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O Conceito de Filosofia Cristã e a

Teologia Como Ciência Enquanto


Distinta da Fé e da Mística

Autor: Sávio Laet de Barros Campos.


Bacharel-Licenciado em Filosofia Pela
Universidade Federal de Mato Grosso.

Introdução

A tese que esposamos, desde já a colocamos. Segundo cremos, todo


pensamento cristão, desde as origens até os fins do medievo, gravita em torno de
um mesmo eixo: o problema da concordância e das relações entre fé e razão.
Este problema, nos primeiros padres, se apresenta com uma cômoda solução,
que se situa numa ingênua – mas compreensível para os primeiros tempos –
confusão entre filosofia e religião.
Este estágio é superado com a distinção, delineada por Orígenes, mas
consolidada por Agostinho, entre a fé pura e a reflexão sobre a fé, a teologia.
Desde então, a questão de se estabelecer um acordo sólido entre fé e razão,
passa a ser o problema das relações, não mais entre a fé religiosa e a filosofia,
mas sim entre a filosofia e a teologia. Até o século XIII, persiste uma implícita
competição, oriunda de uma confusão entre os dois domínios, entre filosofia e
teologia. Por vezes, é a filosofia que prevalece à teologia, e temos o nascimento
das chamadas teologias dialéticas, que consistem, por sua vez, senão
racionalização do dogma, ao menos no evocar-lhe “razões necessárias”. Outras
vezes, porém, é a teologia que parece prevalecer sobre a filosofia, e verificamos
com que persistência certos autores chegam a defender uma fé simples, despida
de toda especulação racional, na qual a razão não ocupa quase lugar algum.
No bojo de todas estas questões, encontra-se, segundo nos parece, um
problema fundamental: a falta de uma determinação positiva, que não poderia se
dar, senão após logo período de discernimento, entre o que é objeto de fé e o que
é objeto da razão. Tal distinção consolida-se, a nosso ver, na sua forma mais
adequada e satisfatória, pela obra de dois grandes gênios, ambos nascidos no
século XIII: Alberto de Colônia e Tomás de Aquino. E tal solução definitiva, que
se delineia em Alberto, e se concretiza, sistematizando-se em Tomás, consiste no
nascimento da teologia enquanto ciência e na sua fundamentação. Somente com
a fundação da ciência teológica, por uma intuição genial de Santo Tomás de
Aquino, deixa-se de se deslocar o problema das relações e da concordância
entre fé e razão para outros pólos, para finalmente resolvê-lo, estabelecendo-se
decisivamente o que é objeto de fé e o que é objeto da razão. Neste ínterim,
nasce a forma mais acabada daquilo que podemos chamar, legitimamente, de
uma filosofia cristã. Distinguidas bem as duas ordens pôde-se, enfim,
identificando os abusos e coibindo-os, ao mesmo tempo permitir que as duas
ciências, sem se comprometerem, pudessem, desde então, se relacionar de forma
que uma colaborasse com a outra, sem que uma interviesse na outra de forma
positiva, ou seja, sem que uma intrometer-se nos métodos específicos da outra,
impedindo assim os procedimentos que são próprios a cada qual.
Entendemos, porém, que esta solução não perdura, e logo cai em
descrédito por “mérito” dos “averroístas” e nominalistas dos XIV. Contudo, fora
dela, quer dizer, fora da linha descoberta por Alberto e Tomás, existem apenas
dois abismos, a saber, o fideísmo de um lado e o racionalismo de outro.
Procederemos da seguinte forma. Antes de tudo, faremos um breve
prolegômeno metafísico-teológico. Nesta empresa, envidaremos esforços para
estabelecer os pressupostos ontológicos que condicionam, dentro da perspectiva
cristã-católica, a própria possibilidade de uma filosofia racional, enquanto
disciplina autônoma do exercício do pensamento. Como nos é vedado, por falta
de espaço hábil, uma síntese total, ficaremos circunscrito aqui, ao pensamento
de Santo Tomás, de resto emblemático e basilar para todo o pensamento cristão
posterior.
Após este intróito, a nossa indústria consistirá em problematizar, a
questão capital das condições de uma filosofia cristã enquanto tal, porque, a
nosso ver, a grande recompensa da delimitação imposta pela distinção albertino-
tomista, foi justamente o nascimento da possibilidade de uma genuína filosofia
cristã.
Doravante, após a colocação deste problema, faremos um interregno,
para empreendermos um esboço histórico da questão. Esta pequena sinopse
histórica terá o intuito de demonstrar, como ao longo dos séculos cristãos,
sempre estiveram em voga as questões relacionadas entre fé e razão. Ademais,
deveras, procuraremos delinear, ainda que mui sucintamente, o parecer de
alguns dos mais célebres pensadores cristãos, desde os ensinamentos basilares
de São Paulo, até a postura mais agressiva e radical de um Tertuliano, ou a
posição mais assaz conciliadora de Justino. Com Agostinho, veremos enfim,
nascer a teologia enquanto distinta da fé, mas sem ainda possuir uma delimitação
precisa do seu alcance.
Alcançaremos o século XIII, ao qual dedicaremos dois capítulos. O
primeiro tratará da famosa distinção entre teologia e filosofia, esboçada por
Alberto e completada e aperfeiçoada por Tomás. Neste capítulo tentaremos
mostrar como ambos procuram distinguir, nitidamente, entre o que é de fé e o
que é de razão. E somente a partir de tal distinção, se configura então os dois
domínios, isto é, o da esfera filosófica e o do escopo teológico.
Depois faremos novo interstício. Pois, segundo postulamos, tal
distinção entre os dois domínios, não poderia se efetivar sem a devida
qualificação da teologia como ciência. Com efeito, todas as “invasões” da
filosofia na teologia e vice-versa, procediam de um desejo que sempre se vira
frustrado, a saber, tornar a teologia uma ciência qualificada. Santo Tomás,
dando cientificidade à teologia e fazendo com que esta cientificidade não
consistisse na demonstração dos mistérios, realiza a aspiração de milênios.
Trataremos, pois, sinteticamente, da teologia como ciência, e de alguns de seus
traços mais característicos.
Uma vez estabelecido a teologia como ciência, passaremos, pois,
analisar, sempre sem pretensão de sermos exaustivos, a mútua colaboração entre
filosofia e teologia. De fato, uma vez distinguidas, elas descobrem certos pontos
em comum e verificam que, tanto uma como outra podem se ajudar.
Faremos um prospecto de como e em que termos se estabelecem este
comércio harmonioso de mútua preservação entre ambas. Aqui já começaremos
a delinear os fundamentos daquilo que, nos tempos hodiernos, será chamado de
uma filosofia-cristã autêntica e legítima.
Entretanto, faltar-nos-á ainda rever e reconstruir alguns aspectos da
crítica que se sucedeu à síntese albertino-tomista, sobretudo por parte dos
nominalistas e principalmente dos renascentistas e reformadores.
A partir destas notas históricas dada, passaremos, desde então, a
propor as diversas soluções para a questão de uma filosofia-cristã, a partir da
concepção dos autores coetâneos ao nosso tempo. Sejam os racionalistas puros,
que continuaram a apurar e aperfeiçoar a invectiva critica à uma filosofia cristã,
sejam os agostinianos, que propugnaram a mesma absorção da filosofia pela
teologia, seja, ainda, certa escola ligada ao tomismo tradicional, que, a despeito
de permanecerem cristãos, propunham uma filosofia pura, isto é, que não
sofresse nenhuma influência da revelação. Por fim, declinaremos os mestres e
suas respectivas posições, com os quais concordamos e que nos propõe a
existência de uma filosofia cristã, com base em Santo Tomás, na qual a
revelação não deixa de exercer uma influência notável, já mostrando certas
verdades naturais que podem ser pesquisadas pela filosofia, já intervindo para
assinalar os eventuais erros do filósofo, mas sem, contudo, jamais interromper
ou intrometer-se, de forma intrínseca, no processo de elaboração desta mesma
filosofia.
1) O Conceito de Natureza
Corrompida e a Possibilidade de
uma Filosofia e Ética Filosófica
em Tomás de Aquino

1.1) A Quebra de um Preconceito

Otimismo cristão é o nome dado por Étienne Gilson, a um capítulo


absolutamente clássico, da sua obra mais famosa: O Espírito da Filosofia
Medieval.
Nele, Gilson, por meio de uma aguda observação dos fatos, parece
mesmo desmascarar um preconceito que, por séculos, havia estorvado, de fato, o
renascimento do pensamento cristão no âmbito laico, a saber, o de um suposto
pessimismo embutido na antropologia cristã. Ele transpõe a barreira
trabalhando, precisamente, o conceito de natureza corrompida nos pensadores
cristãos, em especial, em Tomás de Aquino.
Desta feita, a expressão natureza corrompida – na sua literalidade – é
uma contradição em termos. De fato, não há como uma natureza – aqui
entendida como os princípios constitutivos de um ser – ser corrompida, sem
deixar, ipso facto, de ser a natureza de tal ser. Sem embargo, esta expressão –
natureza corrompida – se não for entendida como se deve, equivaleria à absurda
proposição de que uma coisa pode deixar de ser o que é, e, não obstante,
continuar sendo o que era. Vejamos como Gilson enuncia o estado da questão:

A partir de são Tomás de Aquino, no entanto, nada é mais claro,


e só mesmo quem não leu nenhum artigo que a Suma consagra a
esse problema pode entender no sentido simplista, que tanta gente
admite, a expressão “natureza corrompida”. De fato, tomada
literalmente, essa expressão se apresenta como uma contradição
em termos, e basta acompanhar as análises de são Tomás para
verem que sentido totalmente relativo convém entendê-la com
ele.1

1.2) Os Bens da Natureza Humana

Desta sorte, quando dizemos que o pecado original corrompeu o bem


natural, tal afirmação deve vir sempre acompanhada por um esclarecimento
adicional da maior importância: com efeito, qual foi este bem que o pecado
original teria corrompido?

Quando nos perguntamos que efeitos o pecado original produziu


sobre o bem da natureza humana, convém definir primeiramente
o que é esse bem.2

Agora bem, falando da natureza humana, pode-se nela considerar três


bens: o bem intrínseco, que deriva do próprio fato de ser uma natureza, vale
dizer, de ser; e no caso específico do homem, de ser um animal racional; o bem
enquanto propensão natural para o bem, que decorre da própria necessidade de
um ser se conservar no ser; de fato, na propensão para o bem em geral, inclui-se
indeclinavelmente, a propensão ao bem próprio; e, finalmente, o bem da justiça
natural. Ora bem, este último lhe fora concedido, por seu lado, no momento da
criação, não como parte da natureza enquanto tal, e sim como uma virtude
excedente, um acréscimo, uma graça dada por Deus:

Efetivamente, a expressão pode designar três coisas diferentes.


Em primeiro lugar, a própria natureza humana, tal como resulta
dos seus princípios constitutivos e que é definida como a de um

1
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 170.
2
Idem. Op. Cit.
ser vivente dotado de razão. Em segundo lugar, a propensão
natural que tem o homem para o bem e sem a qual, aliás, não
poderia subsistir, pois o bem em geral inclui seu bem próprio. Em
terceiro lugar, também pode se chamar de bem da natureza
humana, o dom da justiça original, que lhe foi conferido por Deus
quando da criação e que, por conseguinte, o homem recebeu
como uma graça.3

Portanto, na concepção de Tomás, o dom da justiça original – virtude


excedente – foi acrescentado à nossa condição natural, quando da sua criação
por Deus, para que, assim como o corpo estivesse unido à alma, assim a alma
permanecesse unida a Deus. A este dom, que nos foi concedido em benefício
próprio, cabia fazer então com que as nossas potências sensitivas se
mantivessem, doravante, submetidas às faculdades racionais e estas, por sua vez,
permanecessem sob a direção de Deus. A respeito da justiça original, diz Santo
Tomás:

Por conseguinte, isso acontecia devido à interferência de uma


força superior, isto é, Deus, o Qual, como juntou ao corpo a alma
racional, que transcende toda proporção do corpo e das forças
corpóreas às quais pertencem as forças sensíveis, assim também
concedeu à alma racional a força que pudesse conter o corpo
acima de sua condição corpórea, e as forças sensíveis exigidas
pela alma racional. Para que a razão mantivesse submetida a si,
firmemente, as forças interiores, também ela deveria ficar
firmemente submetida ao domínio de Deus, de Quem recebia a
virtude excedente à sua condição natural, de que acima falamos.4

3
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 170.
4
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, II, CLXXXVI, 1 e 2
1.3) A Repercussão do Pecado Original na Natureza Humana

Destarte, é por isso – e somente por isso – ou seja, por não fazer parte
da natureza humana enquanto tal, que se pode dizer, sem contradição, que este
bem – vale lembrar, o da justiça original – foi totalmente corrompido pelo
pecado original.5
De sorte que, conquanto o homem tenha perdido o dom da justiça
original, nele permaneceu, não obstante esta perda, íntegra e sem prejuízo – ao
menos no plano ontológico – a natureza humana enquanto tal. Com efeito, assim
se expressa o medievalista francês, no que toca ao dom da justiça original
concedido à natureza humana:

Entendido nesse último sentido, o bem da natureza não faz parte


da natureza: ele se acrescenta a ela, e é por isso que o pecado
original suprimiu-o totalmente.6

Quanto ao segundo bem, quero dizer, a propensão para o bem, deve-se


dizer que ele foi apenas diminuído.7 Na verdade, nem poderia ser diferente.
Porquanto, é ele inclusive, que subsistindo ainda na condição em que nos
encontramos, o que nos permite adquirir – não sem o auxílio da graça – todas
aquelas virtudes, que a supressão total da justiça original nos fez perder.8 Esta
propensão natural, como diz o próprio Tomás, permanece como uma potência,
que estando a graça ausente – como nos condenados – não pode ser levada a
ato, ao menos plenamente:

5
Sobre o terceiro bem, isto é, o dom da justiça original, diz explicitamente o próprio Santo
Tomás: Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 85, 1, C: “O terceiro, ao contrário, foi
totalmente tirado pelo pecado do primeiro pai.”
6
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 170 e 171.
7
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 85, 1, C: “Como foi dito, o bem da natureza que
diminui pelo pecado é a inclinação natural à virtude.”
8
Étienne Gilson. Op. Cit. p. 171: “No entanto, essa propensão subsiste, inclusive, é ela que
torna possível a aquisição de todas as virtudes.”
Deve-se dizer que mesmo entre os condenados permanece uma
inclinação para à virtude. (...) Mas, se esta inclinação não passa
ao ato, isto provém de que, por um desígnio da justiça divina, a
graça está ausente. Assim, mesmo no cego, permanece na raiz da
natureza uma aptidão para ver, enquanto é um animal que
naturalmente tem a vista. Mas, a aptidão não passa ao ato porque
falta a causa que poderia levá-lo, reconstituindo o órgão que é
requerido para ver.9

Agora bem, uma pergunta – que também pode ser formulada a modo
de objeção – se impõe. Sem embargo, como podemos afirmar que a natureza
racional não foi em nada afetada, se se acaba de assegurar que a propensão
natural para o bem, foi de alguma forma diminuída? Com efeito, a propensão
natural para o bem, tem a sua raiz na natureza racional do homem. O assunto é
delicado e complexo, mas Tomás não se furta em tentar respondê-lo.
É mister ter presente, que na própria inclinação para a virtude, deve-se
considerar duas coisas. De um lado a sua raiz, de outro o seu termo. Quanto à
sua raiz, é preciso dizer, que de fato esta inclinação nos remete, exatamente, à
natureza racional do homem como a seu fundamento último. Mas de outro lado,
esta inclinação também está ligada, precisamente, à tendência para virtude – a
ação virtuosa propriamente dita – que é justamente o seu fim último. Por
conseguinte, a “diminuição” desta inclinação para a virtude, pode ser concebida
tanto como uma diminuição na raiz quanto como uma diminuição no termo:

A inclinação predita concebe-se como um meio entre duas


coisas: ela tem um fundamento, uma raiz, na natureza racional, e
tende para o bem da virtude como a um termo e a um fim. Por
conseguinte, a diminuição pode se conceber de duas maneiras, do
lado da raiz e do lado do termo.10

9
Idem. Ibidem. I-II, 85, 2, ad 3.
10
Idem. Ibidem. I-II, 85, 2, C.
Ora, o pecado não causou – afirma Tomás – diminuição alguma na
natureza racional do homem. Destarte, a raiz desta propensão natural que o
homem tem para a virtude, não foi em nada afetada. No entanto, o pecado
enfraqueceu o concurso desta inclinação no que toca ao encaminhamento para o
seu fim, que é o bem da virtude. Logo, se deve afirmar que a diminuição da
propensão natural do homem para o bem, se deu – não em sua raiz racional –
mas na eficácia da consecução do seu fim.

Do lado da raiz, o pecado não produz nenhuma diminuição pois


que ele não diminui a própria natureza, como foi dito. Mas do
lado termo, há uma diminuição enquanto se põe um impedimento
para chegar ao termo.11

De fato, segundo Tomás, se o pecado original houvesse diminuído em


sua raiz, a inclinação natural do homem para o bem, o homem então teria
perdido parte de sua natureza racional, que, posteriormente, corrompendo-se
com a prática dos pecados atuais, iria desaparecer totalmente: “Se houvesse
diminuição pela raiz, deveria alguma vez desaparecer totalmente, tendo
desaparecido a natureza racional.”12
No entanto, como o pecado só diminuiu a eficácia desta tendência do
homem para o bem, esta mesma tendência permanecerá sempre de maneira
positiva no homem, porque sempre estará preservada em sua raiz, que é a
natureza racional: “Entretanto, a inclinação não pode desaparecer
completamente, pois sempre fica a sua raiz.”13
Com outras palavras, se o pecado original tivesse corrompido a
natureza racional, o homem, entendido como ser racional – se quiséssemos falar
então com máxima exação – nem existiria mais, visto que já não seria mais
capaz, nem de pecado, nem de virtude:

11
Idem. Ibidem.
12
Idem. Ibidem. I-II, 85, 1, C
13
Idem. Ibidem.
Esta inclinação (para o bem) convém ao homem pelo fato de ser
ele racional. É isso que lhe permite agir segundo a razão, e isso é
agir segundo a virtude. Ora, o pecado não pode tirar
completamente do homem que seja racional, porque já não seria
capaz de pecado.14

Quanto ao primeiro bem, o bem da natureza racional enquanto tal –


com as faculdades (razão, vontade) que lhe são próprias – não foi, nem
suprimido, nem diminuído, nem de maneira alguma subtraído pelo pecado
original:

O bem da natureza pode significar três coisas. Primeiro, os


princípios constitutivos da natureza com as propriedades que daí
decorrem, como as potências da alma, e outras semelhantes. (...)
Assim, destes bens da natureza, o primeiro não é nem tirado e
nem diminuído pelo pecado.15

De fato, afirmar o contrário, diz Gilson, seria o mesmo que dizer que o
pecado fez o homem deixar de ser homem mesmo sendo homem, o que é um
absurdo: “Supor o contrário seria admitir que o homem poderia continuar sendo
homem deixando de ser homem.”16
Tanto mais é assim, que no tratado da graça, logo no primeiro artigo
da primeira questão, ao se perguntar se o homem precisaria do auxílio da
mesma graça para conhecer a verdade, Tomás responde que não. De modo que
uma nova iluminação sobrenatural – em princípio – só se faria necessária se se
tratasse de conhecer àquelas verdades que ultrapassam a ordem natural da
razão. Daí que, para as demais verdades – isto é, às de ordem natural – basta a
luz da razão, concedida uma vez por todas por Deus na criação, para que o

14
Idem. Ibidem
15
Idem. Ibidem. I-II, 85, 1, C; Étienne Gilson. Ibidem. p. 171: “Assim, o pecado não poderia
acrescentar nada à natureza humana, nem nada lhe retirar.”
16
Idem. Ibidem. p. 171.
homem as conheça. Donde a razão – mesmo após o pecado de origem –
encontra-se, pois, preservada em sua eficácia fundante:

De tudo isso é preciso dizer que para o conhecimento de uma


verdade, de qualquer ordem que seja, alguém precisa do auxílio
divino para que o intelecto seja movido por Deus ao seu ato. Mas,
uma nova iluminação, acrescentada à luz natural do intelecto não
é requerida para conhecer todas as espécies de verdades, mas
somente algumas verdades que ultrapassam a ordem do
conhecimento natural.17

1.3) Alguns Corolários da Questão

1.3.1) A Possibilidade de uma Filosofia Autônoma

Referindo-se ao capítulo XXIV, do livro XXII, do De Civitas Dei de


Agostinho, Leonel Franca afirma que, para o Doutor de Hipona, a natureza
humana, mesmo após o pecado, continua sendo tão bela e apreciável, que não
repugnaria a razão, conceber tê-la Deus feito no estado no qual ela se encontra
após a queda:

Apesar de decaída, é ainda tão bela a natureza humana, que no


dizer de S. Agostinho, não repugna, a houvesse Deus criado no
estado em que ela se achava depois da culpa.18

De forma que, a natureza racional, não foi em nada corrompida ou


sequer diminuída pelo pecado original. Cumpre dizer então, que mesmo sem a
graça, a princípio, o homem pode conhecer as verdades de ordem natural.
De maneira que nesta “antropologia otimista”, ganha todo o sentido –
como corolário espontâneo de uma natureza que se encontra ilibada em sua

17
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 109, 1, C
18
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 192.
essência – a existência de uma filosofia autêntica e autônoma, obra maior de
uma racionalidade ilesa em seus princípios constitutivos: “Nesta concepção de
homem, a existência de uma filosofia autêntica e autônoma é um corolário
espontâneo.”19
Importa concluir, por seu lado, que no catolicismo, a filosofia tem
salvaguardada e justificada, justamente toda a sua competência e independência:

Numa civilização cristã a filosofia tem, pois, os seus foros de


cidadania definitivamente assegurados. É ponto líquido sobre o
qual já não pode haver discussão.20

No caso específico de Tomás, torna-se necessário acrescentar que,


embora ele tenha tido a consciência de que a filosofia é uma sabedoria que pode
existir por si, não obstante isso, na sua obra, a filosofia obedecerá sempre –
mesmo se mantendo autônoma nos seus princípios constitutivos e demonstrativos
– a uma ordem teológica. Com efeito, assim será mesmo a fé, que então irá reger
– ainda que tão-somente extrinsecamente – a razão, até para que esta possa
caminhar segura, assinalando e apontando, por exemplo, quando as forças
inferiores das paixões, estão subjugando ou intervindo no próprio método
racional21:

Ele (Tomás) sabe pela fé para que termo se dirige, contudo só


progride graças aos recursos da razão. Portanto, nessa obra

19
Idem. Ibidem. p. 192.
20
Idem. Ibidem. p. 194.
21
Gilson parece aludir a esta intervenção indicativa da fé em filosofia, quando diz: Etienne
Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 657: “Em semelhante caso (intervenção das verdades
de fé na especulação filosófica), a revelação só intervém para assinalar o erro, mas não é em seu
nome, e sim em nome unicamente da razão que o estabelecemos.” (O parêntese é nosso). Em
outro lugar: Idem. Ibidem. p. 656: “Cabe à razão devidamente advertida criticar em seguida a si
mesma e encontrar o ponto em que se produziu o erro.”
filosófica, a influência confessa da teologia é manifesta, e é a
teologia mesma que fornecerá o plano.22

Em outras palavras, será a luz da fé – como que fazendo, de certo


modo, o papel regulador que o dom da justiça original fizera antes da queda – o
que dará autonomia à razão. Com outras palavras ainda, a filosofia só será
plenamente autônoma e perfeita em seu exercício próprio – conhecendo
integralmente as verdades naturais – contanto aceite depender e deixar-se
controlar, conquanto ainda que extrinsecamente, pela fé.

1.3.2) A Possibilidade de uma Ética Estritamente Filosófica

No que tange à possibilidade de uma ética estritamente filosófica e


autônoma da graça, a coisa se torna mais complexa.23 Ora, a ética desce aos
particulares24, onde o livre-arbítrio, de fato, se encontra enfraquecido em razão
do pecado – não somente do original – mas dos atuais.
Portanto, aqui é muito pertinente agregar a seguinte observação, a
saber, a de que a natureza humana pode ser considerada em duas condições
diversas: na sua completude e inteireza próprias, ou seja, conforme Deus a criou
e tal como existiu em nossos primeiros pais antes da queda; e na condição atual,
22
Idem. Ibidem. p. 657. (O parêntese é nosso).
23
Desde já queremos fazer notar, que não negamos que Tomás tenha previsto a possibilidade,
ainda que unicamente teórica, de uma ética estritamente filosófica. Ajunte-se a isso uma outra
observação de primeira grandeza que cabe fazer aqui: o predicado “estritamente”, quer além
do mais deixar claro, que não se deve pensar, por exemplo, que numa ética de cunho teológico-
cristão, estejam ausentes os grandes conceitos e pressupostos da moral natural. Entretanto, a
ética teológica continuará sendo formalmente distinta da ética filosófica, porque não deverá
prescindir – como, no entanto, deve fazer a ética filosófica, em virtude de sua própria natureza
– dos dados recolhidos da Revelação cristã. Em uma palavra, a ética teológica é uma ética que
se funda na Revelação.
24
Jacques Maritain. Elementos de Filosofia I: Introdução Geral à Filosofia. p. 169:
“Todavia, sendo a Ética uma ciência prática, não deve ficar só nestas considerações universais,
deve descer até a determinação mais particular dos atos humanos e de suas regras (...)”.
onde certas faculdades, sobretudo aquelas que se acham sobre a ação direta do
livre-arbítrio – embora se encontrem preservadas em sua raiz ontológica – estão,
no entanto, débeis na consecução dos seus fins:

A natureza humana pode ser considerada em dois estados


diferentes: em sua integridade, tal como existiu em nosso
primeiro pai antes do pecado; ou no estado de corrupção no qual
estamos depois do pecado original.25

No estado em que foi criada, a nossa natureza possuía todas as


condições para querer e realizar o bem proporcional à sua natureza. Entretanto,
para aquele bem que excede a sua natureza, ela necessitava da graça. Na sua
condição atual – após o pecado – ela se acha incapaz de realizar sem a graça –
ainda que possa querer – até mesmo aquele bem que lhe é proporcional à
natureza:

No estado de integridade, com respeito à capacidade da potência


operativa, o homem podia com suas forças naturais, querer e
fazer o bem proporcionado à sua natureza, como é o bem da
virtude adquirida, mas não o bem da virtude infusa. No estado de
corrupção, o homem falha naquilo que lhe é possível pela sua
natureza, a tal ponto que ele não pode mais por suas forças
naturais realizar totalmente o bem proporcionado à sua
natureza.26

Nesta ordem, Frei Tomás acaba por concluir que: se no estado de


integridade, antes do pecado, o homem precisava da graça somente para querer
e realizar o bem sobrenatural, agora – na condição na qual se encontra após o
pecado – ele precisa da graça não somente para querer e praticar o bem

25
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, 109, 2, C.
26
Idem. Ibidem.
sobrenatural, mas também para realizar o próprio bem proporcional à sua
natureza:

Assim, no estado de integridade, o homem tinha necessidade de


uma força acrescentada gratuitamente àquela sua natureza
unicamente para realizar e querer o bem sobrenatural. No estado
de corrupção, tem necessidade disso para duas coisas: primeiro,
para que seja curado, e depois, para realizar o bem da ordem
sobrenatural, isto é, o bem meritório. Finalmente, nos dois casos,
é preciso sempre uma ajuda divina que dá a moção para agir
bem.27

Destarte, podemos notar com maior clareza aqui, que no estado atual,
ou seja, depois da queda, uma ética estritamente filosófica não será suficiente.
De fato, toda ética estritamente filosófica precisará, necessariamente, prescindir
da graça, verdade alcançável somente mediante a Revelação cristã.
Ora, o homem – na disciplina do seu comportamento, que é o objeto
próprio da reflexão ética – na sua condição atual, não pode prescindir da graça
– conforme vimos – sequer para fazer o bem proporcional à sua natureza.28
Logo, não vemos nenhuma razão para afirmarmos a suficiência, em Tomás, de
uma ética estritamente filosófica.
Teoricamente, no entanto, supondo que não houvesse queda ou que
não houvesse pecado original, só então seria plausível pensarmos numa ética
estritamente filosófica. Acreditamos, entretanto, ser esta suposição um contra-
senso em Tomás, visto que ele foi um pensador cristão.
Entretanto, não ignoramos – e é bom que se diga para evitar qualquer
equívoco – que a Ética, até por sua própria natureza, não se destina a fazer com

27
Idem. Ibidem.
28
Com isso não queremos dizer, que o homem não seja capaz de virtudes sem a graça – o que
seria de um pessimismo mórbido – mas tão-somente que ele não é capaz de realizar
integralmente o bem – mesmo o proporcional à sua natureza – sem a graça!
que o homem aplique, em todos os particulares imediatos, as regras que ela
mesma dita.
Esta função cabe, antes, a virtude da prudência. É ela – a prudência –
no seu exercício, quem nos fará julgar, sempre e bem, o como devemos proceder
num caso específico, de acordo com os ditames da própria Ética. É a prudência,
portanto, e não a Ética propriamente dita, quem nos faz querer e executar, sem
desfalecer – mesmo ante as solicitações contrárias das circunstâncias e as
inclinações cegas das paixões – as regras estabelecidas pela mesma Ética:

Com efeito, ela (a Ética) dá as regras próximas aplicáveis aos


casos particulares, mas é incapaz de fazer com que as apliquemos
sempre, como deve ser, nos casos particulares, evitando as
dificuldades provenientes de nossas paixões e a complexidade
das circunstâncias materiais. (...) Para que o homem opere bem
na ordem do ‘agir’, a ciência moral deve ser acompanhada da
virtude da prudência que, se dela nos servimos, nos faz julgar
sempre e bem o ato a se cumprir, e querer, sem desfalecimento
aquilo que assim foi julgado de bom.29

Contudo – advertimos uma vez mais –a nosso ver, a Ética não pode
prescindir, no ato mesmo de sua reflexão sobre os costumes, do drama do
pecado e da necessidade da graça. É por isso, por conseguinte, que uma Ética
estritamente filosófica – que prescinda destes mesmos dados revelados – não
procede em Tomás.
Com efeito, como fundar uma ciência – como a Ética – que diz
respeito à prática, pautando-a no postulado de como haveria de se exercer os
atos humanos, caso não houvesse ocorrido o drama do pecado? O estudo da
ação humana na sua integridade, nunca poderá ignorar, com efeito,
determinados dados revelados: como o pecado, a Redenção, a Graça, etc.
Vejamos como e porque, Manuel Correia de Barros, talvez até de forma
excessivamente negativa, avalia a importância da moral para a filosofia:
29
Jacques Maritain. Elementos de Filosofia I: Introdução Geral à Filosofia. p. 167 e 168.
De toda a filosofia, a parte que menos interesse imediato pode
ter é precisamente a parte prática, a filosofia moral. A razão
deste fato paradoxal é simples. A filosofia, por definição, não
pode fundar-se nos dados revelados; a filosofia moral tem por
isso de ignorar fatos tão fundamentais como o pecado original, a
Lei divina positiva, a Redenção, a Graça, a visão de Deus face a
face prometida como fim e recompensa aos nossos esforços. Daí
resulta que, em todos os casos concretos, a nossa ação será ditada
pela moral revelada, pela moral cristã, que atende a estes factores
juntamente com os demais, e não pela moral filosófica; e, por
isso mesmo, que o interesse prático da moral filosófica é pouco
mais do que nulo. Essa moral só teria utilidade imediata no
Mundo que Deus podia ter criado, mas não quis criar, em que a
Natureza não fosse prolongada pela Graça.30

E não é tudo. Ademais, usávamos acima a expressão, “diz respeito à


prática”, para designar a própria ciência Ética. Ora, esta não é uma afirmação
gratuita. De fato, a Ética, enquanto visa conhecer – de forma demonstrativa e
necessária – os princípios determinantes que deveriam direcionar o agir
humano, é uma ciência, ou seja, um conhecimento certo.31
Agora bem, além de ser uma ciência, a Ética é ainda uma parte da
filosofia. De sorte, que sendo o objeto formal da filosofia o conhecimento da
totalidade das coisas em suas causas supremas, e sendo que a Ética é uma parte
da filosofia, então também ela deverá buscar assim investigar as regras do agir
humano em seus princípios supremos. Em uma palavra, a Ética buscará

30
Manuel Correia de Barros. Lições de Filosofia Tomista. Disponível
em:<http://www.microbookstudio.com/mcbarros.htm>. Acesso em: 21/02/2007. (Os itálicos são
nossos).
31
Idem. Ibidem. p. 98: “Note-se que a Ética, mesmo visando alcançar outro bem, além do único
bem de conhecer, continua a ser uma ciência verdadeira e propriamente dita, isto é, consiste
somente em conhecer, tendo como regra de verdade aquilo que é, e procede de modo
demonstrativo, resolvendo conclusões em seus princípios.” (O itálico é nosso).
determinar a moralidade dos atos humanos, a partir do conhecimento do fim
último – e bem absoluto – do homem:

E se uma ciência prática quiser buscar a ação do homem pelos


princípios supremos, terá como fim o que é princípio supremo na
ordem prática, a saber: o BEM ABSOLUTO DO HOMEM (Bem
absoluto, naturalmente cognoscível: será A FILOSOFIA
PRÁTICA chamada também de Moral ou Ética).32

Portanto, a Ética – como já vimos – visa, sem dúvida, discernir as


regras de conduta que – se praticadas – proporcionariam ao homem, à
consecução da sua Beatitude Natural.
Porém, o homem não é chamado somente a esta Beatitude Natural,
senão que em vista da eleição, é condicionado também a um fim sobrenatural,
qual seja, o conhecimento de Deus. Contudo, tal conhecimento, não é aquele
imperfeito proporcionado pela razão, mas sim o que consiste na visão mesma da
essência divina, que o beatifica e satisfaz plenamente. Por conseguinte, os atos
humanos devem ser dirigidos em última instância, não em vista desta felicidade
natural, mas sim consoante àquele fim sobrenatural, ao qual foi destinado por
Deus.
Ora, à ética filosófica, também neste sentido, não é exeqüível dar-lhe
todas as diretrizes para encontrar e alcançar este fim. Portanto, tal ética precisa,
necessariamente, ser completada e sobrelevada pela Revelação, sob pena de
ficar insuficiente e não poder ser mais a geratriz dos princípios determinantes
dos atos humanos, o que corresponderia, por seu turno, ao seu próprio

32
Idem. Ibidem. p. 97 e 98. Portanto, a Ética, que quanto ao seu fim – disciplinar o agir humano
– é chamada de Filosofia Prática, quando ao seu objeto formal – direcionar o agir humano – a
partir do conhecimento do Bem Supremo – enquanto este é naturalmente cognoscível ao homem
– continua sendo, pois, uma Filosofia Especulativa: Idem. Ibidem. nota 89: “Note-se que esta
divisão da Filosofia em especulativa e prática é tomada com relação ao fim e não ao próprio
objeto da ciência que, como tal, permanece sempre especulativa.”
aniquilamento, enquanto ciência que esmera proporcionar ao homem, uma
teleologia normativa do seu agir:

Por outro lado, a Ética só oferece regras da conduta humana na


ordem natural, e em relação ao Fim último do homem tal qual
seria se o homem tivesse por fim uma beatitude natural. Ora,
tendo de fato o homem, como fim último, um fim sobrenatural
(Deus possuído não pelo conhecimento imperfeito da razão
humana como tal, mas pela visão beatífica e deificante da
essência divina) e devendo os seus atos ser regrados em relação a
este fim sobrenatural e de maneira a conduzi-los a esse fim, a
Ética ou Moral filosófica é evidentemente insuficiente para
ensinar-lhe tudo o que deve saber para bem agir. Deve ser
completada e superelevada pelos ensinamentos da revelação.33

De resto, não somente pelo fato de ter que prescindir da graça – o que
aliás já bastaria para tornar uma ética que se pretenda estritamente filosófica,
inapta para estabelecer sozinha as normas do agir humano – posto que até de um
de um ponto de vista unicamente natural, conforme já o vimos, precisamos da
graça para agirmos sempre de forma comedida, senão que também e inclusive de
um ponto de vista teórico – porquanto não possa conjugar no seu discurso certas
verdades essencialmente reveladas, ao mesmo tempo em que estas se mostram
necessárias de ser acomodadas, numa ética que queira ordenar o homem ao seu
fim último sobrenatural – a Ética filosófica fica então – repetimos uma vez mais
– realmente impossibilitada de encaminhar o homem ao seu fim sobrenatural,
que na verdade é o verdadeiro e derradeiro fim último do homem. Em verdade,
fica assim estabelecido, que o tratado da ética, é o ponto de transição da
filosofia para a teologia tomásica.
Mas se tal transição não acontece, permanecemos somente num plano
meramente teórico, com uma ética que, embora se constitua enquanto ciência

33
Idem. Ibidem. p. 168
especulativa, não cumpre, pois, deveras a sua finalidade primeira, a saber, entrar
na concretude do ato humano.
Passemos agora a colocação do problema, de como consolidar a
noção de uma filosofia cristã.
2) A Colocação do Problema de uma
Filosofia Cristã

Advertimos que centralizaremos a nossa atenção, neste primeiro


momento, na questão de uma filosofia na Idade Média, para só depois
adentrarmos na concepção de uma filosofia cristã em geral.
Teria a Idade Média, além da arte, da poesia e da literatura que lhe
são próprias, também uma filosofia que lhe seja peculiar? Para responder a esta
pergunta, nasceu o mais importante estudo do século XX, sobre a história da
filosofia medieval: L’ Esprit de la Philosophie Médiévale, de Étienne Gilson.
No prefácio da supracitada obra, explica-nos o seu autor:

Convidado para a difícil tarefa de definir o espírito da filosofia


medieval, aceitei-a, por causa da opinião bastante difundida de
que, embora a Idade Média tenha uma literatura e uma arte, não
tem uma filosofia que lhe seja própria.34

Ao termo deste concurso, confessa Gilson, que não somente descobriu


que há uma genuína filosofia na Idade Média, mas que nela se encontra o ápice
do que se poderia chamar filosofia cristã: “Foi procurando defini-la em sua
essência específica que me vi levado a apresentá-la como a ‘filosofia cristã’ por
excelência.”35
Ao se colocar a filosofia medieval como o cume da filosofia cristã,
nasce mais um problema: existe uma filosofia cristã? Por trás, portanto, da
negação do postulado de que houve na Idade Média uma filosofia está - já o

34
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 1.
35
Idem. Ibidem.
vemos - uma outra questão, ainda mais sutil e complexa, mas da qual não
podemos nos furtar: pode haver uma filosofia cristã? Observa Gilson:

Mas, nesse ponto, a mesma dificuldade me aguardava em outro


plano, porque, se por um lado se negou a filosofia medieval como
fato, negou-se também a possibilidade de uma filosofia cristã
como idéia.36

Desta feita, para Gilson, o problema gravita em torno do eixo: existe a


possibilidade de haver uma filosofia que se apresente, ao mesmo tempo, como
filosofia e como cristã? Ora, se identificarmos que existe uma filosofia que se
possa dizer cristã, sem deixar de ser filosofia, o passo seguinte seria demonstrar
– não nos propormos senão a tentar responder à primeira questão neste artigo –
que os seus representantes mais eloqüentes se encontram, exatamente, na
filosofia medieval. Ao comentar o objeto da obra, coloca Gilson:

A única questão que se trata de examinar é saber se a noção de


filosofia cristã tem sentido e se a filosofia medieval, considerada
em seus representantes mais conceituados, não seria precisamente
sua expressão histórica mais adequada.37

1.1) Evitar os Equívocos

Portanto, não se trata aqui de saber se existiram cristãos filósofos, mas


sim se realmente houve, e, se pode haver, filósofos cristãos. Esta idéia – filosofia
cristã – é um mito ou corresponde a uma realidade? Se ela realmente tem
sentido, como defini-la?:

Reduzido à sua fórmula mais simples, consiste em perguntar se a


própria noção de filosofia cristã tem sentido e, subsidiariamente,
36
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 1. (O itálico é nosso).
37
Idem. Ibidem. p. 2
se corresponde a uma realidade. Naturalmente, trata-se não de
saber se houve cristãos filósofos, mas de saber se pode haver
filósofos cristãos.38

Portanto, ninguém há que negue que o judaísmo, o islamismo e o


cristianismo foram o berço de grandes nomes do pensamento ocidental. É ponto
pacífico que tanto na escola judaica, quanto na mulçumana, e, finalmente, na
cristã, existiram homens que tentaram, de forma mais ou menos feliz, fazer uma
síntese entre filosofia e religião. Não há problema em localizar boa parte destas
tentativas, num período que chamamos Escolástica. A questão reside, antes, em
saber o seguinte: a produção intelectual destas escolas merece o nome de
filosofia?:

(...) Tampouco se ignora que o judaísmo, o islamismo e o


cristianismo produziram então corpos de doutrinas em que a
filosofia se combinava de uma forma mais ou menos feliz com o
dogma religioso, designado pelo nome, aliás, muito vago, de
escolástica. A questão está precisamente em saber se essas
escolásticas sejam elas judaicas, muçulmanas ou mais
especialmente cristãs, merecem o nome de filosofias.39

Diante de tal interrogação, várias respostas foram propostas. Antes,


contudo, demos uma sinopse do aspecto histórico do problema.

38
Ibidem. Ibidem. p. 6
39
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 6 (O itálico é nosso).
3) Históricos do Problema

2.1) O Ensinamento Paulino

Como veremos mais adiante, em seus pormenores constitutivos, certos


pensadores cristãos chegaram a patentear que a religião cristã era a verdadeira
filosofia. Ora, por trás desta “pia” e “ingênua” afirmação, esconder-se-á, em
verdade, um profundo e tremendo perigo. Para que possamos entender, no
entanto, os riscos que tal identificação acarreta, será necessário tecer algumas
rápidas considerações sobre o pensamento daquele que foi o primeiro arauto da
teologia cristã, Paulo de Tarso.
De fato, para ele, o cristianismo não é - como poderia sugerir certa
interpretação de alguns textos dos primeiros pensadores cristãos - uma filosofia
que venha se impor como verdadeira diante das demais. Ser cristão, portanto,
não é trocar uma filosofia por outra. Antes, a religião cristã, tal como São Paulo
a apresenta em suas epístolas, é e permanece sendo essencialmente distinta de
toda e qualquer filosofia. É uma religião, dizíamos, e não uma nova filosofia o
que São Paulo propunha em suas pregações. É antes de tudo a uma pessoa – a de
Cristo crucificado – e não uma sabedoria, aos moldes daquela que os filósofos
buscavam, o que o Apóstolo dos Gentios defendia, como sendo a única capaz de
salvar o homem de suas misérias.
Por isso mesmo, quando o que se está em jogo é a salvação do homem,
qualquer filosofia – incluindo a grega - e mesmo qualquer religião – inclusive a
judaica - na perspectiva paulina, se mostram vã e inútil. Só Cristo crucificado
salva. Eis algumas passagens esclarecedoras sobre estes pontos da doutrina
paulina:

Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se


perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de
Deus. (...) Onde está o argumentador deste século? Deus não
tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o
mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na
sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação
salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos
andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo
crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios é
loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como
gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois ó que é
loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é fraqueza
de Deus é mais forte do que os homens.40

Ouçamos ainda o testemunho pessoal de Paulo:

Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor; minha


palavra e minha pregação nada tinham de persuasiva linguagem
da sabedoria, mas eram uma demonstração de Espírito e poder, a
fim de que a vossa fé não se baseie na sabedoria dos homens, mas
no poder de Deus.41

Não que a religião cristã fosse irracional; ela era, ao contrário – São
Paulo mesmo o diz – a mais alta forma de sabedoria. Mas era uma sabedoria de
outra ordem, isto é, formalmente diversa da sabedoria dos filósofos e dos judeus,
posto que fundada na fé e na Revelação de Deus, que se deu em Jesus
Crucificado, por meio do qual somos salvos e gratuitamente justificados. Por não
entendê-la, visto que sobrenatural, a sabedoria dos homens – tanto a grega como
a judaica – a declaravam como escândalo e loucura. Eles crucificaram a própria
Sabedoria, personificada, para Paulo, em Jesus de Nazaré. Ao contrário, aos
cristãos é dado conhecê-la, pelo Espírito:

40
I Co 1, 18, 20b- 25
41
I Co 2, 3-5
No entanto, é realmente de sabedoria que falamos entre os
perfeitos, sabedoria que não é deste mundo nem dos príncipes
deste mundo, voltados à destruição. Ensinamos a sabedoria de
Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de
antemão destinou para a nossa glória. Nenhum dos príncipes
deste mundo a conheceu, pois, se a tivessem conhecido, não
teriam crucificado o Senhor da Glória. (...) A nós, porém Deus o
revelou pelo Espírito.42

Agora bem, é preciso ainda notar, que nem sequer a virtude da legítima
sabedoria humana São Paulo queria eliminar. Ele mesmo não a desdenhava a
ponto de desprezá-la. Por ela poderíamos mesmo chegar ao conhecimento da
existência de Deus e das suas perfeições invisíveis. Além disso, pela razão, o
homem é capaz de testemunhar a presença da lei moral em seu coração. Esta
está, a todo momento, a lhe advertir a consciência e a lhe nortear o caminho para
o bem.
Destarte, São Paulo parece mesmo admitir, ainda que implicitamente,
que a sabedoria humana pode até mesmo se tornar uma forma de preparação
para o Evangelho. Com efeito, ele chega a afirmar que são indesculpáveis todos
aqueles que não se valeram das evidências, colhidas da própria sabedoria
humana, para adorarem a Deus. Eis as passagens mais significativas a este
respeito e que se tornarão célebres para todo o pensamento cristão posterior:

Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles,


pois lho revelou. Sua realidade invisível – seu eterno poder e sua
divindade – tornou-se inteligível, desde a criação do mundo,
através das criaturas, de sorte que não têm desculpas. Pois, tendo
conhecido a Deus, não o honraram como Deus nem lhe renderam
graças (...).43

42
I Co 2, 6-8 e 10a.
43
Rm 1, 19-21a
No que toca à lei moral, ainda diz:

Por isso és inescusável, ó homem, quem quer que sejas, que te


arvoras em juiz. (...) Quando então os gentios, não tendo lei,
fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo lei,
para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em
seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus
pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem (...).44

A doutrina paulina é, com meridiana clareza, colocada por Franca,


com prelúdio essencial de uma filosofia cristã. Arrazoa, nos seguintes termos, o
ilustre jesuíta:

Bem se vê o alcance destes ensinamentos paulinos. Sem o auxílio


da fé, a razão humana é capaz de elevar-se ao conhecimento de
Deus e da lei moral. Existem, portanto, uma teodicéia e uma
ética, como disciplinas puramente racionais, com todos os
postulados metafísicos, psicológicos e epistemológicos que esta
existência implica e a reflexão posterior irá gradativamente
explicitando. Nos seus termos essenciais está colocado o
problema da filosofia cristã.45

Portanto, o que São Paulo quer frisar com sua crítica as “vãs
filosofias” é que, do ponto de vista da salvação, nenhuma sabedoria humana
mostrou-se eficaz. Ao contrário, todas elas atestaram a incompetência do homem
para salvar-se a si mesmo.

