Bíblia, é a prioridade do outro em
relação a mim. É em outrem que vejo sempre a viúva e o órfão. Sempre outrem passa na frente. É o que
chamei, em linguagem grega, a dissimetria da relação interpessoal. Nenhuma linha do que escrevi faz
sentido, se não há isso.” (DVI 145)
249
Vale lembrar que, embora muitos livros de Lévinas tenham sido traduzidos para o português, Autrement
qu´être ou Au-delà de l´Essence não teve tal privilégio. Que ela seja de difícil tradução, não restam dúvidas.
Como igualmente não restam dúvidas de que tal vácuo pode conduzir a interpretações um tanto quanto
apressadas da obra de Lévinas.
250
Escândalo para ouvidos ‘politicamente corretos’, que lêem a categoria bíblica de eleição do povo de Israel,
como uma arrogância teológica, para não dizer humana. Se a noção de eleição tem uma conotação de
arrogância, instalar-se nela é perder de vista, precisamente o sentido que lhe empresta Lévinas:
responsabilidade infinita até a expiação. Ser eleito é carregar o peso do mundo. “Sou eleito. Para mim, ‘sou
o eleito’, toma sentido enquanto ‘Si’, não enquanto Judeu. Enquanto ‘Si’! É sem dúvida o contrário da
eleição no sentido teológico”, diz Lévinas em uma entrevista: “L´intention, l´évènement et l´autre. Entretien
avec Cristoph von Wolgozen. Le 20 décembre 1985 à Paris”. In: Revue Philosophie, numéro 93, printemps
2007. Paris: Les éditions de Minuit, p. 27.
157

Infini, basta uma rápida olhada nas notas de rodapé para nos convencer que o mesmo não
pode ser dito de Autrement qu´être.
A “virada lingüística” à qual se refere Marie-Anne Lescourret não constituiria
também uma “virada religiosa”? Lévinas teria se tornado mais religioso ou mais judeu
entre Totalité et Infini e Autrement qu´être ? Arrisco aqui, um pouco à queima-roupa, dizer
que a virada é mais lingüística que religiosa, uma vez que, já em Totalité e Infini, se
encontra a mencionada e surpreendente definição do religioso como “laço entre o Mesmo e
o Outro” (TI28). Nesse sentido, me parece que a crítica de Derrida foi, de fato, decisiva:
para escapar da linguagem do ser, Lévinas recorreu ao excesso, à hipérbole, à ênfase. E, se,
para ir além da insuficiência ou do limite da linguagem, Platão recorreu aos mitos, Lévinas,
para ir além da essência e poder dizer do outramente que ser, recorreu à Bíblia. Lévinas
afirma que faz “uso, aparentemente, de uma terminologia religiosa” (EN291) mas não se
pode deixar de concordar com Francis Guibal, que nota a ironia presente nesta auto-
reflexão251. Quando se trata de terminologia, a aparência não é, de modo nenhum fortuita,
especialmente para um filósofo que não dissocia a linguagem do pensamento.
Evidentemente, não se trata apenas de um uso inocente, mas de uma decisão: a de incluir
no logos filosófico, “uma respiração, uma palavra profética” 252
Ultrapassagem lingüística que é também ultrapassagem conceitual. Jacques Rolland
afirmou que Autrement qu´être diz a mesma coisa que Totalité et Infini, apenas a diz
outramente, e que, neste outramente dito, a subjetividade é pensada a partir da evasão ou da
expulsão de si: ela é criada por outrem. Talvez, neste ponto possamos entender a
enigmática resposta de Lévinas a Stéphane Mosès: entre uma obra e outra, “me tornei
bom”, se pensarmos que, para Lévinas, o Bem está para além do ser, que ele me vem a
partir de Outrem. Em Autrement qu´être, não somente o sujeito é convocado a responder a
um apelo, como ocorre em Totalité et Infini, mas é ordenado, no duplo sentido deste termo:
me dá uma ordem e me organiza. A subjetividade é ordenada ou construída pelo outro, ou
por Outrem, é heteronômica, heteronomia que é expressa pelo nome ‘Deus’. É isto, o Bem
ou a ética, ou ainda, como finalmente prefere dizer Lévinas, a santidade.

251
Francis Guibal. La Gloire en Exil. Le témoignage philosophique d´Emmanuel Lévinas. Paris: Cerf, 2004,
p. 11.
252
Jacques Derrida. L´Éciture et la Différence, op. cit., p.122. Grifo do autor.
158

Finalizo, em homenagem a este comentador que me acompanhou desde De


l´Évasion até Autrement qu´être, com mais uma – longa e bela - citação de Jacques
Rolland, que não parece duvidar do caráter filosófico das reflexões de Lévinas :

“De uma ‘loucura’ à outra, através de avanços e recuos de uma meditação


constrangida a abrir seu próprio caminho, forjando sua própria linguagem, se
desenha assim o percurso de um pensamento uno, fixando-se à tarefa de pensar
limitando-se a um só pensamento. Fidelidade que define o que continua a
guardar o nome de filosofia. Que tenha sido necessário, no entanto, quase
quarenta anos e muitos livros, que não foram somente intermediários para ir de
uma a outra e que, para que a última cumpra a promessa latente da primeira,
deixa aparecer uma segunda dimensão do trabalho da filosofia, que o designa
como o exercício da mais longa paciência” 253

253
Jacques Rolland. Préfacio a EV72/73: “D´une ‘folie’ à l´autre, à travers avancées et reculs d´une
méditation contrainte d´ouvrir son propre chemin en forgeant son propre langage, se dessine ainsi le
parcours d´une pensée une, s´attachant à la tâche de penser en se limitant à une seule pensée. Fidélité qui
définit ce qui continue à garder le nom de philosophie. Qu´il ait fallu cependant près de quarante ans et
plusieurs livres qui ne furent pas seulement des intermédiaires pour aller de l´une à l´autre et pour que la
dernière tienne la promesse latente de la première, laisse de son côté apparaître une seconde dimension du
travail de la philosophie, qui le désigne comme l´exercice de la plus longue patience.”
159

CAPÍTULO III

Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas: Proximidades e Distâncias

Preâmbulo: Uma nota de entusiasmo

“O encontro [de Ricoeur com Lévinas] faz parte destes


momentos intelectuais e humanos dos quais é preciso
dar testemunho” (Salomon Malka)

Ao decidir acerca de um tema de tese de doutorado, tem-se, inicialmente uma vaga


idéia do assunto que desperta o interesse, porém, com certeza, não se tem a menor idéia do
que surgirá no caminho. Se o tema inicial é fonte de entusiasmo, não se sabe por que
lugares o entusiasmo inicial será desviado, por onde andará....
Como não fujo à regra, meu interesse, centrado que estava na questão da morte do
sujeito e da fundamental importância da alteridade nestes tempos – ainda – pós Auschwitz,
deslocou-se, indo se alojar nestas figuras exemplares que são Ricoeur e Lévinas. Eu ousaria
dizer: dois gigantes da filosofia.
Dois homens impecáveis, em sua honestidade e generosidade para com o
pensamento, e a conseqüente luta para encontrar a palavra certa ou para desistir de
encontrá-la. Palavra que não vem de graça – embora, claro, alguns sejam um pouco mais
agraciados do que outros. De qualquer modo, há uma paciência – paciência do conceito,
como diria Hegel? – na elaboração de um pensamento que se quer fiel a si mesmo.
Paciência passiva, pois nem sempre o pensamento pensa o que quer: é, muitas vezes
pensado. Mas paciência também ativa, pois surge de diálogos, de embates, de lutas,
consigo e com os outros.
E é propriamente esta dinâmica, quiçá um tanto agressiva, porém também autêntica
– que me desculpe Adorno por este jargão – que marca a relação entre estes gigantes que
são Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas.
Ser gigante não significa estar acima de qualquer suspeita – é sempre bom lembrar
que Golias foi derrotado por David! Significa talvez bem menos: dizer a palavra certa na
hora certa, ou talvez desdizê-la. Mas a palavra certa, como já se insinuou, não vem de
160

graça, isto é, tem uma história. História à qual deve-se agradecer: graças a ela, justamente,
é possível não idealizar, perceber que um pensamento se faz, se trama, se tece, - work in
progress? – pensamento que não se acaba, não se totaliza, não tem ponto final, termina na
abertura, num talvez, ou num “quer dizer”, mas que, nem por isso se permite dizer qualquer
coisa.
É assim que Soi-même Comme Un Autre de Ricoeur e Autrement qu´être ou Au-delà
de l´Essence de Lévinas, estas duas obras máximas, se enfrentam aqui: como o melhor que
têm a dizer dois autores extraordinários, que fizeram a pergunta certa na hora certa, isto é
enfrentaram as problemáticas que a eles se apresentaram em seu – nosso! – tempo. E que
assim fazendo, apresentaram e solicitaram, a mim e a tantos outros, mais do que respostas,
questões. Respondo, com prazer e entusiasmo, a este convite... Responder, isto é: tentar, na
medida do possível, ser fiel à leitura ou adiar a traição...
À guisa portanto de resposta, me concentro inicialmente nos cruzamentos
biográficos, isto é, nos lugares e momentos em que Ricoeur e Lévinas efetivamente se
encontraram para só depois me debruçar na discussão teórica propriamente dita.
161

Primeira Parte

Itinerários que se cruzam : uma “nota de intimidade”

“Eu queria rever o rosto de Paul Ricoeur”


(Lévinas)

Vida longa, é comumente o que se deseja aos recém-nascidos. Tanto Lévinas


quanto Ricoeur foram agraciados – se assim se pode dizer – com tal bênção. Lévinas nasce
em Kovno, na Lituânia, sob dominação russa, em 1905; Ricoeur nasce em 1913, em
Valence, França. Ambos falecem em Paris, Lévinas em 1995, Ricoeur em 2005, o primeiro
com 90 anos, o segundo com 92. Se aqui se destaca tal longevidade, não é para apreciá-la
em si, mas para marcar o fato de que ambos viveram plenamente este século XX, século
muito particular – desconte-se o fato de que o século em que se vive é sempre considerado
particular – pois marcado por duas guerras que envolveram o mundo, sem falar das
profundas transformações que a elas se seguiram. Época conturbada, questões complicadas
diante das quais tanto Ricoeur quanto Lévinas nunca se furtaram a comparecer.
Em primeiro lugar, por causa das circunstâncias: nunca é demais lembrar que ambos
são filhos das duas guerras: Ricoeur, que perdeu sua mãe pouco depois de seu nascimento,
“torna-se rapidamente ‘pupilo da nação’. Seu pai, Jules Ricoeur, professor de inglês no
colégio de Valence, morre em setembro de 1915 durante a batalha de Marne.(...) Órfão, é
criado, assim como sua irmã mais velha, por seus avós paternos e sua tia solteira Odette”.1
E, se a família de Lévinas consegue sobreviver à primeira guerra, às custas de muitos
êxodos e exílios, desaparece nos campos de extermínio nazistas.
Lévinas é poupado, sendo soldado francês, protegido portanto pela convenção de
Genebra, tornando-se apenas prisioneiro de guerra na Alemanha em junho de 1940,
trabalhando no campo como lenhador2, mas também leitor de “tudo que acha ali, autores do

1
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 17/18.
2
Cf as terríveis e belas análises sobre esforço, trabalho e cansaço em Da Existência ao Existente, p.31 a 38,
que parecem ter sido escritas sob o signo desta experiência, assim como os comentários de seu filho
Michael, em Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit, p. 265: “Meu pai foi lenhador,
sobrou algo, penso que isto lhe deu uma força enorme para atravessar a vida. É terrível dizer isto, mas é
assim.”
162

século XVIII, Rousseau, Diderot, Anatole France, Proust”.3 Ricoeur também conhece o
mesmo destino nestes anos sombrios: é prisioneiro na Alemanha, mas, em função de suas
patentes, é isento de trabalhos: ele e Mikel Dufrenne, “os dois oficiais-filósofos ocupam
seus dias ensinando seus companheiros. Além disso, Paul Ricoeur, incansável trabalhador
traduz os Ideen de Husserl”4.
Assim, por enquanto, seguem em paralelo duas vidas submetidas às, praticamente,
mesmas vicissitudes. Vidas marcadas “pelo trágico e ‘horrível século XX’”,5 como diz
François Dosse, em sua incontornável biografia sobre Ricoeur. Mas vidas que, mesmo
quando se cruzam, podem continuar próximas e, ao mesmo tempo, distantes. Malka, em
sua biografia sobre Lévinas, dedica um capítulo especial à relação entre nossos autores, que
intitula, numa feliz expressão: “O Próximo e o Distante”. Digo ‘feliz’, pois define de modo
bastante preciso o que viveram estes que chamo “dois gigantes” do pensamento.
Embora tenham se cruzado aqui e ali em vários momentos de suas vidas, o encontro
se deu de modo mais sistemático em 1967, quando Lévinas, a convite de Ricoeur, começou
a dar aulas, em Nanterre, um anexo da Sorbonne, aí permanecendo até 1973. Viveram
portanto lado a lado este momento histórico fundamental que foi maio de 68. Dizer lado a
lado é sem dúvida exagerar: os modos pelos quais enfrentaram os acontecimentos deste
período não poderiam ser mais diferentes, Ricoeur tendo sido implicado diretamente,
inclusive na invasão do campus pelos policiais, enquanto Lévinas se manteve distante,
quase que alijado do processo. Tal diferença é sublinhada por Malka: “Animado por uma
cultura da ação e por um gosto do engajamento político, ancorado à esquerda, Ricoeur
responderá a todas as solicitações de seu tempo. Não foi o caso de Lévinas: mais reservado,
alguns dirão, mais prudente”6.
Se Lévinas e Ricoeur não compartilhavam seus pontos de vista políticos, o mesmo
não pode ser dito em relação à suas posições filosóficas e teológicas: há aqui uma
convergência inegável de interesses mútuos.
A primeira vez que Ricoeur ouve falar de Lévinas é através de um professor da
faculdade teológica de Strasbourg, Jean Hering, que elogia os trabalhos de Lévinas sobre

3
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op. cit., p.123.
4
Idem, p. 123
5
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op. cit., p.750
6
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op. cit., p.203
163

Husserl. Lévinas, ainda estudante em Strasbourg7 - de 1923 a 1927, época em que se ligou
a seu amigo Maurice Blanchot, para nunca mais se desligar - conhece a obra de Husserl
por intermédio, justamente, de Jean Hering e também de Gabrielle Peiffer, com a qual
traduzirá as Méditations Cartésiennes, em 1929. A respeito do encontro com o pensamento
de Husserl, diz Lévinas: “Tive a impressão de ter alcançado não uma construção
especulativa inédita a mais, porém novas possibilidades de pensar”8. E, após um curto
período em Fribourg-en-Brissau, onde foi conhecer Husserl e encontrou Heidegger9,
escreve, em 1930, a título de tese de doutorado: A teoria da intuição na fenomenologia de
Husserl, livro que Ricoeur considera “seu primeiro encontro aprofundado com Husserl”10.
E se este último passou em segundo plano para Lévinas, o mesmo não ocorreu com
Ricoeur: “(...) a difusão das teses husserlianas nas novas gerações de filósofos passará
portanto mais, na época pós-guerra pelo trabalho de comentário realizado por Ricoeur”11.
Dosse observa que: “Há, entre eles, provenientes da mesma geração, uma
verdadeira filiação comum enraizada na fenomenologia e um distanciamento comum, por
vias certamente divergentes, em relação ao ensinamento de Husserl”12. A fenomenologia
foi assim, ponto de partida, como também ponto de encontro em varias ocasiões. Estavam
ambos presentes no primeiro Colóquio Internacional de Fenomenologia, que se deu em
1951, em Bruxelas13. Já tinham se encontrado às “sextas feiras” de Gabriel Marcel, que
Ricoeur freqüenta desde 34-35, como também no Collège Philosophique de Jean Wahl:
Ricoeur assistiu à famosa conferência de Sartre sobre O Existencialismo é um Humanismo,
como também, em 1946, num ambiente mais “íntimo”, como ele mesmo diz, ouviu Lévinas
sobre O Tempo e o Outro. Ricoeur se recorda:

“desta palavra de Jean Wahl: ‘Você tem gênio, é preciso escrever!’ e do sorriso
constrangido do orador. Assisti a esta espécie de nascimento ali, praça Saint-
Germains-des-Prés, sob a proteção de Jean Wahl. É Wahl, enfim, que me pôs

7
Universidade na qual Ricoeur seria professor, anos mais tarde, de 1948 a 1956.
8
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op. cit, p.62
9
Cf. Idem, p.64. Vale aqui mencionar que Lévinas esteve presente no segundo famoso encontro de Davos,
em 1929, que opôs Cassirer a Heidegger. “Sempre fiquei com muita raiva de mim mesmo, durante os anos
hitlerianos, por ter preferido Heidegger em Davos”, confessa a Poirié (p. 68) Para maiores detalhes sobre o
interessante encontro de Davos, Cf. Salomon Malka. Emmanuel Lévinas.La Vie et la Trace, op. cit., p.62 a
66, e Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op. cit., p. 74 a 83
10
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.247
11
Idem, p.211
12
Idem, p. 750
13
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op. cit., p. 190.
164

em relação com Lévinas, antes da aparição de Totalité et Infini e o


deslumbramento diante deste livro”14

Totalité et infini. Essai sur l´exteriorité: texto decisivo que Lévinas apresentou
como Thèse d´État, e cuja envergadura logo foi percebida por Ricoeur. Conforme já
mencionado, Ricoeur, após a defesa, teria dito: “De hoje em diante, é preciso contar com
Lévinas”15. Como também já se disse, foi precisamente o que fêz Ricoeur, e na primeira
ocasião, isto é, quando responsável pelo departamento de filosofia de Nanterre, não hesitou
em chamar junto a si Lévinas. Em junho de 1974, aos 86 anos, morre em Paris Jean Wahl.
Lévinas é um dos encarregados de fazer o elogio fúnebre de seu generoso protetor. Ricoeur
também está presente. Segundo Malka, Ricoeur “tomava assim, depois de Jean Wahl, o
lugar de intermediário entre Lévinas e o mundo universitário e intelectual frente ao qual
este último facilmente se retraía”16.
De 1967 a 1973, Ricoeur e Lévinas passam a se encontrar com freqüência, em
Nanterre. O primeiro, vindo da Sorbonne, já gozando de um certo prestígio; o segundo,
vindo de Poitiers, menos popular17. Com mais ou com menos fama ou prestígio, os dois
enfrentaram problemas no caminho do reconhecimento. François Dosse coloca esta, por
assim dizer, impopularidade dos autores, na conta da moda estruturalista dos anos sessenta
e setenta: “No momento do triunfo do estruturalismo, ambos têm muitas dificuldades em se
fazerem ouvir”18. Pode-se, de fato, falar em “triunfo”: conforme lembra Salma Muchail, o
livro de Foucault As Palavras e As Coisas, de 1966, “vende como pãezinhos”, segundo o
título de um artigo publicado em Le Nouvel Observateur19. Em contraste com tal sucesso
editorial, Marc de Launay lembra “a época em que havia trezentas pessoas em um curso
sobre o modo de produção asiático e três pessoas com Lévinas, eu entre elas, para trabalhar
sobre Kant”20, e Dominique Bourel também conta que, em 1974, Gadamer, o aconselhou a

14
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op. cit., p. 198/199: “de ce mot de Jean Wahl:
‘Vous avez du génie, il faut écrire!’ et du sourire gêné de l´orateur. J´ai assisté à cette espèce de naissance,
là, place Saint-Germain-des-Prés, sous le patronnage de Jean Wahl. C´est Wahl en somme qui m´a mis en
relation avec Lévinas, avant la parution de Totalité et Infini et l´éblouissement devant ce livre.”
15
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op. cit., p. 218
16
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op. cit., p. 199/200.
17
Marie Anne Lescourret afirma que: “Lévinas, até o fim dos anos 70 foi um personagem apreciado, de quem
se sabia que ele escrevia livros sem que se tratasse realmente de lê-los.” (p. 318)
18
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit, p.750
19
Cf. Salma T. Muchail. Foucault, simplesmente. São Paulo: edições Loyola, 2004, p. 116.
20
Marc de Launay em entrevista a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 647
165

ler Ricoeur, do qual pouco se ouvia falar na universidade de Paris V: “Para as pessoas de
minha geração, Ricoeur e Lévinas, era uma espécie de pequena ilha.”21
Ainda segundo François Dosse: “É a interrogação ética que os coloca no coração da
vida intelectual francesa na metade dos anos oitenta”22. Interrogação ética, como se verá,
que tem em seu centro a relação do sujeito com outrem.
Na academia, a convergência de seus interesses faz com que se cruzem por diversas
vezes em defesas de teses e concursos de professores. Destas, vale a pena ressaltar, a título
de curiosidade, a defesa de tese da brasileira Maria Villela-Petit sobre a subjetividade em
Husserl, que se deu pouco antes dos acontecimentos de maio de 1968, diante de Suzanne
Bachelard, Paul Ricoeur e Lévinas23. A confiança entre ambos é tal que, como lembra
Olivier Abel, “Ricoeur partia na primavera para Chicago [onde ensinava desde 1967],
deixando seus estudantes em DEA (Diplôme d´Études Avancées) no grupo dirigido na
Sorbonne por Lévinas”24. Cabe igualmente lembrar que Ricoeur e Lévinas também foram
vizinhos em Chicago: o primeiro na Universidade do Estado, o segundo na Universidade
Jesuita Loyola25.
Mas os encontros também se passam fora da academia, e Ricoeur, não poucas
vezes, visitou Lévinas na escola da Rue d´Auteuil, como também em sua casa.

“Pude conhecer Mme Lévinas, medir a profundidade de sua intimidade e


afeição. Lévinas não fazia nenhuma conferência sem a presença de Mme
Lévinas. Eis porque compreendi a extensão de sua dor quando ela morreu. Eu
realmente pude medir e compreender as admiráveis páginas de Totalité et Infini
acerca da grandeza doméstica, e esta bela página sobre a carícia. Somente ele,
antes de Derrida, pôde falar deste modo. Este lado de Lévinas nem sempre é
captado. Mas percebi na época esta nota de intimidade, em sua grande
proximidade”26.

21
Dominique Bourel em entrevista a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 647
22
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op. cit., p. 750
23
Para mais detalhes acerca de Maria Villela-Petit, cf. idem, p.508.
24
Olivier Abel em entrevista a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 500.
25
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op. cit., p.247
26
Ricoeur em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op. cit., p. 199: “J´ai pu
connaître Mme Lévinas, mesurer la profondeur de leur intimité et leur attachement. Lévinas n´allait pas
faire une conférence sans que Mme Lévinas fût là. C´est pourquoi j´ai compris l´étendue de sa douleur
lorsqu´elle est est morte. J´ai vraiment mesuré et compris toutes les pages admirables de Totalité et Infini
sur la grandeur domestique et cette belle page sur la caresse. Il n´y a que lui, avant Derrida, qui en ait parlé
de cette manière. Ce côté de Lévinas n´est pas toujours saisi. Mais j´ai parfaitement perçu à l´époque cette
note d´intimité, dans sa grande proximité.”
166

Esta bela expressão “nota de intimidade” que Ricoeur entreviu na relação de


Lévinas com sua esposa, poderia também ser pensada para sua própria relação com o
filósofo judeu. Digo judeu propositadamente, pois me refiro aqui ao profundo diálogo que
entretiveram no campo da teologia e da religião. Mais do que diálogo, uma certa parceria
freqüentemente tingida de cumplicidade.
Ao convidar Lévinas em Nanterre, Ricoeur acalentava um projeto: o de criar ali um
centro de filosofia da religião, com a presença de Duméry para o catolicismo, Lévinas para
o judaísmo, e ele próprio para o protestantismo. Tal projeto não se realizou por conta de
Maio de 68, o que “foi uma grande decepção para Ricoeur” 27.
Já se mencionou não somente a importância da tradição religiosa para ambos, como
também o fato de terem sido pensadores e comentadores de escritos religiosos e teológicos.
As incursões freqüentes de ambos no terreno da religião fizeram com que alguns críticos os
rotulassem de filósofos religiosos. Rótulos contra os quais ambos protestaram. Ouçamos
Lévinas em entrevista a Poirié: “Protesto contra essa fórmula [a de pensador judeu] quando
se entende por isso alguém que ousa fazer aproximações entre conceitos baseados
unicamente sobre a tradição e os textos religiosos sem dar-se ao trabalho de passar pela
crítica filosófica” 28. E Ricoeur, em entrevista a Malka:

“Eu tampouco, aprova Ricoeur, gosto que se diga filósofo protestante. É-se
filósofo ou não se é. ‘Protestei’ contra isto. Eu disse que tinha uma leitura
filosófica do cristianismo. Tenho um cristianismo de filósofo. Ousarei dizer que
ele tem um judaísmo de filósofo. Para ele, eu registraria isto como uma honra.
Não um filósofo judeu, mas um filósofo que tem um judaísmo de filósofo (...)
Eu também recuso este modo de nos catalogar, e portanto de nos
marginalizar”29.

Por isso, afirma, com propriedade, François Dosse, nesta tantas vezes – e com
razão! - citada biografia de Ricoeur que este, assim como Lévinas,

27
Cf François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op. cit., p. 443
28
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op. cit., p.102
29
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op. cit., p.204/205: “Moi non plus, approuve
Ricoeur, je n´aime pas qu´on dise philosophe protestant. On est philosophe ou on ne l´est pas. J´ai ‘protesté’
contre cela. J´ai dit que j´avais une lecture philosophique du christianisme. J´ai un christianisme de
philosophe. J´oserai dire qu´il a un judaïsme de philosophe. Pour lui, j´enregistrerais cela comme un
honneur. Non pas un philosophe juif, mais un philosophe qui a un judaïsme de philosophe. (…) Je récuse
moi aussi cette façon de nous cataloguer, et donc de nous marginaliser.”
167

“está exposto a problemas análogos de recepção. Quer porque se considere nele [em
Lévinas] somente o pensador judeu, o leitor dos profetas, especialista do Talmud, o
que equivale a colocá-lo em uma situação de exterioridade em relação à filosofia, quer,
porque, ao contrário, só se interesse por seus textos propriamente filosóficos,
desligados de suas convicções religiosas, e se obtenha assim um pensamento cindido.
Como em Ricoeur, ao se operar esta cesura de modo muito radical, passa-se ao lado
dos múltiplos efeitos de reverberação dos dois lados da fronteira. Lévinas (...) visa
fazer dialogar a tradição judaica e a tradição filosófica, Atenas e Jerusalém , não para
realizar uma síntese impossível, mas, e aí ainda num gesto análogo ao de Ricoeur, para
manter uma tensão inultrapassável entre estas duas tradições” 30.

Num mesmo gesto, portanto, ambos sempre fizeram questão de manter os dois
registros separados, cada um a seu modo. Para Ricoeur: “Não é simplesmente por
precaução metodológica que não misturo os gêneros, é porque faço questão de afirmar uma
dupla referência, absolutamente primeira para mim. Dei a isso (...) uma série de
formulações (...) a que privilegio agora, expressa-se pela relação entre convicção e crítica”
(CC211). Para Lévinas: “Sim, eu separo muito nitidamente este dois tipos de trabalhos: eu
mesmo tenho dois editores, um que publica meus textos ditos confessionais, outro que
publica meus textos ditos puramente filosóficos. Eu separo as duas ordens”.31
Olhar filosófico dirigido à teologia, que muitos teólogos têm em alta conta, a crer o
dominicano Jean-Pierre Jossua: “Eu o penso de Kierkegaard para ontem e de Lévinas e
Ricoeur para hoje. Eles terão sido os mais importantes para o pensamento teológico”32. Não
é por acaso que Ricoeur tornou-se um pensador muito influente para os teólogos, e que
Lévinas tenha sido mais reconhecido entre os cristãos que entre os judeus, ao menos de
acordo com Marie-Anne Lescourret, “os cristãos lhe traziam uma compreensão e um
reconhecimento que ele nem sempre encontrava naqueles de sua própria confissão”33. Com

30
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op. cit., p. 750: “Lévinas, comme Ricoeur, est exposé à
des problèmes de réception analogues. Soit on ne retient chez lui que le penseur juif, le lecteur des
prophètes, spécialiste du Talmud, ce qui revient à le placer dans une situation d´extériorité par rapport à la
philosophie, soit au contraire on ne s´intéresse qu´à ses textes proprement philosophiques, détachés de ses
convictions religieuses, et l´on a une pensée excisée. Comme chez Ricoeur, si l´on opère cette césure trop
radicalement, on passe à côté des multiples effets de réverbération des deux côtés de la frontière. Lévinas
(...) vise à faire dialoguer la tradition judaïque et la tradition philosophique, Athènes et Jérusalém, non pour
réaliser quelque synthèse impossible mais, et là encore dans un geste analogue à celui de Ricoeur, pour
maintenir une tension indépassable entre ces deux traditions.”
31
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., 103.
32
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 671
33
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.293
168

o que concorda Jean Halpérin : “Se é mais atento ao pensamento de Lévinas no mundo não
judaico”34.
“Interlocutores privilegiados daqueles que, por vocação ou convicção, praticavam a
filosofia e a religião”35, Lévinas e Ricoeur são amiúde convidados em colóquios,
conferências e congressos teológicos, como por exemplo nas faculdades Saint Louis, em
Bruxelas, onde em 1976 a noção de revelação foi palco de discussões, e tema das
comunicações de ambos 36.
Também de 1976 a 1980, apenas três franceses: Ricoeur, Lévinas e Jacques Colette
são convidados a participar de um grupo franco-alemão chamado: “Linguagens e
Religiões”. De acordo com François Dosse, os alemães fazem questão da presença de
Lévinas que, no entanto, se recusa a pisar na Alemanha, as reuniões tendo então lugar na
França.
O mesmo ocorre com o “Grupo de Wahlwiller”, um grupo de reflexão sobre a
filosofia da religião no mundo contemporâneo, organizado pelos alemães Casper e
Wenzler, cujas reuniões acontecem duas vezes por ano durante cinco anos, mas nunca na
Alemanha, e sim em Paris ou na fronteira holandesa de Wahlwiller. Novamente entre os
participantes, três franceses: além de Lévinas, Paul Ricoeur e Jean-Luc Marion.
Também é digno de menção o encontro organizado, em 1980, por Richard Kearney
sobre Heidegger e a questão de Deus. Encontro que não se desenrolaria sem problemas,
uma vez que, a exemplo de tantos outros pensadores, Ricoeur e Lévinas entretêm com
Heidegger uma relação complicada, admirando-o como grande filósofo, e ao mesmo
tempo, desprezando-o por seu comprometimento com o nazismo. Ricoeur havia participado
da década dedicada a Heidegger em Cerisy, em 1955. Na conferência de Heidegger sobre
“O que é a Filosofia?”, Ricoeur toma a palavra para questionar a ausência, no pensamento
heideggeriano, da herança hebraica, no entanto essencial para o pensamento ocidental37. E,
neste encontro organizado por Kearney, Ricoeur, pela segunda vez contrariando seu
habitual modo “gentil, mediador, conciliador”38, lança provocativamente o que afirma ser
sua questão: “Porque refletir unicamente sobre Holderlin e não sobre os Salmos, sobre

34
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 283.
35
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 268
36
Cf. François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 408.
37
Cf. Idem, p. 418/419.
38
Richard Kearney, em entrevista a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 424.
169

Jeremias? Eis minha questão”39. Tal inesperada e provocadora atitude pode dar uma vaga
idéia do clima tenso que se estabeleceu neste encontro, ou melhor, confronto, entre dois
campos: de um lado, os fidelíssimos a Heidegger (Jean Beaufret, François Fédier, François
Vezin), e no campo adversário, figuras como Lévinas, Ricoeur, Marion, Breton, Greisch....
É quase que irresistível não relatar aqui algumas anedotas, para não dizer ‘fofocas’: “Fédier
começa sua intervenção por um: ‘Hoje, é dia de São João’, enquanto Lévinas comenta no
seu canto: ‘Como ele ousa citar um santo? O que sabe ele de São João?’”40. Ou ainda:
Beaufret, em sua exposição, acende um cigarro atrás do outro. Ricoeur se impacienta e
manda um bilhetinho para Kearney: “Peça a Beaufret parar de fumar. Ele está me
matando”41; é o suficiente para que Beaufret imediatamente acenda outro cigarro. Mas a
melhor de todas: “O clima estava a tal ponto tenso que Lévinas, em geral muito afável, se
recusa a emprestar seu exemplar do Antigo Testamento a Stanislas Breton, que queria ler
uma passagem: ‘É um texto sagrado!’ ele objeta para recusar o pedido ao padre Breton,
subitamente transformado em pagão”42. ‘Fofocas’ à parte, a questão ali em jogo era a de se
Deus seria ou não redutível ao ser. Pode-se adivinhar a posição de nossos autores, aliás,
muito bem expressa na concisa fórmula de Jean-Luc Marion: “Porque Deus não diz
respeito ao ser, ele nos advém em e como um dom”43.
No entanto os encontros mais profícuos se deram por ocasião dos Colóquios
Castelli. O aristocrata Enrico Castelli, filósofo e amigo do Papa João Paulo II, decide, logo
após o término da II Guerra, “reunir os pensadores de toda a Europa em colóquios dos
quais foi o mecenas e o anfitrião. Sua idéia era a de contribuir ao renascimento da Europa
das culturas. Escolheu como temática central o que se chama ‘filosofia da religião’”.44
Desde 1961, Ricoeur não somente participa destes famosos colóquios, como pode ser

39
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 424. É preciso no entanto sublinhar que tal
provocação se assenta na profunda convicção de Ricoeur acerca da importância da herança hebraica.
Convicção que ele manifesta repetidas vezes tanto em sua obra como em suas conferências. Dentre estas,
ressalta-se aquela apresentada em 1995, na comemoração dos 95 anos de Gadamer, em Heidelberg, na qual
Ricoeur faz referência a Rosenzweig, Hans Jonas e Lévinas. Jefferey Barash comenta: “Diante destes
filósofos alemães, o fato de citar Lévinas, de falar de amor e de acrescentar ‘Não me mates’ foi
extremamente forte, não para culpabilizar, mas para convidar a uma reflexão sobre a existência de uma
outra herança.” In: François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.406.
40
Richard Kearney em entrevista a François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 424.
41
Idem, p. 424
42
Idem, p. 424.
43
Jean-Luc Marion. Dieu sans l´être, Fayard, Paris, 1982, p. 12. Citado por François Dosse. Paul Ricoeur.
Les sens d´une vie, op.cit., p. 425.
44
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 269.
170

considerado um dos pilares, cabendo-lhe geralmente fazer a primeira comunicação, logo


após a abertura, orquestrada, evidentemente, por Castelli45. Lévinas também faz parte do
seleto grupo de intelectuais, pela primeira vez em 1969, quando então apresenta um texto
sobre “O nome de Deus a partir de alguns textos talmúdicos”. Feliz de estar no coração da
reflexão teológica cristã, Lévinas participa regularmente dos encontros anuais até 1986,
contribuindo com uma dezena de comunicações46.
Numa delas, enquanto Lévinas aproxima a Shoah da paixão de Cristo47, ouve de
um participante italiano, cuja identidade não é revelada: “Mas por que o senhor não é
cristão?”. Com esta candente questão, tal personagem anônimo pôs, propositadamente ou
não, o dedo na ferida: Lévinas, não poucas vezes, foi acusado por seus correligionários de
cristianização do judaísmo. A esta crítica, sem meias palavras, responde Shalom
Rosenberg: “A idéia segundo a qual Lévinas teria uma abordagem cristã é uma idéia idiota.
O cristianismo sustenta que ele representa a graça e o amor, enquanto o judaísmo simboliza
a justiça. Quem disse que isto é verdadeiro?” 48.
Por mais que se considere excessiva a aproximação entre a experiência judaica da
Shoah e a paixão de Cristo, não se pode negar que Lévinas, ao lado de Rosenzweig e
Buber, foi um dos raros pensadores contemporâneos que, além de ousar dar nome e voz ao
pensamento judaico, elevando-o à categoria de interlocutor filosófico digno da herança
grega, creditando-o da mesma respeitabilidade tradicionalmente atribuída a Sócrates e ao
pensamento grego, também ousou dialogar com a tradição cristã. Quis o destino que este
diálogo se desse frente a frente com o Papa. E também quis novamente o destino que
Ricoeur tivesse participação direta neste acontecimento.
Em 1983, Ricoeur e Lévinas são convidados do Papa João Paulo II, em sua
residência de verão em Castel Gandolfo, a fim de debater o tema: “A imagem do homem na
perspectiva das ciências modernas”. A cada dois anos, ali se reuniam os membros do IWM
(Institut für die Wissenschaften vom Menschen) ou Instituto das Ciências do Homem,
criado em 1982, com sede em Viena, que tinha por objetivo reunir os pesquisadores dos

45
Cf. François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 374
46
Cf a relação destas, cuidadosamente apresentada por Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.
386, nota 62.
47
Seguramente, não foi esta a única vez em que Lévinas aponta tal polêmica convergência, como atesta Marie
Anne Lescourret.Emmanuel Lévinas, op.cit., p.387, nota 65.
48
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.300
171

dois lados da Europa. Este instituto tem pleno apoio do Papa que “vê nele um meio
privilegiado de reatar com redes do Leste enquanto pólo de resistência ao totalitarismo e de
revitalização do cristianismo”49. Três franceses fazem parte do conselho científico do
Instituto: Ricoeur, Lévinas e Emmanuel Le Roy Ladurie. Ricoeur participou dos encontros
em Castel Gandolfo por quatro vezes, enquanto Lévinas esteve presente em 1983 e 1985.
Em entrevista a Malka, Ricoeur faz questão de ressaltar o respeito e a admiração que o
Papa João Paulo II nutria por Lévinas, em parte devido à sua formação de filósofo e
fenomenólogo50. Com a habitual modéstia, Ricoeur esquece de dizer que esta admiração se
estendia a ele próprio. Palavras do Papa, na época (1977) ainda cardeal: “Há dois grandes
filósofos que relevam da esfera religiosa: Lévinas e Ricoeur”.51 Conta a história que estes
mesmos dois filósofos foram escolhidos para sentar à mesa junto ao Papa, que se declarou
feliz de almoçar entre os dois52.
No colóquio de 1994, estando Lévinas ausente, o Papa pediu a Ricoeur que
saudasse Lévinas e lhe dissesse seu respeito e admiração. De volta a Paris, Ricoeur
transmite o recado a Lévinas:

“Ele estava pleno de dor pela morte de sua esposa. Ele me disse com ironia: ‘Em
suma, é preciso um protestante para que um católico fale a um judeu.’ É o tipo
de humor que tínhamos entre nós, acompanhado de uma piscadela de olhos.
Sabíamos perfeitamente o não-dito de tudo que dizíamos. (...) Vê-se aí tudo o
que havia de competição cúmplice entre nós. Eis porque, tentou-se, muitas
vezes, opor-nos, mas nós nunca nos deixamos encerrar nesta oposição”53.

