Você está na página 1de 579

CENTELHAS DE

TRANSFORMAÇÕES

PAULO FREIRE & RAYMOND WILLIAMS


Alexandro Henrique Paixão
Débora Mazza
Nima I. Spigolon
(org.)

CENTELHAS DE
TRANSFORMAÇÕES

PAULO FREIRE & RAYMOND WILLIAMS

1a edição | 2021
Conselho Editorial Acadêmico Edição
João Paulo Vani
Profa. Dra. Carla Alexandra Ferreira MTB 60.596/SP
UFSCar — Humanas
Foto da capa
Prof. Dr. Creso Machado Lopes Nayara Dalossi
UFAC – Saúde
Capa
Prof. Dr. Ivan Nunes Silva
HN Editora & Publieditorial
USP — Exatas
Produção gráfica e diagramação
Prof. Dr. João Carlos da Rocha Medrado
HN Editora & Publieditorial
UFG – Exatas

Prof. Dr. Kazuo Kawano Nagamine


FAMERP — Saúde

Profa. Dra. Maria Tercília Vilela de A. Oliveira


UNESP — Biológicas

Profa. Dra. Romélia Pinheiro Gonçalves


UFC – Biológicas
Direitos reservados a:

HN Editora
Avenida Juscelino Kubitschek de Oliveira,
5000, sala 512, Iguatemi Business
São José do Rio Preto (SP) – CEP 15093-340

www.editorahn.com.br

A383

Centelhas de Transformações - Paulo Freire e Raymond Williams /


organização Alexandro H. Paixão; Débora Mazza; Nima I. Spigolon. —
1. ed. — São José do Rio Preto, SP: HN, 2021.

604 p. 23 cm. (Produção acadêmica)

ISBN 978-65-86731-15-6

1. Sociologia. 2. Pedagogia. 3. Formação de Professores. I. Paixão,


Alexandro H. II. Mazza, Débora. III. Spigolon, Nima I.

CDD: 370.71
CDU: 377.8
SUMÁRIO
Apresentação
Centelhas de Transformações. Paulo Freire & 11
Raymond Williams
Alexandro Henrique Paixão; Débora Mazza

PAULO FREIRE

I - Revisitando a obra de Paulo Freire

Procurando situar a produção de Freire no 25


contexto de pesquisas socialmente implicadas
Luiza Cortesão

Os 100 anos dos “múltiplos” PAULO FREIRE 45


Afonso Scocuglia

Freire escrevendo cartas à mão: pedagogia, 75


memória e oratura
Afrânio Mendes Catani

A ação cultural dialógica enquanto estratégia de 103


resistência política
Bruno Botelho Costa; Katia Cristina Norões

A (in)completude da práxis no pensamento 129


freireano
Camila Lima Coimbra
II – Experiências de educação a partir do
contributo de Paulo Freire

A Pedagogia do Oprimido em movimento: leituras 161


de Paulo Freire no RS
Danilo R. Streck; Ana Lúcia Souza de Freitas;
Thiago Ingrassia Pereira

Paulo Freire e o pensamento educacional 191


brasileiro.
Débora Mazza

La propuesta de título para el capítulo es: 223


Pedagogo y artista social
Ramón Flecha

III - Diálogos com Paulo Freire

Caminhando com Freire: Inspiração, criação e 243


partilha em busca de lugar
Eunice Macedo

Elza e Paulo Freire: na Luta pela Libertação, 277


Revolução e Educação em África
Nima I. Spigolon

Ensino e Aprendizagem Dialógica. A Pedagogia de 305


Paulo Freire: Usos e Disseminação
Staffan Selander
Afinidades eletivas: Paulo Freire e Raymond
Williams

Raça, Religião e Práticas Contra-hegemônicas em 325


Empson, Williams e Freire
Hywel Dix

RAYMOND WILLIAMS

I - Legados de Raymond Williams: educação,


estudos culturais, marxismo e direitos
humanos

O Legado de Raymond Williams 361


Maria Elisa Cevasco

Comunidade Nacional e Humanidade Global 383


Daniel Williams

Linguagem e Determinismo cultural: Diálogos 419


críticos de Raymond Williams
Ana Lúcia Teixeira

Raymond Williams e Métodos de Ensino de 443


Literatura e Cinema na Educação de Adultos
Alexandro Henrique Paixão; Anderson Ricardo
Trevisan
II - Raymond Williams: política e crítica

Trabalhando a Terra em Campo Minado: 473


Raymond Williams político
Ugo Rivetti

Um capítulo fora de lugar? Tragédia Moderna e a 499


Sociologia do Drama em Raymond Williams
José Afonso Chaves

III – Raymond Williams: Diálogos

Radicalismos em debate: uma Sociologia dos 521


Intelectuais a partir de Raymond Williams e
Antonio Candido
Enio Passiani

Os Lugares do Literário em o Campo e a Cidade 545


e na Crítica Literária Brasileira da década de
1970
Jefferson Agostini Mello

Luto e Esperança: Florestan Fernandes, Estrutura 569


de Sentimentos e o Exílio Canadense
Adelia Miglievich-Ribeiro; Eliane Veras Soares
CENTELHAS DE
TRANSFORMAÇÕES
PAULO FREIRE & RAYMOND WILLIAMS

Alexandro Henrique Paixão e Débora Mazza

Quando [algo] está para nascer, a faísca começa a cair.... A


partir desse momento, tudo o que você fizer contará, cada
pensamento e cada ato. No entanto, eles não servirão para
te castigar ou premiar depois, mas porque constituirão seu
mundo. (TOKARCZUK, 2019, p. 201)

Escolhemos iniciar a apresentação deste livro com esse trecho


do romance Sobre os ossos dos mortos, da autora Olga Tokarczuk 11
(2009), pensando naquilo que o próprio título e o excerto evocam

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


em termos de sentimentos e palavras: vivemos uma época eclipsa-
da e somos sobreviventes em mundo escorado “sobre os ossos [de
milhares de] mortos.” Acreditamos que uma faísca ou uma centelha
de ideias possam ser vertidas sobre nós e se converter em pensa-
mentos e atos. Porém, não para nos castigar ou nos salvar, mas para
nos ajudar a sonhar, a compreender, para, assim, podermos agir
sobre as crises, turbulências e catástrofes de nossos dias, do pas-
sado e do presente. É por meio dessa metáfora da faísca que que-
remos simbolizar para os leitores o que significam os qualificativos
“centelhas” e “transformações” que escolhemos para intitular este
conjunto de capítulos dedicados ao estudo da vida e obra de Paulo
Freire e Raymond Williams, em seus centenários de nascimento. É
por meio de “...cada pensamento e cada ato”, de Freire e Williams,
que nós, seus intérpretes e leitores, pretendemos constituir nosso
mundo atual.
Trata-se de centelhas de transformações espalhadas por Paulo
Freire e Raymond Williams neste ano em que comemoramos o cen-
tenário desses dois grandes intelectuais conhecidos mundialmente,
graças a suas ideias e práticas concretizadas em diferentes espaços
de aprendizagem e ação. As palavras de ambos formaram gerações
de leitores ao longo de décadas.
Ambos partem de territórios periféricos em relação a seus ce-
nários nacionais: Paulo Freire de Recife, Pernambuco, Nordeste,
Brasil, e Raymond Williams de Llandfihangel Crucorney, vilarejo
rural, País de Gales, Grã-Bretanha. Eles alçaram projetar suas ideias
e obras para o mundo, permanecendo comprometidos com a tenta-
tiva de compreensão dos processos de formação de suas socieda-
des, as necessidades das classes populares, o universo sociocultu-
ral dos grupos oprimidos, as injunções da sociedade moderna e o
papel emancipador que a educação e a escola poderiam promover
como pequenas ilhas insuladas no vasto oceano das práticas cultu-
rais que conferem sentido, relações de pertencimento, consciência
de classe, capacidade de tomada de posição e, quem sabe, centelhas
12 de transformação do real.
Periferia é um espaço geográfico, mas é também um conceito,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

uma ideia que remete a condições históricas, políticas, econômicas


e sociais delimitadas, as quais podem ser aceitas, questionadas e
ter seus sentidos alargados e dilatados. Assim, periferia torna-se
uma realidade concreta, um cenário imaginado e uma formulação
narrativa disputável, que resulta em enfrentamentos, mais ou me-
nos tensos, que explicitam e elidem ideais universais de moder-
nidade, modelos institucionais, processos heterogêneos e atores
que ocupam posições diferentes e desiguais no campo de práticas
e ideias traduzidas, travestidas e transformadas em escalas locais,
nacionais e internacionais (CHAGURI; MEDEIROS, 2018).
Paulo Freire nasceu em 1921, oriundo de uma família cujo pai
foi oficial da polícia militar, comerciante, marceneiro e a mãe uma
doméstica que, em decorrência da crise de 1929, passou por pro-
cessos de mobilidade descendente, exigindo sua inserção precoce
no mundo do trabalho para colaborar com o orçamento familiar e
custear seus estudos. Como parte de uma geração, mergulhou nas
veias profundas da América Latina e da cultura popular visando a
reverter a geografia da fome social, política e econômica da região
com bandeiras que acolhiam ações reformistas de mitigação da
miséria e da pobreza, projetos liberais, desenvolvimentistas, urba-
nos e industriais, além de propostas libertárias e revolucionárias
de rupturas, realinhamentos e redefinições dos rumos e dos ritmos
das transformações. Paulo foi contaminado pelo liberalismo euro-
peu que preconizava os ideais de liberdade de mercado, igualdade
perante a lei e democracia política representativa. Fiou-se também
no iluminismo europeu, que entendia que, por meio da dissemi-
nação do conhecimento, alcançaríamos sociedades que questio-
nassem crescentemente a ortodoxia e o obscurantismo religioso,
e adotassem a tolerância, a fraternidade, o progresso humano e o
método científico como atributos universais.
Assim, ele foi afetado pelos abismos que separavam a dramati-
cidade desfavorável e hostil do ambiente sociopolítico e econômico
nacional e latino-americano, e o horizonte trazido de países dis-
tantes que acenavam para outras formas de vida, outros desenhos 13
institucionais e novas visões de mundo. De certo modo, podemos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


sugerir que Paulo era um desterrado em sua própria terra ao se
permitir ser impregnado por ideais distantes e externos de um mo-
delo de modernidade que descarrilhava nos trilhos da realidade na-
cional (HOLANDA, 1995).
Paulo Freire investiu na área da educação popular e no esforço
de erradicação do analfabetismo de adultos como possibilidade de
tomada de consciência sobre a realidade, reconhecimento da con-
dição de opressão e capacidade de organização da ação coletiva.
Dessa forma, lidando com o modesto “tic tac” de nosso dia a dia, a
cultura, a educação, a escola, os intelectuais e os/as professores/as
— como matéria viva das práticas sociais —, ordenou como pôde as
questões mundiais, tratando diretamente a dramaticidade de nos-
sas questões nacionais (SCHWARZ, 1992).
Nesse horizonte, Paulo Freire é um semióforo que antecipa, vai à
frente e comparece como força material e simbólica, que pode ser
inventado, desinventado, amado, odiado, construído e desconstruí-
do em muitos momentos do Brasil moderno. Assim, os textos reuni-
dos nesta coletânea podem parecer, para alguns, “ideias fora do lu-
gar” que induziram práticas socioeducacionais emancipatórias em
cenários, quase sempre, “impolíticos e abomináveis” (SCHWARZ,
1992); para outros, eles comparecem como tentativas de contar e
recontar ocorrências pontuais que podem ser entendidas como le-
vantes, insurgências e revoluções (imaginárias ou não), nacionais
e mundiais; para outros, como fantasmas que assombram os pe-
sadelos do tempo presente. Em todos, Paulo se vincula a um Brasil
querendo contar, recontar ou reinventar sua história com mais ou
menos desatino, conforme os interesses e as necessidades de uma
inserção peculiar na modernidade que indagava saber “quem so-
mos, onde estamos e para onde vamos”, apostando que ainda po-
demos nos tornar “irreconhecivelmente inteligentes.” (ALAMBERT,
2020, p. 12).
Assim, a parte I “Revisitando a obra de Paulo Freire” reúne textos
em forma de capítulos. O de Luiza Cortesão busca situar a produ-
14 ção do autor no contexto latino-americano e europeu de pesquisas
participantes socialmente implicadas. O de Afonso Celso Scocuglia
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

indica os múltiplos sujeitos que compõem Paulo Freire, que se des-


dobraram nestes 100 anos. O de Afrânio Mendes Catani explora
o hábito de Paulo e outros intelectuais de escrever textos à mão,
aproximando a pedagogia, a memória e a tradição oral. O de Bruno
Botelho Costa e Katia Cristina Norões entende a ação cultural como
estratégia de resistência política. E o de Camila Lima Coimbra apre-
senta o conceito de incompletude presente na práxis e no pensa-
mento freireano.
A parte II, “Experiências de educação a partir do contributo de
Paulo Freire”, agrega em seus capítulos contribuições de Danilo R.
Streck, Ana Lúcia Souza de Freitas e Thiago Ingrassia Pereira, que
trazem leituras da Pedagogia do Oprimido exercitadas em inser-
ções de Paulo no Rio Grande do Sul, Brasil. Nessa parte, também
temos Débora Mazza, que destrincha processos constitutivos do
pensamento educacional de Paulo Freire e Ramon Flecha, autor que
explora a presença da pedagogia freireana em trabalhos de arte so-
cial e pérgulas literárias desenvolvidos em Barcelona com crianças
oriundas de estratos sociais desfavorecidos.
Por fim, a parte III, “Diálogos com Paulo Freire”, conta com ou-
tras contribuições. O capítulo de Eunice Macedo, na primeira pes-
soa, traz, a partir da realidade portuguesa, uma memória biográfica
reflexiva do encontro com o pensamento freireano. O de Nima Spi-
golon alia Elza a Paulo na luta pela libertação, pela revolução e pela
educação em África. Finalmente, o de Staffan Selander, a partir das
práticas de aprendizagem sueca, perscruta o que Paulo Freire tem
a nos ensinar.
Hoje, como nas décadas de 1950 e 1960, temos que nos debater
forçosamente “com o nosso passado recente que custa a passar e
com o novo que já tarda a chegar.” (ALAMBERT, 2020, p. 11). Desse
modo, vemo-nos em tempos de fracassos e horizontes rebaixados,
com projetos fragmentados de bolsonarismos, antimodernismos,
autoritarismos e patriotismos obscurantistas (ALAMBERT, 2021,
p. 6). Diante disso, Paulo Freire, seu trabalho, suas ideias e sua in-
dignação aparecem contra as injustiças sociais, o determinismo 15
econômico, o fatalismo de mercado, a alienação da sociedade do

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


consumo; a ganância, expropriação e exclusão, perdura como um
educador que aglutina coletivos plurais em torno do orgulho cívico
de tê-lo como patrono da educação brasileira e, talvez, como uma
faísca ou centelha caída em um mundo desencantado.
Vertida também em outro continente, mais especificamente
numa ilha a quilômetros de distância do Brasil eclipsado de Paulo
Freire, essa centelha de pensamento e atos transformadores rever-
bera na vida e obra de Raymond Williams. Raymond Williams nas-
ceu no dia 31 de agosto de 1921, numa localidade rural, próxima
de outras pequenas cidades e vilarejos que ficavam na fronteira do
País de Gales com a Inglaterra. Cresceu no interior de uma família
de trabalhadores do campo, o que foi decisivo na formação de seu
caráter social, algo convertido e orientado para a práxis na educa-
ção de adultos, na vida acadêmica, na militância socialista — postu-
ras de um intelectual orgânico (WILLIAMS, 2019).
Parte dos pensamentos e atos de Raymond Williams que consti-
tuíram seu mundo e o nosso, considerando aqui parte do século XX
e as primeiras décadas do século XXI, foram apresentados e deba-
tidos aqui, em 10 capítulos, por 12 intérpretes de sua vida e obra.
Iniciaremos com Hywel Dix, que estabelece em seu texto afinidades
eletivas entre Paulo Freire e Raymond Williams, convidando-nos a
uma reflexão combinada sobre ambos os autores, além de William
Empson, intitulada “Raça, Religião e práticas contra-hegemônicas
em Empson, Williams e Freire”.
Percorrida essa “constelação”, o prisma muda e a ênfase pas-
sa a ser o universo único de Raymond Williams, apresentado por
meio de quatro capítulos orientados para discutir alguns legados
do autor, em uma primeira parte, intitulada “Legados de Raymond
Williams: educação, estudos culturais, marxismo, direitos huma-
nos”. O primeiro trabalho é de autoria de Maria Elisa Cevasco, de-
nominado “O Legado de Raymond Williams”, no qual estão traçadas
as “principais contribuições de Raymond Williams para a reformu-
lação de uma teoria da cultura que focaliza o novo espaço ocupado
pela produção cultural na sociedade contemporânea.” Dialogando
16
com essa contemporaneidade de Williams, o capítulo intitulado
“Comunidade Nacional e Humanidade Global”, de Daniel Williams,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

enfatiza a discussão do universal e particular, em uma chave mar-


xiana, bem como a questão dos direitos humanos, com o enfoque
nas polêmicas nacionalistas e identitárias que Raymond Williams
problematizou ao longo de sua produção teórica, literária e polí-
tica, sobretudo, em seus ensaios galeses: “Os seus escritos sobre
o País de Gales não devem ser dispensados como se fossem atos
de nostalgia, mas como contribuições cruciais para os debates em
curso sobre a identidade nacional, cidadania e direitos humanos.”
Junta-se a esse debate acerca da produção intelectual de Williams,
seu legado dentro do campo da cultura, conforme lemos no capí-
tulo de Ana Lúcia Teixeira, intitulado “Linguagem e determinismo
cultural: diálogos críticos de Raymond Williams”. Para a autora,
“Raymond Williams é considerado um dos analistas da cultura no
século XX mais interessados em entrecruzá-la com a dimensão po-
lítica da vida social […], na medida em que a considera absoluta-
mente fundamental para uma concepção emancipatória da cultura.
Sua escolha metodológica se faz, portanto, movida por uma bússola
política.” Também interessados em aprofundar alguns momentos
decisivos dessa expressiva produção intelectual, Alexandro Paixão
e Anderson Trevisan destacam a parte dos métodos de ensino de
literatura e cinema na educação de adultos, reconhecendo mais um
de seus legados, afinal, segundo os autores, “Williams desenvolveu
métodos de análise crítica, no sentido de promover, entre seus es-
tudantes, a um só tempo, formação educacional e espírito crítico,
tendo sempre como foco a promoção da democracia e da mudança
social.”
Dando continuidade aos debates, o livro, na segunda parte de-
dicada a Williams, intitulada “Raymond Williams: política e críti-
ca”, conta com dois capítulos que aprofundam essas temáticas. O
primeiro deles, “Trabalhando a terra em campo minado: Raymond
Williams político”, de autoria de Ugo Rivetti, reflete “em que me-
dida a obra de Williams carrega as marcas dos debates políticos
nos quais ele interveio, bem como de cobrir as principais iniciativas
políticas que contaram com a sua participação.” Na sequência, o tra- 17
balho de José Afonso Chaves, intitulado “Um capítulo fora de lugar?

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Tragédia Moderna e a Sociologia do Drama em Raymond Williams”,
“tem por finalidade problematizar [...] Williams em sua tentativa
de compreender como o drama foi respondendo às transforma-
ções históricas contidas no processo de modernização capitalista e
quais seriam [...] as propostas mais agudas de radicalização e crítica
desse mesmo processo.”
A terceira e última parte do livro, intitulada “Raymond Williams:
Diálogos”, reúne três capítulos dedicados ao diálogo de Williams
com outros autores dentro do pensamento social e crítico brasilei-
ro. O primeiro trabalho, “Radicalismos em debate: uma Sociologia
dos Intelectuais a partir de Raymond Williams e Antonio Candido”,
de autoria de Enio Passiani, indica a existência de “uma instigante
sociologia dos intelectuais em textos como O círculo de Bloomsbury,
de Raymond Williams, e Radicalismos e Radicais de ocasião, de An-
tonio Candido.” Dentro desse prisma da crítica literária brasileira,
o capítulo de Jefferson Agostini Mello, “Os Lugares do Literário em
o Campo e a Cidade e na Crítica Literária Brasileira da década de
1970”, busca “com foco em O campo e a cidade, obra de 1973 [...]
comparar o trabalho de Williams com outras obras e escritos de
crítica literária brasileira surgidas no Brasil à mesma época.” Por
fim, o último diálogo de Williams será com Florestan Fernandes,
por meio do capítulo “Luto e Esperança: Florestan Fernandes, Es-
trutura de Sentimentos e o Exílio Canadense”, de Adelia Miglievich-
-Ribeiro e Eliane Veras Soares. As autoras reúnem “dois eminentes
intelectuais críticos centenários [...]: o galês Raymond Williams e o
brasileiro Florestan Fernandes [...] com o propósito [de] trazer à luz
o “materialismo cultural” do primeiro para melhor compreender a
luta entre a hegemonia e anti-hegemonia que se deu no Brasil nos
anos 1960.”
Ao todo, este livro sobre a vida e obra de Paulo Freire e Raymond
Williams reúne 21 capítulos, 11 dedicados a Freire, 9 a Williams,
e 1 às afinidades eletivas entre ambos. Acreditamos que, tal como
anunciamos na abertura desta apresentação, suas ideias, seus sen-
timentos e seus atos são centelhas que caem sobre esta “terra eclip-
18
sada”, cintilando transformações.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

REFERÊNCIAS

ALAMBERT, Francisco. História, arte e cultura. Ensaios. São


Paulo: Intermeios: Programa de Pós-Graduação em História
Social/USP, 2020.

ALAMBERT, Francisco. Os séculos da SEMANA de 1922. Folha


de S. Paulo, p. C 6, 26 set. 2021. Ilustrada/Ilustríssima.

CHAGURI, Mariana; MEDEIROS, Mario (org.). Rumos do Sul.


Periferia e pensamento social. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018.

HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. Forma literária e
processo social nos indícios do romance brasileiro. São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1992.

TOKARCZUK, Olga. Sobre os ossos dos mortos. São Paulo: To-


davia, 2019.

WILLIAMS, Raymond. Apresentação. In: ______. Raymond


Williams e Educação: coletânea de textos sobre extensão,
tutoria, currículo e métodos de ensino. Organizado por Ale-
xandro Henrique Paixão. Campinas: Editora da FE-Unicamp,
2019. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.
br/document/?code=001091920&opt=4. Acesso em: 06 nov.
2021.

19
AGRADECIMENTOS

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Este livro é fruto de uma ação de um coletivo de professores/
as pesquisadores/as que, juntamente com a Direção da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp),
busca homenagear o centenário do patrono da educação brasileira,
Paulo Freire. Para este projeto, as professoras da FE Débora Mazza
e Nima Spigolon e o professor Alexandro Paixão se juntaram ao co-
letivo para organizar e realizar esta produção tão significativa, que,
entre tantos propósitos, desafiou-se a debater Paulo Freire ao lado
de outro educador de adultos, Raymond Williams, que igualmente
completaria 100 anos em 2021.
Nesta empreitada, a Direção da FE também contou com o apoio
de toda a comunidade da Faculdade de Educação e com a parce-
ria da Academia Brasileira de Escritores (Abresc), por meio de seu
presidente, o Prof. Dr. João Paulo Vani, que nos presenteou com a
edição e publicação do livro, a quem agradecemos muito.
Sobre cada autor e autora que assinam os capítulos, parceiros
e parceiras de tantos encontros e debates sobre Paulo Freire e
Raymond Williams, agradecemos a redação dos textos e participação
neste trabalho, cujo primeiro ensaio nasceu no evento internacional
“Centelhas de Transformações: Paulo Freire e Raymond Williams”,
que, inclusive, dá nome ao livro. O evento aconteceu na FE em 26
de agosto de 2021, inaugurando as comemorações dos centenários.
Como vemos, o livro é resultado da dedicação e do trabalho ár-
duo de muitas pessoas, é impossível nomear todas aqui. Por isso, fa-
remos um agradecimento geral a todos e todas que colaboraram
para a feitura desta coletânea, e um agradecimento específico, para
terminar, àqueles que colaboraram nas etapas finais do trabalho.
Nossos agradecimentos específicos: à mestranda Yasmin Manat-
ta Camardelli pela tradução dos capítulos originalmente em inglês;
ao Prof. Dr. Ugo Rivetti pela revisão das traduções; à Camila Freitas
pela revisão do português de alguns capítulos e da apresentação; ao
graduando João Gabriel Trevisan de Oliveira pela revisão da forma-
20 tação dos textos; e ao Prof. Dr. Anderson Ricardo Trevisan pela lei-
tura e comentários da versão final.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Mais uma vez, e para terminar, nosso muito obrigado.

Direção da Faculdade de Educação


e Organizadores do livro
PAULO FREIRE
I
Revisitando a obra
de Paulo Freire
PROCURANDO SITUAR A PRODUÇÃO
DE FREIRE NO CONTEXTO DE PESQUISAS
SOCIALMENTE IMPLICADAS

Luiza Cortesão1

Num texto que escreveu sobre Freire e a educação popular para


The Sage of Encyclopedia of Action Research, Daniel Shugurensky
afirmou:

Embora raramente Freire tenha usado o conceito de inves- 25


tigação-ação participante, pode ver-se, nos seus escritos,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


nas suas conferências, nas suas propostas de produção de
conhecimento, que a investigação e a ação claramente inspi-
raram aquela linha de pensamento. Esta influência é repeti-
damente reconhecida na literatura deste campo, onde Freire
é, frequentemente, reconhecido como sendo um dos seus
pioneiros. (SHUGURENSKY, 2014, p. 369)

Trata-se de uma afirmação cujo significado é, de certo modo, in-


trigante, podendo suscitar, a quem estuda Freire, alguns questio-
namentos. Na verdade, se, como afirma Schugurenski, a produção
teórica de Freire e as intervenções no terreno foram claramente
inspiradoras da linha de pensamento da Investigação Ação Partici-
pante (PAR), se, alguns até o reconhecem como sendo “um dos seus
pioneiros”, então porque é que ele só raramente usou o conceito de
Investigação Ação Participante?

1
Doutora em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educa-
ção, Universidade do Porto. Professora emérita da Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação, Universidade do Porto. E-mail: cortesao@fpce.up.pt. Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-8738-1859.
Numa tentativa de encontrar uma resposta para esta interroga-
ção, ir-se-á procurar aceder a alguns dos aspetos do contexto em
que este tipo de investigação-ação surgiu, se foi desenvolvendo e
se afirmou, procurando encontrar relações que terão existido entre
estes movimentos e o trabalho de Freire.
Algumas das informações necessárias a esta tentativa de recons-
tituição foram obtidas sobretudo através da consulta a entrevistas
e a textos escritos por autores, cuja obra se desenvolveu nesta épo-
ca, e que tenha sido significativa para este tipo de trabalhos. Ir-se-á
então recorrer sobretudo a entrevistas e textos de Fals Borda, e de
Budd Hall porque, frequentemente, eles são apontados como sendo
dois dos autores que muito significativamente contribuíram para a
origem da Pesquisa (Ação) Participativa (PAR). Ir-se-á então pro-
curar compreender como Freire e a sua obra se cruzaram com esta
linha de pesquisa e intervenção.
26
Fals Borda, Budd Hall e o movimento PAR: espreitando o
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

caminho de alguns dos autores da “Participatory Action


Research”

Fals Borda era colombiano, professor universitário e sociólogo. É


ele mesmo que, numa entrevista que lhe foi feita por Lola Cendales,
Fernando Torres e Afonso Torres (2005) conta que, vivendo num
país onde a pobreza era muito grande, quer ele, quer Camilo Torres
(sociólogo e padre da Teologia da Libertação) começaram a aperce-
ber-se de algo que descreve como uma tensão entre “o que tínha-
mos aprendido e o que vivíamos no terreno” (CENDALES; TORRES;
TORRES, 2005, p. 28). Dizia ainda que iam descobrindo que a reali-
dade vivida pela população pobre estimulava a adoção de práticas
de luta nas suas atividades profissionais. Embora sentindo dificul-
dade em alterar a sua posição teórica, foram tendo consciência da
necessidade de a questionar e, no trabalho que faziam, abandonar
os enquadramentos clássicos, apontando para paradigmas alter-
nativos. Terão sido reflexões deste tipo que foram dando origem à
pesquisa ação participativa (PAR). Pode perceber-se, portanto, que
as circunstâncias dramáticas em que se vivia na América Latina
constituíam contextos favoráveis ao estímulo de formas radicais de
intervenção.
Nessa entrevista e, portanto, nas suas próprias palavras, Borda
descreve as tensões então vividas de que resultava o tal questio-
namento que ele e Camilo Torres faziam das características e da
própria razão de ser das práticas de pesquisa:

O nosso lema era: pesquisa, para quê? Bem, é para a


transformação. Porquê? Porque há injustiças, a exploração e o
mundo tem de ser melhor, sobretudo esta parte do mundo
que é a Colômbia. Nesta altura aconteceu a crise da escola.
Eu fiquei 18 anos fora da universidade, construindo a PAR.
(CENDALES; TORRES; TORRES, 2005, p. 28)

Em diferentes momentos do seu depoimento, Fals Borda salien-


ta, de modo insistente, uma situação muito interessante, que con- 27
siste no facto de este tipo de inquietações e de questionamentos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ser algo que emergiu, simultaneamente, em diferentes pontos do
mundo.

Tudo isto aconteceu à volta dos mesmos anos, à roda de 1968.


Havia uma espécie de telepatia internacional, uma coincidên-
cia. Marja Liisa tinha vindo da Finlândia para a Tanzânia. Ela
é uma socióloga e ainda ensina na universidade de Helsín-
quia. Na Tanzânia ela também lançou a semente. Ela é uma
das grandes pioneiras mundiais de PAR. Na Ásia, na Índia,
tínhamos Rajesh Tandon. No México tínhamos, entre outros,
Stavenhagen e muitos, muitos mais no Brasil, no Chile, na Co-
lômbia. (CENDALES; TORRES; TORRES, 2005, p. 32)

E é de notar que, num texto que escrevera para o Handbook of Ac-


tion Research Participative Inquiry and Practice, Borda (2001/2006)
já tinha recordado, até com mais pormenor, estes e outros factos,
insistindo na simultaneidade em que eles ocorreram, em diferen-
tes partes do globo. Nesse texto refere, por exemplo, os movimen-
tos de desobediência pacífica na Índia, a cooperação na Colômbia
entre professores universitários, agricultores pobres e índios, em
luta contra os latifundiários, o projeto de Marja Liisa na Tanzânia, a
reformulação do papel da antropologia na Universidade Autónoma
do México, a descolonização das ciências aplicadas com Stravenha-
gen em Genéve, a publicação da “Pedagogia do Oprimido” de Paulo
Freire (1968) no Brasil, então refugiado no Chile. E acrescenta en-
tão, de novo, que começaram nesta altura a

Tomarem forma instituições e procedimentos alternativos


locais e regionais envolvendo processos educativos e cultu-
rais emancipatórios” que surgiram de forma independente
“quase e simultaneamente, em diferentes continentes, sem
que cada um de nós se desse conta do que os nossos colegas
estavam fazendo. (BORDA, 2001/2006, p.28)

É muito significativo verificar que Fals Borda recorda e valoriza


28 o significado da existência e simultaneidade de todos estes movimentos
que são sinais, como que sintomas de uma importante efervescên-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cia que acontecia sobretudo nos países do Sul. Tratava-se de movi-


mentos que Boaventura de Sousa Santos posteriormente passou a
estudar, nas suas Epistemologias do Sul. É preciso não esquecer, tal
como o próprio Boaventura afirmou ao esclarecer o significado de
“Epistemologias do Sul”, que se trata de

um Sul epistémico, não geográfico, composto de muitos suis


epistemológicos, que têm de comum o facto de serem conhe-
cimentos nascidos de lutas contra o capitalismo, o colonialis-
mo e o patriarcado. (SANTOS, 2018, p. 18)

E, ao recordar figuras que se cruzaram com Freire e que foram


particularmente significativas na origem e afirmação dos trabalhos
PAR é importante referir alguns nomes.
Na verdade, e vindo bem do Norte, de Toronto no Canadá, é
importante incluir, por exemplo, Budd Hall nas figuras que, cru-
zando-se com Freire, tiveram também muita importância no de-
senvolvimento da PAR. Budd Hall nasceu nos Estados Unidos e foi
professor da Universidade de Toronto no Canadá. Como professor,
investigador, administrador, ativista, trabalhando em muitas insti-
tuições, dedicou sobretudo a sua vida ao Movimento Internacional
de Educação de Adultos. Em Toronto, já tinha participado em pro-
jetos de Pesquisa Participativa, mas entre 1970 e 1975 trabalhou
no Institut of Adult Education em Der-as-Salam, na Tanzânia, num
projeto que contava com uma rede de pesquisa participativa inter-
nacional, com coordenação situada em Delhi, e participação da Ve-
nezuela, Peru, Eslovénia, Nicarágua Tanzânia e México, e também
USA e Canadá.
Como já foi referido, era também na Tanzânia que Marja Liisa
Swantz, que tinha vindo da Finlândia, desenvolvia, então, um grande
projeto de pesquisa-intervenção. Foi neste contexto que Paulo Freire,
que estava em Genève, mas já tinha saído da Universidade, decidiu
aceitar o convite que lhe fizeram e foi à Tanzânia. Para Budd Hall, esta
ida de Paulo Freire à Tanzânia foi particularmente importante: 29

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Durante alguns anos, alguns de nós estávamos envolvidos
numa abordagem que, acreditávamos se articular melhor
com as perspetivas, as aspirações, políticas, e a realidade do
contexto da Tanzânia. Fomos encorajados com a visita em
1971 de Paulo Freire, que nos falou da sua forma de pesquisa
que ele chamava de ´investigação temática`. A sua sofistica-
da abordagem ao que designava de conscientização e o seu
apelo a primeiro ler e escrever o mundo eram muito seme-
lhantes às perspectivas e práticas de Nierere. Nós chamamos
a este tipo de trabalho `pesquisa participativa`. Publicamos,
em primeira mão, uma série de artigos sobre pesquisa par-
ticipativa na Revista do Conselho Internacional de Educação
de Adultos, CONVERGENCE. (HALL, 1997, p. 29)

Reforçando a ideia da diversidade de autores que foram partici-


pando na emergência e afirmação deste tipo de pesquisa e ação, por
sua vez, Borda, na entrevista já anteriormente referida que lhe foi
feita por Lola Cendales, Fernando Torres e Afonso Torres (2005),
fornece mais alguns elementos sobre a génese do processo que deu
origem à PAR:
A ideia não nasceu em Bogotá, mas em Genève, na Suíça,
com um grupo de colombianos que costumavam encontrar-
-se no meu gabinete, quando eu era Diretor de Pesquisas das
Nações Unidas no Instituto para o Desenvolvimento Social.
(CENDALES; TORRES; TORRES, 2005, p. 29).