44
Rm 2, 1 e 14-16a. A respeito deste mesmo conhecimento natural da moral que Paulo prevê,
declina Franca: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 182: “É a afirmação clara de
um conhecimento de ordem moral, anterior à revelação e dela independente.”
45
Idem. Ibidem.
2.2) Do Nascimento da Noção de “Filosofia Cristã” na Patrística

Agora alguns dados históricos a respeito do nascimento da noção de


“filosofia cristã”. Já Justino, no século II, em seu clássico Diálogo com Trifão,
ao ouvir a exortação do ancião que lhe que propunha a conversão à fé cristã,
persuadindo-o que só nela haveria de encontrar a verdadeira sabedoria –
sabedoria esta que tanto procurava e que com tanto afinco havia buscado em vão
nas diversas escolas filosóficas – exclamava, finalmente convencido que, de fato,
só na doutrina cristã encontrava-se a verdadeira sabedoria. E, se a filosofia é,
antes de tudo, amor à sabedoria, então, ao abraçar a religião cristã, havia, ipso
facto se tornado filósofo. Eis a conclusão do diálogo, carta magna do humanismo
cristão:

Ditas essas coisas e muitas outras, que não é o caso de referir


agora, o velho foi embora, depois de exortar-me a seguir os seus
conselhos. E eu não voltei a vê-lo mais. Contudo, senti
imediatamente que se acendia um fogo em minha alma e se
apoderava de mim o amor pelos profetas e por aqueles homens
amigos de Cristo. Refletindo comigo mesmo sobre os raciocínios
do ancião, cheguei à conclusão de que somente essa é a filosofia
segura e proveitosa. Desse modo, portanto, e por esses motivos,
sou filósofo, e desejaria que todos os homens, com o mesmo
empenho que eu, seguissem as doutrinas do Salvador.46

Observa com precisão Gilson, com respeito ao texto que acabamos de


citar:

Esse texto do Diálogo com Trífon é de uma importância capital,


por nos mostrar, num caso concreto e historicamente observável,
como a religião cristã pôde assimilar imediatamente um domínio
reivindicado até então pelos filósofos. É que o cristianismo

46
Justino. Diálogo com Trifão. 8, 1-2. (O Itálico é nosso).
oferecia uma nova solução para problemas que os próprios
filósofos tinham levantado. Uma religião baseada na fé numa
revelação divina mostrava-se capaz de resolver os problemas
filosóficos melhor que a própria filosofia; seus discípulos tinham,
portanto, o direito de reivindicar o título de filósofos e, como se
tratava da religião cristã, declarar-se filósofos pelo simples fatos
de serem cristãos.47

Taciano, discípulo imediato de Justino, retoma a doutrina do mestre,


mas com novas nuances e diversa atitude. Com efeito, Justino, embora
reconhecendo na religião cristã a verdadeira filosofia não desprezava, todavia,
os filósofos antigos. Antes, o que de bom e verdadeiro eles haviam dito, adverte
Justino, atesta haver neles a presença de uma espécie de “razão seminal” do
Logos divino.48 Entretanto, este mesmo Logos divino, só se revelou plenamente
em Cristo. Mais: Cristo é o próprio Logos em pessoa!49 Ora bem, por isso
mesmo, tudo o que foi dito em conformidade com este Logos diz respeito a Cristo
e pertence, por direito, aos cristãos.50 Eis mais uma eloqüente passagem da II

47
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 4 e 5. (O itálico é nosso).
48
A este respeito, eis a passagem clássica: Justino. II Apologia. 13, 3: “De fato, cada um falou
bem, vendo o que tinha afinidade com ele, pela parte que lhe coube do Verbo seminal divino.”
(O itálico é nosso).
49
Jo 1, 14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele
tem junto do Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade.” (O itálico é nosso). Sobre a
importância desta passagem do Prólogo do Evangelho de João, e de todo ele em geral para a
configuração do pensamento cristão posterior, nota Philotheus: Philotheus Boehner. História
da Filosofia Cristã. p. 18: “Seria difícil exagerar a importância do prólogo do evangelho
joanino para a história do pensamento cristão; na verdade, este se tornaria incompreensível sem
aquele.”
50
Justino. II Apologia. 13, 4: “Portanto, tudo o que de bom foi dito por eles, pertence a nós,
cristãos (...)”. Agostinho, dirá algo análogo: Agostinho. A Doutrina Cristã. II, 19, 28: “Bem ao
contrário, todo bom e verdadeiro cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se
encontre, é propriedade do Senhor.”
Apologia, que se tornará clássica para todo o humanismo cristão, e na qual
Justino nos discrimina sua doutrina do logos:

Portanto, a nossa religião mostra-se a mais sublime do que todo o


ensinamento humano, pela simples razão de que possuímos o
Verbo inteiro, que é Cristo, manifestado por nós, tornando-se
corpo, razão e alma. Com efeito, tudo o que os filósofos disseram
e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por
eles pelas investigação e intuição, conforme a parte do Verbo
que lhes coube. Todavia, como eles não conheceram o Verbo
inteiro, que é Cristo, eles freqüentemente se contradisseram uns
aos outros.51

Unânimes são os mais abalizados historiadores ao dizerem, em


uníssono som, que, para Justino, aqueles que antes de Cristo (Logos Encarnado),
viveram conforme a parcela do Logos que receberam, podem ser considerados,
cristãos antes de Cristo: “Houve, pois, cristãos e anticristãos antes de Cristo.
(...)”.52 Philotheus Boehner, ao expor os ensinamentos de Justino, confirma: “Os
filósofos antigos participaram dele (do Logos), pelo que podemos chamar-lhes
cristãos anteriores a Cristo.”53 Una, portanto, era a revelação, incompleta e
parcial entre os pagãos, perfeita e completa em Cristo e nos cristãos.
Nesta Linha, Clemente alexandrino – e com ele, toda escola de
Alexandria – não puderam deixar de estabelecer um paralelo entre as duas fases
da iluminação do Logos. Com efeito, os judeus e todo o Antigo Testamento são
uma preparação para Cristo, Luz do Mundo. Contudo, não somente eles, mas
também os filósofos gregos, de algum modo, foram agraciados pelas luzes do

51
Justino. II Apologia. 10, 1-3. (Os itálicos são nossos).
52
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p.5.
53
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 30. E ainda Franca, ao falar da mesma
doutrina, tira idêntica conclusão: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 185: “Os
grandes filósofos do paganismo – um Sócrates e um Heráclito – participando assim da Luz do
Verbo, participaram da Luz de Cristo, foram cristãos, antes que existisse o nome.”
Verbo. Ora, isto os torna desta sorte, de certa forma, também arautos da
revelação total, que se dará em Cristo. Faz deles, pois, como que precursores
dela. Em uma palavra, o que a Lei foi para os judeus, a filosofia foi para os
gregos. Cada uma à sua maneira, aplainaram os caminhos para os conduzir a
Cristo:

E’ verossímil que Deus tenha dado a filosofia aos gregos, antes


de chamá-los (à fé). De fato, como a Lei aos hebreus assim a
filosofia serviu aos Gregos de pedagogo para levá-los a Cristo.54

É sob este aspecto, que Gilson encontra respaldo, para declarar que a
fórmula capital da obra de Clemente está na sua tese de que há dois Antigos
Testamentos, e um Novo.55 O Antigo de Testamento do Décalogo e dos profetas e
o Antigo Testamento da razão e dos filósofos. Evidentemente que a Revelação
feita aos judeus, teve um caráter mais perfeito.56 Não por isso, os gregos
deixaram de ter também os seus próprios profetas, a saber, os filósofos: “A razão
grega teve até seus profetas, que foram os filósofos.”57 Colocada nestes termos,
blasfemar contra a filosofia e a razão equivale a negar uma das vias abertas, pela
própria Providência Divina, para levar os pagãos a Cristo. É atentar, enfim,
contra a universalidade desta mesma Providência: “Os que dizem que a filosofia

54
Clemente. Stromates. I, V. In: Franca, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. nota 186. E ainda: Clemente. Stromata. VIII, c 2,
nn 10 e 11. in: Battista Mondin. Curso de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente: Vol 1. Trad:
Bênoni Lemos. Rev. João Bosco de Lavor Medeiros. São Paulo: Paulus, 1981. p. 123: “Deus
deu a Lei aos judeus e a filosofia aos gentios para impedir que não acreditassem na vinda de
Cristo. Porque, mediante dois processos diferentes de aperfeiçoamento, ele guia gregos e
bárbaros para a perfeição da fé”.
55
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 45: “Como diz Clemente, há dois Antigos
Testamentos e um Novo (...)”.
56
Idem. Ibidem. p. 44. “Sem dúvida, Deus não falava diretamente aos filósofos; ele não lhes
transmitia uma revelação especial, como fazia com os profetas, mas guiava-os, apesar disso,
indiretamente pela razão, que também é luz divina.”
57
Idem. Ibidem.
não vem de Deus parecem afirmar que Deus não conhece todas as coisas
particulares nem é causa de todos os bens.”58
Fechando este parêntese, voltemos a Taciano. Dizíamos que ele retoma
a doutrina de Justino no sentido de que, também ele, concebe o cristianismo
como a verdadeira sabedoria. Com efeito, ele se refere à doutrina cristã, como
“a nossa filosofia”: “Creio agora oportuno demonstrar-vos que a nossa filosofia é
mais antiga do que as instituições gregas.”59 Entretanto, enquanto Justino
concedia aos antigos filósofos um lugar de honra dentro do cristianismo, dada a
concepção que tinha de que todos eles, embora mui imperfeitamente, haviam
tido a sua participação no Verbo, Taciano, ao contrário, opõe de todo, sabedoria
cristã e sabedoria pagã. Apela para a história e crê poder demonstrar “a nossa
filosofia” é mais antiga do que a mitologia e filosofia grega. Aliás, acrescenta
Taciano, o que estas últimas, porventura, tenham de verdadeiro e decente, elas o
devem ao fato de terem-no plagiado daquela. De qualquer forma, é certo que as
duas doutrinas – a grega e a cristã – distam uma da outra, como o verdadeiro do
falso, como o céu da terra, como o divino do mundano. Eis significativa
passagem:

Entre nós não existe ambição e glória e, por isso, não seguimos
uma multiplicidade de doutrinas. Com efeito, afastados da razão
vulgar e terrena, obedientes aos mandamentos de Deus e
seguindo a lei do Pai da incorrupção, rejeitamos tudo o que se
funda em mera opinião humana; não só ricos filosofam, mas
também os pobres tomam gratuitamente parte no ensinamento. O
que vem de Deus ultrapassa a qualquer dom mundano que se
poderia dar em troca.60

58
Clemente. Stromates. VI, 17. In: Franca, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. nota 187.
59
Taciano. Discurso Contra os Gregos. 31. (O itálico é nosso).
60
Idem. Op. Cit. 32.
Temos então, de um lado, o gênio conciliador e homogêneo de Justino,
que via na história humana uma única revelação – toda ela cristã a seu modo -
que havia se iniciado outrora com os gregos e que tinha encontrado o seu
término e píncaro no mistério insondável de Cristo:

Justino se apresenta como o primeiro daqueles para quem a


revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação mais
ampla e, não obstante, cristã a seu modo, pois toda revelação vem
do Verbo e que Cristo é o Verbo encarnado.61

De outro, encontramos Taciano que, muito embora tendo rechaçado,


com todas as forças do seu vigor – em nome da revelação cristã – o naturalismo
grego, veio a se tornar, paradoxalmente, um dos primeiros heréticos do
cristianismo, além de fundador de uma nova seita. É de se notar, ao contrário,
que Justino, uma vez reconhecendo em toda doutrina verdadeira - ainda que
grega - uma presença iluminadora do Verbo e não ter imposto assim, entre o
natural e o sobrenatural, uma absoluta e intransponível heteronomia, tenha
vindo a se tornar célebre e seja ainda hoje honrado pela Igreja, por cuja fé
derramou o seu sangue, como santo e mártir:

Não podemos nos impedir de encontrar um sentido histórico


profundo para o fato, de aparência paradoxal, de que o inimigo
irreconciliável do naturalismo grego tenha acabado herético e que
aquele que relacionava toda beleza, mesmo que fosse grega, à
iluminação do Verbo, seja ainda hoje honrado pela Igreja com o
título de são Justino.62

Dando, pois, continuidade, à nossa tentativa de perseguir o


desenvolvimento da noção de filosofia cristã, digamos algumas palavras sobre a

61
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 8
62
Idem. Ibidem. p. 15.
patrística latina. Nela, nos deparamos, antes de tudo, com a posição radical de
Tertuliano, que viveu no século II.
Tal como Taciano, Tertuliano não via com bons olhos qualquer
influência que a filosofia grega pudesse exercer sobre a novel teologia cristã. A
doutrina bíblica e a tradição helênica para ele, nada tinham em comum. Eram,
aliás, não somente diferentes uma da outra, mas também perfeitamente opostas e
inconciliáveis. Por isso mesmo, para quem pretendesse abraçar a fé cristã, era
mister abandonar as especulações filosóficas, já que fé e filosofia são
irredutíveis, se excluem mutuamente, como a verdade elimina o erro. Tertuliano
chega a dizer que a filosofia é doutrina de demônios; ela é, ademais, a mãe de
todas as heresias:

Estas são doutrinas dos homens e dos demônios, nascidas do


espírito da sabedoria terrena para aqueles ouvidos que têm o
prurido de ouvi-las. (...) Pois a filosofia é matéria de sabedoria
terrena, intérprete temerária da natureza e da disposição divina.
Portanto, os próprios heresias são subordinadas pela filosofia
(...).63

Eis outra significativa passagem, na qual exprime o absoluto contraste


entre cristianismo e filosofia:

Portanto, o que Atenas e Jerusalém têm em comum? O que a


Academia e a Igreja têm em comum? O que os hereges e os
cristãos têm em comum? Nossa disciplina vem do pórtico de
Salomão, o qual ensinara que se devia procurar Deus com
simplicidade de coração. Pensem nisso aqueles que inventaram
um cristianismo estóico e platônico e dialético. Não precisamos
de curiosidade, depois de Jesus Cristo, nem da pesquisa depois

63
Tertuliano. Sobre a Prescrição Contra os Heréticos. 7. In: REALI, Giovanni. ANTISERI,
Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino
Tonon. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 78 e 79.
do Evangelho. Quando cremos, não sentimos necessidade de crer
em outra coisa, uma vez que cremos antes e tudo: não haver
motivo de ter crer em outra coisa.64

E ainda:

No conjunto, que semelhança se pode captar entre o filósofo e o


cristão, entre o discípulo da Grécia e o candidato ao céu, entre o
traficante da fama e aquele que faz questão de vida, entre o
vendedor de palavras e o realizados de obras, entre quem constrói
sobre a rocha e quem destrói, entre quem altera e quem tutela a
verdade, entre o ladrão e o guardião da verdade?65

Por outro lado, surge no século IV, Aurélio Agostinho. Ele tinha um
pensamento muito mais conciliador do que o de Tertuliano: “O ‘credo quia
absurdum’ (Frase atribuída a Tertuliano) é uma postura inteiramente estranha a
Agostinho.”66 Sua proposta, em linhas gerais, era semelhante à de Justino. De
fato, opunha à filosofia dos gentios uma filosofia genuinamente cristã, que seria,
para ele, a única verdadeira:

Por favor, não seja para ti de maior valor a filosofia dos gentios
que a nossa cristã, única filosofia verdadeira, pois esta palavra
significa estudo ou amor à sabedoria.67

64
Tertuliano. Sobre a Prescrição Contra os Heréticos. 7. In: REALI, Giovanni. ANTISERI,
Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino
Tonon. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 79. (Os itálicos são nossos).
65
Tertuliano. Apologético. XLII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 78.
66
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 88. (O parêntese é nosso).
67
Agostinho. Réplica a Juliano. IV, XIV, 72. Disponível em:
<http://www.augustinus.it/spagnolo/contro_giuliano/index2.htm> Acesso em: 24/10/2007. (A
tradução para o português e os itálicos são nossos).
A lógica que o levara a semelhante conclusão, era relativamente
simples: Deus é a própria sabedoria. Ora, o único Deus verdadeiro é o Deus dos
cristãos. O filósofo, por sua vez, se identifica como amante da sabedoria. Mas
só os cristãos amam a verdadeira sabedoria. Logo, só eles podem ser ditos
verdadeiros filósofos.

O nome “filósofo” traduzido ao português, significaria “amor à


sabedoria”. Pois bem, se a sabedoria é Deus, por quem foram
feitas todas as coisas, como demonstram a autoridade divina e a
verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus.68

Mas então a filosofia só surgiu com o cristianismo? Certamente não.


Entretanto, os filósofos pagãos, só cultivaram a verdadeira sabedoria, na medida
em que as suas sentenças concordavam com a verdade judaico-cristã. Destarte,
Agostinho reconhecia, ao lado dos profetas (aos quais, evidentemente, ele
tomava como “filósofos” por excelência), outros mais que, muito embora não
tendo alcançado a verdade plena, conseguiram, no entanto, adentrar-se até certo
ponto nela:

Todas as verdades que entre seus erros alguns filósofos chegaram


a discutir e se esforçaram em persuadir com esmero (...) tudo isso
foi pregado ao povo na Cidade de Deus por boca dos profetas,
sem argumentos e sem disputas. Para eles (O povo de Israel),
eram esses os filósofos, quer dizer os amigos da Sabedoria, seus
sábios, seus teólogos, seus profetas e seus doutores em piedade e
em probidade.69

Não é difícil imaginar o porquê Agostinho ainda identificava, de


algum modo, tal como fez Justino, a religião cristã com a verdadeira filosofia e
seus profetas, com os verdadeiros sábios. Com efeito, Agostinho viveu numa

68
A Cidade de Deus. VIII, I. (O itálico é nosso).
69
Idem. Ibidem. XVIII, XLI, 3. (O parêntese é nosso).
época em que a ascese e a contemplação, eram partes integrantes de uma
filosofia que esmerava ser “salvifica”. Com efeito, buscava ela proporcionar aos
seus seguidores, por meio de uma mística especulativa ascendente, a libertação
das almas do cárcere corporal, tão inquinado as paixões e a dispersão. Ora, tal
salvação só se encontra no cristianismo. Só ele pode tornar a alma
verdadeiramente livre. Só ele pode nos dar a conhecer, sem jaça de erros, o
caminho da salvação. E ele, contrariamente das demais seitas filosóficas,
colocava ao alcance de todos o caminho da salvação. Peca Porfírio, por não
saber reconhecê-lo. E, por isso, merece censura. Eis a clássica passagem:

Assim, não o satisfazia o que com tanto esmero aprendera a


respeito da libertação da alma e lhe parecia, ou melhor, parecia a
outros, que o conheciam e professavam. Quando afirma que nem
mesmo da filosofia mais verdadeira teve conhecimento de seita
que contenha o caminho universal para a libertação da alma,
parece-me demonstrar, à evidência, que a filosofia em que
filosofou não era a mais verdadeira ou não continha a referida
senda. Como pode, é claro, ser a mais verdadeira, se não contém
semelhante senda? Pois que outra senda universal existe para a
libertação da alma, senão a que livra todas as almas e, sem ela,
nenhuma se livra? (...) Essa é a religião cristã, que contém o
caminho universal para a libertação da alma, porque por
nenhum, senão por ele, pode ver-se livre.70

Agostinho estava tão certo de que a religião cristã é a única fonte da


verdadeira sabedoria, que afiançava aos seus leitores que, se todos os grandes
filósofos do passado – ao menos os que eram verdadeiramente dignos deste nome
– voltassem à vida e tivessem a oportunidade de conhecer a doutrina cristã,
certamente não pestanejariam em lançar fora certas asserções errôneas que
fizeram e não vacilariam em fazerem-se cristãos:

70
Idem. Ibidem. X, XXXII, 1. (Os itálicos são nossos).
Portanto, se aqueles filósofos pudessem voltar à vida conosco,
reconheceriam, sem dúvida, a força da Autoridade, que por vias
tão simples operou a salvação da humanidade e – mudando
algumas palavras e sentenças – ter-se-iam feito cristãos, como
vimos que se fizeram muitos platônicos modernos de nossa
época.71

No entanto, no dizer de Gilson, em todas estas passagens, tal como em


Justino, Agostinho não faz senão identificar a filosofia cristã com a religião
cristã. Portanto, não estamos ainda diante de uma definição de filosofia cristã.
Até aqui ela não é senão a própria religião cristã: com ela se coincide e dela não
se distingue: “Parece, resumindo, que a filosofia cristã não significa, em
Agostinho, nada além de religião cristã (...)”72.
Agora bem, Pe. Penido, em sua obra fundamental – A Função da
Analogia em Teologia Dogmática – coloca em revelo o fato de que a Idade
Média, tenha herdado da patrística, a confusão entre os domínios do dogmático e
do racional:

Debatem-se contra a dificuldade geral da época, e forcejam, em


última, para vencê-la. O fenômeno é tão universal que podemos
dizer que a história inteira do pensamento medieval se condensa
nesta aspiração de reunir numa síntese harmoniosa os dados da
fé e os dados da razão. Entretanto, a confusão herdada da época
patrística pesa sobre toda a alta Idade Média. Os doutores
meditaram, sem dúvida, a sentença de Agostinho: ‘a ciência é
filha da razão, a fé, da autoridade’. Na prática, porém, não se
chegou a distinguir com exação o domínio dogmático do

71
Idem. A Verdadeira Religião. 4, 7. (O itálico é nosso).
72
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 538.
racional, a delimitá-los precisamente, e determinar-lhes as
mútuas relações.73

E esta identificação - para não dizer confusão - entre fé e razão e


filosofia e religião se aprofunda, tanto mais, até chegar, no século IX, a
surpreendente declaração de Escoto Erígena:

Nada mais é tratar da filosofia senão expor as normas da


verdadeira religião pela qual cultua-se, humildemente e investiga-
se racionalmente a Deus, causa suma de todas as coisas. Donde
resulta que a verdadeira filosofia é a verdadeira religião e,
inversamente, que a verdadeira religião é a verdadeira
filosofia.74

E por isso mesmo Erígena pode declarar, solenemente e sem nenhum


pudor que: “Ninguém entra no Céu a não ser pela filosofia (Nemo intrat in
caelum nisi per philosophiam).”75 Penido resume assim o pensamento de certos
padres e dos primeiros escolásticos:

Para alguns Padres, e os primeiros escolásticos, existe uma na


verdade uma ‘sabedoria total’, a que se chamou uma ‘religião-
filosófica’. Sincretismo de inspiração alexandrinha, compreendo
as ciências, o exercício das virtudes, a fuga do mundo, as letras

73
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 204. (Os
itálicos são nossos).
74
João Escoto Erígena. De Praedestinatione. c. I In: PENIDO, Maurílio Teixeira Leite Penido.
A Função da Analogia em Teologia Dogmática. trad. Dinarte Duarte Passos. rev. Maurílio
Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p. 205 e 206.
75
João Escoto Erígena. Comentário Sobre Marciano Capelas. In: JEAUNEAU, Éduard. A
Filosofia Medieval. Trad. João Afonso dos Santos. Lisboa: Edições 70, 1963. p. 30. (O itálico é
nosso).
pagãs, a mística, a exegese, as sentenças dos filósofos, as
doutrinas dos Padres, tudo numa grande confusão.76

2.4) Do Desenvolvimento da Noção de Filosofia Cristã na Escolástica

Algumas considerações sobre a filosofia até o século XIII. A


identificação entre filosofia e religião parece chegar, como vimos, até Agostinho.
Contudo, temos motivo suficiente para crermos que, já na pena de Agostinho, tal
identificação não passa de uma metáfora. Sem embargo, já encontramos
delineada no Doutor de Hipona, de forma clara e concisa, certa distinção entre a
fé pura e a inteligência dela. É preciso crer para entender, não se cansa de
repetir Agostinho, retomando um texto do profeta Isaías (Is 7,9), corruptela
tomada da versão grega dos setenta: Nisi credideritis, non intelligetis (Se não
crerdes, não compreendereis).77 Assim, para Agostinho, a inteligência do dado
revelado nasce qual recompensa da fé nele: intellectus merces est fidei.78 Mais
ainda, a fé passa a ser conditio sine qua non para alcançarmos o entendimento do
que cremos: crede ut intelligas: “Há que aceitar pela fé as verdades que Deus
revela, se se quiser adquirir em seguida alguma inteligência delas (...)”.79 Eis
algumas passagens, do próprio Agostinho, onde ele se refere a esta sua forte
convicção: a fé busca, a inteligência encontra (fides quaerit, intellectus invenit):

A fé busca, o entendimento encontra; por isso, diz o profeta: Se


não crerdes, não entendereis (Is 7, 9). Doutro lado, o

76
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 205.
77
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Baseando-se na tradução, aliás
incorreta, de um texto de Isaías pelos Setenta, Agostinho não se cansa de repetir: Nisi
credideritis, non intelligetis.”
78
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 88: “(...) em Agostinho,
(...): ‘intellectus merces est fidei’, ‘a inteligência é recompensa da fé.’”
79
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144.
entendimento prossegue buscando aquele que a fé encontrou
(...).80

Queres entender? Crê. Deus, com efeito, por meio do profeta,


disse: Se não crerdes, não compreendereis. (...) A inteligência é
fruto da fé. Não procures, portanto, entender para crer, mas crê
para entender: porque, se não crerdes, não entendereis.81

Entretanto, resta ainda um aspecto que importa ressaltar. Agostinho, no


célebre Sermão 43, numa fórmula lapidar, dá um passo muito importante, para a
história das relações entre fé e razão. Diz ele o seguinte: intellige ut credas,
crede ut intelligas (compreende para crer, crê para compreender). Ele
discrimina, pois, nesta fórmula perfeita, dois usos distintos da razão: um anterior
ao ato de fé e outro posterior a ele.82 Não quer ele com isso dizer, que se deve
buscar compreender os mistérios para então neles crer, o que o faria contradizer-
se a si mesmo! A atividade da razão, que precede ao ato de fé consiste,
precisamente, em se atestar que não se é irracional crer nos dogmas:

Sem dúvida, um certo trabalho da razão deve preceder o


assentimento às verdades de fé; muito embora estas não sejam
demonstráveis, pode-se demonstrar que convém crer nelas, e é a
razão que se encarrega disso.83

80
Agostinho. A Trindade. XV, 2, 2.
81
Idem. Comentário ao Evangelho de João. 29, 6. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario.
História da Filosofia: Patrística e Escolástica. trad. Ivo Storniolo. rev. Zolferino Tonon. 2ª
ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 104.
82
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Portanto, há uma intervenção da razão
que precede a fé, mas há uma segunda, que a segue. (...) Um texto célebre, do Sermão 43
resume essa dupla atividade da razão, numa fórmula perfeita: compreende para crer, crê para
compreender (...)”.
83
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
Aqui destacamos o avanço. Até Agostinho, já era perfeitamente
compreensível que razão e fé deveriam concordar. No entanto, ainda não se
frisava com franca a nitidez, que o próprio ato de fé, não deixa de ser, à seu
modo, um ato racional. Ora bem, Agostinho pontua bem isso, na sua célebre
fórmula citada mais acima: o ato mesmo de crer é um ato da razão. Doravante,
marca-se também, numa de suas razões mais decisivas, o motivo pelo qual a fé
não pode contradizer a razão:

Quem não vê que primeiro é pensar e depois crer? Ninguém


acredita em algo, se antes não pensa no que há de crer. Embora
certos pensamentos precedam de um modo instantâneo e rápido a
vontade de crer, e esta vem em seguida, e é quase simultânea ao
pensamento, é mister que os objetos da fé recebam acolhida
depois terem sido pensados. Assim acontece, embora o ato de
crer nada mais seja que pensar com assentimento. Pois, nem
todo o que pensa, crê, havendo muitos que pensam, mas não
crêem; mas todo aquele que crê, pensa, e pensando crê e crê
pensando.84

Nasce, pois, como corolário disso, formalmente a teologia cristã, que


será na fórmula posterior de Anselmo - mas que cabe perfeitamente na doutrina
de Agostinho – definida como fides quaerens intellectum (a fé busca
intelecção).85 Anselmo chega a dar a duas de suas obras que se tornarão
clássicas (e que, no entanto, no parecer do autor, eram somente opúsculos...) – o
Monológio e o Proslógio – a idéia consignada na famosa fórmula:

Como nem este opúsculo nem o outro recordado acima


pareceram-me dignos de serem chamados de livros, nem se me

84
Agostinho. A Predestinação dos Santos. II, 5. (Os itálicos são nossos).
85
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Santo Anselmo exprimirá mais tarde
essa doutrina numa fórmula que não é de Agostinho, mas que expressa fielmente seu
pensamento: a fé busca inteligência, fides quaerens intellectum.”
apresentavam tão importantes para propor-lhes o nome do autor,
e, entretanto, fazia-se necessário atribuir-lhes um título que
convidasse a lê-los todos aqueles em cujas mãos caíssem, dei a
cada um deles uma denominação: chamei o primeiro (Ele se
refere ao Monológio) de Exemplo de Meditação sobre o
Fundamento Racional da Fé, e o segundo (O Proslógio) : A Fé
Buscando Apoiar-se na Razão.86

Entretanto, importa responder se esta inteligência que pressupõe a fé,


chega a se tornar uma demonstração apodítica – se não dos mistérios da fé – ao
menos da razão de crermos neles. Parece que, para Anselmo e outros, a resposta
seja positiva, isto é, tudo se passa como se tudo em que crêssemos, pudesse,
doravante, ser demonstrado. Mesmo com todo o ardor místico do autor do
Proslógio - que, de fato, afasta-o definitivamente do racionalismo puro – fica-se,
contudo, com a impressão de nele não haver limites ponderáveis para a nossa
compreensão racional dos dados da fé:

(...) Não tento, ó Senhor, penetrar na tua profundidade: de


maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo,
ao menos (mas não é pouco!) – compreender a tua verdade, que
o meu coração já crê. Com efeito, não busco compreender para
crer, mas creio para compreender. Efetivamente creio, porque,
se não cresse, não conseguiria compreender.87

Exemplo típico, desta incontrolável inclinação de pretender


enquadrar os mistérios dentro de uma lógica racional filosófica, encontramos no
Prólogo metodológico do Monológio de Santo Anselmo:

(...) sem, absolutamente, recorrer, em nada, à autoridade das


Sagradas Escrituras, tudo aquilo que fosse exposto (Ele irá expor

86
Anselmo. Proslógio. Proêmio. (Os parênteses são nossos).
87
Idem. Ibidem. I. (O parêntese e o itálico são nossos).
sobre a essência divina) ficasse demonstrado pelo encadeamento
lógico da razão, empregando argumentos simples, com estilo
acessível, para que se tornasse evidente pela própria clareza da
verdade.88

Penido arrola a seguinte consideração:

Anselmo exigirá do fiel que comece por crer; todavia, a ‘credere’


sucede o ‘intelligere’; é a desforra da razão. Quem praticamente deterá
a inteligência, em seu esforço de aprofundamento da fé? (...) Os
mistérios da religião estarão nivelados aos da teodicéia. Destes, se não
podemos conhecer o ‘como’, não deixamos entretanto de lhes
demonstrar a existência.89

De fato, tanto em Anselmo, como em Abelardo ou nos Vitorinos, os


mistérios são tratados da mesma forma, isto é, com os mesmos procedimentos
que as verdades da teodicéia: embora não possamos descobrir-lhes o “como”,
podemos, de forma decisiva, atestarmos a necessidade de se afirmá-los:

Ora, ao mesmo resultado chegam um Anselmo, um Abelardo ou


um Hugo Vitorino no que toca ao dogma: o crente pode prová-lo,
post revelationem; pode chegar à clara visão do seu ‘ant sit’,
embora paralisado pelo mistério impenetrável de seu ‘quodmodo
sit’.” Tanto é assim que Anselmo não recua diante do desafio de
demonstrar, não digo os mistérios em si, mas sim a necessidade
de se afirmá-los. Ele julga possível aduzir, inclusive para os
dogmas da Encarnação e da Trindade, as “razões necessárias”.90

No diálogo Cur Deus Homo, Boso, interlocutor de Anselmo em todo o


diálogo, chega a seguinte conclusão no final da obra:

88
Idem. Monológio. Prólogo. (O parêntese é nosso).
89
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 208.
90
Idem. Ibidem. p. 209.
Boso- Tudo o que me disseste parece-me muito razoável e
impossível de contradizer, e pela solução de uma questão que
propusemos, vejo provado e verdadeiro o que se encontra
contido no Novo e no Antigo Testamento. Com efeito, tens
provado a necessidade da encarnação do Filho de Deus por
razões capazes de satisfazer não somente aos judeus, mas
também aos pagãos, fazendo-se abstração de alguns dados que
tens tirado dos livros santos; por exemplo, de algumas palavras
referentes às três pessoas divinas e Adão.91

Alguns estudiosos (Martin Grabmann), chegaram a tentar deslocar a


questão, dizendo que Anselmo e outros tentam apenas dar razões de
conveniência para o mistério, sem, contudo, pretender demonstrá-los. Na
verdade, a atenuante da tese não se sustenta. Na obra em questão, Cur Deus
Homo, Boso faz às vezes dos judeus e pagãos, conforme indica Anselmo:

Anselmo- Desde que tu te revestes, nessa questão, da pessoa


daqueles que não querem crer em nada a não ser pela
demonstração prévia da razão, quero seguir-te os passos para
que vejas que não encontraremos em Deus nenhum inconveniente
(...).92

E, como vimos na primeira citação mais acima, Boso se declara


satisfeito com a demonstração de Anselmo, a ponto de afirmar que se ele tirasse
certas citações dos livros santos do corpo da argumentação, qualquer um – ainda
que fosse um pagão – não teria como negá-la ou contradizê-la. Além disso,
Anselmo atesta que, no que diz respeito a Deus, a conveniência se transforma
em necessidade, isto é, basta que seja possível para que se torne necessário:

91
Anselmo. Por Que Deus se Fez Homem? c. XXII. (Os itálicos são nossos).
92
Idem. Ibidem. c. X. (O itálico é nosso).
Pois, tratando-se de Deus, assim como basta que haja um
pequeno inconveniente para que se produza a impossibilidade, de
igual modo, a uma razão, por pequena que seja, se não obsta em
contrário a uma maior, segue forçosamente sua necessidade.93

Diz Gilson, comentando Anselmo:

Ele não confunde a fé com a razão, já que o exercício da razão


pressupõe a fé; mas tudo ocorre como se sempre se pudesse
chegar a compreender, se não no que se crê, pelos a necessidade
de se crer. Santo Anselmo não recuou diante da tarefa de
demonstrar a necessidade da Trindade e da Encarnação (...).94

Acrescentemos às palavras do eminente medievalista – melhor,


reforcemos apenas – o fato de que, se em Anselmo, é certo que não perdure a
identidade entre filosofia e religião, nele ainda persiste, com toda certeza, de
forma confusa e até comprometedora – se não teórica e metodologicamente, ao
menos na prática e na conseqüência – a falta de uma adequada distinção entre o
campo filosofia e o da teologia, ou seja, entre o que é objeto de fé e o que é o
objeto da razão. O próprio Gilson volta a afirmar com maior contundência:

Em João Escoto Erígena, em santo Anselmo e no próprio


Abelardo, o raciocínio dialético por certo não estava ausente;
vimos, inclusive que ele tendia a invadir tudo. Crer para
compreender era o lema, mas tudo ocorria, no final das contas,
como se se tivesse podido compreender tudo aquilo em que se
cria. Nada mais natural: quando não se distingue nitidamente o
que se sabe do que se crê (...). Exemplo típico disso poderia ser
encontrado na história do dogma da Trindade. Sem fazer dele
uma verdade filosófica, santo Anselmo, Abelardo e Ricardo de

93
Idem. Ibidem. (Os itálicos são nossos).
94
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 293. (O itálico é nosso).
São Vitor no-lo apresentam como uma exigência profunda da
razão humana.95

Santo Tomás, na Suma Teológica, chega mesmo a citar Ricardo de


São Vitor – a modo de objeção que depois deverá ser refutada – e a sua
pretensão malsã de querer dar ao dogma da Trindade, as chamadas “razões
necessárias”:

Além disso, Ricardo de São Vítor escreve, (no livro De Trinitate


I, 4): ‘Creio, sem nenhuma dúvida, que não faltam argumentos,
não apenas prováveis, mas necessários, para explicar qualquer
verdade’.96

Deste modo, fica claro, que com o nascimento da teologia, surge


também nova forma de tentação para os teólogos cristãos, a saber, a de querer
dar as verdades de fé e a própria teologia, um fundamento racional, da mesma
espécie que nos é proporcionada pelas demonstrações filosóficas. Em uma
palavra, mais do que na diferenciação teórica entre fé e razão – vimos que
Anselmo, em tese, as distingue, já que em sua doutrina a razão pressupõe a fé -
os pensadores cristãos passarão a sucumbir no desafio quimérico de tentar dar ao
dado revelado a mesma estabilidade, a mesma espécie de certeza e o mesmo
grau de demonstração que encontramos na ordem filosófica. Com efeito, eles
não conseguem estabelecer, sem jaça, as relações entre filosofia e teologia, sem
confundi-las no meio do processo. A filosofia parece então passar a querer
invadir o domínio da teologia, tentando consumi-la ou vice-versa, e isto para o
desastre de ambas. Conclusão análoga é a que chega Gilson. Retomemos a
citação acima e vejamos como ele a complementa:

95
Idem. Ibidem. p. 630. (Os itálicos são nossos).
96
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 32, 1, 2. (O parêntese, indicando o lugar da citação, é
nosso).
Nada mais natural: quando não se distingue nitidamente o que se
sabe do que se crê, compromete-se a estabilidade da fé,
vinculando-a a opiniões científicas cuja caducidade é avesso de
seu progresso; e compromete-se o progresso da ciência
conferindo-lhe indevidamente a estabilidade da fé.97

A conseqüência necessária, embora não prevista, dado o pudor cristão


destes pensadores, será que a fé, pouco a pouco, será transmutada em ciência
natural; a crença, por sua vez, tenderá a ser reduzida ao saber racional:

(...) a ciência absorverá, pouco a pouco, a crença (...) a fé, porém,


descartará, cada dia, um pouco da visceral obscuridade, e
preludiará assim, desde esta terra, às clarezas da visão beatífica.98

Com o pio intuito de salvaguardar e expressar a concordância entre o


sobrenatural e o natural, eles acabaram por reduzir aquele neste. E nisto, mesmo
sem querer, acabam resvalando no racionalismo e no naturalismo: “E aos
poucos resvala-se para o racionalismo, escamoteia-se inconscientemente a fé, e
suprime-se praticamente o sobrenatural que se ansiava provar.” 99
As razões pelas quais os teólogos cristãos incidiram neste terrível
perigo, qual seja, neste uso inadequado da razão em teologia, são várias. Uma
delas, no dizer que Gilson, é uma confiança exacerbada na razão, procedente da
ignorância do que fosse uma demonstração apodítica rigorosamente racional.100
Já Penido, avalia que esta inclinação procede das aspirações apologéticas destes
autores. Tal preocupação, teria sido tão demasiada em alguns que teria os levado
a admitir a possibilidade de se demonstrar, mesmo ao não-crente, a necessidade
97
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630. (O itálico é nosso).
98
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 209.
99
Idem. Ibidem. 203.
100
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630: “(...) Ora, refletindo sobre esse fato,
percebe-se que esse uso da razão em matéria de teologia talvez se baseasse numa extrema
confiança na razão, mas que ele implicava a ignorância do que é uma demonstração racional
verdadeiramente impositiva.” (O itálico é nosso).
dos mistérios.101 No entanto, nosso Penido aponta uma razão ainda mais decisiva
e que, segundo nos parece, se impõe também com mais notoriedade, ao menos
nos textos que consultamos. Ademais, ela não deixa de ser uma conseqüência
espontânea das demais. Com efeito, é a falta de uma distinção adequada entre os
domínios da filosofia e da teologia e uma aplicação qualificada desta mesma
distinção, a principal razão que levou os escolásticos anteriores à síntese
tomista, a caírem em semelhante emaranhado:

Nos maiores, porém – Anselmo ou Abelardo – ao lado de


tendências apologéticas inegáveis, encontramos uma falha no
pensamento teórico: a falta de distinção adequada entre o
domínio da teologia e o da filosofia.102

Disto se segue, pois, que todos estes teólogos, tenham pretendido,


intencionalmente, cair num racionalismo puro? De modo algum. A tudo eles
antepunham à fé. Além disso, habitava-lhes uma alma mística que a todo e
qualquer conhecimento adquirido – mesmo o mais abstratos dos raciocínios –
atribuía-se a uma nova iluminação sobrenatural divina, sem a qual, aliás,
julgavam jamais poder alcançar conhecimento algum:

Entretanto, nem Anselmo, nem os Vitorinos, soçobram de forma


alguma no racionalismo. Quem os salvou? A mística. Em virtude
da teoria da iluminação, as ‘rationes necessariae’ já são fruto de
uma iluminação divina. A inteligência encontra-se
completamente banhada de irradiações celestes.103

Mas ainda aqui, é preciso dizer que, se se encontram à salvos do


racionalismo, isto não acontece sem o sacrifício da razão. De fato a razão é aqui
101
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 209:
“Cedendo a preocupações apologéticas, parecem chegar a admitir a demonstração da existência
dos mistérios, ‘anti revelationem’ (...)”.
102
Idem. Ibidem. 204. (O itálico é nosso).
103
Idem. Ibidem. p. 210.
deformada e humilhada. Com efeito, para exercer o ato que lhe é próprio e para
o qual existe – conhecer a verdade - precisa, a todo o momento, receber uma
nova iluminação divina. Sem esta irradiação celeste, não é possível filosofar, a
razão torna-se inútil e incapaz. Quando abandonada em si mesmo, nossa
faculdade mais nobre, encontra-se justamente tolhida naquilo que lhe especifica.
Só se é possível filosofar em mística pureza:

(...) a razão é despojada mais ainda de suas prerrogativas; para


apreender o verdadeiro, necessita como de uma nova revelação,
de um raio de luz celeste tocando-a de leve, um raio emanado
daquele Verbo que ilumina todo homem que vem a este mundo.
Para filosofar, é mister uma alma contemplativa e límpida (...).104

Como Penido, com justeza acentua, o fato estarmos no seio da


cristandade é que nos salva da prevalência do racionalismo. Na “queda de
braço” das incursões da fé a invadir o espaço da razão e da razão que atravessa
a fé, é claro que a razão, naquele contexto, leva a pior. No final das contas, a
conseqüência da falta de um estabelecimento dos limites entre fé e razão e da
colocação dos termos em que os dois domínios podem consolidar um ao outro, é
a fé que acabou escravizando a razão. É o que deduz Penido:

Um Anselmo ou um Abelardo, por exemplo, sabem, de certo,


estabelecer a diferença entre um ato de fé e um silogismo; mas
vejamos como se estabelecem, na prática, as relações entre estas
duas fontes de conhecimento: por falta de um princípio – a
analogia – assiste-se fatalmente a incursões de uma sobre a
outra. E aqui é a fé que absorve a razão, a teologia tudo
invade.105

104
Idem. Ibidem. p. 207.
105
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
Com veremos, será apenas a síntese de Tomás que irá conseguir suprir
as deficiências das doutrinas precedentes e tornar realidade a pretensão de tantos
séculos. Mas ela durará quase nada, pois será logo quebrada pela predominância
do racionalismo moderno. Nele, não mais a fé prevalecerá; ao contrário, será a
desforra da razão idolatrada:

S. Tomás o consegue (realizar, de forma eficaz, as normas de


uma relação construtiva entre fé e razão), enfim; apenas, porém,
é atingido este admirável equilíbrio, começa a dissolução, sob a
influência do averroísmo e do nominalismo, para vir a ter neste
estado de oposição e de luta que se perpetua graças à filosofia
moderna.106

No entanto, já é tempo de retornamos ao assunto que perseguimos.


Antes mesmo de Anselmo, dos Vitorinos ou de Abelardo e ainda sob o influxo de
Agostinho, Boécio e Erígena, nascem tanto o racionalismo dos dialéticos, que
tendia a transformar e reduzir a teologia a uma mera lógica filosófica, quanto
fideísmo dos antidialéticos, que queria excluir da teologia toda e qualquer
especulação filosófica. Sobre os Dialéticos, basta citar o testemunho de mestre
Berengário de Tours, no século XI, tentando demonstrar a inconsistência do
dogma eucarístico simplesmente por este não caber na sua dialética:

(...) onde o sujeito não existe, não se podem encontrar seus


acidentes. Logo, se a substância desaparecesse do pão devido à
consagração, seria impossível que os acidentes do pão
subsistissem depois da consagração; logo, podemos concluir,
inversamente, que a própria substância permanece. Por
conseguinte, não haveria nem aniquilação da forma própria do
pão, nem a geração do corpo de Jesus Cristo, no sentido de que
ele começaria então a existir, mas simplesmente adição à forma

106
Idem. Ibidem. 204. (O parêntese é nosso).
do pão que subsiste em outra forma, que seria a do corpo de
Cristo beatificado.107

Alguns testemunhos, colhidos dos antidialéticos:

Para Gerardo, Bispo de Czanad, ‘os discípulos de Cristo não


necessitam de doutrinas estrangeiras. (...) ‘É o cúmulo da loucura,
escreve sobre as ciências profanas, ‘discutir com servas sobre
Aquele que convém louvar em face dos anjos.108

E ainda, no mesmo século XI:

Declaro sábios (...) muito mais os que são instruídos na Sagrada


Escritura do que os que os que são na dialética. Porque encontrei
dialéticos ingênuos o bastante para decretarem que todas as
palavras da Sagrada Escritura deveriam ser submetidas à
autoridade da dialética e para atestar amiúde mais confiança em
Boécio do que nos autores sacros.109

Tentando conciliar fé e razão, filosofia e teologia, estes autores só as


conseguiram separar mais e mais, por meio de suas posições extremadas. E
advertimos que, seja em Anselmo, seja nos Vitorinos, seja ainda com Abelardo
ou Boaventura, nenhum deles logrou resolver, de forma satisfatória, tal aporia,
isto é, nenhum deles conseguiu estabelecer critérios fixos e rígidos para uma
convivência harmoniosa entre as duas ordens do conhecimento. Pierre
Mandonnet, sintetiza de forma brilhante, o estado da questão sobre as relações
entre fé e razão, filosofia e teologia, até a síntese albertino-tomista:

107
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 283
108
Idem. Ibidem. p. 283 e 284.
109
Otloh de Sankt Emmeram. Liber Tentationibus suis et Scriptis. In: GILSON, Etienne. A
Filosofia Na Idade Média. trad. Eduardo Brandão. São Paulo: MARTINS FONTES, 1995. p.
284.
Ausência de uma distinção formal entre o domínio da filosofia e
o da teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das
verdades reveladas. Por vezes, as duas ordens misturam-se para
constituir uma sabedoria total, norteada pelo princípio que as
verdades atingidas pelos antigos filósofos são o resultado de uma
iluminação divina e, portanto, fazem parte da revelação total.
Outras vezes, os domínios da filosofia e da teologia afirmam-se
como distintos, em tese, embora não se chegue, de fato, a
formular um princípio de salvaguardar a distinção. (...).110

Além disso, mesmo supondo que se possa abstrair uma filosofia do


corpo teológico destes autores, a razão terá sempre neles a sua autonomia
comprometida, pois será, a todo o momento, tão-somente mero instrumento da fé
(instrumentum fidei). Diz reale, comentando a índole da filosofia de são
Boaventura: “Ele é um místico. Olha o mundo com os olhos da fé. A razão é
instrumentum fidei: a razão le aquilo que a fé ilumina, é gramática escrita com o
alfabeto da fé.”111 Destarte, também a filosofia – obra por excelência da razão -
estará sempre e tão-somente a serviço da teologia (philosophia ancilla
theologiae), nunca poderá escapar à sua tutela. A idéia de uma filosofia, escrava
da teologia é comentada, com precisão, por Philotheus Boehner, quando expõe o
pensamento antidialético de São Pedro Damião:

Apregoando embora as vantagens de uma ignorância total da


filosofia, tal como a praticaram os Santos, Pedro reconhece que,
pelo menos em certas circunstâncias, ela pode prestar serviços
valiosos à teologia. Mas é necessário que ela retenha,
efetivamente, a sua condição de serva. Com isso, deparamos,
pela primeira vez, na literatura latina medieval, o tema da

110
Pierre Mandonnet. Siger de Brabant. I, p. 55. In: PENIDO, Maurílio Teixeira Leite Penido.
A Função da Analogia em Teologia Dogmática. trad. Dinarte Duarte Passos. rev. Maurílio
Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p. 205.
111
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 261.
‘philosophia ancilla theologiae’. O monge há de haver-se com a
filosofia como o israelita com a sua escrava, segundo as
determinações de Moisés (Dt 21, 10-13): cortar-lhe-á o cabelo
(as teorias inúteis), aparar-lhe-á as unhas (as obras de
superstição), tirar-lhe-á as vestes (as fábulas e a superstição
pagã); só então a tomará por esposa. Mas é mister que ela
conserve a sua condição servil; cabe-lhe seguir de perto a fé,
sem jamais adiantar-se a ela (...).112

De fato, há muita especulação filosófica de primeira grandeza nos


padres e nos primeiros doutores escolásticos; contudo, a importância da filosofia
neles se reduzirá, unicamente, à demonstrar e explicar, ou ainda defender as
verdades cristãs, mas sem nunca ter um fim em si mesma. Alguns até mesmo
mantém à filosofia, o título de “rainha das ciências”. Entretanto, ela só poderá
exercer o seu reinado se estiver à serviço da fé: “Para consolá-la (a filosofia),
dizem-lhe que é rainha, e julga tudo o que no homem, mas apressam-se em
acrescentar que esta realeza consistem em compreender a fé (...)”.113

112
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 251. (O itálico é nosso).
113
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. 207.
4) Século XIII: 1º Movimento: A
Distinção Entre Filosofia e Teologia

4.1) Antecedentes Históricos Imediatos: Averróis e o “Averroísmo


Latino”.

O chamado “averroísmo latino” é hoje um tema muito controverso


entre os pesquisadores. Não é da nossa alçada neste texto reconstruir todo este
movimento, tão complexo quanto ainda obscuro em muitos dos seus aspectos.
Para nós bastará traçar algumas linhas, que nos permitam entrelaça-lo com o
assunto da nossa pauta, isto é, a distinção entre filosofia e teologia ou, em outros
termos, entre fé e razão. A figura que mais nos importa neste momento é a de
Sigério de Brabante. Não conseguiremos, no entanto, entendê-lo, sem antes
colocarmos em destaque, certas concepções do seu mestre árabe, Averróis.

4.1.1) Averróis

Averróis, também chamado na Idade Média de “O Comentador”, tinha


uma concepção de filosofia muito particular. Para ele, toda verdade, passível de
conhecimento por um ser humano através do seu próprio esforço, nos era dada
pela sabedoria filosófica. E toda verdade filosófica, por sua vez, havia sido
enunciada por Aristóteles. Logo, nada mais restava aos homens, senão comentar
Aristóteles, mantendo-se na mais estrita fidelidade aos seus princípios.114

114
Carlos Artur R. Nascimento. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. p. 50:
“Averróis ficou conhecido na Idade Média como O Comentador. Este foi o papel que ele
próprio achou que lhe cabia. Já que toda verdade que o ser humano pode conhecer por seu
próprio esforço intelectual havia sido enunciada por Aristóteles, nada mais restava senão
‘comentar’, isto é, explicar as obras de Aristóteles.” (O itálico é nosso).
Por outro lado, Averróis também era muçulmano e nunca deixou de
estar ligado a sua comunidade religiosa. Para ele, também o Corão era um livro
sagrado, manifestação da própria verdade, procedente de um milagre divino, e
destinado a todos os homens.115 Agora bem, nem todos os homens não são
iguais. Há alguns, ditos sábios, que só aderem a conclusões necessárias,
procedentes de premissas necessárias. Outros, menos exigentes, são chamados
dialéticos, porque se satisfazem com argumentos prováveis e conclusões
verossímeis. Existem, por fim, uma casta de ignorantes, que se dão por
convencidos, através de simples persuasão retórica.116
Ora bem, já que o Corão está destinado a todos os homens, deve ele
alcançar todas estas três classes de homens. Para tanto, os textos corânicos
comportam ao menos dois sentidos. O primeiro, exterior e simbólico, destinado a
persuadir os ignorantes. O segundo, interior e oculto, reservado apenas aos
sábios.117 Agora bem, cada qual deve conformar com a interpretação que se
coaduna melhor com à sua condição. Assim, os simples fiéis devem se contentar
com o sentido simbólico e ao sábio cabe perscrutar o sentido oculto.118 Ora bem,
para Averróis, é neste último sentido – que ele acaba por fazer coincidir com o
sentido filosófico do texto sagrado – reservado apenas aos sábios, que se esconde
o verdadeiro sentido da revelação. Destarte, em caso de haver conflito entre a

115
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 442: “Com efeito, o Corão é a própria
verdade, pois resulta de um milagre de Deus, mas, como é destinado à totalidade dos homens,
deve contem o necessário para satisfazer e convencer todos os espíritos.”
116
Idem. Ibidem: “Ora, há três categorias de espíritos e três espécies de homens
correspondentes: 1ª os homens de demonstração, que exigem provas rigorosas e querem
alcançar a ciência indo do necessário ao necessário pelo necessário; 2ª os homens dialéticos, que
se satisfazem com argumentos prováveis; 3ª os homens de exortação, a quem bastam os
argumentos oratórios que apelam para a imaginação e para as paixões.”
117
Idem. Ibidem: “O Corão se dirige simultaneamente a esses três gêneros de espíritos, e é isso
que prova seu caráter milagroso; ele possui um sentido exterior e simbólico para os ignorantes,
um sentido interior e oculto para os sábios.”
118
Idem. Ibidem: “O pensamento diretor de Averróis é que cada espírito tem o direito e o dever
de interpretar o Corão da maneira mais perfeita em que é capaz de fazê-lo.”
interpretação simbólica e a filosófica, será, pois, a filosófica que deverá
prevalecer sobre a simbólica, como sendo a verdade suprema da revelação:

Aquele que pode compreender o sentido filosófico do texto


sagrado deve interpretá-lo filosoficamente; pois é o sentido mais
elevado que é o verdadeiro sentido da revelação, é interpretando
filosoficamente o texto religioso que o acordo deve se
estabelecer.119

Com efeito, a partir desta concepção, Averróis deduz duas


conseqüências muito importantes. A primeira é que cada qual deve interpretar o
texto do Corão segundo as suas capacidades e não procurar ultrapassar as suas
possibilidades; a segunda é que, precisamente por isto, não se deve divulgar aos
espíritos inferiores – presos à interpretação simbólica – os conhecimentos
superiores, ou seja, aqueles que realmente resultam duma ciência do texto do
corânico.120 Para Averróis, foi exatamente a pretensão destes espíritos inferiores
de buscarem entender um sentido aberto apenas aos sábios e também o desejo
dos sábios de tentarem transmitir, esta mesma sabedoria, à espíritos não aptos a
conquistarem-na, que fez surgir toda sorte de heresias e confusão na leitura do
Corão:

O erro em que se caiu consiste precisamente na confusão e na


divulgação intempestiva dos conhecimentos superiores aos
espíritos inferiores; daí esses métodos híbridos que misturam a
arte oratória, a dialética e a demonstração e são fontes
inesgotáveis de heresias.121

119
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
120
Idem. Ibidem: “Desse princípio decorrem imediatamente duas conseqüências. A primeira é
que um espírito nunca deve procurar elevar-se acima do grau de interpretação de que é capaz; a
segunda é que nunca se deve divulgar às classes inferiores de espíritos as interpretações
reservadas as superiores.”
121
Idem. Ibidem. p. 442 e 443.
Há, portanto – para sanar esta mistura de métodos – que se distinguir,
com o máximo rigor, três interpretações possíveis do Corão: a científica ou
filosófica, reservada apenas aos sábios e que passa de premissas necessárias a
conclusões necessárias; a dialética ou teológica, que parte de premissas
prováveis a conclusões prováveis e, finalmente, a persuasiva ou religiosa, que é
aceita unicamente pela fé dos simples fiéis:

Portanto, convém restabelecer em todo o seu rigor a distinção das


três ordens de interpretação e ensino: no topo, a filosofia, que
confere a ciência e a verdade absolutas; abaixo, a teologia,
domínio da interpretação dialética e do verossímil; no pé da
escala, a religião e a fé, que devem ser cuidadosamente deixadas
àqueles para quem são necessárias.122

É evidente a confusão que em Averróis persiste entre filosofia e


religião. A pseudo-demonstrações dos mistérios, nele ainda está suposto. O
conflito entre as duas ordens do conhecimento é somente superada por uma
virtual separação – de tipo, patentemente esotérica – que apenas máscara ainda
mais a verdadeira complexidade do problema e só aprofunda a oposição entre as
diversas ordens. O texto religioso é submetido a critérios de demonstração
inaptos para ele e a teologia é rebaixada à categoria de saber provável e a fé a
ser tão-somente uma opinião relegada aos simples. Em uma palavra, estamos
diante de uma forma nova gnosticismo!