49
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.634.
50
Cf. Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.201. Em 1959, o Papa, na época
Karol Wojtyla, defendeu uma tese sob a direção de Roman Ingarden sobre a fenomenologia de Max
Scheler. E Lévinas inclusive apresentou em 1980 uma comunicação para a Associação dos Escritores
Católicos, intitulada: “Notas acerca do pensamento filosófico do Cardeal Wojtyla”, publicada no número V
de julho-agosto 1980 na revista católica Communio. Para mais detalhes sobre a vida do Papa e a relação
entre este e Lévinas, consultar: François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.634-635; Marie
Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.294-303; e Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et
la Trace, op.cit., p.228 a 236.
51
Citado por Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.233
52
Cf. François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.634 e Marie Anne Lescourret. Emmanuel
Lévinas, op.cit., p.300
53
Ricoeur citado por Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 201: “ Il était plein de
la douleur de la mort de sa femme. Il m´a dit avec ironie: ‘En somme, il faut un protestant pour qu´un
catholique parle à un juif.’ C´est le genre d´humour que nous avions entre nous, avec le clin d´oeil
permanent. On savait parfaitement les non-dit de tout ce que nous disions. (…) Vous voyez tout ce qu´il y
avait de compétition complice entre nous. C´est pourquoi, on a essayé, bien des fois, de nous opposer, mais
nous ne nous sommes jamais laissé enfermer dans cette opposition.”
172

Tal contundente depoimento faz pensar que se é verdade, como afirma Lescourret,
que “cada um tem uma verdadeira familiaridade com o pensamento do outro”, talvez seja
menos verdade que esta familiaridade seja apenas conceitual e que “eles não conheceram
outra proximidade que não a dos conceitos”54.
Não é segredo para ninguém a profunda admiração e o respeito que nutriam um
pelo outro. Não faltaram ocasiões nas quais ambos assim se expressaram, como por
exemplo nesta entrevista a Poirié, na qual Lévinas se refere a Ricoeur em termos de
“espírito notável, o melhor de nossa época”55. Em outra entrevista concedida a Saint-
Cheron, diz Lévinas: “Tenho muita admiração, o Sr. sabe, por Paul Ricoeur. Em toda a
filosofia contemporânea, ele é um espírito ao mesmo tempo audacioso e de uma perfeita
honestidade”56. Entretanto alguns depoimentos parecem ir além de um, por assim dizer,
distante respeito conceitual: Ricoeur, por exemplo, fala da “estima e quase veneração que
tenho por Lévinas”57. E François Dosse ilustra bem a força do laço que uniu estes dois
homens, ao relatar que:

“Um dia, no Instituto católico, enquanto Ricoeur deve fazer uma conferência,
Lévinas está de passagem, apressado, pois se aproxima a hora do shabbat. Ele
tem apenas esta bela fórmula: ‘Eu quis vir assim mesmo antes de ir embora para
o shabbat porque eu queria rever o rosto de Paul Ricoeur’. Após a morte de seu
pai, o filho de Lévinas revela a Peter Kemp que, nos últimos meses de sua vida,
os dois únicos nomes próprios que ficaram gravados em sua memória eram os
de seu grande amigo Maurice Blanchot e de Paul Ricoeur.”58

Se as relações pessoais foram tardias59, e o encontro entre ambos, no dizer do


próprio Ricoeur, foi “descosturado (...) em staccato”,60 e marcado por uma proximidade
distante, não parece ter faltado uma intensidade afetiva tecida de respeito, admiração e
cumplicidade, mesmo nos momentos de confronto. De fato, como não poderia deixar de

54
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, op.cit., p.248
55
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op.cit., p. 126
56
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas. 1992-1994, op.cit. p. 29.
57
Ricoeur citado por François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 750. Grifo meu.
58
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 751: “Un jour, à l´Institut catholique, alors que
Ricoeur doit faire une conférence, Lévinas est de passage, pressé car l´heure du sabbat approche. Il ná que
cette belle formule: ‘J´ai voulu venir quand même avant de partir pour le sabbat parce que je voulais revoir
le visage de Paul Ricoeur.’ Après la disparition de son père, le fils de Lévinas revèle à Peter Kemp que,
dans les derniers mois de sa vie, les deux seuls noms propres qui sont restés gravés dans sa mémoire étaient
ceux de son grand ami Maurice Blanchot et de Paul Ricoeur.”
59
Cf. Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.199
60
Paul Ricoeur citado por Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit.,p. 203
173

ser, em se tratando destes dois homens abertos ao diálogo – talvez Ricoeur mais do que
Lévinas – mas fiéis a seu próprio pensamento, “cada um seguiu seu próprio caminho”,
como observa Malka:

“Certamente, o itinerário, a captividade durante a guerra, a Bíblia, a


fenomenologia, uma filiação comum e uma atração comum pela exegese, uma
preocupação com a observância cada um em sua tradição religiosa, uma espécie
de alegria vivaz na vida cotidiana, um aguçado senso de humor, tudo isso
aproxima Ricoeur e Lévinas. Mas cada um seguiu seu próprio caminho”.61

Seu próprio caminho e, como não poderia deixar de ser, cada um a seu modo. Isto
significa, entre outras coisas que Ricoeur sempre pareceu estar mais atento a seu colega e
amigo do que o contrário. Surge aí uma questão que confesso, me intrigou e intriga: no
debate entre eles, não há muitas referências – ou pelo menos eu não as encontrei nas obras
pesquisadas - de Lévinas a Ricoeur. As encontradas referem-se mais a temas ligados à
teologia, ou à religião: uma é relativa à importância da exegese para o judeu62; a segunda
acerca da interpretação dos textos bíblicos, faz uma crítica ao estruturalismo63. Pela terceira
vez, Ricoeur aparece sob a pluma de Lévinas, em “Da linguagem religiosa e do temor a
Deus” publicado em L´Au-delà du Verset, estudo que dedica a Ricoeur. De acordo com
François Dosse:
“Se ele presta homenagem a Ricoeur por ter mostrado as fontes da imaginação
em sua comunicação sobre a Revelação e se ele apresenta seu próprio
comentário talmúdico como ‘uma contribuição à reflexão sobre a linguagem
religiosa aberta por Paul Ricoeur’ é, na verdade, para expressar um real
desacordo”64

Desacordo explicitado adiante: “À dependência sem heteronomia da qual fala


Ricoeur, nosso texto parece opor uma exaltação da heteronomia e da obediência que
significaria precisamente uma independência.” (ADV120)

61
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.202/203: “Certes, l´itinéraire, la captivité
pendant la guerre, la Bible, la phénoménologie, une commune filiation et une commune attirance pour
l´exégèse, un souci de l´observance chacun dans sa tradition religieuse, une sorte de gaieté aussi dans la vie
quotidienne, un sens de l´humour, tout cela rapproche Ricoeur et Lévinas. Mais chacun a suivi sa route.”
62
Cf. Marie Anne Lescourret. Emmanuel Lévinas, p. 174
63
Cf. Idem, p. 248
64
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 752/753: “S´il rend hommage à Ricoeur pour
avoir montré les ressources de l´imagination dans sa communication sur la Révélation et s´il présente son
propre commentaire talmudique comme une ‘contribution à la réflexion sur le langage religieux ouverte par
Paul Ricoeur’, c´est en fait por exprimer un réel désaccord.”
174

Confesso que esta quase ausência de reflexões sobre Ricoeur na obra de Lévinas me
surpreende bastante: ele não está presente nem mesmo em Noms Propres, como nota
Malka: “Ricoeur não fez parte destes nomes próprios que Lévinas saúda em seu recueil de
homenagens àqueles e àquelas que o cercavam, em todos os sentidos deste termo”65. E
conclui: “É verdade que a chegada de Ricoeur em sua vida é mais tardia”. Poder-se-ia
objetar que Noms Propres foi publicado em 1975, época na qual Ricoeur e Lévinas já
entretinham relações mais próximas. No entanto, o nome de Ricoeur aparece no prefácio da
tradução italiana de Noms Propres, como afirma Lévinas em um interessante debate
radiofônico entre os dois filósofos, ocorrido em fevereiro de 198566.
Essa reserva é, no entanto, bem menos flagrante nas entrevistas de Lévinas, nas
quais, com freqüência, aparece o nome de Ricoeur, sempre em termos de admiração, como
por exemplo naquela concedida a Saint-Cheron67, ou ainda a Poirié em 1986. À pergunta
deste: “O que, de 1945 até hoje, instigou o senhor, se posso dizer isso, qual acontecimento
intelectual ou político?”, Lévinas responde: “Fora dos mestres da fenomenologia, eu li
sobretudo os textos nos quais M.Chouchani me iniciou, isto me parecia muito mais
importante. Há lembranças de Leon Brunschvicg, mas houve e há Blanchot, Jean Wahl,
Ricoeur, Derrida e também Vassili Grossman e o romancista israelense Agnon”68.
Convenhamos: ser citado como acontecimento decisivo não é pouca coisa! Tampouco o é
ser evocado na reta final, por assim dizer, da vida: lembremos o que disse seu filho Michael
a Peter Kemp: nos últimos meses de vida de Lévinas, os nomes gravados em sua memória
eram os de Ricoeur e Blanchot.
Por parte de Ricoeur, nenhum silêncio: além do nome de Lévinas aparecer várias
vezes em Soi-même Comme Un Autre, pode-se citar ao menos dois escritos em que Ricoeur
se debruça sobre a obra deste. Um deles tem por título Emmanuel Lévinas, penseur du
témoignage e o outro, um pequeno opúsculo intitulado Outramente, constitui uma leitura
cuidadosa de Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence. Não somente Ricoeur elabora
uma análise cuidadosa de alguns dos temas privilegiados em Lévinas, como também faz

65
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 196
66
Infelizmente, não tive acesso a esta edição italiana, na qual o nome de Ricoeur aparece ligado ao desacordo
entre eles quanto à reciprocidade ou dissimetria na relação intersubjetiva. Mas recomendo a leitura do
interessante debate entre Ricoeur e Lévinas, ocorrido na Radio France Culture (21 de fevereiro de 1985), e
publicado em Emmanuel Lévinas. Philosophe et Pédagogue, op.cit., p.14
67
Cf. Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas. 1992-1994, op.cit, p. 29.
68
François Poirié. Emmanuel Lévinas: Ensaio e Entrevistas, op. cit., p.126
175

questão de ressaltar sua “dívida” para com ele (Cf. SA221, nota 1), o que faz supor que
Ricoeur pensou também a partir de Lévinas.
Digo: também, pois Lévinas não é o único autor que ocupou o pensamento de
Ricoeur: ao contrário, seu modo próprio de trabalhar se caracteriza por análises longas,
finas e acuradas de outros pensadores. Este seu cuidado e generosidade com o pensamento
do outro lhe valeu até mesmo uma crítica, para não dizer censura: ele supostamente não
teria um pensamento próprio. Sobre isso, escreve Gagnebin:

“Tal confrontação com pensamentos alheios levou à crítica muito freqüente de


que Ricoeur não teria um pensamento próprio. Só saberia, como um bom
professor (meio chato, como são os bons professores!), expor as idéias dos
outros e corrigir-lhes os excessos. Gostaria, aqui, não apenas de defender uma
originalidade estonteante da filosofia de Ricoeur – originalidade, aliás, que me
parece pertencer a pouquíssimos, apesar das afirmações mercadológicas
contrárias – mas de ressaltar sua coerência e sua generosidade”69.

Pode-se também recorrer novamente ao seu biógrafo, François Dosse: “Ele não se
limita a apresentar o pensamento dos outros, este saber ensinado é sempre retomado, re-
apropriado, investido de sua subjetividade. Contrariamente ao que se pode ouvir aqui e ali,
Ricoeur não se abriga atrás da filosofia dos outros”70. Vale a pena deter-se em dois dos
depoimentos de suas alunas: Diz Françoise Dastur: “(...) Não há nele nenhum narcisismo.
(...) Quando fala dele, é sempre numa situação interpessoal”71, e de modo mais entusiasta,
Gwendoline Jarczyk: “O rosto que guardo de Ricoeur (...) é o de um homem que passou
seu tempo a honrar a obra do outro (...) Ele discute pois a discussão é um valor para ele. A
discussão é para ele uma démarche filosófica”72. Por isto não surpreende o fino comentário
de Dosse: “Uma das inovações conceituais as mais fecundas de Ricoeur, a da identidade
narrativa, corresponde perfeitamente a sua personalidade”73.
O mesmo talvez não possa ser dito de Lévinas – ao menos a crer esta espécie de
desabafo de Ricoeur :

“Quando ele diz ‘Sou refém do outro’, é bem preciso ver que Lévinas não era
refém de ninguém. Não se podia mettre le grappin sur lui (apoderar-se, apossar-

69
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p.163
70
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p. 252
71
Idem, p.253
72
Idem, p.253
73
Idem, p. 253
176

se, apropriar-se dele, agarrá-lo.) Quando ele diz: ‘Estou aqui, não tomo assim o
lugar de outro?’, conhecendo o homem, se sabia que ele ocupava tranqüilamente
seu lugar.Devo dizer que há aí para mim uma incompreensão. Tenho
dificuldades em unir o grande filósofo, aquele que ficou tão feliz em ser eleito
para Paris IV e depois para a Sorbonne, e esta espécie de virulência da escrita.
Não consigo coordenar isto”74.

Se destas reflexões, nas quais se harmonizam o modo de ser e a obra de Ricoeur,


enquanto as de Lévinas entram numa espécie de curto circuito, o leitor conclui que se está
aqui a ensaiar algum tipo de psicanálise rasa, na qual a obra possa ser posta no divã, deve
ser convidado a continuar a leitura...

74
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 202: “Quand il dit: ‘Je suis l´otage de
l´autre’, il faut bien voir que Lévinas n´était l´otage de personne. On ne mettait pas le grappin sur lui.
Quand il dit: ‘Je suis ici, est-ce que je ne prends pas la place d´un autre?’, connaissant l´homme, on savait
qu´il occupait tranquillement sa place. Je dois dire qu´il y a là, pour moi, une incompréhension. J´ai de la
peine à faire le raccord entre le grand philosophe, celui qui a été si heureux d´être élu à Paris IV, puis à la
Sorbonne, et cette virulence de l´écriture. Je n´arrive pas à coordonner cela.”
177

Segunda Parte

O Debate Teórico: Cumplicidade no elegante desacordo

“O inferno é a ausência de outros – é isto, o inferno”


(Louise Bourgeois)

Em entrevista a Salomon Malka, Ricoeur se refere a sua relação com Lévinas em


termos de uma “competição cúmplice”:75 feliz expressão que marca a presença tanto da
proximidade quanto da distância que há entre os dois autores, não somente do ponto de
vista de suas biografias, mas também, e sobretudo no que se refere às suas indagações
teóricas.
Como se afirmou, já na introdução, a vontade de reabilitação de um certo sujeito e
de um certo homem e humanismo é comum a Ricoeur e Lévinas, o que os coloca no
horizonte de uma certa cumplicidade; esta, entretanto, não impede que se façam ver as
divergências ou desacordos, sempre formulados de modo elegante (como o ilustra a troca
de cartas publicada em Ethique et Responsabilité76) : o sujeito de Ricoeur, homem capaz,
mas submetido ao sofrimento, não pode ser ‘amigo’ de um sujeito refém do outro, que a ele
se substitui na mais absoluta passividade.
Se ambos almejam destituir o sujeito de sua arrogância, não o fazem do mesmo
modo. Efetivamente, como já foi mencionado, Ricoeur insiste no prefixo ‘des’ que marca o
limite da autonomia de um sujeito auto-suficiente e solipsista. Mas ele não pode
acompanhar Lévinas, que não se contenta com o limite da autonomia do sujeito cartesiano,
transmutando-o, pela estratégia da hipérbole ou da ênfase, em negação: “À dependência
sem heteronomia da qual fala Ricoeur, nosso texto parece opor uma exaltação da
heteronomia e da obediência que significaria precisamente uma independência” (ADV120).
Tal afirmação abrupta necessita ser pacientemente pensada: este é propriamente o
objetivo deste capítulo. O tema aqui em questão diz respeito ao cruzamento entre as noções

75
Ricoeur em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 201.
76
Emmanuel Lévinas et Paul Ricoeur. Échange de lettres: “L´Unicité Humaine du Pronom Je”. In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur. Textes réunis par Jean-Christophe Aeschliman, op.cit., p. 35 a 37.
178

de identidade narrativa e de ipseidade de Ricoeur, e a de sujeito heteronômico ou de


substituição, tal como pensadas por Lévinas. Por força das circunstâncias, e quando tal
cruzamento exigir, outros temas recorrentes em ambos os autores serão mencionados: é
assim que comparecerão aqui também as relações entre: ética, moral e justiça, o lugar
possível da ontologia no discurso filosófico, e a presença da transcendência em suas
filosofias do sujeito.
De acordo com François Dosse, a divergência entre os autores versa sobre dois
pontos essenciais: em primeiro lugar, Ricoeur critica a “absolutização da alteridade em
Lévinas que ele leva até o ponto de esvaziar o ‘eu’ de qualquer consistência”77 ; em
segundo, ele não o segue “na idéia de uma ética sem ontologia sob pretexto que a ontologia
seria totalitária”78
Nesta breve e rápida antecipação, já se nota que não se trata de dois pontos
quaisquer, mas dos dois pilares que sustentam a construção do pensamento de cada um dos
autores, o que implica numa discussão de noções tais como reciprocidade e substituição,
promessa e responsabilidade, atestação e eleição, assim como de autonomia e heteronomia,
receptividade e passividade, ipseidade e unicidade para mencionar apenas alguns dos temas
que deverão constar neste debate. Pode-se penetrar nesta seara a partir de qualquer um
destes temas ou pontos de vista, uma vez que todos eles se entrecruzam. Porém todos
dizem respeito ao modo pelo qual Ricoeur e Lévinas pensam a possibilidade de um certo
sujeito – ainda e apesar do descrédito associado à palavra sujeito, ainda e apesar, ou por
causa de, Auschwitz. Como já se mencionou, é propriamente este desejo de reabilitar um
certo sujeito que os anima e une. Por este motivo, se a tarefa aqui fixada é a de ressaltar a
oposição teórica entre Ricoeur e Lévinas – no que se refere às suas concepções de sujeito –
não se pode deixar de prestar atenção ao que havia de cumplicidade entre eles.
Já não é mistério para o leitor o espaço no qual se encontram nossos dois autores.
No âmbito da filosofia, o ponto de partida comum é a fenomenologia ou, se quisermos,
Husserl e Heidegger. Diz Ricoeur: “Há Husserl, isto é, a radicalidade filosófica que foi,
tanto para ele quanto para mim, recoberta indevidamente por Heidegger.”79 No entanto, se
o esforço de Lévinas, em seus últimos escritos, foi o de abandonar definitivamente a

77
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.752
78
Idem, p.752
79
Salomon Malka Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 204
179

fenomenologia, enquanto esta permanece no âmbito do fenômeno, do aparecer, do saber e


do conhecimento – no mesmo gesto de recusa da ontologia, e da linguagem a ela relativa –
, Ricoeur não renuncia ao ensinamento de Husserl, embora dele se distancie, propondo uma
“greffe” hermenêutica na fenomenologia, que faz com que prefira a via longa da
hermenêutica à via curta da intuição80, via longa ou desvio que atesta a não imediaticidade
ou transparência da consciência em relação ao seu objeto.
Mas há também, como se viu, uma atenção e um respeito, por parte de ambos, em
relação à suas tradições religiosas, ou como diz Ricoeur, aos “irmãos mais velhos”:

“E, depois, por outro lado, a família, os ‘irmãos mais velhos’. Minha percepção
do cristianismo é verdadeiramente construída sobre a Bíblia hebraica. Portanto,
tenho dois pontos de ligação que são também descontínuos, e ignoro como eles
funcionam juntos, Husserl e a Tora. Também com ele, não sei como isso
funciona. Não há citações da Bíblia, salvo talvez uma ou duas vezes, em Totalité
et Infini. É Platão. É Descartes. E quando ele lê em Platão que a idéia do Bem
está para além do ser, ele pensa no nome não pronunciável, e faz uma espécie de
curto circuito que não é jamais dito enquanto tal. Que o nome impronunciável e
o Bem de Platão se superponham em um ponto que não possa ser dito, toco aí
em algo profundamente escondido, profundamente dissimulado e sempre dito
indiretamente. Mas, afinal de contas, eu mesmo tenho um problema similar.
Minhas relações, ao mesmo tempo compartilhadas e indivisíveis, com o
judaísmo e o cristianismo, são da mesma natureza. Ele foi, em sua filosofia, fiel
a seu judaísmo, como eu o sou eu mesmo ao meu cristianismo.”81

A relação com suas respectivas tradições passa pela leitura e interpretação das
escrituras, tema caro para ambos. A importância da exegese para o judaísmo é ressaltada
tanto por Ricoeur quanto por Lévinas, como se pode observar a partir desta citação
retomada por Lescourret: “O Sr. Ricoeur o disse profundamente há quinze dias atrás: na

80
Cf. Olivier Abel e Jerôme Porée. Le Vocabulaire de Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007, p. 65: “À ‘via curta’ da
intuição, se opõe a ‘via longa de uma interpretação aplicada aos signos, símbolos e aos textos que
mediatizam nossa relação ao mundo”
81
Salomon Malka Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 204: “Et, puis, d´autre part, le judaïsme,
qui est, pour moi, la famille, les ‘frères aînés’. Ma perception du christianisme est vraiment construite sur la
Bible hébraique. Donc, j´ai deux points d´attache qui sont également discontinus, et j´ignore comment ils
fonctionnent ensemble, Husserl et la Tora. Et chez lui-même, je ne sais pas non plus comment cela
fonctionne. Il n´y a pas de citations de la Bible, sauf peut-être une fois ou deux, dans Totalité et Infini. C´est
Platon. C´est Descartes. Et quand il lit dans Platon que l´idée du Bien est au-delà de l´être, il pense au nom
non prononçable, et il se fait une sorte de court-circuit qui n´est jamais dit comme tel. Que le nom
imprononçable et le Bien de Platon soient superposables en un point que lui-même ne peut pas être dit, je
touche là à quelque chose de profondément enfoui, profondément dissimulé et toujours dit indirectement.
Mais après tout, moi, j´ai un problème similaire. Mes rapports de philosophie avec le judaïsme et le
christianisme, à la fois partagés et en même temps indivisibles, sont de même nature. Il a été, dans sa
philosophie, fidèle à son judaïsme, comme je le suis à mon christianisme.”
180

exegese, na permanência da exegese, desta interpretação e reinterpretação dos textos da


Bíblia, o Judeu se identifica interiormente; assim que rompe com a exegese, está perdido na
política”.82 Não somente compartilham esta convicção, como também o fazem do mesmo
modo, isto é, afastados de Lévi-Strauss: “O que o Sr. Ricoeur diz da hermenêutica oposta à
análise estruturalista, a qual não conviria à interpretação das significações provenientes das
fontes gregas e semíticas, se verifica na interpretação dos textos talmúdicos. Nada se parece
menos com a estrutura do pensamento ‘selvagem’”83.
Estes rápidos comentários me remetem a uma questão, levantada por Marcelo
Fabri84, acerca da possibilidade da hermenêutica em Lévinas: questão interessantíssima,
cuja resposta – se é que se pode dizer ‘resposta’ – é dupla: se há hermenêutica em Lévinas?
Sim e não. Não, pois esta visa tornar próximo o distante, isto é: transformar o outro em
mesmo. Mas, por outro lado, o texto solicita: “Um texto pode nos trazer sempre mais
sentido, desde que ele seja de novo interpelado e interrogado. Conseqüentemente,
interpreta não é apenas traduzir, mas sobretudo solicitar”85. Ainda segundo Fabri, David
Banon compararia o texto solicitado “a uma moeda que pode ser polida para que possa
brilhar ainda mais, ou à brasa que podemos soprar para que se torne ainda mais viva e
incandescente”86.
Não pretendo aqui a examinar o procedimento hermenêutico de Lévinas no que se
refere às lições talmúdicas, ousando inadvertidamente, e talvez incorretamente fazer uma
afirmação geral, à queima-roupa: o que interessa a Lévinas, nos textos talmúdicos é a
interrogação ética.87 Louis Fèvre, em sua apresentação sobre a filosofia de Ricoeur,

82
Lévinas citado por Marie Anne Lescourret. Emmanuel Levinas, op.cit., p. 174
83
Emmanuel Lévinas. Quatre lectures Talmudiques. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 18. Citado por
Marie Anne Lescourret. Emmanuel Levinas, op.cit., p. 248.
84
Marcelo Fabri. “Distância e Proximidade: Lévinas e a Hermenêutica”. Palestra proferida no Centro de
Estudos judaiscos da USP, agosto de 1999. Até onde vai meu conhecimento a palestra não foi publicada,
mas encontra-se em manuscrito.
85
Idem, p.15.
86
Idem, p.15, nota 36. O autor remete ao texto de David Banon. “Une herméneutique de la sollicitation.
Levinas lecteur du Talmud”. In: Les cahiers de la Nuit Surveillée, n.3 (Levinas), textes rassemblés par
Jacques Rolland, Les éditions Verdier, 1984, p.110
87
Confesso minha escassa familiaridade com os textos do que se poderia chamar de ‘Lévinas talmúdico’: o
pouco que pensei se deve ao rabino e professor Alexandre Leone, no decorrer de um curso ministrado no
Instituto Sedes Sapientiae, em 2007. As possíveis interpretações apressadas ou incorretas devem,
evidentemente, a mim, e só a mim, ser atribuídas.
181

retomando Françoise Armangaud, afirma que: “A perspectiva religiosa de Ricoeur está


ordenada pela ética, assim como a de Lévinas”88.
O interesse comum pela teologia, como se viu, proporcionou a ambos inúmeros
encontros, tanto pessoais quanto teóricos. E, embora os dois afirmem manter uma
separação entre filosofia e teologia, certamente não o fazem com a mesma veemência:
enquanto a palavra Deus está ausente da obra de Ricoeur – eu ousaria dizer, de modo às
vezes, irritante89 – a mesma palavra perpassa freqüentemente a obra de Lévinas – de modo
às vezes a confundir alguns, a irritar outros90. Vale lembrar que, em seus freqüentes debates
ou embates, nem Ricoeur nem Lévinas se referiram um ao outro nestes termos, isto é, nos
termos de uma suspeita, para não dizer acusação, de criptoteologia. Neste terreno, a
cumplicidade parece falar mais alto.
Neste ponto do trabalho, pode-se falar tranqüilamente de filiação comum, ponto de
partida comum, preocupações comuns, temas comuns. Ou de um certo “ar de família”,
expressão que Morgado Heleno retira de Wittgenstein, para caracterizar “uma semelhança
91
que perpassa em algumas reflexões de ambos os pensadores” . E, para além do “ar de
família”, um esforço enorme, que une estes dois grandes pensadores, cuja relação, no dizer
do próprio Ricoeur, diz respeito a uma “competição cúmplice” 92: Ricoeur protesta contra o
fato de que “tentou-se, muitas vezes, opor-nos, mas nós nunca nos deixamos encerrar nesta
oposição” 93, protesto que merece ser ouvido:

“Sou cada mais reservado em relação a esta oposição, aparentemente frontal,


que se tentou instaurar entre nós. Com Lévinas, começa-se pelo outro, dizem-
me, enquanto o senhor estaria ainda apegado ao sujeito, ou à reciprocidade. Mas
começa-se por onde se pode! São ângulos de ataque, e tudo depende de como se
continua a partir daí, e como se cruza o outro, e onde se cruza. Então, eu o
cruzei na reciprocidade. Sempre me perguntei onde estava eu num livro de

88
Louis Fèvre. Penser avec Ricoeur. Introduction à la pensée et à l´action de Paul Ricoeur. Lyon: Chronique
Sociale, 2003. Ele retoma o artigo de Françoise Armengaud sobre Emmanuel Lévinas em Encyclopaedia
Universalis.
89
O próprio Ricoeur reconhece que levou seu gesto até o limite: “É o que eu diria depois de, durante dezenas
de anos, por vezes irritantemente, ter protegido a distinção dos dois registros.” (CC216/217. Grifo meu)
90
Enquanto me incluo no quesito confusão, deixo a irritação por conta de Dominique Janicaud, que, em sua já
citada obra Le tournant théologique de la phénoménologie. Éditions de l´Éclat, Combas, 1991, lamenta a
contaminação da fenomenologia pela teologia. Entre os autores examinados, Ricoeur é, por assim dizer, o
único que se ‘salva’.
91
José Manuel Morgado Heleno. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Portugal: Instituto Piaget, sem
data, p. 400.
92
Salomon Malka Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.201
93
Idem, p.201
182

Lévinas. Eu sou aquele que diz: ‘eu’? ou aquele de quem se fala sob o nome do
‘outro’? E ele, Lévinas, onde está? Será que ele diz ‘eu’? Ou seria ele já o
‘terceiro’? Há, portanto, aí para mim, uma certa interrogação. Em que lugar se
está?”94.

Protesto freqüente, e algumas vezes, colorido com o senso de humor que lhe é
típico: Stanislas Breton conta que, em certa ocasião, Ricoeur “faz esta magnífica reflexão:
‘Com Lévinas, se está tão fora que não se sabe mais como voltar para casa, e com Michel
Henry, se está tão em casa que não se sabe mais como sair’”95.
Talvez se deva, em respeito a Ricoeur - e a Lévinas - preferir o termo de
96
‘desacordo’ ao de ‘oposição’, como o faz, de modo mais preciso, François Dosse .
Desacordo não poucas vezes explicitado pelo próprio Ricoeur que, pelo menos em três
textos, se debruça, paciente e exaustivamente, sobre as duas obras máximas de Lévinas,
Totalité et Infini, mas principalmente Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence: nas
páginas 380 a 393 de Soi-même comme un Autre, num pequeno opúsculo intitulado:
Outramente. Leitura de Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel Lévinas,
e finalmente, num artigo escrito em 1989: “Emmanuel Lévinas, penseur du témoignage” .
Antes, no entanto de seguir as leituras atentas e críticas de Ricoeur, gostaria de fazer
algumas observações acerca do estilo próprio a cada um dos autores, estilos que não
poderiam ser mais opostos. Enfatizou-se acima o “ar de família”, o esforço comum, a
cumplicidade: isto não impede, mais do que isso, exige, que também se possa falar não
somente de caminhos diferentes, e, a despeito da cumplicidade, da competição, isto é: de
propostas e estilos ou modos de dizer, inconciliáveis.