Sublinhou, note-se, a importância da heterogeneidade deste gru-


po de colombianos. Dele faziam parte um antropólogo, um teólogo,
um economista e ele próprio, que era sociólogo. Inquirido sobre se
Freire fazia parte do grupo, afirmou: “ele estava também lá. Tudo
convergia em Genève e era um movimento ecuménico muito im-
portante”. É importante referir, também, a sua declaração de que,
para todos, “o marxismo era o nosso paradigma alternativo” (CEN-
DALES; TORRES; TORRES, 2005, p.29)

Espreitando caminhos de autores da “Participatory


30 Action Research”
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Com esta mesmo que breve revisão, de alguns textos que descre-
vem acontecimentos ocorridos nesta época, foi possível “espreitar”
o estimulante contexto que deve ter sido vivido no início do terceiro
trimestre do século passado. Referiram-se, como se pode ver, textos
produzidos, sobretudo, por dois dos próprios atores que, de dife-
rentes áreas disciplinares, em diferentes locais e condições de tra-
balho, participaram na conceção e desenvolvimento de novas for-
mas de trabalho que estavam a emergir. Eram movimentos, que, em
certos casos, surgiam em países com contextos políticos favoráveis
à aceitação da possibilidade de intervenção em problemas sociais,
(como é o caso da Tanzânia, que tinha Nierere como Presidente)
quando esta intervenção se articula criticamente com a produção
de conhecimento. Budd Hall (1997) refere um acontecimento que
é um sinal bem significativo de quanto o contexto da Tanzânia era
favorável a este tipo de trabalho: em 1976, o Conselho Internacio-
nal de Educação de Adultos (ICAE) organizou em Der-as-Salam a
primeira conferência sobre Educação de Adultos. O chairpersoon
era o Dr. Malcolm Adiseshiah, anteriormente deputado, diretor da
UNESCO, o keynote speaker era o Presidente Julius Nierere, e Paulo
Freire era o additional presenter.
Apesar de dispersos em diferentes pontos do mundo, como se
viu, e tal como afirmou Borda (2005), havia, realmente, entre estes
movimentos uma “espécie de telepatia internacional” que os fazia
convergir na intenção de imaginar formas de trabalhar que dessem
resposta à tal angustiante pergunta já antes referida e que tinha
sido formulada por Borda e Camilo Torres: “pesquisa para quê”?
Pôde ver-se já, que as contribuições que foram então dadas para
encontrar a possível utilidade, e mesmo a razão de ser de realizar
atividades de pesquisa, foram sendo conseguidas ao longo de vá-
rios anos, por diversas pessoas, com diferentes formas de olhar e
enfrentar problemas de injustiça social e de exploração que os in-
quietava a todos. Cada um destes atores percorreu, portanto, o seu
caminho e, naturalmente, embora com alguns muito significativos
31
pontos comuns, frequentemente esses caminhos foram diferentes.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Procurando enquadramentos teóricos alternativos, e apoiando-se
especialmente em Marx, Borda, por exemplo, afastou-se da Univer-
sidade, para se dedicar à construção teórica da PAR. Esteve dois
anos em Genève no Conselho Mundial das Igrejas, como Diretor de
Pesquisas, do Instituto de Desenvolvimento Social, onde, como se
referiu antes, aconteceram os intensos e enriquecedores debates
com um grupo de colombianos sobre questões relacionadas com a
PAR, e nos quais também participava Paulo Freire, trabalhando em
educação. Note-se que esta foi a altura em que Freire também esta-
va no Conselho Mundial das Igrejas, mas dirigindo o Departamen-
to de Educação. Fazendo separadamente os próprios percursos, é
natural que nem sempre dessem as mesmas designações a conceitos,
eventualmente até semelhantes que, separadamente, estavam a
trabalhar. Na verdade, pode, por exemplo, encontrar-se em textos
de Budd Hall o conceito de “Pesquisa Participante” para designar
o mesmo tipo de atividade que Borda designa de “Pesquisa Ação”,
e mais tarde de “Pesquisa Ação Participante” (em inglês, Participa-
tory Action Research, PAR). Já o uso das palavras “pesquisa” e “in-
vestigação”, está sobretudo relacionado com o facto de se tratar do
português do Brasil ou de Portugal.
É importante também recordar que este movimento PAR surgiu, as-
sumindo muito explicitamente a sua orientação política e, portanto,
se desenvolveu na afirmação de que a pesquisa deveria encontrar a
sua razão de ser numa articulação com práticas de luta contra a ex-
ploração e a injustiça. E é igualmente importante ter em conta que
o processo PAR se desenrolou numa altura em que muitos, já há vá-
rios anos, usavam também o termo “investigação-ação” para desig-
nar toda uma diversidade de atividades que só tinham de comum
uma articulação (crítica ou não) da pesquisa com a prática. Acon-
tecia frequentemente, porém, que estas atividades que também são
designadas de pesquisa-ação, existiam e continuam a existir, com
finalidades diversificadas, algumas das quais, por vezes, visando
a obtenção de resultados que nada tem a ver, com preocupações
de justiça social. Note-se, que esta é uma situação que, lamenta-
32
velmente, até se acentuou na atualidade. Desta situação resultou
que aqueles que trabalhavam na criação e afirmação da PAR, cedo
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

perceberam a necessidade de tornar bem claro que esta forma de


trabalho, que, é claro, também envolve pesquisa e ação, é realmente
diferente de muitas das que já anteriormente existiam. Note-se a forma
vigorosa, quase agressiva como Fals Borda, num texto de 1981, se
distancia de outras formas de trabalho também designadas de pes-
quisa-ação ou investigação ação.

O que se entende por Pesquisa Participante? Antes de tudo,


não se trata do tipo conservador de pesquisa planeado por
Kurt Lewin, ou das propostas respeitadas de reforma social,
e a campanha contra a pobreza dos anos 60. Refere-se antes
a uma pesquisa-ação voltada para as “necessidades básicas
do indivíduo” (HUYNH, 1979) que respondam especialmen-
te às necessidades de populações que compreendam operá-
rios camponeses, agricultores e índios – as classes mais ca-
rentes nas estruturas sociais contemporâneas – levando em
conta as suas aspirações “e potencialidades de conhecer e
agir”. (BORDA, 1981, p. 43)
Recordando alguns acontecimentos relativos ao trabalho
de Freire

O percurso de Paulo Freire e seu encontro com os movimentos


da Investigação-Ação-Participativa é, realmente, muito interessan-
te e significativo da posição que ele foi tomando relativamente aos
movimentos PAR. Por isso se irão referir alguns aspetos da sua bio-
grafia, apesar de, muito provavelmente, já serem bastante conheci-
dos. É realmente bastante conhecido que, apesar de licenciado em
Direito, Freire cedo abandonou a advocacia e passou a trabalhar em
educação. Em 1961 já trabalhava em Educação no Serviço Social
da Indústria (SESI). Em 1962 no Movimento da Cultura Popular de
Recife já fazia experiências em educação. Em janeiro de 1962, no
Serviço da Extensão Cultural da Universidade de Recife, onde era
professor, Freire organizou a grande experiência de Angicos em que
300 trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. 33
É, portanto, evidente que, o ainda bastante jovem Freire e apesar

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


da licenciatura em direito, cedo se assumiu como sendo um educa-
dor. Com o golpe de estado de 1964, o começo da ditadura no Brasil
e em consequência dos efeitos e dos enormes ecos da sua obra que
já se faziam sentir, Freire foi preso tendo-se, posteriormente refu-
giado no Chile, onde concebeu, discutiu e escreveu a “Pedagogia do
Oprimido” (1968). É muito interessante, porque muito significativo,
ver como se processou a “gestação” da “Pedagogia do Oprimido” (cf.
Freire, 1967). Em “Pedagogia da Esperança”, Freire (1993) conta
que escreveu os três primeiros capítulos e então fez uma pausa, em
que não olhou para o que escrevera, mas discutiu, intensamente,
o seu conteúdo, o que lhe possibilitou, posteriormente, fazer des-
ses textos uma leitura crítica. Só depois escreveu o quarto capítulo.
Durante todo este período de escrita e reflexão, falou a colegas e
amigos sobre o que estava a escrever, debatendo as ideias que ia
analisando e amadurecendo. A divulgação da “Pedagogia” foi, por-
tanto, acontecendo, mesmo antes da publicação do livro.
Podemos aceder ao que se passava, lendo as suas próprias pala-
vras:
Estive mais de um ano falando de aspectos da Pedagogia do
Oprimido. Falei a amigos, que me visitavam, discutindo em
seminários, em cursos (…) Não poderei esquecer, neste tem-
po de oralidade da “Pedagogia do Oprimido” de uma confe-
rência, a primeira que fiz inteiramente sobre o livro, em N.
York em 1967. (FREIRE, 1993, p. 54)

Muito provavelmente, terá sido, nesta altura da “oralidade da


Pedagogia” que Fals Borda contactou, pela primeira vez, com esta
obra que, mesmo quando ainda não publicada, já despertava muito
interesse e, como disse, circulava em redes informais. Entretanto,
nessas redes informais, por vezes clandestinamente, iam-se, rápida
e intensamente divulgando diferentes textos de Paulo Freire não só
no Brasil como noutros pontos do mundo2.
Com a partida para o Chile, iniciava-se um período de cerca de
16 anos de exílio. Depois do tempo em que viveu no Chile e de um
34 breve período nos Estados Unidos em que lecionou em Harvard, em
1970, tendo optado por aceitar o convite do Conselho Mundial das
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Igrejas, passou a residir em Genève onde, a partir desta cidade de-


senvolveu intensos e diversificados trabalhos. Olhando o conjunto
de atividades por ele desenvolvidas, é possível verificar que elas se
podem organizar essencialmente em três grupos (CORTESÃO, 2019):
o primeiro desses trabalhos, consistiu no conjunto de atividades
por ele desenvolvidas ou em que participou, trabalhos esses que,
de certo modo, estavam relacionados com a sua vida académica,
e sempre muito ligados com as suas preocupações de intervenção
política e social e educativa.
Destes trabalhos serão de referir as múltiplas publicações (li-
vros, artigos, folhetos) que produziu ou em que participou. Pode
citar-se, por exemplo, o “Cuidado Escola!” (HARPER et al., 1980),
que publicou juntamente com a equipa do IDAC, a “Ação Cultural
para a Liberdade” (FREIRE, 1975a), “Uma Educação para a Liberda-
2
Como é de muitos conhecido, e porque continuava a ditadura no Brasil, a primeira edição
desta obra só pôde acontecer em 1970 quando foi publicada em Nova Iorque, em inglês.
Na língua portuguesa, saiu a primeira edição em Portugal graças a contactos estabelecidos
com Freire (que, nessa altura, estava em Genève) pela Cooperativa Confronto e, apesar do
regime ditatorial que nessa altura existia em Portugal, foi, finalmente, editada no Porto,
em 1972, pela Afrontamento.
de” (FREIRE, 1970), “Conscientização” (FREIRE, 1979) e “Educação
Política e Conscientização” (FREIRE, 1975b).
São ainda deste período as múltiplas traduções e edições dos
seus livros, sobretudo da “Pedagogia do Oprimido” (1968), que
muito contribuíram para a divulgação mundial da sua obra. São
ainda de recordar, porque são consequência do forte eco que, no
mundo, ia tendo a sua obra, as conferências, os seminários, as con-
decorações, os prémios, e os vários Doutoramentos Honoris Causa.
Uma segunda vertente que é possível considerar nas atividades
que desenvolveu no período de Genève, vertente que evidencia
também a sua sempre presente preocupação e o trabalho de inter-
venção, é aquela que realizou com os “esfarrapados do mundo”. Destes
faziam parte os imigrantes que tinham fugido à miséria nos seus países,
cujas dramáticas condições de vida, que agora lhes eram oferecidas
também na Europa, fizeram com que Freire referisse aquela situa-
35
ção como sendo “o terceiro mundo no primeiro” (FREIRE, 2000, p.
123). Eram os trabalhadores migrantes, italianos, espanhóis, portu-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


gueses, gregos, turcos, árabes. Freire reunia com eles, estimulava-os
a analisarem as condições de vida que lhes eram oferecidas, parti-
cipava em seminários. Dessa atividade ele refere com especial inte-
resse o trabalho desenvolvido com as lideranças sindicais italianas
as, “50 horas”, um movimento sindical pelo “direito a ser reconhe-
cido aos trabalhadores, o direito de estudar no tempo de trabalho”
(FREIRE, 2000, p. 122).
O terceiro e muito importante tipo de atividades que foi pos-
sível identificar no trabalho que Freire realizou também neste
período em que esteve ligado ao Conselho Mundial das Igrejas,
foi o que ele desenvolveu em África, sobretudo na Tanzânia, em
diferentes trabalhos.
É sobretudo importante salientar que, deixando a Universidade
de Genève e, apesar de ter recebido vários convites de diferentes
Universidades da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá, Freire
optou por, em 1971, ir à Tanzânia (nesta altura a Tanzânia de Július
Nierere) onde trabalhava Budd Hall.
No Instituto de Educação de Adultos, Budd Hall valoriza, sobre-
tudo, a ocorrência de um facto que se revelou ser de extrema im-
portância. Freire fez uma conferência sobre metodologias alternati-
vas que foi gravada e que, depois de transcrita, constituiu um texto
que foi muito lido e discutido.
Em África aconteceram, também, contactos de Freire com os
movimentos de resistência das então Colónias portuguesas, inicial-
mente com elementos do MPLA de Angola, depois com elementos
da libertação da Guiné, o PAIGC, e também com elementos da Freli-
mo de Moçambique.
O que é, geralmente, mais conhecido do seu trabalho em África,
é o grande projeto de alfabetização da Guiné, que foi organizado em
consequência do convite feito por Mário Cabral e no qual trabalha-
ram Paulo Freire, Elsa Freire, e a Equipa do IDAC.
Foi este Freire, com uma obra que já estava a ser mundialmente
36 conhecida, este Freire lutador contra a exploração dos mais frágeis,
que teve, sobretudo em África, a oportunidade de entrar em contac-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

to com o movimento da Pesquisa Ação Participante. Este era, como


se viu, o movimento que então se desenvolvia em diferentes pontos
do mundo, e convergia em finalidades a atingir, como dizia Borda,
como que por “telepatia internacional”

Freire e a Pesquisa (Ação) Participante

É interessante acrescentar ao que já foi dito que Freire, ao participar


nas estimulantes discussões que aconteciam em Genève, no Conse-
lho Mundial das Igrejas, com o grupo de que fazia parte Borda, nem
o fazia a partir do mesmo campo disciplinar que eles, nem estava
nas mesmas condições das vivenciadas pelo grupo de colombianos
que como já se referiu, ali se reunia contribuindo para a constru-
ção das bases teóricas da Investigação Ação Participativa. Freire
movimentava-se, desde o tempo de Recife, no campo da Educação
Popular e, como se referiu antes, carregava já anos de reflexão e de
experiências no terreno (de entre as quais é necessário não esque-
cer a experiência de Angicos). De entre os diferentes livros e artigos
publicados, é necessário salientar a “Pedagogia do Oprimido” (Freire,
1968), nesta altura, já com muitas traduções e muitas edições. Frei-
re, reconhecido como sendo também um lutador contra a explora-
ção dos mais frágeis, procurou contactar com todo o movimento
da Pesquisa Ação Participativa que, como que por “telepatia inter-
nacional”, então se desenvolvia, com características idênticas, em
diferentes pontos do globo. É também de referir a participação nos
múltiplos debates que à volta de “Pedagogia do Oprimido” se iam
gerando, desde mesmo antes da sua publicação. Freire participava
nestes debates e em muitos que se lhe seguiram, encontrando nas
questões que se debatiam enormes pontos comuns com as ideias
que tinham dado origem a PAR e as que sustentavam também a sua
“Pedagogia”. Recorde-se, finalmente, o que Hall (1997) comentou,
como já referido, sobre a importância do interesse da investigação
“temática” que Freire tinha apresentado, e a sua “sofisticada” abor-
37
dagem à questão da conscientização.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Reflexões finais

Note-se, de novo, que Freire, ao longo de vários anos, já tinha an-


teriormente realizado muitas atividades com características muito
próximas das que se podem observar na Pesquisa Ação Participa-
tiva, sem, contudo, dar este nome aos trabalhos que desenvolvia.
Movendo-se, sempre, no campo da Educação Popular, Freire, do
mesmo modo que os que trabalhavam e trabalham na afirmação e
na prática da PAR, também fazia questão de afirmar a politicidade
do ato educativo, evidenciando, portanto, que era nesse campo que
ele situava a luta contra a exploração dos mais frágeis, dos oprimi-
dos. Explicava ainda que, para ele, a alfabetização deveria ser enca-
rada como um processo que deveria conduzir, ou pelo menos con-
tribuir para a libertação dos oprimidos, para a sua conscientização.
Veja-se, por exemplo, um texto que, a este propósito, escreveu num
pequeno livro dos “Textos Marginais”: “Nesta frase, o processo de
alfabetização política, a palavra alfabetização é utilizada de modo
metafórico” (FREIRE, 1974, p. 59). E adiante, no mesmo texto, ex-
plica melhor o significado desta frase:

Permitam-me que repita, o processo de alfabetização políti-


ca, assim como o processo de alfabetização linguística pode
servir quer à domesticação quer à libertação dos homens. No
primeiro caso, de maneira nenhuma a conscientização é pos-
sível, no segundo, é ele próprio a conscientização. (FREIRE,
1974, p. 59)

Veja-se, para além da luta pelo reconhecimento explícito da “po-


liticidade” da educação, da dedicatória do seu trabalho aos “esfar-
rapados do mundo”, e, para além dos trabalhos com os imigrantes,
na Europa (que, numa luta para conseguir melhorar as dramáticas
condições em que viviam na sua terra natal, viviam em condições
miseráveis de terceiro mundo, em países que eram tidos como sen-
38 do países ricos), veja-se agora o trabalho de codificação e, sobretu-
do, toda a metodologia seguida para conseguir a identificação das
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

palavras geradoras dos temas geradores, trabalho em que é bem


visível a profundidade, a complexidade e a “sofisticação” dos pro-
cessos de pesquisa exigidos pela prática da sua Pedagogia.
Repare-se, por exemplo, como, segundo Freire, o processo de al-
fabetização se inicia com um intenso trabalho de pesquisa visando
o conhecimento do contexto em que se vai trabalhar, pois que é só a
partir desse conhecimento que se poderão identificar os temas ge-
radores e as palavras geradoras. E este conhecimento do contexto, é
para Freire, um processo que exige um trabalho profundo.
Como ele explica no texto “Creating Research Methods: Learning
to Do It by Doing It”:

Para mim a realidade concreta é mais do que factos isolados.


Para mim, pensando dialeticamente, a realidade consiste,
não só nos factos concretos e coisas físicas, mas também in-
clui os modos como as pessoas envolvidas nesses factos os
percepcionam. (FREIRE, 1982, p. 29)
E, mais adiante, acrescenta:

Se eu perceciono a realidade como uma relação dialética


entre a subjetividade e a objetividade, então tenho de usar
métodos de investigação que envolvam as pessoas da área
que está a ser estudada pelos investigadores. (FREIRE,
1982, p. 30)

Está aqui bem evidente a profundidade do trabalho de pesquisa


necessário para bem “conhecer” o contexto, conhecimento esse ne-
cessário para então se poderem identificar os temas geradores (2ª
etapa da pesquisa). Note-se ainda que as metodologias alternativas
de que Freire se socorre para desenvolver o processo de ultrapassa-
gem dos diferentes níveis de consciência para poder chegar à cons-
cientização e, portanto, à ação, representam outro tipo de produção
de conhecimento de tipo pedagógico (CORTESÃO; STOER, 1997).
39
É todo este complexo conjunto de trabalho de pesquisa com a qual ele
visa poder desencadear a ação que Freire, engloba no ato pedagógico.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Daí ele falar na “Pedagogia do Oprimido”, e não para o Oprimido...
Freire (não podemos esquecer que ele era um educador), já há
muito incluía no conceito de “Pedagogia” as diversas atividades de
pesquisa e intervenção que desenvolvia e com que pretendia es-
timular a conscientização. E note-se, finalmente, que tudo isto já
acontecia há muito, no seu trabalho, quando contactou com os au-
tores que trabalhavam na construção da Investigação-Ação-Partici-
pativa.
Embora Freire tivesse grandes afinidades ideológicas não só
com muitos dos autores mais significativos da PAR, mas também
com todas as propostas de ação que eles defendiam, para Freire de-
veria ser um pouco difícil a ideia de “rebatizar” conceitos já por ele
usados há muito, bem como títulos de artigos e de livros, também
há muito trabalhados e publicados.
Esta parece ser uma resposta plausível a dar à questão formula-
da no início do presente texto sobre a razão de, raramente, Freire
ter usado o conceito de Investigação (Ação) Participativa.
De facto, Freire encontrava-se entre companheiros com quem
partilhava a forte decisão de, com o seu trabalho, contribuir para a
existência e para um mundo melhor. Dando, no campo da educação
a sua importante contribuição para a mesma luta, ele fê-lo, portanto,
através de uma contribuição que mantinha as suas especificidades.

REFERÊNCIAS

BORDA, Orlando Fals. Aspectos teóricos da pesquisa partici-


pante: considerações sobre o significado e papel da Ciência
na participação popular. In: Pesquisa Participante. Organiza-
ção: Carlos Rodrigues Brandão. São Paulo: Brasiliense, 1981,
p. 42- 62.

BORDA, Orlando Fals. Participatory (action) research in so-


40
cial theory: Origins and challenges. In: Handbook of action
research: Participatory inquiry and practice. Edited by Peter
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Reason and Hilary Bradbury. London: Sage, 2001/2006

CENDALES, Lola; TORRES, Fernando; TORRES, Alfonso. One


sows the seed, but it has its own dynamics: An interview with
Orlando Fals Borda. In: International Journal of Action Re-
search, 1, 2005.

CORTESÃO, Luiza. Paulo Freire working in and from Europe.


In: The Wiley handbook of Paulo Freire. Edited by Carlos Alber-
to Torres. New Jersey: John Wiley & Sons, 2019.
CORTESÃO, Luiza; STOER, Stephen. Investigação-ação e a
produção de conhecimento no âmbito de uma formação de
professores para a educação inter/multicultural. Educação,
Sociedade & Culturas, Porto, Portugal, n. 7, p. 7-28, 1997. Dis-
ponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/?q=publication/re-
vista-educa%C3%A7%C3%A3o-sociedade-culturas/edition/
educa%C3%A7%C3%A3o-sociedade-culturas-7. Acesso em:
18 out 2021.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Ja-


neiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento,


1968.

41
FREIRE, Paulo. Uma educação para a liberdade. Porto: Textos
marginais, 1974.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos.
São Paulo: Paz e Terra, 1975a

FREIRE, Paulo. Educação política e de conscientização. Lisboa:


Sá da Costa, 1975b.

FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez e Morais,


1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1993.
FREIRE, P. (1982). Creating alternative, research methods,
learning to do it by doing it. In: Creating knowledge: A monop-
oly? Edited by Budd Hall, Arthur Gillette and Rajesh Tandon.
Khanpur, New Delhi: Society for Participatory Research in
Asia, 1982.

HALL, Bud. Looking back, looking forward: Reflections on the


origins of the international participatory research network and
participatory research group in Toronto, Canada. Unpublished
paper prepared for the 8th World Congress on Participatory
Action Research, Cartagena, Colombia, 1997.

HARPER, Babette; CECCON, Claudius; OLIVEIRA, Miguel Dar-


cy; OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Cuidado escola! Desigualdade,
domesticação e algumas saídas. São Paulo: Brasiliense, 1980.
42

SANTOS, Boaventura Sousa. O fim do império cognitivo. Coim-


Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

bra: Almedina, 2018.

SCHUGURENSKY, Daniel. Freire, Paulo. In: The SAGE encyclo-


pedia of action research. Edited by David Coghlan e Mary Bry-
don-Miller. London; New York: Sage, 2014.

STRECK, Danilo; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Participatory


action research in Latin America: Special issue of International
Journal of Action Research, 1. Hampp Augsburg, 2005.

RESUMO
No presente trabalho discutem-se relações entre a obra de
Paulo Freire e outros trabalhos, também socialmente impli-
cados, de pesquisa-ação-participante, que, sobretudo a partir
do final dos anos 60 do século XX, se desenvolviam nos países
do Sul.
Palavras-chave: Educação, Pesquisa, Intervenção, Diversida-
de, Exploração.

ABSTRACT
This paper discusses some Paulo Freire’s works relationships
and Participatory-action-research works, that, from the
20th century onwards late 60s were developed in southern
countries.
Keywords: Education, Research, Intervention, Diversity,
Exploration.

SOBRE A AUTORA
É Professora Emérita da Universidade do Porto (UP), Presidente
da Direção do Instituto Paulo Freire de Portugal, Coordenado-
ra do Centro de Recursos Paulo Freire da UP e Investigadora 43
do Centro de Investigação e Intervenção Educativa da Facul-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dade de Psicologia e Ciências da Educação (CIIE). Autora de
dezenas de livros sobre formação de professores/as, práticas
pedagógicas e Paulo Freire.
POR QUE PAULO FREIRE, AOS 100 ANOS,
É UM EDUCADOR DO PRESENTE
E DO FUTURO?

Afonso Celso Scocuglia1

Introdução

Participar de um livro como este, alusivo ao centenário de um


pensador tão relevante, não é o mesmo que escrever para outra pu- 45
blicação. Tem um outro significado e é especial. A nosso sentir, deve

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ser um escrito de “análise geral” que foque (pelo menos) um dos
amplos significados da sua obra2. No caso, uma obra extensa, prá-
tica e teórica, militante e filosófica como a de Paulo Freire. Ou seja,
precisamos indagar: o que podemos extrair (quase que concluir)
nos 100 anos de um pensador da educação tão destacado em todo
o mundo, louvado e criticado por tantos, muitas vezes apaixonada
ou ferozmente? Em outro artigo, neste diapasão, refletimos sobre
“O que temos para historizar, destacar e prospectar nos 100 anos de
Paulo Freire?” (SCOCUGLIA, 2020a). São perguntas como essa que
aprofundam a reflexão sobre o centenário de um pensador. Escre-
vemos o texto que se segue com essa perspectiva.

1
Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Doutorado em Ciên-
cias da Educação pela Université de Lyon (França, 2009). Pós-Doutorado em História e
Filosofia da Educação pela Unicamp (Brasil, 2010). E-mail: acscocuglia@gmail.com. Link
para curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0207215501662942. Orcid: https://orcid.
org/0000-0002-1002-5047.
2
Neste sentido, publicamos vários trabalhos de pesquisa. Os sete principais estão lista-
dos nas referências bibliográficas (SCOCUGLIA 2005, 2006, 2019a, 2019b, 2020a, 2020b,
2020c). Foram utilizados como respaldo deste artigo. Por isso, optamos por não recorrer
às citações e convidar o(a) leitor(a) a buscar esses trabalhos.
Como pano de fundo, questões-guia: O que é fundamental em
Paulo Freire na chegada dos 100 anos? O que não pode ser esque-
cido por seus pesquisadores contemporâneos? Seus aportes são
válidos para a educação dos nossos dias ou já estão ultrapassados?
E, daqui para frente, podemos contar com suas ideias nas nossas
práticas educativas? Quais ideias? Ou, como indaga a academia (e
seus indexadores): que repercussão internacional teve e tem suas
ideias? É um autor lido/citado em muitas pesquisas? Enfim, é um
pensador atual e de futuro?
Uma ampla constatação de início: parte significativa dos traba-
lhos tratam a pedagogia política de Paulo Freire como algo do pas-
sado. Uma das formas mais nítidas desse enfoque são os estudos
e pesquisas que trabalham com textos dos anos 1960 (escritos à
luz das especificidades desse tempo histórico) mas não contextua-
lizam e/ou relativizam suas ideias. Como se Educação como prática
46 da liberdade (1965) e Pedagogia do oprimido (1968), por exemplo,
dois de seus livros mais disseminados, tivessem sido escritos hoje.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Ao contrário de atualizá-lo, a rigor, o condenam ao passado. Não


apreendem as adaptações, modificações e reconstruções que fez
questão de fazer e anunciar para quem estivesse atento. Olvidam,
por exemplo, o subtítulo de um dos seus últimos livros em vida:
Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do opri-
mido (1992). Por que reencontrar seu livro mais lido e traduzido
em muitos países e idiomas, um best seller que no Brasil está na
75ª. edição? Resposta: porque o autor queria refazer conceitos, re-
pensar passagens, “esquecer” personagens citados e se declarar -
mais do que isso, convocar seus leitores -, a serem “pós-modernos
progressistas”. Basta prestar atenção nas suas pistas textuais, como
buscamos fazer (Scocuglia, 2020b). Não se trata da nossa interpre-
tação ou de qualquer ilação. É textual.
Também são notórias várias autocríticas. Ao fazê-las, Freire
atualiza seu pensamento com as questões centrais da passagem do
século XX ao XXI e, com isso, redefine parâmetros e propostas que
mostram a vivacidade de um educador que olha e se projeta para
o futuro. E mais: impele outros pensadores a reinventá-lo com te-
máticas que o próprio só esboçou e que acreditava serem temáticas
de futuro. Para dar dois exemplos contundentes: as questões so-
cioambientais, captadas por Moacir Gadotti, por exemplo, em seu
Pedagogia da Terra (2000), com a proposta de uma pedagogia da
sustentabilidade; e o destaque (ainda que tardio) dos movimentos
das mulheres em torno de uma pedagogia feminista, de respeito
às diversidades e à multiculturalidade. Por isso, se Educação como
prática da liberdade (1984a) e Pedagogia do oprimido (1984b) são
fundamentais para entender Freire e suas propostas, não menos
fundamentais são Educação na cidade (1991), Pedagogia da espe-
rança... (1992), Política e educação (1993) e Pedagogia da autono-
mia (1996), precisamente por serem complementares. Também se
tornaram relevantes seus livros dialógicos ou os escritos póstumos
que exploram pedagogias da indignação, da tolerância, dos sonhos e
inéditos ainda possíveis, da solidariedade, entre outros temas. Sem
esquecer os chamados “escritos africanos” resultantes dos traba- 47
lhos dos anos 1970.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Definitivamente, ainda que parte da literatura sobre Freire con-
tinue a situá-lo no passado, escondendo e/ou tornando invisíveis
suas autocriticas e suas novas posições, seu legado resiste aos pas-
sadistas e se mostra atual e futurista. Não é correto que “tudo” está
contido nos seus escritos dos anos 1960! O “tudo” de Freire pas-
sa, sim, pela relevância desses dois livros exemplificados, mas está
longe de ficar retido neles. Não se compreende Freire sem Cartas à
Guiné-Bissau (1980b) ou Por uma pedagogia da pergunta (1980b).
Não se entende o pensador brasileiro sem situá-lo na transição en-
tre a modernidade e pós-modernidade (SCOCUGLIA, 2005). Não se
compreende Freire sem suas autocríticas (muitas!), sem seu cristia-
nismo (que dialoga de Dom Helder a Leonardo Boff), mas, também,
seu ecumenismo progressista dos anos 1970 no Conselho Mundial
de Igrejas e a seguir.
Neste caminho, defendemos a tese de que Paulo Freire não é um
pensador da educação estagnado no passado, perdido/morto no
século XX e que, embora tenha construído sua práxis entre 1947
e 1997, continua atual e, mais, é um pensador para o futuro da
educação.
Mas, para além de repetir que é o terceiro mais citado das ciên-
cias humanas3 ou que tem sua Pedagogia do oprimido (op. cit.) en-
tre os 100 livros mais utilizados em língua inglesa (o que por si só
o atualiza!), como podemos provar/demonstrar que Freire é atual
e prospectou seu pensamento-ação para o futuro? Ora, por meio da
verificação da pertinência das suas questões/pesquisas/problema-
tizações, conceitos e propostas principais, para as quais (a seguir)
indicamos pistas e sendas das suas respectivas problematizações.
Tudo sob o lume de um dos mais consistentes alicerces do seu pen-
samento-ação: a pedagogia da pergunta, do problema e da pesquisa.
Para isso, faremos três movimentos que convidam (e desafiam)
o(a) leitor(a) a refletir sobre os nossos argumentos: primeiro, va-
mos elencar os cinco tempos históricos dos diversos Paulo Freire;
48 depois indicar algumas questões que, por si mesmas, mostram sua
pertinência e atualidade e, finalmente, pensar sobre o educador do
futuro.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Os tempos de Paulo Freire