4.1.2) Sigério de Brabante

Sigério de Brabante, apesar de seguir as pegadas de Averróis em


diversas teses, não propõe nada semelhante a ele, no que toca ao lugar que a
verdade ocupa. Para Sigério, tal como para Averróis, há uma única verdade: a
Revelação: “Em sua doutrina, verdade significa sempre e exclusivamente

122
Idem. Ibidem. p. 443.
revelação.”123 Entretanto, diferentemente de Averróis, Sigério não nos propõe –
como verdade suprema – uma suposta interpretação filosófica do dado revelado.
Para ele, em caso de conflito, é sempre a fé que deve estar com a última palavra:
“Em caso de conflito, não é a razão, mas a fé que decide.”124 E não somente isso.
Sigério vai mais longe ainda ao dizer que, para ele, sequer filosofar consiste em
se buscar a verdade, mas sim o que os filósofos pensaram. Portanto, os
resultados oriundos das demonstrações filosóficas, mesmo com todo o seu rigor
demonstrativo, não equivaleriam a verdade, cuja fonte era unicamente a
revelação:

Se chamamos de verdade apenas a verdade revelada e se a


filosofia não tem que levá-la em conta, é que o objeto da filosofia
não é a busca da verdade. (...) Filosofar, diz-nos “é buscar
simplesmente o que os filósofos pensaram, sobretudo Aristóteles,
mesmo se, por acaso, o pensamento do filósofo não fosse
conforme à verdade e se a revelação nos houvesse transmitido,
acerca da alma, conclusões que a razão natural não seria capaz
de demonstrar”.125

Entretanto, um fato inegável depõe contra a “prudência” de Sigério.


Com efeito, o fato é que, as suas conclusões filosóficas – submetidas ao intenso
rigor demonstrativo – eram contrárias as da fé.126 Embora sempre optasse pela
verdade da fé, em sua posição perdura, de forma inelutável, uma aberta
contradição entre razão e fé, a qual um espírito como o de Sto. Tomás jamais
poderia acatar. Neste espírito, Tomás propunha formalmente – no seu opúsculo

123
Idem. Ibidem. p. 698. Idem. Ibidem: “Portanto, para Sigério, há uma só verdade, a verdade
da fé.”
124
Idem. Ibidem.
125
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
126
Idem. Ibidem. p. 699: “O fato incontestável é que a razão conduzia Sigério de Brabante a
certas conclusões e que a fé o levava a conclusões contrárias; a razão demonstra, pois, a seus
olhos, o contrário do que a fé ensina.”
contra os averroístas – demonstrar que o que a razão filosófica dita como
verdadeiro, não pode ir de encontro com o dado da fé. Logo, a respeito dos que
pelejavam contra a unidade do intelecto humano era preciso “(...) mostrar
outrossim que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia
do que os ensinamentos da fé.”127 É que, para Tomás – para quem “(...) todos os
homens, por natureza, desejam saber a verdade”128 – era inaceitável a concepção
de Sigério de que a filosofia consistisse apenas em buscar o que os filósofos
pensaram. Em verdade, O Aquinate declarava precisamente o contrário: “O
estudo da filosofia não visa saber o que os homens pensaram, mas como se
apresenta a verdade das coisas.”129 Por conseguinte, para Tomás, era
inconcebível que alguém pudesse concluir uma coisa em filosofia e a contrária
em teologia, isto seria colocar a verdade contra a verdade ou, pior ainda, tornar
relativa a própria fé, dizendo que o que ela propõe – não somente é supra-
raiconal– mas irracional:

Mas ainda mais grave é o que ele diz logo a seguir: “Pela razão,
concluo necessariamente que o intelecto é um em número,
todavia, pela fé, sustento convictamente o contrário”. Desse
modo pensa que a fé diz respeito às afirmações acerca das quais
se pode concluir o contrário necessariamente; uma vez que só se
pode concluir o verdadeiro necessário cujo oposto é o falso
impossível, segue-se, de acordo com a afirmação dele, que a fé é
relativa ao falso impossível, que também Deus não pode fazer – o
que os ouvidos dos fiéis não podem permitir.130

127
Tomás de Aquino. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas. I, 2.
128
Idem. Ibidem. I, 1.
129
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado do Céu. I, 22, 8. In: NASCIMENTO, Carlos
Arthur R. de. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUSC, 1992. p.
50.
130
Tomás de Aquino. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas. V, 119.
É a estes opositores, ditos “averroístas latinos”, que Tomás, não sem se
valer de certos instrumentos e elementos já deixados por seu mestre Alberto, irá
tentar responder, com a sua magnífica síntese entre fé e razão. Cuidemos, pois,
de observar, antes de tudo, como as distingue e delimita os seus domínios.

4.2) A Célebre Distinção Albertino-tomista entre Filosofia e Teologia

Teremos, de fato, que esperar o século XIII, para que a distinção entre
fé e razão, filosofia e teologia se consolide, definitivamente, no seio do
pensamento cristão. Esta obra será concretizada por dois dos mais ilustres nomes
da escola dominicana: Aberto de Colônia e Tomás de Aquino:

Se tomarmos conhecimento dos números trabalhos publicados


sobre este assunto, verificaremos ser tão corrente, antes de S.
Tomás, certa confusão entre a razão e a fé, que se pode considerá-
la como a característica deste ‘augustinismo’, dominante nas
escolas até à síntese albertino-tomista. 131

Sem embargo, é sob a pena de Alberto Magno que a filosofia ganha


autonomia enquanto ciência distinta da teologia e vice-versa. É Alberto mesmo
quem nos diz que os princípios das duas ciências – filosofia e teologia – são
irredutíveis uns aos outros: theologica non conveniunt cum philosophicis in
principiis. Referindo-se à doutrina de Santo Alberto, diz Reale: “(...) as coisas
teológicas não se conjugam com as coisas filosóficas em seus princípios.”132 De

131
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 204 e
205: Declina Gilson: Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 624 e 625: “De fato, o
século XIII é a época em que o pensamento cristão finalmente tomou consciência de suas
implicações filosóficas mais profundas e conseguiu, pela primeira vez, formulá-las de maneira
distinta. A consumação desta obra capital deve-se principalmente à colaboração de dois gênios
extraordinários, ambos da Ordem de São Domingos: Alberto Magno e santo Tomás de
Aquino.” (O itálico é nosso).
132
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 204.
fato, o princípio da filosofia é somente a razão; o da teologia é a fé, que
ultrapassa a razão. Além disso, os princípios filosóficos são evidentes por si; já
os teológicos só são conhecidos mediante a luz infusa (lumen infusum) da fé.
Ademais, a filosofia parte das criaturas, enquanto a teologia funda-se na
revelação de Deus.133 Por meio de uma análise criteriosa, que não nos cabe
desenvolver aqui, Alberto discrimina o que seja uma demonstração racional.
Gilson chega até a dizer que, se se a aceita, que a distinção entre o que é
demonstrável pela razão e o que não é, será o critério fundante da filosofia
moderna, será então preciso sempre acrescentar que a modernidade nasceu com
Alberto Magno e no século XIII:

Se a característica do pensamento moderno é a distinção entre o


que é demonstrável e o que não é, foi de fato no século XIII que a
filosofia moderna foi fundada, e é com Alberto magno que,
limitando-se a si mesma, ela toma consciência de seu valor e de
seus direitos.134

A partir da sua concepção de demonstração racional, ele percebe que


os mistérios da fé (Trindade, Encarnação, Redenção, etc) não são passíveis de
demonstração racional. Porquanto, foge à competência da filosofia – sendo ela
uma ciência exclusivamente racional – debruçar-se sobre eles. O Professor De
Boni, cita como expressão de Alberto a seguinte sentença: “(...) se deve tomar
por louco (amens) aquele que repreender os filósofos por não se interessarem

133
Estas diferenças, são enumeradas por Reale: Idem. Ibidem. p. 202: “1) no conhecimento
filosófico, utiliza-se somente a razão, ao passo que, com a fé, se vai além da razão; 2) a filosofia
parte de premissas que devem ser conhecidas por si mesmas, ou seja, imediatamente evidentes,
ao passo que na fé há um lumen infusum que reflui sobre a razão, abrindo-lhe perspectivas que,
de outro modo, seriam impensáveis; 3) a filosofia parte da experiência das coisas criadas,
enquanto a fé parte do Deus revelante (...)”.
134
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 631. (O itálico é nosso).
pela ressurreição (Flasch, 1989, p. 66) (...)”135. Diz Reale, com relação ao
pensamento de Alberto: “E com certeza, afirma Alberto, não se pode ter qualquer
conhecimento da Trindade, da Encarnação e da Ressurreição a partir de uma
perspectiva puramente racional.”136 Aliás, Santo Tomás, não deixa de abonar a
perspectiva aberta por seu Mestre. Com respeito ao dogma da Trindade, por
exemplo, é contundente ao afirmar: “É impossível chegar ao conhecimento da
Trindade das Pessoas divinas pela razão natural.”137
Destarte, se faz sentido que, para além das disciplinas filosóficas,
exista uma teológica, é precisamente para que esta trate, sobretudo, daquelas
coisas que aquela não alcança, a saber, daquelas coisas que dizem respeito à
salvação do homem, que ultrapassam à nossa razão e que, por conseguinte, nos
foram reveladas por Deus: “Era necessário existir para a salvação do homem,
além das disciplinas filosóficas, que são pesquisadas pela razão humana, uma
doutrina fundada na revelação divina.”138 Portanto, o antigo sonho de uma
filosofia religiosa e purificadora, a qual nos poderia consignar a salvação é
descartada. Não é mais do foro da filosofia dar-nos alcançar, pela razão, um
conhecimento gnóstico e salvador. Longe de Tomás, como comumente se
observa hoje, a concepção de uma filosofia “esotérica”, no sentido que
atualmente se dá a este termo. A Escritura Sagrada, enquanto inspirada por Deus,

135
Luis Alberto de Boni. As Condenações de 1277: Os Limites do Diálogo Entre a Filosofia
e a Teologia. In: DE BONI, Luis Alberto (Org.) Lógica e Linguagem na Idade Média. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 139.
136
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 204.
137
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 32, 1, C.
138
Idem. Ibidem. I, 1, 1, C. É muito importante o leitor notar que, uma coisa é dizer que a
teologia reflete sobre as verdades de fé de cuja aceitação depende a nossa salvação, outra seria
afirmar que ela mesma é uma doutrina é salvadora, o que seria de todo inexato. De fato, a
teologia não salva ninguém, nem nos leva ao assentimento da fé. Pelo contrário, ela supõe a fé,
pela qual somos salvos. Ao iniciar um tratado de teologia, assevera com mui clareza Penido:
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 37: “O que
pois aqui deixamos escrito, não se destina a levar incrédulos à crença, mas apenas a esclarecer
os crentes que já aderem às verdades católicas e desejam aprofundá-las na medida do possível.”
não é objeto de nenhuma das disciplinas filosóficas, todas obras exclusivas da
razão humana:

Ora, uma Escritura inspirada por Deus não faz parte das
disciplinas filosóficas, obras da razão humana. Portanto, é útil
que além das disciplinas filosóficas, haja outra ciência inspirada
por Deus.139

Daí concluir Gilson, arrematando estes dados:

A partir de Alberto Magno, vamos assistir a uma restrição


progressiva das exegeses teológicas impostas à razão e,
inversamente, das responsabilidades filosóficas impostas à
teologia.140

Desta sorte, muitos assuntos que outrora eram tratados como


filosóficos, deixam de o ser, revelando-se, desta feita, como problemas não-
filosóficos e passam, por isso mesmo, a ser reconhecidos como de escopo
teológico. Ao contrário, muitas questões que eram da esfera filosófica e que,
durante muito tempo, tinham sido aprisionadas em intermináveis querelas
teológicas, descobrem-se, desde então, como de competência unicamente
filosófica e retornam, pois, ao bojo do procedimento filosófico. Com respeito à
teologia se manter dentro dos limites que lhe impõe o seu próprio objeto
específico, é emblemática a sentença de Alberto: “A Teologia deve se manter
casta dentro dos limites da fé, a fim de não fornicar através de fantasias.”141
Aponta Gilson, em relação aos corolários, frutos da reflexão albertina:

139
Idem. Ibidem. I, 1, 1, SC.
140
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630.
141
Alberto Magno. Sobre Lucas. 1, 5. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval: Textos.
Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180.
A Idade Média vai, pois, se encaminhar progressivamente para
uma separação cada vez mais completa entre os dois domínios,
retirando sucessivamente da filosofia vários problemas que lhe
haviam sido submetidos a princípio e atribuindo-os ao domínio
da teologia positiva, ou, ao contrário, liberando a teologia do
cuidado de solucionar alguns deles e deixando a filosofia livre de
decidir a esse respeito.142

Mesmo quando ocorre a coincidência entre certos números de


questões, relevantes tanto a filosofia como a teologia, elas são tratadas pelas
duas ciências por métodos distintos. De fato, no seio mesmo da Revelação,
inclusive na Bíblia, encontra-se certo número de verdades que, apesar de serem
reveladas quanto ao modo, são essencialmente naturais. Diz Gilson: “No
ensinamento da Escritura, há mistério e há indemonstrável, mas há também
inteligível e demonstrável.”143
Em verdade, Deus não revelou somente aquilo que foge ao alcance da
razão. Dizíamos acima que a teologia existe para tratar das verdades relativas à
salvação do homem. Complementávamos ainda que, essas verdades, por serem
inatingíveis pela razão, são reveladas por Deus. Contudo, é preciso também dizer
que, estas verdades essencialmente reveladas, pressupõe certas outras verdades,
como a existência de Deus, que, por si mesmas, podem ser alcançadas pela
razão: “Fides praessupponit cognitionem naturalem (...)”.144 Estas tais verdades
naturais, não são, portanto, para Tomás, propriamente artigos de fé, mas
preâmbulos destes: “(...) a existência de Deus e as outras verdades referentes a
Deus, acessíveis à razão natural, como diz o Apóstolo, não são artigos de fé, mas
preâmbulos dos artigos.”145
Mas, poderia perguntar alguém: não nos foi revelado que Deus existe?
Sim, foi. Entretanto, de per si, esta verdade é passível de demonstração racional.

142
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 630 e 631.
143
Idem. Ibidem. p. 657.
144
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 2, ad 1.
145
Idem. Ibidem: “(...) non sunt articuli fidei, sed preambula ad articulos (...)”.
Mas, insistiria ainda alguém: se são cognoscíveis à luz da razão natural, porque
Deus ainda as revelou? Porque, como dizíamos acima, também delas dependem a
nossa salvação, no sentido que todas as verdades de fé enquanto são reveladas
por Deus, pressupõem a existência de Deus que as revele. Agora bem, é mui
trabalhoso e difícil se demonstrar a existência de Deus. Poucos são os que
conseguem atingir as verdades divinas acessíveis à razão. Elas são a última parte
a ser estudada em filosofia. Mesmo aqueles que conseguem chegar até elas,
quase sempre não o fazem, sem estarem, ao mesmo tempo, acometidos por erros
e contradições. E, no entanto, delas dependem a nossa salvação. Logo, para que
a salvação estivesse ao alcance de todos, e tais verdades nos chegassem com
mais rapidez, puras e isentas de erro, Deus oportunamente as revelou. Cedamos
à palavra ao Doutor Communis:

Até mesmo com relação ao que a razão humana pode pesquisar a


respeito de Deus, era preciso que o homem fosse também
instruído por revelação divina. Com efeito, a verdade sobre Deus
pesquisada pela razão humana chegaria apenas a pequeno
número, depois de muito tempo e cheia de erros. No entanto, do
conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que
se encontra em Deus. Assim, para que a salvação chegasse aos
homens, com mais facilidade e maior garantia, era necessário
fossem eles instruídos a respeito de Deus por uma revelação
divina.146

146
Idem. Ibidem. I, 1, 1, C. Este assunto não era marginal para Tomás. A ele retorna, em outros
lugares da mesma obra: Idem. Ibidem. II-II, 2, 4, C: “Portanto, para que haja entre os homens
um conhecimento de Deus que seja indubitável e certo, foi necessário que as verdades divinas
(ele se refere àquelas que, de per si, são acessíveis à razão), fossem transmitidas pela fé, como
sendo ditadas por Deus, que não pode mentir.” (O parêntese é nosso). Idem. Ibidem. II-II, 2, 4,
ad 1: “Portanto, deve-se dizer que a investigação da razão natural não é suficiente ao gênero
humano para o conhecimento das coisas divinas, mesmo as que podem ser demonstradas pela
razão.” (O itálico é nosso).
Para aquele, enfim, que consegue atingir, mediante demonstração, a
certeza da existência de Deus e de outras verdades divinas acessíveis à razão,
não é mais possível crer que Deus existe, pois não nos é possível, na visão de
Santo Tomás – diferentemente de muitos de seus coetâneos (São Boaventura, o
próprio Alberto Magno, etc) ter fé e ciência, de um mesmo objeto, sob o mesmo
aspecto e ao mesmo tempo.147 Tomás é muito insistente e não tergiversa em dizer
que um mesmo indivíduo não pode ter ciência do que crê, nem crer do que tem
ciência.148 É bem verdade que, nada impede que um indivíduo - por exemplo,
aquele que não apreende a demonstração da existência de Deus - creia naquilo
que não pode compreender.149 Neste sentido, pode acontecer que, enquanto um
sabe demonstrativamente que Deus existe, outro, que não consegue compreender
a demonstração, creia que Deus existe.150 No entanto, adverte rapidamente
Tomás, permanece sendo sempre impossível que um mesmo indivíduo, a respeito
de um mesmo objeto, tenha fé e ciência simultaneamente.151 E Santo Tomás vai
mais além ainda, ao dizer que estas verdades, que podem ser cridas por um e
sabidas por outro, não são propriamente verdades de fé, mas preâmbulos delas,
conforme já havíamos acima notado.152 Verdades de fé propriamente ditas são,

147
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 4: “Mas do mesmo objeto, segundo o mesmo aspecto, não pode o
mesmo homem ter simultaneamente ciência e opinião nem ciência e fé (...)”. (O itálico é nosso).
148
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C: “Ora, não é possível, como se viu acima, que uma coisa seja
crida e vista pelo mesmo indivíduo. É, pois, impossível que, do mesmo objeto, o mesmo
indivíduo, tenha ciência e fé.”
149
Idem. Ibidem. I, 2, 2, ad 1: “No entanto, nada impede que aquilo que, por si é demonstrável e
compreensível, seja recebido como objeto de fé por aquele que não consegue apreender a
demonstração.”
150
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C: “Assim, pode acontecer que aquilo que é visto ou conhecido por
um homem, mesmo no estado de vida presente, seja crido por outro, que não conhece
demonstrativamente tal coisa.”
151
Idem. Ibidem. II-II, 2, 4, ad 2: “Deve-se dizer que um mesmo sujeito não pode ter ciência e
fé de um mesmo objeto. Mas o que é sabido por um, pode ser crido por outro, como foi dito
acima.”
152
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 3: “Deve-se dizer que há coisas que se devem crer, embora
possam ser provadas demonstrativamente, não porque sejam objeto de fé para todos, mas
portanto, somente aquelas que devem ser cridas por todos indistintamente, e não
sabidas por nenhum. Por isso mesmo, somente aquelas verdades que só podem
ser conhecidas por revelação são verdade de fé:

Aquilo, porém, que é proposto a todos os homens em comum


para crer não é sabido por todos. E estas verdades são em
absoluto as da fé. Eis por que, fé e ciência não têm o mesmo
domínio.153

Aliás, é por isso também, que as verdades de fé não podem ser


demonstradas filosoficamente. Na verdade, se pudessem, deixariam, ipso facto,
de ser verdades de fé. E como a teologia se fundamenta na fé, sem a fé, ela
própria não subsistiria. Portanto, o racionalismo em teologia, é um processo
auto-destrutivo. Donde, o Aquinatense ter sempre se preocupado em mostrar,
que a atividade teológica, não visa nunca demonstrar racionalmente as verdades
de fé: “Deve-se dizer que as razões aduzidas pelos Santos para provar as coisas
da fé não são demonstrativas (...)”.154
No entanto, antes de prosseguirmos no nosso pequeno itinerário, cabe
aqui aduzir uma nota importante, da qual não poderemos olvidar, sob pena de
trairmos o pensamento mestre. Tomás não opõe ciência e fé, no sentido que
alguns entenderam (Pe. Laberthonnière155), como se a fé fosse uma “não-

porque constituem preâmbulos exigidos à fé, é necessário que ao menos por meio da fé sejam
aceitos pelos que não têm a sua demonstração.” (O itálico é nosso).
153
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, C
154
Idem. Ibidem. II-II, 1, 5, ad 2.
155
Luciano Laberthonière (1850-1932), ao lado de Alfredo Loisy (1857-194), um dos “pais” do
modernismo católico. Laberthonière foi sacerdote oratoriano (Como o foi Malembranche).
Uma das principais obras de Pe. Laberthonière é Essais de Philosophie Religieuse, de 1903.
Penido dialoga com ele, entretanto, através de um texto, assinado por ele como: “S. Tomás e a
Relação entre a Razão e a Fé”. Algumas rápidas notas a respeito do modernismo católico,
ajudarão a situarmo-nos na questão. O modernismo, ao qual se vinculava Laberthonière, foi um
movimento nascido nos finais dos XIX, primeiramente em filosofia, sendo classificado mesmo
como uma filosofia imanentista, ou seja, uma filosofia que buscava encontrar o real somente na
ciência” enquanto a ciência fosse um conhecimento certo.156 A falar com exação,
tomadas nelas mesmas, quero dizer, ciência natural e fé, as duas são ciências. A
fé contém a ciência de Deus e dos bem-aventurados, enquanto a ciência natural é
a ciência dos homens. E, neste sentido, Tomás apenas opõe uma ciência à outra.
As verdades de fé, portanto, tomadas em si mesmas, são conhecimentos
eminentemente inteligíveis, são evidentíssimas: “O dogma, longe ser ‘um
incognoscível puro’, é, de si, eminentemente inteligível (In Boet. q. 2 a.2).” Por
isso mesmo, a fé em si mesma é uma ciência. Aliás, falando absolutamente, é a
mais nobre das ciências, posto que seja a própria ciência de Deus e dos bem-
aventurados enquanto Revelada. Entretanto, para nós, dada a finitude do nosso
espírito, aquilo que é ciência para os anjos, deve ser recebido por Revelação em

consciência. Entrou na Igreja e começou a influenciar certas escolas da teologia católica. De


fato, alguns teólogos mais entusiasmados, ociosos por uma renovação da teologia tradicional,
começaram a empreitar a formulação de uma síntese entre a teologia tradicional e o
pensamento modernista. Do ponto de vista da teologia católica, no entanto, esta tentativa de
síntese – por se tratar de correntes realmente inconciliáveis - foi desastrosa. Pio X, finalmente
condenou o modernismo, de forma enérgica e pormenorizada, em todos os seus pilares, na sua
famosa encíclica Pascendi Domini Gregis (1907). Na sua “versão” católica, o movimento
modernista esposava a tese de que Deus se revelava, imediatamente e sem intermediários, ao
homem, por meio da sua consciência. Como conseqüência a Bíblia e os dogmas, só se
configuram como uma expressão, muito imperfeita (simbolismo) aliás, desta revelação que se
esconde nos recônditos da nossa consciência. Dando o primado à experiência religiosa, que
seria o lugar onde Deus se revela à consciência do homem, os modernistas defendiam que a
Bíblia e os dogmas só deveriam ser encarados como uma exteriorização, circunstanciada pela
história e limitada pelo tempo, daquela primazia que davam à experiência religiosa. É claro que
numa doutrina como essa, a teologia especulativa, que se debruça sobre a Bíblia e sobre os
dogmas, era de pouca valia e deveria ceder lugar a práxis, isto é, a revelação de Deus que, antes
de tudo, se apresentava como um princípio de ação!
156
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 242:
“(...) ciência e fé não têm, de modo algum, o sentido ele (Laberthonnière) lhes empresta. Não
são coisas ‘equívocas’, opostas como sabido e não-sabido, mas concordam em ser ambas
conhecimentos, e, portanto, ‘ciências’, na acepção dada por Laberthonnière a este termo.” (O
parêntese é nosso).
nós. Na seguinte passagem da Suma Teológica, Tomás assevera que o que é de fé
para nós, já é ciência para os anjos:

Assim o que nós cremos a respeito da Trindade nós esperamos


que um dia veremos, conforme a primeira Carta aos Coríntios:
‘Agora, vemos por espelho, de maneira confusa, então veremos
face a face’. Esta visão, os anjos já têm: portanto, aquilo que
cremos, eles vêem. 157

E há mais. Nem sequer nós aceitamos o que é de fé como um puro


“não-saber”. De fato, no ato de fé, que precede toda e qualquer teologia, somos
auxiliados por dons divinos, para que entendamos o que nos é proposto como
objeto de fé, distinguindo-o bem de tudo mais. Esta ciência, que é um dom do
Espírito Santo, é concedida a todos. Sobre esta primeira espécie de ciência, diz
Santo Tomás: “Uma, pela qual o homem sabe o que é preciso crer, distinguindo
bem aquilo que se deve crer ou não deve crer. E, nesse sentido, a ciência é um
dom que convém a todos os santos.”158 Para sermos ainda mais precisos,
discriminemos, no ato mesmo de crer, os dois dons que nos auxiliam. O
primeiro consiste em que a nossa inteligência seja sobrelevada, a fim de que
apreenda o que se lhe propõe como objeto de fé. O segundo, diz respeito ao
nosso juízo, que também é iluminado para que saiba distinguir com precisão, o
que é de fé divina no objeto mesmo que nos é proposto para crer. É o dom da
ciência:

Por isso, para que nossa inteligência humana adira perfeitamente


à verdade da fé, duas condições são exigidas. Uma compreender
bem o objeto proposto; o que compete ao dom da inteligência,
como acima foi dito. Outra, ter o juízo certo e reto do objeto

157
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, C: (O itálico é nosso).
158
Idem. Ibidem. II-II, 9, 1, ad 2.
proposto, discernindo o que deve ou não deve crer. E para isso o
dom da ciência é necessário.159

É por essas razões que o nosso Penido não aceita a tese do Pe.
Laberthonnière, que atesta que a fé exclui toda e qualquer ciência de forma
absoluta. Segundo Laberthonnière a fé se afasta da ciência, como o saber do
não-saber. Sua tese seria até atenuada e aceita por Penido, se ele acrescentasse
que a fé exclui – como dizíamos – uma ciência que consistisse na demonstração
filosófica da sua verdade. Seria ainda aceita por Penido, se Laberthonnière
propugna-se que a fé se opõe a ciência natural, no sentido de que, a ciência que
temos da fé, como pressuposto do ato mesmo de fé, não se dá sem a elevação do
nosso intelecto pela assistência dos dons do Espírito Santo, dons de inteligência
e ciência. Por conseguinte, mesmo que o dogma seja, para a razão pagã, um
incognoscível puro, não o é para a razão cristã: “(...) e mesmo relativamente a
nós, se é incognoscível para a razão pagã, não é um ‘incognoscível puro’, pois a
razão o conhece.”160 Se o ilustre sacerdote tivesse adotado quaisquer destas
colocações, certamente Penido as acataria de bom grado e até agradeceria o
colega, pois a oposição que Tomás estabelece entre fé e ciência é, para Penido,
antes de tudo, justamente com o intento de mostrar que a religião não é uma
filosofia: “Ao distinguir ‘ciência e fé’, queremos simplesmente afirmar que a
religião não é filosofia.”161 Entretanto, como Laberthonnière opõe fé e ciência de
forma absoluta, sem abrir nenhuma concessão, insinuando assim que a fé está

159
Idem. Ibidem. II-II, 9, 1, C. Idem. Ibidem. II-II, 8, 6, C: “Portanto, em relação às proposições
da fé, que nós devemos crer, impõe-se dupla exigência. Primeiro, que elas sejam penetradas ou
apreendidas pela inteligência e isto cabe ao dom da inteligência. Mas, em segundo lugar, é
preciso que o homem as julgue retamente, considerando que deve aderir a elas e afastar-se do
que lhe é oposto. (...)”. De qualquer forma, é necessário ter sempre presente que os
conhecimentos prévios ao ato de fé – repitamos mais uma vez – não tem como pretensão nos
fazer ver o mistério, isto seria eliminar a fé. Eles visam apenas nos fazer ver o que nos é
proposto, no enunciado de fé, para crer:
160
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 244.
161
Idem. Ibidem p. 245.
destituída de toda e qualquer ciência – como já assinalavam certos protestantes
da época (Barth) – ele merece a censura de Penido que lhe foi, realmente, pouco
indulgente no julgamento:

E’, pois, de todo infundado adiantar que, para S. Tomás, ‘a fé


exclui a ciência, isto é, o conhecimento intrínseco de seu objeto,
pois, pelo contrário, ela implica este conhecimento intrínseco,
embora não exaustivo. A oposição entre ciência e fé não nasce,
portanto, do fato de ser uma um saber e outra um “não-saber”,
mas, sim, da origem e do caráter destes saberes: se a ciência é um
conhecimento, a fé também o é, embora não-evidente, e obtida
por via de revelação. Para S. Tomás, a questão é pois: conhece a
fé o seu objeto? – mas, sim: pode-se dispensar a revelação? Está a
crença religiosa no ápice de uma escada de silogismos?162

Tentemos encarar esta importante questão mais de perto. Em outro


lugar Santo Tomás opõe ciência e opinião: ciência é conhecimento certo e
necessário, que não pode ser de outro modo; já opinião é conhecimento incerto,
passível de engano e que, portanto, pode mudar. Por isso mesmo,
simultaneamente, num mesmo indivíduo, não podem coexistir, sobre um único
objeto, ciência e opinião.163 Santo Tomás, de fato, referenda esta oposição para o
campo da fé, opondo então fé e ciência. Entretanto, a transposição não é unívoca,
é analógica. Não se trata, portanto, simplesmente de dizer que, tal como opinião
e ciência se opõem, ciência e fé se opõem também, pois a fé não é uma opinião.
Com efeito, a fé, tal como a ciência, fixa-se na impossibilidade estrita das suas
verdades serem de outro modo. Ambas são, pois, neste aspecto, conhecimentos

162
Idem. Ibidem. p. 243.
163
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, ad 4: “De fato, a ciência não pode,
absolutamente falando, em relação ao mesmo objeto ser simultânea com a opinião, pois a
ciência consiste essencialmente em admitir a impossibilidade de ser de outro modo, aquilo que
sabe ser verdadeiro; ao contrário, a opinião consiste em que uma possa ser diversa daquilo que
se pensa.” (O itálico é nosso).
certos. E, entretanto, a fé é uma ciência de outra ordem. De fato, enquanto a
nossa ciência retira a necessidade das suas verdades serem tais quais são, em
virtude da evidência delas, a fé, ao contrário, não funda a sua certeza na visão das
suas verdades, mas baseia-se na autoridade divina, que não pode enganar-se e
nem enganar-nos. E é neste sentido, ou seja, enquanto as duas ciências não
obtêm da mesma forma o fundamento das suas certezas, é que podemos dizer que
elas se opõem e não podem existir simultaneamente num mesmo indivíduo, a
respeito de um mesmo aspecto e de um mesmo objeto:

Contudo, aquilo que se afirma pela fé, por causa da certeza que
ela implica, mostra a impossibilidade de ser de outro modo. Mas,
um mesmo objeto não pode simultaneamente e sob o mesmo
aspecto ser objeto de ciência e de fé, porque a coisa sabida é,
como coisa vista, mas o que se crê não se vê, como foi dito
acima.164

Portanto, se, por um lado, querer sustentar em Tomás que a fé é cega,


como um “pulo no escuro” ou um salto “no absoluto desconhecido”, seja um
disparate165, por outro, é necessário ter sempre presente que os conhecimentos
prévios ao ato de fé – repitamos mais uma vez – não tem como pretensão nos
fazer ver o mistério, pois isto seria eliminar a fé. Ao contrário, eles visam apenas
nos fazer ver o que nos é proposto, no enunciado de fé, para crer:

Deve-se dizer que a audição tem por objeto as palavras que


significam o que é de fé, mas não as coisas mesmas que são

164
Idem. Ibidem. No que toca a legitimidade e fundação de uma ciência teológica, fundada na
fé, falaremos mais à frente. Será tema de todo um capítulo. Aqui basta termos estabelecido que
a fé não se oponha à ciência como uma “não-ciência”.
165
Idem. Idem. II-II, 8, 8, ad 2: “Deve-se dizer que a fé não pode preceder, em tudo, à
inteligência, pois o homem não pode assentir, crendo em coisas que lhe são propostas sem, de
certo modo, conhecê-las.”
matérias de fé. E assim não se deve concluir que essas coisas
sejam vistas.166

Desta sorte, se dizemos que a fé é uma ciência para nós, no sentido de


que vemos, nelas mesmas, as verdades que ela propõe, isto não procede. Pois, de
fato, neste sentido na fé não há visão, porque uma não poderia coexistir com a
outra, são excludentes. Mas, se dissemos que temos inteligência da fé, no sentido
de que entendemos no que se deve crer, então a fé já é, para nós, uma ciência. E
isso é razoável!167 Agora bem, estes conhecimentos prévios, que temos que ter
antes de crer, não visam substituir a autoridade de Deus, na qual se funda o ato
de fé168, mas apenas atestar que aquilo que nos foi proposto é, de fato, de
revelação divina e, ipso facto, não contradiz a razão.169 E assim, é digno da
nossa credibilidade (credibilis). Em outras palavras, a fé não é um ato de
credulidade – crer em qualquer coisa, crer cegamente – mas um ato de
credibilidade, ou seja, creio porque sei que Deus, que não mente, nos revelou
isto. E creio que foi Deus que revelou isso, entre outras coisas, porque esta

166
Idem. Ibidem. II-II, 1, 4, ad 4.
167
É neste sentido, qual seja, de nos fazer ver o que devemos crer, que entendemos a sentença
de Santo Tomás pode dizer: Idem. Ibidem. II-II, 1, 4, ad 3: “Deve-se dizer que a luz da fé nos
ver aquilo que se crê.”(Dicendum quod lumen fidei facit videre ea quae creduntur). (O itálico é
nosso). Para se verificar se este conhecimento caia sob a razão de ciência, é só atentar para os
sentidos em que esta expressão, “scientia”, era entendida pelos escolásticos: Maurílio Teixeira
Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Trad. Dinarte Duarte Passos.
Rio de Janeiro: Vozes, 1946. n..146: “a) late: pro quacumque cognitione certa, licet non
evidenti, ut est fides; b) minus late: pro quacumque cognitione certa et evidenti , sed non per
causas comparata, ut est cognitio primorum principiorum c) stricte: ut definitur a Phil.
cognitio rei per causam, propter quam est res, et quod est ejus causa e non contingit aliter se
habere.” (Os itálicos são nossos).
168
Nunca nos cansaremos de dizer, com Santo Tomás: Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-
II, 1, 1, C: “(...) a fé da qual falávamos não dá seu assentimento a alguma coisa a não ser que
seja revelado por Deus (...)”.
169
Mais tarde, iremos explicar o “porque” deste “ipso facto”, ou seja, porque não poder haver
contradição alguma entre a revelação divina e a razão natural.
verdade, embora não possa eu compreendê-la perfeitamente, não é contraditória.
Eis como explica Tomás:

Deve-se dizer que as coisas sujeitas à fé podem ser consideradas


de duas maneiras. Primeiro, no seu específico: e assim não
podem ser vistas e cridas, ao mesmo tempo, como foi dito.
Depois, no geral, isto é, sob o aspecto comum de credibilidade
(credibilis); e assim são vistas por aquele que crê; ele não
acreditaria, se não visse que estas coisas devem ser cridas, ou
por causa da evidência dos sinais ou por qualquer outra razão
análoga.170

Em outra passagem memorável da Suma – que vale a pena transcrever


na íntegra – que Tomás fala da coexistência do dom da inteligência com o da fé,
delineando de que modo uma não exclui a outra:

Da parte da inteligência, devemos distinguir duas maneiras,


segundo as quais podemos entender as coisas. De um modo,
perfeitamente, quando atingimos a essência da coisa e da verdade
da proposição inteligida, como em si mesma é. Desse modo, nós
não podemos conhecer as verdades que caem diretamente no
campo da fé, enquanto dura o estado de fé. (...) – De outra
maneira, acontece que algo seja conhecido imperfeitamente:
quando não se conhece ou a verdade da proposição, isto é, o que
é ou como ela é; mas se conhece que as coisas que exteriormente
aparecem não se opõem à verdade; isto é, quando o homem
compreende que por causa das coisas que aparecem
exteriormente não deve afastar-se das coisas que são de fé. E,
desse modo, nada impede que, enquanto dura o estado de fé, se
conheçam também aquelas coisas que essencialmente lhe
pertencem.171
170
Idem. Ibidem. II-II, 1, 4, ad 2. (O parêntese e o itálicos são nossos).
171
Idem. Ibidem. II-II, 8, 2, C.
Um último aditivo sobre este aspecto. Não deixemos de recordar, que
todos estes preâmbulos à ao ato de fé, toda “credibilis”, não é obra da razão
natural sozinha. Todo este intróito acontece, já sob o influxo dos dons do
Espírito. Não é à toa que, num outro contexto, mas que se adapta perfeitamente
ao que dizemos aqui, Santo Tomás afirma, categoricamente, que a é a graça que
causa a fé:

A graça não faz menos quando sobrevém ao fiel do que ao infiel,


porque em ambos produz a fé (gratia facit fidem), porque em
ambos produz a fé; num, confirmando-a e aperfeiçoando-a;
noutro, causando-a inicialmente.172

O des-graçado (sem a graça) racionalista, portanto, abandonado a si


mesmo, nunca chegará à fé! Até porque, diz o Aquinate em outra passagem
capital da Suma que, sem a graça, até a letra do Evangelho, longe de causar a fé,
seria morta e mortífera: “Portanto, também a letra do Evangelho mataria, a não
ser que estivesse presente, interiormente, a graça da fé que cura.”173. É, enfim,
por ser obra da graça e não conquista da inteligência, que qualquer velhinha
cristã, que não tem mais força para as altas galgadas metafísicas, pode saber
mais sobre de Deus, do que quaisquer dos filósofos que viveram antes da vinda
de Cristo:

Eis porque nenhum filósofo antes da vinda de Cristo, apesar do


grande esforço intelectual que despendia, pôde chegar ao
conhecimento de Deus e dos meios necessários para alcançar a
vida eterna, como, depois do advento de Cristo, qualquer
velhinha o pôde pela fé (...).174

172
Idem. Ibidem II-II, 4, 4, ad 3. (O parêntese é nosso); Idem. Suma Contra os Gentios. III,
CLIII, 2 (3251): “Fidem (...) quae causatur ex gratia (...)”.
173
Idem. Suma Teológica. I-II, 106, 2, C.
174
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
Entretanto, é hora de retomarmos à caminhada. O fato que nos prendia
e interessava aqui era que, verdades há sobre Deus que os filósofos, alhures, já
haviam perscrutado e demonstrado. Não obstante, havíamos visto também, que
existem outras verdades a respeito das coisas divinas que, sendo essencialmente
reveladas, ultrapassam de todo à capacidade de nosso intelecto. Santo Tomás é
claro ao diferenciá-las:

Há, com efeito, duas ordens de verdades que afirmamos de Deus.


Algumas são verdades referentes a Deus e que excedem toda
capacidade da razão humana, como, por exemplo, Deus ser trino
e uno. Outras são aquelas as quais a razão pode admitir, como,
por exemplo, Deus ser, Deus uno, e outras semelhantes. Estas os
filósofos, conduzidos pela luz da razão natural, provaram, por
via demonstrativa, poderem ser realmente atribuídas a Deus.175

Tomás leva tão a sério esta distinção176, que impõe a uma de suas
principais obras, a Suma Contra os Gentios, um método construído exatamente
sob tal distinção. De fato, a monumental obra é dividida em quatro livros. Nos
três primeiros, o Aquinate se propõe a tratar daquelas verdades a respeito de
Deus que a razão natural pode alcançar por seus procedimentos próprios. O
quarto livro é consagrado aos mistérios da fé, cujo fundamento é a revelação de
Deus. A elas a razão não pode chegar sozinha. Tal preocupação no Aquinate nos
mostra, no mínimo, o seu cuidado crítico frente às questões das relações entre fé

175
Idem. Suma Contra os Gentios. I, III, 2 (13). (O itálico é nosso).
176
Que ele retoma constantemente. Na Suma Teológica, relembra esta distinção, em diversos
momentos: Idem. Suma Teológica. II-II, 8, 2, C: “Aqui cabe uma dupla distinção: uma em
relação à fé e outra, à inteligência. Quanto à fé, devemos distinguir as coisas que lhe pertencem
por si e diretamente e superam a razão natural, como por exemplo, que Deus é uno e trino, que o
Filho de Deu se encarnou; e outras verdades que lhe pertencem por estarem de alguma maneira
a ela ordenadas, como todas as coisas contidas na Sagrada Escritura.”
e razão, entre filosofia e teologia.177 Tomás é declaradamente intransigente
quanto às tentativas de se tentar demonstrar as verdades de fé. Diz ele que,
tentar demonstrá-las, é empresa falida, além de absurda. Deve-se admiti-las,
unicamente por terem sido reveladas por Deus. O único modo de atestá-las é por
argumentos de autoridade, sacados das Sagradas Escrituras e pelos milagres.178
É bem verdade que, entre os fiéis, pode-se até mostrar certas razões verossímeis a
respeito destas verdades, nunca pretendendo demonstrá-las, mas apenas para
edificação dos que já crêem; entre os infiéis, é melhor nem destas “razões de
conveniências” se valer a todo custo. De fato, isto poderia os levar a pensar que
cremos nela por razões tão frágeis:

Mas para que as verdades de fé sejam esclarecidas devem ser


apresentadas algumas razões verossímeis, que sirvam para o
auxílio e exercício dos fiéis, não para convencer os adversários.
Realmente, a própria insuficiência dessas razões mais os
confirmaria em seus erros, ao julgar que nós assentimos à
verdade da fé com razões tão frágeis.179

177
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 4 (55/56): “Pretendendo proceder nesta obra
conforme o método a que nos propusemos, em primeiro lugar envidaremos esforços para o
esclarecimento daquela verdade professada pela fé e investigada pela razão, apresentando
argumentos demonstrativos e prováveis, alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filósofos
e dos santos, e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversário confundido (1. I, II, III).
Em segundo lugar, partindo das coisas mais claras para as menos claras, procederemos, na
manifestação da verdade da fé que exceda a razão, desfazendo as razões dos adversários e
declarando, mediante razões prováveis e de autoridade, a verdade da fé, na medida em que Deus
nos auxilie (Tema do 1. IV).”
178
Idem. Ibidem. I, IX, 3 (53): “O único modo de se convencer o adversário da segunda ordem
de verdades ( isto é, as verdades de fé) consiste no recurso à autoridade das Escrituras,
confirmada pelos milagres. Ora, não cremos em verdades que excedem a capacidade da razão
humana, a não ser que tenham sido reveladas por Deus.” (O itálico e o parêntese são nossos).
179
Idem. Ibidem. I, IX, 3 (54). (O itálico é nosso).
O Aquinate tinha “pavor” de qualquer forma de racionalismo!
Fazendo uma analogia o dito da “mulher de César”, diríamos também que o
teólogo não só não deve tentar demonstrar os mistérios da fé, mas não deve
sequer fazer parecer ao público que tenta demonstrá-los. Enquanto certos
doutores se valiam de tais pseudo-demonstrações por razões apologéticas, o
Doutor Comum, ao contrário, faz questão de ressaltar que tais “demonstrações”,
longe de concorrerem para o convencimento dos pagãos, só os confirmaria mais
em seus erros, isto quando não lhes dessem motivos para ridicularizar as
verdades de fé. Em certo artigo da Suma de Teologia, quando trata do início
temporal do mundo, que só pode ser conhecido com certeza pela revelação
bíblica, aduz Tomás o seguinte comentário:

Esta consideração é útil para evitar que, pretendendo alguém


demonstrar um artigo de fé, aduz argumentos não rigorosos, que
dêem aos que não crêem matéria de escárnio, fazendo-os supor
que nós cremos o que é de fé por tais argumentos.180

Enquanto alguns doutores viam na demonstração das verdades de fé,


um corolário da própria fé - portanto, algo pio que deve ser ansiado - Tomás, ao
contrário, cerca-se de todo cuidado, prevenindo-se desta tendência. No quarto
livro da Suma Contra os Gentios - no qual se entrega ao estudo das verdades
propriamente reveladas - sem dúvida que se vale da razão para alcançar certa
inteligência dos mistérios, mas não sem antes precaver-se daquilo que parece ser
o que ele mais teme, a impiedade por antonomásia: o racionalismo no dogma e,
por conseguinte, a absorção e anulação do sobrenatural no natural. Por isso
mesmo, na introdução do livro quarto, não deixa de cercar os insondáveis
mistérios da fé de toda a sua arcana e impenetrável força. Eis uma das
passagens, onde fica mais patente o anti-racionalismo (anti-racionalismo, não
anti-racional!) teológico do Doutor Eclesiae, onde a razão não é o seu princípio,
nem o fundamento das suas demonstrações:

180
Idem. Suma Teológica. I, 46, 2, C. (O itálico é nosso).
(...) Com efeito, como apenas ouvimos essas verdades nas
palavras da Escrituras, como pequena gota que desce até nós, e
como não é possível no estado desta vida compreender os trovões
do seu poder, aqui será seguido o método seguinte: as coisas
transmitidas pelas palavras da Sagrada Escritura serão tomadas
como princípios. Desse modo, o que ocultamente nos é
transmitido nas palavras indicadas, procuraremos aprender de
algum modo pela inteligência, defendendo-a dos ataques dos
infiéis. No entanto, sem ter a presunção de conhecê-las
perfeitamente, serão comprovadas pela autoridade da Sagrada
Escritura, não por razão natural. (...).181

Sem podermos nos aprofundar neste tema, vemos que a teologia de


Tomás é, por excelência, teologia do alto. A presunção é, portanto, querer
esgotar o dado revelado na razão.182 E a presunção é, pois, a mãe de todo erro:
“(...) da presunção, que é a mãe do erro (Praessunptionis, quae est mater
erroris).”183 Numa notável passagem da Suma Teológica, Santo Tomás
condensa, com meridiana clareza, nas duas razões que já arrolamos acima, toda
a nocividade das pseudo-demonstrações dos mistérios da fé, para a própria fé:
181
Idem. Suma Contra os Gentios. IV, I, 8 (3348). (Os itálicos são nossos). Enceta-nos Penido
– o mais eminente e proeminente dentre os nossos tomistas – referindo-se à ciência teológica,
enquanto esta é distinta da filosofia em seus princípios fundantes, a seguinte afirmação:
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 43: “Difere
também quanto ao princípio do conhecimento, à luz espiritual que descobre a verdade sobre
Deus. No caso da teologia, não é mais pura razão, mas antes revelação. A inteligência não
descobre, recebe. À evidência racional, substitui-se a simples palavra de um testemunho:
Deus.” (O itálico é nosso).
182
Para Tomás os argumentos teológicos só serão úteis, na medida em que não pretenderem ser
mais do que são, ou seja, “convenientes” e nunca demonstrativos! Caso caiam nesta presunção,
voltam-se contra a própria teologia que os produziu: Idem. Suma Contra os Gentios. I, VIII, 3
(49): “Não obstante, é útil para a mente humana exercitar-se no conhecimento dessas razões, por
mais fracas que sejam, desde que se afaste da presunção (praesumptio) de compreendê-las
(comprehendendi) ou demonstrá-las (demonstrandi).” (Os itálicos são nossos).
183
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, V, 4 (31).
E aquele que pretende provar a Trindade das Pessoas pela razão
natural vai duplamente de encontro à fé. Primeiro, com respeito à
dignidade da própria fé, que tem por objeto as coisas invisíveis,
que ultrapassam a razão humana. (...) Em segundo lugar, com
respeito aos meios de levar às pessoas à fé. Com efeito, quando
se dão como prova da fé razão não convincentes, cai-se no
desprezo dos infiéis, porque eles pensam que nos apoiamos sobre
estas razões, e por causa dela cremos.184

Por conseguinte, pode-se concluir, que o caráter científico que Tomás


cria, elabora e dá à teologia, longe de levá-la ao racionalismo, a funda como
teologia do alto: “O que rege a teologia não é o lume da razão mas a claridade
trevosa da fé.”185 Com Santo Tomás, nasce a teologia como ciência do alto. Ele
mesmo o diz, explicitamente e com todas as letras, que a sua teologia é
descendente, porque a fé que a fundamenta, é sabedoria do alto, que desce de
Deus:

Como a razão natural eleva-se ao conhecimento de Deus


mediante as criaturas, mas o conhecimento que temos de Deus
pela fé, de modo contrário, desce mediante a revelação divina,
resulta que a vida de subida e de descida é a mesma.186

Mas, voltemos ainda à nossa distinção entre as duas teologias. De fato,


mesmo quando tratam das coisas divinas, as duas ciências (filosófica e
teológica) não as tratam do mesmo modo. Com efeito, o objeto formal da
metafísica é o ente enquanto ente, o ens común. Destarte, a metafísica, ao
abordar as coisas divinas, não as averigua senão enquanto estas são princípios
184
Idem. Suma Teológica. I, 32, 1, C. O conselho geral de Tomás enfim é este: Idem. Ibidem.
I, 32, 1, C: “Não tentemos provar o que pertence à fé a não ser por argumentos de autoridade
para aqueles que os aceitam. Para os outros, basta defender não ser impossível o que a fé
anuncia.”
185
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 43.
186
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. IV, I, 9 (3349). (O itálico é nosso).
comuns a todos os entes. Mas, afinal, que “coisas divinas” são essas, comuns a
todos os entes? Trata-se dos transcendentais, que nada mais são que
desdobramentos do conceito de ente e, por isso mesmo, convertíveis ao próprio
ente. De fato, todo ente, na mesma medida em que é ente, é uno, verdadeiro e
bom. Os graus podem variar, mas é comum e intrínseco a todos os entes ser uno,
verdadeiro e bom.187 Sim, poderia objetar alguém, mas até aqui se provou apenas
que tais transcendentais são comuns a todos os entes. Entretanto, porque ele são
também chamados de coisas divinas? Acontece, entretanto, que tais
transcendentais encontram-se nas coisas de formas variadas. Isto é, em umas
mais e noutras menos. Ora, mais e menos só se dizem de coisas, enquanto elas se
aproximam, mais ou menos, daquilo que si mesmo máximo. Por isso, estes graus
variados, indicam certa contingência, ou seja, que nenhum destes entes possuem,
em si mesmos, a razão da sua existência:

Encontram-se nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou


menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais e menos
se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam
diferentemente daquilo que é em si mesmo máximo.188

Desta feita, a falar com exação, o que é comum a todos os entes é o


fato de serem contingentes e, por isso mesmo, o de serem causados. De fato, se o
mais e o menos destes transcendentais nas coisas, postulam a existência daquilo
que os possua em grau máximo, tal conclusão nos leva também a seguinte
conseqüência: aquele que possui tais transcendentais em grau máximo é também
ente em sumo grau, pois estes transcendentais nada mais são do que
desdobramentos do conceito de ente:

187
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 217: “A noção de
‘transcendental’ implica a identificação total de ‘uno’, ‘verdadeiro’ e ‘bom’ com o ente, no
sentido em que são inseparáveis dele, a ponto de se converterem totalmente entre si.”
188
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, C.
Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e,
conseqüentemente o ente em grau supremo, pois, como se mostra
no livro II da Metafísica, o que é sumo grau verdadeiro, é ente em
sumo grau.189

Agora bem, segue-se ainda um último outro corolário, pois o que é


máximo é, naturalmente, causa de tudo o que não é. Por conseguinte, este sumo
ente, é a causa da bondade, da verdade e da unidade ou, pra ser mais específico,
do ser de todas as coisas. Ele é Deus:

Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em um


determinado gênero é causa de tudo o que é desse gênero (...)
Existe então algo que é, para todos os entes, causa de ser, de
bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus.190

Ora bem, agora já podemos entender porque a metafísica - que estuda


ente enquanto ente - e as suas propriedades é chamada de ciência divina.
Também podemos vislumbrar, uma vez que já sabemos de onde procedem as
perfeições de todos os entes, o porquê tais perfeições serem ditas “coisas
divinas”. Resta acrescentar, deveras, que em metafísica, as coisas divinas nunca
são o sujeito da ciência, pois o sujeito aqui é sempre o ente enquanto ente. Agora
bem, como Deus é a causa única de todos os entes, ele é estudado também em
metafísica - mas repetimos: não em si mesmo, não como sujeito desta ciência - e
sim enquanto causa e princípio de todos os entes. Por conseguinte, o
conhecimento de Deus, obtido pela via da razão natural, será mui limitado, pois
se restringirá a conhecer dEle, somente aquilo que estiver relacionado com o
fato de Ele ser a causa suprema de todas as coisas. Sendo um conhecimento de
Deus através das criaturas não abarcará, portanto, senão àquelas perfeições que,
enquanto causa, Ele possui analogamente em comum com todos os seus efeitos.
Não atingirá, portanto, a sua vida íntima; não estudará Deus enquanto Deus:

189
Idem. Ibidem.
190
Idem. Ibidem.
Com efeito, foi demonstrado acima que pela razão natural o
homem não chegar a conhecer a Deus, senão a partir das
criaturas. Ora, as criaturas conduzem ao conhecimento de Deus,
com os efeitos à causa. Portanto, não se poderá conhecer de
Deus pela razão natural, senão o que lhe pertence
191
necessariamente enquanto princípio de todos os entes.