94
Idem, p.203: “”Je suis de plus en plus réservé à l´égard de cette opposition, en apparence frontale, qu´on a
essayé d´instaurer entre nous. Avec Lévinas, on commence par l´autre, me dit-on, alors que vous, vous êtes
encore attaché au sujet, ou à la réciprocité. Mais on commence par où on peut! Ce sont des angles
d´attaque, et tout dépend comment on continue à partir de là, et comment on croise l´autre, et où on le
croise. Je me suis toujours demandé où j´étais dans un livre de Lévinas. Est-ce que je suis celui qui dit: ‘je’?
ou celui dont on parle sous le nom de ‘l´autre’? Et lui, Lévinas, où est-il? Est-ce qu´il dit ‘je’? Ou est-il déjà
‘le tiers’? Il y a donc là, pour moi, une espèce d´interrogation. À quelle place se tient-on?”
95
Stanislas Breton, citado por François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.753/754
96
Cf. Idem, p. 752.
183

I. Os Estilos: o excesso e a prudência

Tal discrepância se mostra, em primeiro lugar, no modo como cada um deles vai
construindo sua obra: enquanto o caminho de Ricoeur aponta para um certo tipo de
obsessão, que antes ronda e depois exige97, o inacabado de uma obra chamando, por assim
dizer, a obra seguinte, Lévinas é animado por uma “intuição primeira”, ou uma idéia fixa,
desde sua primeira obra: sair do ser, questão que retorna insistentemente, obsessivamente.
Se pensar é para ambos obsedante, cada um viveu a obsessão a seu modo.
Não somente na construção da obra, mas também e principalmente no tratamento
das questões, uma espécie de abismo os separa. Pode-se falar de um ‘estilo Ricoeur’ e de
um ‘estilo Lévinas’, estilos ou jeitos de pensar e de escrever que exigem do leitor atitudes e
olhares totalmente distintos. Se algo têm em comum, seria talvez o fato de causar no leitor,
(pelo menos, confesso, na leitora que sou), cada um a seu modo, uma certa irritação. O
primeiro por demandar muita calma e paciência, o segundo porque, como diz seu
comentador Benjamin Hutchens: “O que é mais interessante – e algumas vezes irritante – é
que Lévinas evita a limpidez da composição, e tem toda a intenção de ser obscuro e
elusivo”98.
O primeiro, tendo “horror aos caminhos mais curtos do pensamento”99, admite:
“peço ao leitor uma longa paciência” (TRI, 168). A “via longa” escolhida por Ricoeur
passa não somente pela já mencionada “greffe” da hermenêutica sobre a fenomenologia,
mas também pelo “desvio da reflexão pela análise”. É assim que ele exige infinita
paciência, acompanhamento de seus longos desvios, incessantes retomadas, exaustivas
explicitações, atenção sem descanso aos pensadores mais diversos, convocados a todo
momento para melhor circunscrever a problemática em questão – e, nesse sentido, nunca é
demais apreciar a generosidade de Ricoeur – e para melhor fundamentar seu argumento.
Argumento que é geralmente construído a partir da idéia da justa medida, que, vale lembrar
com Jean Greisch, não é de modo algum um “compromisso bastardo”100 O resultado desta

97
“Após terminar um trabalho, me encontro confrontado a algo que lhe escapa, algo que dele exorbita, que se
torna para mim obsedante e constitui o próximo tema a ser tratado. (...) Penso que qualquer um que escreva
faz esta experiência de um tema que primeiro ronda nas margens da consciência, depois vem se instalar no
centro e finalmente se torna obsedante.”(CC, 125/126)
98
Benjamin C. Hutchens. Compreender Lévinas, op.cit., p.12.
99
Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p. 5
100
Jean Greisch. Paul Ricoeur . L´Itinérance du Sens, op.cit., p. 380
184

démarche é um discurso, no qual o argumento é progressivamente construído, discurso


estruturado segundo padrões lógicos, no qual as idéias se entrelaçam e se encadeiam de
modo que uma leva à outra, eu ousaria dizer, sem muita surpresa: o leitor é, por assim
dizer, conduzido, passo a passo, pelo autor.
Por outro lado, o elemento surpresa é o que não falta na leitura dos textos de
Lévinas: este freqüentemente parece, como se diz em francês, “sauter du coq à l´âne”:
entre uma frase e outra, parece, à primeira vista, não haver nenhum nexo, nenhuma
conexão, de modo que ler Lévinas exige um certo abandono, uma desistência, por assim
dizer: renúncia ao raciocínio puramente lógico dedutivo (mas não por isso exigência de
intuição!), abertura para a surpresa e disponibilidade em acompanhar os inúmeros saltos e
‘vai-vem’ de uma escrita descontínua e de um argumento que, segundo Ricoeur, não
avança (Cf. OUT17) mas se repete 101, a cada vez, de modo diferente: os ‘vazios’ presentes
(ausentes?) de seu discurso fazem com que nunca se tenha terminado de ler um texto de
Lévinas.
Por isto, não é de se admirar que Ricoeur tenha assinalado, na linguagem de
Lévinas, o uso do excesso e da hipérbole, pondo-o na conta não somente de seu lado
judeu, mas também de seu lado russo. Ricoeur, que nada tem de judeu ou de russo –
tampouco de excessivo ou hiperbólico - não parece poder compactuar com este modo de
falar e de pensar, ancorado que está em sua sempre cara “dialética da justa medida”, justa
medida que exclui extremidades, tanto a que oferece Nietzsche - muitas vezes convocado
mas geralmente rechaçado – quanto a que interessa aqui, proposta por Lévinas. A despeito
disso, como sublinha Danielle Cohen-Lévinas, foi Ricoeur que percebeu a significação
extrema do uso da hipérbole:

“Paul Ricoeur deplorará muitas vezes o uso negativo que alguns comentadores
farão de suas colocações, como elas fossem um argumento apontado contra a
filosofia de Emmanuel Levinas. Em ‘Emmanuel Levinas, pensador do
testemunho’ (1989), ele mostra até que ponto estas figuras de tropos e de
hipérbole, certamente desconcertantes, até mesmo provocantes, vêm, em
definitivo, coroar ‘esta série de expressões excessivas’ como devedoras de uma
necessidade conceitual”102
101
Como já tinha notado Jacques Derrida em L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 124, nota 1.
102
Danielle Cohen-Lévinas. “Introduction. Une philosophie à l´épreuve de l´hétéronomie.” In: Lévinas.
Éditon et présentation de Danielle Cohen-Lévinas, op.cit., p. 17 note 23: “Paul Ricoeur déplorera maintes
fois l´usage négatif que d´aucuns commentateurs feront de ses propos, comme si ce fut un argument pointé
contre la philosophie d´Emmanuel Levinas. Dans: ‘Emmanuel Levinas, penseur du témoignage’ (1989), il
185

Já se mencionou como, para Lévinas, a linguagem excessiva, hiperbólica, é um


modo de abandonar a linguagem fenomenológica e ontológica – de responder a Derrida – e
como o superlativo, mais do que a negação, é capaz de romper com o sistema. Contra “o
método transcendental [que] consiste sempre em buscar o fundamento”, método pelo qual
“uma idéia é justificada quando encontrou seu fundamento, quando se mostrou as
condições de sua possibilidade”(DVI126), Lévinas propõe um novo método de associar
uma idéia com a outra, um novo modo de relacionar os conceitos: o da ênfase ou da
surenchère (sobrelance) “Há outra maneira de justificação de uma idéia pela outra: passar
de uma idéia a seu superlativo, até sua ênfase. Eis que uma nova idéia - de forma alguma
implicada na primeira – decorre ou emana da ênfase”(DVI126)

“Trato a ênfase como um procedimento. Penso reencontrar aí a via eminentiae.


Em todo caso, é a maneira pela qual passo da responsabilidade à substituição. A
ênfase significa ao mesmo tempo uma figura de retórica, excesso da expressão,
maneira de se exagerar e maneira de se mostrar. O termo é muito bom, como o
termo ‘hipérbole’: há hipérboles em que as noções se transmutam. Descrever
esta mutação também é fazer fenomenologia. A exasperação como método de
filosofia!” (DVI127)

Excesso, hipérbole, superlativo, ênfase, surenchère, exaltação, exasperação: tantos


substantivos que apontam não somente para modos de dizer como também para um certo
tipo de procedimento, de método, um certo arranjo dos conceitos que os torna, eles
próprios, excessivos, hiperbólicos, enfáticos, exasperados, etc... Dito de outro modo, e
como já o tinha percebido Ricoeur, a hipérbole não é apenas uma figura de estilo, um modo
de falar, é também o próprio conteúdo da fala, ou seja, aponta para um excesso presente
nos próprios conceitos pensados por Lévinas:

“Por hipérbole, é preciso sublinhá-lo com força, não se pode entender uma
figura de estilo, um tropo literário, mas uma prática sistemática do excesso na
argumentação filosófica. A hipérbole aparece assim como a estratégia
apropriada à produção do efeito de ruptura ligado à idéia de exterioridade no
sentido de alteridade ab-soluta.”(SA389)103

montre jusqu´où ces figures de tropes et d´hyperbole, certes déroutantes, voire provocantes, viennent en
définitive couronner ‘cette suíte d´expressions excessives’ comme redevables d´une nécessité
conceptuelle.”
103
“Par hyperbole, il faut le souligner avec force, il ne faut pas entendre une figure de style, un trope littéraire,
mais la pratique systématique de l´excès dans l´argumentation philosophique. L´hyperbole apparaît à ce
186

Exterioridade absoluta da alteridade, que se recusa a ser englobada pela


intencionalidade e pela representação, isto é, pelo Mesmo, e que só pode se atestar sob o
regime da ética:

“Quando o rosto de outrem se eleva face a mim, acima de mim, não é um


aparecer que eu possa incluir no recinto de minhas representações; certamente,
outrem aparece, seu rosto o faz aparecer, mas o rosto não é um espetáculo, é
uma voz. Esta voz me diz: “Não matarás”. Cada rosto é um Sinai que proíbe o
assassinato. E eu? É em mim que o movimento que parte do outro termina sua
trajetória: o outro me constitui responsável, isto é, capaz de
responder.”(SA388)104

Este preciso comentário de Ricoeur aponta para os significados essenciais presentes


na noção de Rosto tal como a entende Lévinas: o Rosto é uma voz - Ricoeur se apóia em
duas afirmações de Totalité et Infini: “O rosto fala”(TI37), e “O olho não reluz, ele
fala”(TI38) - é mandamento, que vem das alturas do monte Sinai. A referência ao Sinai não
é gratuita nem inocente: aponta para uma certa inspiração bíblica ou, como prefere dizer
Derrida, uma respiração profética105, presente na filosofia de Lévinas. Inspiração bíblica
que não saberia se restringir aos limites da filosofia, trazendo consigo, a desmedida e o
excesso.
De um lado, portanto, a justa medida de Ricoeur e, de outro a desmedida de Lévinas
- o leitor já terá percebido que o que se disse aqui acerca dos estilos de cada um dos
autores, também se aplica aos próprios conceitos - de um lado o sujeito modesto ou o
homem capaz, de outro o sujeito deposto ou o refém. A diferença entre ambos não se limita
a uma questão de vocabulário mas, uma vez que linguagem e pensamento são
indissociáveis, é do próprio pensamento que se trata...

titre comme la stratégie appropriée à la production de l´effet de rupture attaché à l´idée d´extériorité au sens
d´altérité ab-solue.”
104
“Quand le visage d´autrui s´élève face à moi, au-dessus de moi, ce n´est pas un appaître que je puisse
inclure dans l´enceinte de mes représentations miennes; certes l´autre apparaît, son visage le fait apparaître,
mais le visage n´est pas un spectacle. C´est une voix. Cette voix me dit: ‘Tu ne tueras pas.’ Chaque visage
est un Sinaï qui interdit le meurtre. Et moi? C´est en moi que le mouvement parti de l´autre achève sa
trajectoire: l´autre me constitue responsable, c´est-à-dire capable de répondre.”
105
Derrida, para quem o pensamento de Levinas “nos convida a abandonar o lugar grego (...) em direção a
uma respiração, uma palavra profética”. Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 122. Grifo
do autor.
187

II. Subjetividade e Alteridade

1. Hipérbole do Mesmo e do Outro

A hipérbole e o excesso referem-se portanto não somente a um modo de escrever:


os próprios conceitos são excessivos em Lévinas, isto é, radicais. Radicalidade exigida
enquanto estratégia para que Lévinas possa pensar a ruptura absoluta que ele opera entre o
Mesmo e o Outro. Neste sentido, a obra de Lévinas, no dizer de Ricoeur: “dirige-se contra
uma concepção da identidade do Mesmo, à qual é polarmente oposta a alteridade do Outro”
(SA387), radical oposição que resulta numa pretensão: “esta pretensão expressa uma
vontade de fechamento, mais exatamente, um estado de separação, que faz com que a
alteridade deva se igualar à exterioridade radical” (SA387)
Os grifos colocados por Ricoeur indicam a importância que, em sua diferença com
Lévinas, este confere à radicalidade da separação e da exterioridade, problemática que diz
respeito à dialética dos “grandes gêneros”, isto é à relação entre Mesmo e Outro.
De acordo com Richard Kearney, se “O enigma do outro foi largamente ignorado
pela tradição metafísica clássica, começando por Parmênides e Platão que definiram o
Outro em relação ao Mesmo”106: tal redução do Outro ao Mesmo persistiu “desde o
platonismo e a escolástica até o racionalismo e o idealismo modernos”107 a tal ponto que “a
filosofia moderna pode em grande parte ser lida como uma sucessão de recusas de deixar o
outro ser verdadeiramente outro”108. Numa contra reação, a alergia pelo Outro, se
transformou, em alguns pensadores pós-modernos em alergia pelo eu: “Alguns pensadores
pós-fenomenológicos (...) exteriorizam a categoria da alteridade até o ponto de todo contato
com o si ter relentos de traição e de contaminação”109. Nesta perspectiva, o Outro é
“kath´auto e não pros-heteron. Não relativamente, mas absolutamente outro”110. O que
quer dizer que o Mesmo é totalmente separado do Outro, e que o Outro é exterioridade
radical.

106
Richard Kearney. “Entre soi-même et un autre: l´herméneutique diacritique de Ricoeur.” In: Cahiers de
l´Herne. Ricoeur, op.cit., p. 205.
107
Idem, p. 205
108
Idem, p. 206
109
Idem, p. 206.
110
Idem, p. 206
188

Para Lévinas, tal ruptura – ligada a uma crítica feroz da ontologia - tem por
conseqüência fazer equivaler o sujeito ao mesmo, em oposição radical à alteridade absoluta
do outro. Como diz Derrida: “Em Totalité et Infini, onde as categorias do Mesmo e do
Outro voltam com força, a vis demonstrandi e a energia de ruptura com a tradição, é
precisamente a adequação do Eu ao Mesmo, e de Outrem ao Outro.”111
A conseqüência deste “amálgama entre o Mesmo e o Eu” permite que o eu,
sinônimo do mesmo, faça “círculo consigo mesmo” (SA389): “O eu, de antes do encontro
do outro, ou melhor dizendo, de antes da efração112 do eu pelo outro, é um eu
obstinadamente fechado, trancado, separado” (SA389) ou, nos termos de Lévinas: “Na
separação, o eu ignora outrem” (TI34).
A questão da posição do eu, de antes da presença da alteridade, é delicada e está
longe de ser resolvida nesta solução dada por Ricoeur, especialmente quando se compara
Totalité et Infini e Autrement qu´être. De acordo com Morgado Heleno, Peter Kemp, por
exemplo, censura esta leitura por demais severa que Ricoeur faz de Lévinas: para Kemp, na
obra de 1961, “Lévinas toma em consideração a capacidade de auto-afecção e o facto de o
eu se dar ao Outro. A separação radical entre o eu e o Outro, entre um eu fechado em si
mesmo e separado do Outro não existe em Totalité et Infini”113. É em Autrement qu´être
que o eu é absolutamente separado do outro, fechado em si.
Na interpretação de Rolland, como se viu, Lévinas constrói em Totalité et Infini
toda uma fenomenologia da economia e da interioridade, que permite falar de um eu
fechado em si mesmo que só depois encontra o outro. Mas não o encontra de mãos vazias,
recebe-o e acolhe-o: “Este livro apresentará a subjetividade como acolhendo Outrem, como
hospitalidade” (TI14). Já em Autrement qu´être, pode-se ler: “Este livro interpreta o sujeito
como refém e a subjetividade como substituição do sujeito rompendo com a essência do
ser” (AE282). Nesta segunda obra, pode-se dizer que, no limite, não há um eu anterior ao

111
Jacques Derrida. L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 161/162
112
Traduziu-se, de modo bastante livre, por razões de elegância, effraction por ‘efração’, este último vocábulo
estando ausente do dicionário. A palavra correta seria ‘arrombamento’
113
José Manuel Morgado Heleno. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur, op.cit., p. 403/404, nota 90.
Cf. o texto de Peter Kemp, mencionado por Heleno: “Ricoeur entre Heidegger et Lévinas”. In: Paul
Ricoeur, l´herméneutique à l´école de la phénoménologie. Institut Catholique de Paris (Philosophie, no 16),
Paris: Beauchesne Éditeur, 1995, p. 235-259
189

encontro com o outro, o eu nasce propriamente a partir da injunção à responsabilidade


vinda do outro, nasce com sua resposta ao outro: “eis me”. 114
Enquanto Peter Kemp recusa a existência de um eu fechado em si mesmo na obra
de 1961, Jacques Rolland faz o mesmo em relação a Autrement qu´être; entretanto, embora
a partir de soluções distintas, ou mesmo de leituras opostas, ambos apontam para uma
mudança, ou uma radicalização, no estatuto do sujeito em Autrement qu´être.
Para Ricoeur tal radicalização é pensada do lado do Outro, que de “mestre de
justiça” vira “ofensor”; mas a hipérbole já está presente em Totalité et Infini, sob a forma
da epifania do Rosto.
“A hipérbole da separação, do lado do Mesmo, responde a hipérbole da epifania do
lado do Outro” (SA389). Não se trata de qualquer outro, diz Ricoeur mas de “uma figura
paradigmática do tipo de um mestre de justiça” (SA389), portanto de uma palavra que
sempre ensina (Cf.TI70), do mandamento “não matarás”. O rosto “é o de um mestre de
justiça, mestre que instrui e só instrui no modo ético: interdiz o assassinato e instaura a
justiça” (SA221). A epifania do rosto só pode ser lida a partir de uma Altura e uma
Exterioridade extremas, hiperbólicas:

114
A não ser que se possa falar de um “moi pur”, ou eu puro, como faz Husserl. Com efeito, Lévinas retoma
esta noção de eu puro em Hors Sujet: um eu que: “se manteria único e, assim, absoluto, sem relação com
nada mais, em si e, ao mesmo tempo, vivendo atualmente ou ativamente nos atos de consciência que ‘dele
procedem’. Nenhuma redução tem poder sobre ele... Ele é absolutamente destituído de componentes
explícitos, ele é em si e para si indescritível, eu puro e nada mais.” (HS211). Os atos de consciência
procedem deste eu puro, eu sem intencionalidade, mas condição de possibilidade da intencionalidade. Se a
consciência se define pela intencionalidade, o eu puro assim seria um eu sem consciência. Poder-se-ia ainda
falar de um eu? Do mesmo modo para Lévinas, este eu puro seria um eu sem outro, eu sem ética, mas
condição de possibilidade da ética, que nasce com a injunção do outro. Mas no momento em que nasce, já
morre, pela substituição. A mesma questão se coloca: poder-se-ia ainda falar de um eu? Se a subjetividade
nasce com a resposta eis-me, resposta ao outro, qual o sentido de pensar um eu de antes do encontro com o
outro? Se o sujeito é definido por sua condição de refém, ele só pode ser pensado em sua relação com um
outro. O central em Lévinas é pensar a subjetividade como já, em seu próprio nascimento, evadida em si
ou expulsa de si, para usar a terminologia de Jacques Rolland (Cf. Prefácio a EV68): é propriamente tal
concepção de subjetividade que possibilita pensar a ética como filosofia primeira. Em relação a esta
preocupação ética primordial, o postulado de um eu puro parece ser secundário. Porque então falar de eu
puro? Tentada a dizer que se poderia prescindir de fazê-lo, fui a tempo corrigida por Ilana Viana de Amaral,
que sugeriu uma interessante hipótese: não poderia esta admissão de um eu puro, eu sem outro, e sobre o
qual vem se greffer o outro, ser considerado como uma resposta mínima a Ricoeur que, reiteradamente,
aponta a necessidade de um mínimo de receptividade para que se possa responder “eis me” ao outro? O
mínimo máximo a que se pode chegar me parece ser precisamente a noção de um eu puro. A meditar...
190

“Altura: o rosto do outro (...) me interpela como do Sinaï. Exterioridade: a


instrução do rosto, à diferença da maïeûtica do Menon de Platão, não desperta
nenhuma reminiscência. A separação tornou a interioridade estéril. A iniciativa
procedendo integralmente do Outro, é no acusativo – desinência bem nomeada -
que o eu é alcançado pela injunção e tornado capaz de responder, ainda no
acusativo: ‘Eis me’” (SA389)115.

O eu só se abre ao outro pela violência da palavra que ensina: não matarás,


violência que exige uma resposta: eis me, resposta que é responsabilidade para com o
outro. Tal violência atinge patamares extremos em Autrement qu´être. Vale relembrar a
hipótese de Jacques Rolland, segundo a qual, se havia resquícios de uma certa
hospitalidade no sujeito de Totalité et Infini, tal hospitalidade desaparece em Autrement
qu´être ou Au-delà de l´Essence, obra na qual o sujeito é refém: do hôte ao otage. Se o
hóspede ainda podia ouvir o ensinamento da palavra do mestre de justiça, o refém é refém,
sempre, a despeito de si mesmo. E nesse sentido, se Ricoeur não menciona especificamente
a transformação apontada, do lado do sujeito, por Jacques Rolland: do hôte ao otage, ele se
escandaliza com outra reviravolta: a do outro, do mestre de justiça transformado em
ofensor:

“O paroxismo da hipérbole me parece dizer respeito à hipótese extrema - até


mesmo escandalosa – que o Outro não é mais aqui o mestre de justiça, como era
o caso em Totalité et Infini, mas o ofensor, o qual, enquanto ofensor, não requer
menos o gesto que perdoa e que expia.” (SA390)116

2. O refém e o homem capaz: passividade e receptividade, dissimetria e


reciprocidade:

É na noção de refém e de substituição que “se atinge o ponto paroxístico de toda a


obra” (SA390), ou seja, nesta formulação de Lévinas: “sob a acusação de todos, a
responsabilidade por todos vai até a substituição. O sujeito é refém.” (AE142). O Outro
persegue e seqüestra o sujeito que se torna, sem o querer, sem o escolher, na mais absoluta

115
“Hauteur: le visage de l´Autre (...) m´interpelle comme du Sinaï. Extériorité: l´instruction du visage, à la
différence de la maïeutique du Ménon de Platon, n´éveille aucune réminiscence. La séparation a rendu
l´intériorité stérile. L´iniciative revenant intégralement á l´Autre, c´est à l´accusatif – désinence bien
nommée – que le moi est rejoint par l´injonction et rendu capable de répondre, à l´accusatif encore: ‘Me
voici!’.”
116
“Le paroxysme de l´hyperbole me paraît tenir à l´hypothèse extrême – scandaleuse même – que l´Autre
n´est plus ici le maître de justice, comme c´était le cas dans Totalité et Infini, mais l´offenseur, lequel, en
tant qu´offenseur, ne requiert pas moins le geste qui pardonne et qui expie.”
191

passividade, seu refém, o eu ocupa o lugar do outro sem o ter desejado: vocabulário da
violência, linguagem do terrorismo (Cf.OUT42). Violência e terrorismo que tornam
possível a ética! O próprio Lévinas, numa passagem citada por Ricoeur afirma que: “É pela
condição de refém que pode haver no mundo piedade, compaixão, perdão, proximidade.”
(SA186) Não sem razão, Ricoeur se choca com:

“O paradoxo de uma condição de inumanidade chamada a dizer a injunção ética


deveria chocar (...) É preciso que seja por sua ‘própria maldade’ (SA175) que o
‘ódio perseguidor’ (ibid) signifique o ‘sofrer pelo [par] outro’ da injunção sob o
sinal do Bem. Não sei se os leitores pesaram a enormidade do paradoxo que
consiste em fazer dizer pela maldade o grau de extrema passividade da condição
ética. É ao ‘ultraje’, cúmulo da injustiça, que se demanda significar o apelo à
bondade.” (OUT40).

Todo este “terrorismo verbal” (OUT42) não constituiria uma confissão “de que a
ética desconectada da ontologia é sem linguagem direta, própria e apropriada?”(OUT41).
Tal pergunta diz respeito à pretensão de Lévinas de construir uma ética sem ontologia,
pretensão não compartilhada por Ricoeur. Já se pode, por aí, notar que as concepções de
ética diferem nos autores em questão, tema que será desenvolvido adiante. Basta, por ora,
sugerir que o choque confessado por Ricoeur pode se explicar: enquanto, para Lévinas,
“Ninguém é bom voluntariamente” (AE25), a ética de Ricoeur é marcada pelo “desejo de
uma vida boa, com e para o outro, em instituições justas”, passando, assim, por uma certa
benevolência do sujeito.
Antes, contudo, de iniciar a discussão ética propriamente dita, é ainda preciso
insistir no escândalo que constitui, para Ricoeur, pensar o sujeito como refém do outro. A
palavra refém parece ser aqui central: como se disse acima, um refém jamais o é por
vontade própria, mas pela iniciativa de um outro que o seqüestra. O que é inaceitável, para
Ricoeur, é a absoluta passividade da subjetividade requerida por Lévinas, a iniciativa
sempre partindo do outro. Esta é justamente a conseqüência da dupla hipérbole – da
separação do lado do mesmo, e da exterioridade absoluta do lado do outro: se, como diz
Blanchot:: “A palavra atravessa o abismo”, para Lévinas, esta palavra é uma interdição –
“não matarás” - que provem do outro, palavra invasora da qual o sujeito não pode se
esquivar, palavra que seqüestra o sujeito, tornando-o, a despeito de si próprio, refém. E
que, desperta, por este seqüestro mesmo, o sujeito de seu sono e silêncio, fazendo-o
192

articular outra palavra: “Eis me”, resposta, resposta não apenas a um apelo, mas a uma
injunção ou convocação, resposta de responsabilidade.
O que está em questão é a dinâmica passividade-atividade-receptividade. Como já
se mencionou, a oposição tradicional desde Aristóteles entre passividade e atividade deve
ser reexaminada, para dar lugar a receptividade, uma passividade ativa. É esta dinâmica
que propriamente vem perturbar Lévinas, com seus ‘exageros’.
Em primeiro lugar, Ricoeur se pergunta: como pode o sujeito ouvir o apelo ou
injunção à responsabilidade, se não há nele nenhum acolhimento, que lhe permitiria
precisamente ouvir? “Se, efetivamente, a interioridade só fosse determinada pela única
vontade de recolhimento (repli) e de fechamento, como poderia ela ouvir uma palavra que
lhe fosse tão estrangeira que ela fosse como nada para uma existência insular?” (SA391)
A esta primeira e pertinente objeção, eu insistiria, inspirada novamente por Jacques
Rolland, no fato de que ela se agrava na trajetória que vai de Totalité et Infini a Autrement
qu´être, pois se ainda há, na primeira obra, resquícios de um certo acolhimento ou
receptividade, traduzida – do lado do sujeito, em termos de hospedagem ou aprendizagem,
e do lado do outro, em termos de mestre de justiça – tal relação pacífica e bem educada
desaparece para dar lugar ao terrorismo, no qual o sujeito, tornado refém, se torna
responsável pelo seu próprio agressor ou ofensor. Trajetória, que como argutamente aponta
Ricoeur, vai do mestre de justiça ao ofensor.
E quem pode decidir entre um e outro? Como pode o sujeito reconhecer quem está
falando, discriminar de quem vem a ordem: “quem distinguirá o mestre do carrasco? o
mestre que chama um discípulo, do mestre que requer apenas um escravo? Quanto ao
mestre que ensina, não demandaria ser reconhecido, em sua superioridade mesma?”
(SA391). Aqui ecoa a sugestiva formulação de Richard Kearney: “Todos os ‘si’ não
demônios e todos os outros não são anjos. Em outros termos, a virada hermenêutica sugere
que é sábio completar a crítica do si por uma crítica, tão indispensável quanto, do outro”117.
A ausência da capacidade de acolhimento, de discriminação e de reconhecimento
retira qualquer possibilidade de iniciativa por parte do sujeito: Ricoeur se pergunta como
então, privado de qualquer iniciativa, pode o sujeito responder ao apelo do outro? “O tema

117
Richard Kearney. “Entre soi-même et un autre: l´herméneutique diacritique de Ricoeur.” In: Cahiers de
l´Herne. Ricoeur, op.cit., p. 207
193

da exterioridade só atinge o fim de sua trajetória, a saber o despertar de uma resposta


responsável ao apelo do outro, se pressupor uma capacidade de acolhimento, de
discriminação e de reconhecimento” (SA391).
Como é possível retirar qualquer capacidade de iniciativa por parte de um sujeito
que responde? Não seria necessário, pelo menos “que a voz do Outro que me diz: ‘Não
matarás’ seja feita minha, a ponto de se tornar minha convicção, esta convicção que iguala
o acusativo do ‘Eis me’ ao nominativo do ‘Aqui estou’?” (SA391). Lévinas recusa
qualquer possibilidade não somente de atividade, mas também de receptividade por parte
de um sujeito que responde, reservando toda iniciativa ao Outro que demanda, exige,
ordena, restando ao sujeito apenas a obediência a um mandamento que lhe vem de fora.
Ricoeur não pode aceitar tal via de mão única, da qual está ausente a reciprocidade,
essencial para pensar a relação do sujeito com a alteridade. Reciprocidade que se atesta na
linguagem, e que Ricoeur pensa a partir do conceito hegeliano de Anerkennung
(reciprocidade, reconhecimento)118.

“(...) para mediatizar a abertura do Mesmo em relação ao Outro e a interiorização


da voz do Outro no Mesmo, não seria preciso que a linguagem traga suas fontes
de comunicação, portanto de reciprocidade, como o atesta a troca de pronomes
pessoais tantas vezes evocada nos estudos precedentes, a qual reflete uma troca
mais radical, a da questão e da resposta, na qual os papéis não cessam de se
inverter? Em suma, não seria preciso que uma dialógica superponha a relação à
distância pretensamente ab-soluta entre o eu separado e o Outro que ensina?”
(SA391)119

A importância deste tema da reciprocidade é tal que, não poucas vezes, inquirido
acerca do que o separa de Lévinas, Ricoeur o menciona como ponto essencial das
divergências entre ambos. Viu-se como, na entrevista concedida a Malka, ele lamenta o
fato de que tenham enfatizado por demais uma oposição entre os dois. Não obstante, é o

118
Cf. Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann”. In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p.27.
119
“(...) pour médiatiser l´ouvrture du Même sur l´Autre et l´intériorisation de la voix de l´Autre dans le
Même, ne faut-il pas que le langage apporte ses ressources de communication, donc de réciprocité, comme
l´atteste l´échange des pronoms personnels tant de fois évoqués dans les études précédentes, lequel reflète
un échange plus radical, celui de la question et la réponse où les rôles ne cessent de s´inverser? Bref, ne
faut-il pas qu´une dialogique superpose la relation à la distance prétendument ab-solue entre le moi séparé
et l´Autre enseignant?”
194

próprio Ricoeur que traz à baila o excessivo espaço que ocupa o outro na filosofia do
sujeito de Lévinas. Como, por exemplo, nesta entrevista concedida a Jean-Christophe
Aeschlimann:

“Me sinto muito próximo de Lévinas. Mas, acerca de um ponto ao menos, me


separo dele: acerca do problema da reciprocidade ou, para falar a linguagem de
Hegel, do reconhecimento, que estabelece uma certa recorrência entre todas as
pessoas e cujo modelo é a linguagem – e mais particularmente a interlocução.
Quando te digo ‘você’, você pensa ‘eu’ para você mesmo e, quando você me
dirige a palavra, você me diz um ‘você’ que eu recebo como ‘eu’. Esta troca de
pronomes pessoais constitui a meu ver a estrutura fundamental da linguagem,
que reencontro também na interação, nos cruzamentos dos personagens da
narrativa, na promessa. Esta problemática da reciprocidade das pessoas me
distingue, se assim se pode dizer, de Emmanuel Lévinas que, por seu lado,
coloca fundamentalmente o acento na iniciativa do outro: é pelo outro que sou
chamado a assumir minha responsabilidade.”120

A questão ocupou os dois filósofos em um debate radiofônico produzido para a


France Culture, em 1985. Ouçamos o confronto direto:

“Emannuel Lévinas: Trata-se para nós de saber se outrem tem tanto


valor que eu mesmo ou se outrem é fonte de valores. Inclino-me mais para a
segunda solução (...)”
Paul Ricoeur: É um grande ponto de encontro e de divergência, se me
permito, entre o Sr. e eu. Se não me constituo responsável por meu dizer, sujeito
de enunciação, sujeito responsável, capaz de manter minhas próprias promessas,
etc., não poderei compreender o que o outro exige ou requer de mim, pela
simples razão que eu só posso compreender a idéia mesma do outro como um
outro eu, um alter ego. Quer dizer que é preciso que eu possa transferir o signo
ego sobre a segunda pessoa para que ela seja uma pessoa.
E.L.: Aí, estamos em desacordo. Com efeito, eu não penso que o outro é
um alter ego, eu não penso que [o encontro com o outro] comece nesta
igualdade perfeita. Enquanto ser humano e não enquanto ser entre seres, outrem
tem o direito de exigir tudo de mim; minha obrigação em relação a outrem não é
simétrica; a relação com o outro homem é a dissimetria por excelência; ao

120
Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann” In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p. 24: “Je me sens très proche de Lévinas. Mais, sur un point au
moins, je m´en sépare: à propos du problème de la réciprocité, ou, pour parler le langage de Hegel, de la
reconnaissance, qui établit une certaine récurrence entre toutes les personnes et dont le modèle est le
langage – et plus particulièrement l´interlocution. Quand je vous dit: ‘vous’, vous pensez ‘je’ pour vous-
même, et quand vous m´adressez la parole, vous me dites un ‘vous’ que je reçois comme ‘je’. Cet échange
des pronoms personnels constitue à mon sens la structure fondamentale du langage, que je retrouve aussi
bien dans l´interaction, dans l´enchevêtrement des personnages de récit, dans la promesse. Cette
problématique de la réciprocité des personages me distingue, si l´on peut dire ainsi, d´Emmanuel Lévinas,
qui, pour sa part, met l´accent fondamental sur l´iniciative de l´autre: c´est par l´autre que je suis appelé à
assumer ma responsabilité.”
195

contrário, tudo o que é meu direito e tudo que faz minha força derivam desta
primeira obrigação. Eis a diferença entre nós (...)”
(...) P.R.: (...) Quando eu vos falo, eu digo ‘eu’, mas sei que sou uma
segunda pessoa para vós. A reciprocidade dos pronomes pessoais aponta para
uma certa igualização desta dissimetria.”121

Vê-se bem os pontos de desacordo. Lévinas insiste no primado ético do outro, e na


relação de dissimetria, na qual minha obrigação e responsabilidade para com o outro não
pedem reciprocidade nem troco. Mais tarde, no mesmo debate, Lévinas dirá: “a palavra
responsabilidade, tal como a emprego, é o nome severo do amor, amor sem concupiscência,
amor sem reciprocidade – de todo modo, uma relação irreversível”122. Ricoeur, por sua vez,
confere ao ‘eu’ um valor, ao mesmo tempo em que insiste na reciprocidade das relações:
seus argumentos gravitam em torno da linguagem; ele sublinha, por um lado, a
importância do sujeito enquanto sujeito de enunciação, capaz de falar e de responder, isto é,
ser responsável. Ele dirá mais tarde no mesmo debate: “‘responder por...’ supõe um
funcionamento da enunciação com um sujeito de enunciação que se engaja naquilo que
diz.”123. E por outro lado, recorre ao funcionamento da linguagem intersubjetiva e à
reciprocidade dos pronomes pessoais, para pensar a reciprocidade das relações humanas.
Tais argumentos não parecem sensibilizar Lévinas: talvez porque se situem na esfera do
Dito e não do Dizer?