Podemos dividir os tempos de Paulo Freire, que completaria 100


anos em 2021, em cinco etapas correspondentes aos contextos his-
tóricos da sua vida e da sua obra que, sabemos, foram inseparáveis.
Mais do que inseparáveis, vida e obra foram reciprocamente deter-
minantes e se retroalimentaram. Não constituíram um todo linear,
pelo contrário, corresponderam a contextos muito diversos e, por
isso mesmo, formaram alicerces de práxis (prático-teórica) muito
diferentes. Resultaram numa obra de escrita progressiva, constituí-
3
Paulo Freire é o terceiro pensador mais citado do mundo na área de ciências sociais/
humanas. O levantamento foi feito através do Google Scholar – ferramenta de pesquisa
para literatura acadêmica – por Elliot Green, professor associado da London School of
Economics. Levantamento completo disponível em http://eprints.lse.ac.uk/66752/1/__
lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_LSE%20
Impact%20of%20Soc%20Sci%20blog_2016_May_What%20are%20the%20most-ci-
ted%20publications%20in%20the%20social%20sciences%20according%20to%20
Google%20Scholar.pdf
da por amálgamas teóricos diferenciados – muitas vezes modifica-
dos em profundidade. Constituíram o que podemos denominar de
os “múltiplos” Paulo Freire (SCOCUGLIA, 2019a).
Quais tempos, então, compõem os 100 anos de Paulo Freire, en-
tre 1921 e 2021? Podemos constatar cinco tempos históricos dife-
rentes.
O primeiro tempo vai do seu nascimento até a segunda metade
dos anos 1940 e década de 1950, quando, depois de não seguir como
advogado, assume a educação do SESI do estado de Pernambuco.
O trabalho com educação de adultos constitui um forte embrião,
cujos resultados aparecerão na sequência das suas preocupações
com a educação popular, com as críticas à escola tradicional e com
propostas metodológicas para a alfabetização. Desde já, o “trabalho
como princípio educativo” ganha conotação especial.
Podemos visualizar o segundo tempo, dos anos 1940/1950 até a
interrupção da sua trajetória nordestina/brasileira pelo golpe civil- 49
-militar de 1964. Esse tempo marca a crescente aproximação com

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


a Universidade do Recife (UR), hoje UFPE, da qual se tornará pro-
fessor efetivo, para cujo concurso escreveu Educação e atualidade
brasileira4 (1959, publicado em 2001). Já na docência universitá-
ria, a coordenação do Serviço de Extensão Cultural da UR (SEC-UR)
trouxe à tona sua relevante visão sobre a necessidade do definitivo
entrelace entre a Universidade e a sociedade. Além de trabalhar
com uma equipe5 multidisciplinar e coordenar a construção de uma
proposta conhecida como Sistema Paulo Freire de Educação6 (com
seis etapas), dentro do qual o “Método Paulo Freire” pontificou e se

4
Tese de 1959 que só será publicada pela Cortez Editora em 2001, quatro anos após seu
falecimento.
5
Importante perceber que, nas várias etapas da sua práxis, Freire sempre trabalhou em
equipe. Defendeu constantemente a necessidade de complementação das suas ideias, par-
tindo do pressuposto do seu inacabamento e da humildade científica declarada. Aqui está
colocado um conceito central: para ele o conhecimento deve ser produzido/compartilha-
do no processo dialógico de saberes. O pensamento-ação de Freire foi assim construído
e, por isso mesmo, as bases e as conexões com outros pensadores são decisivas para a
compreensão das suas propostas político-pedagógicas.
6
Esta proposta está colocada na Revista Estudos Universitários IV (1963), da Universidade
do Recife, com artigos de Paulo Freire, Jarbas Maciel, Aurenice Cardoso e outros integran-
tes da equipe do SEC-UR.
espalhou gradativamente pelo país, levando Freire à coordenação
do Plano Nacional de Alfabetização (PNA) do Governo João Goulart,
em 1963. Freire acabou preso pelos golpistas (por quase 80 dias)
e sofreu dois processos - um na Universidade e outro geral pelas
forças militares7.
Temeroso por consequência ainda mais grave, exilou-se em se-
guida. Seu tempo exílio entre 1964 e 1979/80 constitui o que consi-
deramos seu terceiro tempo. Na sequência dos 16 anos fora do Bra-
sil, Freire trabalhou com os órgãos da reforma agrária do governo
da Democracia Cristã no Chile por quatro anos, quase um ano como
professor na Universidade de Harvard (Estados Unidos) e, depois,
durante a década de 1970, integrou o Conselho Mundial de Igrejas
(CMI) em Genebra. No CMI, coordenando o IDAC (Instituto de Ação
Cultural), acedeu ao convite de governos de países africanos recém-
-libertados do colonialismo português e, neste contexto europeu/
50 africano, viu sua obra e suas propostas ganharem notoriedade cres-
cente e mundial.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

De volta ao Brasil no início nos anos 1980, reaprende o país ini-


ciando seu quarto tempo, aproxima-se dos movimentos sociais flo-
rescentes, ajuda a fundação do Partido dos Trabalhadores, retoma a
docência universitária, agora na PUC-SP e depois na Unicamp, dirige
a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e continua, como
sempre, a escrever abundantemente – inclusive livros dialogados
com outros pensadores. Sua obra se dissemina mais e mais pelos
vários continentes do mundo, ganha dezenas de título de Doutor
Honoris Causa, planeta afora, os principais livros são traduzidos em
muitos países e, edição após edição, são replicados. Seu falecimento
em 1997 encerra esse tempo.
O quinto tempo da sua obra (pós 1997, até hoje) é contemporâ-
neo da posteridade do seu legado, marcado pela crescente utiliza-
ção mundial dos seus escritos. Tempo também marcado pela pu-
blicação de vários livros póstumos com inéditos (organizados por
7
Ver o livro Cenário da libertação – Paulo Freire na prisão, no exílio e na universidade
(2009), de Clodomir Morais. Além de relatar a convivência como companheiros de cela
(1964) e, depois, no exílio, o autor reproduz duas conferências finais de Freire (UFRO,
1997), pouco antes do seu falecimento.
Ana Maria Freire)8 que continuam a tonificar a originalidade do seu
imenso legado político-pedagógico.
Referência mundial, tornou-se conhecido como educador da li-
berdade, da democracia, da consciência crítica, da dialogicidade, da
conectividade, da autonomia, da indignação e da solidariedade, da
problematização-pergunta-pesquisa, da reeducação do/a educa-
dor/a, da tolerância e da amorosidade, dos inéditos que são viáveis,
dos entrelaçamentos dos saberes e dos conhecimentos comuns e
científicos... e, sobretudo, educador da hominização e da esperan-
ça ontológica que define as mulheres e os homens – mesmo diante
de todas as adversidades e circunstâncias do nosso tempo (SCO-
CUGLIA, 2020a). E, no seu centenário, continuamos a redescobri-lo
a cada nova leitura, saboreamos novos insights que não tínhamos
percebido antes, palavras-mundo que não havíamos dado devida
atenção e que demonstram sua juventude, ou melhor, descobrimos
porque se definiu como um “menino conectivo” – com um significa- 51
tivo porvir.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Um educador do futuro, aos 100 anos

Ao comemorarmos o centenário de nascimento de Paulo Freire


em 2021 visualizamos, sobretudo, o futuro do seu pensamento-a-
ção. Partimos da constatação da extrema atualidade e pertinência
dos seus temas e das principais indagações da sua pedagogia da
pergunta.
Difícil haver contestação sobre a atualidade de temáticas como:
pedagogia dialógica, educação e liberdade, consciência crítica do
educador-educadora, epistemologia política, educação popular,
educação como ação cultural, opressão educativa, pedagogia contra
hegemônica, autonomia, inseparabilidade educação-política, espe-
rança ontológica na educação transformadora... entre tantos outros
temas.
8
Entre os quais podemos destacar Pedagogia da indignação (2014), Pedagogia da Solida-
riedade (2014), Pedagogia dos sonhos possíveis (2014), Pedagogia da Tolerância (2015) e
Pedagogia do compromisso: América Latina e Educação Popular (2018).
Muitas das suas perguntas/questões/investigações continuam a
nos impactar como uma trilha do futuro da educação. Podemos en-
feixá-las (a seguir) como parte da pedagogia da pergunta. A nosso
sentir, servem para pensar a utilidade dos conceitos e propostas
de Freire para o cotidiano da educação e da escola (SCOCUGLIA,
2020c), hoje.
De início, já alertamos de que o formato de questões a serem
problematizadas, essência do pensamento-ação de Paulo Freire,
não escondem (ao contrário) afirmações a serem debatidas e con-
ceitos nelas embutidos.
Ademais, exercendo sua pedagogia da pergunta, tentaremos sub-
sidiar as questões seguintes. Não queremos respondê-las por com-
pleto e definitivamente e, sim, contribuir para que o próprio leitor
as aprofunde, problematizando-as. Acima de tudo que interaja com
o texto e nos ajude a refazê-lo, reinventando-o - como solicitado por
52 Freire ao longo de toda a trajetória do seu pensamento-ação.
No presente escrito, optamos por privilegiar questões político-e-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

pistemológicas centrais do legado freiriano (intimamente entrela-


çadas). Vamos ao exercício?

1. Como o diálogo e a comunicação impactam a aprendizagem


na atualidade? Segundo Freire, os homens e as mulheres são
seres de relações, aprendem juntos, em comunhão. Apren-
demos na interação de saberes, inclusive no entrelaçamento
dos saberes do senso comum e do saber elaborado/escolar/
científico. A ação dialógica (ou o agir comunicativo, diria
Habermas (2012), pode vir a ser um motor da aprendiza-
gem, inclusas as tecnologias atuais que potencializaram vi-
gorosamente a comunicação entre todos os que fazem a es-
cola (docentes, discentes, gestores, pais e mães, comunidade
escolar etc.). A tragédia pandêmica atual, apesar de toda a
sua destruição e demonstração visceral das nossas imen-
sas desigualdades, exacerba a atenção para todas as formas
de diálogo e comunicação, impõe a fabricação de políticas
públicas urgentes neste sentido. Mais do que isso, convoca
a todos e todas para resolverem juntos suas pendências e
nos impele a refletir sobre as aprendizagens necessários
para podermos viver juntos (iguais e diferentes). Freire fez
do diálogo e da comunicação um veículo pedagógico cen-
tral das suas propostas, nitidamente atuais e prospectivas
para o século XXI. Além dos seus escritos iniciais que trazem
abundantes reflexões sobre essa temática central, podemos
citar Pedagogia: diálogo e conflito (GADOTTI e GUIMARÃES,
1985a) para maior aprofundamento.

2. Por que a liberdade e a democracia são vitais para a aprendi-


zagem e a educação (inclusive escolar)? O exercício da liber-
dade, do pensamento e das atitudes livres são componentes
ontológicos dos seres humanos. E a educação, segundo nos-
so autor, deve ser uma prática da permanente conquista e 53
construção da liberdade. Por seu turno, democracia também

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


se aprende no sistema escolar e na escola da vida. No Brasil
atual, que pensava a democracia e liberdade como fatores
consolidados, e constatou o recrudescimento do autorita-
rismo (e, por consequência do ataque às liberdades em to-
dos os seus níveis), a defesa e a luta intransigente de Freire
(ele próprio exilado da ditadura militar) por ambas, torna-
-se ainda mais atual. Também serve de alerta para o atual
enfraquecimento “por dentro” da democracia em muitos
países, a exemplo do Brasil. A radicalidade de Freire na de-
fesa da democracia (do diálogo, da liberdade, da pedagogia
crítica...) como valor inegociável, explica vários dos ataques
que o educador sofre atualmente. Presentes desde Educação
como prática da liberdade (op. cit.) e enfatizadas ao longo da
extensa obra de Freire, liberdade e democracia chegam até
seus livros póstumos. Não precisamos de muitos argumen-
tos para notar a pertinência atual e futura desta que é uma
das mais caras teses de Freire.
3. Liberdade e licenciosidade. Autoridade e autoritarismo. Na
prática educativa, são as mesmas coisas? Freire sempre com-
bateu com veemência a licenciosidade e o autoritarismo,
além de reiterar o caráter diretivo da prática educativa. Em
Medo e ousadia – o cotidiano do professor (1987), um dos
seus livros dialógicos mais importantes, escrito com Ira
Shor, concordou que o professor e a professora devem ser
reinventores/as do conhecimento e este não deve ser trans-
mitido de maneira “bancária”, mas, sim, compartilhado com
os/as educandos/as nas suas respectivas descobertas. Para
isso, a autoridade docente e a liberdade discente, faces en-
trelaçadas da mesma prática educativa, são fundamentais.

4. Como (além as crianças) os jovens e adultos aprendem ao lon-


go da vida? O conceito de educação e aprendizagem ao longo
54 da vida, defendido pela UNESCO (op. cit.) como lema funda-
mental da do século XXI, está colocado por Freire desde as
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

suas primeiras preocupações com a educação dos adultos


quando começou a dirigir a educação do SESI de Pernam-
buco nos anos 1940. Além de corroborar as pesquisas que
mostram que as crianças, os jovens e os adultos aprendem
de maneira diferente interagindo com os seus respectivos
“mundos da vida” (HABERMAS, 2012), Freire se mostra um
árduo defensor dos direitos de todos ao conhecimento e à
educação. Para ele, os jovens e os adultos das camadas po-
pulares têm três direitos fundamentais: (a) de conhecer me-
lhor o que já conhecem; (b) de ter acesso ao conhecimento
que lhes foi negado, inclusive em termos de escolarização
e (c) de produzir um conhecimento que respalde às suas
necessidades, valores e possibilidades de emancipação.
Ademais, para além das usas próprias ideias, os encontros
e leituras de Anísio Teixeira (a exemplo de Educação não é
privilégio, 1957) e a inspiração de John Dewey (1979), quan-
to aos métodos ativos de aprendizagem, ajudaram a arraigar
ainda mais essa convicção.
5. Como a educação contribui para a transição da consciência
ingênua para a consciência crítica? Para Freire não consegui-
mos separar educação-conhecimento-conscientização. E, a
princípio - lendo Vieira Pinto (1960) e Kosik (1969) -, suas
elaborações dão conta de uma permanente transição da in-
genuidade à criticidade quando tentamos nos apropriar de
um determinado conhecimento. A educação, enquanto ação
cultural, seria a base da caminhada incessante de um polo a
outro, constatando que nunca “conhecemos tudo” ou nunca
estaremos totalmente conscientes de determinado fenôme-
no/acontecimento/processo e, sim, sempre à busca de com-
preendê-lo na constante transição da consciência ingênua
para a consciência crítica. No mesmo sentido de Boaventura
Santos (2000), para Freire, a justiça social caminha junto com
a justiça cognitiva. E suas conquistas (enquanto direito huma-
no) tem, como vetor a permanente, a transitividade da cons- 55
ciência – inseparável e mediada pelos processos educativos.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


6. Como as camadas populares constroem sua educação e apren-
dem? Freire visualiza as dificuldades inerentes às posições
subalternas das camadas populares que, se não superadas,
contribuem para perpetuação de uma pedagogia da opres-
são. Explícito está que não há neutralidade nos processos
educativos e, em sua maioria, tendem (voluntariamente
ou não) à manutenção dessa subalternidade. A relevância
dessa discussão, em um país marcado pelas imensas de-
sigualdades conhecidas, continua a nos impactar e a atual
pandemia exacerbou ainda mais tais disparates. Assim, pen-
sar uma educação das camadas populares que parta e/ou
incorpore sua cultura, seus valores e necessidades torna-se
absolutamente necessária e atual. Mais, torna-se um desafio
imenso e decisivo para o nosso futuro. Trata-se, não só de
um problema da atualidade brasileira, mas também de toda
América Latina, África etc., enfim, do que Boaventura Santos
destaca em Epistemologias do Sul (2017).
7. O conhecimento do senso comum pode ser o ponto de partida
para o conhecimento elaborado-escolar-científico? Uma das
teses de Freire mais utilizadas o “saber da experiência feito” e
os saberes da vida, mesmo que seja do pouco tempo vida das
crianças, tem sido tomado como base inicial de um conheci-
mento mais elaborado. Os pesquisadores da educação mate-
mática, por exemplo, desde Ubiratan D’Ambrósio (1986), tem
trilhado tal caminho. O mesmo tem acontecido no aprendiza-
do da Física (DELIZOICOV et alii, 2017). Além da utilidade e
dos resultados práticos dessa empreitada, subjacente está a
“ecologia de saberes” (SANTOS, 2000) e o respeito pelos sabe-
res outros que não o exclusivamente patrocinado pela ciência
(por mais relevante e decisivo que este seja). A nosso ver, essa
é uma das questões mais relevantes a serem resolvidas pelos
sistemas escolares, especialmente se quiserem enfrentar e
56 avançar na direção do pertencimento e do protagonismo das
camadas populares na construção de uma escola democrática
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

- na qual seus estudantes, professores, dirigentes, familiares


e servidores sejam realmente os sujeitos da sua consecução
(SCOCUGLIA, 2020c).

8. O conhecimento científico é superior ao conhecimento do sen-


so comum? Para Freire, todos os saberes e conhecimentos
são decisivos e importantes. Entrelaçar os conhecimentos
iniciais do aprendente e os já postos ou em processo de pes-
quisa pelos vários matizes científicos, demonstra, na própria
prática escolar, e não superioridade de um em relação ao ou-
tro e, sim, a necessidade da convivência horizontal e coope-
rativa entre eles. A motivação na aprendizagem tem sido um
dos alicerces práticos mais convincentes da utilização com-
partilhada. Isso extensivo à “escola da vida” que, frequente-
mente flagra engenheiros e mestres de obra, agricultores e
técnicos, músicos populares e eruditos, entre tantos outros
exemplos, interagindo e fazendo avançar os conhecimentos
de ambos. Certamente, muitos/as professores/as, possíveis
leitores deste artigo, têm experiências demonstrativas des-
se caminho que precisa, mais e mais, ser expandido visando
o sucesso da aprendizagem e da própria escolarização (in-
cluindo o enfrentamento de uma questão vital da atualida-
de: a saída precoce dos estudantes do processo formal de
educação). Desde os escritos de Extensão ou comunicação?
(1983), Freire se preocupa com essa dicotomia, que nos re-
mete também à “ecologia de saberes” (SANTOS, 2000).

9. Como se problematiza a realidade para aprender a modifi-


cá-la? Freire defende a ideia, base do seu pensamento-ação,
de que a leitura do mundo precede a leitura das palavras. A
nomeação do “mundo da vida” tem como pressuposto, a re-
presentação que cada indivíduo ou grupo faz desse mundo
e de suas partes. Neste sentido, a problematização do que
é vivenciado por cada ser humano, na vida da escola e na 57
escola da vida, pode ser uma base frutífera de um diálogo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


epistemológico e, como sempre, diálogo cultural, social e
político. Partir da própria cultura (no sentido do quefazer
humano) vivenciada por educandos, e refletir/problemati-
zá-la, seja no processo inicial de alfabetização (nos círculos
de cultura) ou na sequência das suas aprendizagens, consti-
tui contribuição relevante das propostas de Freire. Claro que
a pedagogia da pesquisa, da pergunta e da problematização
está na raiz da contribuição deste pensador à educação atual
e futura. Tal aporte percorre toda a sua obra, mas podemos
destacar os livros Pedagogia do oprimido e Por uma pedago-
gia da pergunta (ambos já citados) como leituras básicas.

10. Porque usar métodos ativos e não passivos de ensino-aprendi-


zagem? Quando Freire defende a educação problematizado-
ra, em detrimento e crítica contundente à educação bancá-
ria, desde a Pedagogia do oprimido (op.cit.) e na sequência
da sua obra, implícito está uma das suas defesas mais enfá-
ticas de uma docência/discência (“dodiscência”) ativa que o
impactou a partir da sua tese de 1959 (Educação de atualida-
de brasileira, op. cit.). Desde então, a incorporação de teses
de John Dewey (1979) e Anísio Teixeira (1957) marcam sua
pedagogia política e a elaboração sequente da conceituação
de educação popular que a permeia. Freire elabora suas per-
guntas-problemas como um tecido complexo (MORIN, 2000)
- entrelaçando bases pedagógicas, mas, também, sociais,
políticas e culturais/antropológicas -, apostando sempre
nos métodos ativos de ensino-aprendizagem dos conteúdos
educativos e escolares. E, ainda, combatendo a aprendiza-
gem passiva/narradora, na qual há transmissão e consumo
de conhecimento, sem curiosidade, sem descobertas, sem
criatividade, sem ligação com a vida de cada aprendente.

11. Por que defender/praticar a pedagogia da pergunta e, não,


58 da resposta? Para Freire, a “pedagogia da resposta” que, em
geral, continua a guiar nossas escolas e seus respectivos
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

currículos, castra a curiosidade, a descoberta, a pesquisa


e a problematização - que são as bases da pedagogia da
pergunta. Ao contrário de fomentar atitudes de pesquisa
e problematização dos conteúdos do conhecimento nas
ações educativas, que não deveriam estar separadas da do-
cência, nem da discência, a pedagogia que insiste em fazer
com que professores/as, livros e materiais didáticos con-
centrem-se em doar respostas e transmitir conhecimento,
institui atitude passiva, inibe a busca do conhecimento, in-
centiva a pura crença no professor/a e nos livros e, ainda,
perpetua a verticalidade escolar sem colaborar para de-
mocratização das relações de poder na educação (que são
alicerçadas em um suposto polo que “sabe tudo” e outro
que ignora tudo, ou seja, numa atitude bancária de depó-
sito de conhecimento). Por seu turno, impede a conquista
da autonomia em relação à busca do conhecimento pelos
participantes da prática educativa. Talvez este seja um dos
fatores responsáveis por parte significativa do fracasso da
escola atual, nos seus vários níveis – inclusive universitá-
rio. O diálogo de Freire com Antonio Faundez no livro Por
uma pedagogia da pergunta (op. cit.) nos incentiva a busca
da continuidade dessa reflexão.

12. Por que círculos de cultura superam estruturas expositivas e


verticais de aprendizagem? A ideia do círculo de cultura con-
templa sempre a possibilidade concreta da participação de
todos/todas, do diálogo, da interação permanente e da de-
mocracia do espaço. Impede a verticalização tão presente na
própria geografia das nossas salas de aula. Já nas primeiras
propostas de Freire, os círculos deveriam acolher e agregar
as culturas inerentes a cada um dos participantes, suas pa-
lavras e expressões mais cotidianas, ou seja, trazia a ideia
do pertencimento tão cara a uma educação inclusiva e com
todos/as. A proposta iniciava com o acolhimento das pala- 59
vras-mundo captadas pela pesquisa do universo vocabular

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dos participantes – no caso da alfabetização. Mas, por certo,
pode se estender aos outros níveis educativos e escolares.
Essa tese já vem das primeiras experiências brasileiras com
o chamado “Método Paulo Freire”, registradas na Revista Es-
tudos Universitários IV (1963) e no livro Educação como prá-
tica da liberdade (op. cit.), mas, suas ideias centrais são nota-
das em toda trajetória de Freire, inclusive, por exemplo, nas
suas contribuições à educação de países africanos (a partir
do Conselho Mundial de Igrejas, nos anos 1970) presentes
em Cartas à Guiné-Bissau (op. cit.) e outros escritos.

13. Por que a educação constitui uma ação cultural? No início dos
anos 1960, Paulo Freire trabalha num contexto que juntava
educação de adultos e cultura popular. No SEC-UR produzia o
Sistema Paulo Freire de Educação (e dentro dele o “Método”
de alfabetização de adultos), ao mesmo tempo que, também,
protagonizava ativamente o Movimento de Cultura Popular
de Pernambuco. Também desde o começo, pensou nos cír-
culos de cultura como lócus da aprendizagem. Da antropo-
logia fez um dos seus alicerces de valorização da cultura dos
“esfarrapados do mundo” (FANON, 1968) como propulsão
do “saber da experiência feito” que quer ascender ao saber
elaborado/científico. Reiterou, sempre, que educação deve
ser uma ação cultural para a liberdade (FREIRE, 1984c). Seu
primeiro bloco de escritos (SCOCUGLIA, 2020a) evidencia
a defesa da cultura (de base existencial e personal) como
quefazer humano e que diferencia ontologicamente os hu-
manos da natureza (apesar de constituírem o mesmo ecos-
sistema). Destarte, o respeito pela diversidade (em todos
os seus níveis) e pela multiculturalidade e, especialmente,
a aposta radical na democratização da cultura e na educação
popular constituem possibilidades da cidadania por meio da
conquista dos direitos civis, sociais e políticos. Nesta dire-
60 ção, a ideia da educação popular como porta de entrada da
conquista dos direitos sociais que impelem à batalha pelos
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

outros direitos citados (CARVALHO, 2000) ilumina o pensa-


mento-ação de Paulo Freire.

14. Por que a educação não se separa da política? A favor de quem


e contra quem exercemos nossas práticas de educadores e
educadoras? Uma das defesas mais marcantes da pedagogia
política de Paulo Freire é a denúncia da pseudoneutralidade
das práticas educativas. Continuamos a observar currículos
e políticas educacionais que partem de um pressuposto fá-
cil e “garantido” pelo equivoco de que todos somos iguais e
a educação é neutra. Certo é que ao se declararem neutras,
voluntariamente ou não, as políticas educacionais favore-
cem os já favorecidos em detrimento da grande maioria da
população. Ademais, assim como a educação é exclusivida-
de ontológica humana e os homens e as mulheres são se-
res que crescem ao longo do tempo (ou seja, somos seres
históricos) e durante esse crescimento formam-se enquan-
to seres da escolha, da decisão e que exercem suas opções
(portanto, são seres políticos), é consequente reconhecer,
como faz Freire, que se torna humanamente impossível se-
parar a educação, da história e da política. Tal vínculo, eixo
central da construção do pensamento-ação de Freire, per-
manecerá atual e prospectivo e, acima de tudo, decisivo nas
proposições pedagógicas práticas e teóricas. Essas e outras
argumentações, disseminadas em toda a obra freiriana, sus-
tentam a pedagogia (do oprimido) que aposta suas fichas na
construção de uma educação lastreada nos valores, nos inte-
resses, na cultura, nos saberes e na autonomia das camadas
populares. Nessa trilha, têm protagonismo decisivo os edu-
cadores e educadoras que aderem ao sonho emancipatório
dos oprimidos (Freire), dos “condenados da terra” (FANON,
1968), dos fazedores da “escola do povo” (FREINET, 1996),
entre outros interlocutores da educação contra hegemônica
(GRAMSCI, 1982; AMÍLCAR CABRAL, 1976). 61

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


15. Quem educa o(a) educador(a)? Freire pensa a formação das/
os educadoras/es por vários ângulos. Um dos mais relevan-
tes é, via Gramsci (1982), pela compreensão dos/as edu-
cadores/as como intelectuais orgânicos, ou seja, como “es-
pecialistas e dirigentes”. Especialista porque o educador/a
precisa da formação técnica, ou seja, é inconcebível, por
exemplo, que uma professora de geografia não saiba geogra-
fia. Ou que o professor de matemática não seja especializado
no conteúdo que ensina (sempre aprendendo). Sem esque-
cer que o conhecimento é conquista permanente e nunca
finalizada, para Freire (porque “ninguém sabe tudo e nin-
guém ignora tudo”). Por outro lado, o/a educador/a, para
Freire, precisa ser organizador e dirigente da própria ação
educativa (sem ser autoritário) que, por si mesmo, também
é cultural e política. Ademais, o professor e a professora são
educados no diálogo, no trabalho, na ação comunicativa coti-
diana com seus educandos/as, como seus colegas e gestores,
enfim, no cotidiano da história (HELLER, 1970). E, quanto
mais colaboram na construção do senso de pertencimento
próprio e dos demais sujeitos ao processo educativo, mais
contribuem para a sua própria educação (que, por suposto,
é permanente, como os processos de conhecimento e cons-
ciência inerentes às práticas educativas).

16. Por que os aspectos personais e existenciais dos humanos são


fontes da educabilidade e, também, da política? Pelos mes-
mos motivos que a amorosidade, a empatia, a consciência
crítica, a solidariedade, a esperança e a construção da his-
tória como possibilidade do novo (defendidas por Freire)
devem ser determinantes na educação. Já entendemos que
os humanos são seres de relações, para Freire. Não existem
em si mesmos, mas, se tornam humanos nas relações com
os outros. Nas práticas educativas, neste caminho, as rela-
62 ções de empatia, amorosidade, acolhimento e solidariedade,
especialmente na educação das camadas populares, são de-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cisivas para estancar, por exemplo, o fracasso e a crescente


desistência escolar/educativa dos jovens e adultos. Por ou-
tro lado, entrelaçado a essas atitudes, as preocupações com
a formação da personalidade e a construção da existência
pessoal e coletiva dos sujeitos da grande maioria da socie-
dade brasileira estão na base das tentativas anti-opressivas,
antirracistas, de respeito à diversidade e da escuta do ou-
tro, entre tantas atitudes decisivas, defendidas por Freire e
por todo seu legado. Os espelhos observados nas relações
educador(a)-educando(a) constituem amostras nítidas des-
sas relações. Quando levadas a bom termo, podem gerar um
sentimento (pessoal, existencial, mas, também, coletivo)
de pertencimento, de ativação de um micropoder e de um
enfrentamento dos problemas sociais na perspectiva histó-
rica da transformação e do novo, contra a história fatalista
que teria chegado ao fim. Claro que essa visão educativa (e
histórica) é movida por uma pedagogia da esperança. Esta,
para Freire, é ontológica dos homens e das mulheres que
nunca escapam da educação (embora muitos estejam fora
da escola) e nunca deixam de fazer história, política e cul-
tura. Aqui encontramos um dos aportes mais relevantes do
nosso autor: a história como possibilidade permanente de
construção do novo! História que compreende a inseparabi-
lidade passado-presente e aposta no futuro dos homens e
das mulheres como construtores de um mundo ainda inédi-
to, mas, viável (por mais difícil que seja, hoje). E que, certa-
mente, não têm a Educação como a única alavanca de trans-
formação, mas, percebem que sem ela não há possibilidade
de construir um país e um mundo melhor.

Poderíamos continuar a perguntar e a investigar os caminhos da


pedagogia de Freire com muitas (outras) questões. A nosso ver, não
temos melhor caminho para constatar a atualidade e a pertinên-
cia das suas sendas para a educação do futuro. Quem aprofunda as 63
leituras nos seus escritos, conforme seus tempos históricos, argu-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


mentados anteriormente, percebe o quanto são caras as perguntas,
as curiosidades e as constantes investigações que identificam Paulo
Freire como um cientista da educação (SCOCUGLIA, 2020a).
Um cientista que, desde o começo, propõe a pesquisa do universo
vocabular para a alfabetização, que não separa a docência da pes-
quisa na atuação dos/as professores/as e que defende a pedagogia
da pergunta (da pesquisa e do problema) como proposta educativa
central.