Já na sagrada ciência, Deus é o sujeito, é conhecido em si mesmo192;


nela, as coisas divinas são investigadas por elas mesmas e todas as demais
coisas, ao contrário, é que são pesquisadas somente enquanto se relacionam com
Deus. Na ciência sagrada, não são os efeitos de Deus que no-lo “revelam”, mas
parte-se do que ele revela de si mesmo a nós. Como só o espírito do homem
conhece o que há no homem, assim só o Espírito de Deus conhece o que há em

191
Idem. Ibidem. I, 32, 1, C. (O itálico é nosso). Com acerto, diz Penido sobre o conhecimento
metafísico de Deus: Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia
Dogmática. p. 238: “Conheço, portanto a Deus, enquanto ser, enquanto Super-Ser; mas a sua
divindade como tal não será atingida pela razão sem a fé; demonstro a existência da Primeira
Inteligência, mas de suas operações fecundas, de sua divina geração, minha inteligência tudo
ignora (...)”.
192
O conhecimento pela fé, na qual se fundamenta a teologia e que, de fato, nos fala de Deus em
si mesmo, não é a visão de Deus em si mesmo, como quer o “ontologismo”. Portanto, não é que
a teologia natural não veja a Deus tal como Ele é enquanto pela fé o vejamos, não é nisto que
consiste a superioridade da fé. De fato, não vemos a Deus em si mesmo pela fé, aceitamos o
que Ele nos diz de Si mesmo pela fé, sem ver. A superioridade da fé consiste no fato de que,
nela, não é as criaturas que nos falam de Deus, mas é Deus que fala de Si próprio, inclusive por
meio de suas criaturas. Pela fé, chegamos a conhecer, ainda que em mistério, atributos divinos
que jamais alcançaríamos pela razão natural. É mais a excelência do objeto, do que o modo
como o conhecemos que torna a fé, e a ciência que dela brota (a teologia), em vantagem a todas
as outras: Idem. Suma Teológica. I, 12, 13, ad 1: “Portanto, deve-se dizer que embora pela
revelação da graça nesta vida não conheçamos de Deus o que Ele é, e a Ele estejamos unidos
como a um desconhecido, no entanto, o conhecemos mais plenamente, pois efeitos mais
numerosos e mais excelentes dEle nos são manifestados; e também porque, pela revelação
divina, nós lhe atribuímos algumas coisas que a razão natural não capta, por exemplo, que Deus
é trino e uno.”
Deus. A sagrada ciência trata, pois, de refletir sobre este conhecimento das
verdades referentes à vida íntima de Deus, revelado a nós pelo próprio Deus.
Reza o Aquinate, apontando para esta diferença que acabamos de frisar:

(...) Os filósofos chegaram eles deste modo, o que é patente em


Romanos 1, 20: ‘O que é invisível de Deus, é divisado pela
intelecção do que foi feito’; daí também, tais coisas não serem
tratadas pelos filósofos, senão na medida em que são princípio
de todas as coisas; assim, são tratadas naquela doutrina na qual
está contido tudo o que comum a todos os entes, que tem por
sujeito o ente na medida em que é ente. Esta ciência é chamada
entre eles ciência divina. Há, no entanto, outro modo de conhecer
tais coisas, não na medida em que são manifestadas pelos efeitos,
mas na medida em que elas próprias se manifestam a si mesmas.
O Apóstolo apresenta este modo em I Coríntios 2, 11ss: ‘O que é
Deus, ninguém conheceu senão o Espírito de Deus. Nós, porém,
recebemos, não o espírito deste mundo, mas o Espírito que
provém de Deus, para que conheçamos’; e no mesmo lugar: ‘A
nós, porém, Deus revelou pelo seu Espírito’. Deste modo, são
tratadas as coisas divinas, na medida em que subsistem em si
mesmas e não somente na medida em que são princípios das
coisas. 193

Destarte, o filósofo começa por considerar as causas próprias das


coisas, enquanto o teólogo começa por considerar a causa primeira de todas
elas, Deus: “O filósofo deduz os seus argumentos partindo das próprias causas
das coisas; o fiel, porém, da causa primeira (...)”194. Há, portanto, perfeita
distinção; pode-se mesmo falar em duas teologias, ou seja, em duas ciências das
coisas divinas: uma - que podemos também chamar de metafísica ou filosofia

193
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. V, IV, C (Os itálicos
são nossos).
194
Idem. Suma Contra os Gentios. II, IV, 3 (873):
primeira - em que as coisas divinas são pesquisadas enquanto princípios do
sujeito desta ciência, que é o ens común; outra é a teologia positiva. Nela, Deus é
o sujeito e as coisas divinas são investigadas por elas mesmas:

Há, portanto, uma dupla teologia ou ciência divina: uma, na qual


as coisas divinas são consideradas não como sujeito da ciência,
mas como princípios do sujeito e tal é a teologia que os filósofos
expõem e que, com outro nome, é chamada metafísica; outra, que
considera as próprias coisas divinas por si mesmas, como sujeito
da ciência e esta é a teologia que é transmitida na Sagrada
Escritura.195

A filosofia se apresenta assim, pra Alberto e mais ainda para Tomás,


como uma ciência autônoma: com princípios, métodos e fins específicos e, desta
feita, formalmente distintos dos da teologia. Ele estava tão seguro da autonomia
das disciplinas filosóficas que, na primeira questão da Suma Teológica, quando
questiona se a teologia sagrada é uma ciência, ele dá por certo e já supõe a
legitimidade de todas as disciplinas filosóficas. De fato, logo no primeiro artigo,
pergunta nestes termos “É necessária outra doutrina, além das disciplinas
filosóficas?”196 Tanto é assim que, se quisesse, afirma Gilson, Tomás teria todas
as condições de construir um sistema puramente filosófico. Se não o fez, foi por
opção sua:

Se tivesse querido, santo Tomás teria podido escrever uma


metafísica, uma cosmologia, uma psicologia e uma moral
concebidas de acordo com um plano estritamente filosófico e
partindo do que há de mais evidente para nossa razão. No
entanto, é um fato, e nada mais, que suas obras sistemáticas são
sumas de teologia (...).197

195
Idem. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio. V, IV, C.
196
Idem. Suma Teológica. I, 1, 1.
197
Etienne Gilson. A Filosofia Na Idade Média. p. 657.
Enfim, cada qual delas tem as suas próprias autoridades. Por exemplo,
em se tratando de questões de fé – dizia Santo Alberto - deve-se escutar mais a
Agostinho do que a Hipócrates ou Aristóteles. Entretanto, se o assunto é
medicina, ouça-se Hipócrates de preferência aos outros. Por fim, se o assunto é
física, a principal referência é Aristóteles.198 Contudo, espírito profundamente
científico, a Alberto era vedado agarrar-se as autoridades humanas, como se elas
fossem infalíveis. Sabia muito bem distinguir entre a infalível autoridade de
Deus e a falível autoridade dos homens.199 Diz Gilson, aferindo o pensamento de
Alberto neste ponto: “De homem a homem, a última palavra devia ficar
necessariamente com a razão.”200 E, mesmo quando se tratava de Aristóteles, em
ciências naturais, para Alberto, o melhor método era mesmo sempre a
experiência sensível, muitas vezes repetidas: “A experiência, através de repetidas
observações, é a melhor mestra no estudo da natureza.”201 Afastou-se, por
conseguinte, do costume de seu tempo de aceitar, passivamente, um argumento
de autoridade. Dizia ele, convicto: “Aceitamos dos antigos aquilo que eles
afirmaram corretamente.”202 A ciência natural deveria ser então, essencialmente
pautada pela experiência: “Compete à ciência natural não aceitar simplesmente

198
Alberto Magno. II Sent. D 13, a 2. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 179: “Tome-se pois por princípio que, em questões
de fé e de bons costumes, Agostinho deve ser preferido aos filósofos, caso haja idéias diferentes
entre eles. Mas, em se tratando de medicina, tenho mais confiança em Galeno ou Hipócrates que
em Agostinho; e se falar sobre ciências naturais, tomo em maior consideração a Aristóteles ou a
outro especialista no assunto.”
199
Alberto Magno. Física 8, tr. 1, c. 14. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 180: “(...) A uma tal pessoa respondemos que quem
acredita que Aristóteles foi um Deus, deve também crer que ele nunca errou. Se, porém, acredita
que ele foi um homem, então sabe sem dúvida que ele podia errar tanto quanto nós.” (O itálico
é nosso).
200
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 632.
201
Alberto Magno. Sobre os Animais. 1, c. 19. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
202
Alberto Magno. Livro das Causas. 1, tr. 1, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
o que foi narrado. Cabe-lhe, muito mais, a serviço da filosofia natural, buscar as
causas das coisas naturais.”203. E ainda: “Só a experiência leva à certeza no
estudo da natureza (...)”204. Por essa invicta liberdade frente às autoridades,
mesmo as mais altas, Irmão Alberto, por um privilégio sem par em sua época,
deixou de ser chamado apenas de simples compilador (compilator) ou
comentador (commentator), para ser considerado por todos, um verdadeiro autor
(auctor), isto é, ele próprio uma autoridade (auctoritas). E ser uma autoridade,
significava, pois, ser original, ter as suas próprias idéias, e só recorrer a outras
autoridades, na medida em que estas confirmassem o seu pensamento. Para nós,
uma autoridade é, muitas vez, aquele que repete, com fidelidade, o que outrem
um clássico pensou. Na Idade Média, ao contrário, ser uma autoridade, é muito
mais do que isso: é ser senhor das suas próprias idéias, é ser fonte de um
pensamento realmente singular. E Alberto, ao menos para os seus
contemporâneos, era um autor. Explica-nos Gilson, nos seus pormenores:

Com efeito, na Idade Média distinguia-se entre o escriba


(scriptor), que só é capaz de recopiar as obras de outrem sem
nada modificar; o compilador (compilator), que acrescenta ao que
copia, mas sem que seja coisa sua; o comentador (comentator),
que põe coisa sua no que escreve, mas só acrescenta ao texto o
necessário para torná-lo inteligível; e, enfim, o autor (auctor),
cujo objetivo principal é expor suas próprias idéias, só apelando
para as idéias alheias a fim de confirmar as suas (...). Para os
homens do século XIII, Alberto Magno é incontestavelmente um
autor; por um privilégio reservado até então a alguns doutores
ilustres e já mortos, e citado como uma “autoridade”

203
Alberto Magno. Sobre os Minerais. 2, tr. 2, c. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178. (O itálico é nosso).
204
Alberto Magno. Sobre os Vegetais. n. 1. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval:
Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 178.
(auctoritas=autor) e suas obras eram lidas e comentadas em
público nas escolas, ainda em sua vida.205

Tomás de Aquino aprofunda esta visão crítica frente às autoridades,


no que toca ao discurso filosófico. Para ele, nas disciplinas de filosofia, os
argumentos de autoridades, porque fundados na razão humana, são os mais
ínfimos de todos: “autoctoritate quae fundatur super ratione humana, sit
infirmissimus (...)”206. Donde, os argumentos filósofos, não poderem ser
acolhidos em razão de quem o disse, mas apenas se correspondem à verdade:
“Os argumentos filosóficos não são acolhidos pela autoridade de quem diz, mas
pela validade do que se diz.”207 Desta feita, demonstrar, em filosofia, recorrendo
à autoridade, não é demonstrar, mas opinar pela fé: “Provar recorrendo a uma
autoridade, não é provar demonstrativamente, mas pela fé opinar sobre uma
coisa.”208
Quando se volta para o ensino, não é menos incisivo. Com efeito, o
ensino da filosofia, não deve cuidar de estudar o que os filósofos pensaram, mas
sim que o corresponde à verdade: “O estudo da filosofia não visa saber o que os
homens pensaram, mas como se apresenta a verdade das coisas.”209 O professor
de filosofia que reduzir suas aulas a compilar citações de autoridade, sem se
preocupar em demonstrar suas teses pelo raciocínio, não infundirá ciência
alguma em seus alunos, mas os deixará vazios:

205
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 627.
206
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2: “(...) o argumento de autoridade fundado
na razão humana é o mais fraco de todos.”
207
Idem. In. Trin. 2, 3, ad 8. In: LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: Vida e
Pensamento. in: TOMÁS DE AQUINO. Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p.
208
Tomás de Aquino. Quodlibet. III, 31, ad 1. In: MOURA, D. Odilão. Introdução à Suma
Contra os Gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990. p. 11
209
Tomás de Aquino. Comentário ao Tratado do Céu. I, 22, 8. In: NASCIMENTO, Carlos
Arthur R. de. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. São Paulo: EDUSC, 1992. p.
50.
Quando o debate é debate de escola, ‘magistral’, não para refutar
um erro, mas para instruir os ouvintes e levá-los à compreensão
da verdade que se ensina: é necessário apoiar-se em razões que
procuram a raiz da verdade, que fazem saber como é verdadeiro
o que é dito. Caso contrário, se o mestre determina uma questão
por autoridades nuas, o ouvinte estará, por certo, assegurado de
que a coisa é assim, mas nada adquirirá de ciência e de
inteligência, e voltará vazio.210

Em filosofia, enfim, a verdade é filha do tempo: “O tempo é, de certa


maneira, o inventor (isto é, o descobridor) da verdade e o bom colaborador (do
pensamento humano)”211. Não há lugar para dogmas, pois é próprio do
pensamento humano passar sempre do imperfeito para o perfeito. Assim nos
testemunha, a própria história da filosofia, na qual os primeiros filósofos
deixaram muitas coisas imperfeitas, que foram depois aperfeiçoadas por seus
sucessores:

Da parte da razão, porque parece ser natural da razão humana


chegar gradualmente do imperfeito ao perfeito. Por isso, vemos
nas ciências especulativas que aqueles que por primeiro
filosofaram, transmitiram algumas coisas imperfeitas, que depois,
pelos pósteros, se tornaram mais perfeitas.212

Por isso, a filosofia se apresenta como o lugar mais propício para a


pesquisa. Já sabemos que não devemos nos prender ao que os outros pensaram,
mas a verdade das coisas. Contudo, constatemos também que a verdade, para o
pensamento humano, é sempre uma conquista gradual, nunca individual e de
210
Tomás de Aquino. Quodlibet. IV, a. 3, n. 18. In: MARIE, Joseph Nicolas. Introdução À
Suma Teológica. Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 32 (O
itálico é nosso).
211
Tomás de Aquino. Comentário à Ética. I leit. 11. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op. Cit.
Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 34.
212
Idem. Suma Teológica. I-II, 97, 1, C.
muitas de gerações. Daí ser fundamental, em filosofia, confrontar os vários
autores, a fim encontrarmos a verdade mais enxuta:

Consultar os autores precedentes é necessário para esclarecer a


questão e resolver as dúvidas. Assim como no tribunal não se
pode pronunciar um juízo sem ter ouvido as razões das duas
partes, assim também quem se ocupa de filosofia chegará mais
facilmente a uma solução se conhecer o pensamento e as dúvidas
de diversos autores.213

Se não há dogmas214, muitos menos existem “heresias” em filosofia.215


Como falar em “heresias”, sendo que aqui o erro procede, muitas vezes, da

213
Idem. Comentário à Metafísica. III leit. 1. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op. Cit. Trad.
Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
214
Se entendemos por dogma, conhecimento certo e necessário, porém não exaustivo, então há
dogmas em filosofia! Não somos agnósticos e relativistas... No entanto, se tomarmos dogma,
naquele sentido preconceituoso que nossos hodiernos dão a ele, qual seja, de que ele é uma
verdade, além de definitiva, exaustiva, então é preciso dizer que não há dogmas em filosofia.
Aliás, neste sentido, nem em teologia. Aliás, neste sentido, nem na Revelação, pois, a própria
Igreja prevê uma evolução do dogma. Evolução que não é – como queriam os “modernistas” e
querem hoje os “progressistas” – a negação de uma verdade já definida por uma nova
“revelação”. Trata-se, antes, de um aprofundamento naquela mesmíssima verdade declarada
como tal, uma vez por todas. Por isso, a verdadeira e legítima evolução do dogma, pressupõe
que não haja contradição entre ele e os seus aprofundamentos, o que seria uma mutação. Mas
este não é mais o nosso assunto!
215
Apenas indiretamente pode haver “heresias filosóficas”. De fato, isso pode acontecer,
quando um filósofo, por exemplo, extrapolando as competências da ciência filosófica, começa a
enredar-se em discussões teológicas, que não são da sua alçada. Isto aconteceu, entre outras
vezes, com os chamados “averroístas latinos” do século XIII. Entre as condenações, impostas
pelo Bispo de Paris, Estêvão Tempier, em 1277, contra os averroístas, se encontravam algumas
teses como: As 219 Teses Condenadas em 1277. In: DE BONI, Luis Alberto. Filosofia
Medieval: Textos. Porto Alegre: EDIPURS, 2000. p. 291: “180. A religião cristã impede o
conhecimento. (175). 181. Há fábulas e coisas falsas na religião cristã, tal como nas outras.
(174). Nada a mais se apreende devido ao conhecimento teológico. (153). 183. Os discursos dos
finitude de nosso intelecto?216 Antes, os erros têm aqui o seu “papel”. Eles nos
fazem investigar melhor, uma verdade ainda não bem esclarecida. Tenhamos
uma dívida de gratidão, também para com aqueles que erram:

Os pensadores são também ajudados igualmente por seus


predecessores, pelo fato de os erros destes fornecerem meios de
descobrir a verdade por uma reflexão mais séria. Portanto,
convém sermos gratos a todos os que nos ajudaram a conquistar o
bem da verdade.217

Por conseguinte, para Tomás, há sempre lugar para a discussão e até


para um salutar conflito de idéias, no ensino das disciplinas filosóficas. Elas
podem nos abrir novas perspectivas; além do fato de ter que responder as
eventuais objeções possa se tornar um ótimo ensejo para que amadureçamos
nossas próprias posições. Portanto,

(...) é preciso amar tanto aquele de quem adotamos a opinião


como aquele de quem nos separamos; pois um e outro aplicaram-
se à busca da verdade, e um e outro são nossos colaboradores.218

teólogos se baseiam em fábulas. (152). (...)”. Estamos bem longe da elegância das críticas de
Fontenelle e muito pertos das panfletagens de Voltaire!
216
Dizem os teólogos que, para haver heresia, é preciso haver pertinácia no erro. Na
verdadeira filosofia, no entanto, não há resistência à verdade, o que pode haver é uma falha na
percepção dela, dada às limitações do nosso intelecto.
217
Tomás de Aquino. Comentário à Metafísica, II, leit. 1. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op.
Cit. Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
218
Tomás de Aquino. Comentário à Metafísica. XII, leit. 9. In: MARIE, Joseph Nicolas. Op.
Cit. trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 33.
5) O Interstício Entre o 1º e o 2º
Movimento: A Teologia Enquanto
Ciência (Aprofundamentos)

5.1) A Teologia Como a Rainha das Ciências

Quando, no entanto, entramos no terreno da teologia sagrada, o


argumento de autoridade, num sentido que ainda iremos precisar, passa a ser
apreciado de uma outra forma, irá a ter mesmo a primazia em certo sentido.
Finalmente, dando cientificidade à doutrina sagrada, o ilustre aluno de Mestre
Alberto, Tomás de Aquino, a coloca com um fundamento todo seu: os seus
princípios são tomados da própria ciência divina e dos bem-aventurados.
Destarte, ela não precisará mais se preocupar em demonstrar os mistérios da fé,
pois, de fato, a nenhuma ciência cabe demonstrar os seus próprios princípios,
seja porque eles são evidentes por si, seja porque eles são tomados de uma
ciência superior. E é exatamente este o caso da teologia: ela toma os seus
princípios da própria ciência de Deus e dos bem-aventurados:

A doutrina sagrada é uma ciência. Mas existem dois tipos de


ciência. Algumas procedem de princípios que são conhecidos à
luz natural do intelecto (...). Outras procedem de princípios
conhecidos à luz de uma ciência superior (...). É desse modo que
a doutrina sagrada é ciência; ela procede de princípios
conhecidos à luz de uma ciência superior, a saber, da ciência de
Deus e dos bem aventurados. E como a música aceita os
princípios que lhe são passados pelos aritméticos, assim também
a doutrina sagrada aceita os princípios revelados por Deus.219

Por conseguinte, ela não precisa, em suas especulações, demonstrar os


artigos de fé, porque já os pressupõe. Tomando-a deste modo, isto é, não sendo
os seus princípios redutíveis à razão natural, isto a faz certamente uma ciência
fundamentada em princípios de autoridade, mas nem por isso à torna menor que
nenhuma das demais ciências. Bem ao contrário, ela se torna a mais alta de todas
as ciências – como ainda iremos ver – superior à própria metafísica, pois ela não
é senão uma participação – muito imperita ainda, mas participação, como
iremos ver - na ciência de Deus que, conhecendo a si próprio, conhece todas as
coisas. No que toca à sagrada ciência, declina Tomás: “E assim ela é mais
perfeita, justamente por ser semelhante ao conhecimento de Deus que, ao se
conhecer, vê as outras coisas em si mesmo.”220
De fato, tendo por fundamento a revelação de Deus, mesmo que a
sagrada ciência se valha de argumentos de autoridade, nem por isso ela se
apequena diante das outras ciências que tem seus princípios evidentes por si.
Concedamos que, no plano natural, uma ciência que se fundamente em
princípios evidentes por si, seja superior a uma outra ciência que se baseasse em
princípios tomados da autoridade de uma ciência superior. Mas aqui,
precisamente está o “plus”, que torna a ciência sagrada – mesmo não se
pautando em conhecimentos evidentes por si – inefavelmente superior a todas as
demais ciências humanas. Com efeito, ela não retira os seus argumentos de uma
ciência superior qualquer, nem de nenhuma autoridade humana, mas da ciência
divina, da sua autoridade indefectível. Portanto, no caso específico da sagrada
ciência, ocorre algo especialíssimo: seus princípios não são evidentes por si, é

219
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 2, C. (Os itálicos são nossos). E ainda: Idem.
Ibidem: “Assim também a doutrina sagrada não se vale da argumentação para provar os seus
próprios princípios, as verdades de fé, mas parte deles para manifestar alguma outra verdade
(...)”.
220
Idem. Suma Contra os Gentios. II, V, 5 (876).
verdade, mas também não se baseiam em alguma autoridade humana falível e
frágil e sim na suprema e infalível autoridade divina:

Deve-se afirmar que é muito próprio desta doutrina usar


argumentos de autoridade, pois os princípios da doutrina sagrada
vêm da revelação. Assim, deve-se acreditar na autoridade
daqueles pelos quais a revelação se realizou. Isso, porém, não
derroga a sua dignidade, porque se o argumento de autoridade
fundado sobre a razão humana é o mais fraco de todos, o que
está fundado sobre a revelação divina é o mais eficaz de todos.221

Portanto, para Santo Tomás, a sagrada ciência, enquanto conhece


todas as coisas – inclusive os objetos das demais ciências filosóficas – sob a
razão única da Revelação, torna-se como uma impressão, uma reprodução em
nós, da unicidade e simplicidade da ciência Deus, que conhece todas as coisas
enquanto se conhece. Por isso, a teologia revelada é a mais perfeita das ciências:

Da mesma forma, a única ciência sagrada pode considerar sob


uma mesma razão, isto é, como objetos da revelação divina,
objetos tratados em ciências filosóficas diferentes. Isto faz com
que esta ciência apareça como impressão da ciência de Deus,
una e simples com relação a tudo.222

5.2) A Teologia Como a Verdadeira Sabedoria

Mas a sagrada ciência não é somente a mais perfeita das ciências, ela
é também a sabedoria suprema. Melhor, exatamente porque é a mais perfeita das

221
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2. (O itálico é nosso). E ainda: Idem. Exposição Sobre o
Credo. p. 21: “Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da
fé do que nas coisas que vemos, porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é
sempre infalível.”
222
Idem. Ibidem. I, 1, 3, ad 2.
ciências é também a sabedoria por excelência. Em que consiste a sabedoria? O
que é ser sábio? Santo Tomás não se cansa de repetir o axioma peripatético:
ordenar e julgar são os ofícios do sábio. Agora bem, o correto ordenamento e
julgamento das coisas inferiores de um determinado gênero, se faz por meio do
conhecimento da causa superior deste determinado gênero. Por isso, comumente
se chama sábio àquele que conhece e estuda a causa suprema de um
determinado gênero de coisas, pois assim passa a poder ordenar e julgar, de
forma adequada, tudo o que é deste gênero:

Compete ao sábio ordenar e julgar; o julgamento de coisas


inferiores se faz mediante uma causa mais elevada; assim, sábio
em qualquer gênero é aquele que toma em consideração a causa
suprema desse gênero.223

Portanto, o juízo correto a respeito de uma determinada coisa, se faz


na medida em que é formado de acordo cm a causa desta coisa. Por conseguinte,
a ordem dos juízos corresponde à ordem das causas.224 Destarte, a enquanto a
causa segunda é causada pela causa primeira, deve ser também julgada pela
causa primeira: “Assim como a causa primeira é causa da causa segunda, é pela
causa primeira que se julga a causa segunda (...)”225. E, no entanto, a causa
primeira não pode ser julgada por nenhuma outra causa: “(...) mas não se pode
julgar a causa primeira por outra causa.”226 Logo, a causa primeira é a causa
suprema e soberana, isto é, julga todas as outras, por todas as outras a ela se
reduzem, e não é julgada por nenhuma delas. Donde, todo juízo elaborado a
partir da causa primeira, ser primeiro e perfeitíssimo: “Por isso o juízo feito por
meio da causa primeira é o primeiro e perfeitíssimo.”227 Agora bem, a ciência

223
Idem. Ibidem. I, 1, 6, C.
224
Idem. Ibidem. II-II, 9, 2, C: “O juízo sobre uma coisa dá-se, principalmente, por sua causa.
Por isso, a ordem dos juízos deve ser segundo a ordem das causas.”
225
Idem. Idem.
226
Idem. Idem.
227
Idem. Idem.
consiste na certeza no julgamento: “(...) o nome ciência implica certeza no
julgamento (...)”228. Pois bem, já que todo julgamento certo procede do
julgamento pela causa e, sendo que o julgamento pela causa primeira é o
julgamento perfeitíssimo, deve-se dizer que a ciência, adquirida à luz da causa
primeira, é a mais nobre das ciências. Ora, a esta ciência damos o nome especial
de sabedoria: “(...) se essa certeza (a do julgamento) é produzida por meio da
causa altíssima, tem um nome especial, que é sabedoria.”229 Portanto, falando
propriamente, é dito sábio somente aquele que conhece todas as coisas, por meio
do conhecimento da causa altíssima, isto é, Deus: “Sábio, absolutamente falando,
é aquele que conhece a causa altíssima absoluta, isto é, Deus.”230
Quando esperávamos, porém, que Santo Tomás reserva-se o nome de
sabedoria à metafísica, eis que ele dá um salto, reservando este nome,
especialmente à doutrina sagrada. De fato, o que específica um hábito
cognoscitivo é a forma pela qual ele conhece alguma coisa e não a coisa
conhecida propriamente dita: “(...) todo hábito cognoscitivo diz respeito
formalmente ao meio de conhecer alguma coisa e materialmente àquilo que é
conhecido por esse meio. E como o elemento formal é mais importante (...)”.231
Agora bem, em metafísica, formalmente, o homem conhece a Deus por meio das
coisas criadas. E, só depois, na teologia natural, começa a julgar todas as coisas
por meio da causa altíssima. Portanto, em metafísica, de qualquer forma,
enquanto se chega a Deus somente por meio das criaturas, deve-se que ele ocupa
aqui apenas o posto de objeto material. Ora, isto corresponde mais à ciência que
à sabedoria:

228
Idem. Idem.
229
Idem. Idem.
230
Idem. Ibidem; Idem. Ibidem: “Por isso, o conhecimento das coisas divinas chama-se
sabedoria.”
231
Idem. Idem. II-II, 9, 2, ad 2.
Portanto, quando o homem conhece Deus por meio das coisas
criadas, esse conhecimento corresponde melhor à ciência do que
à sabedoria, à qual diz respeito materialmente.232

Já na doutrina sagra, ao contrário, enquanto tudo julgamos à luz de


Deus, causa altíssima, temos então a verdadeira sabedoria. Por isso, a sacra
doutrina merece, por excelência, o nome sabedoria: “Ao contrário, quando nós
julgamos as coisas criadas segundo as realidades divinas, isso corresponde
melhor à sabedoria, do que à ciência.”233
Portanto, o objeto formal da teologia é, exatamente, a causa
suprema234 de todas as coisas: Deus. Além disso, a sua excelência se estende não
somente com relação ao seu objeto formal, mas também quanto ao modo como o
conhece. De fato, ela é superior à própria metafísica, visto que não se limita a
conhecer de Deus somente aquilo que dEle se pode investigar por meio das
criaturas, mas também perscruta os seus mistérios insondáveis, enquanto Ele
próprio os revelou. Por conseguinte, à sagrada ciência, cabe o nome de
verdadeira sabedoria, não somente num determinado gênero, mas de modo
absoluto:

Por conseguinte, quem considera simplesmente a causa suprema


de todo o universo, que é Deus, merece por excelência o nome de
sábio. Eis por que, como se vê em Agostinho, a sabedoria é
chamada o conhecimento das coisas divinas. Ora, a doutrina
sagrada trata muito propriamente de Deus enquanto causa
suprema; a saber, não somente do que se pode saber por
intermédio das criaturas, e que os filósofos alcançaram ‘... pois o
que se pode conhecer de Deus é para eles manifesto’, diz o
Apóstolo na Carta aos Romanos; mas também do que só Deus

232
Idem. Idem.
233
Idem. Idem.
234
Não, como veremos mais adiante, restritamente enquanto causa suprema, mas enquanto
Deus.
conhece de si mesmo, e que é comunicado aos outros por
revelação. Assim a doutrina sagrada merece por excelência o
nome de sabedoria.235

Daí também ela poder julgar e ordenar todas as demais ciências.


Donde, inclusive, o fato de a própria sabedoria filosófica estar a ela sujeita. O
como e a que termo a teologia exercerá a sua direção soberana sobre as demais
ciências, veremos mais a frente. Poderemos verificar que, apesar de tudo, o seu
domínio respeitará certas fronteiras e obedecerá a determinados limites.

5.3) A Prioridade da Ordem Teológica

Também corolário espontâneo desta teologia como sabedoria


suprema, é o fato de todas as obras de envergaduras de Tomás serem sumas de
teologia. Todas elas, de fato, por coerência, só podem obedecer a uma ordem
teológica. Se sábio é aquele que ordena e julga todas as coisas de acordo com a
causa altíssima, outra não pode ser a atitude do sábio teólogo - que tem acesso à
causa suprema de forma ímpar - senão ordenar e julgar todos os assuntos,
inclusive os de ordem filosófica, segundo a ordem da Revelação.236 A respeito
disso, é claríssimo Gilson:

No entanto, é um fato, e nada mais, que suas obras sistemáticas


são sumas de teologia e que, por conseguinte, a filosofia que
expõem nos é oferecida segundo a ordem teológica.237

235
Idem. Ibidem. I, 1, 6, C. (O itálico é nosso). Idem. Ibidem: “Esta doutrina (sagrada) é, por
excelência, uma sabedoria, entre todas as sabedorias humanas. E isso não apenas num gênero
particular, mas de modo absoluto.” (O parêntese é nosso).
236
Diz Gilson, fazendo referência à obra filosofia de Santo Tomás: Etienne Gilson. A Filosofia
na Idade Média. p. 657: “Portanto, nessa obra filosófica, a influência confessa da teologia é
certa, é a teologia mesma que fornecerá o plano.”
237
Idem. Ibidem.
Abramos, tanto a Suma Teológica, quanto à Suma Contra os Gentios e
perceberemos que o primeiro dos assuntos ao qual se dedicam é o da existência
de Deus.238 Ora, isso indica, de forma clara e notória, que estamos diante de uma
obra de teologia. Mas, ao investigarmos os argumentos aduzidos em favor da
existência de Deus, todos de alçada metafísica, seremos como que tentados a
voltar a atrás do que a pouco dizíamos. De fato, parece estarmos de frente com
uma obra meramente filosófica ou, no máximo, de teologia natural. Com efeito,
nenhuma menção é feita, no corpo da argumentação, à Revelação. No entanto,
deduzir disso que a obra seja filosófica, seria um total erro de perspectiva. Se
fosse filosófica, teria que começar por onde começam todos os conhecimentos
humanos, ou seja, pelo estudo das coisas sensíveis, isto é, por uma filosofia da
natureza. No entanto, ela começa por onde termina toda filosofia, a saber, por
uma metafísica, que é a última das disciplinas filosóficas a serem estudadas.239 E
começar por aí, se explica por uma razão muito simples: a existência de Deus,
fundamento de toda teologia natural240, é também a primeira das verdades que
Deus revelou241. A ordem a ser seguida, já está indicada: é a da teologia
revelada. Gilson, sempre preciso nos esclarece com exação sobre este ponto:

238
Precedida apenas pela questão onde se coloca a teologia como ciência, a segunda questão da
Suma Teológica intitula-se: Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2: “De Deo, Ant Deus Sit”.
Já a Suma Contra os Gentios, após introdução onde se trata de como se desdobrará toda a obra,
aborda-nos com o problema da evidência ou não da existência de Deus: Idem. Suma Contra os
Gentios. I, X: “De Opinione Dicentum Quod Deum Esse Demontrari Non Potest Cum Sit Per se
Notum.”
239
Idem. Ibidem. I, IV, 3 (23c): “(...) a metafísica – que tem por objeto as verdades divinas –
deve ser a última parte da filosofia a ser conhecida.”
240
Idem. Ibidem. I, IX, 6 (58a/b): “Entre as verdades que devem ser consideradas, acerca de
Deus em si mesmo, deve ter precedência, como fundamento que é de toda esta obra, o estudo da
demonstração de que Deus existe. Se assim não se fizer, toda a explanação sobre as verdades
divinas perderá o seu valor.”
241
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 23: “Entre todas as verdades nas quais os fiéis devem
acreditar, em primeiro lugar devem acreditar que Deus existe.”
As primeiras coisas que conhecemos não são outras que as coisas
sensíveis, mas a primeira coisa que Deus nos revela é sua
existência; começar-se-á teologicamente, pois, por onde se
chegaria filosoficamente depois de uma longa preparação.242

Alguns poderiam objetar: como uma teologia revelada precede, no


corpo da argumentação, da revelação? É que a existência de Deus,
coincidentemente, acaba sendo uma daquelas verdades que, não obstante estarem
reveladas são, de per si, cognoscíveis pela razão natural. E, para Santo Tomás,
quando temos a opção de conhecer naturalmente aquilo em que cremos,
devemos sempre buscar tal conhecimento, pois isso não deixa de ser vantajoso.
De fato, o que é acessível à razão deve ser também aceito por todos: pagãos,
heréticos e cristãos.243 Por isso, “(...), é melhor compreender do que crer, quando
temos essa opção.”244 É um erro de avaliação também acusar o Aquinate de não

242
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 658.
243
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 213: “É preciso partir
das verdades ‘racionais’, porque é a razão que nos une. Escreve santo Tomás: ‘É necessário
recorrer à razão, à qual todos devem assentir. É sobre essa base que se podem obter os
primeiros resultados universais, porque racionais, com base nos quais se pode depois construir
um discurso de aprofundamento, de caráter teológico.” (O itálico é nosso). Portanto, para Santo
Tomás, começar pela razão, quando isto é possível, não é um procedimento racionalista, não
significa dizer que a razão seja onipotente. Trata-se, antes, de um procedimento dialético, que
visa assentar certas primícias que, por serem racionais, podem ser aceitas por todos. Partir da
razão é, pois, partir do em comum, é buscar a unidade.
244
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 657. Esta afirmação de Gilson parece ir de
encontro com uma afirmação que fazíamos acima, na qual dizíamos que a fé a mais perfeita das
ciências. Em verdade, não existe contradição alguma. Com efeito, se tomarmos como referência
apenas à maneira de se conhecer, é claro que as ciências demonstrativas estão acima da fé,
porque elas nos dão a visão do objeto. E, neste sentido, é perfeita a afirmação de Gilson, ao
dizer que, em sendo possível demonstrar uma verdade, não devemos negligenciar-nos em
torná-la evidente mediante demonstração. Já quanto às verdades de fé, elas também são
conhecidas, porque chegarmos, a saber, por reto juízo, em devemos crer. Contudo,
precisamente neste sentido também, as verdades de fé, não sendo por nós vistas, mas apenas
cridas, carecem da perfeição da visão. Com efeito, das verdades da fé, como já frisamos, só
se valer da Bíblia para demonstrar a existência de Deus. De fato, quando se trata
de uma demonstração racional, até para se manter a autonomia da filosofia -
pode-se até se permitir que a fé indique o termo - mas nunca se deve avançar no
caminho a não ser pela razão: “Ele sabe pela fé para que termo se dirige, contudo
só progride graças aos recursos da razão.”245
Do lado dos filósofos recorrer à filosofia, apenas para esclarecer a fé,
parece empobrecê-la. Para responder a estes é preciso dizer que, adotando tal
procedimento, não pretende Santo Tomás, transformar este uso da filosofia na
única forma de se filosofar. Como já aludimos, se quisesse, Tomás de Aquino
poderia ter sido um filósofo puro. De fato, não lhe faltariam elementos, nem
instrumentos teóricos para isso.246 Ele não deixa de prever, inclusive, a
possibilidade de uma filosofia distinta – até mesmo na ordem do seu discurso –
da teologia.247 Em segundo lugar, este uso que ele faz da filosofia na ciência da

Deus e os bem-aventurados tem ciência, isto é, visão. Di-lo o próprio Boi Mudo da Sicília:
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 12, 13, ad 3: “Deve-se dizer que a fé é uma espécie de
conhecimento, enquanto o intelecto é determinado pela fé a algo cognoscível. Mas esta
determinação a algo não procede da visão daquele que crê, mas da visão daquele em que se crê.
Assim, quando falta a visão, a fé como conhecimento é inferior a ciência; pois a ciência
determina o intelecto a algo pela visão e pelo entendimento dos primeiros princípios.”
Entretanto, do ponto de vista da sublimidade da verdade conhecida e da autoridade na qual a fé
se funda, ela é a mais excelsa das ciências.
245
Idem. Ibidem.
246
Vale a pena citar novamente a passagem em que Gilson afirma: Idem. Ibidem: “Se tivesse
querido, santo Tomás teria podido escrever uma metafísica, uma cosmologia, uma psicologia e
uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosófico.”
247
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 188, 5, ad 3: “Deve-se dizer que os filósofos
professavam o estudo das letras no que diz respeito às ciências humanas. Mas aos religiosos
compete principalmente dedicar-se ao estudo das letras que se referem à ‘doutrina que é
segundo a piedade’, como diz o Apóstolo. Dedicar-se, porém, ao estudo das outras doutrinas
não é próprio dos religiosos, que consagraram toda a sua vida ao ministério divino, a não ser na
medida em que elas são ordenadas à teologia.” Santo Tomás faz alusão a este uso à parte da
filosofia como sendo próprio dos filósofos. A única ressalva que ele faz a este procedimento, é
que ele próprio dos filósofos e não dos teólogos e monges. De fato, estes também procuram a
fé, longe de empobrecê-la, a aperfeiçoa.248 Com efeito, o objeto próprio da
filosofia é sempre o ser, o real. Ora, dada a finitude do nosso espírito, ela só
consegue chegar ao ser enquanto ser - a ordem do real como de fato ele se dá -
no final da sua pesquisa. Isto porque, para nós, nem o sempre o primeiro na
ordem do ser é o primeiro na ordem do conhecer. Desta sorte, a teologia permite
à filosofia desde o princípio, estudar a realidade tal qual ela é: com Deus como
princípio e fim de todas as coisas. E isto, sem a trair nem roubar-lhe a “pureza
racional”, pois seu influxo sobre ela será apenas externo, como veremos.
Novamente cedemos a palavra a Gilson que, com sua clareza inconfundível e
insuperável, delineia a questão:

Acrescentemos que, mesmo do ponto de vista estritamente


filosófico, essa solução (se refere à filosofia, exposta e
obedecendo a uma ordem teológica) apresenta vantagens.
Supondo-se o problema total resolvido, fazendo-se como se o que
é mais conhecido por si também o era no caso de nossos espíritos
finitos, damos da filosofia uma exposição sintética cujo acordo
profundo com a realidade não poderia ser posto em dúvida. Por
isso mesmo, é o universo tal qual é, com Deus como princípio e
como fim, que a teologia natural assim compreendida nos
convida a contemplar.249

filosofia, mas com outra finalidade. No entanto, em nenhum momento ele parece condenar -
como ilegítimo em si mesmo - o uso autônomo e independente da filosofia.
248
Na exposição do pensamento do Aquinate, quanto trata deste assunto, Reale nos remete ao
famosíssimo axioma medieval: Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e
Escolástica. p. 213: “A fé, portanto, melhora a razão assim como a teologia melhora a filosofia.
A graça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza.”
249
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 658. (O parêntese e o itálico são nossos).
5.4) A Teologia Enquanto Ciência Fundamentada na Sagrada Escritura

A teologia sagrada se debruça, portanto, sobre o mistério de Deus,


naquilo que só Deus conhece de si e que, portanto, só Ele poderia nos dar a
conhecer por Revelação. Desta sorte, da teologia positiva, diz Tomás em outra
obra com termos fortes, tem direta origem divina: “Seus princípios não lhe vêm
de nenhuma outra ciência, mas de Deus imediatamente, por Revelação.”250 E
ainda nos ensina, a respeito do augusto e específico conhecimento que a sagrada
ciência nos proporciona: ela fala “(...) do que só Deus conhece de si mesmo, e
que é comunicado aos outros por revelação. Assim a doutrina sagrada merece por
excelência o nome de sabedoria.”251 Por conseguinte, por mais que este
conhecimento seja ainda débil e imperfeito252, ele é mais desejável e saboroso
que o mais perfeito de todos os conhecimentos humanos: “Apesar disso, o menor
conhecimento relativo às coisas elevadas é mais desejável do que uma ciência
muito certa das coisas menores (...)”253.
Dando como fundamento da doutrina sagrada o Mistério de Deus
revelado, Tomás inaugura assim, conseqüentemente, uma ciência teológica que
terá por base a Sagrada Escritura, visto que esta é, na sua concepção, a fonte
privilegiada desta mesma ciência e autoridade divina de onde a teologia arranca
os seus princípios. De fato, como não se cansa repetir, Deus é o autor da Sagrada

250
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 5, ad 2.
251
Idem. Ibidem. I , 1, 6, C.
252
Tomás nunca nega que a teologia, embora sendo a mais perfeita das ciências na sua ordem,
ainda não é, de modo absoluto, o mais perfeito conhecimento que Deus nos destina a ter dEle
mesmo. Longe de Tomás ainda, qualquer ontologismo, nenhuma visão beatífica da essência
divina nos é concedida nesta vida. Antes, bem ao contrário, o melhor conhecimento de Deus
que podemos alcançar neste mundo, é o de saber que Ele é supera, infinitamente, tudo que dEle
podemos conhecer no estado atual: Idem. Ibidem. II-II, 8, 7, C: “(...) Nesta vida, tanto mais
conhecemos a Deus, quanto mais entendemos que Ele supera tudo aquilo que podemos
apreender pelo intelecto.”
253
Idem. Ibidem. I, 1, 5, ad 1.
Escritura “(...) quod auctor sacrae Scripturae est Deus (...)”254 Agora bem, dois
tipos de ciência existem. Aquelas cujos princípios são conhecidos por si mesmos,
qual seja, pela luz natural da razão, e aquelas que assumem os princípios de uma
ciência superior. É o caso da ciência sagrada, que retira os seus princípios da
Sagrada Escritura, a qual exprime a ciência de Deus enquanto esta foi revelada
aos homens:

Portanto, deve-se dizer que os princípios de toda e qualquer


ciência, ou são evidentes por si, ou se apóiam no conhecimento
de uma ciência superior. Tais são os princípios da doutrina
sagrada, como foi dito.255

Esta ciência superior, condensada nas divinas Escrituras - repitamos


mais uma vez - é a ciência de Deus. Ora bem, a Sagrada Escritura nos foi legada
por alguns homens que, inspirados por Deus, nos transmitiram algo desta ciência
que Deus tem de si mesmo, registrando-a na Sagrada Escritura. Logo, nela se
encontra algo da ciência divina que, por sua vez, serve de princípio para
estabelecer a ciência sagrada. Falando de certos fatos encontrados nos livros
santos, Santo Tomás declina uma pérola, que deixa claro que para Ele, os
Apóstolos e varões apostólicos nos consignaram A Revelação de Deus, que é o
fundamento da própria Bíblia e da doutrina sagrada: “(...) ou visam estabelecer a
autoridade dos homens pelos quais nos chega a revelação divina, fundamento da
própria Escritura ou da doutrina sagrada.”256 Retomando a ordem: primeiro, a
Revelação de Deus; segundo, os homens que à escreveram (A Tradição);
terceiro, a Bíblia como lugar onde se pode encontrar também a Revelação;
quarto, a doutrina sagrada que toma seus princípios da Bíblia.