121
Perdoem-me os leitores por tão longa citação, mas ela me parece se justificar por si só: uma espécie de
testemunho vivo (ou quase!) deste trabalho.... Debate entre Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas no programa
radiofônico: “Le Bon Plaisir de Paul Ricoeur”, produzido por Emmanuel Hirsch para a Radio France
Culture (21 de fevereiro de 1985), e publicado em Emmanuel Lévinas. Philosophe et Pédagogue, op.cit.,
p.13/14: “Emmanuel Lévinas: Il s´agit pour nous de savoir si autrui a autant de valeur que moi-même ou si
autrui est source de valeurs. J´incline plutôt pour la deuxième solution (…) Paul Ricoeur: C´est un grand
point de rencontre et de divergence, si je me permets, entre vous et moi. Si je ne suis pas constitué
responsable de mon dire, sujet d´énonciation, sujet responsable, capable de tenir mes propres promesses,
etc., je ne pourrais pas comprendre ce que l´autre exige et requiert de moi, pour la simple raison que je ne
peux comprendre l´idée même de l´autre que comme un autre moi, un alter ego. C´est-à-dire qu´il faut que
je puísse transférer le signe ego sur la deuxième personne pour qu´elle soit une personne. E.L.: Là, nous
sommes en désaccord. En effet, je ne pense pas que l´autre est un alter ego, je ne pense pas que [la
rencontre avec l´autre] commence dans cette égalité parfaite. En tant qu´être humain, et non comme être
parmi les autres êtres, autrui a le droit de tout exiger de moi: mon obligation à l´égard d´autrui n´est pas
symétrique; la relation avec l´autre homme, c´est la dissymétrie par excellence; au contraire tout ce qui est
mon droit et tout ce qui fait ma force sont dérivés de cette première obligation. Voilà la différence entre
nous (...) P.R.: (...) Quand je vous parle je dis ‘je’, mais je sais que je suis une seconde personne por vous.
La réciprocité des pronoms personnels pointe vers une sorte d´égalisation de cette dissymétrie.”
122
Idem, p.16
123
Idem, p.15
196

De qualquer modo, para Lévinas, a reciprocidade não pode ser aceita, precisamente
porque anula a alteridade do outro: a relação do face a face - ou responsabilidade, ou ainda,
não-indiferença - se dá “num sentido único, do Eu (Moi) ao outro” (AE217):

“Na não-indiferença em relação ao próximo em que a proximidade não é nunca


suficientemente próxima, não se apaga a diferença entre eu e outro e a
indeclinabilidade do sujeito, como elas se apagam na situação em que a relação
de um ao outro é entendida na reciprocidade.” (AE217)124

Por isso, sem negar a proximidade entre ambos – que, aliás, Ricoeur faz questão de
enfatizar – deve ser dito que esta “diferença de acento” não tem poucas conseqüências.
Comentou-se que a fórmula ricoeuriana do “homem agindo e sofrendo” contempla tanto a
dupla orientação ativa e passiva do sujeito, quanto a receptividade contida a resposta do
sujeito ao apelo do outro: “Eis me”. O ternário ‘atividade-passividade-receptividade’ é
revirado em Lévinas e substituído por uma “passividade mais passiva que toda
receptividade”, pior: “mais passiva que toda passividade”, fórmulas que não poucas vezes
voltam sob a pluma de Lévinas. Em De Dieu qui Vient à l´Idée, tal fórmula – não escolhida
por acaso – vem ilustrar ou exemplificar o procedimento por ênfase ou a “exasperação
como método de filosofia”, dos quais se falou acima.

“Quando digo: a passividade consiste em entregar-se, em sofrer além de toda


passividade, uma passividade que não se assume, chego à fissão do si mesmo.
Nossa ‘passividade’ ocidental é receptividade seguida de assunção.” (DVI127)

Deixando por ora de lado, a questão, aliás essencial, da fissão do eu, chamo aqui a
atenção para este conceito forte de passividade, que recusa categoricamente não somente a
atividade, mas também a receptividade. Lévinas quer enfatizar que precisamente o sujeito
não se define pela sua iniciativa: é assim que o homem capaz, caro a Ricoeur, está em
perigo, como ele próprio não deixa de perceber: “Não é como homem capaz, capaz de
expiar que o eu [moi] é solicitado” (OUT41).

124
“Dans la non-indifférence à l´egard du prochain où la proximité n´est jamais assez proche, ne s´efface pas
la différence entre moi et l´autre et l´indéclinabilité du sujet, comme elles s´effacent dans la situation où la
relation avec l´autre est entendue dans la réciprocité.”
197

Pode-se imaginar o que isto significa em termos de ruptura com a filosofia de


Ricoeur que, como já se emncionou, é freqüentemente lida sob a chave do homem capaz.
Mas é também preciso lembrar, como não cansa de o fazer Ricoeur, que o homem capaz é
o homem do cogito ferido, o homem “agindo e sofrendo”: “(...) não é mais possível falar
simplesmente do homem agindo sem designar, pelo mesmo sopro, o homem sofrendo.”
(RF106)
É propriamente este sofrimento que deve ser agora ressaltado, sofrimento que vem
interromper a iniciativa ou a potência do homem: tal limite constituiu, para Ricoeur, desde
muito cedo, uma preocupação máxima; desde muito cedo, isto é, desde sua tese de
doutorado apresentada em 1950, Le Volontaire et l´Involontaire, primeiro volume de sua
Philosophie de la Volonté, ao qual seriam acrescidos, dez anos depois, dois outros
volumes: L´Homme Faillible e La Symbolique du Mal. Sua filosofia da vontade “coloca
radicalmente em questão a onipotência da vontade humana: a finitude, a culpabilidade, o
125
mal, justamente figuras dolorosas do involuntário” . Mas já no primeiro volume, como
nota Jean Greisch, pode-se ler: “O Cogito é interiormente ferido” (PVI 17)126. Cogito ferido
precisamente pelas figuras do involuntário que, nesta obra de 1950 são constituídas pelo
“caráter, esta figura estável e não escolhida do existente, [pela] vida, este presente não
planejado pelo nascimento, [pelo] inconsciente, esta zona interdita, para sempre
inconvertível em consciência atual” (RF23). Por isso nota Kayombo que “(...) a diferença
entre Le Volontaire et l´Involontaire e Soi-même comme un Autre é mais de palavras do
que de sentido. Com efeito, falar do Voluntário e do involuntário no homem é outro modo
de dizer que este último é si-mesmo como um outro” 127. No entanto, de uma obra à outra,
as palavras de fato mudam, assim como as figuras do involuntário, que são doravante
figuras da passividade, isto é, da alteridade.

125
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op.cit., p. 165.
126
Citado por Jean Greisch. Paul Ricoeur. L´Itinérance du Sens, op.cit., p. 32
127
Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p. 23, note 66.
198

3. Alteridade: polissemia e o absolutamente Outro

Em O Vocabulário de Ricoeur, comentam os autores, no verbete sobre alteridade:


“Como o ser, o outro se diz em vários sentidos”128, não podendo ser reduzido apenas à
alteridade do outro homem, mas dizendo respeito também ao que há de estranho em si
mesmo: o próprio corpo e a voz da consciência ou foro íntimo (Gewissen). A própria
alteridade do outro homem também pode ser desdobrada em duas: o próximo e o distante
ou: “o tu das relações interpessoais e o cada um da vida nas instituições” (RF80).
No mesmo verbete, Olivier Abel e Jerôme Porée notam que a polissemia da própria
palavra ‘outrem’ é fonte de discórdia entre Ricoeur e Lévinas, para o qual não há
distinção entre ética e política: segundo os autores, as críticas de Ricoeur, a este respeito,
“encontram sua expressão positiva na distinção entre o ‘socius’ e o próximo, à qual será
posteriormente superposta a distinção entre solicitude e justiça” 129. Mas – justiça seja feita
a Lévinas! – ele reconhece, em Autrement qu´être, a importância da presença do terceiro, e
com esta, a justiça, distinta da misericórdia ou caridade, como ele próprio deixa claro no
prefácio à edição alemã de Totalité et Infini.
Ainda assim, a polissemia da alteridade em Ricoeur não encontra eco na alteridade
absoluta de Lévinas: o próprio corpo e a voz da consciência não poderiam constituir fontes
de alteridade uma vez que, por mais estranhas que possam parecer ao eu, ainda estão
inscritas na esfera do mesmo.
Chama a atenção o fato de que, ao falarem de alteridade, ambos se refiram à
metáfora da voz. Como já tinha notado o próprio Ricoeur, o Rosto, para Lévinas, é uma
voz que vem das alturas do Sinai e que diz: “Não matarás”; Ricoeur, por seu lado, vê no
conceito de Gewissen, uma voz que interpela, voz indeterminada (do outro homem, dos
antepassados ou de Deus) que, ao mesmo tempo em que vem do alto, de fora de mim, vem
também do fundo de mim mesmo. A questão da origem dessa voz é essencial: enquanto
Ricoeur conjunga aí interioridade e exterioridade, Lévinas afirma sua absoluta
exterioridade em relação ao sujeito: encontramos aqui o tema da hipérbole do Mesmo e do
Outro e da absoluta separação entre ambos. Eis porque ele não pode aceitar que o próprio
corpo e a voz interior possam ser figuras de alteridade: “O outro enquanto outro

128
Olivier Abel e Jerôme Porée. Le Vocabulaire de Ricoeur, op.cit., p. 9
129
Idem, p.10
199

absolutamente outro, fonte de toda significação para mim, é outrem. Outrem é o outro
homem” 130.
O Outro é precisamente aquilo que eu não sou: “Ele é o fraco, enquanto sou o forte:
ele é o pobre, ele é ‘a viúva e o órfão’ (...) Ou então ele é o estrangeiro, o inimigo, o
poderoso” (EE113). Como já se viu, de De l´Évasion a Autrement qu´être, se desenha uma
trajetória na qual o abandono da linguagem fenomenológica e ontológica anda par a par
com uma mudança em relação às figuras exemplares da alteridade. Do Eros e da filiação,
presentes em Le Temps et l´Autre ao Rosto de Totalité et Infini, as figuras de alteridade
vão, por assim dizer, perdendo uma certa concretude, para ganhar em transcendência. No
entanto, as figuras que tantas vezes131 aparecem na Bíblia da viúva, do órfão, do pobre e do
estrangeiro parecem sempre ter acompanhado Lévinas: são elas que nos chamam à
responsabilidade, no sentido forte do termo, ressaltado por Ricoeur: “Algo ou alguém está
colocado sob minha guarda, ou sob minha proteção. (...) A idéia de tomar em encargo é
aqui absolutamente central.”132
De todas estas figuras, a do estrangeiro é particularmente importante: Jean Greisch
comenta que em algumas análises de Lévinas “a noção de estrangeiro aparece quase como
o definiens do conceito de outrem”133, e cita um trecho de Totalité et Infini: entre eu e o
outro, diz Lévinas, há “ausência de pátria comum que faz do Outro – o Estrangeiro; o
Estrangeiro que perturba o ‘em sua casa’ (chez soi)” (TI26). O Estrangeiro é o outro por

130
Lévinas citado por Rodolphe Calin e François David-Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p.8.
131
Uma pesquisa no site sefarim.fr encontrou 45 ocorrências da palavra: “viúva”; 29 da palavra: “órfão”; 84
referências ao pobre e 112 ao estrangeiro. A maioria delas no sentido de alimentá-los, vesti-los, tratá-los
com justiça, amá-los, etc... E muitas vezes com ordens bem específicas, como por exemplo, em
Deuteronômio XXIV, 20: “Quando bateres a tua oliveira, não tornará a colher o que resta nos ramos e o que
esqueceres de colher; para o peregrino, o órfão e a viúva serão”; e, em 21: “Quando vindimares a tua vinha,
não tornarás atrás a rebuscá-la; para o peregrino, o órfão e a viúva serão.” Não resisto aqui a tentação de me
referir a uma entrevista com Levinas, na qual, comentando o capítulo 58 de Isaías, no qual este diz que para
encontrar Deus “é preciso liberar os escravos, vestir os que estão nus, alimentar os que têm fome, fazer
entrar os mendigos em sua casa.” E Levinas comenta: “É o mais difícil pois os mendigos sujam os tapetes.”
Fina observação, que põe em questão nossa tão estimada privacidade ou intimidade! Ao mesmo tempo em
que ilustra a idéia, comentada a seguir, de que “O Estrangeiro perturba o ‘em sua casa’ (chez soi)” (TI26).
132
Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann” In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p.24/25.
133
Jean Greisch. “Éthique et ontologie. Quelques considérations ‘hypocritiques’” In: Emmanuel Lévinas.
L´éthique comme philosophie première. Paris: Cerf, 1993, p.30
200

excelência: não existe em Lévinas a idéia de que eu possa ser um estranho ou um


estrangeiro para mim mesmo134.
Nas primeiras páginas de Totalité et Infini, pode-se ler: “o eu, como outro, não é um
‘Outro’ (...) A alteridade do eu, que se toma por outro, pode impressionar a imaginação do
poeta, precisamente porque ela é apenas o jogo do mesmo: a negação do eu pelo si – é
precisamente um dos modos de identificação do eu” (TI26). A referência indireta a
Rimbaud, se torna em Hors Sujet, explícita “(...) eu que, apesar de Rimbaud, não é um
outro” (HS 212).
Não é apenas o poeta, diria Ricoeur a Lévinas, que pode pensar um si como outro,
mas a experiência de cada um com seu próprio corpo ou com a voz da consciência
(Gewissen). Talvez aqui possa ser mencionada a forte presença da reflexão sobre
psicanálise na obra de Ricoeur. O mesmo não pode ser dito de Lévinas, que não parece ter
se ocupado muito com a obra de Freud, nem o que de estranho ou de Unheimlich pode
haver em mim: não sou surpresa para mim mesmo: estando ‘em minha casa’ (chez soi), me
encontro na mesmidade.
Ao trecho supracitado de Lévinas, pode-se contrapor este outro de Ricoeur, no qual
fala de refiguração. O ‘eu’ é refigurado pelo ato de leitura, no qual ele se apropria de uma
figura de personagem, e por meio da identificação “se submete si mesmo ao jogo das
variações imaginadas, as quais se tornam variações imaginadas de si. Verifica-se por este
jogo a célebre palavra de Rimbaud (que tem mais de um sentido): Eu é um outro.”
(RSCH45).
Se submeter ao jogo das variações imaginadas de si, desinstalar-se, dar voz ao
estrangeiro e ao estranho em mim – não poucas vezes Ricoeur se refere a esta experiência
de modo positivo, como se pode ver neste trecho de um diálogo com Jean Daniel, acerca da
“Estranheza do estrangeiro”

“Acho que é preciso começar por descobrir nossa própria estranheza nos
‘desinstalando’ de algum modo. Eu estava pensando na proposição do Levítico:

134
O que, como bem apontou Ilana Viana do Amaral, não significa dizer que Lévinas, ingenuamente,
considere que o eu seja transparente a si. Se Lévinas não prioriza esta questão, é unicamente porque sua
‘idéia fixa’ ou ‘obsessão’ é, precisamente, sair do eu, do si, e de todas as problemáticas a ele relativa. Em
sua filosofia do sujeito, como já foi reiteradamente afirmado, o que importa é a presença do outro que si, de
outrem, da alteridade.
201

‘Fostes estrangeiro no Egito...’. Se não tivermos sido estrangeiros alhures, temos


que descobrir nosso Egito. Nossa ‘estrangeireza’ simbólica.”135

Poder-se-ia confrontar diretamente o próprio título da obra de Ricoeur: Soi-même


Comme Un Autre e esta reflexão, já citada, de Lévinas: “O eu, como outro, não é um
outro”. Parece seguro, no entanto, que Lévinas não visa responder a Ricoeur, uma vez que
Totalité et Infini foi escrito em 1961, Hors Sujet em 1987, e Soi-même Comme Un Autre só
aparece em 1990. Vale também lembrar que para Ricoeur o “como” não significa
equivalência, mas “implicação”: o si enquanto outro (Cf. SA14).
Porém, neste título não somente está em questão para Lévinas o como, mas
principalmente o si, isto é, a ipseidade. Se, a crer Kayombo, pode-se fazer equivaler a
noção de ipseidade à de homem capaz (“Na fenomenologia hermenêutica do sujeito, em
Ricoeur, os termos ‘si’, ‘humanidade do homem’ e ‘homem capaz’ são praticamente
intercambiáveis”136), então pode-se afirmar que os excessos de Lévinas atingem não
somente um ou outro ponto das investigações de Ricoeur, mas o próprio coração de suas
inquietudes teóricas, a saber, não somente concepção de um homem capaz., mas a própria
ipseidade, coração de sua hermenêutica do si.

4. A ipseidade possível ou impossível? Estratégia do para aquém, anarquia e


Dizer

É o próprio Ricoeur que aponta a impossibilidade, na teoria de Lévinas, de postular


a noção de ipseidade: tal impossibilidade é conseqüência da dupla hipérbole do Mesmo e
do Outro. A radicalidade da separação e da exterioridade, e da sinonímia entre o Mesmo e
o eu, que “tornam a interioridade estéril” (SA389), implicam em renunciar à distinção entre
idem e ipse:
“a distinção que proponho entre dois tipos de identidade, a do ipse e a do idem,
não pode ser levada em conta: não certamente por negligência fenomenológica
ou hermenêutica mas porque, em Lévinas, a identidade do mesmo está ligada a
uma ontologia da totalidade, que minha própria investigação jamais assumiu,
nem mesmo encontrou. Daí resulta que o si, não distinto do eu, não é tomado no

135
Paul Ricoeur e Jean Daniel. “A Estranheza do Estrangeiro.” In: Café Philo. As Grandes Indagações da
Filosofia, op.cit., p.16.
136
Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p.16
202

sentido de designação por si de um sujeito de discurso, de ação, de narrativa, de


engajamento ético.” (SA387)137

Assim, a radicalidade de Lévinas torna impossível a hermenêutica do si, na qual é


propriamente o conceito de ipseidade que possibilita construir uma ponte entre o sujeito e a
alteridade, evitando uma indesejável radicalização. Como afirma Richard Kearney:

“Confrontados ao mesmo tempo com a filosofia tradicional da mesmidade e


com a fixação pós-moderna com a alteridade, devemos construir pontes entre o
mundo do autos e o do heteros. É preciso traçar uma via entre estes extremos
que constituem a tautologia e a heterologia”138

Vale lembrar que o cogito ferido de Ricoeur é resultado de uma recusa dos
extremos que representam, por um lado, a solução cartesiana de um cogito “exaltado” que
se põe, e por outro, de um cogito “humilhado” por sua deposição. Do mesmo modo, ele
recusa os extremos oferecidos por Husserl, de um lado, e por Lévinas, de outro:

“Gostaria de mostrar essencialmente que é impossível construir de modo


unilateral esta dialética [do Mesmo e do Outro], seja ao se tentar com Husserl
derivar o alter ego do ego, seja com E. Lévinas reservando ao Outro a iniciativa
exclusiva da assignação139 de si à responsabilidade. Falta aqui conceber uma
concepção cruzada da alteridade, que dê conta alternadamente do primado da
estima de si e da convocação pelo outro à justiça. O que está em jogo, como se
verá, é uma formulação que seja homogênea à distinção fundamental entre duas
idéias do Mesmo, o Mesmo como idem, e o mesmo como ipse, distinção sobre a
qual se fundou toda nossa filosofia da ipseidade” (SA382)140

137
“(…) la distinction que je propose entre deux sortes d´identité, celle de l´ipse et celle de l´idem, ne peut
être prise en compte: non certes par un effet de négligence phénoménologique ou herméneutique, mais
parce que, chez E. Lévinas, l´identité du Même a partie liée avec une ontologie de la totalité que ma propre
investigation n´a jamais assumée, ni même rencontrée. Il en résulte que le soi, non distingué du moi, n´est
pas pris au sens de désignation par soi d´un sujet de discours, d´action, de récit, d´engagement éthique.”
138
Richard Kearney. “Entre soi-même et un autre: l´herméneutique diacritique de Ricoeur.” In: Cahiers de
l´Herne. Ricoeur, op.cit., p. 206: “Confrontés à la fois à la philosophie traditionnelle de la mêmeté et à la
fixation postmoderne sur l´altérité, nous avons besoin de construire des ponts entre le monde de l´autos et
celui de l´heteros. Il nous faut tracer une voie entre ces extrêmes que constituent la tautologie et
l´hétérologie.”
139
A palavra francesa ‘assignation’ foi traduzida literalmente por ‘assignação’, termo que não consta do
Dicionário Aurélio. Permito-me tal licença, pelo fato de que o termo consta das traduções já oficialmente
publicadas: a de Pergentino Stefano Pivatto, em conjunto com Marcelo Fabri, Marcelo Luiz Pelozzoli,
Evaldo Antônio Kuiva em De Deus que Vem à Idéia (Cf., por exemplo, p.130); como também na tradução
da obra de Ricoeur Outramente, igualmente sob responsabilidade de Pergentino Stefano Pivatto (Cf. p.21).
Tal opção, evidentemente discutível, me pareceu no entanto, muito apropriada, uma vez que seus sinônimos
ou ‘parentes’ soam, por vezes, fracos demais em relação à palavra ‘assignation’ (por exemplo: atribuição,
indicação, interpelação) e, por outras, jurídicos demais (notificação, citação, intimação).
140
“Je voudrais montrer essenciellement qu´il est impossible de construire de façon unilatérale cette
dialectique, soit que l´on tente avec Husserl de dériver l´alter ego de l´ego, soit qu´avec E. Lévinas on
203

É o conceito de ipseidade que permite a Ricoeur escolher, novamente, a via


mediana ou a justa medida: nem estima excessiva de si, nem ódio de si! Na trilha do desejo
de Ricoeur de “uma dialética cruzada do si e do outro que si” (SA393), Kearney quer
construir uma hermenêutica diacrítica, que leve em conta a dialética do si e do outro, sem
anular nenhum dos dois pólos da relação. “Entre o logos do Um e o anti-logos do Outro,
encontra-se o dia-logos de si mesmo como um outro” 141.
Para Ricoeur, como já se sublinhou, o pronome reflexivo “si” permite que se
quebre, por assim dizer, a imediaticidade presente no “eu”. “Dizer si, não é dizer eu. O eu
se põe – ou é deposto. O si é implicado a título reflexivo em operações cuja análise precede
a volta a ele mesmo” (SA30). O uso do pronome reflexivo possibilita uma crítica da
autofundação e da autosuficiência da consciência, implicando necessariamente em presença
do outro, como o indica claramente o título de sua obra.
Lévinas, por seu lado, vê no pronome reflexivo, a circularidade de um eu fechado
em si mesmo que, antes de anunciar a saída ou evasão do ser, a corrobora. “O se que, no
entanto, não surpreende mais pois entrou na linguagem corrente e fluente, em que as coisas
se mostram, parte-se, e as idéias se compreendem.” (AE21)142
A recusa do pronome reflexivo em Lévinas seria tão radical que Kayombo em seu
já citado livro: Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, ao apresentar Lévinas, evita o uso de
“soi” (si), substituindo-o por “moi” (eu).

“Ao falar sobre Lévinas, evitamos nomear o si. No lugar do si, foi citado o eu. A
razão é a de que o si, conceito fenomenológico, se define em todos os níveis da
analise também por sua abertura ao outro, o outro também enquanto outrem.
Teria sido portanto contraditório falar de um si absolutamente fechado a
outrem”143

réserve à l`autre l´iniciative exclusive de l´assignation du soi à la responsabilité. Une conception croisée de
l´altérité reste ici à concevoir, qui rende justice alternativement au primat de l´estime de soi et à celui de la
convocation par l´autre à la justice. L´enjeu, on va le voir, c´est une formulation de l´altérité qui soit
homogène à la distinction fondamentale entre deux idées du Même, le Même comme idem, et le Même
comme ipse, distinction sur laquelle s´est fondée toute notre philosophie de l´ipséité.”
141
Richard Kearney. “Entre soi-même et un autre: l´herméneutique diacritique de Ricoeur.” In: Cahiers de
l´Herne. Ricoeur, op.cit., p. 212.
142
“les bagages se plient” significa, ao mesmo tempo, fazer as malas e ir embora, partir.
143
Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p. 342/343, note 91: “Parlant de
Lévinas, nous nous sommes gardé de nommer le soi. À la place du soi, il a été cité le moi. La raison est que
le soi, concept phénoménologique, se définit à tous les niveaux de l´analyse aussi par son ouverture à
l´autre, l´autre en tant aussi qu´autrui. Ç´aurait été donc se contredire que de parler d´un soi absolument
fermé à autrui.”
204

A questão, assim colocada, impede que se possa falar de ipseidade na concepção de


sujeito em Lévinas. Tal impedimento procede? Em outros termos, a ipseidade teria um
lugar na filosofia do sujeito de Lévinas? Tratar-se-ia por parte de Lévinas, de um abandono
da ipseidade ou apenas de uma outra, muito diversa, concepção de ipseidade? De uma
recusa ou de uma recolocação?
Ricoeur tem, sem dúvida razão, ao dizer que: “Na verdade, o que a hipérbole da
separação torna impensável, é a distinção entre si e eu, e a formação de um conceito de
ipseidade, definido por sua abertura e sua função descobridora.” (SA391). O problema não
é o fato da ipseidade, mas sim o fato dela ser definida por sua abertura e sua função
descobridora. Para o superlativo levinasiano, tal concepção de ipseidade deixa a desejar,
devendo ser substituída por outra: “A ipseidade em sua passividade sem arché da
identidade, é refém.” (AE180), formulação que Ricoeur considera “dentre todas a mais
excessiva” (SA390).
Tal enigmática e excessiva formulação vem, de acordo com Ricoeur, coroar as duas
estratégias que são da ordem do “Desdizer, pelo qual o Dizer se retoma de sua captura no
Dito” (L3EL 97): a já comentada estratégia da hipérbole, mas também o que Ricoeur, em
seu artigo de 1989: “Emmanuel Lévinas, pensador do testemunho” chama de “estratégia do
recuo ao para aquém” (L3EL 97). Lévinas retorna a um “para aquém do inicio, da arché”
(L3 EL97). A concepção de um tempo diacrônico lhe permite ultrapassar a cronologia de
um tempo que inicia, e postular a

“Idéia de um passado mais antigo que qualquer passado rememorável, não


sendo suscetível de se integrar na consciência presente; idéia de uma
passividade que não seria o oposto da atividade, portanto que não seria um
sofrer [sujeitar-se, suportar] que as filosofias da consciência poderiam converter
em ato de assumir ou de consentir” (L3EL 97)144

É a partir da estratégia do para aquém que Lévinas pode criticar a noção corrente de
passividade: “nossa ‘passividade’ ocidental é receptividade é seguida de assunção”

144
“Idée d´un passé plus vieux que tout passé remémorable, donc non susceptible d´être réintégré dans une
conscience présente; idée d´une passivité qui ne serait pas l´envers de l´activité, donc qui ne serait pas un
subir, que les philosophies de la conscience pourraient convertir en acte d´assumer ou de consentir.” Dos
18 artigos que constam do livro original Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, apenas 11 foram
traduzidos na versão brasileira: Leituras 3. Nas fronteiras da filosofia. Tradução de Nicolás Nyimi
Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 1996. O artigo “Emmanuel Lévinas, penseur du témoignage” não
foi traduzido.
205

(DVI127), e formular sua concepção de um sujeito refém, sujeito que não consente, mas
que é levado a “responder sem comprometimento prévio” (AE184).
Para Ricoeur, a estratégia do para aquém é necessária, uma vez que o Dizer não
pode se inscrever no tempo sincrônico, tempo do Dito, da consciência da tematização, da
re-presentação, da presentação, do presente que recupera o passado “pela retenção, pela
memória, pela história” (AE22): “Porque este recuo em direção ao para aquém? Uma única
resposta: porque a ‘tematização perde a an-arquia’(AE192). O para aquém por excelência
é, no final das contas, o Dizer em relação ao Dito” (L3EL 97).

“Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence exagera a hipérbole até o


paroxismo. Todo um trabalho preparatório de demolição consuma as ruínas da
‘representação’, do ‘tema’, do ‘Dito’, para abrir o para além do ‘Dizer’, a era do
‘Desdizer’. É em nome deste ‘Desdizer’ que a assignação à responsabilidade
se subtrai à linguagem da manifestação, a seu dito e a seu tema. É enquanto
desdizer que a assignação à responsabilidade adota a forma de hipérbole, num
registro de excesso até então não atingido” (SA390)145

Tempo do dizer, do pré-original e do an-árquico: “A anarquia do dizer ético subtrai-


se à arché, à arquia da enunciação, reduzida a uma simples excrescência do dito
apofântico”(OUT25). A anterioridade do tempo sincrônico é descartada em prol da
proximidade ética que demanda anarquia e diacronia. Só a diacronia dá conta de um
afastamento irrecuperável como acontece com a aproximação e a proximidade de outrem.
Por isso, a recusa, ou como diz Ricoeur, “a batalha frontal contra a história e a memória”
(OUT27), e a necessidade de “um lapso de tempo sem retorno, uma diacronia refratária a
toda a sincronização, uma diacronia transcendente”(AE23). Na leitura atenta de Ricoeur,
“Lévinas investe a fundo aqui o tema da proximidade no sentido ético contra o da
anterioridade, no sentido ôntico-ontológico” (OUT26).
Ricoeur identifica nesta exposição dois grandes problemas: em primeiro lugar,
como se pode harmonizar “o passado que não retorna à guisa de presente” (AE23), “o
passado que se passa de presente” (AE25), “um passado que não foi presente” (AE45), com

145
“Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence renchérit sur l´hyperbole jusqu´à lui donner un tour paroxyste.
Tout un travail préparatoire de démolition consomme les ruines de la ‘représentation’, du ‘thème’, du ‘Dit’,
pour ouvrir au-delà du ‘Dire’ l´ère du ‘Dédire’. C´est au nom de ce ‘Dédire’ que l´assignation à la
responsabilité se soustrait au langage de la manifestation, à son dit et à son thème. C´est en tant que dédire
que l´assignation à la responsabilité adopte le tour de l´hyperbole, dans un registre d´excès encore non
atteint.”
206

a dedicatória: “À memória dos seres os mais próximos entre os seis milhões


assassinados...”? (Cf. OUT28/29). Tal questão será retomada adiante, na discussão acerca
do retorno do dito que Ricoeur vê no discurso filosófico de Lévinas.
Mas também, e é esta a segunda dificuldade: “fazer coincidir o pré-original do
discurso do Dizer com a contemporaneidade da aproximação do próximo” (OUT29). Há aí
uma contradição: “A afinidade entre a ‘dia-cronia refratária a toda sincronização’ (AE23) e
aquilo que não posso, ao que parece, pensar como senão como contemporaneidade da
aproximação, é questionável” (OUT29). Em outros termos, Ricoeur parece dizer que,
embora todo o esforço de Lévinas seja o de descronologizar e destemporalizar o pré-
original, a idéia de aproximação, de sua contemporaneidade, de sua presença no presente,
impõe um limite à diacronia absoluta, exigindo portanto uma certa sincronia. Talvez outro
modo de dizer: o instante não seria ele próprio presente da presença, presença esta não mais
dada pela manifestação, mas pela aproximação? Questão, confesso, de difícil solução, à
qual só posso responder timidamente, sem muita convicção, apelando para o fato de que
para Lévinas, o presente da aproximação é instante: não um instante que se destaca da
sucessão de instantes (tempo cronológico), mas instante único, instante que irrompe,
interrompe e, como o “tempo do agora” benjaminiano, faz “explodir o continuum da
história”146. Trata-se assim de um presente, para Lévinas, sem passado: “ressurreição do
insubstituível instante” (EE110).
Justiça seja feita a Ricoeur: ele certamente compreendeu o argumento de Lévinas –
por isso mesmo, qualifiquei a suposta resposta acima como tímida e insuficiente. O que
Ricoeur não aceita, novamente, é a radicalidade de Lévinas, que “não chegou a considerar
que a memória pode ser interpretada como reconhecimento da distância temporal,
irrecuperável em re-presentação” (OUT28).
Entretanto, é somente a radicalidade de Lévinas, em sua dupla estratégia da
hipérbole e do para aquém, que permite pensar o Dizer para além do Dito, o pré-original, a

146
Walter Benjamin. “Sobre o conceito da história.” In: Walter Benjamin. Obras Escolhidas I. Magia e
Técnica. Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet., op.cit., p. 231. A aproximação aqui entre o
Jetztseit benjaminiano e o presente – instante de Lévinas figura aqui unicamente para enfatizar a
descontinuidade do tempo em ambos os autores. Um aprofundamento não se justifica aqui, uma vez que
implicaria em pensar, por exemplo, o papel da memória e da história para cada um dos autores: enquanto
Benjamin quer escrever uma história “a contrapelo”, Lévinas, como se vê, coloca história e memória sob
suspeita. Embora as preocupações e intenções sejam diferentes, eles se cruzam na critica do tempo linear e
cronológico.
207

an-arquia, “a passividade mais passiva que qualquer passividade”, o sujeito como refém, a
subjetividade como substituição e, finalmente, a ipseidade: não mais definida ao modo de
Ricoeur, do si como um outro, ainda assim uma ipseidade, na qual o ‘se’ recupera sua
dignidade sendo sujeição: “O Si é Sub-jectum: ele é sob o peso do universo – responsável
de tudo” (AE 183). Ele é:

“submetido ao acusativo ilimitado da perseguição – si, refém, já substituído aos


outros. ‘Eu é um outro’ – mas sem a alienação rimbaudiana147, fora de todo lugar,
em si – para aquém da autonomia da auto afecção e da identidade repousando
em si mesmo. Suportando passivamente o peso do Outro, chamada por aí mesmo
à unicidade, a subjetividade não pertence mais à ordem em que a alternativa da
atividade e da passividade conserva seu sentido. É preciso falar aqui de expiação
como reunindo identidade e alteridade” (AE187)148

Para Ricoeur, é a ipseidade que possibilita a construção de uma ponte entre


identidade e alteridade. O mesmo pode ser dito de Lévinas: por meio de uma ipseidade
pensada como substituição e expiação, identidade e alteridade se encontram ou, como diz
Ricoeur “somente aqui é transposto o abismo cavado entre identidade e alteridade”
(SA390). “O Si [Soi] como expiação”(AE183)149, como suportar o peso do outro, como
sofrer o sofrimento do outro, isto é, como substituição, permite a reunião entre identidade
e alteridade. É este o modo pelo qual Lévinas define a ipseidade: não mais “si mesmo
como um outro”, à moda alienante de Rimbaud, mas “o outro em si mesmo” ou, como diz
Marc Faessler:
“Si mesmo como um outro, afirma Paul Ricoeur. O si como outro no mesmo,
pretende Emmanuel Lévinas. Sutil diferença em que se abre uma intransponível

147
Como se viu, para Lévinas, a famosa frase de Rimbaud, à qual também alude Ricoeur, não implica em
alteridade. É somente com a substituição que se pode falar verdadeiramente em “Outro no Eu” ou “Eu é um
outro”. Parece ser neste sentido que se pode entender o que Lévinas escreve acerca de Rimbaud em
Humanismo do outro Homem: “Haverá certeza de que a fórmula de Rimbaud: ‘Eu é um outro’, significa
somente alteração, alienação, traição de si, estranheza a si e servidão a este estrangeiro? Haverá certeza de
que já a mais humilde experiência daquele que se coloca em lugar do outro – isto é se acusa do mal ou da
dor do outro – não vem animada pelo mais eminente sentido, segundo o qual ‘eu é um outro’?” (HOH117)
148
“(...) soumis à l´accusatif illimité de la persécution – soi, otage, dejà substitué aux autres. ‘Je est un autre’ –
mais sans l´aliénation ribaldienne, hors de tout lieu, en soi – en deçà de l´autonomie de l´auto-affection et
de l´identité reposant sur ele-même. En subissant passivement le poids de l´Autre, appelée par là-même à
l´unicité, la subjectivité n´appartient plus à l´ordre où l´alternative de l´activité et de la passivité conserve
son sens. Il faut parler ici d´expiation, comme réunissant identité et altérité.”
149
Já se mencionou a carga religiosa deste termo. Cf p. 140/141 deste trabalho
208

fenda. Dois pensamentos se confrontam, que se cruzam no centro mesmo de seu


esforço filosófico.” 150

“Si mesmo como um outro”, e “si como outro no mesmo”: duas diferentes
concepções de ipseidade: sutil e decisiva diferença que se verifica no uso de uma mesma
expressão “eis me”, expressão bíblica recorrente em Lévinas e que Ricoeur retoma
freqüentemente, mas à qual cada um dá seu próprio significado.

5. O acusativo “Eis me” e o nominativo “Aqui estou”

Gostaria de me demorar nesta fórmula escolhida por Lévinas e retomada por


Ricoeur, pois estas duas pequenas palavras me parecem condensar a concepção levinasiana
de ipseidade e de subjetividade; e se Ricoeur as retoma, certamente não é no mesmo
sentido.
Antes no entanto de entrar na discussão filosófica propriamente dita, me parece
essencial apontar as ressonâncias bíblicas desta expressão, que aparece em momentos
cruciais do relato bíblico. Em geral, na boca do homem respondendo ao chamado de Deus,
seguido de uma ordem: Abraão, no emblemático episódio do sacrifício de seu filho Isaac
(Gênesis 22,1); Jacob, uma primeira vez (Gênesis 31,11), convocado por Deus para voltar a
Canaan, e uma segunda (Gênesis 46,2) para ir ao Egito encontrar José; Moises intimado a
guiar seu povo e sair do Egito; Samuel (I, 3, 4), que teve de ser chamado por Deus três
vezes; e Isaías (6,8) “Ouvi a voz do Senhor que dizia: ‘A quem hei de enviar? Quem irá por
nós?’ e eu disse: ‘Aqui estou, envia-me’”.
O famoso comentador do Pentateuco, Rachi151, vê nesta expressão um sinal de
piedade, de humildade e também de prontidão: “É assim que respondem os piedosos. Trata-
se de humildade e o sentido é ao mesmo tempo: estou pronto”152.

150
Marc Faessler. En Découvrant la Transcendance avec Emmanuel Lévinas. Cahiers de La Revue de
Théologie et Philosophie, 22. Genève/Lausanne/Neuchâtel. 2005, p. 69: “Soi-même comme un autre,
affirme Paul Ricoeur. Le soi comme autre dans le même, prétend Emmanuel Lévinas. Subtile différence où
bée une infranchissable faille. Deux pensées se confrontent, qui se croisent au centre même de leur effort
philosophique.”
151
Rachi (que é uma abreviação de RAbbi Chelomo ben Itzhak) nasceu na França em 1040 na cidade de
Troyes, na região de Champagne, e morreu aos 65 anos. “O fato de que a tradição tenha conservado a data
exata de sua morte – coisa rara nos anais da literatura medieval – testemunha a celebridade do famoso
sábio”, comenta o rabino Kaplan, em Le Pentateuque, accompagné du commentaire de Rachi. Seus
comentários bíblicos e talmúdicos tornaram-se clássicos da literatura rabínica, e muitas vezes neles se
inspirou Lévinas, que costumava dar aulas sobre Rachi, aos sábados. Cf. Le Pentateuque, accompagné du
209

Conta Salomon Malka que no decorrer de uma de suas aulas sobre Rachi, na qual
o tema era precisamente o “Hineni” (‘eis me’ em hebraico), Lévinas comentou:
“Ultrapassa-se a afirmação do eu, a soberania do eu (...) É um eis me que é também um
faça-de-mim-o-que-quiseres” 153
Humildade, disponibilidade, despojamento de si, é o sentido que lhe confere
Lévinas, sentido que também está presente na resposta de Isaías: “Eis me, envia-me”,
resposta que volta por duas vezes sob a pluma de Lévinas em Autrement qu´être. Na
segunda parte do capítulo V, intitulada: “A Glória do Infinito”, ao dizer que o ‘eis me’ “é
obediência à glória do Infinito que me ordena para Outrem” (AE228), Lévinas comenta, em
nota de rodapé que “‘Eis-me significa ‘envia-me’”. O mesmo comentário reaparece,
também em nota de rodapé, para apoiar a idéia de que “o ‘eis me’ me significa em nome de
Deus ao serviço dos homens que me olham (ou que me concernem)” (AE233)154.
O chamado de Deus, ao menos nos episódios aqui relatados, é uma ordem que
implica em um envio, em uma ação voltada para os homens: não se trata de adorar ou
reverenciar o Senhor, mas de obedecer, de aceitar uma missão entre os homens155.
Também, para Ricoeur, promessa e missão se entrelaçam, como lembra Jean
156
Greisch : em um artigo intitulado “A liberdade segunda a esperança”, ao falar sobre o
teólogo Jürgen Moltmann, diz Ricoeur: “Toda promissio envolve uma missio; no envio, a
obrigação que engaja o presente, procede da promessa, abre o futuro.” (CI399)
Feito este pequeno excurso bíblico, voltemos a nos ocupar com os diferentes
modos pelos quais Ricoeur e Lévinas articulam a expressão ‘eis me’ no registro filosófico.
Mas seria injusto apontar as dissonâncias, sem antes falar das convergências: não se pode
esquecer que ambos concebem o ‘eis me’ como resposta ao apelo do outro, resposta que é
responsabilidade pelo outro: ser responsável, isto é, responder ao e pelo Outro. A este

commentaire de Rachi. Ouvrage réalisé sous la direction de M. le Rabin Elie Munk. Tome I – La Genèse.
Paris: Fondation Samuel et Odette Levy, 3ème. édition, 1976, p.15.
152
Idem, p.133.
153
Lévinas citado por Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 122.
154
“Le ‘me voici’ me signifie au nom de Dieu au service des hommes qui me regardent”. Lembro o duplo
sentido da expressão francesa ‘me regarder’ , significando ao mesmo tempo: me olhar e me dizer respeito,
ou me concernir.
155
Mesmo o episódio relativo a Abraão, que pode ser lido como um teste da fé em Deus, também pode ser
visto como proibição do sacrifício humano, interdição de matar o outro homem.
156
Cf. Jean Greisch. Paul Ricoeur. L´itinérance du sens, op.cit., p.373.
210

respeito, importa invocar uma diferença apontada por Ricoeur entre imputabilidade e
responsabilidade.

“A palavra ‘responsabilidade’, ela também, sofre de ambigüidade. No sentido


fraco, a palavra se emprega assim: é dito responsável aquele que é autor de seus
atos. De meu lado, penso que seria melhor, neste caso, usar o termo
‘imputabilidade’: tal ou tal ato é considerado ‘imputável’ a alguém. No sentido
forte, que é também seu sentido verdadeiro, a noção de ‘responsabilidade’ é
desenvolvida por um filósofo muito pouco conhecido na França, Hans Jonas
[cuja obra maior é O Princípio Responsabilidade]. O autor mostra que a
verdadeira responsabilidade não é outra que a que se exerce no lugar de alguém
ou de algo de frágil, que nos seria confiado. Assim sou responsável, por
exemplo, de uma criança. Este sentido da palavra responsabilidade é muito
específico: é preciso que algo ou alguém me seja confiado pelo outro para que
eu possa ser considerado dele responsável. Algo ou alguém está colocado sob
minha guarda, ou sob minha proteção. (...) A idéia de tomar em encargo é aqui
absolutamente central. Reencontramos então o jogo entre estrutura pessoal e
alteridade, pois é sempre de um outro que sou responsável, de um outro que,
além do mais, poderá eventualmente me pedir para prestar contas” 157

Compreende-se a partir daí porque ser responsável significa responder ao e pelo


Outro. Ricoeur, neste trecho, se refere à “responsabilidade que se exerce no lugar de
alguém”, à responsabilidade na qual carrega-se e encarrega-se de alguém. Poder-se-ia ver
aqui o que Lévinas entende por substituição? Talvez até certo ponto, pois, em Lévinas,
como é de seu estilo, a responsabilidade se torna exasperada: não apenas sou responsável
de tudo e de todos, mas também, segundo a famosa frase de Dostoievsky, “Sou culpado de
tudo e de todos”: a resposta ao e pelo outro, que é substituição, significa sofrer o
sofrimento do outro, ser culpado pela culpa do outro. Não me parece que Ricoeur iria tão
longe...

157
Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann.” In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p.24/25: “Le mot ‘responsabilité’, lui aussi, souffre d´ambiguïté. Au
sens faible, le mot s´emploie ainsi: est dit responsable celui qui est l´auteur de ses actes. Pour ma part, je
pense qu´on ferait mieux, en ce cas d´user du terme d´’imputabilité’: tel ou tel acte est considéré comme
‘imputable’ à quelqu´un. En son sens fort, qui est aussi son sens vrai, la notion de ‘responsabilité’ est
développée par un philosophe trop peu connu en France, Hans Jonas [son ouvrage majeur: Le Principe
Responsabilité]. L´auteur y montre que la véritable responsabilité n´est autre que celle qu´on exerce à
l´endroit de quelqu´un ou quelque chose de fragile, qui nous serait confié. Ainsi suis-je reponsable, par
exemple, d´un enfant. Ce sens du mot responsabilité est très spécifique: il faut que quelque chose ou
quelqu´un me soit confié par l´autre pour que je puisse en être tenu responsable. Quelque chose ou
quelqu´un est mis sous ma garde, ou sous ma protection. (...) L´idée de prise en charge est ici absolument
centrale. Nous retrouvons alors le jeu entre structure personnelle et altérité, puisque c´est toujours d´un
autre que je suis responsable, d´un autre qui de surcroît pourra éventuellement me demander des comptes”
211

Se ambos, portanto, compartilham este sentido forte da palavra responsabilidade,


não o fazem do mesmo modo. O que fica claro se pensarmos que, enquanto para Lévinas, o
sujeito responsabilizado não tem como escapar de seu compromisso, para Ricoeur, a
responsabilidade passa pela promessa, isto é, pela decisão de um sujeito autônomo:

“É a partir de uma ética da promessa que eu retomaria, hoje, de boa vontade, a


noção de engajamento. Está engajado aquele que se sente numa relação de
atividade-passividade em relação a algo ou a alguém confiado a sua guarda.”158

Assim, embora ambos emprestem a mesma força à palavra responsabilidade, que


se dá a ver na resposta “eis me”, eles dão a esta expressão significações diversas, em
função da já comentada polêmica acerca da posição do sujeito em relação à alteridade:
passividade absoluta, requerida por Lévinas ou receptividade defendida por Ricoeur?
Antecipando, pode se dizer que, como conseqüência deste desacordo, o significado da
resposta “eis me” é para Lévinas relativo à eleição e ao testemunho, enquanto para Ricoeur
ela diz respeito à atestação e à promessa.

5.1. Atestação e eleição: ipseidade e unicidade

A polêmica entre os dois autores se verifica ou se atesta – para usar um termo caro a
Ricoeur – na análise gramatical da expressão ‘eis me’. O ‘eis me’ de Lévinas é acusativo
“acusativo que não é modificação de nenhum nominativo” (AE197)159 Partindo do
principio que a gramática não é, de modo nenhum inocente, a expressão implicaria então na
constatação que o sujeito só pode existir no acusativo, quer dizer enquanto acusado; seu
nascimento provém de uma assignação ou convocação, por parte do outro. Sem tal
acusação, o eu não pode ser dito.

158
Idem, p.31: “C´est à partir d´une éthique de la promesse que je rependrai volontiers aujourd´hui la notion
d´engagement. Est engagé quiconque se sent dans un rapport d´activité-passivité par rapport à quelque
chose ou à quelqu´un confié à sa garde.”
159
Nestes casos, dicionários são sempre bem vindos e esclarecedores, de modo que: o acusativo é “caso de
declinação latina, grega, etc., que indica sobretudo o complemento direto”, enquanto o nominativo é “o
primeiro caso, ou caso reto, dos nomes declináveis, o qual na oração serve de sujeito ou predicativo”. Falar
de acusativo significa dar prioridade ao Outro, enquanto o nominativo coloca o sujeito em sua posição de
sujeito.
212

O “eis me” de Lévinas é resposta à demanda, ou à exigência do outro, resposta que


diz do nascimento de um sujeito; este se constitui propriamente ao responder à convocação
do outro: ele é de imediato, esta resposta, esta responsabilidade. Ele é o nascimento do eu,
da ipseidade. Esta é a significação da palavra ‘Eu’: “A palavra Eu significa eis me,
respondendo de tudo e de todos” (AE180/181). Assim é que se pode falar de ipseidade em
Lévinas: “O Si no ser é exatamente o ‘não poder se esquivar’ a uma assignação que não
visa nenhuma generalidade (...) A ipseidade é, portanto, um privilégio ou uma eleição
injustificável que me elege a mim e não ao Eu (Moi). Eu (Je) único e eleito. Eleição por
sujeição” (AE201). O “eis me” é ipseidade ou, como prefere dizer Lévinas, “unicidade do
pronome eu”. Unicidade que nasce do apelo do outro, ou melhor, da eleição de mim pelo
outro que me escolheu, a mim e a nenhum outro - “Eu sou um e insubstituível” (AE163) -
para responder-lhe, isto é para ser seu refém, para que eu o substitua em sua
responsabilidade. O ‘eis me’ é assim unicidade do eu criada pela eleição.
Ricoeur retoma a expressão de Lévinas, para articulá-la com a noção de atestação,
assim definida: “confiança no poder de dizer, no poder de fazer, no poder de se reconhecer
personagem da narrativa, no poder enfim de responder à acusação pelo acusativo: eis me,
segundo uma expressão cara a Lévinas” (SA 34/35). E embora ele reconheça o acusativo
presente na expressão eis me, com ela se surpreende: “A gramática desta ipseidade não
tematizável é o acusativo, o me de ‘eis me’, o se de se acusar, se dar em refém. Gramática
na verdade surpreendente, que coloca no caminho do Desdito: ‘Acusativo que não é
modificação de nenhum nominativo’” (L3EL 102). Surpresa que transforma o acusativo de
Lévinas em nominativo. “Não seria preciso que a voz do Outro que me diz: ‘Não matarás’
seja feita minha, a ponto de se tornar minha convicção, esta convicção que iguala o
acusativo do ‘Eis me’ ao nominativo do ‘Aqui estou’?” (SA391). Como se pode ver, o que
Ricoeur não aceita é a ausência de receptividade por parte do sujeito: à passividade do
sujeito eleito, Ricoeur responde com a iniciativa do sujeito que atesta de si. Ao invés de
eleição, Ricoeur prefere falar em atestação de si.
Atestação ou eleição? Atestação e eleição, diz Marc Faessler, em seu interessante
artigo, no qual considera “esta eleição do eu trazida por Lévinas do impensável para o
pensamento, como o ponto de apoio implícito da atestação de si em obra na hermenêutica
213

de Ricoeur”160. Ou, dito de outra forma: “A eleição no sentido em que Lévinas o entende,
origina eticamente a atestação de si, mas não se confunde com ela”161 Instigante
perspectiva na qual os dois autores se situariam numa relação de complementaridade.

“É portanto possível reposicionar, numa relação de complementaridade, mais


do que de inclusão, os pensamentos de Ricoeur e de Lévinas. O esforço
hermenêutico de Ricoeur pode ser interpretado no prolongamento, no plano
reflexivo e ontológico, do pensamento levinasiano – como se este último
oferecesse ao Cogito ferido e sem fundamento último, o sentido de outramente
que ser que lhe falta” 162

Faessler aposta nesta complementaridade especialmente no que diz respeito à


justiça, ou seja, à inclusão do terceiro, com a qual Lévinas, contrariamente a Ricoeur, se
acomoda mal. Para ele, “Nesta perspectiva, pode-se afirmar que Ricoeur desenlaça,
desenvolvendo-o, um fio que permaneceu tênue em Lévinas.”163 A lacuna deixada por
Lévinas se refere à justiça, ou a presença do terceiro, que nunca foi objeto de
sistematização em sua teoria: “A ordem do terceiro comporta todos os problemas que
aborda Ricoeur, enquanto Lévinas se contenta em esboçar sua emergência sem se aventurar
mais longe”164 Esta questão será abordada adiante, ao se confrontar a “pequena ética” de
Ricoeur com a “ética primeira” de Lévinas, momento em que se examinará o que Ricoeur
chamou de “retorno do dito” em Lévinas.
Por ora, me mantenho no âmbito do face a face, e me pergunto se a aproximação
entre atestação e eleição pode ser aqui assumida. Evidentemente, Faessler tem consciência
das diferenças entre os autores, mas, de minha parte, vejo mal como Ricoeur poderia
aceitar tal hipótese: a de que a atestação tem sua origem na eleição. Tal hipérbole – a da
eleição – é ela própria, fruto da estratégia do para aquém, a partir da qual é possível
postular a anarquia, o Dizer e Desdizer, tantos termos que soam estranhos aos ouvidos de
Ricoeur. Vejo mal como, na traição do dizer pelo dito ou na insuficiência do dito, se
sustentaria a identidade, precisamente, narrativa. Vejo mal como o Cogito ferido de

160
Marc Faessler. En Découvrant la Transcendance avec Emmanuel Lévinas, op.cit., p. 80
161
Idem, p.81
162
Idem, p.81: “Il est donc posible de repositionner dans un rapport de complementarité plutôt que
d´inclusion, les pensées de Ricoeur et de Lévinas. L´effort herméneutique de Ricoeur peut éter interprété
dans le prolongement, au plan réfléxif et ontologique, de la pensée lévinassienne – comme si cette dernière
offrait au Cogito brisé et sans fondation ultime, le sens d´autrement qu´être qui lui fait défaut.”
163
Idem, p.81
164
Idem, p.81
214

Ricoeur poderia inscrever em si próprio o sentido de outramente que ser sem, no mesmo
movimento, se destruir. O próprio Ricoeur, ao buscar as possíveis intersecções entre sua
obra e a de Lévinas, não o faz a partir da relação entre atestação e eleição, mas sim entre
atestação e testemunho.

5.2. Atestação e testemunho

É entre atestação e testemunho que Ricoeur vê uma possível articulação entre sua
própria concepção e a de Lévinas. Articulação presente na transformação do acusativo eis
me em nominativo aqui estou. Se o ‘eis me’ para Lévinas é fruto da eleição, a “passividade
rebenta ao dizer ‘eis me aqui!’” (EI101), transformando-se em “testemunho da glória do
Infinito”. Pode-se ler em Autrement qu´être

“‘Eis me’ como testemunho do Infinito, mas como testemunho que não tematiza
aquilo que ele testemunha e cuja verdade não é verdade de representação, não é
evidência. Só há testemunho – estrutura única, exceção à regra do ser, irredutível
à representação - do Infinito. O Infinito não aparece àquele que o testemunha. É,
ao contrário, o testemunho que pertence à glória do Infinito. É pela voz da
testemunha que a glória do Infinito se glorifica” (AE229)165

O Infinito não se deixa ver, não é manifestação, mas ele se revela. “O rosto significa
o Infinito”. E assim como o rosto só pode ser entendido em sua contra-fenomenalidade, o
Infinito ultrapassa o pensamento. Neste sentido, do Infinito, só pode haver testemunho. E
Ricoeur então pergunta:

“Mas quem testemunha, senão o Si, distinto doravante do eu, em virtude da idéia
de assignação à responsabilidade? ‘O Si é o fato mesmo de se expor, sob o
acusativo não assumível no qual o Eu suporta os outros, ao contrário da certeza
do Eu se unindo a si próprio na liberdade’ (AE188). O testemunho é, portanto, o
modo de verdade desta auto-exposição do Si, contrária à certeza do Eu. Está este
testemunho tão distante daquilo que denominamos constantemente atestação?
Certamente, Lévinas não fala jamais em atestação de si, a tal ponto esta
expressão seria suspeita de reenviar à ‘certeza do Eu’. Resta que, pelo viés do
acusativo, a primeira pessoa está indiretamente implicada, e que o acusativo não

165
“‘Me voici’ comme témoignage de l´Infini, mais comme témoignage qui ne thématise pas ce dont il
témoigne et dont la vérité n´est pas vérité de représentation, n´est pas évidence. Il n´y a de témoignage –
structure unique, exception à la règle de l´être, irréductible à la représentation – que de l´Infini. L´Infini
n´apparaît pas à celui qui en témoigne. C´est au contraire le témoignage qui appartient à la gloire de l´Infini.
C´est par la voix du témoin que la gloire de l´Infini se glorifie.”
215

pode permanecer ‘não assumível’, para retomar a expressão citada acima, sob
pena de retirar toda significação ao tema mesmo da substituição, sob a égide do
qual o do testemunho é reassumido por E. Lévinas.” (SA392)166

Assim como, para Lévinas, “a verdade pode significar testemunho do Infinito”


(AE190), para Ricoeur tanto o testemunho quanto a atestação dizem respeito a uma
verdade que não é da ordem da verificação ou falsificação (Cf.SA34): atestação e
testemunho destronam a certeza do Eu. Mas para Ricoeur, somente um si que se atesta é
capaz de testemunhar. o acusativo ‘eis me’ deve ser assumido pelo Si que testemunha.
Nesse sentido, ele se iguala ao nominativo: “Aqui estou”: é por esta via que Ricoeur pode
estabelecer um parentesco entre testemunho e atestação.

5.3. Promessa e convocação

Mas o ‘aqui estou’ de Ricoeur não é apenas atestação, mas igualmente promessa..
A promessa é “uma resposta à questão ‘Onde estás’, colocada pelo outro que me requer.

Esta resposta é ‘Eis me’. Resposta que diz a sustentação de si (maintien de soi)” (SA195).

Responder ao outro, isto é, para Ricoeur, prometer. Como se mencionou, a promessa, num
certo sentido, é doação de si: a despeito do que sou ou quero, mantenho minha promessa e
respondo “Eis me” ao chamado do Outro; mas ela é ao mesmo tempo, sustentação de si,
afirmação de si: “Aqui estou” ou “aqui me mantenho” é a significação da promessa. E
mesmo que Ricoeur insista na “diferença entre a modéstia da sustentação de si e o orgulho
estóico da rígida constância a si” (SA198), não se encontra nada parecido em Lévinas, para
quem a substituição, como bem observa o próprio Ricoeur, implica num “élan de
abnegação onde o si se atesta pelo movimento mesmo pelo qual ele se destitui” (SA392).

166
“Mais qui témoigne sinon le Soi, distingué désormais du moi, en vertu de l´idée d´assignation à la
responsabilité? ‘Le Soi, c´est le fait même de s´exposer, sous l´accusatif non assumable où le Moi supporte
les autres, à l´inverse de la certitude du Moi se rejoignant lui-même dans la liberté’ (AE188). Le
témoignage, c´est donc le mode de vérité de cette auto-exposition du Soi, inverse de la certitude du Moi. Ce
témoignage est-il si éloigné de ce que nous avons constamment dénommé attestation? Certes, Lévinas ne
parle jamais d´attestation de soi, tant l´expression serait soupçonnée de ramener à la ‘certitude du Moi’. Il
reste que, par le biais de l´accusatif, la première personne est indirectement concernée, et que l´accusatif ne
peut rester ‘non assumable’, pour reprendre l´expression citée plus haut, sous peine de retirer toute
signification au thème même de la substitution sous l´égide duquel celui du témoignage est réassumé par E.
Lévinas”
216

Na promessa, o eu não se anula, se atesta, mas aceita doar-se ao outro, enquanto na


perspectiva de Lévinas, ao dizer “eis me”, o sujeito, ao mesmo tempo em que nasce, se
anula, por assim dizer, ao responder à eleição do outro, o sujeito se torna refém do outro, se
substitui ao outro.
Entre promessa e substituição, parece não haver compromisso possível. Poder-se-ia
objetar que assim como Ricoeur fala de “uma promessa de antes de qualquer promessa”,
quer dizer da promessa em manter a promessa, também a substituição, o colocar-se no
lugar do outro para assumir suas responsabilidades, implicaria precisamente na promessa
de assumir tais responsabilidades. O problema é que a noção de promessa pressupõe a
liberdade de um sujeito que pode ou não prometer, enquanto a responsabilidade tal como a
concebe Lévinas é injunção e convocação que vem do outro, retirando do sujeito qualquer
capacidade de escolha e decisão. É bem verdade também que, uma vez prometida, a
promessa se mantém a despeito do querer do sujeito: reencontra-se aqui o mesmo leit-
motiv que em Lévinas - a despeito de si próprio. Resta que a decisão de prometer ainda
cabe ao sujeito, enquanto a substituição nasce, por assim dizer, a fórceps. Para Ricoeur,
este a despeito de si próprio, é ao mesmo tempo uma reafirmação do sujeito, um esforço do
sujeito em sustentar sua palavra, é “sustentação de si”, enquanto a substituição implica, em
certo sentido, em uma deposição do sujeito.

5.4. Estima de si e dignidade do eleito: a distância entre nominativo e acusativo

Vejo aqui uma distância intransponível entre o nominativo ‘aqui estou’ e o


acusativo ‘eis me’: enquanto o primeiro implica em sustentação de si, atestação de si, ou
estima de si, o segundo remete, ao menos, para Lévinas, à substituição, ou deposição do
sujeito: “Me coloco no acusativo, à guisa de acusado, quer dizer que eu perco todo lugar”
(DMT 188): trata-se assim de um eu que logo posto, é deposto pela substituição ao outro:
“o sujeito posto enquanto deposto” (AE200). Deposição que diz respeito a um certo
desalojamento do sujeito e não – questão essencial – ao seu desaparecimento. Se Lévinas
não compartilha com Ricoeur a importância da estima de si na relação com a alteridade,
não é para anular o si, mas para ressaltar “a unicidade do pronome eu” ou, em outros
217

termos “a dignidade do eleito”. Tal questão está claramente posta na elegante troca de
cartas entre nossos autores. Lévinas escreve a Ricoeur:

“O Sr. censura meu modo de compreender a ‘relação a outrem’, o


desconhecimento do que o Sr. denomina ‘estima de si’ que, segundo sua análise,
pertenceria necessariamente à generosidade do ‘para-o-outro’ e antecipadamente
a sustentaria (...) Esta estima de si ou esta não-indiferença para consigo ou esta
dignidade, não se reduz à da caridade e da justiça. Ela transparece, me parece,
na responsabilidade inicial e incessível – incessível a ponto de ir até a
substituição e a miséria de refém – à guisa de dignidade de eleito que –
atestando de algum modo uma significação religiosa ligada ao rosto de outrem, e
para além de toda identidade de indivíduo integrado à generalidade de um
gênero – se enuncia na unicidade do pronome eu.”167

Ricoeur responde:

“Se há entre o Sr e eu alguma diferença, ela se situa exatamente no ponto em


que sustento que o rosto do outro somente poderia ser reconhecido como fonte
de interpelação e de injunção se ele se revela capaz de despertar ou acordar uma
estima de si, a qual, reconheço, permaneceria incoativa, não desdobrada, e em
suma, enferma, fora do poder de despertar proveniente do outro. Dito isto, me
junto ao Sr. em sua última afirmação, a saber, ‘a unicidade humana do pronome
eu’, irredutível à integração, à generalidade de um gênero. (...) Gosto também
que o Sr. empregue o termo atestação que é de certa forma a pedra angular de
toda minha empreitada”168

Ricoeur lamenta em Lévinas, o quase ‘esquecimento’ do sujeito na relação com a


alteridade, o que torna inviável que haja, nesta, reciprocidade: no lugar da “estima de si”,
Lévinas coloca a “dignidade do eleito”.
Chama a atenção, nesta elegante troca de cartas, o fato de Ricoeur enfatizar o uso
comum de uma palavra, essencial na hermenêutica do si: “atestação (...) pedra angular de
167
Troca de cartas entre Emmanuel Lévinas e Paul Ricoeur: “L´Unicité humanine du pronom Je”. In: Éthique
et Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p. 35/36: “Vous reprochez à ma façon d´entendre la ‘relation à
autrui’ la méconnaissance de ce que vous appelez ‘estime de soi’ qui, d´après votre analyse, appartiendrait
nécessairement à la générosité du ‘pour l´autre’ et d´avance la soutiendrait (…) Cette estime de soi ou cette
non-indifférence à soi-même ou cette dignité, ne se réduit pas à celle de la charité ou de la justice. Elle
transparaît, d´après moi, dans la responsabilité initiale et incessible – incessible au point d´aller jusqu´à la
substitution et la misère d´otage – en guise de dignité d´élu qui – attestant en quelque manière une
signification religieuse attachée au visage d´autrui, et par delà toute identité d´individu intégré à la
généralité d´un genre – s´énonce dans l´unicité humaine du pronom je.”
168
Idem, p.37. “S´il y a entre vous et moi quelque différend, il se situe exactement au point où je soutiens que
le visage de l´autre ne saurait être reconnu comme source d´interpellation et d´injonction que s´il s´avère
capable d´éveiller ou de réveiller une estime de soi, laquelle, je l´accorde volontiers, resterait inchoative,
non déployée, et pour tout dire infirme hors de la puissance d´éveil issue de l´autre. Cela dit, je vous rejoint
dans votre dernière affirmation, à savoir ‘l´unicité humaine du pronom je’, irréductible à l´intégration, à la
généralité d´un genre (...) J´aime aussi que vous employiez le terme attestation qui est en quelque sorte la
clé de voûte de toute mon entreprise”
218

toda minha empreitada.” No entanto, é preciso sublinhar novamente que se Ricoeur e


Lévinas usam o mesmo termo, não o fazem na mesma direção, emprestando-lhe
significados diferentes. A atestação, que é sempre atestação de si, é impensável numa
filosofia da substituição: enquanto a primeira refere-se a uma certa confiança de existir,
portanto a uma certa posição do si (e não posição do eu), a última é uma deposição da
consciência e do sujeito, como se nota nesta formulação quase virulenta:

“Já a posição do sujeito é de-posição, não conatus essendi, mas desde logo
substituição de refém expiando a violência da perseguição ela própria. É preciso
pensar até aí a dessubstancialização do sujeito, sua desreificação, seu
desinterressamento, sua sujeição – sua subjetividade. Puro si, no acusativo,
responsável de antes da liberdade” (AE202)169

Diz Ricoeur que é a hipérbole da substituição que desaloja a autoposição do sujeito


nas filosofias da consciência (Cf. L3EL 98/99). Como então falar em atestação de si? O
próprio Ricoeur aponta para tal impossibilidade:

“Não defendo aqui nenhum sincretismo. Não nego nem mesmo o abismo que
separa a idéia de uma inadequação de si a si e a de uma assignação exterior à
responsabilidade. Me limito a sugerir isto: o si seria o resultado se ele não fosse
antes pressuposição, isto é potencialmente capaz de escutar a assignação? Sei
bem que inquirir sobre qualquer capacidade, qualquer potencialidade que não
seriam a própria obra da assignação é para Lévinas uma questão inadmissível. A
mais ínfima admissão de uma capacidade própria, correlativa da assignação,
arruinaria toda sua filosofia da passividade. E seria embotar o caráter incisivo
das expressões hiperbólicas de uma ética sem ontologia. Mas seria proibido a
um leitor, amigo de Nabert e de Lévinas, cavar o sulco de uma filosofia onde a
atestação de si e a glória do absoluto seriam co-originárias?” (L3EL 103)170

169
“Dejà la position du sujet est dé-position, non pas conatus essendi, mais d´emblée substitution d´otage
expiant la violence de la persécution elle-même. Il faut penser jusque là la dé-substantiation du sujet, sa dé-
réification, son désinteressement, sa sujétion – sa subjectivité. Pur soi, à l´accusatif, responsable d´avant la
liberté”
170
“Je ne plaide ici pour aucun syncrétisme. Je ne nie même pas l´abîme qui separe l´idée d´une inadéquation
de soi à soi de celle d´une assignation extérieure à la responsabilité. Je me borne à suggérer ceci: le soi
serait-il le résultat, s´il n´était pas d´abord présupposition, c´est-à-dire potentiellement capable d´entendre
l´assignation? Je le sais bien, enquérir sur quelque capacité, sur quelque potentialité qui ne seraient pas
l´oeuvre même de l´assignation, c´est pour Lévinas poser une question inadmissible. La plus infime
admission d´une capacité propre, correlative de l´assignation, ruinerait tout l´acquis d´une philosophie de la
passivité menée sans faiblesse. Et ce serait certainement émousser le trenchant des expressions
hyperboliques d´une éthique sans ontologie. Mais est-il interdit à un lecteur, ami de Nabert et de Lévinas,
de creuser le sillon d´une philosophie où l´attestation de soi et la gloire de l´absolu seraient co-originaires?”
219

Que me perdoe o leitor, mas se chego ao fim deste longo percurso com uma
questão, levantada pelo próprio Ricoeur, é para demarcar a dificuldade em estabelecer
conexões conclusivas entre a hermenêutica do si e a concepção levinasiana de sujeito. No
entanto, o que parece certo, como bem o disse José Heleno Morgado, tomando emprestado
171
um termo de Wittgenstein, é que circula entre os dois, um certo “ar de família” , que
poderia ser justificado pela convergência dos temas tratados, mas que eu gostaria de por
aqui na conta da preocupação, presente em ambos, em desalojar o sujeito de sua posição
soberana, sem, entretanto, fazer com que ele desapareça. O que desaparece, é o indivíduo
na ignorância do outro, o que nasce é um um sujeito que só é tal se concebido em relação à
alteridade: em outros termos, uma concepção de sujeito inalienável de sua dimensão ética.