Considerações finais

Começamos estas considerações detalhando um fato por vezes


desapercebido, mas, absolutamente relevante: na passagem do sé-
culo, a UNESCO reuniu especialistas de todo o mundo para analisar
a educação do século XX e prospectar a educação do XXI. O docu-
mento final, conhecido com Relatório Jacques Delors (publicado no
Brasil como Educação – um tesouro a descobrir, 2000), elegeu como
tema central do século XXI “a aprendizagem e a educação ao lon-
go de toda a vida”, assim como enfatizou os “pilares da educação”
(aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a viver juntos e
aprender a ser). O tema central remete obviamente a uma tese dire-
ta de Paulo Freire que, sempre pugnou (desde os anos 1940/1950)
pela educação dos adultos - depois chamada “de jovens e adultos”,
além das crianças -, e o direito de todos/as ao conhecimento em
todas as etapas das suas vidas.
Em outras palavras: especialistas em Educação de todo o mundo
decidiram que o tema central da educação do século XXI deve ser
uma das teses centrais da práxis de Paulo Freire, exercida durante
50 anos (1947-1997), em todos os tempos (e locais) da sua traje-
tória de educador e da sua obra! Também por isso Freire é um dos
pensadores mais lidos, citados e referenciados das ciências huma-
nas, hoje!
64 Com efeito, o alicerce das suas propostas político-pedagógicas
foi construído na segunda metade do século XX, décadas extrema-
mente peculiares do nosso tempo. Mas, as singularidades ineren-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tes aos 50 anos dos seus trabalhos, não impediu que, a partir dos
vários locais de trabalho constituintes da sua trajetória, projetasse
suas propostas de educação política. Sempre ligando a prática edu-
cativa local (no Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos, na
Europa, na África...), componentes das suas inserções de trabalho
(coletivo) nesses vários contextos específicos e datados, conseguiu
que sua pedagogia convencesse e impactasse a educação mundial –
com sua marca original, criativa e definitivamente marcante!
Obviamente, em função das suas posições político-pedagógicas,
Freire nunca foi unanimidade. Fez questão de se mostrar incomple-
to e inacabado. Solicitou sempre que suas ideias fossem comple-
mentadas. Nunca teve a presunção de um pensamento definitivo e
acabado, ao contrário. Argumentava que quanto mais certo estava
de suas ideias, mais desconfiava delas. Quando pensava na totalida-
de de sua obra pensava sempre na necessidade de contextualizá-la
e reinventá-la. Repetiu isso para seus interlocutores mais próximos,
em entrevistas e debates e nos seus últimos escritos.
Tais posições, a nosso ver, o tornam ainda mais atual em con-
comitância com uma crise de paradigmas sem precedentes e que
se arrasta por décadas (SCOCUGLIA, 2019a). Tal crise pulverizou
as certezas epistemológicas! Freire antecipou e cultivou a incerteza
quando pugnou com veemência pela pedagogia da pergunta e, não,
da resposta pronta (que anula a curiosidade e o ciclo do conheci-
mento), da crença e da certeza – essas, sim, inexistentes!
Existe algo mais atual do que a incerteza? Existe algo mais com-
plexo/problemático/incerto que as perguntas que nos assombram,
hoje? E, note-se, Freire nos deixou há quase 25 anos, sem nenhuma
pandemia avassaladora da saúde e da sociedade!
Assim, pode-se adotar suas ideias, ou contestá-las, ou ainda re-
formá-las. Ou tentar suas reinvenções, acréscimos e complementa-
ções (que, insistimos, o próprio Freire sempre solicitou). Quando
levado a sério - e isso exclui leituras de “orelhas de livros”, comen-
tários por “ouvir dizer”, ou “achismos” de quem não o leu -, torna-se 65
difícil não sermos impactados por suas ideias e as práticas do seu

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


imenso legado. Sabemos que tal legado inclui dezenas de livros (pu-
blicados em vários idiomas), artigos, conferências, projetos, inter-
venções dialogadas, trabalhos em muitos países, gestão educativa,
produções (sempre) coletivas - que foram aportadas de Santiago do
Chile a Genebra, passando por Harvard/Estados Unidos e a África,
pela Europa e, também, pela Ásia. Além do Brasil pré e pós-ditadura
militar, somada à contribuição na fundação do Partido dos Traba-
lhadores e no apoio, assessoria e inserção nos movimentos sociais
(Movimento dos Sem Terra - MST etc.) nos anos 1980/1990.
Destarte, novos esforços de pesquisas são amostras eloquentes
da sua atualidade. Podemos exemplificar com o Dicionário Paulo
Freire (2018, 4ª. edição) que mostra centenas de verbetes da sua
obra, escritos por mais de 100 pesquisadores. Por outro prisma,
o livro Paulo Freire: uma arqueologia bibliográfica (2019) indica
os caminhos dos principais pensadores com os quais dialogou
para construir seu pensamento-ação. O livro The Wiley Handbook
of Paulo Freire (publicado nos Estados Unidos, 2019), também
reuniu dezenas de pesquisadores de todo o mundo. Outras tantas
obras foram e estão sendo editadas no centenário de Paulo Freire.
Muitos serão os dossiês publicados. Toda essa produção em tor-
no do legado de Paulo Freire reforça a sua inclusão no espectro
da história das ideias educativas/pedagógicas do tempo presente
(SCOCUGLIA, 2006).
Temos agora uma renovada esperança: o interesse e a atual pro-
fusão de escritos de/sobre Paulo Freire ou inspirados no seu lega-
do, motivada pelas celebrações locais e mundiais dos 100 anos do
seu nascimento, trazem um novo alento. Provavelmente proporcio-
narão um aprofundamento da compreensão da sua vasta obra (prá-
tica-teórica, definição de práxis), além de agregar um número cres-
cente de pesquisadores/as e educadores/as interessados/as. Para
os que já trilham os caminhos da investigação do legado freiriano,
também se apresentam novas possibilidades de redescoberta de
pontos e passagens (antes não notadas) ou de novos enfoques trazi-
dos pelas tantas publicações. Aliás, este é o movimento epistemoló-
66
gico incessante advogado por Freire. Desde as propostas inseridas
na Revista de Estudos Universitários IV (Universidade do Recife, op.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cit.), passando por Pedagogia do oprimido (op. cit.), avançando nos


“escritos africanos”, nos livros dialógicos, alcançando a Pedagogia
da autonomia (op. cit.) e desaguando nos seus escritos póstumos.
Reiteramos a necessidade premente de lê-lo em sua totalida-
de, comparar seus escritos, verificar seus contextos históricos de
escrita, acompanhar sua trajetória prática e compilar a influência
explícita das bases e das conexões dos seus escritos (SCOCUGLIA
2019a, 2019b, 2020a, 2020b) com tantos outros pensadores. Sua
obra continua sequiosa de complementaridades e diálogos, inclusi-
ve com as práticas educativas dos/as educadores/as que a utilizam.
Como podemos notar, a partir do legado freiriano, temos muito
para fazer no presente e no futuro.

REFERÊNCIAS

CABRAL, Amílcar. Unidade e luta. Bissau: Mimeo, 1976


CARVALHO, José M. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Da realidade à ação – Reflexões sobre


educação e matemática. São Paulo: Summus, 1986.

DELIZOICOV, Demétrio et alii. Ensino de ciências: fundamentos


e métodos. São Paulo: Cortez Editora, 2017.

DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Cia. Editora


nacional, 1979.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civili-


zação Brasileira, 1968.
67
FREINET, Célestin. Para uma escola do povo. São Paulo: Mar-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


tins Fontes, 1996.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1980b.

FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1983.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Ja-


neiro: Paz e Terra, 1984a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1984b.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984c.
FREIRE, Paulo. Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a


Pedagogia do oprimido. São Paulo: Cortez, 1992.

FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Cortez,


1996.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo:


Cortez, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Rio de Janeiro: Paz


68 e Terra, 2014.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Solidariedade. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do compromisso: América latina e


educação popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. Rio de Janeiro; Paz e


Terra, 2020.

FREIRE, Paulo et alii. Revista Estudos Universitários IV. Recife:


Universidade do Recife, 1963.
FREIRE, Paulo et alii. Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo:
Cortez/Ass., 1985a.

FREIRE, Paulo et alii. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1985b.

FREIRE, Paulo et alii. Medo e ousadia - o cotidiano do professor.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987a.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da terra. São Paulo: Peirópolis,


2000.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
69
HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: racionalida-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


de da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes,
2012.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1970.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1969.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da


Unicamp, 1990.

MORAIS, Clodomir S. Cenário da libertação – Paulo Freire na


prisão, no exílio e na universidade. Porto Velho: Edufro, 2009.

MORIN, Edgar. O método. As ideias. Porto Alegre: Sulina, 2000.


PITANO, Sandro et alii (org.). Paulo Freire – uma arqueologia
bibliográfica. Curitiba: Appris, 2019.

SANTOS, Boaventura. Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez


Editora, 2017.

SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das


linhas globais a uma ecologia de saberes, 2000. Disponível em:
https://ces.uc.pt/bss/documentos/Para_alem_do_pensa-
mento_abissal_RCCS78.PDF. Acesso em: 19 out 2021.

SCOCUGLIA, Afonso. Paulo Freire e a conscientização na tran-


sição pós-moderna, In: Revista Educação, Sociedade & Cultu-
ras. N. 23. Porto, Portugal: CIIE/Edições Afrontamento, 2005.
Disponível em: https://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ES-
70
C23/23-Afonso.pdf. Acesso em: 19 out 2021.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

SCOCUGLIA, Afonso. (org.). Paulo Freire na história da educa-


ção do tempo presente. Porto, Portugal: Edições Afrontamen-
to, 2006.

SCOCUGLIA, Afonso. A história das ideias de Paulo Freire e


a atual crise de paradigmas. João Pessoa: Editora da UFPB,
2019a. Disponível em: http://www.editora.ufpb.br/sistema/
press5/index.php/UFPB/catalog/view/138/56/548-1. Aces-
so em: 17 out 2021.

SCOCUGLIA, Afonso. Bases and Connections of Pau-


lo Freire’s “Thought in Action”. In: TORRES, Carlos A. The
Wiley Handbook of Paulo Freire. New York (USA): Wiley,
2019b. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/
pdf/10.1002/9781119236788.ch18. Acesso em: 19 out 2021.
SCOCUGLIA, Afonso. O que temos para historicizar, destacar
e prospectar nos 100 anos de Paulo Freire? In: Revista UNI-
FREIRE. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2020a. Disponível
em: https://www.paulofreire.org/images/pdfs/revista/re-
vista_unifreire_2020.pdf. Acesso em: 19 out 2021.

SCOCUGLIA, Afonso. Pedagogia do oprimido: um ícone aos 50


anos. In: Revista Educação, Sociedade & Culturas. N. 56. Por-
to (Portugal): CIIE/Edições Afrontamento, 2020b. Disponível
em: https://www.fpce.up.pt/ciie/sites/default/files/Afon-
so%20Scocuglia.pdf. Acesso em: 19 out 2021.

SCOCUGLIA, Afonso. O legado de Paulo Freire para a escola


popular do tempo presente. In: Revista La Piragua. N. 46. Mé-
xico: Ceaal, 2020c. Disponível em: https://www.ceaal.org/
v3/bibliotecaCEAAL/revistalapiragua/revistaLaPiragua46. 71
pdf. Acesso em: 19 out 2021.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


STRECK, Danilo et alii (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2018.

TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. São Paulo: Cia.


Editora Nacional, 1957.

TORRES, Carlos (org.). The Wiley Handbook of Paulo Freire.


New York (USA): Wiley Blackwell, 2019.

UNESCO (Relatório Delors). Educação: um tesouro a descobrir.


São Paulo: Cortez Editora, 2000.

VIEIRA PINTO, Álvaro. Consciência e realidade nacional. Rio


de Janeiro: ISEB, 1960.
RESUMO
Este artigo defende a tese de que Paulo Freire é um educa-
dor do presente e do futuro. Ao contrário das pesquisas que
o estacionaram no passado, destacamos a construção do seu
pensamento-ação em cinco tempos históricos e - por meio de
algumas das suas principais questões, perguntas e problema-
tizações -, constatamos a sua atualidade e a prospecção das
suas ideias para o século XXI. Da relevância da ação dialógica-
-comunicativa no processo de aprendizagem à valorização do
conhecimento do sujeito aprendente como ponto de partida
para o conhecimento elaborado, passando pela importância
da escola na prática da liberdade, da autonomia e da demo-
cracia, ou ainda, pela defesa da pedagogia da pergunta e da
pesquisa contra a pedagogia da crença e do depósito de sabe-
res, entre outras propostas cruciais, notamos reconstruções
de conceitos, argumentos e paradigmas que o atualizam e se-
72
guem impactando educadores/as e especialistas em Educa-
ção ao redor do mundo. Além de justificar, hoje, sua inclusão
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

entre os três pensadores mais citados das ciências humanas


e a Pedagogia do oprimido entre os 100 livros mais lidos em
língua inglesa. No centenário de Paulo Freire (1921-2021) as
referências ao seu legado político-pedagógico (prático e teó-
rico) continuam crescentes, assim como as reverências à sua
definitiva importância como pensador da educação do pre-
sente e do futuro.
Palavras-chave: Educação Política, Tempos e Ideias de Paulo
Freire, Pedagogia da Pergunta, Pedagogia do Oprimido, Peda-
gogia da Esperança.

ABSTRACT
This article defends the thesis of Paulo Freire as an educator of
the present and the future. Unlike the research that parked him
in the past, we highlight the construction of his thought-action
in five historical times and - through some of his main questions,
questions and problematizations - we see his currentness
and the prospection of his ideas for the XXI century. From the
relevance of the dialogical-communicative action in the learning
process to the valuation of the learning subject’s knowledge as
a starting point for elaborated knowledge, passing through the
importance of the school in the practice of freedom, autonomy
and democracy, or even the defense of pedagogy from the
question and the research against the pedagogy of belief and
the deposit of knowledge, among other crucial proposals, we
notice reconstructions of concepts, arguments and paradigms
that update it and continue to impact educators and specialists
in Education around the world. In addition to justifying,
today, its inclusion among the three most cited thinkers in the
human sciences and Pedagogy of the Oppressed among the
100 most read books in the English language. In Paulo Freire’s
centenary (1921-2021), references to his political-pedagogical
legacy (practical and theoretical) continue to grow, as well as
references to his definitive importance as a thinker of present 73
and future education.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Keywords: Political Education, Paulo Freire’s Times and
Ideas, Pedagogy of the Question, Pedagogy of the Oppressed,
Pedagogy of Hope.

SOBRE O AUTOR
Professor Titular da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Mestrado em Educação (UFPB), Doutorado em História
(UFPE), Pós-Doutorado em Ciências da Educação (Université
de Lyon, França, 2009) e Pós-Doutorado em História e Filo-
sofia da Educação (Unicamp, 2010). Experiência em pesquisa
nas áreas de História, Arquivologia e Educação, atuando prin-
cipalmente nos campos da História da educação de jovens e
adultos, História das ideias de Paulo Freire, História e memó-
ria, História do tempo presente e Arquivologia.
PAULO FREIRE ESCREVENDO CARTAS À
MÃO: PEDAGOGIA, MEMÓRIA E ORATURA

Afrânio Mendes Catani1

não adianta escrever bem


se vc não tem o que dizer.
se vc tem o que dizer
é bom escrever bem.
ler ler ler ler ler
75
livros que são de lei

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


livros que são de ler
para melhor escrever
(Chacal, “Alô Poeta”, 11)

Para o mestre Paulo Freire Implantada a ditadura


Os problemas principais A longa noite surgia.
Não são questões pedagógicas, Proibido a dizer “não”
Mas, são elas como tais Quem ousasse ela punia
Questões políticas que devem Tanto aquele que ensinava
Ser discutidas bem mais. Como aquele que aprendia.
(Medeiros Braga, Cordel ao Educador Paulo Freire, p. 7 e 10)

Para Bárbara, Júlia, Bertha, Aurora… e quem mais chegar

1
Livre Docente em Educação. Professor Titular aposentado e Professor Sênior no Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo (USP). E-mail: amcatani@usp.br. Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/0416966816426212. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0656-3931.
Há já algum tempo publiquei um trabalho sobre as trajetórias
profissionais de Benedito Junqueira Duarte (1910-1995), Vinícius
de Moraes (1913-1980), Florestan Fernandes (1920-1995), Octa-
vio Ianni (1926-2004) e Pierre Bourdieu (1930-2002) e, quase no
final do texto, afirmava que Florestan - mas acho que poderia di-
zer o mesmo, ao menos, de Vinícius e de Benedito -, “se comparado
a Ianni, foi um falastrão” (CATANI, 2013, p. 92). Entendo que esse
mesmo juízo poderia ser aplicado a Paulo Freire (1921-1997), uma
vez que o educador recifense jamais economizou em seus escritos a
revelação de passagens e de experiências vividas, da tenra infância
aos últimos dias de sua profícua existência.
No resumo encaminhado às colegas que estão organizando o
conjunto das contribuições dedicadas à Freire escrevi que o objeti-
vo de meu capítulo era relativamente simples, qual seja, explorar o
costume de Paulo Freire de escrever cartas à mão destacando, em
76 especial, aquelas que aparecem em Cartas à Guiné Bissau (1977),
Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (1993) e Cartas
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis (1994). Nesses


três livros de sua autoria é possível encontrar um estilo de escrita
que mescla discurso acadêmico - pedagógico, fragmentos de me-
mória e elementos advindos de uma tradição oral. A análise per-
mite sugerir que os escritos à mão de Paulo ombreiam com uma
preciosa narrativa de consagrados cronistas brasileiros e insinuam
que ele sentia, com grande satisfação, ‘o roçagar da pena no papel’,
tal como aparece na feliz expressão do escritor e poeta português
Manuel Alegre (2005, p. 19).
Há cerca de três décadas eu acabara de defender meu doutorado
em Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP e, desde 1986, já era professor na Faculdade de Educação
dessa mesma universidade. Eu não percebi, mas na época inicia-
va-se uma nova era, que foi ganhando força de maneira bastante
ligeira:quem não fosse doutor praticamente não existiria em ter-
mos acadêmicos. Assim, recém-doutor, fui convidado por colegas
para integrar equipe de pesquisa para formular um projeto com a
finalidade de concorrer a edital do CNPq ou da FAPESP, não me re-
cordo bem. Na rubrica orçamentária, como eu escrevia à máquina,
datilografando tudo com cópia carbono, e também à mão, com es-
ferográficas de cores azul, preta ou vermelha, o pessoal resolveu
me azucrinar, dizendo que iria solicitar financiamento para que me
fossem comprados itens como tinteiro, pena de pato, mata-borrão,
borracha que apaga tinta lavável etc.
Em suma, a exemplo de Paulo Freire, até hoje, quando tenho con-
dições, escrevo meus textos à mão, me sentindo “mais próximo” da-
quilo que estou produzindo. Escrevo, rabisco, emendo, reescrevo,
acrescento e, na quase totalidade das vezes, sou eu mesmo quem
digita tais produções, promovendo ainda mais alterações no ma-
nuscrito original. Se o tempo permitir, faço a impressão, releio, ra-
bisco, altero e redigido o que seria a versão final.
Nessa perspectiva, talvez o mais apropriado seja transcrever al-
gumas passagens de um capítulo de autoria de Ana Maria Araújo
Freire (1996, p. 58-64), Processo de escrita de Paulo Freire. A voz da 77
esposa, extremamente revelador acerca da temática. Seu processo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


de escrever, segundo Paulo mesmo relata, não é apenas o de grafar
suas ideias com o lápis ou, o que lhe é mais habitual, com uma cane-
ta hidrográfica numa folha de papel,

mas o de produzir textos bonitos que exponha com exatidão


o seu raciocínio filosófico-político de educador do mundo.
Freire (...) elabora suas ideias mentalmente, anota em peda-
ços de papel ou em fichas ou as põe ‘no cantinho da cabeça’
quando elas surgem na rua, nas conversas ou durante a sua
fala em alguma conferência. (FREIRE, 1996, p. 58)

Prossegue Ana Maria (Nita): ele acumula tais anotações e depois,

quando as tem lógica, epistemológica e politicamente fil-


tradas, organizadas e sistematizadas, senta-se na cadeira
de sua escrivaninha e sobre um apoio de couro, com papel
sem pauta e de próprio punho, quase sempre sem rasuras e
sem nenhuma correção, escreve seu texto, cercando o tema,
aprofundando-o até esgotá-lo, ‘desenhando’ no papel branco
com caneta azul, fazendo muitas vezes os destaques com tin-
ta vermelha ou verde (...) Assim, quando se senta para escre-
ver não fica fazendo rabiscos ‘procurando inspiração’. Não.
Senta-se e escreve. Quase nunca muda seus parágrafos, suas
palavras, suas sintaxes ou a divisão dos capítulos de seus li-
vros. Pára para pensar ou para consultar um dicionário. É
disciplinado, atento, paciente. Nunca quer terminar afobado
ou irritado um texto porque tem a hora ou o dia para acabá-
-lo. (Freire, 1996, p. 59).

Após falar sobre a elaboração de alguns de seus livros, Nita escla-


rece que Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar surgiu
após Pedagogia da esperança. “Embora as cartas mudem de tema”,
segundo ela permanecem nas mesmas “a riqueza e o amadureci-
mento de sua linguagem de educador político’’. É uma linguagem
apaixonada e crítica que respeita o leitor-professor ao expor as
ideologias subreptícias a esse tratamento afetivo - Tia - e outros de
que a profissional da educação tem de estar consciente para radi-
78 calizar sua competência profissional” (FREIRE, 1996, p. 59). Cartas
a Cristina teve seu início em Genebra, sofrendo várias interrupções,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mas mantendo a continuidade de seus trabalhos anteriores. “Certo


de que as injustiças sociais não existem porque tem de existir, res-
pondeu aos desafios do nosso tempo escrevendo À sombra desta
mangueira, no qual buscou desmistificar as teses do neoliberalis-
mo” (FREIRE, 1996, p. 59).
A forma que Paulo deu a Professora sim, tia não...e Cartas a Cris-
tina experimenta grande diferença em relação à Pedagogia da espe-
rança ou À sombra desta mangueira: nestes primeiros dois livros
ele trata os temas-problemas em forma de cartas porque as con-
sidera mais comunicativas do que a forma tradicional de ensaios
(FREIRE, 1996, p. 59 e 61).
Para Nita, quando seu marido escreve, vai “lendo” outros autores
e relendo a si próprio, “da mesma maneira que ao ler a si e a outros
autores vai, ao mesmo tempo, escrevendo ou re-escrevendo a si e
aos outros” (FREIRE, 1996, p. 61).
Após acompanhar as observações de Nita, de ler vários outros
livros, artigos e entrevistas de Paulo, de tomar conhecimento de
como ele anotava tudo o que vivenciava e reflexionava, de como
produzia e organizava cuidadosamente o conjunto de suas fichas,
de como trabalhava pacientemente a carpintaria e a escrita de seus
textos, observo, a partir de A era das cartas, de Antoine Compagnon
(2019), professor de literatura francesa na Universidade de Colum-
bia (Nova York) e no Collège de France, que o educador brasileiro
tinha razões objetivas para ser zeloso. Esse livro, como diz Laura
Taddei Brandini (2017, p. 7) no prefácio, anuncia um tempo que
não existe mais, recuperado por meio de cartas que o oferecem ao
leitor fragmentos de uma amizade que existiu entre Roland [Bar-
thes] e Antoine [Compagnon], entre o professor e o então jovem
aluno - este lembra ainda que há trinta ou quarenta anos, muita
gente escrevia cartas quase todos os dias, não sendo incomum vá-
rias por dia. Em Paris elas chegavam pelo correio duas vezes ao dia
(COMPAGNON, 2019, p. 17).
Gravitando de Paulo a Barthes e acompanhando o método de
79
trabalho de Barthes, com uma variada gama de registros de seus

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


pensamentos e práticas, Antoine escreve algo com que concordo
plenamente: “Aprendi, com ele que a escrita é um labor de escravo
e que muitos livros de sucesso não garantem que o seguinte tam-
bém o será, lição própria à modéstia.” (COMPAGNON, 2019, p. 17).
Paulo talvez não tivesse tanta insegurança com relação à calorosa
recepção de seus livros; entretanto, artesão de mão cheia, em que
pese consideráveis repetições de situações vividas e/ou narradas,
procurou elaborar o melhor que pode seus livros - quiçá para re-
duzir ao máximo o risco de ver suas obras com menor impacto de
recepção junto aos leitores.
Entendo que as cartas escritas por Freire, ao menos as que se
encontram reunidas nos três livros que trabalho no presente capí-
tulo, poderiam ser classificadas como cartas pedagógicas. Carlos
Brandão, que completou 81 anos em abril último, declarou, no esti-
lo descontraído que lhe é característico, ser de um tempo em que as
pessoas trocavam cartas em profusão. “Uma carta de menos de uma
página escrita com ‘máquina de escrever’ para pedir uma simples
informação, ou fazer um breve comunicado, que não tivesse pelo
menos uma página inteira em ‘espaço um’, seria considerada um
desrespeito a quem fosse dirigida” (BRANDÃO, 2020, p. 12). Antes
do computador e da internet, mesmo que fosse “um bilhete”, as nos-
sas cartas de então eram

as nossas conversas por escrito. Eram longas confidências


pessoais. Eram momentos de dizer a um alguém algo sobre
nossa filosofia de vida, nossas ideias sobre o presente e nos-
sos ideais para o futuro. veja os livros que contém cartas de
Paulo Freire, quando já no exílio (...). Tínhamos o costume
de escrever as nossas cartas com cópias em ‘papel carbono’,
para sabermos depois o que havíamos escrito, e a quem.
(BRANDÃO, 2020, p. 13 - 15).

Para Ivanio Dickmann (2020, p. 38), a carta pedagógica é um gê-


nero cultivado por Freire e outros grandes nomes da história, como
80 Che Guevara, Antonio Gramsci, Rosa de Luxemburgo, São Paulo
Apóstolo, Francisco de Assis, dentre outros. Listo a seguir uma de-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

zena de características de tal modalidade, que procuro resumir em


poucas linhas:

1. Ponto de partida - “Toda carta pedagógica tem seu início na


história de vida e na realidade de quem escreve”, ou seja,
“quem escreve compartilha sua vida e seu mundo com quem
a lê” (p. 39 - 40).
2. Objetivo da escrita - Iniciar um diálogo sobre um determinado
tema, sendo a carta o sinal de abertura para conectar-se a um
interlocutor (p. 40- 41).
3. Porque é pedagógica - Porque possui dois elementos distin-
tos de outras cartas em geral, isto é, “deseja produzir conhe-
cimento e tem postura política”, estimulando o interlocutor a
uma nova prática, com o diálogo se fazendo “no vai e vem dos
textos” (p. 41).
4. O efeito da carta pedagógica - Ela é enviada com o objetivo de
gerar movimento. Gadotti cita quatro efeitos de tal carta: “ela
convida à aproximação, ao diálogo, chama à resposta, chama à
continuidade e estabelece uma relação pessoal” (p. 42).
5. O conteúdo dessa carta - Em geral são “notícias, informações,
mensagens e reflexões” (p. 43).
6. Escrever exige compromisso - Exige compromisso de quem a
escreve, com o que se escreve (p. 44).
7. As potências da carta pedagógica - Constitui-se em um “instru-
mento de humanização das relações humanas”, estando, por
isso, em oposição “à pedagogia bancária, onde não se pode
escrever, apenas copiar” (p. 46).
8. Para quem escrevemos ? - É preciso, de antemão, saber quem
a lerá, com qual finalidade, “qual o impacto das minhas pala-
vras na vida de quem lê” (p. 46).
9. A resposta da carta pedagógica - Estabelece uma cultura dialó-
gica, “tanto da escritura da palavra, quanto da leitura da reali- 81
dade de vida” (p. 47).

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


10. O método da escritura da carta pedagógica - Tais cartas en-
contram-se “abertas à criatividade de seus escritores” (p. 48),
permitindo assim a possibilidade de se escrever uma nova
história para a educação (DICKMANN, 2020, p. 50).
Em artigo publicado numa coletânea, Paulo Freire afirmou que

os livrinhos que eu escrevi até hoje, são relatórios de prá-


ticas. Porque, se há uma coisa difícil para mim, é escrever
sobre o que eu não faço. Às vezes, eu tenho dificuldade até
para escrever um pequeno trecho sobre o que não fiz. Até
carta é difícil quando não estiver escrevendo sobre o que não
fiz. (FREIRE, 1982, p. 98; grifos meus)

Ou seja, quase tudo o que Freire publicou teve origem em sua


prática pedagógica, desenvolvida nos vários cantos do mundo e
em distintas condições sociais, étnicas, políticas e mesmo mate-
riais - e os três livros que selecionei para trabalhar aqui assim o
demonstram.
Paulo trabalha vários de seus livros em formato de diálogos e,
com Sérgio Guimarães diz que,

em lugar de escrever guias para os educadores de base, es-


crevo cartas ao animador cultural, em nome da comissão
também (...) A ideia que eu tenho é a de diminuir a distância
que há entre a linguagem dessas cartas e a capacidade dos
animadores, nas minhas idas a São Tomé, fazendo seminá-
rios de avaliação com eles o que eu quis dizer neste ou na-
quele período etc. (FREIRE; GUIMARÃES, 2011, p. 71)

Por sua vez, na conversa com o educador Antonio Faundez, acerca


do trabalho desenvolvido na Guiné-Bissau, entende-se que “as Cartas
são um bom começo teórico, uma boa proposta teórica, interessantes
sonhos teóricos de uma experiência que depois apresentou sérias di-
ficuldades para realizar” (FREIRE; FAUNDEZ, 2017, p. 173).
82 Cartas à Guiné-Bissau (1977) reúne a correspondência que Paulo
destinou ao Comissário de Educação e à Comissão Coordenadora
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

dos trabalhos de alfabetização em Bissau, sendo dedicado a Amílcar


Cabral, “educador - educando de seu povo’’. A experiência acabou
sendo meio frustrante, embora Paulo tenha procurado minimizar
a situação - dentre outros problemas, havia o linguístico, pois, a li-
derança do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau
e Cabo Verde (PAIGC) adotou o português como língua oficial e a
língua crioula como língua nacional, tendo tudo se estruturado em
torno do português. No diálogo com Faundez, Freire pontua algo
decisivo:

Uma das marcas fundamentais de minha prática político-pe-


dagógica vem sendo a defesa intransigente de que a educa-
ção radical, revolucionária, não é um que fazer para as classes
populares, mas com elas. A Pedagogia do Oprimido está cheia
de análises críticas e afirmações em torno deste princípio. O
Ação cultural para a liberdade e outros escritos, também, como
o livro que crítica [Cartas à Guiné-Bissau]. Na página 77 [des-
te livro] (...), referindo-me à experiência de Sedengal, digo:
‘É esta assunção do projeto pela comunidade a que explica,
ainda, a presença desta, através sempre da maioria de seus
habitantes, às reuniões periódicas que membros da comissão
coordenadora realizam em Sedengal com os animadores dos
Círculos de Cultura, Reuniões de avaliação de que aparente-
mente deviam participar apenas os animadores, mas às quais
a comunidade, com o maior dos interesses, se incorpora’.
(FREIRE; FAUNDEZ, 2017, p. 175-176).

Na primeira carta a Mário Cabral, Freire realizava afirmações


das mais engajadas:

Na perspectiva libertadora, que é a da Guiné-Bissau, que é a


nossa, a alfabetização de adultos (...) é a continuidade do es-
forço formidável que seu povo começou a fazer, há muito, ir-
manado com seus líderes, para a conquista de SUA PALAVRA.
Daí que, numa tal perspectiva, a alfabetização não possa es-
capar do seio mesmo do povo, de sua atividade produtiva, de
sua cultura, para esclerosar-se na frieza sem alma de escolas
burocratizadas. (FREIRE, 1977, p. 92; destaque do original) 83

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Paulo escreveu 17 cartas, 11 delas dirigidas ao camarada Mário
Cabral e 6 à equipe pedagógica, entre 26 de janeiro de 1975 e 7 de
maio de 1976 (a última destinou-se à equipe, datada da “primavera
de 1976”). Foram escritas em Genebra, quando Freire trabalhava
no Conselho Mundial de Igrejas (CMI), na qualidade de consultor
de programas Populares em Educação, do recém-criado Escritório
de Educação da entidade, num vínculo que teve início em 1970 e
durou 10 anos. Valeu-se, igualmente, do Instituto de Ação Cultural
(IDAC), criado “para prestar serviços educacionais, especialmente
aos países do Sul Global (identificados como Terceiro Mundo à épo-
ca)” (CUNHA, 2021, p. 1). O principal destinatário da correspon-
dência foi o engenheiro Mário Cabral, Comissário do Estado para
Educação e Cultura de Bissau (na verdade, o “Camarada Mário”). As
outras o foram aos membros da equipe pedagógica, “camaradas”
Mônica, Edna, Alvarenga, Teresa, José e Paulo. As missivas recebi-
das pela equipe ocuparam 54 páginas do livro (uma delas tem 18,
outra 14, duas têm 7, uma tem 6 e outra 2), enquanto Mário teve
mais sorte, pois só 21 páginas lhe foram remetidas (6 cartas com 1,
3 com 2, 1 com 3 e 1 com 6 páginas).
Em “Última página”, Freire (1977, p. 173) ressalta mais uma vez
o caráter de “livro-relatório”, frisando que o mesmo não apresen-
ta qualquer característica burocrática, mas reflete as “experiências
realizadas ou realizando-se em momentos distintos da atividade
político-pedagógica em que me acho engajado desde o começo de
minha juventude”. Agrega que

o problema da língua não pode deixar de ser uma das preo-


cupações centrais de uma sociedade que, libertando-se do
colonialismo e recusando o neo-colonialismo, se dá ao es-
forço de sua re-criação. E nesse esforço de re-criação da so-
ciedade a reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado
fundamental (FREIRE, 1977, p. 173).