254
Idem. Ibidem. I, 1, 10, C.“O autor da Escritura Sagrada é Deus.” E, embaixo, no respondeo
do mesmo artigo, volta a afirmar: Idem. Ibidem: “auctor autem sacrae Scripturae Deus est (...)”.
255
Idem. Ibidem. I, 1, 2, ad 1.
256
Idem. Ibidem. I, 1, 2, ad 2. (O itálico é nosso).
Daí que, para manter as notas divinas da sagrada ciência, o Angélico
distingue então dois níveis de argumentos: os da Escritura que, os oriundos dos
Apóstolos e varões apostólicos e procedentes da Revelação de Deus, gozam do
carisma de infabilidade e constituem, ipso facto, o fundamento da sagrada
ciência, posto que objetos de fé divina; mais há ainda os argumentos provindos
dos demais doutores, ao qual ele atribui apenas um valor de prováveis e
verossímeis, mas nunca dignos do caráter infalível da Escritura, cujo berço é a
Tradição. Em uma palavra, o Angélico distingue nitidamente o dogma infalível
da teologia dos padres, reflexão sobre este mesmo dogma, como diversifica
também a Tradição e autoridade divinas, das tradições e autoridades humanas,
as primeiras são infalíveis enquanto tais, as segundas não:

Quando utiliza os argumentos de autoridade da Escritura


canônica, ela o faz com propriedade, tendo em conta a
necessidade argumentar. Quanto à autoridade dos outros doutores
da Igreja, se vale dela como argumento próprio, mas provável. É
que a nossa fé repousa sobre a revelação feita aos Apóstolos e
Profetas que escreveram os livros canônicos, e não sobre outras
revelações, se é que existem, feitas a outros doutores.257

Aquela autoridade que os averroístas do seu tempo atribuíam à


filosofia de Aristóteles, a saber, que ela coincidia, pura e simplesmente, com a
verdade258, Santo Tomás, ao contrário, atribuía à Palavra de Deus. De fato, em se
tratando da Palavra divina, não nos resta senão comentá-la fielmente. A respeito
da autoridade da Sagrada Escritura, na teologia de Tomás e o primado desta em
relação às demais, são bastante precisas e incontroversas as palavras de Joseph
Nicolas:

257
Idem. Ibidem. I, 1, 8, ad 3.
258
A respeito da doutrina de Averróis, comenta o Professor Carlos Arthur: Carlos Arthur R.
Nascimento. Santo Tomás de Aquino: O Boi Mudo da Sicília. p. 50: “Já que toda a verdade
que o ser humano pode conhecer por seu próprio esforço intelectual havia sido comunicada por
Aristóteles, nada mais restava senão ‘comentar, isto é, explicar as obras de Aristóteles.”
Aliás, nem todas as autoridades devem estar no mesmo plano. A
da Palavra de Deus, da Verdade divina, é evidentemente
absoluta. Não no sentido de que ‘autoridade’ significa,
primeiramente, poder de fazer-se obedecer, mas no sentido de
que autoridade quer dizer garantia absoluta de verdade e, por
isso, direito à adesão incondicional, anterior a toda compreensão.
Antes de das ‘fontes’ de Sto. Tomás, é preciso recorrer à fonte
primeira de seu pensamento, anterior a todas as outras, sua fé.
(...). Nenhuma palavra humana, nenhum espírito humano,
nenhuma tem autoridade a não ser por participação na verdade
primeira que é o próprio objeto da fé. Eis por que a autoridade
da Escritura é irrefragável e ele não tergiversa com ela,
interpretando-a, antes de tudo, por si mesma e pelo sentido
natural das palavras. Aqui, procurar o que pensa o autor não se
diferencia de procurar o que é.259

Agora bem, conforme já sabemos, a Revelação de Deus sobre Deus,


que funda a teologia, chega até nós por meio das Sagradas Letras. Por
conseguinte, a Sagrada Escritura, enquanto contém os princípios fundantes da
teologia, tal como a metafísica na ordem das disciplinas filosóficas – e
certamente mais – é a única que pode arvorar-se ao direito de disputar e
defender a veracidade dos seus princípios, pois, de fato, acima dela não há
ciência ou princípio algum. Ela é, pois, não só princípio da mais alta ciência,
mais também a raiz da sabedoria suprema, alicerce e instância última da ordem
teológica:

Contudo, é preciso considerar que nas ciências filosóficas, as


ciências inferiores não somente não provam seus princípios,
como também não disputam contra aqueles que o negam,
deixando esse cuidado a uma ciência mais elevada. (...). A

259
Joseph Nicolas Marie. Introdução à Suma Teológica. p. 32-33. (Os itálicos são nossos).
Sagrada Escritura, por conseguinte, não tendo outra que lhe seja
superior, terá que disputar com que nega os seus princípios.260

5.5) A Ciência Teológica Enquanto Distinta, mas não Separada da


Mística

Antes de terminar este tópico, faz-se pertinente um sucinto, mas


importante esclarecimento adicional. Santo Tomás distingue, nitidamente, o
conhecimento teológico do místico. Ambos são, cada um a seu modo, sabedorias.
E, conforme já vimos, cabe ao sábio julgar. É, pois, discriminando as duas
formas de julgamento, correspondentes, respectivamente, as duas formas de
sabedorias, que distingui-la-e-mos: “Deve-se dizer que, como o julgar é próprio
do sábio, aos dois tipos de julgamento correspondem duas sabedorias
distintas.”261 Agora bem, há dois tipos de julgamentos. Pode-se, pois, julgar-se
por inclinação, isto é, alguém que já tenha determinada virtude, exatamente por
já ter a inclinação para ela, consegue discernir o que é ou não de acordo com ela.
Entretanto, pode-se também julgar por conhecimento e isto consiste no seguinte:
alguém versado em ética, mesmo que não possua o habitus de uma dada virtude,
conhece, entretanto, os atos que se conformam a ela:

Pode-se julgar por inclinação: como quem possui um habitus


virtuoso julga com retidão o que deve ser feito na linha deste
habitus, estando já inclinado neste sentido. Eis por que se ensina
no livro X da Ética que o homem virtuoso é a medida e a regra
dos atos humanos. Mas existe outra maneira de julgar, a saber,
por conhecimento: como o instruído em ciência moral pode julgar
os atos de uma virtude, ainda que não a possua.262

260
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, C. (O itálico é nosso).
261
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 3.
262
Idem. Ibidem. A teologia é uma ciência e, como dizia Aristóteles, numa sugestiva sentença
do livro da Ética que Tomás retoma, o saber de nada vale para na prática da virtude: Tomás de
Aquino. Suma Teológica. II-II, 181, 1, C: “Por isso, diz o Filósofo: ‘Para a prática da virtude,
Transpondo estas duas espécies de julgamento para as coisas divinas,
elas equivalem há duas formas de sabedorias, que não se opõe, mas distinguem-
se: a primeira forma de julgar é a de julgar por inclinação e que equivale à
sabedoria, dom do Espírito Santo que, nos inclinando de forma permanente ao
que é justo, nos leva, por conseqüência, a saber discernir o que corresponde ao
bem. Já a segunda, que diz respeito ao julgamento por conhecimento,
corresponde à sabedoria teológica, adquirida pelo estudo e pelo esforço da
razão, mesmo que retire os seus princípios da Revelação:

A primeira maneira de julgar às coisas é própria da sabedoria,


dom do Espírito Santo, de acordo com a primeira carta aos
Coríntios: “O homem espiritual julga tudo”. (...). A outra maneira
de julgar pertence a esta doutrina, e é conseguida pelo estudo,
ainda que seus princípios lhe venham da Revelação.263

Entretanto, ainda não atingimos o cerne da questão. Para que possamos


nos adentrar mais a fundo no dom da sabedoria, é preciso reconstituir algumas
verdades que já conquistamos. A sabedoria, desde Aristóteles, diz respeito à
consideração da causa mais elevada. Cabe ao sábio, a partir do conhecimento
que tem da causa mais elevada, julgar e ordenar todas as coisas a partir dela.
Ora, o julgamento mais perfeito e certo é o pela causa. Portanto, julgar e ordenar
as coisas a partir da causa mais elevada, é o julgamento mais perfeito.264 Agora
bem, absolutamente, a causa mais elevada é Deus. Portanto, o sábio,
propriamente falando, é aquele que, conhecendo a Deus, julga e ordena todas as
coisas, de acordo com as regras divinas. Como existem, nesta vida, vários graus
do conhecimento de Deus, é preciso dizer que, o sábio por antonomásia, é aquele

nada ou pouco adianta o saber.” (Unde Philosopllus dicit, in II Ethic, quod ad virtutem scire
quidem parum aut nihil prodest).
263
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 3.
264
Idem. Ibidem. II-II, 45, 1, C: “Segundo o Filósofo, compete ao sábio considerar a causa mais
elevada com a qual tudo pode julgar tudo com grande certeza e segundo a qual tudo deve ser
ordenado.”
que, conhecendo a Deus de forma mais excelente, julga e ordena todas as coisas
a partir deste conhecimento mais profundo que tem da causa mais elevada:

Mas, aquele que conhece de maneira absoluta a causa mais


elevada, que é Deus, se diz que é absolutamente sábio, enquanto
pode julgar e ordenar todas as coisas segundo as regras divinas.265

Ora, o conhecimento mais elevado que podemos ter da causa altíssima,


é aquele que nos é dado pela fé. Mas, o julgamento que podemos fazer de todas
as coisas, de acordo com o conhecimento que temos da causa altíssima, se
diversifica. Um, como já dissemos, é aquele julgamento que, partindo da fé é
elaborado, contudo, por uma inquirição da razão. Ora, tal julgamento nos coloca
na posse de uma sabedoria intelectual, adquirida exatamente pela razão,
enquanto esta se debruça sobre o dado da fé. Em uma palavra, é a sabedoria
teológica. Entretanto, um julgamento ainda mais perfeito das coisas a partir das
coisas divinas, é possível. É o julgamento feito por conaturalidade. De fato, uma
coisa é você julgar tudo pela razão, à luz de Deus certamente, mas de um Deus
que você simplesmente conhece intelectualmente pela fé. Outra, bem diferente, é
você julgar todas as coisas a partir da experiência unitiva que você tem deste
mesmo Deus, presente em sua alma.266 Uma sabedoria de tal ordem, que se dá
em virtude de uma união da alma com Deus, é um dom do Espírito. Tomás volta
à comparação anterior: uma coisa é você julgar a respeito da castidade,
simplesmente por conhecer a ciência desta virtude; outra, bem diversa, é você
julgar o que está de acordo com a castidade, por ser casto. Vale a pena citar toda
a passagem em que Tomás nos esclarece:

Acabamos de dizer que a sabedoria implica uma certa retidão de


julgamento segundo razões divinas. Esta retidão de julgamento

265
Idem. Ibidem.
266
Santo Tomás, para exemplificar, citar mais abaixo Dionísio: Idem. Ibidem: “Dionísio,
falando de Hieroteo, diz que ele é perfeito no que se refere ao divino, ‘não somente por
apreendê-lo, mas também por experimentá-lo’.”
pode existir de duas maneiras: ou por um uso perfeito da razão;
ou por uma certa conaturalidade com as coisas sobre as quais
deve julgar. Assim, no que diz respeito à castidade, aquele que
aprendeu a ciência moral julga bem em conseqüência de uma
inquirição racional; enquanto aquele que tem o hábito de
castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela. Assim,
portanto, no que diz respeito às realidades divinas, ter um
julgamento correto em virtude de uma inquirição da razão
pertence à sabedoria, que é uma virtude intelectual. Mas, julgar
bem as coisas divinas por modo de conaturalidade pertence à
sabedoria enquanto é um dom do Espírito Santo.267

Esta união, fonte e causa desta sabedoria mística, se dá mediante o


virtude teologal da caridade. De fato, assim como a fé é a fonte da sabedoria
teológica, assim a caridade, é a causa do dom sabedoria, pois é ela que nos une a
Deus. Santo Tomás chega a chamar esta união, de uma “compasso”, isto é, de
uma co-natulidade, que nos faz sentir do mesmo modo de Deus, que faz com que
a nossa natureza – não hipostaticamente, bem claro! – mas pelo amor, se una a
Deus,: “Esta simpatia ou conaturalidade com o divino nos é dada pela caridade
que nos une a Deus, segundo Paulo: ‘Aquele que se une a Deus, é com ele um só
espírito’.”268 Santo Tomás, acredita que é tamanha esta união mística com Deus,
que o próprio julgamento do homem que brota dela, é um dom do Espírito Santo:
“Huiusmodi autem iudicium consequitur homo per Spiritum Sanctum (...)”269.
Agora bem, é preciso dizer que, não obstante tendo o dom da
sabedoria a sua raiz na vontade, enquanto esta se encontra unida a Deus pela
caridade, ela continua sendo aqui um ato racional, pois o julgamento que ela
exerce é um ato do intelecto. Distingue-se, pois, da sabedoria teológica,
enquanto não nasce da inquirição da razão iluminada pela fé, mas sim da
experiência unitiva do homem com Deus pela caridade. Isto é muito importante,

267
Idem. Ibidem. II-II, 45, 2, C. (O itálico é nosso).
268
Idem. Ibidem.
269
Idem. Ibidem. II-II, 45, 1, C: “Ora, é o Espírito Santo que dá ao homem ter tal julgamento.”
pois, para desmascarar certas tendências de colocar a mística dentro do
irracional. Além disso, serve também distinguir a experiência mística e o
conhecimento místico que brota dela. De fato, a sabedoria mística, também é
uma espécie de conhecimento:

Assim, portanto, a sabedoria que é um dom tem como causa a


caridade que reside na vontade; mas tem sua essência no
intelecto, cujo ato consiste em julgar retamente, como vimos
anteriormente.270

A sabedoria mística é, absolutamente falando, mais excelente que a


própria sabedoria teológica271. Isto porque, enquanto a sabedoria teológica
procede do exercício racional sobre o dado revelado, a mística, é um dom do
próprio Espírito Santo. Para sermos mais precisos. É como se, pela sabedoria
teológica conhecêssemos a Deus de “ouvir dizer”. Embora os seus princípios
estejam firmadas na suprema autoridade de Deus, as suas conclusões, apriori,
procedem de nossos raciocínios limitados e, não sendo imediatamente reveladas,
podem, ipso facto, comportar falha, estar sujeitas a erros. Na sabedoria mística,
o conhecimento brota daquele que tem a cabeça recostada no coração do mestre,
do encontro da alma, unida a Ele pela caridade. É um conhecimento, que nasce
da experiência, da convivência com o amado:

Por isso, por ser a sabedoria, como dom, mais excelente do que a
sabedoria, como virtude intelectual, porque atinge a Deus muito

270
Idem. Ibidem. II-II, 45, 2, C.
271
Embora a ciência teológica, sendo ainda ciência humana, porque suas conclusões se baseiam
em raciocínios, na ordem das ciências humanas, ela é a mais excelente, por já ser divina em
seus princípios. Já a sabedoria mística é o mais excelente conhecimento que o homem pode ter
de Deus nesta vida. Enquanto a visão beatífica é o mais excelente conhecimento que o homem
pode de Deus de Deus, absolutamente falando.
mais de perto em razão da união que se estabelece entre a alma e
ele (...).272

Tal sabedoria, enquanto pressupõe a caridade: “(...) sapientia


praesupponit caritatem (...)”273, é uma sabedoria amorosa, que longe de abrigar
aquelas enormes fadigas intelectuais - próprias da ciência teológica - é
dulcíssima, e nos traz alívio e descanso, convertendo o trabalho em repouso.
Poderíamos até dizer que, a mística é o conhecimento que brota dela, deveriam
ser os lazeres de todo bom teólogo:

Mas sabedoria não traz nem amargura, nem trabalho aos atos
humanos dirigidos por ela. Ao contrário, por causa dela a
amargura se converte antes doçura, e o trabalho em repouso.274

É, por último, uma sabedoria “delicada”. Reclama certa integridade


moral, pois, enquanto pressupõe a caridade, e esta não coabita com o pecado
mortal, tal sabedoria supõe a ausência de todo pecado mortal:

Ora, a caridade não pode existir ao mesmo tempo que o pecado


mortal, como se mostrou acima. Por isso, resulta que a sabedoria
da qual falamos não pode coexistir com o pecado mortal.275

Ora bem, tudo que dissemos mais acima, equivaleria a dizer, que
sabedoria, fruto da teologia como ciência, seria uma teologia sem lugar para a
mística? De todo. Mas só responderemos adequadamente a esta questão, se a
confrontarmos com alguns dados já estabelecidos anteriormente. Falávamos que
a Revelação, fundamento da teologia, que não é senão uma participação na

272
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, ad 1.
273
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, C.
274
Idem. Ibidem. II-II, 45, 3, ad 3: “(...) sed amaritudo propter sapientiam vertitur in
dulcedinem, et labor in requiem.” (Os itálicos são nossos).
275
Idem. Ibidem. II-II, 45, 4, C.
ciência de Deus e dos bem-aventurados. Dizíamos ainda que, por ela ter
fundamento tão sólido, era a sabedoria por excelência entre todas as ciências
humanas. No entanto, é preciso logo acrescer que, justamente por isso, isto é, por
ter ela fundamento tão sólido - que a torna, inclusive, a mais alta das sabedorias
adquiridas pelo homem - ela não poderá ser, em sentido absoluto, nem a mais
homérica sabedoria e nem a ciência mais eminente. Este lugar caberá, pois,
precisamente à ciência da qual ela recebe os seus princípios. Acima da ciência
teológica está, pois, a mesma ciência de Deus e dos bem-aventurados, que é a
Revelação, aceita pela fé. E, neste sentido, ou seja, enquanto têm como
princípios a sobrenatural e elevadíssima ciência de Deus, ela é mística em sua
fonte. Destarte, em seus princípios, é subordinada à ciência de Deus:

A teologia enquanto ciência sagrada recebe seus princípios da


ciência de Deus, isto é, da fé. (...) A autonomia da teologia como
ciência é portanto inteiramente relativamente, mas por essa via,
justamente, é melhor assegurada a continuidade entre teologia
como saber humano e a ciência de Deus.276

Nestas condições, a ciência teológica só é independente em relação as


demais ciências humanas, enquanto depender, desde os seus princípios, da
ciência de Deus. Só é livre para se tornar legítima ciência humana, se aceitar o
seu fundamento divino:

O mérito da engenhosa solução de Sto. Tomás consiste em atestar


que é a qualidade científica da teologia que exige, de maneira
estrutural, a presença mística da fé: ‘Aquilo mesmo mediante o
qual a teologia é ciência é aquilo pelo qual ela é mística’. (M.-D
Chenu).277

276
Claude Geffré. A Teologia Como Ciência. p. 129.
277
Idem. Op. Cit.
E, no entanto, permanecendo mística em seus princípios, não deve, ao
contrário, o ser no seu desenrolar. Dado os princípios, todo o desenvolvimento
teológico, como vimos, é um habitus adquirido mediante o estudo, com os
procedimentos próprios da razão humana. O que não significa, evidentemente,
que deixe de ser uma ciência guiada pela fé também no concurso do seu
desenvolvimento. Sendo os seus princípios irredutíveis à razão natural e, sendo
que toda ciência deve se reduzir aos seus princípios, então, todos os resultados
da ciência teológica serão, quando verdadeiros278, redutíveis às verdades de fé279
278
A verdade teológica, para ser considerada inclusa na Revelação precisará, como veremos na
nota seguinte, ser confirmada pelo Magistério.
279
Importantíssimo notar aqui que as verdades teológicas são “redutíveis” aos dogmas, apenas
no sentido de que partem e procedem deles. Como de seus princípios primeiros, deles
dependem. No entanto, conclusões teológicas não são dogmas de fé e não pretendem
demonstrar os dogmas. Antes, os supõe. Os dogmas, notemos bem, são para a doutrina da fé, o
que são os primeiros princípios da razão para a filosofia, isto é, indemonstráveis. São principios
irredutíveis a nenhum outro, ipso facto, primeiríssimos princípios. A diferença está aqui:
enquanto os primeiros princípios da razão são evidentes por si, os dogmas de fé, em relação ao
nosso intelecto, o são em virtude da autoridade do Deus revelante. Destarte, nenhuma teologia
pode demonstrá-los, pois toda teologia os pressupõe. Pode, no entanto, a partir deles, tirar
outras conclusões ou ainda tentar explicá-los, sem nunca pretender demonstrá-los. Desta feita, a
verdade teológica não é uma verdade imediatamente revelada enquanto tal. Só dogma o é. Pode
o Magistério, não obstante, por uma intervenção extraordinária, vir a declarar que tal verdade
teológica esteja contida na revelação. Contudo, faltaria com a humildade o teólogo que
pleiteasse por si mesmo, “canonizar” as suas conclusões, arvorando-se em dizer que as suas
conclusões estão imediatamente incluídas na revelação. Citemos uma passagem, a qual cá e lá
teremos que retornar, onde Penido explica a controvertida questão. Aqui se confrontam, de
certa maneira, os limites da teologia e da assistência do Magistério à teologia: Maurílio Teixeira
Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 41: “Uma conclusão teológica
não é verdade de fé, porque não foi imediatamente revelada, e, ainda que o teólogo veja de uma
maneira evidente sua inclusão real e necessária no imediatamente revelado, ele, na sua condição
de teólogo particular, pode e deve perguntar ansioso se, fraco e falível como é, entendeu
corretamente os princípios da fé, se lhes penetrou as conexões essenciais, se inferiu
rigorosamente as conseqüências ou coadunou a vastidão da Verdade infinita à estreiteza de suas
misérias, minimizando o divino; se não turvou a limpidez diáfana mensagem divina, com suas
noções opacas e obscuras, divinizando quiçá o humano.”
e, por isso mesmo, certa participação no Logos divino: “Ora, o sujeito dos
princípios e da totalidade da ciência é o mesmo, pois a ciência está contida
virtualmente em seus princípios. (cum tota scientia virtute contineatur in
principiis).”280 E, neste sentido, podemos conceder de bom grado com Penido,
que a fé está presente do começo ao fim da teologia: “Em teologia não impera a
razão, mas a fé – no início, no decurso e no fim da pesquisa.”281 Entretanto,
insistimos uma vez mais em frisar, que os princípios da fé, fazendo às vezes em
teologia dos primeiros princípios da razão nas demais ciências282, uma vez

280
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 7, C: (O parêntese e o itálico são nossos). Neste
sentido, podemos acordar com Penido, quando diz belamente, que somos, de certa forma,
religados ao Verbo quando fazemos verdadeira teologia: Maurílio Teixeira Leite Penido.
Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 43: “A teologia é antes uma atividade
religiosa; é a entrega do intelecto ao Verbo cuja luz veio iluminá-lo; é um movimentar-se do
pensamento que se projeta todo aos pés do Cristo-Deus revelador.”
281
Idem. Ibidem. p. 43. É tão preponderante o papel da fé no decurso da teologia que, no
capítulo IV, do livro II da Suma Contra os Gentios, onde Tomás distingue com precisão, o
modo de proceder do filósofo e do teólogo, ele – quando quer exatamente distinguir o filósofo
do teólogo – abandona bruscamente o termo teólogo e adota a designação fiel, certamente para
indicar que o teólogo é, antes de tudo, um fiel e que, como diz Pe. Penido: Maurílio Teixeira
Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 39: “A base da teologia não é a
capacidade de invenção do teólogo, mas a fidelidade à Revelação.” O título do capítulo da Suma
é: Idem. Suma Contra os Gentios. II, IV: “Quod Alter Considerat de Creaturis Philosophus et
Theologus.” (Os itálicos são nossos). Já no corpo do texto, verificamos a substituição dos
termos aludidos: Idem. Ibidem. II, IV, 2 (872a): “E por esse motivo o filósofo (Philosophus) e o
fiel (Fidelis) consideram realidades diversas nas criaturas.” (Os parênteses são nossos). Idem.
Ibidem. II, IV, 3 (873): “No entanto, algo nas criaturas é considerado em comum pelo filósofo
(Philosopho) e pelo fiel (Fideli), mas segundo princípios diversos.” (Os parênteses são nossos).
Idem. Ibidem: O filósofo (Philosophus) deduz os seus argumentos partindo das próprias causas
das coisas; o fiel (Fidelis), porém, da causa primeira (...)”. (Os parênteses são nossos). É isto
que leva Penido a declarar, com veemência que: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação
Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 37: “Sem fé sobrenatural não há Teologia cristã.”
282
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 7, C: “Os artigos de fé têm na doutrina da fé o
mesmo papel que os princípios evidentes na doutrina que se constrói a partir da razão natural.”
aceitos, dão lugar a consecução do trabalho científico, isto é, a resultados
obtidos por via de raciocínios-dedutivos:

Pode-se comparar a fé ao habitus dos primeiros princípios, e a


teologia a esse ato perfeito do conhecimento que é o habitus da
ciência, isto é, o ato de conhecimento que explica a atribuição de
tal ou tal predicado ao sujeito da ciência. Como diz Pe. Chenu, a
teologia é a fé in status scientiae.283

Em outras palavras, a teologia será sempre uma ciência humano-


divina, sempre uma ponte entre o divino e o humano.284

5.6) A Atividade Teológica

5.6.1) Contemplação e Ensino

Víamos acima que, existe uma certa intervenção da razão, que precede
e condiciona, de certo modo, o ato de crer. Nesta primeira intervenção, vimos
também que a razão não caminha sozinha, mas é assistida pelos dons da
inteligência e de ciência. Agora bem, existe uma segunda intervenção da razão,
um certo conhecimento da fé, que sucede ao ato mesmo de crer. Neste ínterim a
razão, como também já vimos, trabalha, fincada na fé, mas com os seus próprios
recursos, embora possa ser eventualmente auxiliada pela chamada graça. Essa
atividade da razão, que sucede ao ato de crer, é exatamente o que irá constituir-
se como ciência teológica. Seu objetivo primeiro é o ensino. Transmitir, pois, de

283
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132
284
Sintetiza Penido com maestria: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O
Mistério da Igreja. p. 41: “Embora a conclusão teológica não seja verdade de fé, tampouco é
mera verdade humana, porque estava implícita na palavra de Deus. Saber divino-humano, misto
de fé e de razão, tal é a Sagrada Teologia. Divina, por serem revelados os princípios com que
argumenta; humana, porque passamos às conclusões por um discurso que nos é próprio. Por
outras palavras, a teologia é a maneira humana de estudar as coisas divinas.”
forma adequada – didática – algum entendimento colhido das verdades da fé. Ao
lado desta finalidade pedagógica, outra se encontra, qual seja, a de refutar os
erros daqueles que contradizem a fé. E claro, mostrando, o quando nos é
possível, a inteligibilidade da fé, destruir os empecilhos que estorvam as mentes
infiéis a crer. Todos são destinados a crer, mas ser teólogo é da economia da
graça grátis, é uma vocação. A respeito desta segunda espécie de ciência da fé,
diz o Frade de Rocasseca:

Outra, é a ciência sobre o objeto da fé, pela qual o homem não só


sabe o que se deve crer, mas também como manifestar a fé, levar
os outros a crer e refutar os contraditores. E essa ciência é
colocada entre as graças grátis dadas, não sendo dada a todos,
mas só a alguns.285

Toda esta “finalidade prática”, que frisamos acima, da qual nasce a


teologia, parece estar em aberta contradição com o sobrenatural que a reveste e
com a sua elaboração e feição inegavelmente teórica. Entretanto, o contraste é
apenas aparente. Para entendermos que não há contradição, é preciso nos voltar
para a concepção que Tomás tinha da vida contemplativa e da sua relação com a
vida ativa, na qual se desenrola o ensino. A vida contemplativa consiste, pois, na
descoberta e contemplação da verdade.286 Antes de tudo, na contemplação da

285
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 9, 2, ad 2. Sobre a forte ligação que Tomás via
entre a teologia e o ensino, podemos notar pelo caráter de suas principais obras. A mais famosa
delas, a Suma Teológica, é expressamente dirigida para o ensino dos principiantes: Idem.
Ibidem. I, Prólogo: “O doutor da verdade católica deve não apenas ensinar aos que estão mais
adiantados, mas também instruir os principiantes (...)”. Sobre o seu esforço, para dar um perfil
didático e acessível à exposição dos conteúdos da fé, também deixa registrado: Idem. Ibidem:
“Observamos que os noviços nesta doutrina encontram grande dificuldade nos escritos de
diferentes autores (...) No empenho de evitar esses e outros inconvenientes, tentaremos,
confiando no auxílio divino, apresentar a doutrina sagrada sucinta e claramente, conforme a
matéria o permitir.” (O itálico é nosso).
286
Idem. Ibidem. II-II, 180, 1, C: “Chama-se vida contemplativa a vida daqueles que se aplicam
à contemplação da verdade.”
Verdade divina: “O elemento principal da vida contemplativa é a contemplação
da verdade divina (...)”.287 Mas também, secundariamente, na contemplação dos
efeitos divinos, ao menos na medida em que estes nos levam à contemplação de
Deus.288 A verdade contemplada, doravante, nós a expressamos, primeiro
interiormente, por meio de um verbo interior, mas também exteriormente,
através de palavras audíveis. Agora bem, o que é ensinar, senão conseguir
expressar, exteriormente, de forma audível, clara e sucinta, o conceito interior
que contemplamos e assim, deveras, levar os ouvintes ao conhecimento da
verdade, isto é, à própria contemplação?289 É desta forma, pois, que o ensino,
longe de se contrapor a contemplação é, ao contrário, o seu transbordamento, o
caminho que conduz outros a ela:

Assim, deve-se concluir que a obra da vida ativa é dupla. – Uma,


que procede da plenitude da contemplação (plenitudine
contemplationis), como o ensino e a pregação.290

Como o que ilumina é mais perfeito do que aquilo que somente brilha,
assim aquele que transmite o que contemplou, é mais perfeito do que o simples
contemplativo. Leva outros à contemplação. Ser professor, longe de aborrecer a
vida contemplativa, a aperfeiçoa: “Pois, assim como é mais perfeito iluminar do
287
Idem. Ibidem. II-II, 180, 4, C.
288
Idem. Ibidem: “Mas, pelos efeitos divinos somos levados à contemplação de Deus (...). Daí
resulta que também os efeitos divinos pertencem secundariamente à vida contemplativa,
enquanto por ela o homem é levado ao conhecimento de Deus.”
289
Idem. Ibidem. II-II, 181, 3, ad 1: “Pois o que é dotado de sabedoria ou de ciência tem
competência para ensinar, na medida em que pode exprimir por palavras o conceito interior
(interiorem conceptum), de modo a conduzir os outros ao conhecimento da verdade.” (O
parêntese é nosso). É por isso que Santo Tomás chega a dizer que, mesmo o ensino sendo um
ato formalmente da vida ativa, ele nos dispõe à vida contemplativa: Tomás de Aquino. Sobre o
Estudo. 4, ad 4: “(...) a vida ativa, dispõe a contemplativa.” E isto, não somente quanto ao
professor que ensina, mas também quanto ao aluno enquanto é predisposto à apreender a
verdade.
290
Idem. Suma Teológica. II-II, 188, 6, C. (O itálico é nosso).
que apenas brilhar, assim também é mais perfeito comunicar aos outros o que se
contemplou do que apenas contemplar.”291 Não há, portanto, verdadeira
separação – há sim distinção – entre a vida contemplativa e a vida ativa. Santo
Tomás chega dizer que, quem “deixa” a contemplação, para exercer as
atividades próprias da vida ativa (inclusive para ensinar), de certa forma, não
interrompe a contemplação, antes, dá continuidade ela; não lhe arrepia o
processo, ao contrário, o complementa:

É, evidente, pois, que , quando alguém é chamado a deixar a vida


contemplativa para dedicar-se à ativa, não se trata de tirar-lhe a
contemplação, mas de acrescentar a ação.292

É por isso que Santo Tomás não vê problema algum em se fundar uma
vida religiosa – até então direcionada somente à contemplação – votada também
ao estudo e à pregação. Melhor, por uma inversão muito audaciosa para época, e
que poderia até passar despercebida para um leitor menos contextualizado, ele
diz que não haveria problema algum em se fundar vidas religiosas com vistas ao
estudo e a pregação, isto é, à vida ativa: “(...) o estudo das letras é necessário às
vidas religiosas fundadas em vista da pregação e dos ministérios análogos.”293
Sim, porque estudo e pregação, para ele, longe de aborrecerem à vida
contemplativa, enquanto à traduzem exteriormente, à aperfeiçoam também. É
como nos dizia ele mais acima, não sem certa veia poética: “Sicut enim maius
este illuminare quam lucere solum, ita maius este contemplata aliis tradere quam
solum contemplari.”294 Trocando em miúdos, uma ordem religiosa, fundada com
a finalidade, não somente de contemplar, mas também de transmitir o que
contemplou, acaba sendo mais perfeita que aquela que só contempla!

291
Idem. Ibidem.
292
Idem. Ibidem. II-II, 182, 1, ad 3. O original latino é muito mais forte: “Et sic patet quod,
cum aliquis a contemplativa vita ad ativam vocatur, non hoc fit per modum subtrationis, sed per
modum additionis.” (O itálico é nosso).
293
Idem. Ibidem. II-II, 188, 5, C.
294
Idem. Ibidem. II-II, 188, 6, C.
E no bojo de tanta ousadia, o que é mais impressionante, é que ele
ainda encontra lugar, para inserir na vida religiosa, o ensino das ciências
naturais. Como sabemos, naqueles idos ainda não havia a nossa separação
cartesiana entre filosofia e ciência, e as disciplinas filosóficas se encontravam
integradas no edifício das ciências naturais. Já sabemos também que, para Santo
Tomás, há um lugar na contemplação das coisas divinas, reservado à
contemplação dos efeitos divinos, precisamente enquanto estes nos levam àquele.
Pois sim, para que os estudos dos efeitos divinos - isto é, das criaturas – seja
criterioso, deve-se integrar à moldura do arcabouço teológico, o estudo as letras
profanas. Com efeito, serão estas letras profanas que nos darão a base, para que
possamos compreender corretamente as criaturas e assim, destarte, tais criaturas
nos possam remeter, de fato, a um melhor entendimento do Criador.295 Além
disso e sobretudo, todos estes estudos prévios, nos ajudarão a entender melhor às
próprias Sagradas Escrituras que, por inumeráveis vezes, se valem destes efeitos
divinos que, se não são compreendidos de forma correta, acabam surtindo o
efeito contrário e nos levando a formatar erros grosseiros à respeito das mesmas
coisas divinas. Santo Tomás cita até um exemplo:

Indiretamente, a saber, os erros da contemplação, a saber, aqueles


em que freqüentemente caem, na contemplação das coisas
295
De fato, o estudo das criaturas não é um aditivo a mais. Um conhecimento filosófico
acabado não é um simples anexo marginal ou opcional para o teólogo. Ele precisa ser
qualificado, acertado, para que possa surtir o efeito desejado, a saber, levar-nos a um melhor
entendimento das coisas divinas. Caso ele não seja criterioso, longe de ajudar, ele pode até
afastar as pessoas de Deus. Santo Tomás adverte, numa passagem inesquecível da Suma Conta
os Gentios: Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. II, III, 5 (869): “O erro acerca das
criaturas redunda em falsa idéia de Deus e, ao submeter as mentes humanas a quaisquer outras
coisas, afasta-as de Deus, para quem a fé as quer encaminhar.” Daí a nossa preocupação em ver
o ensino da filosofia, se restringir a um lugar cada vez mais estreito em certos institutos
teológicos. Vêem-se o ofuscando o conhecimento racional, isto quando não se olvida dele. E,
no entanto, ele é imprescindível para quem almeja ser teólogo. E, se não for para tê-lo com
clareza, melhor seria, talvez, nem tê-lo. Santo Tomás talvez concordasse com alguém que
dissesse: “Um pouco de ciência nos afasta de Deus; muita, dele nos aproxima!”
divinas, os que ignoram as Escrituras. Assim, lê-se que o abade
Serapião, por simplicidade (simplicitatem), caiu no erro dos
antropomorfitas (Anthropomorphitarum), isto é, daqueles que
atribuíam a Deus uma forma humana.296

5.6.2) Fé e Teologia

A fé busca a visão e, por isso, se desabrocha em teologia. Entretanto,


ela não finda na teologia, mas na pátria. De alguma forma, enquanto busca a
visão, por meio de um conhecimento mais profundo, ela já é em nós um germe de
vida eterna: “(...) pela fé é iniciada em nós, a vida eterna.”297 A fé é a aurora da
vida eterna. Porquanto, enquanto busca a visão, indica que a contém, de certo
modo, pois ninguém busca o absoluto desconhecido. De fato, a fé nos propõe,

296
Idem. Suma Teológica. II-II, 188, 5, C. (Os parênteses são nossos). Fizemos questão de citar
os termos latinos, simplicitatem e anthropomorphitarum, porque, infelizmente em nossa
teologia atual, tem livre trânsito, certa concepção equivocada de simplicidade. Este termo se
tornou sinônimo de pureza na fé. Sem dúvida, a verdadeira simplicidade o é. No entanto, muitos
entendem por simplicidade uma certa ignorância, uma espécie de “não-procurar-saber” nada
mais. Eis a sentença célebre de Tomás, após enumerar os nefastos erros a que podemos ser
conduzidos, quando prescindimos de toda ciência em teologia: Idem. Suma Contra os Gentios.
II, III, 5 (869): “Vê-se, pois, como é falsa a afirmação de alguns, de que era indiferente para as
verdades da fé o que se pensasse a respeito das criaturas, contanto que se pensasse retamente
sobre Deus (...)”. E tal ignorância, segundo alguns defensores desta linha, seria compensada
por uma suposta “espiritualidade”, que o mais das vezes se apresenta sob a forma de um
estranhíssimo pseudo-misticismo de linha maniqueísta. A principal conseqüência desta postura,
linha da convivência, é o fundamentalismo e, por vezes, até o fanatismo intolerante. Quando
esta acepção errônea de simplicidade migra para a teologia, transforma–se exatamente em
antropomorfismo maléfico. Humildade é não ir além do que a razão pode saber, reconhecer
seus limites, e não ficar aquém das capacidades racionais, isto pode até ser negligência... Anti-
racionalista é saber que não se pode saber tudo e não que não se deve procurar saber nada
(Isto é ser irracional ou, no mínimo agnóstico). Por trás de certos misticismos, ditos
humildíssimos, esconde-se na verdade, um fechamento deletério para os cristãos, além de uma
soberba invencível para se configurar de qualquer diálogo.
297
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18
nos seus conteúdos, o seu objeto ainda em mistério, Deus. A fé é, assim,
essencialmente transitória: “Possuída, pois a fé, fica ainda na alma a inclinação
para algo mais: para a perfeita visão da verdade conhecida pela fé (...)”.298
Trânsito que não termina nesta vida, mas que só findará na vida futura, com a
visão da essência Divina: “Esse conhecimento inicia-se pela fé, mas é
completado na vida futura, quando O conhecermos tal como é.”299 Ela não sacia,
portanto, nosso desejo de conhecer, antes, se nos é permitido dizer, o
“provoca”300, pois não vemos o que cremos. Por isso a fé é, por natureza,
inquieta:

Mas só com o conhecer as verdades da fé, o desejo do homem


não se satisfaz. A fé, com efeito, é conhecimento imperfeito das
coisas que se crêem, que não são vistas.301

Mas não é uma inquietação somente tensa, senão também gozosa,


pois, como já averiguamos, ela nos enxerta, de certa maneira, no significado dos
enunciados que propõe. Ela é, portanto, um conhecimento certo, ainda que muito
incompleto, das realidades futuras: “A fé é uma prelibação daquele
conhecimento que nos fará bem aventurados no futuro (...)”.302 E a inquietude da
fé é uma inquietude necessária, pois não há outro caminho para se chegar à visão,
senão crendo: “Ninguém alcançará a bem-aventurança eterna, sem que tivesse
primeiramente o conhecimento da fé (...)”303. Com efeito, até de um ponto de
vista natural, é preciso se começar crendo para depois entender: “Todo aquele
que aprende assim, é necessário que creia, para alcançar a ciência perfeita, como

298
Idem. Compêndio de Teologia. II, 1, 3.
299
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
300
Santo Tomás o diz expressamente: Idem. Suma Contra os Gentios. III, XL, 4 (2178): “(...)
o conhecimento da fé não aquieta o desejo, mas, antes, o excita, porque todos querem ver aquilo
em que crêem (...)”. (O itálico é nosso).
301
Idem. Compêndio de Teologia. II, I, 2.
302
Idem. Ibidem. I, II, 1.
303
Idem. Exposição Sobre o Credo. p. 18.
diz o Filósofo: ‘para aprender é necessário crer.’”304 Nem a fé estaciona nela,
ela busca compreender. E, enquanto tenta sistematizar esta compreensão, faz
nascer a teologia. A teologia não é assim, senão mais um estágio que, como
veremos, ainda não é o porto da visão, e sim mais um passo para ele. Eis como o
Frade Dominicano, descreve o itinerário do crente transeunte neste mundo:

Enquanto estamos em caminho, convém conhecer o caminho pelo


qual se alcança o fim, até porque, na pátria, os bem-aventurados
não poderão dar suficiente ação de graças se não tiverem tido o
conhecimento do caminho pelo qual foram salvos.305

E a teologia nasce, portanto, da própria fé. Vimos que, aquele


conhecimento que precede ao ato de fé, não nos coloca, senão diante do que
devemos crer, sem nos colocar, contudo, na visão dos enunciados que propõe. E,
no entanto, a fé – como, aliás, a própria razão – não aceita parar nas fórmulas, ela
tende à realidade que os enunciados significam:

Ora, o ato do que crê não se orienta para o enunciado, mas para a
coisa: não formamos enunciados a não ser para que tenhamos
conhecimento das coisas, como acontece na ciência, e também na
fé.306

Porquanto, a fé busca a ciência mais perfeita, a fé está prenhe de


teologia: “A fé que é fiel ao seu próprio dinamismo já contém uma teologia em
estado latente (...).”307 Mas, a quem nos ouvisse em surdina, poderia parecer que
defendemos uma concepção racionalista de teologia. Longe disso, já encetamos

304
Idem. Suma Teológica. II-II, 2, 3, C. A citação em Aristóteles, encontra-se em De Sophist.
Elench I, 2: 161, b, 3. Idem. Ibidem: “Sicut etiam Philosophus dicit quod oportet addiscentem
credere.”
305
Idem. Compêndio de Teologia. I, II, 2.
306
Idem. Suma Teológica. II-II, 1, 2, ad 2.
307
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132.
que a fé inquieta, que busca compreender, longe de nos levar ao racionalismo,
desemboca num postulado anti-racionalista. O Frade Mendicante, ao mesmo
tempo em que coloca a fé como prenhe de ciência teologia, a coloca também
grávida de irracionalidade (não do irracional). Com efeito, tomando as palavras
de Santo Hilário, aduz como pressuposto fundante de toda teologia, a
incapacidade de apreendermos tudo a respeito de seu objeto. A teologia, desde o
seu começo, é um projeto que só dará “certo”, se o teólogo admitir que ele não
terá fim nesta vida.308 Toda teologia precisa, enfim, ceder, em algum momento,
ao incompreensível:

A autoridade de S. Hilário confirma tal afirmação, quando,


abordando este assunto, escreve: Começa tu crendo nisto,
prossegue, persiste. Mesmo sabendo que não chegarei, contudo
alegrar-me-ei por ter progredido. Quem piedosamente busca a
verdade infinita, mesmo que algumas vezes não a alcance,
progride sempre na sua busca. Mas não queiras penetrar
naquele mistério nem mergulhar no arcano da geração eterna,
presumindo compreender a suprema inteligência: saibas que há
coisas incompreensíveis.309

Portanto, toda esta atividade teológica, que sucede à aceitação dos


artigos de fé, não nos levará, por certo, a uma demonstração racional dos
mistérios, visto que eles não são redutíveis aos princípios da razão natural em
exercício. Tentar demonstrar os mistérios – nunca será demais lembrar – seria a

308
Afirmávamos acima que a teologia busca, fundamentando-se na fé, um conhecimento de
Deus em si mesmo. E, de fato, a fé nos proporciona uma participação neste conhecimento de
Deus. Esta fé inquieta, que busca a compreensão, longe de se tornar um “escape” para o
racionalismo, é semente de vida eterna. Ela é inquieta, porque nunca conseguirá, nesta vida, dar
cabo do seu desejo: ver a Deus:
309
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, XVIII, 4 (50).
ruína da teologia.310 De fato, como tal comércio corresponderia à redução do
sobrenatural, que funda a teologia, no natural, que apenas a auxilia, tal indústria
seria a última traição a ela, seria mesmo a negação dos seus princípios e o
túmulo certo da sua cientificidade, o beijo de Judas.311 Por isso, é preciso ter
sempre em mente, ao fazer ciência teológica, a máxima penidiana: “Das
premissas temos fé, da conclusão temos ciência teológica.”312 Isto é, temos fé nos
dogmas e a atividade da teologia não visa substituí-la, mas, antes, depende dela
para existir. Sempre permanecerá verdade a sentença definitiva de Santo Tomás:
“(...) o que é de fé, deve-se crer, não por causa da razão humana, mas por causa
da autoridade divina.”313
Almejar eliminar os mistérios, talvez mais do que negá-los
explicitamente, equivaleria a tentar racionalizá-los, o que seria, sem jaça,
suprimi-los. Ora, isto teria por conseqüência imediata, o aniquilamento da sua
natureza sobrenatural e da própria teologia. Por isso, a ciência teológica não
busca proporcionar-nos uma demonstração exclusivamente racional do dogma.
E não visando, portanto, nos dar uma ciência do dogma – unívoca à ciência
aristotélica – onde as conclusões se reduzem aos seus princípios de forma
evidente e necessária, a teologia, nas suas conclusões, diferentemente de nos
seus princípios - não pode ser dogmática enquanto tal314. E isto, exatamente por
310
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, C: “No entanto, a doutrina sagrada utiliza também a razão,
não para provar a fé, o que lhe tiraria o mérito, mas para iluminar alguns outros pontos que
esta doutrina ensina.” (O itálico é nosso).
311
Neste sentido, adverte-nos Penido: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O
Mistério da Igreja. p. 39: “Erro capital seria imaginar que a fé representa tão só o ponto de
partida a ser transporto; atingida por ela a existência dos mistérios, poderíamos racionalizá-los
plenamente. Não, a fé é a fonte perene donde a teologia haure a vida; seus primeiros princípios
são artigos de fé e sua guia constante é ainda a fé.”
312
Idem. Ibidem. p. 41.
313
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 2, 10, C: “Ita credere debet homo ea quae sunt
fidei non propter rationem humanam, sed propter auctoritatem divinam.” (O itálico é nosso).
314
É dogmática, enquanto trata de verdades dogmáticas, enquanto parte de verdades
dogmáticas, e não enquanto possua conclusões também dogmáticas e intransferíveis, como se
tais conclusões fossem o mesmo dogma, agora não já crido, mas sabido.
partir de um dogma revelado e não poder, desta sorte, traduzi-lo em fórmulas
racionais apodíticas, redutíveis aos primeiros princípios da razão. 315 E não é só.
Nem sequer o esgota, compreendendo-o perfeitamente, quando tenta explicá-lo
do ponto de vista da revelação. A Revelação, quando aceita pela fé, não é algo
que se torna desde então acessível, passível de conhecimento natural. Ela
continua sobrenatural, continua ultrapassando todas as nossas categorias. Por
mais que raciocinemos, jamais chegaremos a alcançá-la pela razão. Ainda
quando partimos dela, ainda quando permanecemos fiéis aos seus princípios de
entendimento, nenhuma reflexão sobre ela irá lograr desvendar-nos o seu
mistério e dar-nos à clareza da visão.316 As verdades da revelação, portanto,
permanecerão sempre tendo que ser aceitas, nesta vida, por revelação. Destarte,
uma conclusão teológica enquanto tal, por mais perspicaz que seja, jamais será
uma verdade revelada por Deus. É, antes, um esforço da razão. E, por isso
mesmo, “A conclusão teológica não é verdade de fé, porque não é imediatamente
revelada (...)”317.
Ora bem, isto também não significa que o esforço teológico seja
inócuo! Ele nos dará ao menos o alento de perceber, a articulação entre uma
verdade de fé e outra verdade fé ou entre uma verdade de fé e uma verdade

315
Penido é assaz severo com esta forma de teologia, a saber, aquela que se envereda na
tentativa inócua de tentar demonstrar os mistérios, a chama não de teologia, mas “teologismo”:
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 240: “A
tal ‘teologismo’ oporemos sempre que a razão nunca poderá substituir a fé, nossos argumentos
não fazem desaparecer a crença, visto não alcançarem a evidência, uma vez que não é possível
reduzi-lo aos primeiros princípios claramente percebidos pela inteligência.”
316
A respeito das verdades de fé, sentencia Tomás: Tomás de Aquino. Suma Contra os
Gentios. I, VIII, 2 (48a): “ (...) fidei veritatem, quae solum videntibus divinam substantiam
potest esse notissima (...)”. (A verdade da fé, que só pode ser evidentíssima para quem
contempla a substância divina).
317
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p. 41. Porém,
a verdade teológica pode vir a se tornar uma verdade de fé. Entretanto, nunca pela palavra do
teólogo e não enquanto verdade teológica, mas pela ascendência à instância do Magistério, se
ele chegar a declarar, infalivelmente, que tal conclusão está contida na Revelação. Mas isso é
uma outra história...
natural, pois não há contradição entre elas. Com efeito, assim como a ciência
obtida pelos primeiros princípios da razão já está, implicitamente, contida neles,
assim, as primeiríssimas verdades de fé já contém todas as demais. É por isso
que podemos – nunca independentemente da Revelação – descobrir o nexo
existentes entre elas; isto porque, de alguma forma, todas as verdades de fé são
redutíveis e ligadas entre si:

Nesses princípios (os da razão), observa-se uma certa ordem pela


qual uns estão implicitamente contidos nos outros, enquanto
todos se reduzem a este como ao primeiro: ‘É impossível negar e
afirmar, simultaneamente’, como está claro no Filósofo, no livro
IV da Metafísica. Semelhantemente, todos os artigos estão
implicitamente contidos em alguma das primeiras verdades de fé,
a saber: Deus existe a sua providência vela pela salvação dos
homens (...).318

Deste modo, não substituindo a autoridade da Revelação – pois não


haverá lugar para uma demonstração apodítica que nos dispense disso - mas
como acréscimo moral a ela, aderiremos às verdades de fé, também em virtude
de vermos os seus vínculos inteligíveis:

No entanto, quem diz teologia diz intervenção da razão, em


virtude da qual o sujeito crente adere a tal verdade de fé não
apenas devido à Revelação divina, mas em virtude do vínculo
inteligível descoberto entre tal verdade de fé e tal outra verdade
de fé, ou entre tal verdade de fé tal verdade natural.319

318
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 7, C.
319
Claude Geffré. Op. Cit. p. 132. Sobre a missão da teologia, declina Penido com
brilhantismo: Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p.
40 e 41: “Primeiro, desvendar a ordem essencial, constitutiva do dado revelado, saber os nexos
que prendem os mistérios entre si, de maneira a iluminá-los uns pelos outros, o que se faz
descobrindo as raízes deste aqui naquele outro mais fundamental.” (O itálico é nosso).
Mas esta certa forma de demonstração, ou seja, tornar claros os
vínculos entre as verdades de fé, não são demonstrações senão para aqueles
crêem nos princípios da fé. Portanto, não sendo estes princípios, de forma
alguma redutíveis à razão, não podem ser aceitos, em virtude da sua evidência,
senão por aqueles crêem. Destarte, a teologia aparece como uma ciência
indefectível somente para aqueles já crêem. Aos olhos dos que não crêem, ela
estará sempre abaixo de qualquer das ciências humanas:

- Tais princípios de fé têm valor de prova aos olhos dos fiéis,


assim como os princípios naturalmente evidentes têm valor de
prova aos olhos de todos. Por isso, a teologia é também uma
ciência como foi dito no princípio desta obra.320

Mas não há razão aqui, para a teologia se fechar em si mesma, com os


seus títulos de divina ciência ou de ciência altíssima. Ao contrário, é um motivo
a mais para ela ir ao encontro das demais ciências e dos incrédulos, não
certamente demonstrando os seus princípios, mas demonstrando sim que eles
não contradizem aos princípios naturais. Só assim ela poderá encontrar lugar no
quadro das ciências humanas. Mais do que apologética – certamente também – a
teologia tem de ser aberta, dialógica. Vale a pena voltarmos a citar um texto
fundamental, onde Tomás insinua estas coisas:

Deve-se dizer que as razões aduzidas pelos Santos para provar as


coisas da fé não são demonstrativas; mas são persuasivas,
mostrando não ser impossível o que a fé propõem.321

E nesta missão quanto não nos será o útil o instrumental teórico dos
antigos, os elementos das ciências filosóficas. Um exemplo? Voltemos à uma
citação que fizemos mais acima. Quando Santo Tomás, na Suma Teológica, abre

320
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 1, 5, ad 2.
321
Idem. Ibidem
a discussão se se é razoável crer naquilo que ultrapassa o nosso entendimento,
ela não impõe aos seus leitores, nenhuma citação de autoridade teológica num
primeiro momento, nem recorre a nenhum dos títulos de glória da teologia –
ciência altíssima, sabedoria suprema - mas cita Aristóteles – ao qual todos
aceitam – e sua famosa sentença: para aprender é necessário crer: “Todo aquele
que aprende assim, é necessário que creia, para alcançar a ciência perfeita, como
diz o Filósofo: ‘para compreender é necessário crer.’”322 Só assim, com um
diálogo a partir do que todos aceitam, isto é, a partir da razão, a teologia
conseguirá conquistar o lugar que, de fato, é só seu e isto, sem perder,
evidentemente, a sua identidade, dentro do quadro epistemológico das ciências
humanas. Agora, se insistir em se confundir com os seus princípios, se se julgar
salvadora, se quiser obrigar todos à mística, se esperar, enfim, ser o que não é,
permanecerá, por certo, sendo tudo o que é, mas o será sozinha e isolada! A
teologia não salva ninguém e a pretensão de alguns de querer fazer dela uma
doutrina salvadora, longe de preservá-la, só a têm tornado mais solitária e
ignorada. No dizer de Penido, Santo Tomás quebra tabus – inclusive culturais –
quando coloca à teologia, na necessidade de “descer” ao “tribunal da razão” –
logo na primeira questão da Suma de Teologia – para mostrar que, embora acima
da razão, a teologia não está contra ela.323 Em outras palavras, em Tomás não é
322
Idem. Ibidem. II-II, 2, 3, C.
323
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teológica Dogmática. p. 207:
Eis o paradigma social da época, que migra para a construção das ciências e é, finalmente
quebrado pelo Anjo das Escolas: “A fisionomia intelectual da época corresponde à fisionomia
social: o que o servo é para seu senhor, a filosofia o é para a teologia: uma “ancilla” e uma serva
à qual não assiste o direito de trabalhar para si: uma escrava que, como a do Salmo, não pode
levantar os olhos das mãos de sua senhora (...).”Dando-nos uma teologia mais “humilde”,
embora sem deixar de ser o que ela é, Santo Tomás se coloca num ponto de vista tão
privilegiado, que fica difícil ainda dizer, com alguns, que sua teologia seja a theologia gloriae
por excelência em oposição à theologia crucis. O aspecto de diálogo, sempre possível numa
teologia como a de Santo Tomás, a torna, sem dúvida, uma teologia da glória, mas não no
sentido “feudal” deste termo e sim no seu sentido joanino, onde a “glória” começa pela
“humilhação”: Jo 8, 27: “Quanto tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que EU,
Eu sou (...)”; Jo 12, 32: “(...) e, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim.”
somente a filosofia que “deve” explicações à teologia, mas esta também deve
explicações à filosofia. Não é somente a filosofia que é aperfeiçoada pela
teologia, mas, o contrário também não deixa de ser verdade. O que Lima Vaz
estende a toda civilização medieval, parece se aplicar por antonomásia, neste
sentido, ao pensamento de Santo Tomás de Aquino:

Nessa atividade intelectual extremamente rica, é visível uma


inquieta consciência crítica, na qual a fé é sempre posta em
discussão consigo mesma pela mediação da razão. O conteúdo da
fé não é simplesmente recebido como um dado, mas desdobra-se
no espaço crítico da razão. (...) É justamente como universo da
razão interrogante que a civilização medieval é uma civilização
teológica, como o fora a civilização antiga. Repetimos: a fé cristã
não é, aqui, uma aceitação tranqüila e repousante. Dentro da fé
(como dentro do mito grego) está a razão como um princípio de
permanente interrogação.324

Não poderá, portanto, a teologia deixar de ser divina em seus


princípios, sem deixar de ser humana em seu caráter científico. Por outro lado,
não poderá se reduzir a fé pura, a não ser que aceite perder a sua cientificidade
dentro do organismo epistemológico das ciências humanas. Sintetiza, belamente,
Odilão Moura: “Para o mestre dominicano, a Teologia constitui uma ciência
essencialmente obra da razão natural, partindo dos princípios revelados por
Deus.”325

324
Lima Vaz. Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira. p. 82. Em seguida, ainda
adota o seguinte epíteto para conceituar a civilização medieval: Idem. Op. Cit. p. 83: “Podemos
defini-la como civilização da fé inquieta.” (O itálico é nosso).
325
Odilão Moura. Introdução à Suma Contra os Gentios. p. 10.
5.7) A Ordem Teológica: Deus Como Sujeito da Teologia

Dizíamos acima, que a teologia tem Deus como sujeito. Dizíamos


ainda que o teólogo, ao contrário do filósofo, parte de Deus, causa primeira. E é
verdade, não há dúvida. Contudo, é preciso logo acrescentar, que Deus é o
sujeito da doutrina sagrada, não precisamente enquanto causa primeira
filosófica, mas enquanto Deus. E Deus enquanto Deus, só o conhecemos,
positivamente, enquanto Ele se revelou. Ora, Deus se revelou em Jesus Cristo:

Nada compreenderemos da teologia de Sto. Tomás se


esquecermos que o sujeito da Sacra doutrina não é Deus
enquanto Causa última da metafísica, mas o Deus vivo que se
revelou em Jesus Cristo.326

Mas, atentemos bem, nem mesmo Jesus Cristo é o objeto formal da


teologia de Tomás. De fato, como Cristo veio revelar a Deus e nada fez por si
mesmo327, nem a sua doutrina é sua, mas daquele que o enviou328, assim, para
Tomás, Cristo não é o centro da teologia, mas sim aquele que Ele veio revelar.329
Neste sentido, Santo Tomás certamente estranharia ser acusado de não ser
cristocêntico por ser teocêntrico, quando, justamente para ele, Cristo foi
teocêntrico.330 Novamente Tomás não recua: o objeto formal da teologia é Deus

326
Claude Geffré. Op. Cit. p. 131. Jo 17, 3: “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti,
o único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo.”
327
Jo 5, 19: “Em verdade, em verdade vos digo: o Filho, por si mesmo, nada pode fazer mas só
aquilo que vê o Pai fazer (...)”. Jo 5, 30: “Por mim mesmo, nada posso fazer.” Jo 6. 38: “(...)
pois desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou.”
328
Jo 7, 16: “Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou.” Jo 3, 34: “Com efeito,
aquele Deus enviou fala as palavras de Deus (...)”.
329
Jo 17, 6: “Manifestei teu nome aos homens que do mundo me deste.”; Jo 17, 26: “Eu lhes dei
a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo (...)”.
330
Nosso Senhor não se cansa de repetir, que não veio fazer a sua vontade, nem cumprir uma
obra sua: Jo 4, 34: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua
enquanto Deus.331 Neste sentido – outros diversos podem ser buscados... –
certamente a teologia de Tomás conterá uma das cristologias mais bem
elaboradas e criteriosas do seu tempo, mas ela não será cristocêntrica porque é
teocêntrica:

Contudo, do ponto de vista do pensamento divino, Cristo é


apenas um meio. Desse modo, para escândalo de alguns, será
preciso esperar a IIIª parte da Suma para que ele surja.332

Ele mesmo reclama de alguns de seus contemporâneos que, por não


saberem observar, com a devida precisão, a distinção entre o objeto material e o
objeto formal, tomam um pelo outro. Esta confusão, em teologia, equivale a
tomar como seu objeto formal aquilo que, na verdade, é seu objeto material. Por
isso, certos teólogos se dividem, alguns colocando como objeto formal da
teologia a redenção, outros, a Igreja e outros ainda, a Cristo.333 Mas, na verdade,
todas estas coisas são objetos materiais, que devem ser abordados sim, mas
sempre à luz do objeto formal desta ciência, que é Deus enquanto Deus: “Ora, na

obra.” Jo 8, 28: “Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que Eu, Eu sou, e
nada faço por mim mesmo, mas falo como me ensinou o Pai.” E outras passagens poderiam ser
citadas em barda.
331
Faz suas, logo no princípio da Contra os Gentios, as formosíssimas palavras de Santo
Hilário: Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 2 (9): “Por isso, sirvo-me aqui das
palavras de Hilário: ‘Estou consciente de que o principal ofício de minha vida é referente a
Deus, de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (I Sobre a Trindade
37; PL 10, 48D).”
332
Claude Geffré. Op. Cit. p. 131. Marie-Josep Nicolas. Op. Cit. p. 37: “Tomás teria estranhado
ver seu ‘teocentrismo’ oposto a um cristocentrismo considerado mais cristão. Sua própria
cristologia é teocêntrica.”
333
Idem. Ibidem. I, 1, 7, C: “Alguns, no entanto, considerando as coisas de que trata esta
ciência, e não a razão sob a qual as examina, indicaram seu sujeito de modo diferente. Falam de
‘coisas’ e de ‘sinais’; ou ‘ das obras reparação’, ou do ‘Cristo total’, isto é, cabeça e membros.
Tudo isso é tratado nesta ciência, mas sempre com relação a Deus.”
doutrina sagrada, tudo é tratado sob a razão de Deus (...)334. Geffré resume muito
bem este pensamento, nas seguintes palavras.