III. Ética, Moral e Justiça

1. O acordo ético

Na esteira de François Dosse, que ressalta a importância da interrogação ética tanto


em Ricoeur quanto em Lévinas, me parece que, se há algo que pode unir os dois
pensadores, este ‘algo’ é sem dúvida a preocupação ética, isto é, a incontornável presença
da alteridade na trajetória do sujeito.
Digo e insisto: incontornável, pois somente assim é possível ainda falar em sujeito,
isto é, retirando-lhe sua majestade inconteste, ferindo seu cogito, como o faz delicadamente
Ricoeur, ou de modo mais exagerado ou ‘hiperbólico’, conforme o estilo de Lévinas,
substituindo-o por outrem.
Se ainda são as convergências que por ora me ocupam, um nome não pode deixar
de ser mencionado: o de Heidegger. Já se conhecem as ambivalências que este nome
suscita: um grande filósofo, que não pode ser ignorado, mas também não se pode
menosprezar as ligações deste com o hitlerismo ou nazismo. Para Lévinas, isto constitui um
“escândalo”.172 Ricoeur, mais condescendente, e ao mesmo tempo, mais contundente,
afirma que:

171
José Manuel Morgado Heleno. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur, op.cit., p. 400.
172
Cf. Danielle Cohen-Lévinas. Lévinas .Édition et présentation de Danielle Cohen-Lévinas, op.cit., p. 11
220

“O ‘problema’ Heidegger é muito específico. Heidegger não é um filósofo


intemporal, ele está ligado à História, e à história do hitlerismo. Pode-se, com
certeza, falar de um ‘caso’ Heidegger, mas eu diria que toca a cada um ler os
livros do filósofo da melhor maneira, tentar distinguir o que, em sua filosofia, se
prestava à perversão nazista. Este trabalho deve ser empreendido nos textos, e
não a partir de fofocas ou tomadas de posição pessoais de Heidegger – por
exemplo, o famoso Discurso do Reitorado. Aprendeu-se também da critica
literária que não se deve misturar a biografia à compreensão dos textos.
Emmanuel Lévinas, creio, teve esta frase: “Mesmo o diabo dá a pensar”. De
fato, não há um mal entendido Heidegger. Eis simplesmente um caso no qual a
obra é maior que o homem, e no qual o homem não está à altura de seus
livros.”173

Fugindo desta infindável polêmica, basta-me por ora, convocar novamente a fala de
Ricoeur:
“No fundo, Heidegger, é uma filosofia que não podia produzir uma ética. Há
uma espécie de lugar vago para o herói. (...). É, portanto, uma espécie de
amoralismo fundamental. Ele era assim a presa sonhada pelo hitlerismo. É a
falha que precisava ser reconhecida e Lévinas a percebeu perfeitamente”.174

Não há ética em Heidegger, simplesmente porque a alteridade se encontra


absolutamente ausente175.
Mas talvez se deva repetir o que já tantas vezes foi dito, esta reabilitação da ética,
isto é, da alteridade, passa necessariamente por uma certa recuperação do sujeito. Pois se
tanto Ricoeur quanto Lévinas não querem e não podem passar por cima e por alto das
conseqüências de um sujeito fechado em si e dono de si, se não querem e não podem
173
Paul Ricoeur. “Entretien. Propos recueillis par Jean-Christophe Aeschlimann.” In: Éthique et
Responsabilité. Paul Ricoeur, op.cit., p. 23: “Le ‘problème’ Heidegger est très spécifique. Heidegger n´est
pas un philosophe intemporel, il est lié à l´Histoire, et à l´histoire de l´hitlérisme. On peut certes parler d´un
‘cas’ heidegger, mais je dirais qu´il appartient à chacun de lire les livres du philosophe de la meilleure
façon, de tenter distiniguer ce qui, dans sa philosophie, se prêtait à la perversion nazie. Ce travail est à
entreprendre sur les textes, et non à partir de ragots ou de prises de position personnelles de Heidegger – par
exemple le fameux Discours du Rectorat. Nous avons aussi appris de la critique littéraire qu´il ne faut pas
mêler la biographie à la compréhension des textes. Emmanuel Lévinas, je crois, a eu cette phrase: ‘Même le
diable donne à penser.’ De fait, il n´y a pas de malentendu Heidegger. Voilà simplement un cas où l´oeuvre
est plus grande que l´homme, et où l´homme n´est pas à la hauteur de ses livres.”
174
Ricoeur em entrevista a Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p. 206: “Au fond,
Heidegger c´est une philosophie qui ne pouvait pas produire une éthique. Il y a une sorte de place vide pour
le héros (...) C´est donc une espèce d´a-moralisme fondamental. Il était donc la proie revé pour l´hitlérisme.
C´est la faille qu´il fallait reconnaître et Lévinas l´a parfaitement perçue.”
175
Tenho consciência do apressado desta afirmação, que certamente poderia ser contestada por muitos
autores. Dentre estes, ressalto o trabalho de Zeljko Loparic. Heidegger Réu. Um ensaio sobre a
periculosidade da Filosofia. Campinas, SP: Papirus, 1990. E Ética e finitude. SP: Escuta, 2004, 2a ed. À
guisa de resposta, me apóio no belíssimo artigo de Lévinas intitulado “Morrer Por...”, publicado em Entre
Nós. Ensaios sobre a Alteridade, op.cit., p.250 a 262.
221

refugiar-se num humanismo que acaba por tornar-se desumano e inumano, nem por isso
compactuam com sua morte, e com o fim do homem; ao contrário, o esforço de ambos
converge na mesma direção: a possibilidade de um outro sujeito, de um outro humanismo,
ou de outra humanidade.
Ricoeur opta pelo termo humanidade, preferível ao outro termo, contaminado, de
humanismo:
“Esta humanidade será praticamente decifrada nos poderes ou na capacidade do
homem. Na fenomenologia hermenêutica do sujeito, de Ricoeur, os termos ‘si’,
‘humanidade do homem’ e ‘homem capaz’ são praticamente intercambiáveis:
eles cobrem a mesma realidade, a saber, o que faz que um homem é um
homem.”176

Enquanto Lévinas aposta no Humanismo do Outro Homem.

“O Humanismo pretendido por Lévinas (...) consciente da crítica anti-humanista


que marca seu tempo, é por Lévinas inteiramente revirado em Humanismo do
Outro Homem e não mais pensado a partir do Eu soberano da consciência,
característico da Filosofia Moderna. Num contexto de ‘fim do humanismo, fim
da metafísica – morte do homem, morte de Deus (ou morte a Deus) [que se]
impõem com a tirania da última moda’ (HOH, 109), a possibilidade de pensar
um humanismo capaz de opor resistência à aniquilação do humano levada a
efeito nos campos de concentração deve contudo, precisamente enfrentar de
modo crítico e não fazer ‘ouvidos moucos’ à crítica não humanista.”177

2. O desacordo: pequena ética ou ética como filosofia primeira ?

Ainda que a interrogação ética esteja no coração da obra de nossos autores, cada um
a concebe a sua maneira. Em oposição à “pequena ética” de Ricoeur, a ética de Lévinas
como filosofia primeira jamais poderia ser chamada de “pequena”! Novamente encontra-se
aqui, na própria linguagem dos autores, a modéstia e a prudência de um e o excesso ou,
como querem alguns, a arrogância de outro...

176
Bernard Ilunga Kayombo. Paul Ricoeur. De l´attestation du soi, op.cit., p. 16: “Cette humanité sera
pratiquement déchiffrée dans les pouvoirs ou capacités de l´homme. Dans la phénoménologie
herméneutique du sujet, chez Ricoeur, les termes ‘soi’, ‘humanité de l´homme’ et ‘homme capable’ sont
pratiquement interchangeables: ils couvrent la même réalité, à savoir, ce qui fait qu´un homme est un
homme.”
177
Ilana Viana do Amaral. “Do Eros à Ética: caminhos do Desejo nos ditos e no dizer de E. Lévinas”. In:
Kalagatos, op.cit., p. 71.
222

Na formulação de François Dosse, Ricoeur não segue Lévinas “na idéia de uma
ética sem ontologia sob pretexto que a ontologia seria totalitária”178. Ricoeur, em uma
entrevista a Joël Roman e Étienne Tassin, afirma que: “Não se deve alinhar a ontologia
com a substância ou a essência. Ontologias vacantes e inacabadas podem ser apropriadas
para alternativas éticas”179. A forma inacabada da ontologia de Ricoeur se evidencia na
forma interrogativa do próprio título do último estudo de Soi-même comme un Autre: “Em
direção a que ontologia?” O ponto de interrogação deixa clara a démarche de Ricoeur:
trata-se de uma tentativa, a de esboçar uma possível ontologia da hermenêutica de si. À
exigência radical, por parte de Lévinas, de esquecer a ontologia em favor da ética, de
recolocar a primazia do esquecimento do outro em relação ao esquecimento do ser, tão caro
a Heidegger, Ricoeur se pergunta: “Será que a ética é uma alternativa para a ontologia?
(...) Penso que a ética está fortemente enraizada na tradição ontológica, mas precisamente
em uma outra ontologia que a ontologia da substância: está enraizada numa ontologia do
ato.”180
A pergunta “que tipo de ser é o si?” deve ser pensada a partir da distinção
aristotélica entre o ser como substância e o ser como ato ou potência: desta distinção,
Ricoeur retém o segundo sentido, que será reinterpretado à luz da noção spinozista de
conatus essendi. E, se Ricoeur recorre a Spinoza para falar da potência da vida, do esforço
de ser e de existir (Cf. SA 365/366/367), Lévinas se situa nas antípodas deste: a todo
momento, na obra de Lévinas, aparece sua, por assim dizer, alergia ao conceito de conatus
essendi. Para Lévinas, a espontaneidade do eu, que é precisamente a vontade de perseverar,
é mal. O ser é mal, diz e repete Lévinas: a orientação para o bem se dá de forma violenta,
interrompendo a tendência, por assim dizer natural, do egoísmo do homem, de seu desejo
de ser. A este respeito, como já foi dito, Ricoeur ressalta “a enormidade do paradoxo que
consiste em fazer dizer pela maldade o grau de extrema passividade da condição ética.”
(OUT 40), e se choca com a linguagem terrorista usada por Lévinas para fazer falar o bem
e a ética, e pergunta se “a ética desconectada da ontologia é sem linguagem direta, própria
e apropriada?” (OUT41). Se, para Lévinas, a bondade não é voluntária - “Ninguém é bom

178
François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit., p.752.
179
Paul Ricoeur, em entrevista a Joël Roman e Étienne Tassin, Autrement, no 102, À quoi pensent les
philosophes?, novembre 1988, p. 181. Citado por François Dosse. Paul Ricoeur. Les sens d´une vie, op.cit.,
p.752
180
Citado como epígrafe in: Olivier Mongin. Paul Ricoeur, op.cit., p. 194
223

voluntariamente” (AE25) – a ética de Ricoeur, em contrapartida, é marcada pelo desejo do


bem, de uma vida boa compartilhada. Enquanto o ponto de partida de Ricoeur é a
“espontaneidade benevolente” (SA222), para Lévinas, a ética é precisamente o colocar em
questão a espontaneidade do eu, que é egoísta: “Chama-se ética a esta impugnação de
minha espontaneidade pela presença de Outrem” (TI30).
Por isso, diz Ricoeur “O vocabulário da assignação, da injunção, é talvez já muito
‘moral’ e, posto isto, com justa razão, atormentado pela Guerra e pelo Mal” (SA222)
Ricoeur nota que “a palavra Guerra é pronunciada desde a primeira página de Totalité et
Infini” (SA222, nota 1). Longe estamos da idéia, cara a Ricoeur, de uma ética anterior à
moral – em Lévinas não há sequer uma diferença entre as duas: enquanto a Ricoeur,
importa “dar à solicitude um estatuto mais fundamental que a obediência ao dever”
(SA222), com Lévinas, “Já se está na ordem do imperativo, da norma” (SA222), do
mandamento “Não matarás”: a ética se refere a um imperativo, embora não se trate do
imperativo kantiano, mas de uma Lei, ou mandamento bíblico, a partir do qual é possível
instaurar a ética e o Bem. Se para Ricoeur, é a ética que chama a Lei – no duplo sentido de
imperativo categórico e de regras coercitivas - para Lévinas, é a Lei, no sentido bíblico, que
instaura a ética.
Para Lévinas, a ética é desejo do Bem, e não desejo da vida boa. Enquanto
Ricoeur se inspira em Aristóteles, Lévinas recorre a Platão. A ética também é desejo, mas
desejo do outro, que não se pode alcançar, assim se confundindo com a metafísica, e
contendo em seu bojo a idéia platônica de bem, que como se viu não se confunde com o
modo aristotélico do viver bem. A concepção de Lévinas “está nas antípodas da idéia grega
da ética como busca de uma morada (séjour) comum e/ou como formulação de regras para
viver bem ou viver de acordo com o bem”181, mas retoma a idéia, a seu modo, do Bem para
além do ser. “Encontramos assim, à nossa maneira, a idéia platônica do Bem para além do
Ser” (TI273).
O segundo componente da pequena ética de Ricoeur, “com e para o outro” parece, à
primeira vista, ser aquele em que nossos autores poderiam se alinhar, pois é nele que se dá
a ver a importância fundamental da categoria da alteridade. No entanto, algumas
observações são necessárias. Em primeiro lugar, faz problema a preposição “com”:

181
Rodolphe Calin e François-David Sebbah. Le Vocabulaire de Lévinas, op.cit., p. 24
224

Ricoeur não se demora na análise desta, mas a retira provavelmente da noção grega do
viver junto (suzèn), do compartilhar, da convivência. Este “com” que Ricoeur acopla ao
“para os outros”, é inaceitável do ponto de vista de Lévinas: não poucas vezes, ele critica a
idéia da convivência, especialmente sob sua modalidade heideggeriana: diz ele, já em De
l´Existence à l´Existant: não se trata de estar com o outro, mas face ao outro.

“O Miteinandersein heideggeriano permanece também a coletividade do com


(...) A essa coletividade de camaradas, opomos a coletividade de eu-tu que a
precede.(...) Ela não é (...) uma comunhão. Ela é o face a face temível de uma
relação sem intermediário, sem mediação” (EE 113)

A relação com o outro não somente não é comunhão, como tampouco é recíproca
ou simétrica, tema já exaustivamente discutido anteriormente, uma vez que é, por assim
dizer, o ‘pomo da discórdia’ entre os dois filósofos. ‘Pomo da discórdia’ que volta, aqui,
nos diferentes significados atribuídos à expressão “para os outros”. Nela Ricoeur vê a
responsabilidade, ancorada na promessa, portanto na iniciativa de um sujeito autônomo e
livre para prometer, enquanto o “para” de Lévinas implica o “sem limites da exposição ao
outro” 182.
O que remete a uma diferença digna de ser mencionada: enquanto Ricoeur, em sua
definição de ética não usa explicitamente a palavra responsabilidade, o discurso de Lévinas
sobre ética se caracteriza por uma repetição constante do termo: para um, a
responsabilidade é um dos componentes da ética, enquanto, para outro, a ética é a própria
responsabilidade.
Pode-se agora examinar o terceiro componente: “em instituições justas”. Lembremos a
dupla preocupação de Ricoeur em relação a esta dimensão ética: por um lado, ampliar o
sentido de instituição e de justiça, de modo a poder concebê-los fora da esfera do nomos e,
por outro – o que nos interessa neste momento da discussão – considerar não somente o
outro do face a face, da relação interpessoal, o próximo, mas o outro o distante, o terceiro
incluído. A ética para Ricoeur não diz apenas respeito ao que Lévinas denomina
misericórdia ou caridade (relação dual), mas também à justiça, tomada em seu sentido
amplo.

182
Jacques Rolland. “Un chemin de pensée”, op.cit., p.46.
225

Lévinas, como se viu, não se ocupa, num primeiro momento, do distante ou do


terceiro, isto é, da justiça. O tema da justiça aparece somente em Autrement qu´être,
chamando, como diz Jacques Rolland, uma “correção de trajetória”183 : é precisamente esta
questão que Ricoeur privilegia em seu pequeno opúsculo Outramente. Leitura de
Autrement qu´être ou Au-delà de l´Essence de Emmanuel Lévinas.
Georges Hansel se surpreende com o contra-senso que leva Ricoeur a situar “o foco
de sua reflexão numa filosofia da linguagem”184. Em sua atenta leitura de Autrement
qu´être, Ricoeur ressalta: “O desafio maior que este livro apresenta consiste no fato de ligar
o destino da relação a ser estabelecida entre a ética da responsabilidade e a ontologia ao
destino da linguagem de uma e de outra: o Dizer do lado da ética, o dito do lado da
ontologia.” A Georges Hansel, poderia se responder que a distinção entre dizer e dito não
diz respeito ‘apenas’ – se é que esta expressão possa ser legítima - a uma filosofia da
linguagem, mas constitui o próprio cerne da filosofia de Lévinas.
Mas compreende-se, de certo modo, que Ricoeur tenha centrado sua atenção na
distinção entre dizer e dito, ou, dito de outro modo, na oposição entre ética e ontologia,
uma vez que, como se viu, não somente ele próprio não assume tal oposição, como também
considera que a ética, desligada da ontologia, tem dificuldade em assumir uma linguagem
própria. Para Ricoeur, o “terrorismo verbal” (OUT42) ou a “tropologia revulsiva” (OUT42)
constitui uma “confissão de que a ética desconectada da ontologia é sem linguagem direta,
própria e apropriada” (OUT41).
Já se mencionou a importância, para Ricoeur, da linguagem intersubjetiva, lugar do
dito: é a partir desta que a reciprocidade das relações pode ser pensada. A maior
dificuldade de Ricoeur parece encontrar-se precisamente no âmbito do dizer levinasiano: é
pelo dizer, que a linguagem de Lévinas se faz hiperbólica ou exasperante. Mas, com o tema
do terceiro e da justiça, o dizer é, de certo modo, compelido, obrigado, a voltar ao dito:
Ricoeur encontra uma brecha no pensamento de Lévinas, que explora de modo senão
astuto, ao menos interessante.

183
Arrisco aqui uma pergunta que, no entanto, deverá permanecer pergunta, uma vez que não encontrei
nenhuma evidência que me permita confirmá-la. Apesar disso, não resisto à tentação de formulá-la: poder-
se-ia colocar esta preocupação tardia de Lévinas com a justiça, na conta de seu diálogo com Ricoeur?...
184
George Hansel. “Éthique et politique dans la pensée d´Emmanuel Levinas.” In: Levinas à Jérusalém.
Klincksieck, 2007, p. 189, note 43.
226

Não se pode, diz Ricoeur, - e o próprio Lévinas o percebeu - ficar apenas no âmbito
do dizer e da ética da responsabilidade, é preciso a justiça que se faz num dito, na simetria
da igualdade, e não mais na dissimetria do face a face: “A dissimetria que me mantém
desigual em relação ao outro reencontrará a lei, a autonomia, a igualdade” (AE202, citado
em OUT45/46). A relação efetiva não é apenas dual, mas inclui o terceiro, e, nesta
inclusão, é preciso a justiça, por isso o retorno ao dito é necessário. “O Dizer fixa-se em
dito – precisamente se escreve, faz-se livro, direito e ciência” (AE247 citado em OUT48).
Lévinas não pode ignorar a reflexão, a consciência, o conhecimento. Citemos novamente
este trecho essencial:

“Se a proximidade me ordenasse apenas e tão somente a outrem ‘não haveria


problema’ - em nenhum sentido, mesmo o mais geral do termo. A questão não
teria nascido, nem a consciência, nem a consciência de si. A responsabilidade
pelo outro é uma imediatidade anterior à questão: precisamente proximidade.
Ela é perturbada e se faz problema com a entrada do terceiro”(AE 245)185

A presença do terceiro é “nascimento do pensamento, da consciência, da justiça e da


filosofia” (AE204 citado em OUT46). Lévinas se pergunta: “Porque saber? Porque
problema? Porque filosofia?” (AE244 citado em OUT49). De acordo com Ricoeur, Lévinas
não responde, mas “dá um brusco passo para trás” (OUT49): “É preciso pois seguir, na
significação ou na proximidade – ou no dizer, o nascimento latente do conhecimento e da
essência, do dito; o nascimento da questão na responsabilidade” (AE244 citado em
OUT49). Mas porque Ricoeur fala em “passo para trás”? Lévinas quer justamente mostrar
que se a proximidade não pode ser pensada sem a justiça, é preciso que a justiça, para ser
justa, tenha feito a experiência da proximidade; não me parece que Lévinas retroceda ou
desloque a questão, mas que ele a situa no próprio contexto no qual deve ser pensada: a
justiça justa não pode ser pensada fora da proximidade, da responsabilidade, da caridade.
Estaria esta concepção tão afastada assim das colocações de Ricoeur acerca das
relações entre amor (no sentido de agapè) e justiça? Em Amour et Justice186, ele contrapõe
os dois termos: enquanto a agapè ignora a comparação e o cálculo, a justiça não pode

185
“Si la proximité ne m´ordonnait qu´autrui tout seul, ‘il n´y aurait pas eu de problème’ – dans aucun sens,
même le plus général, du terme. La question ne serait pas née, ni la conscience, ni la conscience de soi. La
responsabilité pour l´autre set une immédiateté antérieure à la question: précisément proximité. Elle est
troublée et se fait problème dès l´entrée du tiers.”
186
Paul Ricoeur. Amour et justice. Paris: PUF, 1997
227

deixar de se inscrever na lógica da retribuição e da equivalência. Dois modos de funcionar


opostos, mas quando postos em relação, um pode, por assim dizer, corrigir o outro:

“O amor, digo eu naquela conferência, é o guardião da justiça, na medida em


que a justiça, a despeito de sua grandeza enquanto posta sob a égide da
reciprocidade e da equivalência, é sempre ameaçada de recair, a despeito dela
mesma, no nível do cálculo interessado, do Do ut des (‘Dou para que des’). O
amor protege a justiça contra essa má inclinação ao proclamar: ‘Dou porque já
me destes’. É assim que vejo a relação entre caridade e justiça como a forma
prática da relação entre o teológico e o filosófico” (L3 173, nota 4)

Mas, para Ricoeur, o modo pelo qual Lévinas põe em relação justiça e caridade
resulta em duas leituras incompatíveis:

“De minha parte, não consigo decidir entre duas leituras: por um lado, a
proposição de um salto do próximo ao distante, do rosto que não aparece à
justiça que dá ‘visibilidade’ (AE245) aos rostos... Por outro, a evocação de um
‘nascimento latente’, mas ‘nascimento latente do saber na proximidade’
(AE245). Tal nascimento latente não seria suspeito de ‘sub-repção’, à luz do
discurso afirmado acima?” (OUT49/50)

Assim, é preciso um saber, mas este saber nasce da proximidade. Ricoeur se


pergunta se tal saber, nascido da proximidade, não a englobaria: ou bem o Dizer, ou bem o
Dito, parece dizer Ricoeur. Questão que, claro, não escapou a Lévinas. E que pode ser
abordada em várias frentes.
Seja invocando o desdizer: “O outramente que ser enuncia-se em um dizer que
deve também se desdizer para arrancar assim o outramente que ser ao dito em que o
outramente que ser põe-se já a significar apenas um ser outramente.” (AE19)
Seja, junto com Jacques Rolland, se referindo a um certo ritmo ternário: caridade-
justiça-caridade: tratando assim de uma justiça que passou pela caridade, ou, se quisermos,
pela responsabilidade. De um dito de segundo grau, por assim dizer, um dito que passou
pelo dizer, um dito contaminado pelo dizer, um dito não indiferente ao dizer, dito portanto
que já não pode englobar o dizer, nem reduzir o dizer.
Seja, com Lévinas, definindo a filosofia como redução da traição (Cf. AE252) ou
como “consciência da ruptura da consciência” (AE256): discurso no qual as interrupções se
mantêm precisamente enquanto interrupções; como os nós de um fio, que não se desfazem,
discurso interrompido – esta seria a filosofia.
228

Ricoeur conclui sua análise com um terceiro e último sub item, colocado sob forma
interrogativa: “Repetição da ontologia?” (OUT50), interrogação logo em seguida resolvida:
“Sim, há em Lévinas uma quase ontologia, que pode ser caracterizada como pós-ética”
(OUT51).
Assim, em sua cuidadosa análise de Autrement qu´être, Ricoeur se pergunta como
coadunar a virulência do discurso ético com esta mesma ética contaminada pelo terceiro e
pela justiça. Já que, com a entrada do terceiro, os limites entre o dizer, do lado da ética, e o
dito, do lado da ontologia, se misturam. Já não há mais apenas dito e dizer, mas dito-dizer-
retorno ao dito. É isto que, me parece, permite a Ricoeur afirmar que há um retorno da
ontologia, ou uma quase ontologia pós-ética em Lévinas. Mas, convenhamos, uma
ontologia in-formada pela ética já não é mais uma ontologia propriamente dita: não se trata
de um retorno do dito ou da ontologia enquanto tal, mas de uma ontologia já impregnada de
ética, dito já atravessado pelo dizer. Por isso, este retorno do dito ou “revanche do nome”
(OUT36), não é propriamente um retorno do recalcado, que voltaria com mais força,
precisamente por ter sido recalcado, mas, ao contrário, um dito ou um nome que retorna,
mais livre de uma certa fixidez do ser, ser que se diz a partir do para além do ser, dito cuja
coerência é quebrada pelo enigma do dizer, que é “apenas uma palavra. Mas é Deus”
(EDE330).

IV. A Transcendência

Como se mencionou repetidamente, tanto Ricoeur quanto Lévinas são animados


pelo mesmo interesse em relação aos textos bíblicos: a obra de ambos inclui inúmeros
textos voltados a uma leitura da Bíblia ou do Talmud. Menciono, aqui, apenas o livro de
Ricoeur e André LaCocque: Penser la Bible187, e as Leituras Talmúdicas de Lévinas188.
Certamente, não terá escapado ao leitor que em nenhum momento deste trabalho me ocupei
destes escritos, que relevam mais da hermenêutica bíblica: não por acaso, mas sim por

187
Paul Ricoeur e André LaCocque. Penser la Bible. Paris: Seuil, 1998
188
Todas elas publicadas por Editions de Minuit. Em 1968: Quatre Lectures Tamudiques. Em 1977: Du Sacré
au Saint. Cinq Nouvelles Lectures Talmudiques. Em 1982: L´Au-Delà du Verset. Lectures et Discours
Talmudiques. E, finalmente, em 1996: Nouvelles Lectures Talmudiques. (Ignoro se existem outros escritos
sobre as Leituras Talmúdicas)
229

decisão de centrar minha atenção na questão filosófica da relação do sujeito com a


alteridade.
Essa decisão, no entanto, não impediu que eu estivesse freqüentemente diante de
questões que dizem mais respeito à religião e à teologia do que a filosofia propriamente
dita. Além do fato de se encontrarem muitas citações bíblicas nos textos de ambos os
filósofos - com maior freqüência em Lévinas do que em Ricoeur -, não poucas vezes, em
entrevistas, ou mesmo nos próprios textos filosóficos, tais questões ocupam um lugar
considerável. É bem verdade que ambos rejeitam o rótulo de “pensador cristão”, ou
“pensador judeu”, tendo o cuidado de separar suas convicções religiosas e suas proposições
filosóficas: Ricoeur, como se viu, de modo mais claro e incisivo, enquanto, em Lévinas, se
revela uma certa ambigüidade.
Mais importante do que isso, entretanto, é o fato de que a própria temática da
relação do sujeito com a alteridade pede, ou mesmo exige, que se pense também a questão
da transcendência. Efetivamente, não se trata de uma questão marginal, ao menos para
Lévinas: ela está no coração de sua concepção de subjetividade e alteridade. Citemos
novamente: “O problema da transcendência e de Deus e o problema da subjetividade
irredutível à essência - irredutível à imanência essencial – andam juntos” (AE33)
Se o mesmo não pode ser dito de Ricoeur, uma vez que a hermenêutica do si se
sustenta sem ter que recorrer à transcendência, também não se pode negar que a presença
da transcendência ronda, por assim dizer, suas reflexões. Entretanto, e Ricoeur é bastante
claro a esse respeito: em sua filosofia, “a nominação efetiva de Deus está ausente” (SA36);
lembremos que Soi-même Comme Un Autre termina no preciso momento em a palavra
Deus vem se misturar aos assuntos filosóficos.
Assim, se pra ambos, Deus é uma questão que merece atenção, resta ainda saber que
lugar Ele ocupa em suas respectivas filosofias. O exposto até agora sugere que, onde cessa
o discurso filosófico de Ricoeur, o de Lévinas se inicia... Mas, talvez esta afirmação seja
enfática demais: o que parece certo, entretanto, é que o modo como cada um dos autores
trata a questão da transcendência é decisivo no que diz respeito às diferenças entre ambos,
notadamente no que se refere às suas concepções de sujeito.
Eis porque uma vaga inquietação inicial transformou-se, no decorrer do trabalho,
quase em exigência. O leitor talvez se recorde da referida inquietação inicial, cuja origem
230

justificava-se então pelas reiteradas incursões de ambos no campo teológico ou religioso, e


que tinha sido traduzida por uma pergunta (colocada na introdução), a saber: como pensam
estes autores as noções de Deus e transcendência e de que modo elas se fazem presentes em
seus escritos sobre a construção do sujeito ético? Indagação que, por sua vez, conduziria a
outra: em que medida suas concepções de sujeito poderiam encontrar suas raízes nas
tradições religiosas abraçadas por eles?
Inquietação ou exigência, eis nos agora diante das mesmas questões, ou dito de
outro modo, diante da problemática da transcendência em sua articulação com o tema da
relação entre o sujeito e o outro. Conforme foi indicado na introdução, o tratamento desta
complexa questão fronteiriça exige que se evite dois riscos: o primeiro é o de se lançar em
explicações reducionistas, nas quais a filosofia possa ser explicada a partir da teologia e/ou
da religião; o segundo é o da pretensão ou, dito de outro modo, o de se deixar levar por um
certo entusiasmo ambicioso, que pretenda dar conta da totalidade do problema. O que,
desde já, trairia a própria démarche de Ricoeur. O desejo confesso, aqui, é o de tentar
escapar de ambas as armadilhas: a do reducionismo e a da pretensão, indicando algumas
pistas, isto é, fazendo observações pontuais, sujeitas à retificação, incipientes reflexões ou
sugestões, acerca das possíveis afinidades entre filosofia, teologia e religião nas concepções
de sujeito em Ricoeur e Lévinas. O ‘tamanho’ da questão, por si só, indica que nesse
terreno, todo cuidado é pouco...