84
A ação de Freire no CMI se dava através de consultorias, seminá-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

rios, presença em reuniões da UNESCO, participações em conferên-


cias, coletivas de imprensa e programas de rádio, encontros políti-
cos, tendo atuado na África, na Ásia, na Austrália, na Nova Zelândia,
no Pacífico Sul e na América Central (CUNHA, 2021). Entre setem-
bro de 1975 e abril de 1980, Paulo viajou 10 vezes para a Guiné-Bis-
sau, 6 vezes a São Tomé e Príncipe, 5 para Angola e 3 a Cabo Ver-
de, sempre atuando diretamente nas “abordagens pedagógicas dos
governos desses países com o desenvolvimento de programas de
alfabetização” (CUNHA, 2021). Haddad (2019) apresenta números
ligeiramente divergentes a respeito da frequência dessas viagens.
Sabe-se que Freire escrevia cartas o tempo todo, sempre à mão,
e em parte de sua jornada de trabalho, respondendo a quem lhe
remetia correspondência. A historiadora Joana Salém, na aula “Pe-
dagogia do Oprimido: exílio no Chile e influência na América La-
tina”, integrante do Curso “100 Anos de Paulo Freire”, promovido
pela Rede Emancipa - Educação Popular, afirmou em 19 de agosto
de 2021 que “Paulo trocava cartas com todas as pessoas que escre-
viam para ele, e ele ia aprendendo com isso.”
Acerca da época em que viveu no Chile, no início de seu exílio, o
educador recorda que escreveu muito, 1.600 páginas em um ano e
meio, manuscritas. De modo geral, “uma página manuscrita minha
dá exatamente uma página datilografada” (FREIRE; GUIMARÃES,
1987, p. 94).
Anos depois, de volta ao Brasil, salientou sua grande capacidade
de trabalho quanto à escrita: “aqui em casa eu escrevo de sete da
manhã até de noite” (FREIRE; GUIMARÃES, 2000, p. 57). Por tudo o
que li, acredito que Paulo não enfrentou o que Simone de Beauvoir
(1908-1986) ajuizou: “é austera a solidão diante de uma folha em
branco”(BEAUVOIR, 1961, p. 249). Contrariando Miguel de Sousa
Tavares (1952), para quem “escrever é viver intensamente e depois
desligar-se intensamente” (2014, p. 13), Paulo, apesar de escrever
intensamente, não se desligava do seu labor de escrita: relia várias
vezes o que escrevia, discutia seus textos com alguns poucos ami-
gos e depois que o publicava, voltava a ler e reler. Responde assim a 85
Faundez: “continuo lendo as Cartas a Guiné-Bissau, continuo apren-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dendo com o que escrevi. Há uma validade teórica no livro que não
pode ser negada. Acho que continuam de pé as grandes linhas das
propostas que fiz na Guiné-Bissau (FREIRE; FAUNDEZ, 2017, p. 201
A oralidade integra o discurso escrito de Paulo, levando Débora
Mazza e Nima Spigolon (2020, p. 89) a destacarem tal dimensão a
partir de Câmara Cascudo (1971), que entendia por oratura “um
conjunto de contos, lendas, poemas, provérbios, trava línguas ou
outros conhecimentos tradicionais difundidos pela via oral.” Assim,
em vários momentos uma quase oralidade acaba dando o tom, tor-
nando sua prosa mais saborosa e atrativa.
Enquanto para Freire o ato de escrever se constituía em uma ação
com a finalidade de consolidar sua prática e, em seguida, provocar
reflexões que retroalimentam tal prática, para muita(o)s outra(o)
s autora(e)s escrever, quase sempre à mão, é um processo penoso,
sofrido mesmo, mas sem o qual a vida torna-se insuportável. Explo-
ro a seguir, em um longo parênteses, alguns casos e situações.

c
A cantora, escritora e poeta Patti Smith (1946) narra, em vários
de seus livros, que quase todos os dias sai de casa pela manhã e,
munida de seus cadernos, canetas, bolsas, livros, vai a cafés e escre-
ve, à mão, durante horas. Escreve, também, em hotéis e em outros
sítios em que se hospeda, sempre em cadernos e, geralmente, por-
tando sua máquina fotográfica.
O jornalista, dramaturgo e escritor Antônio Callado (1917-
1997), que trabalhou em jornais ao longo de várias décadas, sem-
pre se valia da máquina de escrever para redigir. Quando passou a
dedicar-se exclusivamente à literatura, não mais frequentando as
redações, declarou que escrevia apenas à mão, valendo-se de uma
espécie de prancheta, que se ajustava com facilidade, permitindo-
-lhe, com agilidade, escrever em qualquer situação.
Quando Albert Camus (1913-1960) faleceu em um acidente de
carro, com pouco mais de 46 anos, carregava consigo uma maleta
86 contendo o manuscrito em que trabalhava há um bom tempo: “cen-
to e quarenta e quatro páginas escritas com letra apertada, sendo
as primeiras sessenta e oito em papel timbrado, com margens e
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

emendas”. (TODD, 1998, p. 767). Seria sua publicação póstuma, O


primeiro homem. Ao longo da magistral biografia que Olivier Todd
lhe dedicou, pode-se ler que o escritor argelino escrevia à mão em
papéis grandes ou pequenos, em cadernos, além de numerosas car-
tas. Depois, quando teve oportunidades, trabalhando na Editora
Gallimard, ditava suas cartas de natureza profissional. Em outros
momentos afirma-se que “ele expede seus textos e artigos, sua peça
de teatro e páginas de seus romances escritos à mão” (TODD, 1998,
p. 256) ou, nas palavras do próprio Camus, “em casa ou no hotel,
escrevo à mão” (Idem, p. 544).
A antropóloga Mirian Goldenberg (2020), professora na UFRJ, é
taxativa: “escrever não é o que eu faço. Escrever é o que eu sou (...)
Não é o meu trabalho. É a minha vida. Não conseguiria sobreviver
sem escrever. Escrever cura a minha ansiedade excessiva, meu pâ-
nico avassalador, minha tristeza interminável. É a forma que eu en-
contrei para ser eu mesma. Posso ficar sem comer ou sem dormir,
mas desde os 16 anos não vivi um só dia sem escrever.” Escreve com
uma caneta em cadernos, “sem qualquer censura. Tenho centenas
de cadernos guardados nos meus armários. Nunca li nada do que
escrevi neles. Não foram feitos para serem lidos, mas apenas para
serem escritos.” (p. B 14)
Em outro texto Mirian confessou o seguinte: “Demorei muito a
ter computador. Escrevi as 600 páginas de minha tese de doutorado
à mão e depois em uma máquina de escrever. Isso em 1994, quan-
do todos os meus colegas já tinham computador” (GOLDENBERG,
2021, p. B 10).
A escritora e jornalista Marilene Felinto, em seu texto sintoma-
ticamente intitulado “Brincar é alegre, escrever é triste” (2021, p.
61-68), vale-se da citação de Freud contida em “Escritores criativos
e devaneio” (Pequena coleção das obras de Freud- Livro 30. Rio de
Janeiro: Imago, 1976) para estabelecer um paralelo entre o brincar
e o escrever:
87
Será que devemos procurar já na infância os primeiros tra-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ços da atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais in-
tensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não pode-
ríamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como
um escritor ativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor,
reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que
lhe agrade? (...) A antítese de brincar não é o que é sério, mas
o que é real. (FELINTO, 2021, p. 61)2

Michel Foucault (1926-1984), em 1966, por ocasião do lança-


mento de As palavras e as coisas, concedeu entrevista a Claude Bon-
nefoy em que explica a relação entre escrita e morte, detalhando
suas dúvidas, convicções e sua relação íntima com a escrita. Re-
corda-se que demorou muito para levar a sério a escrita e o ato de
escrever, sendo que tal desejo surgiu nele apenas aos trinta anos.
“Para chegar a descobrir o prazer possível da escrita, foi preciso
estar no exterior.” Encontrava-se estudando na Suécia, onde era
obrigado a falar ou o sueco, que conhecia mal, ou o inglês, que pra-
2
É importante destacar que o texto de Freud se encontra em Pequena coleção das obras de
Freud - Livro 30, da Editora Imago, Rio de Janeiro (1996) - ‘Gradiva’ de Jensen e escritores
criativos e devaneio (1908).
ticava com muita dificuldade. Seu conhecimento fraco de ambas as
línguas o impediu, durante semanas, ou até anos, de dizer o que
realmente queria. Na Suécia, em que tinha que falar uma língua es-
tranha, compreendeu que podia habitar sua língua, “como o lugar
mais seguro de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país
estrangeiro no qual nos encontramos.” Acrescenta que sente “uma
impressão de veludo” quando escreve. A ideia de uma “escrita ave-
ludada” é como “um tema familiar, no limite do afetivo e do percep-
tivo, que (...) não pára de guiar minha escrita, (...) que me permite a
cada momento escolher as expressões que quero utilizar. A doçura
é uma espécie de impressão normativa para minha escrita. Assim,
fico muito espantado ao constatar que as pessoas tendem a enxer-
gar em mim alguém cuja escrita é seca e mordaz.” Mas, acrescen-
to, talvez elas tenham razão: “imagino que deve existir, em minha
caneta, uma velha herança do bisturi. Talvez, afinal, eu trace sobre
88 a brancura do papel os mesmos sinais agressivos que meu pai traça-
va sobre os corpos dos outros que ele operava. Transformei o bisturi
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

em caneta. Passei da eficácia da cura à ineficácia da livre proposta,


substituí a cicatriz sobre o corpo pela grafitagem sobre o papel, subs-
tituí o inapagável da cicatriz pelo sinal perfeitamente apagável e ra-
surável da escrita. Talvez seja mesmo o caso de ir mais longe ainda.
A folha de papel, para mim, talvez seja como os corpos dos outros”
(FOUCAULT, 2004, p. 10; grifos meus).
Ana Kiffer entende que escrever “são as borras ou pegadas que
deixamos dessa inteligência com a natureza. O limbo a partir do qual
se escreve.” Está convencida de que “organizar o pessimismo é um
ato revolucionário. Digamos que recolho o que me atravessa, em se-
guida o incluo nisso sobre o qual trabalho (...) Para mim escrever é
em parte buscar uma fonte de insubmissão.” (KIFFER, 2021, p. 28).
A autora recupera trecho do livro Escrever, de Marguerite Duras
(Rio de Janeiro: Rocco, 1994 - trad. Rubens Figueiredo), em que a
escritora nascida na antiga Indochina assim se expressou: “Escre-
ver. Essa foi a única coisa que habitou a minha vida (...). Essa real
solidão do corpo transforma-se na outra, inviolável, a solidão da es-
crita. Posso dizer aquilo que quero e não descobrirei jamais porque
razão se escreve e como não se escreve” (KIFFER, 2021, p. 29).
Em outro livro, dialogando com Yann Andréa, ao responder para
que serve escrever, diz: “É ao mesmo tempo calar e falar. Escrever.
Quer dizer também calar-se algumas vezes.” (DURAS, 1999, p. 93).
Acrescenta, de forma não muito animadora: “Escrevi durante uma
vida inteira. Como uma imbecil, fiz isso. Também não é mau ser as-
sim. Nunca fui pretensiosa. Escrever durante uma vida inteira ensi-
na a escrever. Não salva de nada.” (DURAS, 1999, p. 111).
A romancista Conceição Evaristo disse em algum lugar que “Es-
crever é uma maneira de sangrar”, enquanto Daniela Vieira, da Uni-
versidade Estadual de Londrina, segue na mesma direção: “Escre-
ver é deixar um pouco de carne no papel” (Facebook, 05. 10. 2021).
Há quase dez anos a psicóloga Rosely Sayão escrevia, em registro
distinto, que uma professora de segundo ano que trabalhava com
alfabetização lhe contou que estava enfrentando problemas com 89
alguns de seus alunos, que não queriam, de maneira alguma, es-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


crever. “Eles dizem que dá muito trabalho, que cansa as mãos etc.
Eles dão todo o tipo de justificativa para evitar o exercício da escrita
(...) Apesar de não serem leitores fluentes, eles já conseguem ler e
entender o sentido do que leem. E gostam de ler. Mas escrever…”
(SAYÃO, 2012, p. 8).
Frente a insistência da professora, um aluno a desafiou. “O garo-
to, usando a linguagem própria de crianças, disse que aprender a
escrever era um trabalho desnecessário, porque ao apertar a tecla
do computador ou ao tocar a tecla do tablet ele escrevia do mesmo
jeito e isso não fazia a mão doer.” (SAYÃO, 2012, p. 8) O espertinho
completava: “E no computador tem corretor de palavras, então eu
nem preciso escrever tudo certinho porque ele corrige quando eu
escrevo errado.” (SAYÃO, 2012, p. 8). A psicóloga socorreu a profes-
sora acuada pela turma da fuzarca argumentando que a substitui-
ção da escrita manual pela digital empobrece o mundo e a varie-
dade das linguagens. “Se podemos ter os dois tipos, porque vamos
escolher ficar apenas com um deles? A existência da arte digital, um
tipo de linguagem, não nos faz pensar na substituição dos quadros
(...) Ficamos com as duas formas de expressão.” (SAYÃO, 2012, p. 8).
Além disso, Sayão acrescentava que a escrita digital restringe a pos-
sibilidade de comunicação entre as pessoas, uma vez que há ainda
grande quantidade de gente que não tem acesso a essa tecnologia,
sendo a linguagem escrita e seu aprendizado partes integrantes do
exercício da cidadania - não se tratando, portanto, apenas da apren-
dizagem de um código.
O escritor Don DeLillo, 84 anos, autor de vários romances tra-
duzidos em diversos idiomas - casos de O ruído branco, Cosmópolis,
Homem em queda e, agora O silêncio (em que imagina uma catás-
trofe tecnológica, onde a internet parece estar sempre à beira do
colapso) -, declarou ao repórter Walter Porto (2021) que “não tem
celular e não usa computador.” Concedeu a entrevista por seu tele-
fone fixo, de seu apartamento em Bronxville, no subúrbio de Nova
York, acrescentando que sua esposa se vale de toda a tecnologia
90 disponível; apenas não deseja um celular para ele.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Eu sou um homem que coloca palavras no papel. Foi isso que


me guiou desde que eu tinha 20 anos, e não mudei muito
(...) Eu só não quero trabalhar diretamente na tela. Não es-
tou trabalhando hoje em nova ficção, mas quando aconte-
ce de minha máquina de escrever precisar de conserto, eu
uso os velhos papel e caneta. Isso me ajuda a ver palavras e
frases nas páginas, a encontrar correspondências visuais. O
elemento visual sempre foi importante para mim. (PORTO,
2021, p. C1 e C2).

c
No livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha prá-
xis, observa-se algo interessante na edição de 2003: Paulo Freire faz
dedicatória, escrita à mão, acredito que com uma hidrográfica azul,
reproduzida nos seguintes termos: “A ANA MARIA, minha mulher,
não apenas com o meu agradecimento pelas notas, com as quais,
pela segunda vez, melhora livro meu, mas também com a minha
admiração pela maneira séria e rigorosa com que sempre trabalha”
(FREIRE, 2003, p. 5). Outra curiosidade: na página 33, escrito tam-
bém em azul, com letras de fôrma maiúsculas, lê-se: “PAULO FREI-
RE/CARTAS A CRISTINA/NOTAS DE ANA MARIA ARAÚJO FREI-
RE/1994” (tudo isso com três sublinhados inferiores, um vermelho
e dois azuis). Na página 35 se encontra a “PRIMEIRA PARTE”, onde
se repetem os sublinhados e as cores e, na página 189, aparece a
“SEGUNDA PARTE”, agora com os mesmos três grifados, nas mes-
mas cores, porém com o vermelho surgindo antes dos dois azuis.
Finalmente, à página 336, a última, há a assinatura do autor, em
azul, datada de 19/04/05.
Na Introdução das Cartas a Cristina, Paulo afirma que, para ele,
escrever “vem sendo tanto um prazer profundamente experimen-
tado, quanto um dever irrecusável, uma tarefa política a ser cum-
prida” (FREIRE, 2003, p. 17). Além disso, dizia:

a alegria de escrever me toma o tempo todo. Quando es- 91


crevo, quando leio e releio o que escrevi, quando recebo as

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


primeiras provas impressas, quando me chega o primeiro
exemplar do livro já editado, ainda morno, da editora (...) Em
minha experiência pessoal, escrever, ler e reler as páginas
escritas, como também ler textos, ensaios, capítulos de livros
que tratam o mesmo tema sobre que estou escrevendo ou
temas afins, é um procedimento habitual (...) Todo dia, antes
de começar a escrever, tenho de reler as vinte ou trinta pági-
nas últimas do texto em que trabalho e, de espaço a espaço,
me obrigo à leitura de todo o texto já escrito (...) Ler o que
acabo de escrever me possibilita escrever melhor o já escrito
e me estimula e anima a escrever o ainda não escrito. (FREI-
RE, 2003, p. 17-18)

Acrescenta que, no exílio, “escrevia quase semanalmente” à sua


mãe, “mas ela morreu antes de que eu pudesse revê-la” (FREIRE,
2003, p. 25).
Na última das Cartas a Cristina, a de número 18 (“A problema-
ticidade de algumas questões do fim do século XX”), Paulo revela
que “sobre a mesa em que trabalho, escrevo e leio, e que me acom-
panha quase ‘fraternalmente’ desde minha chegada a Genebra em
1970, tenho agora livros, papéis, aparelho de som, telefone, cane-
tas” (FREIRE, 2003, p. 235). Em tais cartas, escritas no exílio, o tio
famoso procura esclarecer quem é, como chegou a constituir sua
trajetória, qual o sentido da memória, da história e de sua práxis.
Sua sobrinha, então adolescente, lhe solicita que ele fosse “escre-
vendo cartas falando algo de sua vida mesma, de sua infância e, aos
poucos, dizendo das idas e vindas com que ele fosse se tornando o
educador que está sendo” (FREIRE, 2003, p. 30) - ver mais detalhes
em REIGOTTA, 1996, p. 610-611. Paulo resolveu retrabalhar as car-
tas e publicá-las anos depois, mas antes conversou com amigos em
torno do projeto, recolhendo suas impressões e críticas, “em mesas
de café em Genebra, Paris, Nova York”, sendo que a partir de tais
conversas “o livro foi tomando forma antes mesmo de ser posto no
papel” (FREIRE, 2003, p. 30-31).
A disposição da correspondência, organizada em duas partes,
92 constitui-se em significativo “guia” para acompanhar todo o seu iti-
nerário. Os temas abarcam a fome presente em sua infância; a per-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

da de status familiar; a mudança traumática de Recife para Jaboa-


tão; a obtenção da bolsa de estudos em colégio de elite; a morte
precoce do pai; a volta ao Recife; suas atividades como professor
de português; seu trabalho no Serviço Social da Indústria (SESI) -
Departamento Regional de Pernambuco, onde ficou por dez anos;
suas experiências no Movimento de Cultura Popular (MCP), no Ser-
viço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife e na al-
fabetização de adultos em Angicos (Rio Grande do Norte); o exílio,
sua experiência no Chile, nos Estados Unidos, no Conselho Mundial
de Igrejas (CMI); a volta ao Brasil, além de se discutir o papel do
orientador nos trabalhos acadêmicos e outras questões envolvendo
a pesquisa nos domínios em que sempre atuou.
Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar conheceu sua
primeira edição em 1993, um ano antes do conjunto da correspon-
dência que foi remetida a Cristina. São dez cartas precedidas por uma
breve introdução e por uma vintena de páginas (“Primeiras palavras
- Professora - tia: a armadilha”), completadas pelas “Últimas palavras
- Saber e crescer: tudo a ver”), tendo sido escrito pelo autor em “qua-
se dois meses”. À sua redação, diz Paulo, “entreguei parte de meus
dias, o maior tempo em meu escritório, em nossa casa, mas também
em aviões e quartos de hotéis” (FREIRE, 1993, p. 5).
Nas “Primeiras Palavras” Freire reflete o processo de escrever

que me traz à mesa, com minha caneta especial, com minhas


folhas de papel em branco e sem linhas, condição fundamen-
tal para que eu escreva, começa antes mesmo que eu che-
gue à mesa, nos momentos em que atuo ou prático ou em
que sou pura reflexão em torno de objetos; continua quando,
pondo no papel da melhor maneira que me parece os resul-
tados provisórios de minhas reflexões, continuo a refletir, ao
escrever, aprofundando um ponto ou outro que me passara
despercebido quando antes refletia sobre o objeto, no fundo,
sobre a prática. (FREIRE, 1993, p. 8, grifos do original).

A meu juízo, sem nenhum demérito, entendo que esse livro de


Freire se constitui em obra de autoajuda, em que o texto, bem como 93
o seu título, foi sugerido pelo editor com a finalidade de subsidiar

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


o debate e a luta “em favor de uma escola democrática” (FREIRE,
1993, p.6). A maioria dos títulos das cartas apresentam essa carac-
terística de informações que se destinam à soluções de problemas
práticos, a saber: “Professora - tia: a armadilha”; “Não deixe que o
medo do difícil paralise você”; “Das qualidades indispensáveis ao
melhor desempenho de professoras e professores progressistas”;
“Vim fazer o curso do magistério porque não tive outra oportuni-
dade”; “Primeiro dia de aula”; “Das relações entre a educadora e
os educandos”; “De falar ao educando a falar a ele e com ele; de
ouvir o educando a ser ouvido por ele”; “Mais uma vez a questão
da disciplina”; “Saber e crescer - tudo a ver”. Há outras cartas, cujos
títulos contextualizam essa discussão - casos de “Ensinar - apren-
der. Leitura do mundo -leitura da palavra”; “Identidade cultural e
educação”; “Contexto concreto - contexto teórico”.
Lendo os livros de Freire, conforme já salientado, é possível
encontrar considerações, com graus de detalhamento, acerca da
forma como ele escrevia à mão, o tempo dedicado à escrita, a forma
como concebia e realizava a obra etc.- ver, em especial, suas conside-
rações à página 97, onde detalha que, em não poucas ocasiões, es-
crevia até às 3 da manhã e estava de pé logo às sete (FREIRE, 1993).
Ao ser questionado por Guimarães sobre sua destreza para dati-
lografar um texto, respondeu: “Nunca aprendi a escrever à máqui-
na e fui aprendendo a ter uma confiança razoável na minha mão e
numa folha de papel em branco” (FREIRE; GUIMARÃES, 1987, p.
99), dizendo que tanto fazia se escrevesse com lápis ou caneta. Re-
velou que preservou o manuscrito original de Pedagogia do opri-
mido, doando-o ao casal amigo da família, Jacques Chonchol e Ma-
ria Edy, que viviam no Chile. “Mas quanto aos originais dos demais
trabalhos, não sei por onde andam. Perdi todos” (FREIRE; GUIMA-
RÃES, 1987, p. 99).
Sempre escreveu isolado, revelando ter muita paciência consigo
mesmo, passando três ou quatro horas no seu cantinho, só.

94 Tem que ser só. Não reajo bem na presença de Elza. Quan-
do escrevo, nem a Elza pode estar dentro do meu gabinete.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Nunca disse isso a ela, mas também raramente ela entra. Mas
quando entra, deixo de escrever; entre mim e o papel não
pode intervir ninguém (...) Posso passar quatro horas a es-
crever uma página, às vezes mais. Mas quando acabo posso
entregar direto a uma datilógrafa ou para editora, não pre-
ciso refazer praticamente nada, e a minha letra é bastante
clara. (FREIRE; GUIMARÃES, 1987, p. 100)

Não poderia concluir este capítulo sem mencionar, ainda que em


rápidas tintas, a existência de críticas e de restrições que os escritos
de Freire enfrentaram ao longo dos anos. A maioria delas são de na-
tureza vulgar ou mesmo reacionária. Entretanto, gostaria de desta-
car ao menos três artigos curtos de Flávio Brayner (2021), que con-
sidero excelentes, no sentido acadêmico mais legítimo: “Pedagogia
do oprimido: 50 anos”; “Vinte anos sem Paulo Freire” e “Um berço,
dois destinos…”. Nesse último, por exemplo, recupera concepções
centrais das ideias de Paulo, que defendia posições anti-hierárqui-
cas, chamando de bancárias “aquelas relações pedagógicas verti-
cais”, caminhando no sentido de
reafirmação dos valores humanísticos (sujeito, consciên-
cia crítica, transformação social, libertação da opressão…).
As teses humanistas da pedagogia de Freire conheceram,
mundo afora, uma fortuna altamente positiva, sobretudo
naqueles países em conflito com sua própria história colo-
nial e tentando construir identidades nacionais, até que as
teses anti-humanistas (jorradas dos círculos intelectuais
parisienses) invadiram o meio universitário. Mesmo depois
do imenso sucesso acadêmico de Foucault, um dos grandes
nomes do anti-humanismo contemporâneo, Freire nunca se
referiu a ele em seus livros e entrevistas. Uma indiferença
eloquente: ele sabia que uma nova hermenêutica do sujeito,
reavaliando os sistemas de opressão e poder (inclusive o das
práticas educativas libertadoras) poria sua pedagogia em xe-
que. Sua obra póstuma, Pedagogia da indignação (1998) é a
demonstração disto. (BRAYNER, 2021, p. 131)

Para bell hooks é o pensamento feminista que lhe permite fa-


zer a crítica construtiva dos trabalhos de Freire. Cita uma frase do
95
autor que a marcou: “Não podemos entrar na luta como objetos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


para nos tornarmos sujeitos mais tarde” (hooks, 2017, p. 66). Ela
esclarece que

conversando com feministas da academia (geralmente mu-


lheres brancas) que sentem que devem ou desconsiderar
ou desvalorizar a obra de Freire por causa do sexismo, vejo
claramente que nossas diferentes reações são determina-
das pelo ponto de vista a partir do qual encaramos a obra.
(hooks, 2017, p. 71)

A pensadora encontra Freire

quando estava sedenta, morrendo de sede (com aquela sede,


aquela carência do sujeito colonizado, marginalizado, que
ainda não tem certeza de como se libertar da prisão do status
quo), e encontrei na obra dele (e na de Malcolm X, de Fanon
etc.) um jeito de matar essa sede. Encontrar uma obra que
promove a nossa libertação é uma dádiva tão poderosa que,
se a dádiva tem uma falha, isso não importa muito. (hooks,
2017, p. 71)
Finaliza com palavras que considero de extrema felicidade, po-
dendo resumir o que grande parte dos analistas pensam a res-
peito do legado de Paulo Freire: “Imagine a obra como água que
contém um pouco de terra. Como estamos com sede, o orgulho
não vai nos impedir de separar a terra e ser nutridos pela água”
(hooks, 2017, p. 71).
De algum modo, talvez Paulo Freire pudesse, acerca do conjun-
to de sua obra, sem falsa modéstia, emprestar de Agostinho Neto
(1922-1979) uns poucos versos de seu poema “Confiança”, contido
em Sagrada Esperança (1985, p. 93):

As minhas mãos colocaram pedras


nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de pão.

96
REFERÊNCIAS
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

AGOSTINHO NETO. Conceição. In: ________. Sagrada esperança.


São Paulo: Ática, 1985.

ALEGRE, Manuel. A carta. In: ______.O quadrado (e outros con-


tos). Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, p. 17-20.

BEAUVOIR, Simone de. Na força da idade - Vol. I (trad. Sérgio


Milliet). São Paulo: Difel, 1961.

BRAGA, Medeiros. Cordel ao educador Paulo Freire. Mossoró,


RN: Editora Queima - Bucha, s. d., 16 p.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Uma carta sobre cartas. In: Car-
tas pedagógicas: tópicos epistêmico-metodológicos na edu-
cação popular. Organização: Fernando dos Santos Paulo e Ivo
Dickmann. Chapecó, SC: Livrologias, 2020, p. 12-17.
BRANDINI, Laura Taddei. Prefácio: Roland e Antoine. In: COM-
PAGNON, Antoine. A era das cartas. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2019, p. 7 - 16.

BRAYNER, Flávio. A arte de se tornar ignorante. Recife: Cepe


Editora, 2021.

CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro.


São Paulo: Martins, 1971.

CATANI, Afrânio Mendes. No berço é que o destino toma conta


dos homens? In: _______. Origem e destino: pensando a sociolo-
gia reflexiva de Bourdieu. Campinas, SP: Mercado de Letras,
2013, p. 79- 98.
97
CHACAL, Ricardo de Carvalho Duarte. Tudo (e mais um pou-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


co): poesia reunida (1971 - 2016). São Paulo: Editora 34, 2016.

CUNHA, Magali. Quando Paulo Freire trocou Harvard pelo


Conselho Mundial de Igrejas. In: Blogs Diálogos de Fé. Car-
ta Capital, 22 de setembro de 2021. Disponível em: https://
www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/quando-pau-
lo-freire-trocou-harvard-pelo-conselho-mundial-de-igre-
jas2/. Acesso em: 25 set 2021.

COMPAGNON, Antoine. A era das cartas (trad. Laura Taddei


Brandini). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.
DICKMANN, Ivanio. As dez características de uma carta peda-
gógica. In: Cartas pedagógicas: tópicos epistêmico - metodoló-
gicos na educação popular. Organização: Fernando dos Santos
Paulo e Ivo Dickmann. Chapecó, SC: Livrologias, 2020. p. 37
- 53.

DURAS, Marguerite. É tudo (C´ est tout) - edição bilingue (trad.


João Costa). Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1999.

FELINTO, Marilene. Brincar é alegre, escrever é triste. In: Poe-


tas contemporâneas do Brasil. Organização: Beatriz Azevedo.
São Paulo: Poesia/Unicamp, 2021, p. 61 -68.

FOUCAULT, Michel. A palavra nua de Foucault - Entrevista a


Claude Bonnefoy (trad. Clara Allain), 1966. Folha de S. Pau-
98
lo, “Mais!”, 21 de novembro de 2004. Disponível em:https://
www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2111200424.htm. Aces-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

so em: 22 out 2021.

FREIRE, Ana Maria Araújo. Processo de escrita de Paulo Frei-


re. A voz da esposa. In: Paulo Freire: uma biobibliografia. Or-
ganização: Moacir Gadotti. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo
Freire; Brasília, DF: UNESCO, 1996, p. 58 -64.

FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e


minha práxis. São Paulo: Editora UNESP, 2a. ed., revista, 2003.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma expe-


riência em processo. Rio de janeiro; Paz e Terra, 1977.

FREIRE, Paulo. Educação. O sonho possível. In: O educador:


vida e morte. Organização: Carlos Rodrigues Brandão. Rio de
Janeiro: Graal, 2a. ed., 1982, p. 89 - 101.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa en-
sinar. São Paulo: Editora Olho d’ Água, 6a. ed., 1995.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da per-


gunta. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 8a. ed., 2017.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gen-


te: Angola, Guiné - Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz
e Terra, 2a. ed., 2011.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo com a pró-


pria história I. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Aprendendo com a pró-


pria história II. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 99

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


GOLDENBERG, Mirian. por que preciso escrever para sobrevi-
ver?. Folha de S. Paulo, “Cotidiano”, 03 de setembro de 2020.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/
miriangoldenberg/2020/09/por-que-preciso-escrever-para-
-sobreviver.shtml. Acesso em: 22 out 2021.

GOLDENBERG, Mirian. Para bombar, tem que ter polêmica!.


Folha de S. Paulo, “Folha Corida”, 13 de outubro de 2020. Dis-
ponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mirian-
goldenberg/2021/10/para-bombar-tem-que-provocar-pole-
mica.shtml. Acesso em: 22 out 2021.

HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. São


Paulo: Todavia, 2019.
hooks, bell. Paulo Freire. In: ________. Ensinando a transgredir:
a educação como prática da liberdade (trad. Marcelo Bran-
dão Cipolla). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2a. ed.,
2017, p. 65 - 82.

KIFFER, Ana. Só quando escrevo tenho um corpo. In: Poetas


contemporâneas do Brasil. Organização: Beatriz Azevedo. São
Paulo: Poesia/Unicamp, 2021, p. 27-34.

MAZZA, Débora; SPIGOLON, Nima I. Diálogos entre oratura,


literatura e educação. In: BRYAN, Newton A. P.; BARBOSA, Wil-
son do N.; ALMEIDA, Wilson G. África: passado, presente, pers-
pectiva. Aportes para o ensino de História e Cultura Africana.
Uberlândia, MG.: Navegando Publicações, 2020, p. 89- 104.

100
PORTO, Walter. Cacos da civilização. In: Folha de S. Paulo,
“Ilustrada”, 12. 06. 2021, p. C1 - C2.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

REIGOTA, Marcos. Cartas a Cristina. In: Paulo Freire: uma bio-


bibliografia. Organização: Moacir Gadotti. São Paulo: Cortez:
Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: UNESCO, 1996, p. 610 -
611.

SAYÃO, Rosely. Escrever não dói. Folha de S. Paulo, “Equilíbrio”,


29. 05. 2012, p. 8.

TAVARES, Miguel Sousa. Escrever. In: _________. Não se encontra


o que se procura. Lisboa: Clube do Autor, 2014, p. 11 - 15.

TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida (trad. Monique Stahel).


Rio de Janeiro: Record, 1998.
RESUMO
O objetivo deste capítulo é explorar o costume de Paulo Freire
escrever cartas à mão destacando, em especial, aquelas que
aparecem em “Cartas à Guiné-Bissau” (1977), “Professora
sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar” (1993) e “Cartas à
Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis” (1994).
Nesses três livros de sua autoria é possível encontrar um es-
tilo de escrita que mescla discurso acadêmico-pedagógico,
fragmentos de memória e elementos advindos de uma tradi-
ção oral.
Palavras-chave: Paulo Freire, Cartas Escritas à Mão, Oratura.

ABSTRACT
The objective of this chapter is to explore Paulo Freire’s custom
of writing letters by hand highlighting those that appear in
“Letters to Guinea-Bissau” (1977), “Teacher yes, aunt no: 101
letters to those who dare to teach” (1993) and “Letters to

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Cristina: reflections on my life and my praxis” (1994). In these
three books written by him, it is possible to find a writing
style that mixes academic-pedagogical discourse, memory
fragments and elements from an oral tradition.
Keywords: Paulo Freire, Handwritten Letters, Orature.

SOBRE O AUTOR
Professor Titular aposentado e Professor Sênior no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador do CNPq.
Autor de livros e artigos nas áreas da Sociologia da Educação
e da Cultura, História do cinema português e latino-america-
no e Políticas de Educação Superior.
A AÇÃO CULTURAL DIALÓGICA ENQUANTO
ESTRATÉGIA DE RESISTÊNCIA POLÍTICA

Bruno Botelho Costa1


Katia Cristina Norões2

Introdução

Paulo Freire é um legado da educação brasileira. Ele se tornou


um educador conhecido mundialmente por suas ideias, práticas e
posicionamentos. Há, porém, outro aspecto do legado freiriano que 103
se associa, mas não se reduz à dimensão pedagógica da sua obra,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


mas se faz presente na sua filosofia. A filosofia freiriana é esteio da
sua pedagogia e uma das facetas da relação entre uma e outra é o
conceito de ação cultural. Uma concepção que apareceu após seu
exílio forçado do Brasil, quando publicava Pedagogia do oprimido
(1987), ela representa um entendimento do trabalho com a cultura
que Freire aprendera antes, em um contexto fortemente marcado
pela singular experiência educativa da qual ele havia participado,
ainda nas terras daqui.
O presente trabalho procurou recuperar desta experiência o
que permitiu ao conceito de ação cultural assumir uma radicalida-
de contundente: a concepção de cultura que Freire, como parte de
1
Doutor em Educação, na área de Filosofia e História da Educação pela UNICAMP (2012-
2017). Professor EBTT de Filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Espírito Santo (IFES). E-mail: brunobcosta2010@gmail.com. Link para currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6850596748871150.
2
Doutora (2018) e mestra (2011) em Educação e Ciências Sociais, pelo Programa de Pós-
-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campi-
nas. Professora no curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
- Paranaíba e na Pós-Graduação em Educação Especial e Inclusiva da Universidade Federal
do ABC. E-mail:. katia.noroes@gmail.com. Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2398105170731306. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7855-6725.
um coletivo, ajudou a elaborar e que expressava à época o desejo
que se fazia presente em vários movimentos sociais de transformar
profundamente a sociedade brasileira. Dentre os meios que esses
coletivos compreendiam serem úteis e necessários para esta trans-
formação estava a educação, mas não como fim em si mesma. A
educação era tida como uma dimensão de um processo mais amplo
de conscientização. Não se tratava de simplesmente aprender, sem
se perguntar pelo porquê de se aprender isso ou aquilo. Sobretudo,
não se tratava de aprender o que pudesse inibir ou impedir as pes-
soas simples, trabalhadores e trabalhadoras, de decidir o que consi-
derassem importante de ser aprendido. A pedagogia que adotavam
esses coletivos propunha a libertação dos seres humanos da condi-
ção de indignidade, de desumanidade e de opressão que viviam. E
a proposta era concretamente engajada em um trabalho que envol-
veu discutir, criticar, propor e programar como acreditavam conse-
104 guir organizar a luta pelos seus direitos e resistir à massificação das
suas pautas, à captura de suas demandas e ao descrédito trazido
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

pelo assistencialismo e pela discriminação com o povo.