Sto. Tomás sabe muito bem que Deus não é o único objeto da
teologia. Esta última abarca um enorme domínio: fala do mundo
criado, de Jesus de Nazaré, da Igreja, dos sacramentos, do
homem e da história... A teologia se interessa por tudo, mas,
fazendo de Deus o sujeito da teologia, Sto. Tomás quer dizer que
o ponto de vista formal pelo qual a doutrina sagrada considera
todas estas coisas, sejam elas conhecidas por revelação ou mesmo
pela razão, é a ‘razão de Deus’ (...).335

Como dizíamos, a teologia funda-se na revelação, que nos foi


consignada pela Bíblia. É claro que a Bíblia trata de muitos outros objetos
materiais, o que indica que ela têm muitos objetos materiais. Entretanto, ela trata
todos estes objetos, somente enquanto foram revelados por Deus, pois a
revelação é objeto formal da Bíblia. Logo, como a doutrina sagrada funda-se na
Bíblia, enquanto esta contém a Revelação de Deus, mesmo que ela possa ter
diversos objetos materiais, todos eles serão apresentados sob a única razão
formal da Revelação:

Assim, porque a Escritura sagrada considera certos objetos


enquanto revelados por Deus, conforme foi dito, tudo o que é
cognoscível por revelação tem em comum a única razão formal
do objeto desta ciência. Por isso mesmo tudo isso se encontra
compreendido na doutrina sagrada como em uma ciência una.336

334
Idem. Ibidem. I, 1, 7, ad 2: “Deve-se afirmar que tudo o mais que esta doutrina sagrada trata
está compreendido no próprio Deus; não como partes, espécies ou acidentes, mas como a Ele se
ordenando de algum modo.”
335
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130 e 131.
336
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 3, C. (O itálico é nosso).
Ora bem, como é o objeto formal – e não o material – que dá a
unidade a uma ciência337 e o objeto formal da fé, como da teologia, é a
Revelação de Deus que, por sua vez, versa sobre Deus enquanto Deus. Destarte,
muito embora existam um sem conta de objetos materiais da própria teologia, ela
será uma ciência una, pois só tem um objeto formal à luz do qual, desta feita,
estuda todas as outras coisas: Deus:

Deve-se dizer que a doutrina sagrada não trata de Deus e das


criaturas do mesmo modo; de Deus em primeiro lugar, e às
criaturas enquanto se referem a Deus: seja como princípio delas,
seja como fim. Portanto, a unidade da ciência sagrada não fica
prejudicada.338

5.8) Teologia e História

Deus enquanto Deus, eis o objeto da teologia. Deus conhecido a partir


do conhecimento que Ele tem de si mesmo339, eis o plano teológico. Ora, é pela
Revelação, cuja plenitude está em Cristo, que conhecemos a Deus a partir de
Deus. E a Revelação não nos dá – como já pudemos averiguar – a visão da
essência divina, ela deve ser aceita pela fé. Esta Revelação, registrada está na
Sagrada Escritura. Logo, o fundamento da teologia é a Bíblia, enquanto esta
337
Idem. Ibidem: “A unidade de uma potência , ou de um habitus, lhe vem de seu objeto; não de
seu objeto considerado em sua materialidade, mas em sua razão formal: o homem, o burro, a
pedra, por exemplo, se encontram sob a única razão formal da cor, que é o objeto da vista.”
338
Idem. Ibidem. I, 1, 3, ad 1. Idem. Ibidem. I, 1, 3, C: “A doutrina sagrada é uma ciência
‘una’.” (sacram doctrinam unam scientiam esse).
339
Não se trata, bem entendido, de dizer que conhecemos a Deus como ele se conhece, ou seja,
em sua essência, o que seria ontologismo! Antes, a teologia adota o mesmo “método” da ciência
divina, isto é, Deus que se conhece a si mesmo, em si mesmo, e todas as demais coisas,
enquanto as cria, também em si mesmo, num ato único e simples. A teologia, muito
imperfeitamente, imita este conhecimento: conhece a Deus, e as demais coisas, à luz da
Revelação de Deus, que, por sua vez, nos dá a conhecer, ainda que pelas apalpadelas da fé, a
vida íntima de Deus.
contém a Revelação de Deus, e deve ser aceita pela fé na autoridade do Deus
revelado. Entretanto, é preciso acrescentar algo, Deus, enquanto conhece a si
mesmo, não conhece apenas a si mesmo. Em outras palavras, de certo modo,
podemos falar impropriamente que há dois conhecimentos da essência divina em
Deus. Um, pelo qual Deus se conhece a si mesmo em si mesmo, outro, pelo qual
Deus conhece em si mesmo todas as coisas:

Assim, deve-se dizer que Deus vê a si mesmo, em si mesmo, pois


se vê por sua própria essência. Quanto às outras coisas, distintas
de si, porém, não as vê em si mesmas, mas em si mesmo, pois sua
essência tem em si a semelhança de tudo aquilo que é distinto
dele.340

Portanto, o objeto da teologia não é somente o que Deus revelou de si


mesmo, mas o que ele revelou a respeito das criaturas. E nem isto confunde o
objeto formal da teologia, que permanecerá sendo sempre Deus. Mas como o
próprio Deus, quando se conhece, conhece as criaturas, a teologia, enquanto
participação diminuta neste conhecimento de Deus, deve contemplar também as
criaturas, especialmente à racional, à luz de Deus. E contemplar as criaturas a
luz de Deus, é contemplá-las exatamente como criaturas, cujo princípio é Deus e
cujo fim é Deus também:

O objeto principal da doutrina sagrada está em transmitir o


conhecimento de Deus não apenas quanto ao que ele é em si
mesmo, mas também enquanto é princípio e fim das coisas,
especialmente da criatura racional (...).341

340
Idem. Ibidem. I, 14, 5, C. Idem. Suma Contra os Gentios. I, XLIX, 4 (415): “Resumindo,
pois, a conclusão deste e do capítulo anterior, vemos que Deus conhece primeira e propriamente
a si mesmo e às outras coisas; estas, porém, enquanto vistas na essência divina.”
341
Idem. Suma Teológica. I, 2.
Para cumprir este plano, Tomás adota, num primeiro momento, o
esquema neoplatônico exitus e reditus. Em suas obras clássicas de teologia,
aborda as questões na seguinte ordem: Deus em si mesmo, depois a processão
das criaturas de Deus e, finalmente, o retorno delas a Deus. Ele o faz mais
claramente, pelo viés da teodicéia, na Suma Contra os Gentios342, e a estende,
para toda a teologia, na Suma Teológica. Na Suma de Teologia, para englobar o
retorno de todas as coisas a Deus, ele privilegia a volta da criatura racional, cujo
drama de retorno ao criador se desenrola na história, e alcança o seu auge em
Cristo. Indica-nos, pois, com precisão, esta ampliação da teologia tomásica, para
o horizonte histórico mediante a cristologia, o Prof. Carlos Arthur:

Desta consideração, Tomás deriva as três partes da Suma; a


primeira aborda Deus em si mesmo e a procedência de todas as
criaturas d’Ele; a segunda, o movimento da criatura racional (os
seres humanos) para Ele; a terceira, o caminho histórico do
movimento da humanidade para Deus, isto é, o Cristo.343

Desde então é possível falar de uma transposição do esquema


neoplatônico para a teologia de Tomás, que seria a responsável pela entrada do
aspecto histórico propriamente dito, na teologia tomasiana. Eis como Claude
Geffré, descreve esta confluência entre economia e ciência-teológica:

Sem podermos nos estender aqui como conviria, afirmemos


somente que é o próprio plano da Suma Teológica que se esforça
em resolver o problema das relações entre economia e teologia.
Pe. Chenu (completado por Max Seckler) mostrou que a teologia-

342
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 7 (57): “Por conseguinte, sendo nosso intento buscar
por via da razão as verdades referentes a Deus que a razão pode investigar, apresenta-se-nos em
primeiro lugar a consideração das verdades que convém a Deus em si mesmo (Tema do 1. I);
em seguida, a processão das criaturas vindas de Deus (Tema do l. II); em terceiro lugar, a
ordenação das criaturas para Deus, enquanto nele têm seu fim (Tema do l.III).”
343
Carlos Arthur R. Nascimento. Op. Cit. p. 61.
ciência de Sto. Tomás abre-se para a história, para os fatos
contingentes, na medida em que se organiza segundo o esquema
neoplatônico da processão e do retorno: exitus e retorno.344

Desde já podemos perceber que o neoplatonismo, aqui se encontra


transfigurado, transformado mediante a sua transcrição cristão-bíblica. Esta
tradução, em termos bíblicos, da ordem neoplatônica, corresponde ao seguinte: a
saída de todas as coisas de Deus passar a ser a criação, que Tomás trata na
primeira parte (q. 44-119); o retorno das criaturas a Deus, ocupa toda a segunda
e terceira parte, e converge para o mistério de Cristo, Deus feito homem. Jean
Pierre Torrell, com magnífica clareza, nos coloca diante desta incrível “mutação”
do neoplatonismo estático345 em cristianismo histórico:

Inteiramente ordenada pelo esquema exitus-reditus (saída de e


retorno a Deus, Alfa e Ômega), a construção da Suma teológica,
em sua parte ‘econômica’, integra de maneira perfeitamente
orgânica o desenrolar histórico e existencial da obra de Deus. O
movimento de ‘saída’ corresponde ao fim da primeira Parte
(q.44-119); como a Bíblia, Tomás parte da criação no tempo; “No
início, Deus criou o céu e a Terra”. O movimento complementar
é descrito na segunda e terceira partes, não de maneira justaposta
se crítica às vezes – a parte cristológica seria apenas um apêndice
mal integrado –, mas perfeitamente unificadas sob o signo desse
‘retorno’ da criatura racional a Deus.346

Como este retorno não se dá sem a graça, que procede de Cristo, o


neoplatonismo, já todo metamorfoseado, se apresenta como uma verdadeira
soteriologia, a história mesma passa a ser história da salvação. E, como essa

344
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130.
345
Sim, porque no neoplatonismo convencional, é impensável que Uno se faça carne e irrompa
na história!
346
Jean Pierre Torrell. O Mistério da Encarnação. p. 53.
salvação não se dá sem Cristo, tal história não deixa de ser, neste sentido,
cristocêntrica. Sobre a Encarnação, diz Santo Tomás: “Isto não é de se estranhar,
porque a humanidade de Cristo é o caminho pelo qual se vai à divindade.”347
Exalta, pois, a humanidade de Cristo, como meio pelo qual e no qual somos
salvos:

Nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, para salvar seu povo de


seus pecados, segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si
mesmo o caminho da verdade, através do qual possamos chegar
pela ressurreição à bem-aventurança da vida imortal. 348

De fato, longe de terminar numa glória terrena, o retorno de todas as


coisas a Deus, só termina com a parusia do Cristo glorioso. O final da história é
trans-histórico:
O exame global termina, na conclusão da terceira parte, pelo
retorno glorioso de Cristo no fim dos tempos e pela inauguração
de novos céus e da nova terra. Entre as duas criações se situa toda
a história da salvação e suas diversas etapas.349

Feitas estas considerações preliminares, podemos concluir com Geffré:

(...) contrariamente a um preconceito tenaz derivado muito mais


da herança escolástica do tomismo do que do próprio Sto. Tomás,
sua teologia não é uma teologia a-histórica. Ela é, não somente
“aberta” à história, mas ainda o esquema de processão e do
retorno, que explica o plano da Suma, reflete a lei mais profunda
de todo ser, criado ou incriado.350

347
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, II, 2.
348
Idem. Suma Teológica. III, Prólogo.
349
Jean Pierre Torrell. Op. Cit. p. 53.
350
Claude Geffré. Op. Cit. p. 130.
Pode-se levantar ainda uma última objeção, a saber, a seguinte: sendo
o objeto formal da teologia Deus enquanto Deus e, sendo Deus, essencialmente
Trindade, a adoção do esquema neoplatônico do exitus/reditus e da perspectiva
cristíca, não seria um abandono da vida trinitária de Deus, por assumir uma
postura histórica? De todo. A história da salvação é a história da revelação da
Trindade na história. A Encarnação de Cristo, enviado pelo Pai, que se deu por
obra do Espírito Santo, é análoga à processão do Verbo, desde toda a
eternidade. De fato, a salvação de Cristo outra coisa não é, senão a inclusão dos
homens, na vida bem-aventurada de Deus. Com efeito, Cristo irrompe na
história dos homens, se fazendo homem - mas sem deixar de ser Deus - e volta
para o Pai, mas não sem levar consigo a sua própria humanidade e a humanidade
daqueles que crêem nele.351 Resume Joseph Nicolas, com exação, esta
cristianização do neoplatonismo da Suma. Minto, para Nicolas trata-se, antes, de
uma tentativa nossa a de dar uma versão neoplatônica, para uma inspiração que
sempre foi profundamente bíblico-joanina em Santo Tomás:

Como Verbo, Cristo procede do Pai na eternidade. Pela


encarnação, essa “processão” estende-se no tempo até o âmago da
criação. O homem que ele passou a ser volta ao Pai, levando-lhe
o universo. Nisso, a Suma Teológica reencontrou o grande
esquema patrístico da “Teologia” e da “Economia”, mas ligando
uma a outra por essa pedra angular que é a noção de exitus e de
reditus (separação e reunião). Sto. Tomás não teria admitido
facilmente ter utilizado a idéia neoplatônica da emanação e do
retorno. Era S. João quem o inspirava: “Vim do Pai e retorno ao
Pai”.352

351
Tomás de Aquino. Compêndio de Teologia. I, 1: “O Verbo Eterno do Pai, que pela sua
imensidade abrange todas as coisas, para revocar à elevação da glória divina o homem
diminuído pelo pecado, quis fazer-se limitado, assumindo a nossa limitação, não renunciando,
porém, à sua majestade.”
352
Marie Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. p. 37.
O evento Cristo se apresenta assim, como uma ponte entre a história
humana e a eternidade divina. Longe de ser uma dissolução da vida da Trindade
na economia dos homens, a manifestação de Cristo é, ao contrário, a elevação
dos homens à vida íntima de Deus. Dentre os frutos da Encarnação para nós
homens, diz Frei Tomás:

Quanto à participação plena na divindade, que é a verdadeira


bem-aventurança do homem e o fim da vida humana. E isso nos
foi trazido pela humanidade de Cristo: com efeito, diz Agostinho
em outro sermão sobre a Natividade do Senhor: “Deus se fez
homem para que o homem fosse feito Deus.”353

Neste esquema, seja ele um neoplatonismo cristianizado como querem


alguns, seja ele simplesmente bíblico como argumentam outros, toda história
torna-se história da salvação. E, como a salvação é o ingresso do homem, por
meio da humanidade de Cristo, na vida trinitária de Deus, toda a história torna-
se, num só tempo, inseparavelmente trinitária e cristíca. E nem é que a história
começa a ser salvifica em Cristo, ela é salvifica desde a criação, já que o seu feliz
trânsito – o retorno das criaturas a Deus – não poderá se dar sem a redenção
obtida por Cristo. E é toda esta imagem, a um só tempo, repetimos, trinitária,
histórica, salvifica e cristíca, que a Suma persegue, morrendo o seu autor antes
de concluí-la, talvez porque o seu próprio desfecho histórico ainda não tenha se
dado... Geffré, neste sentido, afirma que a Suma é soterológica e trinitária do
começo ao fim:

O que significa que a história da salvação, que começa com a


criação (e que portanto já está presente na Primeira e na Segunda
Partes da Suma) é uma imagem e uma imitação da história
original que constitui a vida trinitária do próprio Deus.

353
Idem. Suma Teológica. III, 1 2, C. (O itálico é nosso)
Safa-se nesta ordem também, a teologia como ciência. De fato, toda
ciência se pauta em conhecimentos certos e necessários. Ora bem, como falar de
conhecimentos certos e necessários, quando estamos diante de acontecimentos
tão contingentes, como os são os da história? Entretanto, vimos como as
criaturas – sobretudo a racional – que é a protagonista da história, é criatura, ou
seja, é criada por Deus e, enquanto idéia, subsiste na una e imutável essência
divina. Sem podermos nos delongar no tema da Providência, apenas
apontaremos para algumas notas. Deus governa a história, esta não lhe escapa;
ele a rege. Os ditames dos seus designos eternos, estão, antes de tudo,
intrinsecamente na própria natureza das coisas. Concedeu, pois, a elas, o bem,
não somente quanto à sua substância, mas também quanto ao seu fim: “Nas
coisas encontra-se o bem, não só com respeito à substância delas, mas também
com respeito à ordenação para o fim (...).”354 E elas agem, conforme são.
Vimos ainda que a própria trama da história, isto é, as intervenções de
Deus nela, apenas reproduzem e, de certa maneira, imitam, o desenrolar da
própria vida íntima do Deus trino. Deus cumpre na história, o que lhe aprouve
desde toda eternidade. Por isso, a história, não obstante a sua contingência
inegável, não está abandonada a um acaso deístico, mas é regida pela
Providência. E há mais. Segundo o esquema que acabamos de propor mais
acima, a história caminha rumo ao eterno, ao trans-histórico. É isto, pois, que
torna possível, uma ciência teológica e histórica ao mesmo tempo, partindo do
pressuposto que esta teologia saberá abstrair e distinguir, na história, os traços
de uma salvação que se opera e que se desata no plano histórico, mas cujo fim
será trans-histórico. Como a direção da história está em Deus como em seu
princípio, e se concluirá também nele, como em seu fim, a inteligibilidade desta
mesma história ficará indecifrável e incompreensível se não nos remetermos ao
eterno. À resenha de Claude Geffré, na sua abordagem sobre o discurso da Suma
Teológica, só nos resta ceder à palavra:

354
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 22, 1, C:
A construção rigorosa de que são testemunho todas as partes da
Suma tem por objetivo mostrar como as intervenções livres e
históricas de Deus não estão em contradição com suas
propriedades mais necessárias, e como somente um além da
história, o mistério eterno de Deus, nos pode propiciar a
inteligibilidade da história.355

A teologia de Tomás, portanto, mesmo quando se volta para os fatos


históricos da salvação, que nada mais são que estações, só os procura entender à
luz da derradeira da eternidade, da onde nasceram e para onde tendem: “O que
significa que a teologia, como a fé, só se interessa pelos acontecimentos da
história da salvação em sua ordenação ao eterno.”356 Mesmo os atos do homem-
Deus, Cristo, só a interessam e são para ela relevantes, enquanto passos para o
seu retorno ao Pai: “De modo claro, isto quer dizer que o teólogo da Glória só se
interessa por Jesus Cristo em sua ordenação para o Pai.”357 A teologia, portanto,
como a fé, aspira à visão da glória. Tudo ela refere à glória, que consiste na
visão de Deus face-a-face. Enquanto está sempre inclinada para a glória, pode-se
dizer – aí sim com acerto – que ela é uma teologia da glória: “O fim último
dessa doutrina (a doctrina sacra) é a contemplação da Verdade primeira na
pátria.”358

5.9) Exegese e História

A exegese bíblica é uma designação moderna e que indica a ciência


teológica que estuda o sentido do texto sagrado. O teólogo que se envereda por
este caminho, modernamente é chamado de exegeta. Se nos é permitido o
anacronismo, Tomás de Aquino foi um grande exegeta, porque sempre deu
355
Idem. Op. cit. p. 130.
356
Idem. Op. Cit. p. 132.
357
Idem. Op. Cit.
358
Tomás de Aquino. 1 Sent. prol. 1, 3, ad 1. In. CLAUDE, Geffré. A Teologia como Ciência.
Trad. Henrique Lima Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 133.
considerável importância para o estudo do sentido do texto bíblico. Mesmo com
todas as inegáveis limitações do seu tempo, Santo Tomás prestou relevantes
serviços à exegese. Mas qual a importância da ciência da interpretação do texto
em Tomás? Antes de tudo, deve-se dizer que, para Santo Tomás, o conhecimento
de Deus recebido por Revelação, não nos é foi dado para ser visto por
demonstração, mas ouvido por pregação. De fato, a Revelação de Deus deve,
pois, ser crida. E, só pode ser objeto de fé, o que foi proferido por palavras.
Logo, a Palavra de Deus nos foi dada, para ser proferida em palavras humanas,
ser pregada:

(...) O segundo, enquanto a verdade divina que excede o intelecto


humano, desce até nós pela revelação, não para ser vista como
por demonstração, mas para ser crida como pronunciada por
palavras (...).359

Daí a suma importância de se descobrir, na Bíblia, o que é palavra de


Deus, o que procede formalmente da revelação divina. Mas não é só da parte do
pregador que se encontra a necessidade de entender o sentido do texto bíblico.
Além do ato de fé interior, o novel cristão deve, para que tal ato seja salvífico,
exteriorizá-lo, isto é, proferi-lo em palavras: “Para ter como conseqüência a
salvação, não é somente necessário crer na verdade das coisas da fé, mas também

359
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. IV, I, 5 (3343b): “Secunda es prout divina
veritas, intellectum humanum excendens, per modum revelationis, sed quasi sermone (sermão,
discurso) prolata (proferir) ad credentum (para ser crida).” (Os itálicos e os parênteses são
nossos). Não é a troco de nada que Tomás pertencia à Ordem os Frades Pregadores! Mais
abaixo, ele retorna o tema da necessidade da pregação, e chega a citar São Paulo: “Como
também o diz o Apóstolo: Conhecemos, agora, em parte (I Co, 3, 9). O que, após, acrescenta: E
se apenas ouvimos uma pequena gota das suas palavras, refere-se ao segundo conhecimento,
enquanto as coisas divinas nos são reveladas para serem criadas como por meio de palavras.
Pois diz o Apóstolo: A fé vem do ouvido, e o que é ouvido, da palavra de Deus (Rm 10, 17).”
confessá-las, vocalizando-as nominalmente.”360 Qual não será então, para que a
profissão de fé do fiel caia sob o que é de fé, a necessidade de se descobrir o que
é, de fato e de direito, objeto de fé divina nas Sagradas Escrituras?
Agora bem, que as Sagradas Letras é o lugar onde encontramos, por
escrito, as palavras proferidas por Deus, já o sabemos. Ela é, como também
fartamente temos repetido, o fundamento da Teologia que, como vimos, se funda
na Revelação. Ora bem, como já insinuamos acima, a Bíblia não contém somente
a Revelação divina. Esta é, de fato, o seu objeto formal. Mas nela há também
diversos objetos alheios, oriundos da cultura, do próprio estilo literário de cada
tempo, etc. E, no entanto, é exatamente nestas peças todas que se encontra, como
que incrustada, a palavra de Deus. Como distinguir então, na Bíblia, a Revelação
de Deus? Onde se encontra a Palavra de Deus, infalivelmente transmitida pela
Bíblia, sob os auspícios daqueles homens inspirados? Como destrinchar e
discriminar onde se acha aquilo que é de autoria de Deus nas Sagradas Letras?
Eis a missão peremptória e por antonomásia do Magistério da Igreja, pois aqui
só ele pode dar a última palavra. Entretanto, tal atividade também pode ser
exercida pelo teólogo que perscruta as Sagradas Letras. E é no decurso desta
atividade, justamente, que entra em relevância o aspecto histórico, pois o
absoluto Deus se dignou revelar-se aos homens na história. É, pois, procurando
então o sentido literal da Bíblia que, diga-se de passagem, para Santo Tomás,
coincide com o seu sentido histórico, que encontraremos o seu objeto formal,
isto é, o dado revelado inteiramente isento de falsidade. Todos os demais
sentidos da Escritura se baseiam nele e dele não podem prescindir.
Diferentemente das demais ciências, onde o significado último termina
nas coisas, nas Escrituras – cujo autor, já temos visto, é Deus – as palavras
significam coisas que, por sua vez, significam também algo: “(...) hoc habet
proprium ista sciencia, quod ipsae res significatae per voces, etiam significant

360
Idem. I Sent. 22, I. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de Teologia
Filosófica. Trad. José Maria de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 266. “(...) ad
salutem consequendam non solum est necessaria fides de veritatis rerum, se d etiam vocalis
confessio per nomina." .
aliquid (...)”361. A Bíblia ultrapassa a Bíblia. A primeira significação, ou seja,
aquela pela qual as coisas são designadas pela palavra, indicam o sentido literal
ou histórico do texto: “Illa ergo prima significatio, qua voces significam res
pertinent ad primum sensum, qui est sensus historicus vel litteralis.”362 À este
primeiro sentido, no entanto, no qual as palavras significam as coisas, sucede
outro – que chamamos espiritual – na qual as coisas mesmas significam algo.
Entretanto, este sentido espiritual está fundado, pois, no literal e o supõe:

A significação pela qual as coisas significadas pelas palavras


designam ainda outras coisas é o chamado sentido espiritual, que
está fundado no sentido literal e o pressupõe.363

O sentido espiritual, por sua vez, se subdivide, segundo Santo Tomás,


em três sentidos diferentes. Primeiro temos o alegórico, que acontece quando, o
sentido literal está em alguma lei antiga e esta se refira, por seu lado, a alguma
realidade da lei nova: “Secundum ergo quod ea quae sunt veteris legis,
significant ea sunt novae legis, est sensus allegoricus (...)”364. Temos ainda o
sentido moral. Ele se dá quando, o sentido literal signifique as coisas feitas no
Cristo ou nos remetam as coisas que Cristo signifique, indicando, desta sorte,
como devemos agir: “secundum vero quod ea quae in Christo sunt facta, vel in
his quae Christum significant, sunt signa eorum quae nos agere (...)”365. Por fim,
quando as coisas indicadas pelas palavras signifiquem, desta feita, alguma

361
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 10, C: “Assim, em todas as ciências as palavras são
portadoras de significação, mas a Escritura Sagrada tem como próprio que as mesmas coisas
significadas pelas palavras significam algo por sua vez.” (Os itálicos são nossos).
362
Idem. Ibidem: “A primeira significação, segundo a qual as palavras designam certas coisas,
corresponde ao primeiro sentido, que é o sentido histórico ou literal.” (Os itálicos são nossos).
363
Idem. Ibidem.
364
Idem. Ibidem: “Por conseguinte, quando as realidades da lei antiga significam as da lei nova,
tem o sentido alegórico (...)”.(Os itálicos são nossos).
365
Idem. Ibidem: (...) quando as coisas realizadas no Cristo, ou aquilo que Cristo representa, são
o sinal do que devemos fazer, temos o sentido moral (...)”. (Os itálicos são nossos).
realidade relativa à glória futura, temos o sentido anagógico: “prout vero
significant ea quae sunt in aeterna gloria, é sensus anagogicus.”366
Santo Tomás insiste, no entanto, que é no sentido literal que se
encontra o verdadeiro sentido que o autor do texto intenta dar a ele. Ora, o autor
da Sagrada Escritura é Deus: “Quia vero sensus literalis est, quem auctor
intendit: auctor autem sacrae Scripturae Deus est (...)”367. Fica, pois, patente que
é no sentido literal, antes de tudo, que devemos buscar a Palavra de Deus, na
qual nunca poderá subsistir falsidade: “In quo patet quod patet sensui litterali
sacrae Scripturae nunquam potest subesse falsum.”368 Daí que, somente partindo
do sentido literal é que se pode argumentar em teologia, já que a teologia se
funda na fé e a fé, por sua vez, no que foi revelado por Deus e o que foi revelado
por Deus, encontra-se, afinal, no significado histórico-literal:

Também não existe confusão na Escritura, porque todos os


sentidos estão fundados no literal, e só a partir dele se pode
argumentar, e nunca dos sentidos alegóricos (...).369

Agora bem, se só o sentido literal nos coloca em contato com o que foi
querido imediatamente por Deus, como fazer para chegar a ele se, na própria
Escritura, há muitas passagens espirituais (alegórica, moral e anagógica) cujo
sentido literal fica obscurecido? Isso não comprometeria ou dificultaria o nosso
juízo a respeito do que é de fé? Afirma Santo Tomás que não! Argumenta que
tudo o que é de fé divina, deve encontrar-se em algum lugar da Escritura
Sagrada, no seu sentido literal:

366
Idem. Ibidem: “(...) enfim, quando estas mesmas coisas significam o que existe na glória
eterna, temos o sentido anagógico.” (Os itálicos são nossos).
367
Idem. Ibidem: “Como, por outro lado, o sentido literal é aquele que o autor quer significar, e
o autor da Escritura Sagrada é Deus (...)”.
368
Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad 3: “Isto deixa bem claro que, no sentido literal da Escritura, nunca
pode haver falsidade.”
369
Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad.1. (O itálico é nosso).
Nada, no entanto, se perderá da Escritura Sagrada, porque nada
do que é necessário à fé está contido no sentido espiritual que a
Sagrada Escritura não o refira explicitamente em alguma parte,
em sentido literal.370

Não se trata aqui de negligenciar ou prescindir dos sentidos


espirituais, mas sim de não desprendê-los do seu sentido literal. De fato, se
dando o primado ao sentido literal, Santo Tomás afasta-se decididamente de um
espiritualismo exacerbado, por outro, tal primazia poderia dar margem e suscitar
ocasião propícia, para acusações futuras com relação a um possível desvio
materialista, antropomorfista ou historicista do Mestre de Aquino. Em outras
palavras, se o sentido literal é o mais fundamental, mas a fé é uma realidade
eminentemente espiritual, como pode ainda haver concordância? Afasta o
Aquinate, no entanto, pois, todas estas possíveis acusações, quando trata das
metáforas371 nas Escrituras. Neste artigo, justifica, de certo modo, porque

370
Idem. Ibidem.
371
Desde já advertimos que nem todo sentido literal é metafórico, no sentido de que o fato
narrado por ele seja uma simples metáfora. Tratamos aqui do problema do sentido literal-
metafórico, porque foi esta questão que prendeu a atenção de Tomás. Entretanto, isto não
equivale a dizer, de maneira alguma, que o sentido literal se reduza somente ao metafórico! Por
exemplo, quando as Escrituras narram os milagres de Cristo, tais milagres devem ser
entendidos de forma literal-histórica. No entanto, observemos bem, isto não significa que
devamos ver neste texto apenas a história de um milagre, mas antes que, de certa forma,
ultrapassando o sentido literal-histórico, consigamos ver nele um sinal da divindade de Cristo
ou algum outro sentido espiritual. Cunhamos então, para melhor explicar este interregno, uma
tríplice distinção. Primeiro, observamos que existe um sentido literal-metafórico, que narra a
história de forma metafórica. Segundo, há um sentido literal-histórico que, além de ser
histórico por ser literal, narra de forma histórica um fato histórico. O próprio Santo Tomás
alude a este aspecto, quando fala que o sentido literal pode ser histórico, também quanto ao
modo com que narra: Idem. Ibidem. I, 1, 10, ad 2: “Existe história (no sentido literal), explica
Agostinho, quando algo é exposto por si mesmo.” (O parêntese é nosso). No entanto, mesmo
quando não há metáfora no sentido literal, este precisa ser completado pelo sentido espiritual.
Por exemplo, quem pára no milagre de Cristo, vê em Cristo um simples “taumaturgo”. Quem,
ao contrário, sem negar o milagre, o interpreta comum um sinal, vê nele uma manifestação da
privilegia o sentido literal, qual seja, aquele que significa as coisas significadas
pelas palavras. Não o faz, no sentido de esgotar o divino nas coisas corporais
sugeridas, nem tampouco com a intenção de olvidar as realidades espirituais,
sinais das coisas significadas pelas palavras, e sim porque acredita que convinha
que Deus nos falasse por meio de imagens sensíveis, visto que estas comportam o
modo pelo qual naturalmente nos elevamos às coisas espirituais. Não tem a
intenção, portanto, Santo Tomás, de parar no literal, mas de, começando por ele
– como se começa todos os nossos conhecimentos pelos sentidos – elevar-se ao
espiritual. Como o conhecimento sensível fornece a matéria para o inteligível,
assim a metáfora, que se encontra na coisa significada pela palavra, constitui a
gênese de toda interpretação espiritual legítima:

Convém à Sagrada Escritura nos transmitir as coisas divinas e


espirituais, mediante imagens corporais. Deus provê a todos os
seres de acordo com a natureza de cada um. Ora, é natural ao
homem elevar-se ao inteligível pelo sensível, porque todo o nosso
conhecimento se origina a partir dos sentidos. É, então,
conveniente que na Escritura Sagrada as realidades espirituais
sejam transmitidas por meio de metáforas corporais.372

divindade de Cristo ou algum outro sentido espiritual. A terceira e última distinção que damos
ao sentido literal, é o de literal-espiritual. Com efeito, em algumas passagens da Escritura,
estes dois sentidos se encontram tão presos um ao outro, que é impossível sequer distingui-los
nitidamente. Como, por exemplo, quando se afirma positivamente a divindade de Cristo. No
entanto, ainda aqui isto não significa que, em nenhum destes casos, se possa prescindir de um
conhecimento espiritual mais profundo. Por exemplo, a própria divindade de Cristo. De fato, ela
também pode ser entendida de forma humana, basta que a concebamos, por exemplo, como os
gregos entendiam os seus deuses! Por isso, há que sempre conjugar o sentido literal com o
espiritual. Após termos forjado estas distinções, tão-somente para evitar mal-entendidos,
voltemos ao assunto que nos cerca. De fato, não pretendemos escrever um tratado sobre o
sentido literal ou de exegese, mas apenas destacar a importância da linguagem e da história
para na teologia do aquinatense.
372
Idem. Ibidem. I, 1, 9, C.
Ousaríamos dizer que não existe separação, mas apenas distinção,
entre o sentido literal e o espiritual. Atrevemos ainda a dizer que, o sentido
literal, na acepção profunda deste termo, entendido como o significado que
realmente Deus quis dizer, é o sentido espiritual, pressuposto e fundado no
sentido literal. Desta forma, o sentido espiritual se reduz ao literal: “cum omnes
sensus fundentur super unum, scilicet litteralem.”373 Não há, portanto, verdadeiro
sentido literal, enquanto não se ultrapassa a metáfora ou os demais recursos
literários utilizados no período. E, tampouco, há verdadeiro sentido espiritual,
quando se prescinde da metáfora ou da narrativa contidos na literalidade.
Na verdade, todo sentido literal, por mais enxuto que seja, deixará
sempre margem para que alguém o interprete de forma “antropomórfica”. Por
conseguinte, será sempre necessário elevar-se, partindo dele, para um sentido
espiritual. O contrário também é verdadeiro, ou seja, toda interpretação
espiritual, que escapasse à base literal, não traria nenhum sentido espiritual, mas
apenas quimeras, fantasias! E, como o sentido literal é o histórico, não
encontramos o verdadeiro sentido histórico, se não no sentido espiritual e, vice-
versa, não atingiremos o autêntico sentido espiritual, se não nos apoiarmos no
sentido histórico. Assim, a divergência entre espiritual e histórico é também aqui
superada.
Por que revestir o sentido literal de metáforas? Já respondemos,
quando argumentamos que costumamos nos elevar mais facilmente às coisas
inteligíveis pelas sensíveis. Assim, sobretudo os mais simples, foram
beneficiados, pois estes não conseguiriam elevar-se ao espiritual sem o auxílio
das coisas sensíveis.374 Além disso, a obscuridade de certas passagem literais, se
prestam a inúmeros outros serviços: seja estimulando os estudiosos à pesquisa,

373
Idem. Ibidem. I, 1, 10, C.
374
Idem. Ibidem: “(...) é-lhe conveniente apresentar as realidades espirituais mediante imagens
corporais, a fim de que, as pessoas simples as compreendam; elas que não estão aptas a
apreender por si mesmas as realidades inteligíveis.” (O itálico é nosso).
seja preservando-se das zombeteiras dos infiéis, que querem conhecer as coisas
sagradas apenas para aviltá-las.375
Santo Tomás ainda apresenta uma última razão, muito sugestiva e
esclarecedora pela qual Deus nos fala por metáforas. As metáforas são usadas
adequadamente, porque expressam melhor uma verdade basilar, tanto em
teodicéia quanto em teologia: o que conhecemos de Deus nesta vida, diz
respeito, antes de qualquer coisa, mais ao que Ele não é do que ao que Ele é:
“(...) esta maneira de agir se encontra em maior conformidade com o
conhecimento que alcançamos de Deus nesta vida, porque de Deus abemos mais
o que ele não é do que o que ele é.”376 Para nos educar nesta verdade, Deus se
valeu, por vezes, das coisas mais vis para se revelar a nós. De fato, optou por
revelar-se pelas coisas menos dignas, porque se se revelasse pelas mais dignas,
poderíamos ser induzidos ao erro de pensar que tais coisas, exatamente por
serem mais dignas, se refeririam a ele de forma mais própria, a ponto de nos
dizer, de forma unívoca, o que Ele é.377 Para nos ensinar que isto não é possível,
e nos livrar de tal presunção, Deus se revelou por meio daquelas criaturas que
são menos semelhantes a ele: “Assim, as semelhanças mais distantes de Deus nos
levam a melhor compreender que Ele está acima de tudo o que podemos dizer ou

375
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 2: “Além do mais, a obscuridade das próprias imagens é útil, seja
para exercitar os estudiosos, seja para evitar as zombarias dos infiéis, a respeito dos quais diz o
Evangelho de Mateus: ‘Não deis aos cães o que é sagrado’.” Idem. I Sent. d.4, q. 3, a. 1. In:
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Trad.
Dinarte Duarte Passos. Rev. Maurílio Teixeira Leite Penido. Rio de Janeiro: Vozes, 1946. p.
108: “(...) a divina eminência é manifesta mais expressivamente pelas realidades que com maior
evidência lhe repugnam. Convinha, pois, designar o divino pelo corpóreo.”
376
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 9, ad 3.
377
Idem. Ibidem: “Deve-se dizer que Dionísio explica por que nas Escrituras é preferível que as
coisas divinas sejam apresentadas sob a figura dos corpos vis, e não dos mais nobres. Dá três
razões para isso. Em primeiro lugar, desse modo afasta-se mais o espírito humano do erro. Fica
claro que estas coisas, não se aplicam com propriedade às coisas divinas: o que poderia
provocar dúvidas se estas fossem apresentadas sob a figura dos corpos mais nobres, sobretudo
para os seres humanos que nada imaginam de mais do que o mundo corporal.” (O itálico é
nosso).
pensar a seu respeito.”378 É por isso que, por mais explicito e perfeito que fosse o
sentido literal379, ele nunca deixaria de ser metafórico ou, no máximo, analogia
imprópria. Sempre reclamaria, portanto, um sentido espiritual que o
aperfeiçoasse ou um procedimento analógico que, purificando-o das
imperfeições próprias das criaturas, descobrisse nele, precisamente, o sentido
analógico que pudesse ser aplicado a Deus de forma menos imperfeita. Em
outras palavras, o sentido literal jamais pode ser desvinculado do espiritual,
como se dispensasse dele. Citando Dionísio, Santo Tomás chega a dizer que, o
próprio sentido literal, evoca, de certa forma, o espiritual. Ele mesmo nos leva a
ultrapassá-lo, desvencilhando-nos das suas limitações. Faz parte do dom da
Revelação, acatada pela fé, nos levar à reta compreensão do que ela nos diz.
Aliás, a própria dinâmica que envolve o ato de fé, reclama os dons de
inteligência e ciência, pelos quais adquirimos um entendimento correto do que é
o dado revelado:

Deve-se dizer que o fulgor da divina revelação, nos diz Dionísio,


não é supresso pelas figuras sensíveis que o velam; ele
permanece em sua verdade, de modo a impedir que mentes às
quais é feita a revelação se limitem às imagens; ele as eleva até o
conhecimento das coisas inteligíveis, e, por seu intermédio, os
outros são igualmente instruídos.380

Por todas estas razões que já enumeramos acima, as metáforas


encontradas nos livros sagrados, não estão ali por acaso, nem tem finalidade
“poética”, dirá Santo Tomás. Elas se encontram ali para atender finalidades
muito precisas: ora para incitar os estudiosos à pesquisa, ora para impedir que os
orgulhosos zombem das verdades de fé, ora, ainda, para que os mais simples

378
Idem. Ibidem.
379
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 2: “Eis por que o que é apresentado em determinado lugar da
Escritura sob metáforas é exposto mais explicitamente em outros lugares.”
380
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
entendam mais facilmente o conteúdo da fé, ora, enfim, para nos dizer que Deus
está muito acima de todas as nossas fórmulas:

(...) deve-se dizer que o poeta se vale de metáforas para sugerir


uma representação, o que é agradável naturalmente ao homem.
Quanto à doutrina sagrada, ela se vale de metáfora por
necessidade e utilidade, como foi dito.381

Podemos falar inclusive, de uma pedagogia da Revelação. Tomás


chega a comparar a relação entre Deus e o fiel, com a de um mestre a ensinar o
seu discípulo: “(...) é preciso que o homem, antes, creia em Deus, como o
discípulo que crê no mestre que ensina.”382 Não sem certa ternura nos termos,
Penido reafirma o valor da analogia metafórica e seu lugar na pedagogia divina:

(...) qual avó carinhosa balbucia com seus netinhos, e com eles
soletra as primeiras letras, a Bíblia ornamentou o altíssimo com a
longa série de nossas pseudo-perfeições, e teceu, em torno do
Onipotente, o véu multicor das Metáforas.383

381
Idem. Ibidem. I, 1, 9, ad 1. (O itálico é nosso).
382
Idem. Ibidem. II-II, 2, 3, C.
383
Maurílio Teixeira Leite Penido. A Função da Analogia em Teologia Dogmática. p. 102 e
103. Para Tomás, arrisco dizer, Deus é o mais brando e o primeiro dos professores. É o
professor por excelência e a sua cândida pedagogia, nos faz pensar naqueles que querem impor
as verdades religiosas “goelas abaixo”... Naqueles que apresentam a sua teologia,
“transfigurando-a” em “sexo dos anjos”... Outra vez a sugestiva figura: Idem. Ibidem. p. 107:
“(...) deduzirei que ação da Providência tem algo do instinto materno.” Revelam-nos que a
verdadeira grandeza não está no “falar difícil”, mas em falar, de forma simples (não simplista!),
coisas “complicadíssimas.” Tomem cuidado, já dizia alguém (Pieper), pois o selo de todo
filósofo – e, acrescentaria, mais ainda do teólogo – é a simplicidade. A grandeza não está na
pressão, mas na persuasão paciente: Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, IX, 4 (56):
“(...) ut a manifestioribus ad minus manifesta (...)” (Partindo das coisas mais claras para as
menos claras). E ainda: Idem. Ibidem. IV, I, 1 (3337): “(...) também o homem, partindo das
coisas inferiores e subindo gradativamente, deve progredir no conhecimento de Deus (...)”. Não
Conclusão

A grande novidade do pensamento de Tomás foi, portanto, dando um


caráter científico à doutrina sagrada, a distinguir, nitidamente, das disciplinas
filosóficas, inclusive da teologia natural, da fé pura e da própria mística. E, desta
sorte, consolidar, efetivamente, a distinção entre fé e razão. E ele conseguiu
fazer, não para dividi-las ou contrapô-las - como fariam os modernos, rompendo
assim a unidade do saber - mas para uni-las:

Descartes não divergiu de São Tomás de Aquino, pois tal como


ele não suprimiu a teologia – preservou-a cuidadosamente; nem
divergiu quanto à distinção formal entre filosofia e teologia – São
Tomás de Aquino já o tinha feito antes dele, há muitos séculos. O
que era novo em Descartes era a separação real e prática entre a
sabedoria filosófica e a sabedoria teológica. Onde São Tomás de
Aquino distinguia com o objectivo de unir, Descartes dividia com
o objectivo de separar.384

E é desta mútua-colaboração que iremos falar, mais detidamente, no


próximo capítulo.

cuide ninguém pensar, que estamos assinalando que o homem deve parar num antropomorfismo
“ingênuo” ou que se satisfaça com a analogia metafórica. O que afirmamos é que o homem,
em virtude da sua própria natureza, deve partir das coisas inferiores às superiores, do
imperfeito para o perfeito e isto, gradativamente: “(...) também o homem, partindo das coisas
inferiores e subindo gradativamente (gradatim), deve progredir no conhecimento de Deus (...)”.
(O parêntese é nosso).
384
Étienne Gilson. Deus e a Filosofia. p. 62. (O itálico é nosso).
6) Século XIII: 2º Movimento: A
União Entre Filosofia e Teologia

Dizíamos em capítulo anterior, que há duas teologias formalmente


distintas. Acrescentemos agora que, embora distintas, não divergem quanto ao
fim último que buscam cada uma ao seu modo: Deus. Com efeito, a teologia
revelada o busca a partir do dogma, a natural, por sua vez, por meio de uma
elaboração fundada na razão. Podem elas concordar e se complementar, já que
versam sobre o mesmo objeto:

Há, pois, duas teologias especificamente distintas que, se, a rigor,


não se continuam para nossos espíritos finitos, podem pelo menos
acordar-se e complementar-se: a teologia revelada, que parte do
dogma, e a teologia natural que a razão elabora.385

Ora bem, apesar de autônomas, tais ciências – filosofia e teologia –


são harmônicas e tal harmonia não pode ser desconsiderada. De fato, uma
salutar concordância as une e unifica de forma necessária, pois enquanto
ciências, ambas buscam a verdade. E a verdade não pode contradizer a verdade:
“Ora, o acordo da verdade com a verdade é necessário.”386 Com efeito, nem a
razão, quando usada retamente, nem a revelação, pois tem a sua origem na
autoridade infalível de Deus, podem nos induzir à erro: “Nem a razão, quando
fazemos um uso correto dela, nem a revelação, pois ele tem Deus por origem,
seriam capazes de nos enganar.”387 A falarmos com exação, devemos dizer que

385
Idem. A Filosofia na Idade Média. p. 657. (O itálico é nosso).
386
Idem. Ibidem. p. 656.
387
Idem. Ibidem.
ambas procedem de Deus, pois tanto a fé como a natureza racional são obras da
sabedoria divina e, ipso facto, não podem entrar em desacordo:

Ora, o conhecimento dos princípios naturalmente evidentes é


infundido em nós por Deus, pois Deus é o autor da natureza. Por
conseguinte, esses princípios estão também contidos na sabedoria
divina. Assim também, tudo o que é contrário a eles contraria a
sabedoria divina e não pode estar em Deus. Logo, as verdades
recebidas por revelação divina não podem ser contrárias ao
conhecimento natural.388

No entanto, poderia contrapor alguém: não estão os filósofos sempre


em desacordo uns com os outros e sujeitos a outros tantos erros, de sorte que a
história da filosofia não se cansa de nos relatar e atestar isso? Não estão mesmo
os mais eminentes sistemas, acometidos de gravíssimos erros, inclusive contra a
fé? Sem dúvida, responde Santo Tomás. Entretanto, os erros dos filósofos, não
são erros da razão ou da filosofia enquanto tais, mas da maneira inadequada com
que estes mesmos filósofos se valeram dos recursos da razão e da filosofia:

(...) Se se encontra, portanto, alguma coisa contrária à fé nas


afirmações dos filósofos, não se deve atribuir isso à filosofia, mas
a um mau uso da filosofia devido a alguma falha da razão.389

Dado o acordo precípuo entre as duas ordens é preciso ainda


acrescentar que, da nítida distinção que existe entre elas não se segue uma
exigência de separação. Importa dizer que as duas ciências podem, e até devem,
caminhar juntas. Na verdade, ambas, filosofia e teologia – conforme vimos -
dimanam da primeira verdade e da única e simplíssima sabedoria divina, que é

388
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, VII, 3 (44). (O itálico é nosso).
389
Idem. Comentário ao Tratado de Trindade de Boécio. I, 7. in: MONDIN, Battista. Curso
de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente Vol 1. trad. Benôni Lemos. rev. João Bosco de Lavor
Medeiros. São Paulo: Paulus, 1982. p. 172.
Deus mesmo. Santo Tomás, já no primeiro capítulo da Suma Contra os Gentios,
fala dessa primeira verdade, que é a fonte de toda e qualquer verdade e que será
o objeto de estudo de toda a obra: “Não porém de qualquer verdade, mas daquela
verdade que é origem de toda verdade, isto é, a que pertence ao primeiro
princípio do ser e de todas as coisas.”390 Logo, neste sentido, filosofia e teologia
se reduzem e formam uma única sabedoria ou verdade total. Não obstante, é
necessário ponderar que, para os nossos espíritos finitos, tal acordo não é
perceptível, senão parcialmente. A respeito disso, assevera Gilson com exatidão:

É certo, pois, que a verdade da filosofia se uniria à verdade da


revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e
inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender plenamente
os dados da fé. (...) Daí resulta, ademais, que a impossibilidade
em que nos encontramos de tratar filosofia e teologia por um
método único não nos proíbe considerá-las como constituindo,
idealmente, uma só verdade total.391

No entanto, mesmo quanto a nós – o quanto nos seja possível – resta-


nos o esforço de perceber esta unidade original. Gilson se refere a isso com as
seguintes palavras: “Muito pelo contrário, temos o dever de levar o mais longe
possível a interpretação racional dos dados da fé, de remontar pela razão até a
revelação e tornar a descer da revelação à razão.”392 Daí decorre, exatamente, o
nosso dever de demonstrar que as verdades de fé não podem estar em conflito
390
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, I, 3 (5).
391
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 656. (O itálico é nosso). Frei Tomás,
fazendo referência explicita a esta lição, ensina que, uma dupla verdade a respeito das coisas
divinas, existe com relação a nós, que chegamos a elas através de métodos diversos, mas não
nela mesma; em si mesma, na sua origem – Deus mesmo – ela é simplicíssima: Tomás de
Aquino. Suma Contra os Gentios. I, IX, 1 (51): “Quando, porém, refiro-me à dupla verdade
das coisas divinas, não considero isso como sendo da parte de Deus mesmo, cuja verdade é una
e simples; considero da parte do nosso conhecimento, que se comporta diversamente do
conhecimento das divinas.”
392
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 656. (O itálico é nosso).
com as naturais. Este é um dos objetivos do Aquinate: “Além disso, ao
investigarmos uma verdade, juntamente demonstraremos os erros por ela
excluídos e como a verdade racional concorda com a fé da religião cristã.”393
De fato, esta meta está ao nosso alcance, pois somos sempre capazes de provar
que a verdade não pode contradizer a verdade, pois só o falso é contrario ao
verdadeiro:

Ora, porque só o falso é contrário ao verdadeiro, o que se


manifesta claramente quando se verifica as definições de ambos,
é impossível que a supracitada verdade da fé seja contrária aos
princípios conhecidos naturalmente pela razão.394

Cumpre-nos, por fim averiguar, em que condições podemos praticar


este exercício. Será pela demonstração dos mistérios? Certamente que não, como
aduz o próprio Tomás de Aquino:

No entanto, a doutrina sagrada utiliza também a razão humana,


não para provar a fé, o que lhe tiraria o mérito, mas para
iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina.395

Resta-nos então discriminar, quais sejam os meios pelos quais ambas


se enriquecem mutuamente. Comecemos do lado da revelação. A revelação, de
fato, respeitando sempre a autonomia da filosofia, pode apontar-lhe os eventuais
erros. Cumpre ainda ressaltar que, em caso de haver fictícia contradição, a
verdade estará sempre com a revelação, pois esta procede de Deus, de forma
imediata e infalível. Diz Tomás, com relação às demais ciências em face da
ciência sagrada: “Tudo o que nessas ciências se encontrar como contrário à

393
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 4 (12). (Os itálicos são nossos).
394
Idem. Ibidem. I, VII, 2 (43). (Os itálicos são nossos).
395
Idem. Suma Teológica. I, 1, 8, ad 2. (O itálico é nosso).
verdade da ciência sagrada deve ser condenado como falso (...)”396. E ainda,
sobre o mesmo tema:

Como a fé se apóia na verdade infalível, e é impossível


demonstrar o contrário do verdadeiro, fica claro que as provas
trazidas contra a fé não são verdadeiras demonstrações, mas
argumentos que se podem refutar.397

A ciência sagrada é mais perfeita, com efeito, do que a teologia


filosófica, porque esta parte dos efeitos, isto é, das criaturas, e só a partir delas é
que ascende a Deus, enquanto que a sagrada ciência, ao contrário, parte de Deus
mesmo, enquanto este se revelou aos homens, e só depois considera as criaturas.
Explica Frei Tomás:

Com efeito, no ensino da filosofia, que considera as criaturas em


si mesmas, e partindo delas vai ao conhecimento de Deus,
considera-se principalmente as criaturas e, após, Deus. Mas na
doutrina da fé, que não considera as criaturas senão enquanto
ordenadas para Deus, primeiramente considera-se Deus e, após,
as criaturas. E assim ela é mais perfeita (...).398

Destarte, se, por um lado, elas (filosofia e teologia) formam uma única
verdade total e, ipso facto, não podem se contradizer, por outro, não podemos –
dada a finitude do nosso intelecto – demonstrar pela razão, tudo aquilo que
cremos pela fé, para manter este acordo, resta-nos apenas a certeza de que,
quando uma conclusão filosófica contradisser a revelação, isto será um
indicativo inequívoco de que tal conclusão está errada. É o que conclui Gilson:
“Daí resulta que, todas as vezes que uma conclusão filosófica contradiz o dogma,

396
Idem. Suma Teológica. I, 1, 6, ad 2.
397
Idem. Ibidem. I, 1, 8, C.
398
Idem. Suma Contra os Gentios. II, V, 5 (876 a/b).
é um indício certeiro de que essa conclusão é falsa.”399 E assim é que a revelação
acaba exercendo sobre a filosofia, uma certa função reguladora, julgando os seus
resultados. No entanto – e que isto fique bem claro - caberá a revelação, exercer
este seu influxo sobre a filosofia, tão-somente extrinsecamente, isto é, apenas
apontando-lhe os eventuais erros. Por conseguinte, será sempre a razão que
deverá - uma vez consciente de seu erro – identificar-lhe a natureza e corrigir-se
a si mesma, por métodos que também lhe sejam próprios. A respeito disso,
Gilson é claro: “(...) Cabe à razão devidamente advertida criticar em seguida a si
mesma e encontrar o ponto em que se produziu seu erro.”400 E ainda: “Em
semelhante caso, a revelação só intervém para assinalar o erro, mas não é em seu
nome, e sim em nome unicamente da razão que o estabelecemos.”401 Desta
forma, a revelação, longe de roubar a autonomia da filosofia, antes aperfeiçoa-
lhe o funcionamento. Assinalando o seu erro, livra-a, sem intervir diretamente
nos seus métodos, nem ferir os seus princípios basilares, de uma corrupção no
seu trabalho. Desta maneira, consolida-se, também nesta ordem, o invicto
axioma medieval: gratia non tollat naturam, sed perficiat: “(...) a graça não
suprime a natureza mas a aperfeiçoa (...)”402.
Ademais, a própria filosofia pode prestar relevantes serviços à
teologia. Entretanto, ainda aqui, é sempre preservando o que lhe seja intrínseco,
ou seja, o seu caráter exclusivamente racional e sem querer, desta forma, esgotar
no seu plano racional, a mesma teologia, que a filosofia poderá servi-la. De fato,
poderá confirmar as verdades reveladas quanto ao modo, demonstrando-as
racionalmente. Santo Tomás mesmo alude a isso, quando, no capítulo IX, do
livro I da Suma Contra os Gentios, adverte que a primeira ordem de verdades
com relação às coisas divinas – referindo-se aqui, evidentemente, àquelas
verdades sobre Deus que são naturalmente cognoscíveis pela razão - serão
propostas, de forma demonstrativa, a fim de causar convencimento do

399
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 656.
400
Idem. Ibidem. p. 656.
401
Idem. Ibidem. p.657.
402
Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 1, 8, C.
adversário: “Deve proceder, na manifestação da primeira ordem de verdades, por
razões demonstrativas, pelas quais o adversário possa ser convencido.”403 No
entanto, a filosofia pode ainda prestar um outro valioso serviço para a doutrina
da fé. Com efeito, diante das verdades essencialmente reveladas pode a razão
também demonstrar, de modo indefectível, que quem quer que as contradiga, o
faz levianamente. Com efeito, mesmo não podendo demonstrar o mistério, pode-
se refutar a tese que a ele se opõe, provando-lhe que as suas razões, ou são
apenas prováveis ou são mesmo sofisticas. Declara Santo Tomás de Aquino:

De todos esses raciocínios conclui-se que quaisquer razões que


possam ser apresentadas contra as verdades ensinadas pela fé não
procedem corretamente dos primeiros princípios conhecidos por
si mesmos e vindos da própria natureza. Donde não possuírem
força demonstrativa, pois não passam de razões prováveis ou
sofísticas, que por si mesmas dão motivo para serem
destruídas.404

Nestes dois sentidos bem determinados, quais sejam, o de que a


teologia pode, por vezes, julgar a filosofia e a filosofia, por sua vez, pode prestar
serviços à teologia, pode-se caber dizer com acerto que a filosofia se encontra,
nestes casos, como serva da teologia. Reza o Aquinate: “Por conseguinte, ela (a
ciência sagrada) não toma emprestado das outras ciências como se lhe fossem
superiores, mas delas se vale como de inferiores (inferioribus) e servas (ancillis)
(...)”405. Contudo, de modo algum as duas ordens se confundem, nem se reduzem
uma à outra. Primeiro: de maneira nenhuma a filosofia deve à teologia os seus
princípios “Por conseguinte, não pertence à doutrina sagrada estabelecer os
princípios das outras ciências, mas apenas julgá-los.”406 Segundo: a nossa razão,

403
Idem. Suma Contra os Gentios. I, IX, 2 (52a).
404
Idem. Ibidem. I, VII, 7 (47c). (O itálico é nosso).
405
Idem. Suma Teológica. I, 1, 5, ad 2. (Os parênteses e os itálicos são nossos).
406
Idem. Ibidem. I, 1, 6, ad 2.
de per si, de forma alguma precisa de uma nova iluminação sobrenatural – além
da do intelecto agente - para conhecer as verdades que são da sua ordem:

Mas, uma nova iluminação acrescentada à luz natural do intelecto


não é requerida para conhecer todas as espécies de verdades, mas
somente para algumas verdades que ultrapassam a ordem do
conhecimento natural.407

Fica, pois, então patente, uma legítima independência da filosofia ante


a ciência sagrada. Portanto, com Santo Alberto e Santo Tomás, inaugura-se uma
inédita distinção entre os dois domínios, cuja principal conseqüência será a
preservação, tanto da religião cristã – que outrora tendia a transformar-se ou
num fideísmo ridículo ou num racionalismo inocente – quanto da filosofia, que
até então corria o risco ora de ser completamente absorvida pela teologia ora o
contrário. Desde então, conservando-se ambas no seu domínio próprio, nasce,
pois – agora consciente de si – a filosofia cristã. Esta consiste, precisamente,
numa filosofia que, sempre permanecendo filosofia, isto é, ciência fundada na
razão, já aceita as contribuições da revelação que lhe ilumina de fora, já vai ao
encontro da teologia, defendendo, de diversas maneiras – mas sempre ao seu
modo – a veracidade do dado revelado. Mais do que serva, por conseguinte, o
papel da filosofia, em Tomás, seria mais bem entendido, pela denominação de
preambula fidei. Sobre este aspecto, nos fala Reale:

Muito se tem discutido sobre se existe uma razão autônoma da fé


em Tomás, ou seja, uma filosofia distinta da teologia. A verdade

407
Idem. Ibidem. I-II, 109, 1, C. Em outro lugar, diz Santo Tomás, que mesmo em se tratando
das verdades naturais relativas a Deus, nós a podemos conhecer sem a graça. Daí que, quanto
ao conhecimento natural de Deus, ele é acessível a bons e maus: Idem. Ibidem. I, 12, 12, ad 3:
“Deve-se dizer que o conhecimento de Deus em sua essência, sendo um efeito da graça, só cabe
aos bons; porém ,o conhecimento de Deus pela razão natural pode caber tanto aos bons quanto
aos maus (...)”. (O itálico é nosso).
é que em Tomás há uma razão e uma filosofia como preambula
fidei.408

Aliás, o próprio Aquinate admite, positivamente, que a filosofia tem


este papel na sua obra. Na Suma Contra os Gentios, ele assevera que se deve
começar pela razão, porque a ela também todos devem assentir. De fato, a razão
é a única coisa que temos em comum com aqueles que não crêem nas Escrituras:
Explica Tomás:

(...) Porque entre os que erram, alguns, como os maometanos e


os pagãos, não aceitam, como nós, a autoridade algum texto das
Escrituras, pelo qual possam ser convencidos. Por meio delas, no
entanto, podemos disputar contra os judeus, usando do Velho
Testamento, e contra os heréticos, usando do Novo. Mas não o
podemos contra quem não aceita nenhum dos dois. Por esses
motivos, deve-se recorrer à razão natural, com a qual todos são
obrigados a concordar.409

Tomás chega a dizer que a fé pressupõe o conhecimento natural, da


mesma forma que a graça pressupõe a natureza, e o perfeito o que é perfectível:
“(...) sic enim fidei praessupponit cognitionem naturalem, sicut gratia naturam, et
ut perfectio perfectibile.”410 É por isso que, para Santo Tomás, era extremamente
grave e inaceitável para um teólogo, o desprezo da filosofia. O fideísmo ou algo
que o valha, seja uma ignorância intencional, seja ainda um conhecimento
errôneo a respeito das criaturas, sob a falsa pretensão de que basta conhecer o
que é necessário à salvação no final das contas - para quem persiste neste
caminho – se desenrolava em conseqüências desastrosas para a própria fé:

408
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 213. (O itálico é nosso).
409
Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, II, 3 e 4 ( 11 e 12). (O itálico é nosso).
410
Idem. Suma Teológica. I, 2, 2, ad 1.
Vê-se, pois, como é falsa a afirmação de alguns, de que era
indiferente para as verdades da fé o que se pensasse a respeito das
criaturas, contanto que se pensasse retamente sobre Deus, como
nos relata Agostinho. O erro acerca das criaturas redunda em
falsa idéia de Deus e, ao submeter as mentes humanas a
quaisquer outras coisas, afasta-as de Deus, para quem a fé as quer
encaminhar.411

Para quem argumenta que das relações entre a teologia e as demais


ciências nunca se ocupou ou problematizou Santo Tomás, leia todo o capítulo
III, do livro segundo da Suma Contra os Gentios e verá que estamos diante de
um mestre interdisciplinar, preocupado em não omitir nada e com as janelas
abertas, para todas as formas de saber. Nas belas palavras de Reale, para Tomás,
ninguém podia se arvorar em construir uma reta teologia, sem antes procurar
lapida-la numa correta filosofia: “(...) sendo portanto necessária uma correta
filosofia para ser possível uma boa teologia.”412

411
Idem. Suma Contra os Gentios. II, III, 5 (869).
412
Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. p. 554.
7) Históricos das Críticas à Noção de
Filosofia Cristã

Com efeito, como já havíamos notado, houve nos primeiros padres,


tanto gregos quanto latinos, duas posições extremadas, muito compreensíveis,
aliás, para uma teologia ainda em gestação: alguns, como Justino e Agostinho,
tendiam a apresentar o cristianismo como a filosofia por excelência; outros,
como Taciano e Tertuliano, eram de tal modo hostis à filosofia, que se
inclinavam a impor a mais absoluta contradição entre religião cristã e filosofia
grega. Verificamos ainda, como Paulo, embora reconhecendo a existência de
uma salutar sabedoria humana, fazia questão de proclamar a religião cristã
como sendo uma sabedoria do alto, que se adquire mediante a fé em Jesus
Cristo.
Seja como for, sendo a filosofia um conhecimento fundado nos
princípios da razão natural e a religião cristã uma sabedoria que procede da fé,
está claro que se trata de duas sabedorias essencialmente distintas e irredutíveis
formalmente uma a outra. De sorte que, se entendermos por filosofia cristã a
própria religião cristã, disto só poderá resultar um demolidor reducionismo, ou
seja, a confusão e o aniquilamento de ambas. Já que a religião cristã se funda na
fé, como pode ela ser uma filosofia, quando esta se baseia na razão? E como a
filosofia, que se baseia na razão, poderia continuar sendo filosofia, se passasse a
ser tomada como religião, já que esta se funda na fé e não nos princípios
naturais da razão? Para que tal identidade acontecesse, fatalmente: ou a filosofia
teria que ser reduzida à letra do Evangelho – o que seria o seu aniquilamento –
ou o Evangelho é que teria que ser absorvido pela filosofia, o que seria o fim da
religião cristã.
7.1) Duns Escoto

Se a síntese de Tomás, de direito, havia refutado os averroistas,


distinguindo bem religião de teologia e teologia de filosofia, de fato, tal síntese
não conteve o desenvolvimento desta corrente. Com fortes tendências
racionalistas, o chamado aristotelismo heterodoxo, reaparece no final do século
XIII e por todo o século XIV, desencadeando uma nova crise na vida intelectual
da cristandade. Isto, evidentemente, exigiu, por parte dos teólogos cristãos, uma
nova tomada de posição, propondo também novas soluções que conseguissem,
desta sorte, sanar a crise que ameaçava a fé e a religião cristã. É neste espírito de
efervescência intelectual, que surge a obra do franciscano Duns Escoto:

Do ponto de vista histórico, a posição de Duns Escoto deve ser


interpretada como uma tentativa enérgica para persuadir os
filósofos de sua própria insuficiência, para atalhar os excessos do
averroísmo e assegurar à fé e à teologia o lugar que um
racionalismo exagerado lhes contestava. De forma que a atitude
crítica de Duns Escoto se justifica pela preocupação de represar a
penetração descomedida do elemento racionalista, inclusivamente
no domínio teológico, e para defender os direitos da teologia
positiva (...).413

De fato, Escoto, do mesmo modo como Tomás – e com muito maior


ênfase – distingue os domínios da filosofia do da teologia. Entretanto, a síntese
escotista, a nosso ver, não atinge o cerne da questão, pois não começa, como a
tomásica, por distinguir fé de teologia, dando a esta última um status de ciência.
De fato, o criterioso trabalho de Sto. Tomás, a um só tempo fiel à tradição e
inovador na sua sistematização, após alicerçar a própria fé como um ato
eminentemente racional, faz deste mesmo habitus desabrochar ainda um outro
habitus, também ele racional e distinto da própria mística, que chamamos

413
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 494.
ciência teológica. E, ipso facto, por esta mesma teologia, consegue erguer como
que uma “ponte” alçada desta vez entre o elemento supra-racional da fé,
refolhado pelos instrumentos da razão e a própria filosofia racional. A teologia,
enquanto ciência, passar a ser então, o lugar e o ponto de encontro, onde Tomás
desenvolve a sua filosofia. A cientificidade da teologia é, pois, estruturalmente, o
próprio elo de união entre fé e razão, entre o sobrenatural e o natural.
Olvidando, pois, deste pressuposto que nos parece fundamental, Duns
Escoto não consegue colocar em diálogo filosofia e teologia e nem fé e razão.
Por isso mesmo é que, na sua concepção, as duas ordens de conhecimento
passam à margem de qualquer concordância. Permanecem, pois,
fundamentalmente opostas. Por negar o conceito de analogia, que possibilitara a
um Tomás de Aquino dar alicerce racional ao seu projeto de confecção de uma
ciência teológica, Duns Escoto delimita de tal forma os laços que ligavam
teologia e filosofia, que as duas só podem permanecer separadas.
De fato, o objeto próprio da teologia é Deus enquanto Deus; o da
filosofia, ao contrário, e mais especificamente o da metafísica – que é a sua coroa
– é o ser enquanto ser.414 Ora, o nosso intelecto, no estado em que se encontra,
parece incapaz de alcançar o ser enquanto tal, salvo no que toca ao ser das
coisas sensíveis, das quais realmente consegue abstraí-lo: “Portanto, o intelecto
só conhece do ser o que dele pode abstrair a partir dos dados dos sentidos.”415
Das chamadas substâncias separadas, no entanto, não temos qualquer conceito
direto, não podemos, por conseguinte, conhecer o ser delas enquanto tal.416
E, entretanto, este é o objeto próprio da metafísica, qual seja, o ser
enquanto tal, isto é, o ser enquanto despojado de qualquer determinação, o ser
comum, tanto às realidades sensíveis como as inteligíveis, indistintamente: “Falar

414
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 737: “O objeto próprio da teologia é Deus
enquanto Deus; o da filosofia, ou, antes, da metafísica que a coroa, é o ser enquanto ser.”
415
Idem. Ibidem.
416
Idem. Ibidem: “Não temos nenhum conceito direto do que podem ser substâncias puramente
imateriais e inteligíveis, os anjos e Deus, por exemplo. (...) além disso, não podemos sequer
conceber o que significa a palavra ‘ser’ quando a aplicamos a ele.”
do ser enquanto ser é tomar por objeto o ser enquanto tal, sem nenhuma
determinação que o restrinja a um modo de ser determinado.”417 A metafísica,
desta feita, como bem conclui Gilson no seu estudo sobre Duns Escoto, se
apresenta, antes de mais nada, como uma ciência, “ (...) do ser enquanto ser,
construída por um intelecto que só pode alcançar a alma sob um de seus aspectos
e que não é o mais elevado.”418 Há de se perguntar então se, num sistema como
estes, uma metafísica é ainda possível e em que circunstâncias o seria, quero
dizer, o “(...) que se deve fazer para que a metafísica seja possível?”419
Antes de qualquer coisa, o seu objeto deverá ser o mais indeterminado
possível, ou seja, algo que seja, de tal forma comum a todos os seres, que não se
possa distinguir por ele, nenhum dos seres: “É preciso lhe dar como objeto uma
noção de ser tão completamente abstrata e indeterminada que ela possa se aplicar
indiferentemente a tudo o que é.”420 Vimos, pois, que o conceito de ser que
Tomás privilegia em sua doutrina – para depois aplicá-lo por antonomásia a
Deus – é do ato de existir (ipsum esse). Ora, tal conceito, não serve para Duns
Escoto. Com efeito, o ato de existir será, no final das contas, um atributo que,
sendo próprio a todo ser, se realiza, no entanto, diferentemente em cada um
deles. Logo, adotá-lo como objeto próprio da metafísica, seria comprometer a
unidade desta ciência: “Tais atos de existir são, em última análise,
irredutivelmente distintos uns dos outros; seu estudo não se centraria num objeto
verdadeiramente uno.”421 A metafísica haverá que alcançar finalmente, um objeto
absolutamente indeterminado, indistinto, porque aplicável, de forma indiferente,
a qualquer ser. É a apreensão, pois, deste conceito generalíssimo de ser, que leva
o Doutor Sutil, enquanto metafísico, a sua repisada doutrina da univocidade do
ser:

417
Idem. Ibidem.
418
Idem. Ibidem.
419
Idem. Ibidem.
420
Idem. Ibidem. p. 737 e 738.
421
Idem. Ibidem. p. 738.
Para salvar a unidade de seu objeto e, por conseguinte, sua
própria existência, a metafísica deve considerar a noção de ser
apenas em seu último grau de abstração, aquele em que ele se
aplica num só e mesmo sentido a tudo o que é. É o que se
exprime ao se dizer que o ser é “unívoco” para o metafísico.422

Não obstante, o sujeito da metafísica não seja Deus423 e talvez por isso
mesmo, “posto que nenhuma ciência demonstra a existência do seu próprio
objeto”424, ela se debruça sobre a árdua tarefa de provar-lhe a existência,
exatamente no âmbito do seu discurso sobre o ser enquanto ser. Não nos cabe
aqui desenvolver a prova da existência de Deus em Escoto, mas apenas afirmar
que, no ato mesmo em que se conclui a demonstração da existência de um ser
primeiro e infinito, a abordagem metafísica encerra-se, pois continuar seria, de
certa forma, trair o seu objeto formal, que é o ser enquanto tal. Passa a
metafísica, precisamente neste momento, o “bastão” para a teologia, a quem
caberá classificar e discriminar as perfeições deste ser primeiro e infinito:

(...) a metafísica trata do ser como tal, para elevar-se ao conceito


de ser primeiro, que encerra o conceito de ser infinito. Nesta
altura, porém, a metafísica tem que deter-se, cedendo à teologia a
tarefa de preencher o conceito assim obtido com a plenitude das
verdades reveladas sobre Deus.425

422
Idem. Ibidem.
423
Duns Scot. Reportata Parisiensia. pról, q. 3, a. 1: “Concedo, portanto, com Avicena que
Deus não é o sujeito da metafísica.” Idem. Op. Cit: “Portanto, no que concerne a este artigo,
digo que Deus não é o sujeito da metafísica (...)”.
424
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 493. Duns Scot. Op. Cit. pról, q. 3, a. 1:
“De fato, Avicena pretende que Deus não é o sujeito da metafísica porque nenhuma ciência
prova seu sujeito; ora, o metafísico prova que Deus existe. Logo (...)”.
425
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 494.
Não existe, pois, em Duns Escoto, uma teologia natural ou uma
teodicéia propriamente dita, pois não existe o recurso à analogia, que nos
permitiria, desde então, adentrar um pouco mais no que seria um discurso sobre
os atributos divinos. Além da demonstração da existência de Deus, nada mais é
demonstrável entre as matérias teológicas e assim “Nada do que é demonstrável
pela razão é revelado por Deus, e nada do que é revelado por Deus é
demonstrável (...)”426. Num pensamento como este, é evidente que a teologia
começa a se tornar como uma espécie de “(...)asilo de tudo o que não comporta
demonstração necessária e de tudo o que não é objeto de ciência (...)”427. Se a
última das demonstrações, exclusivamente racionais a que podemos chegar, é a
da existência de Deus, e, se é a partir daí que a metafísica cede lugar a revelação
e a teologia, é claro que “(...) a teologia só é uma ciência num sentido
especialíssimo da palavra.”428
Certamente não poderá ser mais uma ciência especulativa, pois não
nos fornece nenhum conhecimento demonstrativo e unicamente racional do seu
objeto. Será, ao contrário, muito mais uma ciência prática, pois o conhecimento
que ela nos fornecerá do seu objeto, só será certo se crido pela fé e se, animados
pela Esperança da futura beatitude, nortearmos por ele as nossas vidas:

Não é uma ciência especulativa, mas uma ciência prática, cujo


objeto é menos dar-nos a conhecer certos objetos do que pautar
nossas ações em vista da beatitude que esperamos, com fé nas
promessas divinas.429

426
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 751.
427
Idem. Ibidem.
428
Idem. Ibidem.
429
Idem. Ibidem.
7.2) Na Escolástica Decadente: Guilherme de Ockham

Outro pensador, que combaterá o averroísmo através de uma severa


separação entre fé e razão, filosofia e teologia, é Frei Guilherme de Ockham.
Para Ockham um conhecimento é certo se, ou “(...) é imediatamente evidente ou
se reduz a uma evidência imediata.”430 Agora bem, Ockham distingue, pois,
conhecimento certo e evidente de ciência ou sabedoria: “(...) a evidência é um
atributo do conhecimento bem diferente da ciência, ou da intelecção, ou da
sabedoria (...)”431. O que então diferencia, evidência de ciência, intelecção ou
sabedoria?
Para entendermos isto, importa desde já fazermos uma outra
importante distinção. Há, na ordem do conhecimento, dois modos de
conhecimento: o abstrativo e o intuitivo. Por conhecimento abstrato, não se
entende aqui, necessariamente, o conhecimento de conceitos universais. Pelo
contrário, o conhecimento abstrativo poder consistir em “(...) um simples saber a
respeito de um objeto qualquer.”432 Ele se diferencia, pois, do outro
conhecimento, porque abstrai, na sua própria constituição, da existência ou
presença do objeto conhecido: “Em outras palavras, o conhecimento abstrativo
prescinde da existência e da presença do objeto conhecido.”433 Por conseguinte,
“(...) um conhecimento abstrativo nunca nos poderá assegurar da existência de
um fato contingente.”434 E há mais, sempre quando se tratar de um conhecimento
meramente abstrativo, “(...) mesmo quando se estabelece relações necessárias
entre as idéias, não nos garante de modo algum que as coisas reais se conformem

430
Idem. Ibidem. p. 797.
431
Idem. Ibidem.
432
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537.
433
Guilherme de Ockham. Ordinatio. Prólogo, q.1: “De outro modo, ‘conhecimento abstrativo’
significa o que abstrai da existência e da não existência, bem como das outras condições que
acontecem contingentemente às coisas ou delas são predicadas.”
434
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537
à ordem das idéias.”435 Com efeito, se quisermos realmente saber se o objeto ou
as relações entre as idéias que pensamos são, de fato, como as pensamos, na
realidade, precisamos estar de posse de uma outra forma de conhecimento, a
saber, de um conhecimento intuitivo, que nos coloque de posse de uma evidência
imediata:

Se quisermos uma proposição que nos garanta ao mesmo tempo


sua verdade e realidade que ela afirma, uma evidência imediata,
não mais simplesmente abstrata, mais intuitiva.436

Por conseguinte, só o conhecimento intuitivo nos esclarece a respeito


da certeza da existência do objeto e está em condições de nos colocar a par do
fato propriamente dito: “O conhecimento intuitivo é o único que tem por objeto
as existências e que nos permite alcançar os fatos.”437 Daí que, todo
conhecimento que se pretenda certo com respeito à existência das coisas, precise,
necessariamente, ser fundado numa intuição sensível: “Daí resulta que o
conhecimento sensível é o único certo quando se trata de alcançar existências.”438
Cumpre precisar algo.
Não se trata, pois, de restringir o conhecimento ao mundo do sensível
e abolir o conhecimento abstrativo. Devemos, pois, para alcançar um juízo
judicativo evidente, sair da esfera do sensível e chegar, de fato, ao escopo do
435
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 797. Guilherme de Ockham. Op. Cit.
Prólogo, q.1: “O conhecimento abstrativo, porém, é aquele em virtude do qual não se pode
conhecer com evidência se uma coisa contingente existe ou não.”
436
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 797. Guilherme. Op. Cit. Prólogo, q.1: “O
conhecimento intuitivo das coisas é um conhecimento em virtude do qual se pode saber se é ou
não é, de modo que, se é, imediatamente o intelecto julga que ela é, conhecendo com evidência
que ela existe (...)”.
437
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 797. Guilherme de Ockham. Op. Cit.
Prólogo, q.1: “Portanto, o conhecimento abstrativo abstrai da existência e não-existência,
porque, ao contrário do que ocorre com o conhecimento intuitivo, não se pode conhecer por ele,
com evidência, se existe uma coisa existente de fato ou se não existe uma coisa inexistente.”
438
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 797.
abstrativo. Entretanto, todo conhecimento abstrativo – toda intuição intelectual –
só poderá ser comprovadamente verdadeira, se houver uma intuição sensível
correspondente:

Antes, podemos ter simultaneamente um conhecimento intuitivo


intelectual dos objetos percebidos intuitivamente pelos sentidos; e
só esta intuição intelectual é suficiente para um juízo evidente,
ainda que ela não exista, de fato, sem a intuição sensível, ao
menos em nosso estado presente de peregrinos.439

É patente que numa filosofia em que “Provar uma proposição consiste


em mostrar seja que ela é imediatamente evidente, seja que ela se deduz
necessariamente de uma proposição imediatamente evidente”440 e que, por sua
vez, uma evidência imediata é aquela que dimana de uma intuição sensível que
lhe corresponda, é claro que, repetimos, numa filosofia como esta “ (...) um tal
saber intuitivo de Deus nos permanece inacessível enquanto dependemos de
nossas energias naturais.”441 Com outras palavras, como Deus não se encontra
dentro do campo das nossas experiências sensíveis, é óbvio que dEle não
podemos ter nenhuma intuição sensível e, por isso mesmo, nenhum
conhecimento certo da sua existência. E não é só. Como todo conhecimento
abstrativo, que se pretenda verdadeiro, precisa se fundar num conhecimento
intuitivo correspondente, é evidente que “Também esta espécie de conhecimento
nos é vedada em relação a Deus.”442 Qualquer tentativa, em Ockham, de se
construir uma teologia filosófica, é, pois, fadada ao fracasso:

Nem mesmo a partir da criatura podemos atingir a Deus por este


modo; pois do conhecimento individual de uma criatura, o qual é

439
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 537.
440
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 796.
441
Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 541.
442
Idem. Ibidem.
apenas intuitivo ou abstrativo-singular, jamais poderemos
ascender ao conhecimento singular de outro ser.443

Num pensamento, onde o critério de demonstração e de ciência está


ligado, por tão estreitos laços, à sua base empírica, a teologia “(...) não é mais
considerada ciência, mas sim um complexo de proposições mantidas em
vinculação não pela coerência racional, e sim pela força de coesão da fé.”444 De
fato, a fé, enquanto fundamento da teologia, não é, para a mesma teologia, um
substitutivo da evidência empírica, não é, além do mais e ipso facto, nem
princípio e nem conclusão de demonstração alguma. O que é de fé, não é sequer
provável do ponto de vista da razão natural; ao contrário, abandonado à pura
razão, os artigos de fé parecem ser antes falsos:

Os artigos de fé não são princípios de demonstração nem


conclusões, já que parecem falsos para todos, ou para a maioria
ou para os sábios, entendendo por sábios os que se entregam à
razão natural, já que só de tal modo se entende o sábio na ciência
e na filosofia.445

Na obra de Ockham a filosofia é totalmente dispensada de seus


“préstimos” para com a teologia. Com efeito, é o que assinala Gilson com
precisão: “Em teologia, ela se traduziu por um ensinamento da Ciência Sagrada,
que se colocará a partir de então como capaz de se bastar sem recorrer aos bons
ofícios da teologia.”446 A teologia se definirá então, unicamente por ser uma

443
Idem. Ibidem
444
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 299.
445
Guilherme de Ockham. Lectura Sententiarum. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario.
História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª
ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 299.
446
Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 815.
doutrina que trata das verdades relativas a nossa salvação447 e cujo método pelo
qual delas se aproxima é exclusivamente a priori. Neste sentido, embora a
metafísica verse também sobre certo número de verdades em comum com a
teologia, o seu método é rigorosamente a posteriori.448 É por terem, pois,
procedimentos de todo heterogênicos, que com energia e severidade singular,
Ockham insiste em afirmar que, nem a teologia deve esperar se beneficiar com
qualquer demonstração da metafísica, nem a metafísica pode pretender dar conta
de nenhum auxílio à teologia. São dois conhecimentos justapostos, que devem
permanecer separados:

É por isso que nem a teologia deve contar com nenhuma


demonstração metafísica, nem o conhecimento metafísico pode
esperar provar nenhuma das verdades necessárias à salvação.449

7.3) No Renascimento: Erasmo de Roterdã

No renascimento, nova forma de resistência aos complexos sistemas


teológico-metafísicos dos escolásticos nasceu. Tal resistência compreendera
uma volta aos clássicos e, sob a perspectiva cristã, um retorno aos padres da
Igreja e as fontes escriturísticas. Entretanto, a visão renascentista, possuía um
equívoco que, de certo modo, perdura até hoje e já se tornou clássico: entender,
de forma unilateral, o pensamento medieval e, desta sorte, de maneira
preconceituosa, o englobar em torno apenas do chamado “averroísmo latino”, na
sua forma mais decadente que fora desenvolvida no século XIV. É claro que,
classificando tudo deste ponto de vista, nenhum dos sistemas medievos ficou
salvaguardado das críticas dos renascentistas.
447
Idem. Ibidem: “A teologia contém todas as verdades necessárias à salvação e todas as
verdades necessárias à salvação são verdades teológicas (...)”.
448
Idem. Ibidem: “Certamente a metafísica pode tratar de algumas delas (das verdades
salvíficas), mas a teologia fala de Deus por métodos a priori, enquanto a metafísica fala apenas
do ser, e por métodos a posteriori.” (O parêntese é nosso).
449
Idem. Ibidem.
É, pois, precisamente com este espírito, que o renascentista Erasmo de
Roterdã, ao criticar os medievais – por terem introduzido demasiadas sutilezas
silogísticas na exposição do Evangelho – tenta retornar à vetusta e ingênua
interpretação de certos padres, que simplesmente faziam coincidir religião
cristã e filosofia cristã. Giovanni Reale, citando texto exemplar de Erasmo,
explica:

(...) E a sabedoria cristã não tem necessidade de complicados


silogismos, podendo ser alcançada em poucos livros: os
Evangelhos e as Epístolas de são Paulo. Escreve Erasmo: “Que
outra coisa é a doutrina de Cristo, que ele próprio denomina
renascença, senão um retorno à natureza bem criada?’ (...) E os
melhores livros dos pagãos contêm ‘grande número de coisas que
concordam com a doutrina de Cristo”.450

Ouçamos, pois, dois textos, ainda neste sentido muito elucidativos, do


ilustre pensador renascentista. O primeiro, se referindo aos filósofos
escolásticos:
(...) Eles não sabem nada, mas afirmam saber tudo (...). Todavia,
proclamam com orgulho ver bem as idéias, os universais, as
formas separadas, as matérias-primas, as qüididades, a
hecceidade, todas as coisas tão sutis, que nem Linceu, creio, nelas
conseguiria penetrar com o olhar.451

Agora se volta contra aos teólogos escolásticos, sarcasticamente


sentenciando:

450
Giovanni Reale. História da Filosofia: Do Humanismo a Descartes. p. 68:
451
Erasmo. Elogio da Loucura. LII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Do Humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 85.
Além disso, são infinitos os caminhos pelos quais os Escolásticos
tornam ainda mais sutis aquelas infinitesimais sutilezas: em suma,
seria mais fácil escapar de um labirinto do que dos emaranhados
dos Realistas, Nominalistas, Tomistas, Albertistas, Ockamistas,
Escotistas,e não acenei todas as escolas, mas apenas às
principais. Em todas estas escolas erudição e abstrusidade estão
na ordem do dia e eu penso que os próprios apóstolos teriam
necessidade do socorro de outro Espírito Santo, caso fossem
forçados a cruzar armas com esta nova estirpe de teólogos.452

Étienne Gilson resume assim o pensamento de Erasmo: “Também para


ele, a ‘filosofia de Cristo’ é Cristo sem a filosofia, isto é, o Evangelho.”453 Por
fim, Gilson declina o seu juízo sobre o pensador renascentista:

(...) com que direito Erasmo acrescenta que o próprio Evangelho


é uma filosofia? Se os cristãos não têm direito a nada além do
Evangelho e da Igreja, não falta nada ao seu cristianismo, mas
será que ainda terão uma filosofia? Ou não se verá no Evangelho
nada além de um moralismo natural, o que seria suprimir seu
caráter religioso e aniquilar o cristianismo a pretexto de salvá-lo;
ou se manterá o caráter sobrenatural e religioso do Evangelho, e
então como se poderia ainda sustentar que ele é uma filosofia?
Para manter coerência consigo mesmo, é necessário superar
Erasmo e buscar outra posição.454

452
Erasmo. Elogio da Loucura. LIII. In: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da
Filosofia: Do Humanismo a Descartes. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2ª ed. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 86. (O itálico é nosso).
453
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 68.
454
Idem. Ibidem. p. 508. (O itálico é nosso).
7.4) Na Reforma: Martinho Lutero

E, no entanto, Erasmo não era o único representante dos antigos


extremismos dos primeiros tempos do cristianismo. Façamos ainda menção de
Lutero que, de alguma forma, retoma tese análoga a de Taciano e Tertuliano, ou
seja, não somente o cristianismo não é uma filosofia – o que, de fato, é verdade –
mas nem sequer há no cristianismo lugar para uma “filosofia cristã”. Se, em
Ockham e Erasmo, se bem que sob aspectos diversos, existe uma crítica a um
pretenso racionalismo, o qual teria se introduzido no seio da teologia cristã, na
de Lutero, o repudio atinge a própria razão enquanto tal:

É necessário reduzir a inteligência e a razão ao estado de


faculdades latentes e mortas em que se acham na infância; só
assim poderemos chegar à fé, pois a razão contradiz a fé.455

Com efeito, Lutero não aceita uma filosofia cristã, porque repele a
própria noção de filosofia, enquanto obra de uma razão decaída e incapaz de
encontrar a verdade. Sem embargo, entre filosofia e religião, longe de haver
apenas uma distinção, existe, na verdade, um abismo de separação, uma exclui a
outra, como a verdade afasta e destrói o erro:

A de Lutero era muito mais forte: pelo menos ele tinha o mérito
da franqueza. Para ele, ‘a moral de Aristóteles quase inteira é o
pior inimigo da graça. (...) Não apenas o cristianismo não é uma
filosofia, mas ele nunca terá uma filosofia, essa stultitia, que se
possa dizer compatível com o Evangelho.456

455
Lutero. Erl. XLIV, 156. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353. (O itálico é nosso).
456
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 508.
Ouçamos o próprio Lutero:

A Sorbona, mãe de todos os erros e de todas as heresias, professa


um princípio detestável, afirmando que uma proposição
verdadeira em teologia deve também necessariamente ser
verdadeira em filosofia.457

De fato, para Lutero, “Nas coisas espirituais e divinas a razão é


completamente cega.”458 Por isso, para que possa haver fé, “É necessário reduzir
a inteligência e a razão ao estado de faculdades latentes em que se acham na
infância (...)”459. Não há como viver a religião cristã, ser crente, e continuar
atendendo aos princípios basilares da razão, sendo racional, pois “A razão é
diametralmente oposta à fé; o verdadeiro crente nada tem que ver com ela.”460
Para Lutero, a fé e a religião implicam renúncia ao racional, reclamam mesmo o
irracional: “Os verdadeiros crentes sufocam a razão depois de lhe dirigir esta
advertência: ouve-me, razão minha, tu és cega, louca, nada compreendes das
coisas do céu.”461 Não se trata apenas de algo passivo, ou seja, de uma renúncia à
uma racionalidade mais enxuta, seja ela científica ou filosófica. Trata-se, antes e
muito mais, de um aniquilamento positivo, muito mais radical do se possa
imaginar à primeira vista, visto que consiste em despir o crente mesmo dos
rudimentos mais elementares da lógica; impõe-se ao fiel um abandono à própria
racionalidade enquanto tal. É o próprio exercício básico do pensamento que

457
Lutero. Walch. X, 1398. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
458
Lutero. Erl. XLV, 336. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
459
Lutero. Erl. XLIV, 156ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
460
Lutero. Erl XLIV. 156 ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
461
Lutero. Weimar. XL, 1 abt., 362. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A
Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353.
importa que se exija do crente eliminar, alienando-se. De fato, ele tem o “dever
de destruí-la (A razão) inteiramente e sepultá-la.”462
Deste fato, outro fato ainda mais surpreendente deriva, qual seja, os
frontais ataques que Lutero faz a toda cultura racional, já enquanto se manifesta
nos pensadores clássicos, já enquanto é cultivada, de forma mais apurada, nas
instituições de ensino. De Aristóteles e Santo Tomás, é dele este juízo impiedoso:
“(...) Tomás de Aquino duvido se se salvou ou se condenou (...) Tomás escreveu
muitas heresias e inaugurou o reino de Aristóteles, devastador da santa
doutrina.”463 Das universidades e toda espécie de cultura escolar, declina as mais
duras sentenças:
O deus Moloch, a que os hebreus sacrificavam os seus filhos, é
hoje representado pelas universidades às quais imolamos a maior
e melhor parte da nossa juventude (...) O que, porém, nunca se
poderá bastantemente deplorar é que a juventude é, nelas,
instruída nesta ciência ímpia e pagã que tende a corromper
miseravelmente as almas mais puras e os ânimos mais
generosos.464

As escolas superiores mereceriam ser destruídas até aos alicerces.


Desde que o mundo é mundo não houve instituição mais
diabólica, mais infernal.465

Se a revelação cristã condena evidentemente a carne e o sangue,


isto é, a razão humana e tudo o que do homem procede, como
incapaz de nos levar a J.C., claro está que tudo isto não passa de

462
Lutero. Erl. XLIV, 156ss. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 353. (O parêntese é nosso).
463
Lutero. Weimar. VIII, 127. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 354.
464
Lutero. Walch. XIX, 1430. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª
ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 354 e 355.
465
Lutero. Walch. XII, 45. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed.
Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
mentiras e trevas (...). E no entanto as altas escolas, estas escolas
diabólicas fazem grande alarde de suas luzes naturais e guindam-
nas até aos céus, como se fossem não só úteis senão
indispensáveis. Assim que hoje é coisa perfeitamente
estabelecida que todas essas escolas são invenção do demônio
para obscurecer o cristianismo (...) Nelas se ensina que a luz
divina ilumina a natural como o sol ilumina e faz ressaltar um
belo painel: todas essas são idéias pagãs e não doutrina de J.C.
Por esta forma as escolas instruem os seus doutores e sacerdotes
mas é o demônio quem fala pelos seus lábios (...).466

Como a razão só falseia a verdade da fé, para Lutero “Devemos crer o


que a inteligência demonstra como absurdo.”467 Como bem situa Franca o que a
Reforma nos propõe como um imperativo, “É a renúncia à lógica e o suicídio da
razão.”468 Não a troco de nada, Paulsen já havia atestado, em seus estudos sobre
os conceitos basilares da Reforma, que “O protestantismo na sua origem e na sua
natureza é irracional: a razão, por si mesma, nada pode conhecer de quanto
concerne à fé.”469 Outro estudo, confessa francamente, que o resultado da postura
luterana, foi o sepultamento de toda cultura secular em seu seio, foi tornar
inviável toda e qualquer forma de um saber institucionalizado e profano em seu
meio:

Enquanto permaneceu fiel às doutrinas de Lutero e Calvino, a


igreja protestante não teve poesia, nem história, nem filosofia.
Sim, certamente, enquanto as comunidades protestantes foram
luteranas não tiveram filosofia e quando acolheram uma filosofia

466
Lutero. Walch. XI, 459, 599. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização.
7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
467
Leonel Franca. A Igreja, A Reforma e A Civilização. p. 353.
468
Idem. Ibidem.
469
Paulsen. Philosophia Militans. p. 38-39. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A
Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. p. 355.
cessaram de ser luterana. Tanto foge a sua fé da filosofia e a sua
filosofia da fé.470

470
Moehler. Gesammelte Schriften und Aufsaetze. I, 260. In: FRANCA, Leonel. A Igreja, A
Reforma e A Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1958. Nota 38.
8) O Atual Status da Questão de uma
Filosofia Cristã

8.1) Os Racionalistas Puros

Os racionalistas puros consideram o termo filosofia cristã um contra-


senso. A escolástica se lhes apresenta como uma colcha de retalhos. Mal tecida,
esta “colcha” foi elaborada por homens que, ingenuamente ou não, se
apropriaram, indevidamente, do pensamento grego, tentando fazer uma síntese
que, na realidade, era impossível de ser feita. Ora tentando conciliar os seus
dogmas religiosos com à filosofia platônica; ora tentando realizar, não sei que
tipo de combinação canhestra entre aristotelismo e cristianismo, eles tentaram, a
todo custo, fazer a conciliação entre filosofia e religião. Muitas vezes, no bojo
destas tentativas insanas, alguns tentaram levantar a voz, apontando para o fato
de que não se poderia jamais unir mortos que, quando vivos, jamais se
entenderiam: Platão e Aristóteles. A respeito do pensamento medieval, pensam
os racionalistas:

Retalhos de doutrinas gregas mais ou menos canhestramente


costurados a uma teologia, é quase tudo o que os pensadores
cristãos nos deixaram. Ora tomam emprestado de Platão, ora de
Aristóteles, a não ser que, pior ainda, tentem uni-los numa
impossível síntese e, como já dizia João de Salisbury, no século
XII, reconciliar mortos que divergiam incessantemente quando
vivos.471

471
Idem. Ibidem.
Não é difícil imaginar que, para estes, o cristianismo em nada
contribuiu para o progresso do pensamento filosófico da humanidade.472 Um dos
maiores representantes desta linha de pensamento, o historiador da filosofia
Emile Bréhier, formula em termos claros a controvérsia:

Esperamos, pois, mostrar, neste capítulo e nos seguintes, que o


desenvolvimento do pensamento filosófico não foi influenciado
demasiadamente pelo advento do cristianismo, e, para resumir,
nosso pensamento em uma palavra: não há filosofia cristã.473

A resposta à contundência de Bréhier, não demorou a chegar por parte


dos pensadores cristãos. Pensadores como Gilson, Maritain e outros, cada qual a
sua maneira e com as suas nuances, mas ambos unânimes em torno de um
denominador comum, a saber, a presença positiva e sempre influente da fé cristã
sobre a própria história da filosofia, enquanto esta começou a ser construída por
sujeitos nos quais o ato próprio de filosofar não poderia mais se exercer,
prescindo-se das suas convicções religiosas em torno da verdade da Revelação
cristã. Já dizia Ritter, respondendo com veemência à hostilidade racionalista:

Repelindo as acusações parciais assacadas contra o cristianismo e


sua influência na filosofia, sustentamos que não só a religião
cristã não exerceu sobre a filosofia uma ação negativa senão que
lhe comunicou um surto novo, propondo-lhe problemas novos e
dela exigindo novas e mais profundas investigações.474

472
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 7: “(...) portanto, o cristianismo não
contribuiu em nada para enriquecer o patrimônio filosófico da humanidade.”
473
E. Bréhier. História da Filosofia. Tomo 1, fasc. II, p. 207-208. São Paulo: Mestre Jou,
1997. In: ZILLES, Urbano. Fé e Razão no Pensamento Medieval. 2ª ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996. p. 46.
474
H. Ritter. Historie de la Philosophie Chrétienne. T. I, p. 30-31. Trad. Trullard. Paris: 1843.
In: FRANCA, Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio, 1942. p. 193 e 194.
Não é difícil, pois, ainda apreender o pressuposto segundo o qual a
conclusão a que chegaram os racionalistas, do seu ponto de vista, se tornara
perfeitamente inteligível. Ela consiste em estabelecer uma oposição essencial
entre filosofia e religião. Esta oposição, que separa as duas coisas, é a seguinte: a
filosofia pertence à ordem da razão e a religião se estende ao campo do
irracional. Assim como não pode haver acordo entre racionalidade e
irracionalidade; assim como não se pode estabelecer contato entre o racional e o
irracional; assim também, da mesma forma, não pode haver colaboração alguma
entre filosofia e religião ou Revelação. Étienne, aponta para este aspecto do
pensamento racionalista:

Para eles, existe entre a religião e a filosofia uma diferença de


essência, que torna impossível, ulteriormente, qualquer
colaboração entre elas. (...) Ora, a ordem da razão é precisamente
a da filosofia. Há, pois, uma independência essencial da filosofia
em relação a tudo o que não é ela e em particular a esse
irracional que é a Revelação.475

8.2) O Problema Abordado do Ponto de Vista Cristão

Do lado cristão também não há unanimidade, como se poderia esperar.