1. Presença e ausência do nome de Deus: filosofias sem absoluto?

Comecemos por manifestar uma surpresa: enquanto o nome de Deus não figura na
obra filosófica de Ricoeur, Lévinas, dele, não faz economia. Paradoxo: o judeu,
supostamente proibido de pronunciar o nome de Deus, não tem receio de fazê-lo, enquanto
o cristão, que não é alvo desta interdição, se recusa a misturar O nome com questões
filosóficas... Tal paradoxo já demonstra que a tarefa aqui proposta não será simples. Mas,
mesmo assim, vale o risco...
231

O fato de que Deus esteja nominalmente ausente da obra de Ricoeur enquanto está
presente na de Lévinas, nos autorizaria a dizer que, enquanto a filosofia de Ricoeur é uma
“filosofia sem absoluto”189, o mesmo não poderia ser dito de Lévinas?
No caso de Ricoeur, a resposta parece mais segura: ao menos no que se refere a sua
concepção de sujeito e de alteridade, não se encontra nenhum indício de que a alteridade
necessite de uma transcendência. A filosofia basta-se a si mesma e diante da palavra Deus,
cessa o discurso filosófico. Mas não é de pouca importância o fato de que o nome de Deus
seja efetivamente pronunciado, ainda que para ser rechaçado ou expulso do discurso
filosófico. Como se Ricoeur não pudesse evitar sua inclusão...
Esta paradoxal inclusão-exclusão sugere que, mesmo expulso do discurso filosófico,
Deus teima em voltar. Retorno do recalcado? Ou talvez, de modo menos simplista e mais
elegante, um certo modo de conceber a própria noção de Deus? O mesmo Deus invocado
pelo filósofo e amigo de Ricoeur, Pierre Thévenaz, para quem “não há mais Deus
filosófico, nem teologia filosófica, mas há uma filosofia diante de Deus que, pouco a
pouco, porque ela é uma questão para si mesma, descobre melhor que não é mais que
humana” (L3 150). Deus é reenviado aos assuntos humanos, e, no mesmo gesto, a filosofia
renuncia ao divino – embora ela esteja diante de Deus. Novo – ou mesmo? – paradoxo: é o
próprio protestantismo que pede uma filosofia sem absoluto. Diz o próprio Ricoeur: “minha
preocupação, jamais atenuada, em não misturar os gêneros me aproximou da concepção de
uma filosofia sem absoluto, que eu via ser defendida pelo meu saudoso amigo Pierre
Thévenaz, que a considerava uma expressão típica de uma filosofia protestante” (RF26).
O que, agora, dizer de Lévinas? Sugeriu-se, timidamente, a certo momento do
trabalho, que tal modo de conceber Deus não se encontra tão distante assim da própria
concepção de Lévinas190. Citou-se, na ocasião o que Ricoeur disse de Pierre Thévenaz: “A
uma filosofia divina ele oporá constantemente uma filosofia responsável diante de Deus,
uma filosofia em que Deus não é mais o objeto supremo da filosofia, mas onde ele está
189
Como me apontou, com propriedade, Ilana Viana do Amaral, dizer: “uma filosofia sem absoluto” não
equivale a dizer: “uma filosofia sem Deus”. O que parece ser confirmado pelo verbete ‘absoluto’,
encontrado em: Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, no qual o
termo é definido a partir de sua origem latina, absolutus, que designa uma qualidade: a de ser “desligado
de, destacado de, isto é, livre de toda relação independente”, quer dizer, não relativo a nenhuma coisa além
de si próprio, ou seja, em si e por si mesmo. Definição que permite a inclusão de inúmeras figuras, como o
atesta a história da filosofia (Eu, Matéria, Vida, Deus....). Permito-me aqui um sobrevôo, no qual identifica-
se Absoluto e Deus.
190
Ver a nota 147 do capítulo I deste trabalho.
232

implicado a título de pólo de chamado e de resposta do próprio ato filosófico.” (L3 148).
Guardadas as devidas proporções, seria demais, ao acentuar a palavra responsabilidade,
aproximar os protestantes, Thévenaz e Ricoeur, do judeu Lévinas? Se este não exclui a
palavra Deus de seu discurso filosófico – na contramão da proibição judaica - resta que ela
só adquire seu significado em termos exclusivamente humanos, quer dizer, da
responsabilidade do sujeito para e por outrem.
Poder-se-ia, então, aplicar o mesmo atributo à filosofia de Lévinas, e considerá-la
“uma filosofia sem absoluto”? Consciente do inusitado de tal perspectiva, eu responderia
que não e que sim, ao mesmo tempo. Não, porque sem a transcendência sua concepção de
alteridade não se sustenta, como já o tinha notado Derrida: “Tornado independente de seu
‘contexto teológico’ (expressão que Lévinas recusaria sem dúvida) todo este discurso não
desmoronaria”?191. Sim, pois o Absoluto é ele próprio dessencializado, não é contaminado
pelo ser, é uma ausência que se diz num enigma, é rastro, não de uma presença, mas de
uma ausência. Como se viu, Lévinas insiste nisso, Deus reenvia ao homem: o Absoluto
torna-se o outro homem. Estranho absoluto humano!
Não soaria também estranho, a partir destas reflexões, considerar que um certo tipo
de protestantismo e um certo tipo de judaísmo possam se entrecruzar, resultando em uma
filosofia na qual o nome de Deus, ausente ou presente, direta ou indiretamente invocado,
reenvia a uma palavra relativa apenas ao mundo dos homens: ‘responsabilidade’?

2. A voz de Deus: sujeito convocado e sujeito precedido

A palavra ‘responsabilidade’ revela a perspectiva ética que une os dois pensadores


quando se trata de religião192. O Deus de Ricoeur e Lévinas seria um Deus indissociável da
dimensão ética. De acordo com Louis Fèvre, Claude Greffé encontra tanto em Ricoeur

191
Jacques Derrida L´Écriture et la Différence, op.cit., p. 152. Notar a forma negativa e interrogativa da
questão: não sugeriria ambigüidade?
192
Cf. Louis Fèvre. Penser avec Levinas, op. cit., p. 105. E, do mesmo autor. Penser avec Ricoeur, op.cit.,
p.114: “As perspectivas religiosas de Ricoeur assim como de Lévinas, são ordenadas pela ética.”
233

quanto em Lévinas, um Deus pensado em termos de alteridade, e não de presença e


imanência.193
Alteridade que interpela, Deus é voz que, das alturas, chama ou exige. Já se
mencionou a presença em ambos, da dupla metáfora, a da Voz e a da Altura, quando se
trata de falar em transcendência. Metáforas que talvez Lévinas use com mais aisance ou
desembaraço: a voz vem das alturas do Monte Sinaï, e diz “não matarás”, mandamento
bíblico que exige obediência. A ser notado, mais uma vez, que Lévinas não reserva o uso
da metáfora da Altura apenas para significar a relação de Deus com o homem: na própria
relação intersubjetiva, há uma elevação, uma altura do rosto de outrem, uma “verticalidade
do rosto” (EI77). Lembremos a feliz fórmula de Blanchot: “Outrem deve ser sempre
considerado por mim como mais próximo de Deus do que eu” 194.
Ricoeur talvez não duvide disso, mas, como é de seu estilo, busca nuançar o
enfático da declaração. A nuance atinge tanto o ilimitado da Altura, quanto a obediência
inelutável a um mandamento. Nuance em relação à Altura: em primeiro lugar, se Deus é
uma voz que vem de fora e das alturas, esta voz se interioriza na consciência (Gewissen);
em segundo lugar, a relação intersubjetiva não é pensada em termos de Altura, mas de
reciprocidade, calcada, como se viu, no funcionamento da linguagem.
Em contrapartida, esta linguagem a que Ricoeur se refere, do ponto de vista de
Lévinas, é linguagem do dito. Ao dito, ele contrapõe o Dizer, frase sem palavras. Já, apenas
com sua exposição, o rosto me diz algo, mesmo sem dizer: ele me interpela e me convoca,
e o Eu se constitui propriamente como sujeito ao responder ao apelo do Tu. Este é o
primeiro Dizer, que ultrapassa o dito. Nas últimas linhas de En Découvrant l´Existence:
“Este primeiro dizer não passa certamente de uma palavra. Mas é Deus.” No Rosto do
outro, apenas uma ordem: o rosto me diz o mandamento de Deus: “não matarás”. No rosto
do outro, segundo o belo título do livro de Catherine Chalier: La Trace de l´Infini.195
Outra nuance, essencial, no que se refere à obediência: para Ricoeur, se a voz
interpela, ela não é mandamento que exige obediência absoluta, mas chamado. Citemos
novamente: “A resposta religiosa é obediente, no sentido forte de uma escuta na qual é

193
Cf. Claude Greffé. Esquisse d´une théologie de la Révélation. La Révélation dans P. Ricoeur, E. Levinas et
al., Faculté Universitaire Saint-Louis, 1977, p. 171-205. Citado por Louis Fèvre. Penser avec Levinas, op.
cit., p.104.
194
Maurice Blanchot. L´Entretien Infini, op. cit., p.82
195
Catherine Chalier. La Trace de l´Infini. Emmanuel Lévinas et la source hébraïque. Paris: Cerf, 2002.
234

reconhecida, admitida, confessada a superioridade, entendamos, a posição de Altura do


chamado” (L3 167). A obediência é escuta e reconhecimento da Altura: certamente não é
este o sentido estrito e restrito que lhe confere Lévinas196, sentido que Ricoeur busca
ampliar. Se para Ricoeur, basta ser ouvinte, isto é, supor que “esta fala [da tradição
religiosa] é dotada de sentido” (L3 181), o ouvinte de Lévinas que, a rigor, nem sequer é
ouvinte, mas eleito, não pede nenhuma suposição, mas apenas exige obediência; não se
trata de receptividade, nem de disponibilidade, mas de ser eleito como único que pode
responder ao apelo, e esta resposta se dá na mais absoluta passividade: o sujeito é intimado
ou convocado.
Vê-se aqui novamente surgir o que foi denominado o ‘pomo da discórdia’ entre
Ricoeur e Lévinas: receptividade ou passividade? Assim como o outro homem nos
interpela, e a ele respondemos, Deus, este Absolutamente Outro também nos interpela. A
noção de Deus e de transcendência é pensada, por Ricoeur, mais como uma resposta a um
apelo197, como disponibilidade, como atenção: receber algo que vem desde fora, desde mais
alto e mais longe, e este receber não é de modo algum uma atitude passiva. Eis porque
dizer ‘convocação’ para Ricoeur, é ir longe demais. No entanto, ele admite tal
terminologia, quando se trata da dimensão religiosa, isto é, no contexto bíblico. Citemos
novamente: “É (...) em meus exercícios de exegese bíblica que se deve buscar uma reflexão
sobre o estatuto de um sujeito convocado e chamado ao despojamento de si.” (RF26)
Sujeito convocado, mas também – o que não é de menor importância - sujeito
precedido. Vale lembrar, a esse respeito, a definição de Ricoeur do religioso: “digo
religioso pois aí se encontra uma antecedência, uma exterioridade e uma superioridade –
estas três noções sendo constitutivas do modo pelo qual sou precedido no mundo do
sentido” (CC230).
A noção de anterioridade é central em Ricoeur. Pode-se encontrá-la no modo como
Ricoeur entende a consciência moral ou Gewissen: voz dos ancestrais (antepassados) ou de
Deus. Como também na relação, já examinada, que Ricoeur estabelece entre linguagem e

196
Sentido estrito e restrito, ou seja, aquele se pode encontrar em dicionários. Evoquemos o Dicionário
Aurélio: “submissão à vontade de alguém, docilidade, sujeição, dependência.”
197
Já se mencionou a interessante distinção estabelecida por Ricoeur entre a resposta a uma questão
epistemológica e a resposta a um apelo, na ordem do religioso. Cf. Leituras 3, p. 167.
235

religião: ambas indicam que o sujeito é por elas precedido, e tal precedência impõe limites
a sua ilusória soberania.
Não se pode pensar em um sujeito precedido em Lévinas: falar em precedência
implica em sincronia do tempo: o sujeito nasce, é, por assim dizer, criado pela eleição do
outro, num tempo descronologizado: tempo do dizer, do pré-original e do an-árquico. A
convocação ou eleição, termo bíblico no qual Lévinas se inspira para falar da unicidade do
sujeito responsável (eu sou o único que pode responder ao apelo do outro), impede que se
possa pensar não somente em receptividade, como também em precedência. Lembremos a
correlação estabelecida por Jacques Rolland entre eleição e criação: “Passividade da
eleição que só se iguala àquela da criação na qual eu sou criado sem mesmo poder, pelo
fato da diacronia que nela se inscreve, assistir ao ato pelo qual sou criado.”198
Ricoeur certamente objetaria que a precedência a que alude, de modo nenhum, pode
ser assimilada a uma precedência cronológica. “A própria noção de origem (...) deve ser
dissociada de um começo que poderíamos tentar datar (...) Trata-se, portanto, de um
anterior que é mais da ordem do fundamental que do cronológico” (CC201). O que, de
resto, já está claro na própria definição do religioso, uma vez que tanto a antecedência,
quanto a exterioridade e a superioridade são constitutivas da referida precedência. É nesse
sentido que “a palavra do homem [é] precedida pela ‘Palavra de Deus’” (RF14). Este
sentido de precedência, livre de cronologia, e indicando a prioridade de Deus ou de outrem
em relação ao sujeito, também se encontra em Lévinas: “É um ‘Primeiro o senhor!’ original
que eu procuro descrever” (EI81). A precedência em Lévinas significaria: priorizar
absolutamente outrem.
Nesse sentido, pode-se dizer que ambos pensam o sujeito como precedido e
convocado. Mas se Ricoeur pensa tal precedência tanto no registro ‘meramente’ humano (a
linguagem) quanto no religioso (Deus), ele se permite falar em convocação apenas no
contexto deste último. Distinção entre dois mundos, ou dois reinos, de inspiração
protestante: com ela, não pode concordar Lévinas, uma vez que a transcendência não diz
respeito apenas a relação do homem com Deus, mas se faz presente na própria relação do
homem com outrem.

198
Jacques Rolland. “Un Chemin de Pensée”. In: Rue Descartes, op. cit., p.46
236

Dito de outro modo, responder ao apelo de Deus não significa reverenciá-Lo, mas
amar e reverenciar o outro homem. Deus reenvia ao homem. Aqui, pode-se pensar na
Estrela da Redenção de Rosenzweig. A Estrela é assim construída: as três pontas
correspondem a Deus, Homem e Mundo, a Criação se refere à relação de Deus com o
Mundo, a Revelação diz respeito à relação de Deus com o Homem, mas a Redenção é
questão exclusiva do Homem com o Mundo. O Redentor não é Deus, mas o Homem. É no
Homem que se encontra Deus.

3. Cristianismo e Judaísmo: Graça, Fé e Lei

Mas não se trata do Deus-homem ou da encarnação de Deus, como querem alguns


que criticam Lévinas por ter cristianizado o judaísmo. Para estes, termos tais como refém,
sacrifício, expiação, amor ao próximo, estão mais próximos de uma concepção cristã. Ao
ser perguntado por Saint-Cheron se o termo santidade não seria cristão, Lévinas responde:

“Você sabe que na língua hebraica, a palavra kadosh se aplica a Deus, que é
kadosh, santo, mas ele também se aplica aos homens, os kadoshim, os santos. É
uma antiga tradição que remonta à época do Talmud. A menos que se suponha
que não há caridade, que só há justiça no judaísmo. A fórmula litúrgica h´essed
shel émet, o amor da verdade, é a caridade.” 199

A caridade ou santidade, termo que Lévinas preferirá para dizer: ética200, supõe o
des-inter-esse absoluto na relação a outrem e a gratuidade total. É neste aspecto, diz
Lévinas na mesma entrevista, que Ricoeur se separa dele:

“Sempre pensei que há, na relação a outrem, um elemento de gratuidade total, de


desinteressamento absoluto, e contesto a reciprocidade mesma deste bem que se
manifesta nesta relação. Paul Ricoeur que, em muitos pontos, me segue, pensa no
entanto que esta supressão da reciprocidade é uma falta, que há uma

199
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas.1992-1994, op.cit., p.33: “Vous savez bien
que dans la langue hébraïque le mot kadosh s´applique à Dieu, qui est kadosh, saint, mais il s´applique
également aux hommes, les kedoshim, les saints. C´est une ancienne traditon qui remonte à l´époque du
Talmud. À moins que l´on ne suppose qu´il n´y a pas de charité, qu´il n´y a que la justice dans le judaïsme.
La formule liturgique h´essed shel émet, l´amour de la vérité, c´est la charité.”
200
Cf. Georges Hansel. “Éthique et politique dans la pensée d´Emmanuel Levinas.” In: Levinas à Jérusalém,
op.cit., p.188, note 12. Diz Hansel que, após Autrement qu´être, “Lévinas declarou que ao termo ‘ética’, ele
preferiria, doravante, dizer ‘santidade’”. Alexandre Leone já tinha me chamado a atenção para tal mudança
terminológica, ao comentar o livro de Michael de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas.1992-
1994, op.cit.
237

espécie de injustiça em relação a si próprio nesta concepção. Compreendo bem


seus motivos, mas pensei justamente que o que está na base de uma relação pura,
da generosidade com relação a outrem, é uma relação que se pode denominar
relação de santidade. Como se a santidade fosse a dignidade suprema do ato da
relação a outrem, o que chamamos amor ou respeito ao próximo. Tal é a crítica
de Ricoeur: por que se privar? Porque, nesta relação, não haveria uma satisfação
última, algo além de um puro e simples dispêndio?”201.

Não haveria, nesta leitura que faz Lévinas da crítica a ele endereçada por Ricoeur,
uma espécie de injustiça? Pois, se é verdade que Ricoeur insiste na reciprocidade da relação
intersubjetiva, não é para fazer com que o si deixe de se privar de algo. E aqui, pode-se
invocar duas nuances essenciais para a compreensão do termo “reciprocidade” tal como o
entende Ricoeur: em primeiro lugar, é sempre bom lembrar, como o fez Gaëlle Fiasse, que
a generosidade e gratuidade totais também podem encerrar em si um certo orgulho
narcisista: a satisfação de ser um doador freqüentemente coloca o recebedor na posição
inferior de devedor202. Certamente, é difícil doar, mas não é menos difícil receber.... Em
segundo lugar, a mesma autora aponta a “ambigüidade do termo ‘recíproco’”203, termo que
pode ser entendido em duas direções, que não se confundem: o fato de duas pessoas se
reconhecerem mutuamente como sujeitos que dizem ‘eu’, não equivale a uma
reciprocidade da ação, na qual o lema seria uma espécie de ‘toma lá, dá cá’. Em Ricoeur,
deve ser retido o primeiro sentido, mas não o segundo: “Ricoeur se opõe ao dar em vista do
receber. Eu não ajo para que o outro me dê. A primazia de uma benevolência
desinteressada guia a leitura ricoeuriana.”204

201
Idem, p.29/30: “(...) j´ai pensé toujours qu´il y a dans la relation à autrui un élément de gratuité totale, de
désintéressement absolu, et j´en viens à contester la réciprocité même de ce bien qui se manifeste dans ce
rapport. Paul Ricoeur, qui, sur beaucoup de points, me suit, estime cependant que cette suppression de
réciprocité est un manque, qu´il y a une espèce d´injustice à l´égard de soi-même dans cette conception. Je
comprends fort bien ses raisons, mais j´ai pensé précisément que ce qui est à la base de la relation pure, de
la générosité à l´égard d´autrui, c´est une relation que l´on peut appeler relation de sainteté. Comme si la
sainteté était la dignité suprême de l´acte du rapport avec autrui, ce qu´on appelle l´amour ou le respect du
prochain. Telle est la critique de Ricoeur: pourquoi se priver? Pourquoi, dans cette relation, n´y aurait-il pas
une ultime satisfaction, quelque chose d´autre qu´une pure et simple dépense? ”
202
Gaëlle Fiasse: “Assymétrie, gratuité et réciprocité”. In: Paul Ricoeur. De l´homme faillible à l´homme
capable, op.cit., p. 119.
203
Idem, p. 121
204
Idem, p.129
238

Deve, assim, ser acrescentado que Ricoeur não esquece a dimensão de doação
presente nas relações intersubjetivas: a categoria da promessa implica, em certo sentido, em
doação de si. (Na promessa, o si não se anula, mas se sustenta em sua doação ao outro).
Também não se pode esquecer que, se o dom de si não é absoluto na economia humana, a
economia religiosa se funda no dom absoluto, na dádiva, na graça.
Não poucas vezes Ricoeur se referiu a agapè, amor no sentido bíblico, amor
gratuito e desinteressado, cuja expressão máxima talvez possa ser encontrada nas palavras
de Jesus, no Evangelho de Lucas 6, 32-37: “Se amais os que vos amam, que gratidão
mereceis? Pois os pecadores também amam os que os amam (...) Mas amai vossos
inimigos, fazei o bem e emprestai sem nada esperar em compensação”. Este trecho é citado
pelo próprio Ricoeur no contexto da discussão da Regra de Ouro: “Esta pode ser lida em
Hillel e no Evangelho, seja sob a sua forma negativa: ‘Não faças ao teu próximo o que não
gostarias que fizesse a ti’, seja sob a sua forma positiva: ‘Assim, tudo o que quiseres que os
homens façam por ti, faze-o tu por eles’” (L3 174). Regra cuja reciprocidade é,
precisamente, quebrada pelo mandamento de amar até mesmo os inimigos: a lógica da
equivalência é corrigida pela lógica da superabundância (que aparece diversas vezes no
Novo Testamento), ou pelo que Ricoeur chama de “economia do dom”.

“O mandamento do amor, segundo essa interpretação, realizaria a conversão da


Regra de Ouro de sua inclinação interessada na direção de uma atitude de
acolhimento do outro; ao com o fim de que do Do ut des, ela substituiria o
porque da economia do dom: ‘porque te foi dado, dê também’” (L3 179).

Reaparece aqui, no contexto da discussão da Regra de Ouro, a mesma idéia de uma


“economia do dom”, quando se tratava de pensar a relação entre caridade e justiça. Idéia na
qual se insiste aqui, por ser absolutamente central no modo pelo qual Ricoeur concebe a
dimensão religiosa ou bíblica. Tal centralidade não surpreende por parte de um pensador
que assume sua tradição protestante. Como, então, não falar em dom, dádiva e graça? Pois
se a mensagem cristã insiste na agapè, na gratuidade do amor, o protestantismo parece ter
radicalizado a noção de graça, como afirmam Laurent Gagnebin e Raphaël Picon em Le
Protestantisme. La foi insoumise: “A salvação só pela graça (sola gratia) de Deus em Jesus
239

Cristo inspira toda a história e o pensamento protestantes”205. Mas “a significação da


salvação só pela graça de Deus está também presente na expressão: ‘a salvação só pela fé’
(sola fide)” 206. Dizer fé é dizer graça, como o atesta a Epístola aos Efésios 2, 8-9: “É pela
graça de Deus que vós sois salvos, por meio da fé; essa salvação não vem de vós, é dom de
Deus; não é resultado de vossos esforços e assim ninguém pode se orgulhar”207.
A radicalidade de uma graça que só pode ser originar na vontade de Deus, que pode,
portanto, parecer absolutamente arbitrária aos olhos dos homens, quer indicar que não há
nenhum possível comércio com Deus: nem mesmo as boas obras do homem, por melhores
que sejam, garantem a salvação. Mas se a salvação ou graça, não depende de mim, então
sou livre para fazer o que eu quiser, o que eu bem entender. Laurent Gagnebin e Raphaël
Picon levantam a questão: “A afirmação da salvação só pela graça seria um travesseiro de
preguiça? As obras seriam tornadas vãs e inúteis para o protestante?”208. E, para evitar
qualquer mal entendido, recorrem a Ulrich Zwingli: “Lá onde a verdadeira fé existe, a obra
se encontra, assim como o calor está onde se encontra o fogo. E lá onde falta a fé, a obra
não é obra, mas vã simulação de obra”209. Ensinamento já proveniente de Calvino: “Não
somos justificados sem as obras, se bem que não o sejamos pelas obras”210. A graça,
gratuita, exige as obras, igualmente gratuitas: “longe de abolir as boas obras, a justificação
gratuita as torna possíveis e necessárias” 211.
O que teria o judaísmo a dizer a este respeito? Em outros termos: como pensa o
judaísmo a noção de salvação? Estaria ela submetida à sola gratia, ou dependeria das obras
ou ações dos homens? Quem fala em salvação, para um judeu, fala em Messias. Salvação e
messianismo encontram-se em estreita conexão, ou mesmo, dependência. Não me deterei
aqui nas inúmeras interpretações do messianismo judaico, limitando-me apenas a ressaltar
a interessante controvérsia acerca do quanto pode o homem ser agente de sua própria

205
Laurent Gagnebin e Raphaël Picon. Le Protestantisme. La foi insoumise. Paris: Champs - Flammarion,
2000, p. 47
206
Idem, p.48
207
Cf . Idem, p.48
208
Idem, p. 116.
209
Idem, p. 116/117.
210
Idem, p.117
211
Idem, p. 117
240

salvação, ou se quisermos, na linguagem do protestantismo, o quanto graça e obras podem


ser desvinculadas.212
O nome judaico para obras é mitzvah ou no plural, mitzvot, que significa
mandamentos ou preceitos, também se referindo a atos meritórios ou benevolentes213.
Como é, por assim dizer, de praxe, as opiniões aqui divergem: de um lado, aqueles sábios
que consideram a prática de mitzvot, como ingresso para a salvação (ou para a vinda do
Messias), de outro, a crítica ao comércio com Deus. A este respeito, comenta Nathan
Ausubel: “As recompensas da salvação, observou Maimônides (o rabino-filósofo do
século XII), só seriam obtidas por aquele que, mesmo cumprindo só uma das 613 mitzvot,
tivesse sido impelido a cumpri-la não por interesse próprio, mas ‘por ela mesmo, com um
sentimento de amor’”214. A severidade com que o rabino condenava um possível comércio
com Deus pode ser medida por estas palavras: “E, na verdade, ninguém serve ao Senhor
dessa maneira a não ser homens, mulheres e crianças vulgares, os quais são treinados para

212
As complexas problemáticas da graça cristã, do messianismo judaico e da salvação, evidentemente, não
serão aqui examinadas em todas as suas nuances: o cuidado que merecem exigiria um estudo à parte. É
sempre bom lembrar que não se trata, neste trabalho, de fazer um estudo comparativo entre protestantismo e
judaísmo, mas apenas de pensar algumas noções destas respectivas tradições, que poderiam estar em
conexão com as filosofias do sujeito de Ricoeur e Lévinas: no presente caso, está em foco a discussão sobre
gratuidade, que Lévinas aponta como sendo um ponto de desacordo entre eles. Quanto ao messianismo
judaico, remeto o leitor interessado ao clássico trabalho de Gershom Scholem. The Messianic Idea in
Judaism and other essays on Jewish Spirituality. Schoken Books, 1971. Tradução francesa de Bernard
Dupuy: Le Messianisme Juif. Essais sur la spiritualité du judaïsme. Paris: Calmann-Lévy, 1974.
Especialmente no artigo: “Pour comprendre le messianisme juif”, Scholem examina cuidadosamente as
várias facetas presentes na problemática da salvação ou do messianismo judaico, a saber: Messias pacífico
ou apocalíptico? Messias restaurador de uma harmonia perdida ou anunciador do novo? Messias que só
pode ser concebido no palco visível e coletivo da história, indicando que a salvação é coletiva, em contraste
com o cristianismo que ressalta a salvação interior e individual ? Messias que surge de modo abrupto, como
quer Walter Benjamin, ou resultado de um processo? Messias cuja vinda é previsível ou não? Tantas
questões que não serão aqui objeto de atenção mais detalhada, mas das quais apresento um panorama geral
em Memória e Exílio. São Paulo: Escuta, 2003, p. 86 a 92. A questão central aqui será a de saber se a vinda
do Messias dependeria das ações humanas ou, em outros termos, se a salvação dependeria das boas obras
ou, na perspectiva judaica, do cumprimento das mitzvot.
213
Cf. Nathan Ausubel. The Book of Jewish Knowledge. Crown Publishers, 1964. Tradução de Eva S.
Jurkiewicz: Conhecimento Judaico II. Volume 6 da Enciclopédia Judaica. Rio de Janeiro: Koogan, 1989,
p.566. Há, ao todo, 613 leis, mandamentos e preceitos na Torah (Lei Escrita) e no Talmud (Lei Oral), sendo
365 proibitivas e 248 afirmativas: estas ordenam a vida cotidiana do judeu, abrangendo seus inúmeros
aspectos: “legal, moral, ético, social, econômico, político, teológico, cerimonial e ritualístico” (p.567). As
leis se referem, por exemplo, ao que se pode ou não comer; ao que se pode ou não vestir; a quando, onde e
como rezar; a como deve um judeu se comportar no Shabat (sábado, dia santificado) ou nas festas judaicas;
há também leis que regulam o ciclo da vida de um indivíduo (circuncisão, Bar-mitzvah, casamento,
divórcio, sepultamento, luto, etc..); leis sobre comportamento ético, não somente relativas à prática da
caridade, mas também concernentes à honestidade, à humildade, ao perdão, etc...
214
Idem, p.567
241

servir a Deus por meio do castigo ... ou por ambição de uma recompensa”215. Filon de
Alexandria, um contemporâneo de Jesus, já recomendava: “Pois que a própria sabedoria é a
recompensa da sabedoria; e a justiça, e cada uma das outras virtudes, é sua própria
recompensa”216. Palavras estas confirmadas por um Sábio Talmúdico de geração posterior:
“A recompensa de uma boa ação é a boa ação; o castigo de um pecado é o pecado”217.
Nesta perspectiva – é sempre bom lembrar que se trata de uma certa perspectiva judaica, de
modo nenhum hegemônica! - as boas ações ou mitzvot se justificam por si próprias e não
são garantia de salvação. A exemplo do protestantismo, impede-se assim qualquer tipo de
‘trato’ ou comércio com Deus.
No entanto o parentesco entre protestantismo e judaísmo termina aqui, pois a noção
de salvação pela graça parece ser estranha ao messianismo judaico: se para os protestantes,
a graça chama as boas obras - seria, por assim dizer, seu mentor ou motor - , para os judeus,
as mitzvot – garantam ou não a salvação, propiciem ou não a vinda do Messias - são fruto
do esforço humano, e têm força de Lei. É o que parece nos ensinar a significativa
coincidência entre mandamento e benevolência, inscrita na palavra mitzvah: a benevolência
é mandamento, obrigação.
A bondade, diz Lévinas em uma entrevista a France Guwy, não provem de Deus,
mas leva a Deus; no limite – heresia?! – a bondade nem sequer necessita do suporte divino:

“O fato de que o homem possa chegar a Deus a partir de sua bondade, ao invés
de ir para a bondade a partir de Deus, eis o que me parece extremamente
importante. O fato de que, sem pronunciar a palavra Deus, eu esteja na bondade
é mais importante que uma bondade que vem simplesmente ocupar um lugar
entre as recomendações de uma dogmática.”218

Na mesma entrevista, Lévinas oferece uma interessante concepção do messianismo:


“O Messias, quer dizer, a obrigação de se ocupar de outrem, é minha tarefa. Em minha

215
Idem, p.705.
216
Idem, p.705
217
Idem, p.706
218
Emmanuel Lévinas. “L´asymétrie du visage. Interview d´Emmamuel Lévinas par France Guwy pour la
télévision néerlandaise (1986). In: Cités, n. 25. Emmanuel Levinas. Une philosophie de l´évasion. Paris,
Puf, 2006, p.122: “Le fait que l´homme puisse arriver à partir de sa bonté vers Dieu au lieu d´aller vers la
bonté à partir de Dieu, voilà ce qui me semble extrêmement important.Le fait que, sans prononcer le mot
Dieu, je sois dans la bonté est plus important qu´une bonté qui vient simplement prendre place parmi les
recommandations d´une dogmatique.”
242

individualidade, em minha unicidade, há isto: sou possivelmente Messias.” Não se trata do


efeito da graça:

“ao contrário, é a condição do eu tal como a descrevo desde o início: o sujeito


não é de modo nenhum aquele que recebe, mas aquele que é responsável. O
universo pesa sobre mim, sou refém, expiação, sou escolhido para isso. Minha
unidade, minha unicidade, é isso que chamo Messias. Venho para salvar o
mundo, mas me esqueço disso (...) . É isto que chamo de momento messiânico no
eu humano. Não digo, de modo algum que ele triunfe – o Messias não vem – mas
esta vocação, ele a ouviu, e é por esta vocação que ele é único e um, aí está sua
individuação.”219

A bondade, quer dizer, se ocupar de outrem, da morte de outrem mais do que da


minha: esta é a vocação messiânica do sujeito. Tal vocação não promete nenhuma
recompensa ou consolo. Mas, diz Lévinas, numa bela formulação: “não é impossível – mas
isso está além da filosofia – que aqueles que não contam com nenhuma recompensa sejam
dignos de uma recompensa”220.
Assim, para Lévinas, a relação com Deus – ou com outrem - não é marcada pelo
efeito da graça. Embora ele mencione que na relação a outrem, há um “‘mais’ ou ‘melhor’
que seria o dom gratuito ou a graça da vinda do outro a meu encontro” (DVI197). A graça
perde, desse modo, sua conotação teológica, para significar a proximidade do próximo.
Mas, nesta proximidade, o sujeito nada recebe: ele é eleito Messias221, quer dizer: o único
que pode salvar outrem, responsabilizando-se por ele, na gratuidade total. Dizer graça não é