Desta forma, a reflexão trazida sobre a ação cultural, na medida
em que se quer através dela compreender as ideias e concepções de
transformação social que alimentaram os movimentos sociais identi-
ficados com este trabalho, que foram formativos para o pensamento
filosófico e pedagógico freiriano, tem de articular as dimensões de
humanização e libertação que atravessam este trabalho formativo.
A criticidade cujo desenvolvimento se almeja possibilitar é expres-
são de uma filosofia voltada a entender a luta das pessoas enquanto
expressão de seu esforço por afirmar a dignidade que lhe é constan-
temente negada pela sociedade onde se vive. Por isso, a formação pe-
dagógica e filosófica de uma consciência crítica exige que esta cons-
ciência se faça também humanizada e liberte-se de tudo o que a adira
ao desinteresse na emancipação do povo brasileiro.
A dialogia, tema que a discussão ora apresentada sobre a ação
cultural inevitavelmente irá endereçar, representa o caminho que
Freire aponta para renovar os esforços por liberdade e para não
sucumbir às relações negadoras da vida. Muito mais importante do
que se costuma a considerar, a dialogia gesta a constituição de uma
nova sociabilidade e de uma comunhão apenas possível com quem
deseja somar forças pelo fim da opressão. Nisso reside o seu poder
de resistir aos ataques ultraneoliberais, como se disse acima. En-
quanto resistência política, a ação cultural que contém dialogia, que
compartilha com o povo da produção de cultura, sentido e significa-
do, pode unir as pessoas em torno de uma ação que modifique seu
modo de ser uns com os outros e torne isso um ato político.
Porque convencidos de que a cultura lhes pertence, e não se dis-
socia das demais necessidades que possuem, os coletivos que se
dedicam à ação cultural dialógica e, em suma, realizam a síntese
cultural que representa o sentido maior do trabalho pedagógico
que se inicia a partir do diálogo, podem pautar demandas novas
para a esquerda e o campo progressista. Se o fazem, e é certo que o
façam, o desafio que enfrentam de dialogar e convencer não possui
um fim distinto daquele sustentado por Freire e seus(as) compa- 105
nheiros(as) desde o início de seu trabalho, o que se tentará mostrar

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


na última parte deste capítulo.

Diálogo e humanização para a libertação

Uma das noções elementares da filosofia freiriana é sua concep-


ção de ser humano como um “ser de relações” (FREIRE, 1967, p.
39). Compreender o ser humano como um ser de relações signifi-
ca entender a humanidade como uma construção coletiva, que não
se realiza enquanto tal por causa de condições biológicas do ser
humano, mas por força de seus condicionantes sociais. Defender
que a biologia humana constitui a humanidade do ser humano se-
ria naturalizar as relações humanas. Mas as relações humanas, por
mais que tenham na biologia um suporte, são criações relacionais,
ou seja, sociais, jamais individuais. A individualidade, por sua vez,
existe, e é uma percepção de si tornada possível pela socialização
deste indivíduo; o indivíduo se vê enquanto indivíduo a partir da
sociabilidade com que conviveu e convive. Portanto, o ser humano
é um ser que se humaniza com os outros e que também se desu-
maniza em um mundo em que há outros e por força das relações
estabelecidas mediante a existência dos outros. Mas, neste caso, o
de desumanização, em relações nas quais os outros não são tidos
como humanos, porque não são considerados sujeitos, mas objetos
sob os quais a ação dos sujeitos recai. Tal cenário configura relações
de negação da humanidade, de si e do outro, e se opera a partir da
opressão.
No tocante ao problema da desumanização, há que se ter em
mente como Freire enxerga a reação à desumanização, em que ges-
tos considerados pelos discursos e pela ideologia dominante como
violentos, brutais, incivilizados, são na realidade tentativas de res-
tituir humanidade e dignidade às pessoas que tiveram negadas seu
direito de serem ouvidas e participarem nas decisões que afetam a
sociedade em geral e às suas comunidades em particular. Já em Edu-
cação como Prática de Liberdade é que Freire irá trabalhar a distin-
ção entre reação à opressão e violência de forma bastante enfática.
106
Ao mesmo tempo que advoga pela convivência democrática e dialó-
gica entre os membros da sociedade, enquanto forma de expressão
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

da verdadeira radicalidade de posicionamento e argumentação de


ideias, enfatiza que um radical ter por dever “reagir à violência dos
que pretendam impor silêncio” (FREIRE, 1967, p. 56) e, em seguida,
fornece o seguinte comentário, bastante elucidativo:

Toda relação de dominação, de exploração, de opressão já


é, em si, violenta. Não importa que se faça através de meios
drásticos ou não. É, a um tempo, desamor e óbice ao amor.
Óbice ao amor na medida em que, dominador e dominado,
desumanizando-se o primeiro, por excesso, o segundo, por
falta de poder, se fazem coisas. E coisas não se amam. De
modo geral, porém, quando o oprimido legitimamente se
levanta contra o opressor, em que identifica a opressão, é a
ele que se chama de violento, de bárbaro, de desumano, de
frio. É que, entre os incontáveis direito que se admite a si a
consciência dominadora tem mais estes: o de definir a vio-
lência. O de caracterizá-la. O de localizá-la. E se este direito
lhe assiste, com exclusividade, não será nela mesma que irá
encontrar a violência. Não será a si própria que chamará de
violenta. (FREIRE, 1967, p. 57. Grifos meus)
Assim, se opor à opressão, a toda forma de violência, que leva ine-
xoravelmente à negação da humanidade, é um ato de humanização.
Isso significa, por sua vez, que a humanização, no sentido freiriano,
é um ato político, não um gesto de conformidade com os problemas
gerados pelas contradições sociais. Não foram poucas as ocasiões
em que Freire foi acusado de apregoar uma visão piegas e senti-
mental – em sentido depreciativo – da necessidade de transforma-
ção da sociedade por ter sido, do início ao fim, um defensor da ur-
gência da humanização.
Devido a isso, também não foram poucas as vezes em que pro-
curou esclarecer aos seus leitores sobre como, a seu ver, a huma-
nização envolveria um compromisso radical com a escuta do ou-
tro na realidade que testemunha a desumanização e como somente
desta forma a transformação dessa situação poderia se fazer um
ato consciente e coletivo de crítica às condições estabelecidas e
proposição de um projeto igualmente coletivo de alteração da vida
107
comunitária. A isso se propõe a humanização popular, valendo-se

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dos recursos que o povo organizado é capaz de reunir, dentre os
quais a alfabetização, por exemplo, bem como a educação como
um todo, sendo esses apenas alguns dos recursos de que pode se
dispor. Desta forma, a filosofia freiriana, apesar de se voltar para a
educação, engaja uma crítica que a extrapola; nem se fale do quanto
ultrapassa os contornos da escolarização. No cerne das questões às
quais sua filosofia se dedica está, na verdade, a proposta da cultura
popular.
A questão cultural e, especialmente, a questão da cultura popu-
lar é uma temática da filosofia de Freire presente desde suas pri-
meiras obras e experiências educativas. Enquanto reflexão espe-
cífica sobre a cultura, daí o adjetivo “popular”, o tema da cultura
popular enseja uma compreensão política sobre a construção da
cultura como o mundo humanizado. E há um contexto histórico que
explica, ao menos em parte, como essa compreensão pôde surgir e
ganhar força em movimentos sociais do momento, sendo, por isso,
algo maior que a escolha de Freire, enquanto filósofo, por professar
ideias críticos e de libertação. Desde o final da década de 1950, ele
se envolveu com movimentos sociais fortemente voltados para a
educação, esteio do que viria a ser conhecido, depois, por educação
popular (COSTA, 2021). Este envolvimento se deu, primeiramente,
com o Movimento de Cultura Popular de Recife. Neste movimento
social, como em outros igualmente surgidos no Nordeste à época –
e que estudiosos agrupam sob o termo “movimentos de cultura po-
pular” (FAVERO, 2006; SCOCUGLIA, 2001), já faziam algo chamado
“trabalho de cultura popular” quando Freire ingressava no MCP e
este trabalho envolvia discutir com a população marginalizada das
suas localidades a respeito de suas condições de vida, das situações
que diariamente enfrentavam nos seus locais de trabalho, de mo-
radia, de convivência e organizá-los politicamente para reivindicar
seus direitos enquanto cidadãos desassistidos pelo poder público.
Gradualmente, foram se radicalizando as pautas surgidas nesses
encontros, um processo que envolveu uma radicalização dos movi-
108 mentos como um todo, bem como de seus membros, entre eles Frei-
re. Isso não quer dizer que nessa etapa de sua militância política e
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

social as ideias de Freire tenham assumido os mesmos contornos


políticos que viriam a adquirir posteriormente; como aqueles pre-
sente na concepção de ação cultural, por exemplo. Mas indica que
o compromisso de Freire com uma escuta atenda e acolhedora das
questões que veio a conhecer convivendo com o povo, organizando
o trabalho de cultura popular, estava presente desde o início do seu
trabalho e permitiu a radicalização dialógica de suas ideias, preocu-
pado que estava desde o início com a sectarização das pautas e do
movimento popular.
Os movimentos de cultura popular partilhavam de referências
comuns às de Freire em muitos aspectos, como a apreciação pelo
trabalho de autores isebianos3 como Álvaro Vieira Pinto e Alberto
Guerreiro Ramos. Instigados por essas leituras, eles endossaram a
visão de que os seres humanos são seres produtores de cultura e
a partir dessa produção, sempre relacional e que envolve em larga
3
O termo isebiano refere-se aos intelectuais que em algum momento participaram e pro-
duziram reflexões sobre a sociedade brasileira durante a existência do Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (ISEB), que funcionou de 1955 a 1964, quando foi extinto pelo
regime militar golpista.
medida a comunicação e a troca de ideias, são capazes de gerar a
humanização, bem como a desumanização, conforme é historica-
mente predominante nas relações sociais do sistema capitalista.
Esta última parte, a menção explícita ao sistema capitalista como
entrave à humanização, era uma compreensão que circulou com
maior e menor intensidade nos movimentos de cultura popular a
depender do momento em que esteve atuante, sendo no final de
sua existência o entendimento generalizado (COSTA, 2021; ROSAS,
2002). Por esta razão, pode-se dizer que Freire já se envolvia, ain-
da enquanto se encontrava trabalhando no Brasil, antes do golpe
militar de 1964, em discussões que associavam o capitalismo aos
males estruturais da sociedade brasileira, por mais que esse enten-
dimento na obra freiriana viesse a se aprofundar bastante após o
seu exílio.
Com isso, outra questão se faz diretamente associada à humani-
zação e a criação de uma cultura humanizante: a libertação de toda 109
forma de opressão. A humanização requer libertação e a oposição à

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


formas e regimes de opressão uma vez que, segundo Freire, a con-
dição humana se aflora onde é possível se ser mais, como ele vai di-
zer na Pedagogia do Oprimido (1987), onde é possível viver profun-
damente o ser, a sua existência, e isso só é possível se se confrontar
a negação do ser pelo mundo cujas relações dominantes não permi-
tem à maioria das pessoas ser o que potencialmente podem ser. Em
outras palavras, não há como definir o que podem as pessoas em
sua totalidade, e Freire nunca pretendeu fazer isso. A humanização
é um projeto constantemente atualizado pelas questões postas à
mesa na realidade predominante afastada e que lhe é contrária sob
tantos aspectos. Humanização, portanto, exige luta e essa luta só
tem sentido se busca a liberdade, não de uns poucos, mas da totali-
dade dos seres humanos.
Este ponto muita polêmica causou em certos círculos acadêmi-
cos de esquerda, em que alguns intelectuais viam na proposta de
libertar a todos os seres humanos um idealismo da parte de Freire
e, pior, a prova de uma suposta falta de rigor conceitual, de ecletis-
mo (PAIVA, 1980), é, ao contrário do que eles pensam, profunda-
mente comprometido com a luta por hegemonia política das clas-
ses populares e nas suas obras se revela expressão clara do desejo
por libertação. Isso pelo fato de que a opressão, sendo expressão
da desumanização, do ser menos, não permite que a luta pela hu-
manização se dê conjuntamente a quem promove a opressão. A hu-
manização só se viabiliza onde há verdadeira comunhão entre as
pessoas, no sentido que criam, a partir das suas relações uns com
outros, uma comunidade de projetos, ideias e ações. Neste sentido,
é significativa a reflexão que faz Mance, quando diz:

Por isso não pode haver libertação de qualquer pessoa se


não há a sua comunhão com outros seres humanos. Mas, por
se tratar da comunhão que liberta, não pode ser a comunhão
com quem oprime. A liberdade cada qual não começa onde
termina a de cada outro, mas somente pode realizar-se por-
que se realiza a liberdade de cada outro. E quanto mais essa
ação cultural para a libertação se realize, mais humanizados
110 estarão os corpos conscientes de que se realizem como pes-
soas, comunidades, povos e nações em dialógica comunica-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ção e comunhão. (MANCE, 2021, p. 45)

O sentido de comunhão para Freire remete ao fortalecimento e


ao crescimento de uma comunidade e dos laços que ligam pessoas
umas às outras em favor de um projeto de transformação da reali-
dade que vivem. Neste sentido, há que se notar também a relação
entre o colonialismo e a experiência dele decorrente, a inexpe-
riência democrática brasileira, trabalhada em Educação como prá-
tica de liberdade, que esteve historicamente relacionada à ausên-
cia de um sentido comunitário que predominasse na sociedade
brasileira; pode-se dizer, também, na socialização predominante
desta sociedade. Freire diz explicitamente que “[f]altou-nos, na
verdade, com o tipo de colonização que tivemos, vivência comuni-
tária.” (FREIRE, 1967, p. 78).
Está claro para ele que a colonização gerou as dificuldades que
levaram à formação de comunidades, sim, mas com uma vivência
majoritariamente pautada pelo mandonismo, pelo coronelismo,
pelos currais eleitorais, pela submissão da maioria da população
aos mandos e desmandos de uma elite autocrática. A democracia
que foi negada aos brasileiros e brasileiras – e ainda o é, diga-se de
passagem – é a democracia do poder popular, que extrapola dos
contornos da democracia liberal. Pela caracterização da democra-
cia almejada, já neste período do trabalho organizativo, educativo
e filosófico de Freire, para a sociedade brasileira, percebe-se que
o anseio por fazer parte ativamente do processo democrático em
curso à época no país, inclusive almejando aumentar o número de
votantes (processo para o qual contribuíram as iniciativas de alfa-
betização de adultos) e propiciar às populações marginalizadas o
direito ao voto e a expressão sua vontade política nas urnas, este
anseio, nutrido no seio dos movimentos de cultura popular, fazia
parte de um esforço por transformar, pela organização do povo, a
vidas dessas pessoas. Não tinha, como seu fim último, a eleição de
representantes que, afastados das suas demandas, decidiriam o
curso de suas vidas ou falariam em nome de seus interesses.
111

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Ação cultural e a disputa ideológica

Paulo Freire apresenta a ação cultural no quarto capítulo da Pe-


dagogia do Oprimido, especificando-a como um esforço de formar
(e conformar) a sociedade segundo uma visão de mundo que repre-
senta a disputa por hegemonia política e ideológica. A cultura é, a
um só tempo, produtiva conquanto instaura modos de entendimen-
to e compreensão da realidade e, igualmente, produto de modos de
socialização que tornam possível a reprodução de expressões, re-
presentações e criações culturais significativas nos seus ambientes
de origem. Tal posição demarca a distinção criada por Freire entre
duas formas de ação cultural, uma dialógica e outra antidialógica.
Uma leitura superficial desses termos pode levar, despercebida-
mente, à conclusão de que basta acrescentar diálogo ao processo
de ação cultural que a diferença está estabelecida. Um ledo engano
deste leitor, quando não uma intencional e maliciosa dissimulação.
Para se entender a diferença entre essas duas ações culturais
é preciso compreender o sentido que Freire atribui ao diálogo. O
diálogo, que pressupõe o conflito de ideias e proposições, implica
na criação de modos de socializar o conhecimento que, mais que
simplesmente permiti-lo, se sustentem a partir dele, priorizando-o.
Neste sentido, é significativo o prefácio de Educação como prática
de liberdade escrito por Pierre Furter4, no qual o filósofo e peda-
gogo suíço comenta a importância do diálogo para Freire. Furter
enfatiza que a oralidade constitui um dos mais profundos aspectos
não só do pensamento que Freire produziu, mas da sua práxis, con-
vencido que estava de que “o homem foi criado para se comunicar
com os outros.” (FURTER, In: FREIRE, 1967, p. 3). Contudo, destaca
Furter, para existir diálogo há que se ter duas coisas: comunicação
autêntica, que não se esvaia em um verbalismo, um palavreado sem
sentido para quem escuta e sem compromisso para quem o profere,
e uma convivência verdadeiramente democrática, que não ponha à
margem da vida nacional nenhum ou nenhuma daqueles(as) que
fazem parte da vida social. Ou seja, que a vida social se paute pelo
112
povo, pelos seus interesses, ainda que, como alerta, nisso reside um
dos limites à visão que Freire tivera no momento em que escrevera
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

aquele livro. Contradições históricas que, no entanto, não o impe-


diram de seguir firmemente defendendo sua filosofia e pedagogia
revolucionárias, inclusive porque se permitiu desenvolver melhor
suas ideias conforme o curso dos eventos se desdobrava. A propos-
ta por uma ação cultural dialógica e a denúncia da ação cultural
antidialógica são, seguramente, um desses desenvolvimentos mais
maduros de sua filosofia.
Por esta razão, Freire afirma que as diferenças entre a dialogia e a
antidialogia são diretamente ligadas à luta pela hegemonia cultural,
o que requer lutar pela hegemonia política e ideológica (FREIRE,
1987, p. 78), uma vez que propagar a visão de mundo dos opresso-
res, com a naturalização da dominação, significa, ainda que às vezes
inconscientemente, negar o caráter revolucionário e de libertação
da ação cultural que atende aos interesses dos oprimidos. Aliás, não
4
Filósofo e pedagogo suíço com quem Freire trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas.
Sobre os diálogos que Furter teve com Freire, ver: PEROZA, Juliano. Entrevista com o edu-
cador suíço Pierre Furter. In: Educação & Linguagem, v. 23, n. 2, pp. 269-298, jul-dez, 2020.
Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/
view/10837.
se deve perder de vista que a ação cultural é projetada como uma
etapa anterior – e partícipe do mesmo projeto – da revolução cultu-
ral. Ou seja, as contradições em torno das quais as ações culturais
dialógica e antidialógica se formam não deixam margem para dúvi-
da de que a questão da dialogia só está autenticamente dimensio-
nada quando se compreende a dimensão política e ideológica como
intrínseca à libertação e não como apêndice dela, como se servisse
apenas para arregimentar as massas para uma causa que não lhes
pertencesse de fato.
Freire compreende que a ação cultural, seja dialógica ou anti-dia-
lógica, é uma experiência que é sustentada a partir de uma teoria.
Tem-se, assim, outra distinção: a que se estabelece entre as teorias
dialógicas e as teorias antidialógicas. Não é possível realizar uma
prática, qualquer que seja, sem trazer nela as marcas de um conjun-
to de ideias conectadas e articuladas, ou seja, uma teoria, por mais
que possam não estar conscientes disso aqueles e aquelas que a ela 113
se dedicam. Na filosofia freiriana, isso é pressuposto, mantendo-se

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


coerente com a compreensão de que a prática humana é o resultado
de um acúmulo histórico, não um emaranhado de gestos fortuitos.
Portanto, toda prática pressupõe teoria e, por isso, toda ação cul-
tural pressupõe uma teoria da ação cultural. A questão da dialogia,
então, remete à teoria que informa essa ação cultural, pois, como
já se demonstrou, o diálogo pressupõe também uma compreensão
própria de realidade e, consequentemente, uma teoria que o aco-
lha. Mais explícito começa a ficar, agora, a diferença entre as teorias
da ação cultural, na medida em que engajam ou rejeitam o diálogo
na sua fundamentação.
Conforme aponta Freire, ao falar sobre a relação que devem
manter as lideranças revolucionárias e as classes populares: “Se o
compromisso verdadeiro com eles, implicando na transformação
da realidade em que se acham oprimido, reclama uma teoria da
ação transformadora, esta não pode deixar de reconhecer-lhes um
papel fundamental no processo de transformação” (FREIRE, 1987,
p. 70). Tal posição vale igualmente para a relação entre professores
e alunos, no tocante à dinâmica das relações entre ambos que po-
derão, não sem dificuldades, possibilitar que sejam redesenhadas
as relações entre educadores e educandos. Em outras palavras, é
necessário que a teoria da ação de uma proposta educativa dialógica
planteie o engajamento dos alunos no espaço escolar, sem o qual a
pedagogia adotada será a tradicional, apresente-se ela com a rou-
pagem que tiver. Isso porque a educação é trabalhada por Freire
como um processo formativo de uma concepção política do mundo
e da inserção de si no mundo e com o mundo. O contexto, portan-
to, em que se situa determinada comunidade – por exemplo, uma
comunidade escolar – leva os partícipes desta experiência a tecer
considerações sobre suas especificidades, mas sendo comunidades
que haverão de confrontar-se com a problemática da humanização
e terão na cultura o fermento para descontruir os vícios impostos
pela lógica da dominação, sua trajetória terá, inevitavelmente, que
lidar com os desafios que afetam a construção de novas relações
114 humanas, especialmente aqueles condicionantes que objetivamen-
te apontam situações-limites (FREIRE, 1987) que precisarão ser
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

transpostos.
Assim, existe no trabalho de ação cultural dialógica a necessi-
dade de superar um elemento das relações de opressão que Freire
nomeia de opressor-hóspede. Esta ideia conceitua o sentimento
e as aspirações inculcadas nos oprimidos por força da própria
opressão e que persiste neles inclusive quando já se encontram
com um nível relativamente desenvolvido de criticidade das suas
consciências, em processo de conscientização. Não existe a pos-
sibilidade de uma ação cultural dialógica se desenvolver onde a
postura dos partícipes envolvidos, dos construtores da comunida-
de em questão, não se atentam e levem a sério os vícios herdados
da formação tradicional, desumanizante e que ainda se expressa
em hábitos e procedimentos comuns no meio educacional. Porém,
é tanto maior a responsabilidade das figuras que assumem algum
papel de liderança no processo formativo, seja ele no movimento
social, em agremiações políticas, experiência educativas dentro
ou fora da escola.
Detalhando sua concepção de ação cultural dialógica e ação cul-
tural antidialógica, Freire fornece uma análise sobre cada uma das
formas de desenvolver o trabalho cultural (FREIRE, 1987). Como
características principais, a ação cultural antidialógica se norteia
pela conquista, divisão para a opressão, manipulação e a invasão
cultural. Já a ação cultural dialógica se orienta pela co-laboração,
união para a libertação, organização e síntese cultural. No cerne da
contradição entre ambas está o fato de que correspondem a proje-
tos políticos inconciliáveis, visto que se relacionam com a cultura,
com o mundo humanizado, de maneira radicalmente opostas. As-
sim, a ação cultural dialógica permite uma nova postura gnosiológi-
ca, de matiz histórico, em que se coletivize a compreensão de como
a produção da cultura, as representações, os comunicados, as nor-
mas, o direcionamento implícito, tudo isso conforma um conjunto
de elementos originados da mesma exploração e opressão que diu-
turnamente as pessoas que trabalham sofrem. Em outras palavras,
115
ela possibilita que a negação da dialogia, da troca significativa, e
a percepção de que as imagens e representações que a lógica de

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dominação inculca através da mercantilização da vida, invasão cul-
tural por excelência, servem para minar a potencialidade que a co-
letividade conscientemente crítica de suas dificuldades e desafios é
capaz de postular, e de que nisto reside um ato político.
Entender a ação cultural como um ato político requer compreen-
der a verdade como problemática histórica, questão aberta, mas
capaz de ser progressivamente redimensionada a partir das con-
dições de compreensão e entendimento que alcançam pelo estudo
e pela reflexão os coletivos que se propõe à conscientização para
a transformação da sociedade e, nela, da socialização dominante.
Neste sentido, vale retomar o que afirma Mance:

Assim, o processo gnosiológico sempre inacabado de busca


e de afirmação da verdade está relacionado à própria ação
e trans-formação em sentido mais amplo, das pessoas e do
mundo. Pois a verdade que se afirma nesta dialógica [sic], está
inserida no movimento histórico de compreensão crítica e de
libertação do já sabido, do já feito e realizado, em direção do
inédito a ser descoberto ou inventado e comunicado. Na ação
de cada qual está intrínseca a sua teoria; e problematizá-la é
condição para avançar na elaboração do conhecimento sobre
a própria realidade. (MANCE, 2021, p. 8)

Por esta razão, a disputa ideológica se faz crucial e permite que


se desvele os instrumentos que pretendem reduzir a compreensão
das pessoas que vivem a desumanização a uma visão operacional,
reprodutiva de uma lógica que acreditam não saber compreender
em absoluto. Disputar ideologicamente a consciência dessas pes-
soas, trabalhadores e trabalhadoras que recriam constantemente
o mundo, é agir para que menos poder tenham os impulsos que
retiram dessas pessoas a autoridade de dizer o que pensam, sen-
tem e querem com o este mundo que elas recriam. Não se trata de
ganhá-las para uma propaganda que possam consumir, mas de ga-
nhar, com elas, condições de repensar o que a sociedade apregoa
como conhecimento e permitir conhecer a realidade desde uma va-
116
lidação da própria experiência que se possui. Nisto reside também
a luta pelo poder.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

A ação cultural dialógica e a resistência política

Quando Freire primeiramente trabalhou o conceito de ação


cultural dialógica, em vários lugares do mundo, especialmente na
América Latina e em África fervilhava a luta por libertação, seja
nas revoluções nacionais dedicadas a liberar colônias africanas do
julgo das potências europeias como França e Portugal, seja na luta
contra as ditaduras na América Latina e o imperialismo estaduni-
dense que cumpriu um papel nefasto em sua implementação (FREI-
RE, 1992). Pode-se perguntar se tal conceito continua significativo
para os tempos atuais. Em um trabalho anterior (COSTA, 2021),
abordou-se essa questão, não exatamente voltando aquele trabalho
diretamente à ação cultural dialógica, mas ao trabalho de cultura
popular, posto que muitos aspectos daquela proposta parecem, a
princípio, datados e direcionados a contextos históricos da época
em que ele surgira.
Entretanto, a despeito dos traços que o datam, importantes que
são, naquela ocasião já parecia haver nítida relação entre que os
pressupostos filosóficos e políticos que o trabalho original dos mo-
vimentos de cultura popular e a sua expressão na obra freiriana,
que seguiu adiante com a proposta à época iniciada. Isso possibi-
litou que, hoje, os desafios contemporâneos para os movimentos
sociais críticos comprometidos com a superação da opressão, a hu-
manização e a libertação das classes populares, sejam endereçados
consequentemente e recebam do arcabouço do pensamento frei-
riano apontamentos esclarecedores para a construção de um hori-
zonte de libertação a partir dessas pautas. A ação cultural dialógica
apresenta um quadro semelhante, a nosso ver, o que argumentare-
mos levando em conta a tônica da resistência política, matiz ines-
capável em um mundo por tantos vieses tido como distópico e onde
a utopia precisa ser recuperada indo-se ao encontro dos dilemas
específicos do momento atual. 117
Vive-se atualmente uma preocupação nos movimentos sociais

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


em geral e que é da maior importância. Refere-se, aqui, a pautas
como a luta feminista, antirracista, a luta dos migrantes, a luta LGB-
TQIA+, entre outras. Tais demandas são muitas vezes encaradas,
por setores de direita e de esquerda, como identitárias, queren-
do-se com isso dizer que seriam voltadas exclusivamente a grupos
específicos. Dentro desta perspectiva, cada grupo, dedicando-se à
sua agenda política específica, se isolaria das demais, se dividiria
entre as lutas e as organizações recentes e perderia de vista a li-
bertação dos seres humanos como um todo. Tal posição demonstra
uma interpretação equivocada a respeito dessas pautas, visto que,
no eventual caso de alguns grupos enfatizarem posições deste tipo,
não se deve considerar que tal postura seja o resultado de essas di-
tas novas pautas serem formuladas e reivindicadas pelos movimen-
tos sociais - em que pese que, na sua maioria, elas não são tão novas
assim – e a razão é relativamente simples, mas requer que se vol-
te aos princípios filosóficos que as engendram para que possa ser
adequadamente abordada. Central para se entender a importância
dessas pautas é compreender espacial e historicamente sua origem
e desenvolvimento enquanto discussão pública, que em muitos ca-
sos deu-se fora da institucionalidade acadêmica e estatal.
Como foi dito acima, muitas dessas pautas (e não importa se isso
não se aplica rigorosamente a todas elas) resultaram de lutas his-
tóricas e só são hoje pautadas da maneira como os movimentos as
endereçam, com a visibilidade que hoje esses coletivos as podem
conferir, porque muito se insistiu para que a voz desses grupos pu-
desse hoje ser ouvida em círculos e ambientes nos quais, anos atrás,
era impensável que elas estivessem presentes. Para fins do argu-
mento adotado, vale lembrar de alguns exemplos, sem a intensão
de entrar nos seus meandros específicos, mas para se pensar aqui-
lo que une essas pautas, o que elas têm em comum, não obstante
há que se reconhecer a importância das suas particularidades. Por
exemplo, a pauta antirracista (termo preferível à expressão “pauta
racial”) é legatária da luta contra todas as formas de racismo que já
118 foram perpetuadas e segue sendo pauta que exige um engajamento
urgente de todas as pessoas comprometidos com a libertação, pos-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

to que o racismo continua desgraçadamente atual (GOMES, 2011).