Mesmo admitindo que, entre nós e os gregos, houve a Revelação e que esta
modificou profundamente o exercício da razão476, a tradição filosófica cristã não
está totalmente concorde em estabelecer os termos em que este encontro exitoso
ocorreu ou possa ocorrer.
Estão de comum acordo sim, em dizer que, após a revelação, não se
pode mais entregar à razão pura como se a revelação não existisse, sob pena de
se cair nos mesmos erros em que caíram Platão e Aristóteles e ainda em outros

475
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 7 (O itálico é nosso).
476
Idem. Ibidem. p. 9: “Ora, é um fato que houve, entre os filósofos gregos e nós, a Revelação
cristã e que ela modificou profundamente as condições nas quais a razão se exerce.”
piores. De modo que, o único modo seguro para se filosofar, sem cair em
contradição, é ter a revelação por guia e procurar, na medida do possível, torná-
la inteligível pela razão. Nisto consiste a filosofia para o cristão: procurar
inteligir a revelação:

De que maneira os que têm essa revelação poderiam filosofar


como se não a tivessem? Os erros de Platão e Aristóteles são
precisamente os erros da razão pura; toda filosofia que pretender
se bastar a si mesma incorrerá neles ou em outros que serão
piores, de sorte que o único método seguro consiste hoje, para
nós, em tomar a revelação como guia a fim de alcançar alguma
inteligência do seu conteúdo, e é essa inteligência da revelação
que é a própria filosofia.477

Entretanto, se até aqui existe algum acordo, daqui para frente começam
as querelas! Elas se iniciam, de fato, quando se resolve explicitar o modo como
se deve entender a sentença fides quaerens intellectum478 em filosofia. A forma
como se compreende esta filiação, na qual a filosofia passa a ser tutelada pela
teologia, eis o fundo do desacordo.
Com efeito, muitos entendem que reduzir a filosofia, pura e
simplesmente, à fórmula fides quaerens intellectum é confundi-la com a
teologia.479 Há de se buscar, por conseguinte, uma outra maneira de se

477
Idem. Ibidem. (Os itálicos são nossos).
478
A fé procura inteligir.
479
Tal confusão nos arrastaria, segundo o célebre medievalista Van Steenberghen, ao
racionalismo hegeliano. Eis os termos veementes, nos quais Steenberghen formula a sua crítica
ao conceito de filosofia cristã: VAN STEENBERGHEN, Fernand. História da Filosofia:
Período Cristão. Lisboa: Gradiva, s.d. p. 169. In: ZILLES, Urbano. Fé e Razão no
Pensamento Medieval. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 47: “Acrescentemos que a
idéia de uma ‘filosofia cristã’ entendida no sentido de um saber que, sem pertencer à teologia,
seria contudo especificamente marcado pelo Cristianismo, é totalmente estranha à tradição cristã
antiga e medieval. Em suma, o único tipo de filosofia que poderia chamar-se ‘cristã’ seria uma
filosofia como a de Hegel, na medida em que transpõe para temas filosóficos puramente
estabelecer a ligação entre fé e razão, que não elimine a autonomia da filosofia.
Como, pois, se pode então colocar esta concórdia entre filosofia e teologia, sem
que isto acarrete na ruína de ambas? Na tentativa de se responder a esta questão,
as escolásticas cristãs se dividem. O problema é formulado da seguinte forma por
Gilson:

Fides quaerens intellectum, eis o princípio de toda especulação


medieval; mas não seria também uma confusão da filosofia com a
teologia, que arruinaria a própria filosofia?480

8.3) Agostinianos e Tomistas

A neo-escolástica de cunho tomista, na tentativa de sanar este


problema, assume, surpreendentemente, parte da posição dos racionalistas. De
fato, para o neotomismo, não houve, em parte alguma da Idade Média, uma
filosofia – diríamos – genuinamente filosófica. Salvo, é claro, a de Santo Tomás
de Aquino:

Foi para escapar desse perigo que certos neo-escolásticos


acharam por bem adotar parcialmente a posição de seus
adversários. Concedendo o princípio, tentam provar que nunca
houve outra filosofia digna desse nome na Idade Média, além da
de são Tomás.481

Se, por um lado, Anselmo e Boaventura, absorveram a filosofia na


teologia, por outro, os averroístas, encerrando suas especulações na razão pura,

racionais os dogmas característicos do Cristianismo: Trindade, encarnação, redenção, etc...


Mas tal maneira de filosofar foi desconhecida durante o período que estudamos e, se tivesse
existido, a Igreja tê-la-ia considerado como uma forma perniciosa de racionalismo.” (O itálico
é nosso).
480
Idem. Ibidem.
481
Idem. Ibidem. p. 10. (O itálico é nosso).
ficaram sujeitos àqueles mesmos erros a que estão propícios todos os que se
recusam a receber qualquer auxílio da Revelação. Ambos fracassaram: uns,
porque acabaram por reduzir a filosofia na teologia; outros, porque
comprometeram o seu filosofar, as suas conclusões não eram tão racionais
quanto pretendiam:

Santo Anselmo e são Boaventura partem da fé, logo se encerram


na teologia. Os averroístas encerram-se na razão, mas renunciam
a aceitar como verdadeiras as conclusões racionais mais
necessárias, logo se excluem da filosofia.482

Só o tomismo, neste quadro, se apresenta como uma verdadeira


filosofia, porque só ele chega a conclusões verdadeiramente filosóficas, por vias
realmente filosóficas. Por meio de um procedimento, também ele, puramente
racional, o tomismo se inclui dentro do que se pode chamar de um espírito
autenticamente filosófico:

Somente o tomismo se oferece como um sistema cujas


conclusões filosóficas são deduzidas de premissas puramente
racionais.483

Poderia ainda se perguntar, mas como fica o acordo entre filosofia e


teologia, entre razão e fé? Este acordo entre razão e fé, entre filosofia e teologia,
para o neotomista, se realiza fundado no pressuposto segundo o qual a verdade
nunca poderá contradizer a verdade. Porquanto, se uma conclusão filosófica é
verdadeira, nunca estará em desacordo com a verdade da fé, pois a verdade só
pode concordar com a verdade. Gilson descreve com agudez o espírito da
filosofia neotomista:

482
Idem. Ibidem.
483
Idem. Ibidem.
Fundada na razão humana, devendo sua verdade unicamente à
evidência dos seus princípios e à exatidão das suas deduções, ela
realiza espontaneamente sua concordância com a fé, sem ter de se
falsear; se ela se achar em concordância com a fé é simplesmente
porque é verdadeira e porque a verdade não poderia contradizer
a verdade.484

A diferença essencial entre um racionalista puro e um tomista reside


então, no fato de que, para o tomista, se houver discordância entre as conclusões,
o primado da fé permanece e o erro deve estar, indubitavelmente, na conclusão
filosófica485:

Sem dúvida, entre um neo-escolástico como esse e um puro


racionalista resta uma diferença fundamental. Para o neo-
escolástico, a fé permanece, e toda discordância entre sua fé e
sua filosofia é um sinal certo de erro filosófico.486

Portanto, a filosofia não acorda com a revelação em virtude de ela ser


cristã, mas sim pelo fato de ela ser racional. Se existe acordo entre fé e filosofia,
este acordo não consiste no fato de uma filosofia ser cristã, mas sim de ela ser
verdadeira. E mais: nem sequer o fato de ela ser verdadeira se deve ao fato de
ela ser cristã, mas tão-somente de ela estar conforme com a reta razão. Se a
filosofia for racional, ela será verdadeira. Gilson sintetiza, de forma muito feliz,
esta posição dos tomistas:

484
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
485
Aliás, parece que no neotomismo, o único recurso legítimo que a revelação pode acrescentar
à razão, em filosofia, é este de apontar-lhe o erro para que ela – a razão – se critique e se
corrija sozinha.
486
Idem. Ibidem. p. 11 (O itálico é nosso).
Se uma filosofia é verdadeira, isso só pode se dever ao fato de ela
ser racional; mas, se ela merece o título de racional, isso não pode
se dever ao fato de ela ser cristã.487

É por nisso que nenhum tomista, que segue esta linha, se sentiria
ofendido se alguém lhe dissesse que a sua filosofia não é uma filosofia cristã,
embora não vá de encontro, evidentemente, a nenhuma das verdades cristãs.
Talvez tal afirmação até lhe soasse como um elogio:

(...) mas que ninguém fique excessivamente surpreso ao ver


alguns deles aceitar sem pestanejar a crítica clássica dos
agostinianos: a filosofia de vocês não tem mais um caráter
intrinsecamente cristão.488

Se Tomás corrigiu Aristóteles, ele o fez racionalmente e unicamente


racionalmente. Assumindo os princípios aristotélicos, Tomás corrigiu alguns,
aprofundou outros, tirando deles todas aquelas conseqüências que Aristóteles
havia tirado. Deste ponto de vista, não existe qualquer intervenção da fé ou da
revelação, nos aperfeiçoamentos que Tomás fez a Aristóteles. O tomismo seria,
desta sorte, apenas um aristotelismo corrigido e completado, exclusivamente pela
razão por Santo Tomás. Entre Tomás e Aristóteles existe apenas um homem
debatendo com outro homem, não lhes é preciso acrescentar nem o adjetivo de
cristão nem o de pagão489:

(...) se o tomismo precisou, completou, depurou o aristotelismo,


nunca o fez apelando para a fé, mas deduzindo de uma maneira
mais correta ou mais completa do que o próprio Aristóteles as
conseqüências implicadas em seus próprios princípios. Em suma,

487
Idem. Ibidem. p. 12.
488
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
489
Idem. Ibidem. p. 13: “(...) as conversações filosóficas são feitas entre homem e homem, e não
entre homem e cristão.”
enquanto se fica dentro da especulação filosófica, o tomismo não
passa de um aristotelismo racionalmente corrigido e
490
judiciosamente completado (...).

No caso de haver desacordo entre uma filosofia e a revelação, não é


porque esta filosofia não é cristã que existe este desacordo, mas porque esta
filosofia não é verdadeiramente uma filosofia, é, antes, uma deturpação desta. Da
mesma forma, se uma filosofia se põe de acordo com os dados da fé, não é
porque ela seja cristã, mas sim porque ela é uma filosofia – no sentido positivo
do termo - e as suas conclusões se baseiam corretamente nos primeiros
princípios da razão. Assim, os tomistas proclamam uma relativa autonomia da
filosofia.
Enquanto os agostinianos não se cansam de salientar a falsidade da
filosofia tomista, acusando-lha de não ser cristã, os tomistas, por outro lado,
nunca aceitaram fundamentar a veracidade da sua filosofia no fato de ela ser
cristã. Em última análise, a verdade filosófica, para um tomista, não está
associada ao fato de ela ser cristã, mas sim à sua racionalidade:

O mais curioso porém não é isso. Assim como certos


agostinianos acusam o tomismo de ser uma falsa filosofia, por
não ser cristã, certos tomistas replicam que, se essa filosofia é
verdadeira, isso não se deve de modo algum ao fato de ela ser
cristã.491

O principal corolário da posição destes “tomistas racionalistas” é a


negação do conceito de filosofia cristã: “A conseqüência lógica de tal atitude é a
negação pura e simples da própria noção de filosofia cristã (...)”.492 Não é a troco
de nada, que os agostinianos – desde o distante século XIII – vem assacando a

490
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
491
Idem. Op. Cit. (O itálico é nosso).
492
Idem. Op. Cit. p. 13.
escola tomista de ter re-introduzido no seio do cristianismo, o próprio
paganismo:

Recordem-se antes de mais nada dos protestos veementes feitos


pelos agostinianos de todos os tempos contra a paganização do
cristianismo pelo tomismo.493

É que, para os agostinianos, uma filosofia só pode ser verdadeira, se


for cristã e, para ser cristã, precisa deixar de ser, ipso facto, de ser uma filosofia
propriamente dita.494 Já para certos tomistas e neotomistas, uma filosofia pode ser
cristã – não contradizer os princípios cristãos – sem precisar ser cristã, ou seja,
sem precisar recorrer à fé cristã. Vejamos a aguçada conclusão de Gilson:

O agostinismo aceita uma filosofia cristã, contanto que ela se


contente de ser cristã e renuncie a ser uma filosofia; o
neotomismo aceita uma filosofia cristã, contanto que se contente
de ser uma filosofia e renuncie a ser cristã.495

Resultado: antes de os tomistas negarem que no agostinismo se


encontre alguma filosofia, são os agostinianos que se adiantaram em dizem,
pelos séculos a fora, que o tomismo não se manteve fiel à tradição cristã:

Se alguns tomistas modernos negam que o agostinismo seja uma


filosofia, os agostinianos da idade Média tomaram-lhe a dianteira
negando que o tomismo fosse fiel à tradição cristã.496

493
Idem. Op. Cit. p. 11.
494
Se, por um lado, é verdade que o neotomismo, em nome da autonomia, elimina o “cristã” da
filosofia, por outro, é igualmente verdadeiro que o agostinismo exclui o conceito de filosofia
para dar lugar à noção cristã do filosofar. Portanto, tentando definir o que seja uma filosofia
cristã, os dois extremos só a tornam indefinível e sem sentido.
495
Idem. Ibidem. p. 14.
496
Idem. Ibidem. p. 11.
8.4) A Solução Tomásica

Concessões feitas de ambos os lados, cada qual cedendo e


reconhecendo os seus excessos e extremismos, ambas as soluções permanecem,
fundamentalmente, verdadeiras. Por conseguinte, a verdadeira solução do
problema estaria no meio-termo.
De fato, não existe – admitamos com os tomistas – uma razão cristã.
Entretanto – estamos também de acordo com os agostinistas – quando dizem que
existe um uso cristão da razão: “Não há razão cristã, mas pode haver um
exercício cristão da razão.”497 Com efeito, se, por um lado, é verdade que a
filosofia não tem religião – como afirmam os tomistas - por outro, também é
igualmente verdadeiro, que ter uma religião não é indiferente para quem filosofe
– segundo acreditam os agostinianos:

Pode ser que, falando abstratamente, a filosofia não tenha


religião, mas tem-se o direito de perguntar se é indiferente que os
filósofos tenham ou não uma.498

De fato, para um cristão, a razão não basta a si mesma: “É um fato,


portanto, para um cristão, que a razão apenas não baste à razão.”499 O que não
significa que a filosofia cristã deva as suas conclusões à Revelação. A filosofia,
propriamente falando - inclusive a cristã - deve unicamente à razão as suas
conclusões. Mas, nem Agostinho, nem tampouco Anselmo, negaram isso:

Que, tomada em si e em absoluto, uma filosofia verdadeira deva


sua verdade unicamente à sua racionalidade, é indiscutível; santo
Anselmo e até santo Agostinho foram os primeiros a dizê-lo.500

497
Idem. Ibidem. p. 17.
498
Idem. Ibidem. p. 51.
499
Idem. Ibidem. p. 42.
500
Idem. Ibidem. p. 51.
Tomando o conceito de filosofia, do ponto de vista estritamente
formal, não se pode, está claro, falar de uma filosofia cristã. A filosofia e Sto.
Tomás, por exemplo, é filosofia, não por ser cristã, mas sim por ser racional:
“(...) por um lado é preciso dizer que, se a filosofia tomista é filosofia, o é
enquanto racional, não enquanto cristã.”501 Destarte, a filosofia só poderá se
manter fiel à sua própria natureza, não em virtude de ser cristã, mas enquanto
depender unicamente da razão. No seu exercício, tanto no que diz respeito aos
métodos, quanto no que toca ao seu conteúdo, todo o seu desenlace deve ser
exclusivamente racional. Daí que,

Resta-nos dizer que o que nos importa de uma filosofia não é que
ela seja cristã, mas que ela seja verdadeira. Ainda uma vez,
quaisquer que sejam as condições de sua formação e do seu
exercício na alma, é da razão que depende a filosofia e, quanto
mais ela será verdadeira, tanto mais será rigorosamente fiel à
própria natureza da filosofia e, se assim posso dizer, fechada
dentro dessa natureza.502

É conditio, portanto, sine qua non, de toda filosofia que se pretenda, de


algum modo, se apresentar como cristã, ser, quanto à sua definição formal,
apenas racional. O Pe. Leonel Franca observa, com precisão, este pressuposto
fundamental:

Enquanto permanecemos nesta esfera da definição formal da


filosofia, claro está que não se pode falar de uma filosofia cristã.
De sua natureza, a filosofia é racional, isto é, humana: a cristãos e

501
Jacques Maritain. Sulla Filosofia Cristiana. Milão: Vita e Pensiero, 1978. pp. 53-55. In:
MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini.
Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999. p. 86.
502
Jacques Maritain. Sulla Filosofia Cristiana. Milão: Vita e Pensiero, 1978. pp. 53-55. In:
MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini.
Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999. p. 86.
gentios dirige-se igualmente e impõe-se pela evidência de seus
métodos racionais de demonstração. Uma filosofia que acolhesse,
por outras vias, verdades inacessíveis aos seus processos
naturais de conhecimento, negar-se-ia a si mesma como filosofia,
destruindo a própria essência.503

Entretanto, pode-se abordar a questão de uma outra perspectiva, não


menos legítima. O homem, sujeito do filosofar, não é um espírito puro, nem uma
mônada fechada em si mesma, ele é, antes, um centro de reações espontâneas,
um ser social, composto de alma e corpo. Além disso, o homem, ator do ato de
filosofar e autor dos diversos sistemas filosóficos, é um sujeito histórico, por isso
mesmo, sujeito, inserido e aberto às diversas influências culturais, entre as quais
se encontra a religião e a fé. E não somente, o homem é, de algum modo, o
construtor da sua própria cultura. Não seria bem humana, pois, uma filosofia que
quisesse prescindir da cultura humana, que negasse, precisamente, o sujeito que
a atua. Por isso, “Apesar de tudo, um cristão pode ser filósofo.”504 Na verdade, é
da própria essência da filosofia não omitir nada. Não nos esqueçamos, pois, que a
filosofia é também um produto da natureza humana. Produto, pois, derivado
exatamente daquela parte mais nobre desta natureza, a saber, a razão.
E a pessoa humana, também é um ser religioso, seu próprio espírito
está aberto, de certa forma, para o infinito. Ora bem, no ocidente, uma das
expressões mais comuns desta religiosidade encontra-se, precisamente, no
cristianismo, que se exprime, ademais, por uma inclinação permanente (Um
habitus) que chamamos fé. Todos estes elementos são constitutivos da própria
pessoa humana. Donde,

(...) se para filosofia ele crê que deva fechar a sua fé num cofre –
isto é, cessar de ser cristão, enquanto é filósofo – mutila-se, coisa

503
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 194.
504
Jacques Maritain. Il Contadino Della Carona. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 91.
verdadeiramente malsã (tanto mais que o filosofar ocupa-lhe a
melhor parte do tempo) e engana-se, visto que estes cofres
fecham sempre muito mal! Mas, se enquanto filosofa, não fecha
a sua fé no cofre, filosofa, não obstante à fé, à medida que a tem.
É melhor termos consciência disso.505

Uma filosofia cristã apresenta-se assim, como um corolário necessário


para a alma do crente. Não se pode não se passar por ridículo, quando se tenta
negar um ato tão pessoal e íntegro quanto o ato de fé, ainda que seja sob o
pretexto de se filosofar. Em outras palavras, ou um cristão pode ser filósofo, não
obstante seja cristão, ou terá que deixar de ser cristão – coisa verdadeiramente
mutiladora – para ser filósofo, pois não há meio-termo, não há como fingir que
não se é cristão, quando se filosofa, pois ambas as atitudes (crer e filosofar)
envolvem toda pessoa. E como acreditamos que a fé não contradiz a razão, não
apostamos que a filosofia reclame uma renúncia do cristianismo, nem que o
cristão tenha que se martirizar, abrindo mão das exigências da sua fé, quando se
põe a filosofar:

Só o erro pode se opor à verdade. A filosofia não pode


contradizer a teologia como a física não pode estar em antítese
com a geometria ou a sociologia com a mortal.506

Com efeito, ou a fé é racional e verdadeira e, por isso, não pode


contradizer a verdade filosófica, ou há sérias razões para pensarmos que uma das
duas, ou a razão filosófica ou a racionalidade da fé, devem ser postas em dúvida.
Trata-se, de fato, de uma decisão radical|:o que se está em jogo é a unidade da
verdade. Embora, dada às limitações do nosso espírito, a alcancemos por
métodos diversos e por enunciados múltiplos – ninguém pode dizer toda verdade

505
Jacques Maritain. Il Contadino Della Carona. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 91. (O itálico é nosso).
506
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 198.
por meio de uma palavra – a verdade, em sua gênese, é una. E a unidade da
verdade, para nós, consiste precisamente nisto: que, pelo menos, uma verdade
não contradiga a outra:

A verdade é uma só: as fontes onde podemos haurí-la, são duas:


uma natural, outra sobrenatural, a razão e a fé. Mas, tanto pelas
evidências naturais como pelas afirmações do dogma atingimos
uma só e a mesma verdade em toda a sua plenitude ontológica.507

Dada estas premissas, resta-nos apenas envidarmos esforços para


explicitar-nos as suas conclusões. Já sabemos que, para a tradição cristã, a fé e a
teologia têm o primado, visto que elas nascem de uma fonte inerrante, Deus. Se
já conhecemos as verdades inabaláveis da revelação, não podemos permitir –
por amor a verdade – que as verdades filosóficas as contradigam, posto que, se
isto acontecer, de forma inequívoca, tal proposição filosófica não será mais que
um paralogismo ou sofisma. É assim que, “uma vez acolhida n’alma, a fé
exercerá naturalmente o papel de princípio regulador extrínseco de atitudes
filosóficas.”508 Com efeito, já temos presente que “Como pensador, o cristão não
poderá chegar a conclusões opostas à sua fé.”509
Logo nos ocorre, uma vez mais a questão: este papel que a fé assume,
de “reguladora” da postura filosófica, não a comprometeria, exatamente
enquanto filosofia? Não, responde Franca, pois, “(...) o dogma não passa a ser
princípio de onde se derivam as conclusões; a autoridade não substitui a
demonstração racional.”510 Segundo a oportuna comparação de Blondel,
acontece nesta mútua colaboração entre fé e razão, filosofia e teologia, o mesmo
que com dois amigos, no qual o primeiro pede ao segundo, para verificar – sem
lhe apontar maiores “porquês” – a operação que este acabara de fazer, pois tivera
a nítida impressão de que pode haver erro. O amigo, que fez a tal operação, por
507
Idem. Ibidem.
508
Idem. Ibidem.
509
Idem. Ibidem.
510
Idem. Ibidem.
sua vez, e em atenção à idoneidade do seu companheiro, por si mesmo e à sua
maneira, corrigi-se, identificando o erro que houvera cometido. Não aqui
escravidão, diz Blondel, mas sim libertação.511. Pois bem, conclui o nosso
filósofo que é

Neste sentido indireto, a filosofia pode beneficiar de uma


atmosfera saneada e de uma vista corrigida pela influência do
catolicismo no que se refere às direções fundamentais do
espírito.512

Se a teologia assim beneficia a filosofia, levando-a sempre, através de


uma auto-crítica salutar, a concluir pela verdade e em detrimento do erro,
porque vedá-la deste auxílio? Sendo ainda, que tal auxílio ocorre, sem que haja
prejuízo de ambos os métodos, porque opor-se a ele? Por que impedir tal apoio
benfazejo, se a fé e o dogma, sem ferir a natureza da própria filosofia, a ajudam a
desapegar-se do erro, indicando-a a verdade oposta? Ainda mais, que a mesma
filosofia não seja nada mais que a busca da verdade, enquanto esta é acessível

511
Maurice Blondel. Le Problème de la Philosophie Catholique. p. 163. In: FRANCA,
Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1942. p.
199: “A simples presença ao lado dela de um outro magistério, vem convida-la a fazer exame de
sua consciência e de sua força; e as contradições que daí podem surgir despertam reflexões
salutares. Não que o filósofo deve pensar por ordem. Quando me engano numa adição,
porventura o amigo, porventura o amigo que me pede de verificar minha operação sem me
explicar o meu erro para deixar-me o cuidado de o descobrir por mim, escraviza ou liberta o
meu pensamento?” (O itálico é nosso). Franca, neste mesmo sentido, nos dá um outro exemplo,
assaz “esclarecedor: Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 200: “Os amigos da
montanha sabem a diferença que há na conquista dos píncaros, entre uma ascenção com guia e
uma ascenção sem guia. O perito das alturas indica os picos acessíveis, aponta os caminhos
mais seguros, denuncia a insídia dos precipícios. O auxílio é de um valor inestimável. Mas
quem sobe com os seus pés e suas energias é o viandante tenaz e dócil.” (O itálico é nosso).
512
Maurice Blondel. Le Problème de la Philosophie Catholique. p. 163. In: FRANCA,
Leonel. A Crise do Mundo Moderno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1942. p.
199.
por via racional? Dever-se-ia elevar então, à dignidade de axioma, a máxima
maritaniana que diz: “A filosofia verdadeiramente cristã (e isto é muito evidente
no próprio Santo Tomás) é assim a filosofia mais pura e mais verdadeiramente
filosófica.”513
Na verdade, o auxílio da fé faz com que o filósofo, desvencilhando-se
do erro, apegue-se unicamente a verdade, dedicando-se assim, integralmente a
ela. Destarte, a fé torna menos longínquo, o ideal que se encontra na razão
fundante de toda filosofia, qual seja, a der ser, por excelência, a ciência da
verdade:

Ela (a fé) encarrega a razão do filósofo à única busca de verdade,


liberando-a da sujeição do mundo e de toda servidão à moda do
tempo. Por isso, o que se chama ‘filosofia cristã’ é uma filosofia
libertada e deve ser chamada filosofia tomada plenariamente
como tal (...).514

Com efeito, não só a fé põe em nosso caminho certos sinais


(‘curvas perigosas’, etc) graças aos quais nosso pequeno guia
interior corre menos riscos, mas sobretudo, auxilia-nos de dentro
a superar impulsos e sonhos irracionais, aos quais cederíamos
com prazer, sem um conforto que venha do mais alto grau da
razão.515

513
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88.
514
Jacques Maritain. Approches sans Entraves. In: MARITAIN, Jacques. Por um
Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São
Paulo, 1999. p. 93.
515
Jacques Maritain. Il Contadino della Caronna. pp. 214-215. In: MARITAIN, Jacques. Por
um Humanismo Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus:
São Paulo, 1999. p. 91 e 92.
Não se ignora que, no passado, as relações entre fé e razão, filosofia e
teologia nem sempre foram honestas. De fato, o processo de tomada de
consciência da autonomia da filosofia frente à teologia e da sua relação com
esta, foi demorado e não sem contradições e exageros e ambos os lados.
Entretanto, as dificuldades existem é para serem resolvidas e não olvidadas.
Ainda hoje, ao raiar da pós-modernidade, a missão que se impõe mais urgente à
filosofia, não é outra, senão é aquela que consiste na tomada de consciência de si
mesma, de qual seja o seu objeto próprio, de como proceder no seu estilo
conciso, e de saber formular em termos convergentes a sua própria essência.
Destarte,

O único meio para a filosofia especulativa exercitar


verdadeiramente a sua autonomia e proceder puramente, segundo
o seu método e o estilo próprio, não é negando a sua
subordinação, mas conhecendo-a, aperfeiçoando-a e
aprofundando a tomada de consciência de si mesma, seja da
própria natureza e das próprias exigências, como de suas
relações com a sabedoria teológica e a sabedoria infusa.516

Em uma palavra, é preciso recuperar o equilíbrio, a plena maturidade


e, finalmente, os frutos maduros, oriundos daquela síntese tomasiana, na qual
urge devamos nos formatar novamente. Portanto, não é negando, mas
entendendo de forma correta, a sua subordinação à sabedoria teológica e infusa,
que a sabedoria filosófica conseguirá alcançar a sua genuína identidade. De fato,
tanto o fideísmo quanto o racionalismo, nada mais são do que uma forma de
compreensão inadequada ou insuficiente, no que toca ao modo destas sabedorias
se relacionarem harmoniosamente:

516
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88. (O itálico é nosso).
Estas (a sabedoria teológica e infusa) a ajudarão a ser ela mesma,
pois que os inconvenientes acidentais lamentados anteriormente
dependiam do fato de que esta tomada de consciência, claramente
manifesta no espírito de Santo Tomás, era imperfeitamente
realizada na cultura de seu tempo.517

Agora bem, para alcançarmos a compreensão adequada entre filosofia


e teologia, será necessário passarmos por aquela distinção que já havíamos
assinalado acima, qual seja, “Uma cousa é a origem pessoal de uma tese, outra o
seu valor ideológico.”518 Com outras palavras, é preciso distinguir, sem separar,
a filosofia do sujeito que filosofa. Da filosofia exige-se, objetivamente, a estrita
racionalidade das suas demonstrações, ou seja, que elas procedam de premissas
necessárias, que possam ser conhecidas, por sua vez, com certeza a partir da
evidência dos primeiros princípios da razão. Como, pois, subjetivamente o
filósofo chegou a uma determinada tese ou postulado – mesmo que o tenha
chegado por vias não exclusivamente racionais – pouco importa. Desde que
consiga provar, de forma apodítica a sua conclusão, fazendo com que ela assim
se imponha à totalidade das inteligências, tal demonstração permanecerá sendo
puramente filosófica. Declina Franca com acuidade:

O filósofo pode beber nas mais variadas fontes a sua primeira


inspiração; o que dele exige, como filósofo, é que não introduza,
na textura de suas demonstrações, elementos alheios aos
princípios e métodos de sua ciência. Se a sua argumentação é
correta e se impõe a universalidade das inteligências, não lhe
indagamos o início psicológico de sua curiosidade fecunda. No

517
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 88. (O parêntese é nosso).
518
Leonel Franca. A Crise do Mundo Moderno. p. 200.
tribunal da filosofia, uma tese só responde pela sua consistência
interna e pelo valor das provas que a justificam.519

Já se vê que, quando bem compreendida, a filosofia cristã não só é


possível como legítima, pois rejeitar uma tese genuinamente racional – desde
que ela assim se mostre – apenas por causa de seus pressupostos psicológicos,
culturais ou religiosos, revela-se como uma forma lamentável de preconceito,
que só empobrece o patrimônio filosófico. Colocada desta maneira, a autêntica
filosofia cristã torna-se, além de tudo, universal, pois, conservando o caráter
estritamente racional do seu conteúdo, ela consegue abrir-se em diálogo com
todas as demais formas de filosofia, inclusive àquelas inspiradas num clima de
incredulidade. O legítimo filósofo cristão não se fecha, pois, as contribuições das
demais filosofias, tampouco lhes recusa aceitar as contribuições. Bem ao
contrário, tendo em comum a racionalidade, ambos, crente e não-crente, podem
iniciar uma interlocução cheia de significados, sem lugar para blocos
monolíticos:

Se assim se põem as coisas, como dissemos, o filósofo não crente


pode compreender que os frutos da razão, nascidos no clima da
fé, e o filósofo cristão que os frutos da razão, nascidos no clima
da incredulidade (ou de outra crença), têm um sabor intelectivo
do qual a inteligência de uns e de outros pode aproveitar.520

519
Idem. Ibidem. (O itálico é nosso).
520
Jacques Maritain. Sicienza e Saggezza. In: MARITAIN, Jacques. Por um Humanismo
Cristão: Textos Seletos. Trad. Gemma Scardini. Rev. H. Dalbosco. Paulus: São Paulo, 1999.
p. 90.
8.5) Fides Quaerens Intellectum em Filosofia (O Método da Filosofia
Cristã)

Não devemos ignorar que, tanto em filosofia quanto em teologia, o fim


da sabedoria cristã é o mesmo: fides quaerens intellectum (A fé que procura à
inteligência). Tornar a verdade crida em verdade sabida, eis o itinerário, tanto
da teologia – explicando o dado revelado e as suas virtuais conexões com outros
dados revelados ou com outras verdades naturais, mas sem querer demonstrá-lo
– quanto da filosofia cristã, que é composta do corpo de verdades essencialmente
racionais contidas, todavia, na Revelação:

(...) esse esforço da verdade acreditada para se transformar em


verdade sabida é, verdadeiramente, a vida da sabedoria cristã, e
o corpo das verdades racionais que esse esforço nos proporciona
é a própria filosofia cristã.521

No entanto, a aplicação desta finalidade (fides quaerens intellectum)


se dá, para nós, por meio de métodos diversos. Destarte, dentro do corpo de
verdades contidas na revelação, descobrem-se algumas que, embora descobertas
na própria revelação, podem ser conhecidas, de per si, a parte da própria
revelação. O corpo da filosofia cristã é formado, precisamente, por estas
verdades racionais que, não obstante reveladas quanto ao modo, são
naturalmente cognoscíveis:

O conteúdo da filosofia cristã é, portanto, o corpo das verdades


racionais que foram descobertas, aprofundadas ou simplesmente
salvaguardadas, graças à ajuda que a revelação deu à razão.522

521
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 42.
522
Idem. Ibidem. p. 42 e 43.
Cabe ao filósofo cristão, ao tomar contato com o dado revelado,
discernir se ele é ou não cognoscível unicamente pela razão. O primeiro trabalho
do uso cristão da razão é, portanto, investigar o que, na revelação é, de per si,
inteligível à razão. Uma vez discriminado certo número de verdades que a razão
pode por si só conhecer, deve o filósofo proceder de forma unicamente racional,
para alcançá-las novamente, só que desta vez como objetos da sua ciência. Na
verdade, a fé entra aqui como uma luz para a razão, fazendo-a enxergar uma
série de respostas que, ela mesma – a razão – poderá, doravante, conquistar
sozinha. Aquele, pois, que reconhecer com humildade, que o objeto de seu
estudo, no qual se aplica a sua filosofia, ele o deve à luz da fé, pode ser chamado
de filósofo cristão e a sua filosofia de filosofia cristã. Étienne é muito claro neste
ponto:

O que o filósofo cristão se pergunta é simplesmente se, entre as


proposições que ele crê verdadeiras, não há um certo número que
sua razão poderia saber verdadeiras. (...) mas, assim que encontra
entre as suas crenças verdades que podem se tornar objetos de
ciência, ele se torna filósofo, e, se é à fé cristã que ele deve essas
novas luzes filosóficas, ele se torna um filósofo cristão.523

O filósofo cristão é aquele que escolhe os seus problemas filosóficos à


luz da revelação cristã.524 Ora, como a revelação cristã trata da salvação do
homem por Deus, fica claro que a sua projeção na filosofia abarca apenas certo
número de problemas, aliás, muito bem definidos: Deus e a sua natureza; o
homem: sua alma e natureza e o seu destino:

Como a revelação cristã nos ensina somente as verdades


necessárias à salvação, sua influência só pôde se estender às

523
Idem. Ibidem. p. 44.
524
Idem. Ibidem. p. 46: “(...) o filósofo cristão é um homem que realiza uma escolha entre os
problemas filosóficos.”
partes da filosofia que concernem à existência de Deus e sua
natureza, à origem da nossa alma, sua natureza e seu destino.525

Muitas vezes – mas nem sempre – podemos reconhecer um filósofo


cristão pelos assuntos que lhe interessam ou por aqueles em que ele realmente se
destaca. Sem desprezar os méritos indiscutíveis de Tomás de Aquino como
comentador de Aristóteles, é preciso notar que, se houve um lugar, em toda a
filosofia de Tomás, que ele tenha efetivamente ultrapassado e superado o seu
mestre grego, este foi o da sua teologia natural. Lá se encontra o que há de mais
original e criativo na filosofia do Aquinatense:

Não se trata de diminuir seus méritos como intérprete e


comentador de Aristóteles, mas não é aí que ele é o maior, e sim
nas visões geniais pelas quais, prolongando o esforço de
Aristóteles, ele o supera. Essas visões, é quase sempre a propósito
de Deus, da alma ou da relação da alma com Deus que vamos
encontrá-las.526

O real é inesgotável, impossível é fazer uma síntese dele, na sua


totalidade.527 A fé, no entanto, ao filósofo cristão, possibilita fazer esta síntese do
real, porque o simplifica. Uma filosofia norteada pela fé pode selecionar o que,
de fato, constitui uma síntese original da realidade: Deus, o homem, e as
relações do homem com Deus:

Numa palavra, em todos os filósofos cristãos dignos deste nome,


a fé exerce uma influência simplificadora e sua originalidade se
manifesta sobretudo na zona diretamente submetida à influência

525
Idem. Ibidem.
526
Idem. Ibidem. p. 47.
527
Idem. Ibidem: “Ora, o real é inesgotável e, por conseguinte, a tentativa de sintetizá-lo em
princípios é um empreendimento praticamente impossível.”
da fé: doutrina de Deus, do homem e das suas relações com
Deus.528

Desta forma, uma filosofia pode dizer-se cristã quando, muito embora
se mantendo nitidamente distinta da teologia, não quer abrir mão do auxílio da
revelação cristã, para escolher o que lhe interessa considerar. Atenuando os
radicalismos opostos das duas escolas – agostiniana e neotomista – Gilson
chega, finalmente, a uma definição de filosofia cristã, que consegue, ao mesmo
tempo, abarcar um caráter estritamente filosófico, salvaguardando toda a sua
integridade exclusivamente racional e preservar o âmbito em que o auxílio da
revelação cristã se faz indispensável:

Chamo, pois, de filosofia cristã toda filosofia que, embora


distinga formalmente as duas ordens, considere a revelação
cristã uma auxiliar indispensável da razão.529

528
Idem. Ibidem.
529
Idem. Ibidem. p. 45.
Conclusão

Conforme pudemos verificar, com o advento da renascença do século


XV e da reforma protestante do século seguinte, a obra dos medievais –
sobretudo a de Tomás e Alberto – passou a ser duramente criticada. Já tivemos o
ensejo de acima expor as colocações agressivas a ela feitas por Erasmo e Lutero.
Acusavam, pois, se bem que por caminhos distintos – (Lutero imaginava que a
filosofia era uma meretriz do Diabo enquanto que Erasmo acreditava que a
verdadeira filosofia era a philosophia christi, que ele confundia com a própria
religião e teologia cristã) – a filosofia medieval, de haver descristianizado a
filosofia e retornado, por isso mesmo, ao paganismo. Reclamavam todos estes,
de acordo com o que vimos, da filosofia medieval não tratar, senão de questões
estranhas à salvação do homem, como unidade ou pluralidade de formas,
matéria-prima, etc. Os renascentistas, por exemplo, queriam ao mesmo tempo,
uma filosofia rigorosamente racional, mas que tratasse, não obstante, de questões
religiosas irredutíveis à razão pura. Já os protestantes, acusavam os medievais
de não terem tido sequer uma teologia ou uma religião, mas apenas uma
corrupção destas, dado o recurso constante que faziam à famigerada filosofia
grega. Com relação aos segundos, com que pese o ódio gratuito que nutrem pela
mais nobre das faculdades humanas, só confirmam, de alguma forma, a filiação
dos medievais para com os antigos. Já em relação à atitude dos primeiros, bem
observa Gilson:

Esses insatisfeitos não encontram na filosofia medieval o que


procuram, mas não encontrarão tampouco em si mesmo, porque
isso que procuram não pode existir. Eles quereriam uma filosofia
que fosse verdadeiramente uma filosofia, isto é, pura e
rigorosamente racional, mas em que se integrariam todas as
experiências transcendentes e propriamente sobrenaturais, que
são o próprio do cristianismo e constituem a sua essência
religiosa.530

Entretanto, não nos faltou também ocasião de notar, que tal


procedimento (de distinguir filosofia de religião e teologia) por parte dos
medievais – maximamente em Alberto e Tomás – longe de ter como
característica paganizar a filosofia ou enfraquecer a teologia cristã, teve por
objetivo preservar a religião cristã enquanto religião e a filosofia enquanto
filosofia. De fato, percebemos que até que o pensamento de Alberto e Tomás
fosse elaborado, nenhuma síntese houvera logrado distinguir nitidamente, as
duas ordens do conhecimento (filosofia e teologia), que se viam, ipso facto,
constantemente ameaçadas uma pela outra. Com efeito, ora era a filosofia que se
via ameaçada de ser absorvida pela teologia, ora era a teologia que se via
comprometida a ser reduzida à dialética filosófica. 531 Tudo isto demonstra, pois,
que as críticas de renascentistas e reformadores se encontram inquinadas de um
desconhecimento notável do que seja filosofia e do que seja religião. As
invectivas deles pressupõem, pois, uma confusão entre as duas ordens ou,
simplesmente, a supressão de uma delas. Gilson expõe o drama, resumindo-o
nos seguintes termos:

Pedir que a parte, permanecendo fiel à sua essência, absorva o


todo é destruir ao mesmo tempo o todo e a parte. Logo, quando se
acusa a filosofia da Idade Média de não ter sido cristã, porque
não se vê nada nas suas especulações sobre a natureza, a matéria

530
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 509. (O itálico é nosso).
531
Luiz Jean Lauand. O Cristianismo e a Filosofia Pagã. In: Cultura e Educação na Idade
Média: Textos do Século V ao XIII. Trad. Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes,
1998. p. 254: “Na verdade, todo pensamento medieval do Ocidente esforçar-se-á por estabelecer
os termos do relacionamento entre fides e ratio, entre fé e razão: ora enfatizando um dos
extremos, ora o outro, indo do ‘racionalismo’ dos ‘dialéticos’ ao ‘fideísmo’, e passando pela
formulações altamente equilibradas e harmônicas, como a proposta por Alberto Magno-Tomás
de Aquino.”
primeira, a unidade ou pluralidade das formas que seja de um
interesse essencial para a obra da salvação, ou, inversamente,
porque o que é de um interesse essencial para a obra da salvação
parece não ter encontrado lugar nela, mostra-se simplesmente que
não se entende nem o que é o cristianismo, nem o que é a
filosofia.532

Por outro lado, os racionalistas dos séculos XVIII e seguintes,


aleivosamente, atacam os medievais, precisamente do contrário. Para estes, o
medievo nunca teria tido uma filosofia, mas apenas uma corruptela desta. Na
verdade, toda Idade Média não havia senão conseguido suprimir a especulação
filosófica na teológica, contaminado aquela com esta. Isto, quando os dois –
racionalistas e protestantes – não uniam – “convenientemente” com os seus
escusos interesses, para - por meio de uma “apologética” incompreensível - salvo
se for entendida como um preconceito insustentável - sustentarem as duas coisas
ao mesmo tempo. No entanto, como aponta argutamente Gilson, é exatamente a
inconsistência destas duas teses que – quando unidas – se excluem mutuamente,
que atestam a existência de uma considerável e respeitável obra filosófica na
Idade Média e isto, sem deixar de reconhecer, toda a importância e
preponderância da esfera religiosa neste mesmo pensamento. Em outras
palavras, os renascentistas e protestantes, ao olharem para filosofia medieval, e
afirmarem que ela nada tem de cristã, por prescindir dos mistérios da fé, revelam
apenas a pureza racional desta. Os racionalistas, por seu lado, num erro crasso
de avaliação, ao tomarem por filosofia medieval a teologia medieval, tão-
somente conseguem confirmar que a cristandade medieval, por mais que tenha
tido uma sóbria filosofia, nunca deixou de ser - como verberam os reformados-
lúcida e francamente cristã. Ouçamos Étienne, nas suas próprias palavras, a
respeito do pensamento medieval:

532
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 511.
Que o critiquem por ter dissolvido a essência da filosofia para
deixá-la perder-se na da religião, dá para entender. Que,
inversamente, o critiquem por ter deixado a essência do
cristianismo perder-se para reduzi-lo a não mais que uma
filosofia, esta também é uma objeção inteligível. O que deixa de
sê-lo é objetar-lhe ambas as coisas ao mesmo tempo. Se os
pensadores da Idade Média foram tão filósofos que chegaram a
comprometer a essência do cristianismo, como não levar a sério
seus sistemas e com que direito eliminá-los da história da
filosofia? Mas se, ao contrário, eles sacrificaram a filosofia às
exigências religiosas do cristianismo, como acusá-los de não
terem sido cristãos?533

O que afirmamos, é que os medievais, ao filosofarem, não


prescindiram dos gregos. Nem tampouco os corromperam, traindo,
supostamente, a “pureza” da racionalidade dos seus sistemas filosóficos. Ao
contrário, partindo das conquistas inegáveis de Platão e Aristóteles, os
pensadores cristãos chegaram a conclusões que, muito embora fundadas nas
premissas destes filósofos, eles jamais tiraram. Houve, por conseguinte, um real
progresso e, no dizer de Gilson, isto se deveu positiva e diretamente, ao
influxo534 que a Revelação cristã exerceu na doutrina destes “teólogos-
filosofantes”:

Inspirando-se em Aristóteles e Platão, acolhendo seus princípios,


os filósofos cristãos tiram deles conseqüências em que nem
Platão nem Aristóteles nunca haviam pensado, melhor dizendo,

533
Idem. Ibidem. p. 505. (O itálico é nosso).
534
Influxo, bem entendido, que não deixa de ser extrínseco ao próprio filosofar, isto é, que não
comprometera em nada a textura racional de suas argumentações e nem a articulação,
genuinamente filosófica, esboçada pelas novas teses.
nunca teriam podido encontrar lugar em seus sistemas sem
arruiná-los.535

A revelação bíblica, de tal modo se impôs no universo cultural da


cultura ocidental que, após o surgimento do cristianismo, se tornou impossível -
a quaisquer sistemas que fossem surgindo – prescindir da sua influência.
Doravante, três são as opções do filósofo no mundo pós-cristianismo: ou filosofar
na fé, ou filosofar distinguindo fé e razão, ou, ainda, filosofar fora da fé e /ou
contra a fé, mas nunca mais será possível filosofar, ignorando a fé ou a religião
cristã. Discrimina Reale, tal “horizonte intransponível”:

Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, serão possíveis


só estas posições:
a) filosofar na fé, ou seja, crendo;
b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da
“fé”, embora crendo;
c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo.
535
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 502. Este arruiná-los não significa,
pois, compromete-los na sua racionalidade, o que seria verdadeiramente negá-los ou abandoná-
los, mas sim dar-lhes uma evolução, que seus autores realmente não haviam previsto, de tal
modo, que tais sistemas, não poderiam resistir a estas modificações, sem se transformarem-se,
ao mesmo tempo, em novas sínteses. É o risco da originalidade e de toda mudança, mas sem ela
o que seria da história da filosofia? Talvez, uma eterna antigüidade! Negando a possibilidade
de autores inaugurarem novas formas de pensar a totalidade, não se nega apenas a iniciativa da
filosofia medieval, mas o próprio espírito criativo, presente em toda história da filosofia. Nega-
se, enfim, aquele misto de originalidade e continuidade, que continuamente transfigura o
universo do pensamento filosófico. Enfim, como diz Gilson: Idem. Ibidem. p. 503: “Seria o
mesmo que dizer que Malebranche e Espinosa não são filósofos porque, apresentando-se como
seguidores de Descartes, tiraram do seu método conseqüências que ele próprio não havia
previsto.” E ainda: Idem. Ibidem. p. 519: “Logo, não se deve criticá-los (os medievais) ao
mesmo tempo por terem sem cessar o nome de Aristóteles na boca e fazê-lo constantemente
dizer o que não disse. Eles nunca se fizeram de historiadores, só quiseram ser filósofos e, a não
ser que se exija, não permita Deus!, que a filosofia seja exclusivamente povoada de
historiadores da filosofia, a própria história não tem nada a lhes censurar.” (O parêntese é nosso)
Não será mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar
como se a mensagem bíblica nunca tivesse feito ingresso na
história. Por essa razão, o horizonte bíblico permanece um
horizonte estruturalmente instransponível, no sentido que
esclarecemos, isto é, no sentido de um horizonte para além do
qual já não podemos nos colocar, tanto quem crê como quem não
crê.536

Deste ponto de vista histórico-cultural podemos dizer – com toda


certeza – que tal foi à influência e o impacto da religião cristã, que ela se
estende, sem exceção, de Descartes a Kant, de Hegel a Nietzsche:

Sobre o direito ao título de ‘cristã’ não existe, do ponto de vista


histórico, nenhuma dificuldade; neste sentido são cristãs não só a
filosofia de Tomás, mas também todas as filosofias que surgiram
no Ocidente depois da vinda de Cristo, como as de Descartes,
Kant, Hegel, Nietzsche e Marx.537

Gilson vai ainda mais longe e chega a esboçar o quadro desastroso, ao


qual o historiador se expõe quando afirma, com pertinácia, que qualquer que
seja a influência da religião sobre a filosofia, esta será sempre nociva e ilegítima,
comprometendo a abordagem filosófica ou mesmo eliminando-a. Tal
historiador, a sustentar com contumácia esta tese, tirando dela, com dura e
ferrenha lógica, todas as conclusões cabíveis, certamente conseguiria colocar de
fora da filosofia, toda a especulação filosófica ocorrida na patrística e no
medievo. Contudo, com isso também não pouparia os sistemas filosóficos
subseqüentes. Não nos cabe desenvolver o tema aqui, mas, de fato, cuidou Gilson
também de demonstrar, o quanto os sistemas filosóficos da modernidade devem
aos autores medievais e a religião cristã enquanto tal e isto, muito mais do que

536
Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. p. 9.
537
Battista Mondin. Curso de Filosofia: Os Filósofos do Ocidente Vol 3. p. 141.
se costuma imaginar. De toda forma, valerá muito mais acompanhar na tinta da
sua própria pena, ao menos em suas linhas gerais, a argumentação de Étienne:

Em nome do postulado que contesto, poder-se-á recusar aos


sistemas elaborados pelos pensadores da Idade Média o título de
filosofias, mas se ficar estabelecido que suas posições principais
pertencem a eles mesmos e não são uma simples herança dos
gregos, será necessário reconhecer ao mesmo tempo que tudo o
que os metafísicos clássicos herdaram da Idade Média, a partir do
século XVII, basta para colocá-los ipso facto fora da filosofia.
Não bastará que uma tese metafísica tenha esquecido a sua
origem religiosa para se tornar racional. Será preciso portanto
expulsar da filosofia, ao mesmo tempo que da sua história, junto
com o Deus de Descartes, o de Leibniz, de Malebranche, de
Espinosa e de Kant, porque, tanto quanto o de são Tomás, eles
não existiriam sem o do Antigo e do Novo Testamento. Augusto
Contem teria razão então: a metafísica dos modernos não seria
mais que a sombra projetada da teologia medieval e poder-se-ia,
sem inconveniente maior, relegar uma e outra a um ramo da
arqueologia mental, desde quando foram superadas. O que não
seria franco é pretender que o valor das metafísicas modernas se
deve ao fato de estarem separadas de toda inspiração religiosa,
quando elas nasceram dela e dela se nutrem, e recusar-se a
considerar as metafísicas da Idade Média, porque elas têm a
honestidade de confessar que nasceram e se nutrem dela.538

538
Étienne Gilson. O Espírito da Filosofia Medieval. p. 500.
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