219
Idem, p.123/124: “(...) au contraire, c´est la condition du moi telle que je la décris depuis le début: le sujet
n´est pas du tout celui qui prend, mais celui qui est responsable. L´univers pèse sur moi, je suis otage,
expiation, je suis choisi pour cela. Mon unité, mon unicité, c´est cela que j´appelle Messie. Je viens pour
sauver le monde, mais je l´oublie (…) C´est cela que j´appelle le moment messianique dans le moi humain.
Je ne dis pas du tout qu´il triomphe – le Messie ne vient pas – mais cette vocation, il l´a entendue, c´est par
cette vocation qu´il est unique et un, c´est là son individuation” É interessante notar que as noções de
eleição e de messianismo, tal como Lévinas as emprega aqui, se afastam do seu significado judaico
‘clássico’: em primeiro lugar, a eleição não diz respeito a um povo, mas a um sujeito; em segundo, o
Messias não se refere a um homem que viria para salvar o mundo - ele não vem, diz Lévinas – mas diz
respeito a todos os homens: é vocação de cada homem.
220
Idem, p.124.
221
Uma questão se perfila aqui: em que medida poder-se-ia contrapor as noções de graça e de eleição?
Novamente, renuncio aqui a tratar com cuidado tal interessante tema, me limitando a observar, de modo
rápido e talvez incorreto, que enquanto o recebimento da graça se refere a uma pessoa, o de eleição se
refere a um povo. Mas como se viu, não é nesse sentido que Lévinas emprega o termo eleição, na medida
em que é o sujeito que é eleito... A meditar...
243

dizer gratuidade: para Lévinas, “a relação com outrem [é] ‘hessed’ ou ‘caridade
gratuita’”222.
E, novamente, Lévinas surpreende! Pois o judaísmo é habitualmente definido, não a
partir da palavra hessed ou caridade, considerada uma noção tipicamente cristã, mas em
torno da palavra tsedek, ou justiça, como o atesta a importância fundamental da Lei para o
judaísmo.
Importância esta ressaltada por inúmeros comentadores, entre os quais, o já citado
Walter Rehfeld, a quem não se pode acusar de desconhecer o judaísmo! Para este
pensador, não é o monoteísmo, enquanto crença em um Deus único, que caracteriza o
223
judaísmo: “O monoteísmo como tal não é descoberta de Israel” . Mas, à diferença de
outros monoteísmos, o judaico “não procurava o ser da divindade; bem ao contrário proibia
‘fazer modelo ou qualquer representação’ (segundo mandamento) de Deus” 224. A novidade
de Israel é o “monoteísmo ético [que vê] no mundo não a expressão do ser de Deus, mas da
Sua Vontade” 225. O judeu não busca o Ser de Deus, mas Sua Vontade, que está expressa na
Lei. Num mesmo gesto portanto, o judaísmo escapa da teologia e se coloca sob a Lei: “O
monoteísmo ético, na sua forma pura, nega, pois, a legitimidade da teologia como estudo
dos atributos de Deus”226 . Ou ainda: “A Lei será a base fundamental do judaísmo e não as
especulações teóricas sobre seu divino autor”227.
Esta concepção judaica de Deus parece estar em consonância com a de Lévinas: sua
perspectiva é, ao mesmo tempo, antiteológica e ética, ética esta ordenada a partir do
mandamento bíblico ou Lei: “não matarás”.
Mas, eu ousaria dizer, só até certo ponto. Até o ponto em que a Lei é dissociada do
amor, da caridade e da santidade. Se não há santos no judaísmo228, isto não significa que
não haja santidade, “a menos que se suponha que não há caridade, que só há justiça no

222
Salomon Malka. Entretien avec Emmanuel Lévinas. In: Lire Lévinas. Paris: Cerf, 2a edição, 1989.
223
Walter I. Rehfeld. Nas Sendas do Judaísmo, op.cit., p.9
224
Idem, p.9
225
Idem, p.9
226
Idem, p.9
227
Idem, p.103
228
Vale lembrar que o protestantismo, embora não negue a existência de santos, não lhes atribui a mesma
importância que o catolicismo. Tanto Lutero quanto Calvino atentaram para os abusos relativos aos cultos
dos santos (Cf. o verbete “Culto dos santos” In: Jean-Yves Lacoste. Dicionário Crítico de Teologia): a
exemplo das sinagogas judaicas, nota-se a ausência de imagens de santos nos cultos protestantes.
244

judaísmo”, como disse Lévinas a Saint-Cheron229. Este “a menos que se suponha...” conduz
a uma discussão essencial, que diz respeito à famosa oposição entre Fé cristã e Lei judaica,
estabelecida por São Paulo na igualmente famosa Epístola aos Romanos.
Evoquemos aqui, novamente, a revolta expressa por Shalom Rosenberg: “A idéia
segundo a qual Lévinas teria uma abordagem cristã é uma idéia idiota. O cristianismo
sustenta que ele representa a graça e o amor, enquanto o judaísmo simboliza a justiça.
230
Quem disse que isto é verdadeiro?” . Precisamente, responderíamos a Rosenberg: muita
gente! Resposta evidentemente simplória, que, para deixar de sê-lo, exige um exame
cuidadoso da clássica oposição entre Fé e Lei.
Exame este que, entre tantos escritos, pode ser encontrado no belo livro Judaïsme et
Christianisme: l´écoute en partage, escrito a quatro mãos: a judia Catherine Chalier e o
cristão Marc Faessler passam ao largo do tom apologético, freqüente – e infelizmente, cada
vez mais dogmático, para não dizer fanático – quando se trata de discutir religiões; e
mergulham nos temas essenciais – e muitas vezes extremamente delicados – que
atravessam cada uma dessas duas tradições, e a relação entres elas, em uma atitude, como
indica o próprio título do livro, de escuta.
Acerca da fundamental polêmica entre fé e lei, Catherine Chalier inicia seu artigo,
intitulado “Interioridade e Exterioridade”, com a seguinte observação:

“A tensão, até mesmo a oposição e a incompatibilidade, entre a Lei judaica e a


fé em Cristo serviu, desde os primeiros escritos cristãos, a valorizar a mensagem
de Jesus em detrimento da religião judaica e, logo, a proclamar caduca a
constância na obediência às prescrições do Pentateuco.”231

Não é sem importância, para os propósitos deste trabalho, lembrar, junto com
Catherine Chalier que “a Reforma luteriana, no século XVI, acentuará ainda o

229
Michaël de Saint-Cheron. Entretiens avec Emmanuel Lévinas.1992-1994, op.cit., p.33.
230
Salomon Malka. Emmanuel Lévinas. La Vie et la Trace, op.cit., p.300
231
Catherine Chalier: “Intériorité et Extériorité”. In: Catherine Chalier e Marc Faessler. Judaïsme et
Christianisme: l´écoute en partage. Paris: Cerf, 2000, p.349: “La tension, voire l´opposition et
l´incompatibilité, entre la Loi juive et la foi au Christ servit, dès les premiers écrits chrétiens, à valoriser le
message de Jésus au détriment de la religion juive et, bientôt, à proclamer caduque l´obéissance aux
prescriptions du Pentateuque.”
245

questionamento da Lei, em benefício do triplo tema do Sola Fide, sola gratia et sola
scriptura”232.
Marc Faessler, por seu lado, em seu artigo: “A Fé e a Lei: Paulo Revisitado”,
reconhece a mesma problemática: “Cavou-se um abismo entre cristianismo e judaísmo em
torno da ruptura selada pela doutrina da justificação pela fé, que se substituiu à observância
escrupulosa da Torah”233.
Muito se poderia dizer acerca desta essencial oposição, que foi usada como
argumento pelo judeu Saulo, convertido em São Paulo, para liberar os cristãos do jugo da
Lei, isto é, da observância das mitzvot contidas no Pentateuco:

“Nós somos judeus de nascença, e não pagãos, esses pecadores. Sabemos


entretanto que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas somente pela fé
relativa a Jesus Cristo; também nós cremos em Jesus Cristo, a fim de sermos
justificados pela fé de Cristo e não pelas obras da lei, porque, pelas obras da lei,
ninguém será justificado.” (Epístola aos Gálatas, 2, 15-16)

Este versículo é particularmente interessante, não somente por desqualificar a


importância das obras e da lei, mas também por indicar que não se trata de um abandono da
condição de judeu, mas de continuar um judaísmo, por assim dizer, mais verdadeiro,
doravante livre da lei, e baseado na fé. Mais verdadeiro, pois vindo de dentro: à
exterioridade estéril da obediência a lei, se opõe a interioridade fecunda da fé, do coração e
do amor a Deus em Cristo.234 O amor torna lei obsoleta, uma vez que: “O amor não faz
nenhum dano ao próximo; portanto o amor é o pleno cumprimento da lei.” (Epístola aos
Romanos 13, 10). A lei, sem amor, não pode justificar: “Eis porque ninguém será
justificado diante d´Ele pelas obras da lei; com efeito, a lei dá apenas o conhecimento do
pecado” (Epístola aos Romanos 3, 20). Mas – vale aqui ressaltar o excelente argumento,
com um certo colorido, se assim ousou dizer, retórico - quem pode se importar com o
pecado, cujo conhecimento é instaurado pela lei, uma vez que a graça, por si só, conduz à
sua exclusão? “O pecado já não terá mais domínio sobre vós, visto que já não estais sob a
lei, mas sob a graça” (Epístola aos Romanos 6, 14).

232
Idem, p.351
233
Marc Faessler: “La Foi et La Loi: Paul Révisité”. In: Idem, p.373
234
Cf. Catherine Chalier: “Intériorité et Extériorité”. In: Idem, p.349
246

A mesma inteligência argumentativa - seria demais dizer novamente ‘retórica’? – se


encontra em obra no tratamento que São Paulo dedica a Abraão, fundador do monoteísmo e
do judaísmo. Abrão, o hebreu ou o judeu, não é excluído, mas confirmado como
antepassado: “Que diremos, pois, de Abraão, nosso antepassado?” (Epístola aos Romanos,
4, 1 – grifo meu). E, a esse respeito, Marc Faessler aponta a importância das palavras de
São Paulo, “Pois bem, foi a Abraão que as promessas foram feitas, e à sua descendência.
Não se disse; ‘e às descendências’, como se tratasse de muitas, mas é de uma só que se
trata: é à tua descendência, isto é Cristo” (Epístola aos Gálatas 3, 16)235. Eis que Abraão,
além de ser pai dos judeus – o que já não é tarefa fácil – assume também a paternidade dos
cristãos!
Mas a argumentação de São Paulo não cessa aqui, atingindo a própria carne: a
aliança de Deus com Abrão se faz a partir da exigência – convenhamos, pouco confortável!
- da circuncisão. Cito:

“Porventura essa declaração de felicidade só concerne aos circuncisos ou


também aos incircuncisos? (...) Mas em que condições o foi? Antes ou depois de
sua circuncisão? Não foi depois, mas antes! Depois, o sinal da circuncisão lhe
foi dado como sinete da justiça recebida pela fé, quando ele era incircunciso;
assim, ele se tornou, ao mesmo tempo, pai de todos os crentes incircuncisos,
para que lhes fosse atribuída a justiça, e pais dos incircuncisos, dos que não só
pertencem ao povo dos circuncisos, mas também caminham nas pegadas da fé
de nosso pai Abraão, antes de sua circuncisão.” (Epístola aos Romanos 4, 10-12)

Se aqui insisto tanto na genialidade dos argumentos de São Paulo, não é com o
objetivo de enaltecer sua inteligência, tampouco de salientar o que há de retórico em sua
argumentação. Tanto o elogio de sua inteligência quanto a crítica embutida na palavra
‘retórica’ (cuja conotação pejorativa herdamos de Platão) correriam o riso, perigosamente
tendencioso, de considerar o advento do cristianismo como fruto da astúcia!236

235
Cf. Marc Faessler: “La Foi et la Loi: Paul Révisité”. In: Idem, p.392
236
Esta afirmação traz consigo, um pressuposto implícito: o de que São Paulo seria o fundador do
cristianismo. Pressuposto com o qual parecem concordar Catherine Chalier, Marc Faessler e... eu mesma!
Eis porque, não sem surpresa, me deparei com o seguinte comentário de Giorgio Agamben: “Pode-se dizer
que houve uma espécie de solidariedade subterrânea entre a Igreja e a Sinagoga, a fim de apresentar (...)
Paulo como fundador de uma nova religião – qualidade que este último (...), não teria, certamente, jamais
pensado reivindicar. As razões desta cumplicidade são claras: trata-se, tanto para uma quanto para a outra,
de apagar – ou ao menos de nuançar – o judaísmo de Paulo, isto é, de retirá-lo de seu contexto messiânico
de origem.” Cf. Il Tempo Che resta. Un commento allá Lettera ai Romani. Tradução francesa de Judith
Revel: Le Temps qui reste. Un commentaire de l´Épître aux Romains. Paris: Payot Rivages pour l´édition
247

O que eu gostaria de salientar, com essas observações, é o fato de que a oposição


entre fé e lei, que funda a separação entre judaísmo e cristianismo, longe de ser uma
verdade em si, pode ser lida na chave das vicissitudes ou contingências históricas. Como
aponta Marc Faessler, “tudo isso dizia respeito a um problema interno do próprio
cristianismo (...) Fora do cristianismo mantinha-se o judaísmo, vivendo da Torah,
codificando a simbólica de sua fé” 237, fé ou amor a Deus que não saberia se desvincular de
Seus mandamentos ou de Sua Lei 238 . A observância da lei só pode ser compreendida, para
um judeu, no contexto da fé ou do amor a Deus: sem amor, a lei se torna estéril... Mas o
amor a Deus não desobriga o judeu do cumprimento dos preceitos: estes remetem, a todo
momento, à presença divina, ou em outros termos, eles “expressam (...) a fidelidade a este
amor [a Deus], até mesmo na realização dos mais simples gestos”239. A este respeito, diz
Lévinas: “A Mitzvah – o mandamento que mantém o judeu em suspensa atenção (tient en
haleine le juif)– não é um formalismo moral, mas a presença viva do amor” (HS 78/79).
O que significa que a oposição entre fé e lei, na qual insiste o cristianismo, não
encontra eco no judaísmo. Catherine Chalier nota que se o nome Lei se refere à palavra
grega nomos que traduz, em geral, o termo hebraico Torah, tal equivalência se presta a mal
entendidos, uma vez que Torah significaria, em sentido estrito, ensinamento240. A Lei
judaica não é anônima, mas mandamento de Deus, palavra que tem uma direção particular:
dirige-se a um Tu: “E amarás o eterno, teu Deus, com todo teu coração, e com toda tua
alma, e com todas tuas posses” (Deuteronômio VI, 5)241.
A conjugação indissolúvel, para o judaísmo, entre fé e lei está expressa no
mandamento primeiro: “Amai-me”, cujo paradoxo é ressaltado por Rosenzweig: como é
possível que o amor seja comandado? Quem o pode fazer? Somente um o pode, diz
Rosenzweig: aquele que ama:

de poche, 2004, p.10/11. Se evoco aqui tal comentário, não é – outra vez?! – para nele me deter com o
cuidado que merece, mas apenas para marcar a incerteza na qual freqüentemente se move aquele que
resolve pensar, especialmente quando se trata de assuntos bíblicos ou religiosos.
237
Marc Faessler: “La Foi et la Loi: Paul Révisité”. In: Judaïsme et Christianism:l´écoute en partage, op. cit.,
p. 373
238
Cf. Catherine Chalier: “Intériorité et Extériorité”. In: Idem, p. 354 e seguintes
239
Idem, p.354
240
Cf. Idem, p.353
241
Cf. Idem, p.358
248

“O mandamento do amor pode vir somente da boca do amante. Somente aquele


que ama, mas, ele, realmente, pode dizer e, com efeito, diz: ‘Amai-me’. Em sua
boca, o mandamento do amor não é um mandamento estrangeiro, ele não é nada
além que a própria voz do amor. O amor daquele que ama não tem outra palavra
para se expressar além do mandamento”242

Para Ricoeur este mandamento diz mais respeito à ética do que a moral,
mandamento que seria “anterior e superior a todas as leis” (SA 226, nota 1), no limite, nem
se poderia considerá-lo uma lei:

“Há uma forma de mandamento que não é ainda uma lei: este mandamento, se
assim pode-se chamá-lo, se faz ouvir na tonalidade do Cântico dos Cânticos, na
súplica que o amante dirige à amada: ‘Tu, amai-me’. É porque a violência
macula todas as relações de interação (...), que o mandamento se faz lei e a lei
interdição: ‘Não matarás’” (SA 405)

Ao comentar a obra de Franz Rosenzweig, diz Lévinas que o mandamento do amor


que Deus dirige ao homem é a própria Revelação, mas resposta do homem ao amor que
lhe devota Deus é a Redenção: “A Revelação, que é amor, espera uma resposta do homem.
Esta resposta não torna a subir a mesma via que trilhou o movimento provindo de Deus: a
resposta ao amor que Deus devota ao homem é amor do homem para o próximo” (HS 79).
É assim que o “Amai-me” transforma-se em: “Ame o próximo como a ti mesmo”.
Mas qual é o significado deste mandamento? Seria: deve-se amar o próximo tanto quanto
se ama a si mesmo, sugerindo assim que o amor de si é maior do que o amor a outrem?
Conta Lévinas que Buber e Rosenzweig, ao traduzirem a Bíblia para o alemão, para evitar
tal ambigüidade, preferiram dizer: “ame teu próximo, ele é como ti” (Cf. DVI 144). E
Lévinas, como é de seu estilo, sugere uma interpretação mais radical da expressão: “Ame
teu próximo; esta obra é como tu mesmo”; “ame teu próximo; é tu mesmo”; “é este amor
do próximo que é tu mesmo” (DVI 144).
O mandamento do amor que Deus dirige ao homem parece indicar que fé e lei não
se opõem necessariamente: é assim que, para Lévinas, amor, fé, caridade e gratuidade não

242
Franz Rosenzweig. L´Étoile de la Redemption, op.cit., p.210: “Le commandement de l´amour ne peut venir
que de la bouche de l´amant. Seul celui qui aime, mais lui réellement, peut dire et dit en effet: ‘Aime-moi’.
Dans sa bouche, le commandement de l´amour n´est pas un commandement étranger, il n´est rien d´autre
que la voix de l´amour lui-même. L´amour de celui qui aime n´a pas d´autre mot pour s´exprimer que le
commandement.”
249

são propriedades exclusivas do cristianismo, mas estão igualmente presentes no judaísmo,


para o qual, a Lei está impregnada de fé. Tsedek e hessed caminham juntos....

4. Cristo e a palavra ou Dizer sem palavras?

A este ponto do trabalho, o leitor talvez se surpreenda com a ausência de uma óbvia
questão que demarca o abismo entre protestantismo e judaísmo: Jesus Cristo. “Que Jesus
possa ser reconhecido como Deus-entre-nós (‘immanou ’el) permanece desde vinte séculos,
entre judeus e cristãos, objeto de controvérsia” diz Marc Faessler243. Se os judeus da época
podiam considerá-lo um profeta entre outros, seus discípulos nele viram o esperado
244
Messias . A ser notado, como o faz Giorgio Agamben, que a palavra “cristos não é um
nome próprio mas, desde a Septante, a tradução grega da palavra masiah, que significa o
ungido, quer dizer, o messias”245. O mesmo autor sublinha que “a distinção entre Christos
(com maiúscula) e cristos enquanto denominação, foi introduzida pelos editores
modernos”246.
Nem Deus-entre-nós, nem Messias, e menos ainda, dizem os judeus, Filho de Deus
ou Deus encarnado. A este respeito, Trude Weiss-Rosmarin comenta, de modo enfático,
que: “A unidade de Deus, sagrada para o Judaísmo, além de tudo mais, é completamente
incompatível com a idéia cristã da Trindade do Ser Divino e, acima de tudo, com a crença
da encarnação de Deus no homem”247. Afirmação que se pode – e talvez se deva -
contrapor à análise mais fina que oferece Marc Faessler:

“O Deus encarnado, Pai, Filho e Espírito Santo, não é a expressão degenerada


de um tri-teísmo, mas um modo de expressar o que liga – no advento da palavra
originado em Jesus – o Absoluto, a kenose e a inspiração, três modalidades
relacionais da Transcendência que também estão presentes na tradição judaica.
Convém, portanto, se livrar de velhos debates estéreis e carregados de
embaraço.”248

243
Marc Faessler. “‘Christ’ comme évènement de Parole”. In: Judaïsme et christianisme: l´écoute en partage,
op. cit., p.120.
244
Cf. Catherine Chalier. “Le Messie Controversé”. In: Idem, p.105
245
Giorgio Agamben. Le Temps qui reste. Un commentaire de l´Épître aux Romains, op. cit., p.33
246
Idem, p. 35
247
Trude Weiss-Rosmarin. Judaísmo e Cristianismo: As Diferenças, op.cit., p.25.
248
Marc Faessler. “‘Christ’ comme évènement de Parole”. In: Judaïsme et christianisme: l´écoute en partage,
op. cit., p.122: “Le Dieu incarné, Père, Fils et Souffle saint, n´est pas l´expression abâtardie d´un tri-
théisme, mais une manière d´exprimer ce qui relie – dans l´evènement de parole originé en Jésus –
250

Eu teria gostado, não somente de meditar mais longamente acerca destas belas
palavras de Faessler, mas também de me demorar mais nestas interes-santíssimas questões.
Mas, como já foi dito e redito, não se trata aqui de um trabalho religioso ou teológico. Se a
figura de Jesus Cristo foi aqui invocada, é porque ela poderia demarcar uma diferença entre
Ricoeur e Lévinas: se o primeiro é protestante e o segundo é judeu, isso supostamente
implicaria em diferentes presenças de Deus. E de todas as possíveis, me detenho – quiçá de
modo tendencioso – na expressão que Marc Faessler escolhe como título de seu artigo:
“‘Christ’ comme évènement de parole”: dentre as inúmeras denominações, ou atributos,
que se referem a Jesus249, privilegio a de Logos, ou davar em hebraico.
Já se mencionou diversas vezes, neste trabalho, a expressão: palavra ou voz de
Deus, às quais aludem tanto Ricoeur quanto Lévinas; notadamente para Lévinas, Deus fala,
mas sua voz não tem boca, é desencarnada, é Dizer: Dizer que é apenas uma palavra, mas
esta palavra é Deus (Cf. EDE 330). Dizer que está para além do Dito: para o judeu, o nome
de Deus é impronunciável, não pode ser dito250.
A importância do Logos – que não é só grega! - é ressaltada no Evangelho segundo
São João, no qual a criação é lida como obra da palavra de Deus: “1No início era o Verbo, e
o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus.2 Ele estava, no início, voltado para
Deus.3 Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito” O Verbo de
Deus, que tudo criou se fez carne “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João,1,14).
O Verbo se fez carne: o Dizer se fez dito.
Seria possível, a partir daí, pensar a oposição tantas vezes mencionada entre a
reciprocidade defendida por Ricoeur na relação sujeito – alteridade, e a dissimetria na qual
insiste Lévinas? Ouso lançar, quase como se lança uma palavra ao vento, este último e

l´Absolu, la kénose et l´inspiration, trios modalités relationelles de la Transcendance qui sont aussi
présentes dans la tradition juive. Il convient donc de se dégager de vieux débats stériles et pesamment
encombrés.”
249
Cf. Idem, p.120/121: “Messias (mashiah/christos), Senhor (’adôn, YHWH/kurios), Servidor de Deus (’évèd
YHWH/pais theou), Santo (qadosh/ agios), Justo (tsaddiq/dikaios), Príncipe da Vida (r´osh hayim/archêgos
tês zôês), Filho de David (ben dawid/ huios dauid), Filho do Humano (aram.: bar ’énâsh/ huios tou
anthropou), Salvador (yeshou ‘ah/ sôter), Logos (davar/ logos) Sabedoria (hokmah/sophia), Nome acima
de todo nome (hashèm/ to onoma), ou Filho de Deus (ben’élôhim/ huios tou théou)”
250
É nesse sentido que se pode entender a escolha de Alex Derczansky em não escrever o nome ‘Deus’,
substituindo-o por ‘D.’: o próprio autor justifica tal grafia em uma elucidativa nota: “A tradição judaica
coloca o inefável, portanto o expressa de modo interrompido: D. ou D-eus.” Cf. Alex Derczansky. “L´unité
de l´oeuvre de Paul Ricoeur”. In: Paul Ricoeur. Éthique et Responsabilité, op. cit., p.131, nota 15.
251

temerário dito (já pronto a desdizer-se): para o protestante, Deus se humaniza em Cristo,
talvez por isso, a palavra e o diálogo sejam possíveis, instalando uma reciprocidade que
Ricoeur põe na conta de Hegel, mas que possa talvez ser pensada em termos de Cristo,
Deus tornado humano e portanto palavra (daí também a importância da linguagem em
Ricoeur?). Para o judeu, não há nem simetria nem reciprocidade na relação a outrem: no
rosto do Outro, a presença de um Deus ausente, e inominável, e assim, não há palavra nem
diálogo possíveis: o Dizer ultrapassa o Dito, Dizer que é Deus...
Para finalizar sem sintetizar, gostaria de evocar um certo dito de Milan Kundera,
que vem me acompanhando desde o início e, que reflete, de certo modo, o ‘espírito’ dessas
considerações:
“Existe um provérbio judaico admirável: O homem pensa, Deus ri (...) mas
porque Deus ri ao olhar o homem que pensa? Porque o homem pensa e a
verdade lehe escapa. Porque quanto mais os homens pensam, mais o
pensamento de um se distancia do pensamento do outro. E enfom, porque o
homem nunca é aquilo que pensa ser.”251

Seria excessivo dizer que Ricoeur e Lévinas apostariam nisso?

251
Milan Kundera. L´Art du Roman. Tradução de Teresa Bulhões C. da Fonseca e Vera Mourão. A Arte do
Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.140
252

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um Olhar Retrospectivo

“A escrita é um nascimento.”
(Gerard Baillache)

Inicio estas considerações finais com uma espécie de ‘aviso aos navegantes’: não se
tratará aqui nem de retomar o que já foi exaustivamente comentado e, muitas vezes,
repetido; tampouco de chegar a reflexões conclusivas – do tipo: Ricoeur ou Lévinas? – ou
de apresentar sínteses brilhantes, ou novas descobertas mas, simplesmente, de lançar um
olhar retrospectivo sobre este trabalho.
Chego ao fim de um percurso no qual as filosofias de Paul Ricoeur e Emmanuel
Lévinas foram pensadas a partir de uma questão essencial: a relação do sujeito com a
alteridade. Questão cuja relevância se coloca de modo dramático após a experiência
histórica das duas Guerras Mundiais, em particular da Shoah: que sentido dar, hoje, às
palavras: sujeito, homem ou ética?
O resultado – se é que se pode falar em resultado! – é uma concepção de sujeito que
inclui em si próprio a alteridade, o outro, outrem, o estranho, o estrangeiro: “si mesmo
como um outro”, ou “o outro no mesmo”. Nessa perspectiva, não se poderia mais pensar a
noção de um indivíduo fechado em si mesmo, no desconhecimento do outro. O sujeito ou a
subjetividade não pode prescindir de uma discussão que envolve a ética e, no caso dos dois
filósofos em pauta, a transcendência.
Tanto suas concepções de sujeito e alteridade, quanto suas óticas acerca da ética, e
suas preocupações com a noção de transcendência apontam para uma mesma sensibilidade:
a de “chacoalhar a gloríola do sujeito”, como diz Jeanne Marie Gagnebin: “nesses tempos
de triunfalismo neoliberal e de narcisismo de príncipe e princípio, um pensamento que
chacoalha a gloríola do sujeito (...) só pode ser bem-vindo”1; tal elogio dirigido, pela
autora, a Ricoeur, pode, sem dúvida, ser estendido a Lévinas, na medida em que ambos
buscam retirar o sujeito da posição central que vem ocupando na filosofia, desde Descartes.
1
Jeanne Marie Gagnebin. Lembrar escrever esquecer, op. cit., p.178
253

E se Ricoeur recorre a Descartes para corrigi-lo, substituindo o cogito exaltado cartesiano


pelo cogito ferido da hermenêutica do si, o mesmo faz Lévinas, que retoma, a seu modo, a
idéia cartesiana de Infinito, presente doravante na relação do sujeito com outrem. O ponto
de partida cartesiano é, em ambos, revirado, resultando na possibilidade de ainda poder
falar em uma certa subjetividade, um certo homem, que bem ou mal, sobreviveu a
Auschwitz e – talvez, decorrente desta trágica experiência – de um sujeito modesto ou
deposto, dilacerado ou “esgotado” 2.
Cruzam-se, aqui, portanto duas preocupações, que fazem eco uma à outra, e que são
igualmente importantes – nenhuma delas tendo prioridade em relação à outra. A primeira
diz respeito ao desejo de que a necessária e incontornável crítica ao sujeito e ao homem não
seja acompanhada pela fascinante, porém perigosa idéia do desaparecimento do sujeito ou
do homem, perigo, como se disse na introdução deste estudo, já pressentido por Walter
Benjamin.
A segunda nasce dos próprios personagens centrais que me ocuparam por tanto
tempo, fazendo derramar tanta tinta: Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas, estes que chamei,
em determinado momento deste trabalho, gigantes do pensamento.3 Não somente pela
importância de seus textos, mas também - como deve ter ficado, a estas alturas, patente
para o leitor -, pelo fascínio que cada um deles acendeu em mim, um fascínio, se me
permito dizer, tingido, por vezes, de uma certa irritação. No entanto nem o fascínio, nem a
irritação – pelo menos, assim espero - me impediu de mergulhar nos textos dos gigantes em
questão...
Invoco aqui um certo modo pessoal de ler a obra de um autor: ler um texto significa
nele mergulhar, tentar a ele ser fiel, isto é, na medida do possível, não traí-lo. Significa
tornar-se, nesse caso, discípulo do texto, isto é, como diz Ricoeur, “trocar o eu, mestre dele
mesmo, pelo si, discípulo do texto” (RF 57) 4.

2
Cf. Jacques Rolland. “Le sujet épuisé” In: Levinas. Édition et présentation de Danielle Cohen-Levinas, op.
cit., p. 299 a 321.
3
Ver a “nota de entusiasmo” no capítulo 3 deste trabalho
4
O próprio Ricoeur, como se viu, foi um incansável discípulo dos textos de outros autores, construindo sua
obra a partir da discussão com eles; nem por isto, como lembram Jeanne Marie Gagnebin e François Dosse,
a originalidade de sua obra pode ser contestada. Originalidades evidentemente à parte, e feitas as devidas
ressalvas, devo confessar que me espelho, ou me inspiro, em grande parte, neste modo que tem Ricoeur de
trabalhar.
254

Tarefa semelhante à da tradução, trabalho que implica em transformação na qual


algo se perde mas também algo se cria: tarefa na qual se mescla a uma ‘certa’ objetividade,
ou melhor dizendo, a um respeito pelo autor, a liberdade subjetiva do leitor, que sempre
traz consigo uma dose de traição: a leitura nunca é inocente, traz consigo uma perspectiva,
um ponto de vista: vem responder a determinadas interrogações ou questões colocadas pelo
autor, e que, através dele, se apresentam ao leitor.
Um olhar retrospectivo acerca do que aqui foi escrito me leva a considerar este
trabalho como uma espécie de tradução5: uma tentativa de traduzir uma pequena parte das
reflexões de Ricoeur e Lévinas. Tradução que não se pretende ‘objetiva’; bem ao contrário,
se quer ‘entusiasmada’. Entusiasmo que impediu que eu pudesse (ainda que quisesse, ou
que achasse relevante!), tomar posição. Neste sentido, faço minhas as palavras de Ricoeur,
que, ao confrontar Husserl e Lévinas, adverte os leitores: “As duas abordagens possuem
sua legitimidade e nosso próprio discurso não exige de modo algum que decidamos em
favor de alguma delas: o que nos importa aqui é a seriedade (...) dos dois parceiros ”
(PC168)
O próprio Ricoeur, assim, me confirma em minha ‘indecibilidade’6, doravante, ao
menos, a meu ver, já justificada. Resta que permanece um problema: o de colocar frente a
frente duas filosofias que, ao mesmo tempo, parecem poder dialogar e também não
dialogar.
Não dialogar, pois se poderia dizer que cada um dos autores em questão se situa a
partir de um ponto de vista tão distante do outro que não há palavra possível que atravesse
o abismo (para usar, outra vez, a bela metáfora de Blanchot!): enquanto Ricoeur fala a
partir de uma perspectiva ‘meramente’ humana, isto é, tenta pensar o mundo dos homens,
Lévinas pensa a partir de outra instância: a do para além do homem, isto é, a
transcendência ou, se preferirmos, Deus...7

5
Consideração que, não fosse Talitha Ferraz de Souza, teria passado despercebida. A ela, novamente, muito
obrigada...
6
‘Indecidibilidade’ que, como bem apontou Marcelo Perine no decorrer do exame de qualificação, talvez não
estivesse ainda explicitada.
7
Efetivamente, como observou Hélio Salles Gentil, a distância entre Ricoeur e Lévinas pareceria, por vezes,
incomensurável!
255

No entanto, embora muitas vezes o ponto de partida – ou de chegada? – de cada um


possa parecer se situar em âmbitos incomensuráveis, o fato de que tenham efetivamente
dialogado desmente a impossibilidade de estabelecer pontes entre os dois autores.
O que, para efeitos deste trabalho, constitui, ao mesmo tempo, um alívio e um
problema. Alívio, porque, afinal, é o que vínhamos tentando fazer desde o início. Problema,
porque o diálogo honesto e elegante ao qual Ricoeur e Lévinas não se furtaram, parece
sugerir que, conscientes de suas proximidades e distâncias, eles já disseram tudo o que se
poderia dizer. Bastaria se debruçar nos documentos que registram o diálogo entre Ricoeur e
Lévinas acerca de suas próprias obras (entre outros, o livro de Ricoeur Outramente, a já
mencionada troca de cartas e, principalmente, o debate radiofônico) para perceber que tudo
está dito aí, que as questões já estão decididas pelos próprios autores.8
Ricoeur e Lévinas disseram tudo – ou ‘quase’ tudo – do que tinham a dizer,
inclusive acerca do que pensavam da obra um do outro. Se, então, tudo já está dito, o que
fazer? Silenciar?
É neste “quase”, nesta porta entreaberta que é possível introduzir uma nova voz, que
rompe o silêncio. Pois se tudo está dito, resta ainda a tarefa de re-dizer. Trata-se de um re-
dizer que, se no caso dos “grandes” filósofos, é recriar; no presente caso, significa apenas
repetir, ou na melhor das hipóteses, traduzir, ainda que com entusiasmo, sem “muito” trair.
Mas repetir, ou traduzir, não seria também re-dizer? E re-dizer não seria a tarefa da
filosofia? Convido o leitor a ouvir, mais uma vez, Lévinas:

“A filosofia suscita assim um drama entre filósofos e um movimento


intersubjetivo (...). Empiricamente, ele se ordena como história da filosofia na
qual entram sempre novos interlocutores que sempre têm algo a redizer, mas na
qual os antigos retomam a palavra para responder-lhes nas interpretações que
eles suscitam e, na qual, no entanto, apesar desta falta de ‘segurança em marcha’
– ou por causa dela – a ninguém é permitido um relaxamento de atenção, nem
uma falta de rigor” (AE39)9

8
Problema levantado por Marcelo Perine, e cuja amplitude só vim a perceber mais tarde...
9
“La philosophie suscite ainsi um drame entre philosophes et un mouvement intersubjectif (…).
Empiriquement, il s´ordonne comme histoire de la philosophie où entrent toujours de nouveaux
interlocuteurs qui ont à redire, mais où les anciens reprennent la parole pour y répondre dans les
interpretations qu´ils suscitent, et où, cependant, malgré ce manque de ‘sûreté en marche’ – ou à cause de
lui – à personne n´est permis ni un relâchement d´attention, ni un manqué de rigueur.” Avoir à redire
significa literalmente: “ter algo a redizer”, e pode também ser entendido como: “criticar”.
256

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