Ela começou tão logo o racismo se implementou estruturalmente,
via colonização, nas sociedades colonizadas e nas sociedades me-
tropolitanas, no seio das potências europeias (CESAIRE, 2019).
Compreender esse passado e aprender com os sujeitos que se
ergueram contra o racismo envolve reconhecer os limites dos ní-
veis de criticidade das consciências de liderança políticas dos dias
atuais, sem com isso querer que permaneçam presos nesses limi-
tes, mas que possam superá-los, em comunhão com os(as) demais.
Tais limites não são exclusividade dos(as) brancos(as), porém é
muito evidente que o lugar de fala sobre esta realidade não os(as)
pertence (RIBEIRO, 2019). Assim também é o caso com a luta das
pessoas LGBTQIA+. A homofobia é uma estrutura de opressão his-
tórica das sociedades eurocêntricas, ainda que não seja só delas, e
no caso dessas sociedades possui raízes nos “mitos” judaico-cris-
tãos que relegam à noção de pecado tudo o que não se conforma à
normatividade dominante de gênero. Pautar a homofobia em am-
plos setores da sociedade, criar leis e outros dispositivos para inti-
midar aqueles(as) que a praticam, é uma estratégia de libertação,
pelo fato de libertar sujeitos dos opressores-hospedeiros que ainda
desumanizam e objetificam essas pessoas. Esse quadro pode ser
atualizado com quaisquer das pautas que os movimentos sociais
do presente momento histórico pautem, desde que sejam voltados
a ouvir a voz de quem é estruturalmente marginalizado por uma
forma de opressão. Essas pautas precisam ser problematizadas e
mais bem compreendidas, mas isso só é possível se forem valida-
das desde a realidade de quem as vive no corpo e expressa através
delas sua vocação ontológica de ser mais (FREIRE, 1987, p. 16). As-
sim, uma vez compreendida esta dinâmica, cai por terra a acusação
de que são identitárias.
Retomando o que Freire já havia alertado na década de 1970,
de que a relação entre lideranças e massas carecia de dialogia, e
compreendendo a dialogia tal como já se teve acima oportunida-
de de elucidar, a sua concretização nas relações entre os membros 119
dos movimentos sociais de hoje segue sendo uma condição e um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


desafio, porquanto persistirem os problemas que se reintroduzem
nas situações-limite a que invariavelmente chegam. Isso porque a
lógica dominante na socialização do sistema social em que essas
lutas acontecem, o sistema capitalista, de matiz ultraneoliberal,
está constantemente a dificultar que relações humanas de comu-
nicação, dialogia, humanização se fortaleçam e deem a direção da
organização e do trabalho a ser realizado.
Afirmar isso não significar remeter a uma abstração a cau-
sa dos problemas nos movimentos sociais. Ao contrário, é uma
exposição muito objetiva das contradições que atravessam a vida
de comunidades que enfrentam os dilemas de se lutar contra a
exploração humana econômico, político e culturalmente em curso
e que se agrava na atual conjuntura histórica. Longe de reforçar o
pessimismo, esta conclusão deve valer para que se tenha consciên-
cia crítica da real dimensão a que deve atingir a humanização, pro-
jeto histórico e não conjuntural. Por isso, é também uma condição
para se desenvolver a conscientização nos movimentos, no senti-
do freiriano para o qual a conscientização é o desenvolvimento da
consciência crítica, pela qual a educação se transforma em “um es-
forço de libertação do homem e não como um instrumento a mais
de sua dominação.” (FREIRE, 1967, p. 121). Assim, pelos motivos já
expostos, concordando com Freire quando ele insiste no papel que
deve o povo na organização dos movimentos, enfrentar com serie-
dade as dificuldades que terá o trabalho de base requer níveis mais
profundos de democratização dos espaços e foros políticos que os
movimentos devem organizar a fim de fortalecer os vínculos de co-
munidade e comunhão.
Por fim, e mais importante, tem-se que analisar se o caminho
adotado pelos movimentos está afastando-os ou aproximando-os
da comunicação com as pessoas que eles desejam mobilizar para a
luta e organizar politicamente. A resistência política precisa se dar
partindo-se da convivência e da comunicação com as pessoas que
vivem os problemas da exploração e da opressão, mas que ainda
120 não enxergam na mobilização política uma solução para a situação
que vivem. Aliás, um comportamento mais que compreensível dada
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

a conjuntura do mundo atual. Contudo, para adentrar uma análise


do caminho tomado pelos movimentos sociais atuais, no sentido de
se elucidar quais referências balizam sua atuação, cabe perguntar
se a resistência política que fazem se afastou (e em que medida) da
humanização como fim e da libertação como estratégia. A resistên-
cia política desses movimentos, em que pese ela ter logrado e ainda
lograr ganhos concretos para a vida das classes populares, vêm dei-
xando de lado esses dois eixos do pensamento freiriano, quiçá em
nome de “liberdades” adquiridas para consumo?
Esta reflexão pode reposicionar o sentido que se dá à resis-
tência política. Afinal, resistir aos ataques impostos pelo neolibe-
ralismo, à retirada de direitos conquistados, à precarização e ao
empobrecimento geral da vida, econômico, cultural e afetivamente,
são formas de dizer não à desumanização e, como também aponta
Freire, à massificação da vida, das relações, daquilo que é comum
e que vincula as pessoas, por força da estreiteza com que os pro-
cessos criativos, no seu bojo, são encarados (FREIRE, 1967, p. 96).
Existe aí também o risco, a despeito a importância desse embate,
de se diminuir o cuidado e a atenção com a dialogia, inclusive acre-
ditando-se viver, nos espaços de reunião e definição de pautas e
agendas, um ambiente bastante democrático, mas sem que haja de-
mocracia de fato, isto é, a participação de pessoas que extrapolam
o círculo restrito da diretoria, do conjunto de lideranças, militantes
e representantes. Risco este que vive qualquer organização crítica.
A questão é a criticidade do movimento só avança e se materia-
liza em ações culturais que apresentam reais condições de trans-
formar a realidade quando compartilham a palavra e a consubstan-
ciam a pauta política pela dialogia com os sujeitos capazes de levar
adiante esta transformação. A questão teórica precisa ser trabalha-
da coletivamente e somente os movimentos, quando movidos por
aqueles(as) que a lógica da dominação relega ao silenciamento e à
marginalização, podem gerar reais espaços de partilha da experiên-
cia de resistir politicamente a ela. Trata-se, portanto, de pensar em
quem está fazendo esta resistência. Ao se perceber que, seja pelas 121
dificuldades trazidas pela reatualização dos perigos de dominação

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ideológica ou pelas próprias limitações das pessoas que já se en-
contram convencidas da necessidade da resistência como forma de
luta, mas cujas particularidades de sua formação trazem consigo
anseios que não se encontram com aqueles desejados pelos margi-
nalizados, lideranças e povo não estão a fortalecer o diálogo sobre
seus conflitos e impasses, é hora de se conscientizarem, todos(as),
da finalidade de sua prática política, a fim de que se torne verdadei-
ramente práxis. O engajamento que liberta e humaniza só é possí-
vel nessa comunhão de uma finalidade de ação que se reapropria
da cultura e do conhecimento com diretriz autônoma, significado
legítimo e autêntico da vontade e do desejo que se autorizam a ca-
minhada comum.
Freire faz, ainda em um de seus textos sobre a ação cultural, um
comentário nessa direção:

Considerando, porém, que o ato de desvelar a realidade,


indiscutivelmente importante, não significa o engajamento
automático na ação transformadora da mesma, o problema
que se nos apresenta é o de encontrar, em cada realidade his-
tórica, os caminhos de ida e volta entre o desvelamento da
realidade e a prática dirigida no sentido de sua transforma-
ção. (FREIRE, 1981, p. 49)

Não é possível que a resistência política se defina apenas pelo que


não se aceita perder, mas pelo horizonte de ação e reflexão que, jun-
to com os despossuídos do mundo, é preciso conquistar. Para que
a resistência política se faça consequente e inclusiva, é vital que ela
converse com o interesse de quem tem nas preocupações coisas
aparentemente desligadas da mobilização que as agendas trazem e
a própria agenda dos movimentos, sendo em alguns casos necessá-
rio redefinir prioridades. Porque o que está em jogo é uma batalha
contra o que desvincula-nos das nossas relações com o mundo e com
os outros, e a por detrás do isolamento dos movimentos está não so-
mente as condições objetivas que viver uma vida entregue cada dia
mais à exploração proporciona à classe trabalhadora em geral, mas
122
as condições subjetivas também, algumas delas capazes de esconder
um elitismo que afasta-nos da experiência que humaniza e reintro-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

duz o que Freire chama de medo da liberdade, a necrofilia, o ser me-


nos que faz retroceder a potencialidade humana socializada.

Conclusão

As reflexões e considerações que se pode realizar neste trabalho


levam a concluir que a filosofia freiriana e sua pedagogia, alinhadas
como estão desde o início do seu trabalho, dão uma noção muito
clara da proposta de humanização e libertação que engendram todo
o pensamento freiriano, e permitem que seja trabalho conceito de
ação cultural na sua compreensão mais profunda, qual seja, de pro-
piciar uma clara visão de alcance do trabalho cultural de libertação.
Tal é a noção que permite, conforme se pretende aqui defender,
que a ação cultural, enquanto práxis dialógica, se atualize frente
aos desafios e às questões dos tempos atuais e reatualize o pensa-
mento de Freire para servir de ferramenta teórica a novas práticas
de união, organização e síntese cultural da parte dos movimentos
sociais atuantes e críticos. Longe de ser uma ideia datada, parte de
um passado que as décadas futuras conseguiriam solapar, a ação
cultural, como descrição de dinâmicas criativas de escuta, troca e
proposição coletiva, tem grande potencial para destrinchar mean-
dros do entendimento por vezes subsumido e escondido nas pautas
sociais. Ao coletivizar o esforço por pensar tais questões, a propos-
ta recoloca no centro do debate a problematização da consciência
das pessoas envolvidas, e não apenas a reiteração do saber de que
já dispõe e utilizam. Isso poderá fazer avançar questões obliteradas
pela urgência tática e permitir que mais militantes tenham condi-
ções que desenvolver os argumentos e as soluções oferecidas pelos
movimentos.
Obviamente, transpor esse entendimento para as dinâmicas
organizativas pede mais que dizer-se comprometido com a cons-
trução dialógica, mas um ambiente mais dialógico e democrático
não será alcançado, tampouco, sem que se insista nos processos de
123
construção conjunta das orientações organizativas, dos materiais

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


criados, dos atos públicos, enfim, de toda a vida política do movi-
mento social na sua luta por resistir aos ataques à dignidade hu-
mana. Tampouco será por enumerar as perdas e os recuos feitos, à
contragosto, pelas organizações políticas críticas e de esquerda nos
últimos anos, que aparecerá, de pronto, um quadro mais nítido de
qual caminho seguir para fortalecer a luta e agir de modo proposi-
tivo. Somente enfrentando as dificuldades e as inconveniências da
construção com quem não pensa igual, mas nem por isso é ideolo-
gicamente antagônico, é que laços novos são feitos e se fortalecem
os vínculos que mantém as pessoas unidas em torno da causa de
conscientização, humanização e libertação. Só assim, também, a
ação cultural poderá lançar alicerces para projetos mais elaborados
e cenários mais progressistas.

REFERÊNCIAS

CESAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Ve-


neta, 2019.
COSTA, Bruno Botelho. Paulo Freire e os movimentos de cultu-
ra popular: a construção de uma filosofia da educação. Curiti-
ba: CRV, 2021.

FAVERO, Osmar. Uma pedagogia da participação popular: uma


análise de prática pedagógica do MEB, Movimento de Educa-
ção de Base. São Paulo: Autores Associados, 2006.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Ja-


neiro: Paz e Terra, 1967.

124 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1987.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

FURTER, Pierre. Paulo Freire ou o poder da palavra. In: FREI-


RE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1967.

GOMES, Nilma de Lino. Diversidade racial, inclusão e equi-


dade na educação brasileira: desafios, políticas e práticas.
In: Revista Brasileira de Política e Administração da Educa-
ção. v. 27, n. 1, p. 109-121, jan./abr. 2011. DOI: /10.21573/
vol27n12011.19971. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/
rbpae/article/view/19971. Acesso em: 19 out 2021.
MANCE, Euclides André. Gnosiologia, epistemologia e teoria
da ação dialógica em Paulo Freire. In: Revista do NESEF, [S.l.],
v. 10, n. 2, p. 93-119, jul-dez, 2021. ISSN 2317-1332. DOI:h-
ttp://dx.doi.org/10.5380/nesef.v10i2.83202. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/nesef/article/view/83202. Acesso
em: 20 out 2021.

PAIVA, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimen-


tista. Rio de Janeiro: Fortaleza: Civilização Brasileira: Editora
da UFC, 1980.

PEROZA, Juliano. Entrevista com o educador suíço Pierre


Furter. In: Educação & Linguagem, v. 23, n. 2, pp. 269-298,
jul-dez, 2020. DOI: https://doi.org/10.15603/2176-1043/el.
v23n2p269-298. Disponível em: https://www.metodista.br/
revistas/revistas-ims/index.php/EL/article/view/10837. 125
Acesso em: 19 out 2021.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Editora Jandaíra,
2019.

ROSAS, Agostinho. Paulo Freire: educação e transformação so-


cial. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2002.

SCOCUGLIA, Afonso. História inéditas da educação popular: do


sistema Paulo Freire aos IMP´s da ditadura. 2ª edição. João
Pessoa: São Paulo: Editora Universitária da UFPB: Cortez,
2001.

RESUMO
Em Pedagogia do oprimido, Paulo Freire estrutura a teoria da
ação cultural dialógica. A teoria se justapõe ao que o filósofo
da educação brasileiro denota como teoria da ação cultural
antidialógica. Nessa caracterização, a primeira tem por fim a
superação cultural através do ambiente dialógico, enquanto a
segunda promove a invasão cultural, destruindo vínculos ca-
pazes de frutificar a educação a partir do intercâmbio comu-
nicativo e estabelecendo protocolos normativos e simbólicos
para a produção da cultura massificada. O presente trabalho
visa compreender como a teoria da ação cultural dialógica
estrutura uma ferramenta analítica capaz de identificar a in-
vasão cultural em ambientes onde ela possa passar desperce-
bida e, em um segundo momento, inquirir como ela pode ser
utilizada nos tempos atuais como peça estratégica na resis-
tência à invasão de novos produtos culturais do ultraneolibe-
ralismo contemporâneo.
Palavras-chave: Paulo Freire, Ação Cultural Dialógica, Huma-
nização, Libertação, Resistência Política.
126
ABSTRACT
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

In Pedagogy of the oppressed, Paulo Freire structures the


theory of dialogical cultural action. The theory counters
what as a philosopher of education he denotes as theory of
antidialogical cultural action. While the first has, as an end,
cultural superseding in a dialogical atmosphere, the second
promotes cultural invasion, destroying bonds capable of
fructify education through exchange in communication
and establishes normative and symbolic protocols to
produce cultural massification. The present work attempts
to comprehend how theory of dialogical cultural action
is structured as an analytical tool capable of identifying
cultural invasion in spaces where it may passed unnoticed
and, consequently, inquire how to use it in current times as a
strategic part in resisting the invasion of cultural products of
contemporary ultraneoliberalism.
Keywords: Paulo Freire, Dialogical Cultural Action,
Humanization, Liberation, Political Resistance.
SOBRE OS AUTORES

Bruno Botelho Costa


Doutor em Educação, na área de Filosofia e História da Edu-
cação pela UNICAMP (2012-2017). Visiting Graduate Re-
searcher (doutorado sanduíche) na University of California,
Los Angeles (2014-2015), sob supervisão do Prof. Dr. Carlos
Alberto Torres. Mestre em Educação, na área de Filosofia e
História da Educação pela UNICAMP (2008-2010). Graduado
(licenciado e bacharel) em Filosofia pela Universidade Fede-
ral de Santa Catarina (2003-2007). Desde 2019, é Professor
EBTT de Filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Espírito Santo (IFES). Em 2018, foi professor
substituto na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e
de 2017 a 2018, na Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT). Atuou como docente na educação básica da Rede 127
Estadual de Educação de São Paulo, na Rede Privada em Cam-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


pinas e em cursos de Graduação e Pós-Graduação. É membro
do grupo de pesquisa Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão
em Pedagogia, Pedagogia Social e Educação Social (NUPE-
PES). Áreas de interesse: Paulo Freire, Educação Popular, Cul-
tura Popular, Ensino de Filosofia, Filosofia da Educação, Fi-
losofia Brasileira, Filosofia da Libertação, Epistemologias do
Sul, Descolonização.

Katia Cristina Norões


Professora no curso de Pedagogia da Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul - Paranaíba e na Pós-Graduação em
Educação Especial e Inclusiva da Universidade Federal do
ABC. Doutora (2018) e mestra (2011) em Educação e Ciências
Sociais, pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Fa-
culdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Vistiting graduate researcher em Social Sciences & Compara-
tive Education, na University of California-Los Angeles (2014-
2015). Especialista em Psicopedagogia (2006) e graduada em
Pedagogia (2004) pela Universidade Metodista de São Pau-
lo. Possui experiência em docência e em gestão na educação
básica; docência no ensino superior (público e privado) e em
projetos desenvolvidos por Organizações não Governamen-
tais (Educafro, Alfabetização Solidária e Mova). Pesquisas
desenvolvidas ou em desenvolvimento nas áreas das ciências
humanas nos seguintes temas: equidade e acesso ao ensino
superior; ações afirmativas; educação para as relações étni-
co-raciais; Infâncias; migrações internacionais e educação,
Sociologia da Educação, Políticas Públicas e Sociais, Direitos
Humanos, Movimentos Sociais e Educação Popular; e Pedago-
gia Universitária.

128
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams
A (IN)COMPLETUDE DA PRÁXIS
NO PENSAMENTO FREIREANO

Camila Lima Coimbra1

Introdução

Mudar a linguagem faz parte do


processo de mudar o mundo.2
(FREIRE, 1992, p. 35).
129
Meu encontro com Paulo Freire se deu por meio do Programa de

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Pós-Graduação em Educação: Currículo, da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), com a realização de meu doutora-
mento. Desde então, tenho trilhado caminhos de compartilhamen-
to e de constante curiosidade sobre a importante materialização de
um dos saberes necessários à prática educativa: ensinar exige a cor-
poreificação das palavras pelo exemplo (FREIRE, 1996). Como esse
pode tornar-se um eixo estruturante? Seria essa a síntese da práxis?
Ao compreender a dialogicidade destes saberes em movimento
em uma perspectiva progressista, em uma educação libertadora,
para a transformação de nossa sociedade, em defesa da democracia,
uma questão inquietante, na leitura de Freire, foi a sua desistência,
especialmente na Pedagogia da autonomia, da utilização da práxis
1
Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/
SP (2007). Professora Associada na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Uberlândia - UFU. Professora permanente da Linha de saberes e práticas no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faced-UFU. E-mail:camila.coimbra@ufu.br. Link para cur-
rículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1133741542314920. Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-7755-9473.
2
Para mudar o mundo, os trechos de obras transcritos nesse texto foram alinhados para
a flexão de gênero.
como definidora de uma concepção anunciada desde a Educação
como prática da liberdade. Assim, esse artigo pretende discorrer
sobre as mudanças e apreensões da definição do termo práxis nas
obras freireanas.

Um parêntese para a assunção da linguagem

(Antes de adentrar na temática específica, objeto desse artigo,


faço um esclarecimento que considero necessário. Temos, nacio-
nalmente, uma diversidade de nomenclaturas para designar o
pensamento de Paulo Freire: “freireano”, “freiriano”, paulofreirea-
no, elza-freireano, dentre outros. Para explicar desde o começo,
conto uma história. Em uma das prosas, numa atividade que fize-
mos e denominamos “Paulo Freire vai à Universidade”, encontro
com uma professora com formação em Letras, que, na tentativa de
130 contribuir, já que identificara em nosso material a “grafia errada”,
me envia gentilmente a regra: “Atendendo a que só os adjetivos
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

terminados em e tônico exibem a forma sufixal -eano, recomen-


da-se freiriano, com sufixo -iano, porque o e de Freire é átono.
Escreva, portanto, freiriana”.
Esta é a recomendação da norma culta, mas, como acredito que
ler e viver Paulo Freire é um exercício de assumir uma postura re-
belde, revolucionária, assumo a rebeldia de transgredir a Norma
culta e utilizar a forma que respeita a identidade de Freire e que
não o “uniformize”, que não o enquadre com uma mesma regra
ou forma de organização da linguagem, sem levar em considera-
ção a radicalidade de sua história, sua recificidade, sua unicidade.
Como anunciamos na epígrafe, “mudar a linguagem faz parte do
processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensa-
mento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória.”
(FREIRE, 1992, p. 36).
Sabemos que aqui ele está falando de uma sociedade machis-
ta, especialmente quando assume em sua linguagem a relação de
gênero, mas a compreensão é de que essa regra uniformiza e não
respeita um dos saberes necessários à prática educativa: o reconhe-
cimento e a assunção da identidade cultural. Assim, assumo minha
rebeldia e a radicalidade necessária ao utilizar freireano, por res-
peitar a raiz (a ideia de enraizamento de Freire, presente em Educa-
ção como prática da liberdade) do nome, a identidade, a história, a
cultura, o tempo de quem estamos adjetivando, subjetivando, dan-
do sentido e significado ao nome que designa um educador como
Paulo Freire.
Ao recusar a norma culta, também permito-me transgredir e ana-
lisar Paulo Freire a partir dele mesmo, do que escreveu, de quem foi
e das interpretações possíveis no contexto do termo, da definição e
do uso, contínuo ou não, da práxis em seu pensamento.
Por isso, escreverei de forma transgressora em todos os espa-
ços e tempos até que outra mudança seja possível e necessária.
Uma das convicções que me percorre é a de que a “mudança é
possível”, por isso insisto no poder da linguagem, na criativida-
de, na justificativa das escolhas que fazemos, sempre políticas, de 131
uma forma de ver e viver o mundo. Por isso, preservar o radical

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


da palavra Freire assume a preservação da essência do nome e,
ao mesmo tempo, uma transgressão à norma. Defendo, assim, que
usemos o freireana/freireano por ser uma transgressão à lingua-
gem, como poder de mudança de uma forma de escrita para uma
dimensão concreta da politicidade, conceito-chave para entender
Freire. Uma reflexão conceitual do freireano, de radicalidade na
palavra que reconhece o Freire como uma raiz que não pode ser
alterada, está enraizada na palavra-ação.
Reitero, a transgressão também assume-se coerente com a ra-
dicalidade do pensamento freireano no que se refere ao ato revo-
lucionário que se dá no reconhecimento dos seres humanos como
sujeitos históricos, sociais, comunicacionais, dentre outros. Preser-
var a raiz do nome que define a essência de um pensamento trans-
formador, libertador e humanizador, também considero como um
ato revolucionário. Por isso a insistência em defender o nome que
damos e os sentidos que damos às palavras. Fecho parêntese.)
O contexto da práxis: o lugar de fala

Explicitada a grafia, que não é simplesmente uma codificação


neutra, mas uma escolha, uma assunção política de uma escrita que
represente algo que busque a coerência entre os princípios e a for-
ma de uma práxis educativa, começamos o diálogo sobre o termo
que representa a centralidade de um percurso acadêmico, pessoal
e profissional de estudos sobre o pensamento freireano. Desde o
projeto de mestrado, essa relação entre a teoria e a prática era uma
pergunta, uma curiosidade. Isso se materializa na primeira expe-
riência de colaboração na elaboração de um Projeto Pedagógico
do Curso de Pedagogia da Faculdade Católica de Uberlândia, nos
anos 2000. O segundo momento é quando analiso um componente
curricular, parte desse Projeto de Curso de Pedagogia da Faculdade
Católica, denominado “Pesquisa e Prática Pedagógica”. O terceiro
132 momento de problematização sobre a práxis tem lugar quando par-
ticipo da elaboração do Projeto Pedagógico do Curso de Pedagogia
da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (FACIP), em Ituiuta-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ba, da Universidade Federal de Uberlândia, em 2006, em que cria-


mos o eixo da práxis educativa na formação. Ainda hoje, em minha
existência como professora/educadora nos cursos de formação de
professores/as da Educação Básica, identifico a práxis como mobi-
lizadora de indagações.
Para esse caminho de investigar o termo práxis ao longo de al-
gumas obras de Freire, identifico algumas categorias importantes
para a compreensão do pensamento freireano (COIMBRA, 2017b).
Essas categorias são fundamentos basilares, são condições para
que possamos adentrar em uma compreensão mais profunda do
legado freireano. A questão da coerência freireana também está
associada ao conceito de práxis. A busca constante do conceito de
práxis em Paulo Freire, que esse exercício reflexivo do artigo sinte-
tiza, pretende usar como referência: Pedagogia do oprimido, Peda-
gogia da esperança e Pedagogia da autonomia. Os três livros, as três
pedagogias que trazem, como o próprio nome diz, uma práxis, em
uma perspectiva de educação libertadora.
Por que a escolha dessas três pedagogias? De qual concepção de
Pedagogia partirei, enquanto pesquisadora, para enxergar a escolha
feita? Como compreender o campo epistêmico da Pedagogia para
justificar tal escolha? Para isso, retomo escritos feitos em 2007, no
doutorado, em que abordei as quatro concepções sobre o estudo
científico da educação e das possibilidades de organização do co-
nhecimento pedagógico (LIBÂNEO, 1997 apud COIMBRA, 2007).
A primeira concepção defende a unicidade da ciência pedagógica.
A pedagogia seria a única ciência da educação, as demais ciências,
chamadas “auxiliares”, seriam ramos da pedagogia, ou seja, ciências
pedagógicas. Essa posição é criticada por pretender exclusividade
no tratamento científico da educação. A segunda concepção refere-
-se à ciência da educação no singular, num enfoque positivista da
ciência bastante impregnado da ideia de experimentação educa-
cional, por um lado, e da tecnologia educacional, por outro. A de-
nominação ciências da educação está bastante difundida em vários
países, como França, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, e configu- 133
ra-se como a terceira concepção. A educação é objeto de estudo de

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


um conjunto de ciências e, em alguns lugares, desaparece o campo
de conhecimento conhecido por Pedagogia, embora essa não seja
uma concepção unânime. A quarta concepção adere à denominação
ciências da educação, em que cada uma dessas ciências toma o fe-
nômeno educativo sob um ponto de vista específico, mantendo-se,
todavia, a Pedagogia como uma delas.
Desde 2007, já me identifico com essa quarta concepção, por
entendê-la colaborativa, interdisciplinar e, ao mesmo tempo, uma
concepção que assume a práxis como objeto específico da Peda-
gogia enquanto uma das ciências da educação. Nessa perspectiva,
compreende-se a Pedagogia pelo seu caráter histórico, político e
cultural na relação com as demais ciências que nos ajudam na com-
plexidade do objeto de estudo que é a educação. Por isso a escolha
das Pedagogias Freireanas: do Oprimido, da Esperança e da Auto-
nomia. Por entender que todas as três trazem o sentido da Pedago-
gia como ciência, como uma das ciências da educação, um conceito
e uma definição que desvelam a complexidade e a relação impor-
tante entre elas.
Se a pedagogia é a reunião mútua e dialética da teoria e da
prática educativas pela mesma pessoa, o pedagogo [a peda-
goga] é, antes de mais nada, um[a] prático[a]-teórico[a] da
ação educativa. O pedagogo [a pedagoga] é aquele[a] que
procura conjugar a teoria e a prática a partir de sua própria
ação. É nessa produção específica da relação teoria-prática
em educação que se origina, se cria, se inventa e se renova
a pedagogia. [...] Só será considerado pedagogo [pedagoga]
aquele que fizer surgir um plus na e pela articulação teoria-
-prática em educação. (HOUSSAYE, 2004, p. 10)

Nesta perspectiva, parece que a Pedagogia e a práxis, na concep-


ção que habito, são indissociáveis; a práxis implica uma pedagogia e
a pedagogia, em uma perspectiva progressista, implica uma práxis.
O caminho reflexivo desse artigo parte, como já explicitado, de
algumas categorias basilares, a compreensão da educação como
direito e a compreensão do ser humano como possibilidade. Além
134 dessas, pretende-se desvelar algumas categorias que anunciam a
categoria-eixo-estruturante da práxis.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Categoria estruturante: ser humano

Não é possível fazer uma reflexão sobre


o que é a educação sem refletir sobre o
próprio homem (e a mulher). (FREIRE,
1979, p. 14)

Identificar como ponto de partida da reflexão a ideia da educação


como direito parece óbvio, mas insisto na necessidade de ser esse
o ponto de partida. Já escrevia no prefácio de um livro do Grupo de
Pesquisa “Observatório de Políticas Públicas”, que também integro:

Chegamos a um tempo em que precisamos falar de obvieda-


des. Precisamos trazer de volta ao debate político alguns direi-
tos conquistados historicamente. É necessário, assim, falar de
democracia e direitos humanos. Esquerda, direita, centro ou o
lugar omisso onde se encontra, há a necessidade de assumir
um lugar neste mundo. Cada termo retomado implica marcos
legais e sociais que fazem com que tenhamos a condição de ler
o mundo para nele atuar. (COIMBRA, 2020, p. 5)

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de


1948, continua sendo um marco para os dias atuais. Em seu pri-
meiro artigo, a Declaração já explicita a importância de todo ser
humano ser digno de viver em liberdade, com igualdade e respeito,
ressaltando que: “todos os seres Humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e de-
vem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Em terras brasileiras, a Constituição de 1988 garantiu os direitos
humanos já anunciados em 1948. Nessa Constituição, consagra-se
no artigo primeiro o princípio da cidadania, a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho. Também é na Carta Magna
que a educação aparece na perspectiva humana, definindo, em seu
art. 205, “a educação, direito de todos e dever do Estado e da famí- 135

lia, [...] visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
(BRASIL, 1988).
O primeiro ponto do alinhavo possível parte desse óbvio, mas
importante princípio inegociável: a educação como direto de todes.
Se assim anunciamos como premissa, como definimos esse ser hu-
mano? De que forma enxergamos o ser humano freireano?
Também já havíamos anunciado em outro artigo, junto com ou-
tros colegas, a ideia do ser humano freireano como o “ser mais”.
“O ser humano é denominado de sujeito por entendê-lo como um
ser de relações, um ser social. Este ser social também inclui uma
multiplicidade de seres, pois também é um ser cultural e um ser
histórico.” (COIMBRA et al., 2021). Amplio a essa multiplicidade a
também compreensão do ser humano como ser de comunicação,
um ser transcendente, um ser inacabado. Aqui peço licença às Pe-
dagogias freireanas, para buscar em dois outros livros a ideia de
ser humano que exige profundidade para compreensão: Educação
como prática da liberdade e Educação e mudança.
Entendemos que, para o homem [e a mulher], o mundo é
uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser
conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o ho-
mem [e a mulher], ser de relações e não só de contatos, não
apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mun-
do resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de
relações que é. (FREIRE, 1967, p. 39)

Como ente de relações, o ser humano desumaniza-se ao adaptar-


-se, acomodar-se, ajustar-se, massificar-se, desenraizar-se. O que li-
berta esse ser humano, o que o conscientiza, o que o transforma, o
que a educação pode fazer é resistir aos poderes do enraizamento,
por isso talvez pudéssemos usar o plural na unidade: os seres hu-
manos, da multiplicidade freireana. Somos seres múltiplos.

Nas relações que o homem [e a mulher] estabelece com o


136 mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria sin-
gularidade. E há também uma nota presente de criticidade.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

[...] Ademais, é o homem [e a mulher] e somente ele [ela], ca-


paz de transcender. [...] A sua transcendência está também,
para nós, na raiz de sua finitude. (FREIRE, 1967, p. 40)

A raiz de sua finitude está no respeito de quem nos constituímos


nessa relação com o outro, com a cultura, com a história. Um ser
inacabado e finito. Essa compreensão insiste em nossa leitura de
mundo, em nossa apropriação da realidade.

Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, inte-


grando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus
desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcen-
dendo, lança-se num domínio que lhe é exclusivo – o da His-
tória e o da Cultura. (FREIRE, 1967, p. 41)

O pensamento freireano não isola e nem divide a compreensão


de totalidade do ser humano, essa premissa é importante para o en-
tendimento de sua complexidade. Um ser também da comunicação,
por isso o diálogo existe como o meio desse processo educativo,
nessa perspectiva.

O homem [a mulher] existe – existire– no tempo. Está den-


tro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está
preso[a] a um tempo reduzido[a] a um hoje permanente que
o[a] esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se.
(FREIRE, 1967, p. 41)

Esse ser temporal, portanto, histórico, cultural, social, que age,


também é um ser da práxis. Um ser que pensa e age a partir da
realidade. Essa concepção de ser humano freireana considera um
princípio de que somos seres inacabados e condicionados. A ideia
do inacabamento é que provoca as possibilidades, especialmente
pela educação, onde há a possibilidade de mudança. É nessa defi-
nição de ser humano que habita, que é gerado o conceito de práxis, 137
pois o ser humano enraizado é um ser da práxis.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Ao chegar à categoria objeto desse artigo, retornamos às peda-
gogias freireanas, identificamos que a palavra práxis aparece, em
Pedagogia do oprimido, 62 (sessenta e duas) vezes. Na Pedagogia
da esperança, aparece 4 (quatro) vezes. E na Pedagogia da autono-
mia, o termo práxis desaparece e é, em certa medida, substituído
pela expressão “prática educativa”. Essa é a problematização desse
artigo: por que Paulo Freire abre mão de seu conceito de práxis?
Por que esse conceito, anunciado em Pedagogia do Oprimido, vai-se
esmorecendo até desaparecer? Por que o substitui pelo conceito de
prática educativa?

O conceito de práxis nas pedagogias freireanas

Um mundo em que mulheres e homens


se encontrem em processo de perma-
nente libertação. (FREIRE, 1992, p. 22)
Ainda no prefácio a Pedagogia do oprimido, de Ernani Maria Fio-
ri, “Aprender a dizer a sua palavra”, há uma definição primeira e
inicial de Freire: “é um pensador comprometido com a vida: não
pensa ideias, pensa a existência. E também educador: existência
seu pensamento numa pedagogia em que o esforço totalizador da
‘práxis’ humana busca, na interioridade desta, retotalizar-se como
‘prática da liberdade’.” (FIORI, 1970, p. 5).
Talvez aqui já esteja o anúncio de que “ensinar exige a corpo-
reificação das palavras pelo exemplo” (FREIRE, 1970), ser o sa-
ber síntese da categoria práxis em Pedagogia da autonomia. Fiori
anuncia Paulo Freire como um pensador comprometido com a vida
(princípio ético estruturante) e um educador que materializa a sua
pedagogia em uma busca pela prática da liberdade (princípio éti-
co fundante). A vida e a liberdade como categorias para pensar a
educação. Para identificar ou não essa hipótese, proponho uma dis-
138 cussão corajosa dessa problemática, um diálogo que não pretendo
finalizar aqui, apenas contemplá-lo, pois pretende ser constante e
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

deve também propiciar constantes revisões.


A primeira vez que a palavra práxis aparece em Pedagogia do
oprimido é na pergunta problematizadora do livro:

Quem, melhor que os[as] oprimidos [e oprimidas], se encon-


trará preparado para entender o significado terrível de uma
sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles [e elas],
os efeitos da opressão? Quem, mais que eles [e elas], para ir
compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a
que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua bus-
ca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de
lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os opri-
midos [e as oprimidas], será um ato de amor, com o qual se
oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até
mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referi-
da. (FREIRE, 1970, p. 17, grifo nosso)

Aqui entende-se que a libertação se dá pela práxis. É o mecanis-


mo para a luta pela liberdade. O autor ainda insiste na análise social
de uma sociedade desigual, que nomeia como opressores e oprimi-
dos. Ao fazer-se opressora, a realidade implica a existência dos que
oprimem e dos que são oprimidos. A sociedade, nessa dimensão
do real, aprisiona, desenraiza, acomoda, adapta os seres humanos
à lógica do capital, o que também o objetifica. Por isso e para isso,
a libertação ser, por meio da práxis, a forma de transformar esse
mundo. “Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertação jun-
tamente com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam
ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca.”
(FREIRE, 1970, p. 21).
Práxis é busca, práxis é luta, práxis é o meio para a libertação.
Na práxis está a possibilidade da construção da consciência crítica
para a libertação. Freire continua:

Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente


domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivel-
mente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só 139
através da práxis autêntica, que não sendo “blablablá”, nem

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo. (FREIRE,
1970, p. 21)

É ação e reflexão. Com isso, não posso substituir a práxis freirea-


na por uma ideia de saber-fazer. A práxis é um conceito dialético, de
que tantos outros fazem parte. Um conceito ontológico, epistemoló-
gico e metodológico de objetivar a transformação, à medida que ela
se adjetiva como práxis autêntica. Ao complexificar o conceito, rei-
tera: “Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo constitui
com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.”
(FREIRE, 1970, p. 21).
As palavras vão brotando, palavras-semente, como diria Bran-
dão (2015), ou categorias freireanas, como gosto de definir. Asso-
ciadas ao conceito de práxis estão: vida, liberdade, solidariedade.
Em sua escrita dialética, Freire circula: “A práxis, porém, é
reflexão e ação dos homens [e das mulheres] sobre o mundo para
transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição
opressor-oprimidos.” (FREIRE, 1970, p. 21). A práxis transforma.
Freire incorpora a ideia revolucionária e transformadora dessa ca-
tegoria. Então, por que ela desaparece em Pedagogia da autonomia?

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e li-


bertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em
que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e
vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação;
o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta
pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedago-
gia dos homens [e das mulheres] em processo de permanen-
te libertação. (FREIRE, 1970, p. 23)

A práxis exige comprometimento com a transformação. Eu, tal-


vez, escreveria uma reflexão: Pedagogia da Práxis, pois com ela a
transformação pode ocorrer, no sentido da libertação do ser hu-
140 mano. Talvez esse seja, de fato, o sentido da Pedagogia Freireana,
mobilizar a práxis, a coerência entre o pensar e o agir, na luta pela
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

transformação social. E por isso, como bem disse Miguel Arroyo


(2021), a Pedagogia não é do Paulo Freire e sim do oprimido e da
oprimida. Não existe Pedagogia do Paulo Freire, porque não faria
sentido, mas há uma pedagogia do oprimido e da oprimida, que
identifica a práxis como o meio da transformação, a materializa-
ção da conscientização libertadora que transforma, na concretude,
a realidade. “A verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se
na interioridade da ‘práxis’ constitutiva do mundo humano – é tam-
bém ‘práxis’.” (FIORI, 1970, p. 8).
A práxis é “constitutiva do mundo humano”, que pressupõe a
consciência crítica na reflexividade, no par dialético objetividade
e subjetividade, na relação homem-mulher e o mundo-cultura, no
tempo histórico, e por isso seres condicionados e não determina-
dos. Por isso uma palavra que representa o poder da transformação
talvez seja a práxis, porque ali mora o agir, o pensar, o libertar, o
solidarizar, o esperançar, o amar, o refletir, o alegrar, o criticar frei-
reanos. Uma palavra que expressa isso tudo ao mesmo tempo.
A palavra é entendida, aqui, como palavra e ação; não é o
termo que assinala arbitrariamente um pensamento que,
por sua vez, discorre separado da existência. É significação
produzida pela “práxis”, palavra cuja discursividade flui da
historicidade – palavra viva e dinâmica, não categoria iner-
te, exânime. Palavra que diz e transforma o mundo. (FIORI,
1970, p. 11)

Como transformar o mundo? Pela práxis. A palavra, por si, não


transforma, mas indica a ação desse sujeito concreto, que pensa e
age sobre a realidade. Aqui reside a práxis autêntica, no sentido de
traduzir a possibilidade de uma ação comprometida na realidade, na
sociedade, no mundo. “Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É
práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens [e das mulhe-
res] sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1970, p. 38).
Entendida a categoria dessa forma, volta-se à ideia do princí-
pio, do direito de todos e todas. Pois, se direito de todos e todas, a 141
palavra não pode ser privilégio de alguns, e por isso a educação é

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


um campo, uma área em que a democracia se torna princípio es-
truturante. “Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que
é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio
de alguns homens [e mulheres], mas direito de todos os homens [e
mulheres].” (FREIRE, 1970, p. 44).
Freire reitera, na Pedagogia do oprimido, a definição dessa práxis
autêntica, autenticamente humana, a partir da perspectiva do direi-
to, da transformação, da esperança, da solidariedade e da liberta-
ção, para a práxis revolucionária, originária de Lenin.

A tão conhecida afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucio-


nária não pode haver movimento revolucionário’ significa
precisamente que não há revolução com verbalismo, nem
tampouco com ateísmo, mas com práxis, portanto, com re-
flexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transfor-
madas. (FREIRE, 1970, p. 70)

E ainda explicita: “a práxis revolucionária somente pode opor-se


à práxis das elites dominadoras. E é natural que assim seja, pois são
quefazeres antagônicos.” (FREIRE, 1970, p. 71). Ou seja, na práxis
revolucionária aparece o Freire em sua radicalidade, em sua leitura
de mundo, ao desvelar a sociedade de classes em que vivemos: di-
vidida em classes sociais e que implica uma práxis revolucionária.
Reitera com a clareza do que precisa ser compreendido, ainda na
Pedagogia do oprimido:

É preciso que fique claro que, por isto mesmo que estamos
defendendo a práxis, a teoria do fazer, não estamos propon-
do nenhuma dicotomia de que resultasse que este fazer se
dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distante, de ação.
Ação e reflexão e ação se dão simultaneamente. (FREIRE,
1970, p. 72)

Simultaneamente desvelar a realidade e compreender o conhe-


cimento e essa práxis freireana, em um movimento permanente de
142
reflexão-ação-reflexão-ação. E com isso defende:
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Por tudo isto é que defendemos o processo revolucionário


como ação cultural dialógica que se prolongue em “revolu-
ção cultural” com a chegada ao poder. E, em ambas, o esforço
sério e profundo da conscientização, com que os homens [e
as mulheres], através de uma práxis verdadeira, superam o
estado de objetos, como dominados, e assumem o de sujeito
da História. (FREIRE, 1970, p. 91)

A palavra, a ação, que se constitui de uma práxis revolucioná-


ria, é o meio pelo qual homens e mulheres se conscientizam de sua
relação com o mundo, em especial da forma como essa sociedade
desigual e injusta precisa ser transformada.
Nessa relação com os sujeitos da história, Freire incorpora a seu
conceito a luta de classes de nossa sociedade, pois diz que entre a
práxis autêntica em contraposição à práxis das elites ou opressora,
lutamos, homens e mulheres, pela práxis revolucionária.
Da Pedagogia do oprimido até a Pedagogia da esperança, o reen-
contro proposto por Freire, anuncia:
E não vai nisto nenhum idealismo. A imaginação, a conjectura
em torno do mundo diferente do da opressão, tão necessários
aos sujeitos históricos e transformadores da realidade para
sua práxis, quanto necessariamente faz parte do trabalho hu-
mano que o operário tenha antes na cabeça o desenho, a “con-
jectura” do que vai fazer. Aí está uma das tarefas da educação
democrática e popular, da Pedagogia da esperança – a de
possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de sua
linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário dos
“educadores”, de sua linguagem, que, emergindo da e voltan-
do-se sobre sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos,
as antecipações do mundo novo. Está aqui uma das questões
centrais da educação popular – a da linguagem como caminho
de invenção da cidadania. (FREIRE, 1992, p. 20)

Na Pedagogia da esperança, Freire explicita o caráter democráti-


co e popular da educação, a ideia da práxis na voz, na palavra e na
ação: a linguagem como caminho da invenção da cidadania anuncia
a pedagogia freireana como uma pedagogia comprometida com o 143
povo, com aqueles e aquelas a que são negados os direitos básicos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


da existência. Nesse reencontro, a pedagogia do oprimido transfor-
ma-se em pedagogia popular, comprometida com essa realidade
em que insiste não ser idealista, mas sim a criação forjada de um
mundo diferente do mundo da opressão.
Ainda, nas notas da Pedagogia da esperança, na explicação do
conceito de inédito-viável na relação com as situações-limite, ex-
plicita: “Esse inédito-viável é, pois, em última instância, algo que
o sonho utópico sabe que existe, mas que só será conseguido pela
práxis libertadora que pode passar pela teoria da ação dialógica
[...].” (FREIRE, 1992, p. 106, grifo nosso). Ao retomar a práxis liber-
tadora, podemos dizer que Freire reencontra e amplia o conceito,
ao associar a ideia de inédito viável e, ao mesmo tempo, da dialogi-
cidade, como se uma fosse definidora do conceito e outra, a impli-
cação desse conceito de práxis.
É assim e daqui que compreendo a categoria da práxis, no pen-
samento freireano, por meios das pedagogias freireanas, de uma
centralidade importante. Como se a práxis, a partir de uma catego-
ria humana estruturante, irradiasse ou implicasse as demais cate-
gorias que transbordam nas pedagogias freireanas. Por isso que é
tarefa exigente explicá-las, pois a síntese pode provocar a anulação
de categorias que são chaves para entendê-las. Mas talvez essa seja
a primeira conclusão provisória: a categoria práxis tem centralida-
de no pensamento freireano.

Imagem 1: Desenho circulante: a práxis que irradia

144
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Fonte: Elaborado pela autora

Insisto, com isso, que ler Paulo Freire despregado da luta de clas-
ses, do compromisso social com a transformação dessa sociedade,
parece não ser coerente com o que dizem as pedagogias problema-
tizadas por ele. Ou seja, assumir as pedagogias freireanas implica
assumir-se como sujeitos históricos e, por isso, na contraposição ao
fatalismo e determinismo sociais.
Nessa centralidade da práxis identificamos outras tantas catego-
rias que transitam em seu entorno, fortalecendo-a enquanto matriz
do pensamento. Muitas já foram explicitadas ao longo desse artigo,
mas chego à Pedagogia da autonomia entendendo-a como catego-
ria importante no re-conhecimento da práxis.

[...] É que me acho absolutamente convencido da natureza


ética da prática educativa, enquanto prática especificamen-
te humana. É que, por outro lado, nos achamos, ao nível do
mundo e não apenas do Brasil, de tal maneira submetidos ao
comando da malvadez da ética do mercado, que me parece ser
pouco tudo o que façamos na defesa e na prática da ética uni-
versal do ser humano. Não podemos nos assumir como sujei-
tos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos
históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como
sujeitos éticos. Neste sentido, a transgressão dos princípios
éticos é uma possibilidade mas não é uma virtude. Não pode-
mos aceitá- la. (FREIRE, 1996, p. 10, grifo nosso) 145

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Será nesse reconhecimento da prática educativa, pela natureza
ética, comprometida, enraizada, humana, que a consciência se dá?
Será que ao trazer a natureza ética, a politicidade, a historicidade,
para a prática educativa, estaria identificando-a ao seu conceito an-
terior de prática? Não pretendo responder a essas perguntas, mas
problematizar um termo central que modifica-se na escrita, mas
será que perde no seu conceito? Em outro trecho, Freire explicita:

Outro saber necessário à prática educativa, e que se funda na


mesma raiz que acabo de discutir – a da inconclusão do ser
que se sabe inconcluso –, é o que fala do respeito devido à
autonomia do ser do educando. Do educando criança, jovem
ou adulto. Como educador, devo estar constantemente ad-
vertido com relação a este respeito que implica igualmente o
que devo ter por mim mesmo. Não faz mal repetir afirmação
várias vezes feita neste texto – o inacabamento de que nos
tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à au-
tonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e
não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.
(FREIRE, 1996, p. 25)
Do princípio ético ao imperativo ético, a prática educativa assu-
me o compromisso com a transformação, à medida que respeita a
autonomia e a dignidade dos sujeitos. Isso é inegociável, isso é en-
raizamento nas pedagogias freireanas, não há como desvincular a
prática educativa desse contexto e, portanto, da possibilidade re-
volucionária que exerce ao respeitar as pessoas, ao reconhecer nas
pessoas o direito de suas escolhas e decisões frente ao mundo. Tal-
vez esteja aqui a aproximação entre a práxis e a prática educativa
freireanas, talvez uma mudança na linguagem, na palavra, mas não
em sua essência, não na sua centralidade.

Um exemplo corporeificado de práxis autêntica

O Círculo de Estudos e Pesquisas Freireanos da Universidade Fe-


deral de Uberlândia (CEPF-UFU) inaugura suas atividades em 19
146 de setembro de 2020, no dia do aniversário de Paulo Freire e um
ano antes das comemorações de seu Centenário. O CEPF surge da
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

disciplina Princípios Éticos Freireanos, que teve a primeira turma


em 2017 e que exigiu de nós, professores e professoras, uma nova
forma de continuar aprendendo com Freire.
O projeto, denominado “Inéditos viáveis na formação de profes-
sores/as”, anuncia:

Este projeto surge, assim, das experiências inquietantes que


vivemos na docência. Não sabemos viver de forma morna
ou fria. Sabemos ser intensas e intensos. Isso nos provoca
a estar em movimento. Não negamos, em alguns momentos,
cansamos. Mas no encontro com o outro, conseguimos nos
convencer da continuidade única de viver da forma em que
cada palavra e gesto pulsem um coração, parafraseando Cla-
rice Lispector. Não sabemos viver no modo letargia e nem
no modo omissão. Somos passagem por um mundo em que
queremos VIVER, CONVIVER, APRENDER, RESISTIR e LU-
TAR. Nada disso é beleza pura ou romantismo da educação,
mas sim, um convite ao COMPROMISSO, a ESPERANÇA e ao
TRABALHO. (UFU, 2020, p. 1)
A ideia da docência, em uma pedagogia progressista, em uma
perspectiva de educação libertadora, define que “o projeto visa
ações de ensino, pesquisa e extensão, funções específicas da Uni-
versidade em que fragmentamos sobremaneira na formação e aqui,
espera-se possamos construir este Projeto Integrador, criando es-
tas ações de forma integrada e articulada” (UFU, 2020, p. 1).
Ancorado nesses princípios, o Projeto cria o CEPF-UFU e, assim,
também anuncia a práxis como uma das suas categorias estrutu-
rantes:

Diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos,


ou seja, “ensinar exige a corporeificação das palavras pelo
exemplo” (FREIRE, 1996, p. 38). Este fundamento serve de
âncora a ideia de práxis, em uma perspectiva freireana, sus-
tentáculo de uma concepção de educação, também se rela-
ciona à necessária articulação entre a teoria e a prática na
formação docente e, portanto, no exercício profissional. Via 147
inter duplas, que se relacionam. Que existem na relação com

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


o outro. Freire complementa (1996, p. 38): “a prática docen-
te crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento
dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer”.
(UFU, 2020, p. 5)

Sonho projetado e, após um ano de existência, como isso acon-


tece nesse movimento da práxis autêntica? Um desenho metodo-
lógico foi pensado no Projeto e isso foi o ponto de partida para o
“pensar junto”.

Para o trabalho nestas três dimensões, alguns princípios


freireanos estarão presentes. A identidade cultural em que
estão concentradas as ações que discutem as identidades
docentes. Como nos constituímos como pessoas e profis-
sionais? A leitura de mundo, com a finalidade de ampliar a
nossa leitura da palavra, atravessada pela realidade. A pro-
blematização, como espaço educativo que implica conflito,
esperança, transformação. Surge no encontro das identida-
des e a realidade. Neste encontro, construímos as autono-
mias, registramos um “jeito de pensar” construído nesse
encontro entre as Identidades e as leituras de mundo. O que
fazemos após o conflito, mediatizado pelo diálogo, na reali-
dade? Quais pensamentos construímos. Registros do “Jeito
de Pensar Docente”, uma ideia em que estas reflexões sejam
sistematizadas e possam ajudar nas nossas práxis. Com-
partilhar com o outro, dividir, é uma forma de viabilizar o
encontro. (UFU, 2020, p. 9, grifos do Projeto)

O jeito docente inicial de pensar modifica-se, pois incorpora os


jeitos de pensamentos docentes, no plural, com gentes, com uto-
pias verdadeiras na construção de um grupo que pretende viver a
coerência. Assim, construímos um caminho metodológico, em que
os tempos e espaços foram organizados para a realização de um
movimento que incorporasse as leituras de mundo, as identidades,
as diversidades, por meio do diálogo.

Imagem 2: Desenho metodológico do CEPF-UFU


148
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Fonte: UFU (2020)

Em cada tempo-espaço entrelaçado de nossas histórias fomos


definindo cada tempo. O Em-leitura é o tempo da leitura ferireana,
a escolha e a forma de sairmos da leitura da palavra para a leitura
de mundo é sempre um desafio para esse momento. O Em-práxis,
momento de trazer a palavra ação para o diálogo, onde as pessoas
do próprio Círculo se apresentam a partir de sua práxis. O tempo de
Em-contros, quando convidamos outras pessoas que estudam, que
pesquisam, que vivenciam os princípios freireanos para o diálogo.
O Em-formação, um tempo para nossa formação e para formação
de outres, nossa relação com o outro acontece nesse espaço. E por
fim, o Em-pesquisa, para que possamos construir uma investigação
coletiva, sermos também um espaço para que a pesquisa sobre e
com Paulo Freire ocorra de forma permanente e contínua. Não há
uma ordem, não há limites e nem amarras para que isso ocorra. O
Círculo gira em espiral, percorre os princípios, percorre os objeti-
vos, inclui outros tantos que se fazem na presença inspiradora de
gentes com seus jeitos e seus pensares sobre e com o Paulo Freire.

Por isso, venho insistindo, desde a Pedagogia do oprimido,


que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denún-
cia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e
o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, es-
tética e eticamente, por pós, mulheres e homens. (FREIRE, 149
1992, p. 47, grifo nosso)

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Penso que esse exemplo de práxis autêntica, em busca de uma
coerência, seja a materialização dessa utopia verdadeira, de uma
história que é construída nessa realidade concreta e, por isso, cons-
truída por nós. Esse é o primeiro instante e outros deles existirão.
Assim nos constituímos como sujeitos e “fazedores” de história.

Considerações Finais

Entre as responsabilidades que, para


mim, o escrever me propõe, para não
dizer impõe, há uma que sempre assu-
mo. A de, já vivendo enquanto escrevo
a coerência entre o escrevendo-se e o
dito, o feito, o fazendo-se, intensificar a
necessidade desta coerência ao longo da
existência. (FREIRE, 1992, p. 34)
Volto à pergunta inicial desse artigo, que buscou uma reflexão
sobre o conceito de práxis nas pedagogias freireanas: do Oprimido,
da Esperança e da Autonomia, tendo como ponto de partida, a con-
cepção de ser humano do livro Educação como prática da liberdade.
Foi uma análise apenas desses quatro livros e que, talvez, exigirá
um aprofundamento de algumas relações que emergiram dessa
primeira reflexão. As perguntas são assim, elas não morrem nunca.
De uma pretensamente respondida, outras tantas se apresentam.
Então, por que será que Paulo Freire deixa de “usar” a práxis? Como
um eixo estruturante do pensamento desaparece? Seria o saber en-
sinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo (FREIRE,
1996) um saber síntese da práxis?
Não quero responder, mas fazer pensar sobre. Não podemos re-
duzir o conceito de práxis freireano da Pedagogia do oprimido ape-
nas como um dos saberes necessários à prática educativa apesar
dele indicar muito sobre esse conceito, pois é a ideia de que só o
150
discurso, a teoria, o falar sobre não transforma, o que transforma é
a práxis, é o saber materializado, corporeificado. Por isso o exemplo
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

foi convocado a fazer parte dessa reflexão. O movimento iniciado


no Círculo, em apenas um ano, pouco tempo de existência, mas com
um instante de história para contar.
Esse saber materializado exige coerência entre o que eu penso e
o que eu falo, entre as minhas crenças e as minhas atitudes, entre a
minha palavra e a minha ação; essa talvez seja, sim, a mais exigente
das tarefas em uma pedagogia progressista.

O impossível para mim é a falta de coerência, mes-


mo reconhecendo a impossibilidade de uma coe-
rência absoluta. No fundo, esta qualidade ou esta
virtude, a coerência, demanda de nós a inserção
num permanente processo de busca, exige de nós
paciência e humildade, virtudes também, no trato
com os outros. (FREIRE, 1996, p. 34)
Talvez esteja aqui a completude por dentro do conceito de prá-
xis que se transforma em prática educativa, em Paulo Freire: a coe-
rência. A ideia do título é enxergar a completude na incompletude,
ou seja, nas contradições em que a coerência nos transforma, na
condição de sujeitos históricos que lutam e se esperançam pela li-
berdade, pela democracia, pelos direitos, e por coerência, por uma
sociedade justa, laica inclusiva e socialmente referenciada.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel. 2021. Palestra: Que políticas educacionais


em tempos de desmonte do Estado de Direito? In: X SIMPÓ-
SIO INTERNACIONAL: O Estado e as Políticas Educacionais no
Tempo Presente - Estado neoliberal e retrocessos democráti-
cos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QG-
0fsKKufxE&t=222s. Acesso em: 05 out 2021. 151

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O jogo das palavras-semente e
outros jogos para jogar com palavras. São Paulo: Cortez, 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fede-


rativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

COIMBRA, Camila Lima. Prefácio. In: A assistência estudantil


em debate: análise dos projetos de lei em tramitação no con-
gresso nacional brasileiro. Organização: Leonardo Barbosa
Silva e Daniela de Melo Crosara. Curitiba: Brazil Publishing,
2020.
COIMBRA, Camila Lima. A aula expositiva dialogada em uma
perspectiva freireana. In: Revolucionando a sala de aula: como
envolver o estudante aplicando técnicas de metodologias ati-
vas de aprendizagem. Organização: Edvalda Araújo Leal, Gil-
berto José Miranda e Silvia Pereira de Castro Casa Nova. São
Paulo: Atlas, 2017a.

COIMBRA, Camila Lima. Categorias freireanas na práxis. e-Mo-


saicos, v. 6, p. 55-67, 2017b.

COIMBRA, Camila Lima. Desculpe o transtorno: estamos lu-


tando pela educação. In: Memorial Paulo Freire: diálogo com
a educação. Organização: Noêmia de Carvalho Garrido e Fran-
cisco Genezio Lima de Mesquita. São Paulo: Expressão e Arte,
2013. v. 1, p. 99-106.
152

COIMBRA, Camila Lima. A pesquisa e a prática pedagógica


Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

como um componente curricular do Curso de Pedagogia: uma


possibilidade de articulação entre a teoria e a prática. 273 f.
Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo, São Paulo, 2007.

COIMBRA, Camila Lima; LIMA, João Paulo Resende de; VEN-


DRAMIN, Elisabeth de Oliveira; TONIN, Joyce Menezes da Fon-
seca. Processo de avaliação da aprendizagem na visão do corpo
docente: aprender, punir ou responsabilizar? In: BAFA Account-
ing Education Special Interest Group, Annual Conference, 2021.

COIMBRA, Camila Lima; RICHTER, Leonice Matilde. Sons,


imagens e contatos na tessitura do Círculo de Cultura: espa-
ço-tempo de aprendizagem criativa. In: Círculos de cultura:
teorias, práticas e práxis. Organização: Nima Imaculada Spi-
golon e Camila Brasil Gonçalves Campos. Curitiba: CRV, 2016.
p. 141-158.
COIMBRA, Camila Lima; OLIVEIRA, Eliana de. Qualidade da
educação em Paulo Freire. In: Qualidade em educação. Organi-
zação: Camila Lima Coimbra et al. Curitiba: CRV, 2011. p....-....

COIMBRA, Camila Lima; SPIGOLON, N. Inspirações e práxis


freireana: contribuições de Elza Freire para o diálogo e a con-
vivência. Caderno de Textos do GEPEJA (UNICAMP), Campinas,
v. 1, p. 78-86, 2010.

COIMBRA, Camila Lima; VALENTE, Lucia F. Um projeto e uma


proposta de avaliação inspirados em princípios éticos freirea-
nos. In: Docência e formação de professores na educação supe-
rior: múltiplos olhares e múltiplas perspectivas. Organização:
Armindo Neto Quillici e Sílvia Ester Orrú. Curitiba: CRV, 2009.
p. 71-86.
153

FIORI, Ernani Maria. Aprender a dizer a sua palavra (Prefá-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


cio). In: FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1970, p. 05-11.

FRANCO, M. A. S. A práxis pedagógica como instrumento de


transformação da prática docente. 2005. Disponível em: ht-
tps://www.anped.org.br/biblioteca/item/praxis-pedagogi-
ca-como-instrumento-de-transformacao-da-pratica-docente.
Acesso em: 15 jan 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários


à prática educativa. 29. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com


a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1970.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Ja-


neiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Nós podemos reinventar o mundo. [Entrevista


cedida a] Moacir Gadotti. Nova Escola, 01 mar. 1993. Dispo-
nível em: https://novaescola.org.br/conteudo/266/paulo-
-freire-nos-podemos-reinventar-o-mundo. Acesso em: 29 out
2021.
154
GUTIÉRREZ, F. Educação como práxis política. São Paulo: Sum-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mus, 1988.

HOUSSAYE, Jean. Pedagogia: justiça para uma causa perdida?


In: HOUSSAY.E, Jean; SOËTARD, Michel; HAMELINE, Daniel;
FABRE, Michel. Manifesto a favor dos pedagogos. Porto Alegre:
Artmed, 2004.

LIBÂNEO, José Carlos. Educação: pedagogia e didática. In: PI-


MENTA, Selma Garrido. Didática e formação de professores.
São Paulo: Cortez, 1997.

OLIVEIRA, Larissa Chagas de; COIMBRA, Camila Lima. Os


saberes da experiência: uma aproximação necessária. Edu-
cação (online), Santa Maria, v. 42, n. 3, p. 705-716, set./dez.
2017. DOI: https://doi.org/10.5902/1984644423210. Dis-
ponível: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/
view/23210. Acesso em: 19 out 2021.
SOBREIRA, M. F. C. Práxis e construção do conhecimento nos
estudos sobre pedagogia da alternância. 2013. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Viçosa,
Viçosa, MG, 2013.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA (UFU). Projeto de


Extensão: Inéditos viáveis na formação de professores/as. Sis-
tema de Informação de Extensão e Cultura. Registro: 21910.
Universidade Federal de Uberlândia, 2020.

VALENTE, Lucia de Fátima; COIMBRA, Camila Lima; DALBE-


RIO, Maria Célia Borges; RIBEIRO, Betânia de Oliveira Laterza;
RICHTER, Leonice Matilde. Princípios freireanos e a formação
de professores: uma proposta dos ciclos de formação com o
eixo da práxis educativa. In: VI ENCONTRO INTERNACIONAL
DO FÓRUM PAULO FREIRE, 2008, São Paulo. Anais [...]. São 155
Paulo: Instituto Paulo Freire, 2008.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 2. ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

RESUMO
Na busca pela compreensão da dialogicidade dos saberes da
práxis em uma perspectiva progressista, em uma educação
libertadora, para a transformação de nossa sociedade, em de-
fesa de uma perspectiva democrática, uma questão intrigante,
na leitura de Freire, foi a sua desistência, especialmente na
Pedagogia da autonomia (1996), da utilização da práxis como
definidora de uma concepção anunciada desde a Educação
como prática da liberdade (1967). Assim, esse artigo preten-
de discorrer sobre as mudanças e apreensões da definição do
termo práxis nas obras freireanas, mais especificamente nas
suas Pedagogias: Pedagogia do oprimido (1970), Pedagogia
da esperança (1992) e Pedagogia da autonomia (1996).
Palavras-chave: Pedagogias Freireanas, Práxis, Prática Edu-
cativa, Formação de Professores/as.

ABSTRACT
In the search for understanding the dialogicity of praxis
knowledge in a progressive perspective, in a liberating
education, for the transformation of our society, in defense of a
democratic perspective, an intriguing issue, in Freire’s reading,
was his giving up, especially in Pedagogy of autonomy (1996),
of the use of praxis as a definition of a conception announced
since Education as a practice of freedom (1967). Thus, this
article intends to discuss the changes and apprehensions
of the definition of the term praxis in Freirean works, more
specifically in his Pedagogies: Pedagogy of the Oppressed
(1970), Pedagogy of Hope (1992) and Pedagogy of Autonomy
156 (1996).
Keywords: Freirean Pedagogies, Praxis, Educational Practice,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Teacher training.

SOBRE A AUTORA
Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo - PUC/SP (2007). Mestre em Educação
pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU (2000). Espe-
cialista em Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fun-
damental pela Universidade Federal de Uberlândia (1997).
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uber-
lândia (1993). Professora Associada do Núcleo de Didática na
Faculdade de Educação (Faced) da UFU. Professora perma-
nente da Linha de Saberes e Práticas Educativas do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faced-UFU. Pesquisado-
ra do Grupo de Pesquisa Observatório de Políticas Públicas
(OPP/UFU). Coordenadora do Círculo de Estudos e Pesquisas
Freireanos (CEPF-UFU) Autora do livro: A pesquisa e a prática
pedagógica no curso de Pedagogia: uma possibilidade de arti-
culação entre a teoria e a prática, fruto da tese de doutorado
(2011). Trabalha com as disciplinas de Didática e Princípios
Éticos Freireanos nos cursos de formação de professores/li-
cenciatura.

157

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


II
Experiências de Educação
a partir do Contributo
de Paulo Freire
A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO EM
MOVIMENTO: LEITURAS DE
PAULO FREIRE NO RIO GRANDE DO SUL

Danilo R. Streck1
Ana Lúcia Souza de Freitas2
Thiago Ingrassia Pereira3

Introdução

161
O centenário do nascimento de Paulo Freire (2021) passará para

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


a história pela variedade e multiplicidade de trabalhos sobre o au-
tor e sua obra. Desde textos acadêmicos a reminiscências do conví-
vio pessoal ou profissional, o mundo da educação parece que sente
a necessidade de voltar o olhar para o que Paulo Freire representa
enquanto educador, intelectual e pessoa. Seria errôneo, a nosso ver,
descartar essa volta a Paulo Freire como sentimentalismo em rela-
ção a um tempo que passou.
1
Doutorado em Fundamentos Filosóficos da Educação - Rutgers - The State University
of New Jersey (1977). Pós-doutorado na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e no
Max-Planck Institute for Human Development, em Berlim. É professor da Universida-
de de Caxias do Sul (UCS) e professor jubilado da Universidade do Vale do Rio dos Si-
nos (Unisinos). E-mail: DRStreck@ucs.br. Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/2250864123409266. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7410-3174.
2
Doutora em Educação (PUCRS, 2005) com estudos de Pós-Doutorado em Pedagogia Crí-
tica (Liverpool Hope University, 2015). Pesquisadora visitante da Universidade Federal do
Pampa (Unipampa) - Campus Jaguarão. E-mail: 0311anafreitas@gmail.com. Link para cur-
rículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0353498361023674. Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-3259-0431.
3
Pós-Doutor em Educação pela Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-
-Graduação Profissional em Educação (PPGPE) e do Programa de Pós-Graduação Interdis-
ciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
Campus Erechim. E-mail: thiago.ingrassia@uffs.edu.br. Link para currículo Lattes: http://
lattes.cnpq.br/4930503416095177. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5558-7836.
A saudade, aliás, aparece em várias obras de Paulo Freire como
uma dimensão existencial e histórica inerente ao ser humano4 e ja-
mais é vista como uma força inibidora da ação e de acomodação.
Pelo contrário, a saudade devidamente “educada” e “calibrada” im-
pulsiona e habilita para o enfrentamento das situações-limites no
encontro entre as experiências do passado e as projeções do futuro.
É nessa confluência entre o que passou e o que desejamos ajudar a
construir que situamos essa reflexão.
Na primeira parte, abordamos a obra de Paulo Freire como origi-
nada no movimento e como processo. Utilizamos a noção de Peda-
gogia do Oprimido5 como representativa para toda a sua obra que
tem no livro com este título a sua expressão mais plena. Sua obra
se alonga e expande em vários sentidos na medida em que novas
experiências são vividas e novas práticas se tornam necessárias. Há
o encontro com autores que trazem novas perspectivas para seus
conceitos; o contato com culturas diferentes leva-o a reconhecer
162
como a diversidade e unidade podem se constituir dialeticamente
e a abertura para o mundo e para o outro fomentam a curiosidade
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

que com a práxis se torna epistemológica. Os livros são registros


desse movimento da Pedagogia do Oprimido.
Na segunda parte vamos acompanhar este movimento dentro
de uma área geográfica delimitada, mais precisamente no Estado
do Rio Grande do Sul (Brasil). Trazemos elementos de um trabalho
coletivo de pesquisadores e educadores que analisaram a presença
e o legado de Paulo Freire no estado. São relembrados aspectos da
presença física que se deu na condição de coordenador da Campa-
nha Nacional de Alfabetização no governo de João Goulart e depois
de seu exílio em 1980. Lança-se também um olhar sobre algumas
produções decorrentes dessa sua presença.
A seguir, com uma delimitação ainda maior, apresenta-se o
“Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire”, um evento itineran-

4
Veja o verbete “Saudade” no Dicionário Paulo Freire, elaborado por Ana Maria Saul
(STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2018).
5
Grafamos Pedagogia do Oprimido sem destaque e com iniciais maiúsculas quando não
nos referimos especificamente ao livro Pedagogia do oprimido, mas à proposta pedagógica
identificada com Paulo Freire.
te que em 2021 promove a vigésima primeira edição. Iniciado em
1999, ele passou por 17 instituições de ensino superior do estado,
reunindo anualmente centenas de educadores que encontram na
obra de Paulo Freire inspiração para a sua prática. O Fórum é regi-
do por uma carta-compromisso e busca unir a leveza e afetividade
do encontro com a rigorosidade metodológica. Neste tópico serão
privilegiadas as interlocuções com outros autores e destacadas al-
gumas produções originadas e apoiadas no Fórum. Por fim, haverá
uma análise do XXII Fórum organizado pela Universidade Federal
da Fronteira Sul, na cidade de Erechim.
Nas conclusões aponta-se para o fato de a obra de Paulo Freire
se constituir no movimento e desafiar para o movimento, para a an-
darilhagem na qual novos caminhos são criados. Os inéditos viáveis
continuam acontecendo onde a pedagogia se põe em sintonia com
a busca do ser mais, da vida digna e respeitosa com o outro e com
o mundo que, como aprendemos com Freire, começa no quintal de
163
nossa casa e se alonga na convivência justa e amorosa com o outro

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


e com a natureza.

Uma pedagogia andarilha

A pedagogia de Paulo Freire pode ser entendida como um tra-


balho em andamento (work in progress) no sentido de que procu-
ra dar conta dos novos desafios colocados pelos tempos e pelos
espaços a que se refere. Essa dinamicidade, por um lado, dificulta
a tarefa de quem busca reduzir a obra de Paulo Freire a alguns
preceitos mais ou menos fáceis de compreender e aplicar. Por ou-
tro lado, permite que pessoas com experiências, expectativas e
projetos diferentes encontrem em sua obra um ponto de apoio ou
um abrigo.
É muito pertinente a figura da “árvore que anda” usada por Al-
fonso Torres (2021) para identificar o pensamento de Paulo Frei-
re. Trata-se da mangueira em cuja sombra muitos se aconchegam
e buscam alento para seguir a caminhada. Mas é também uma ár-
vore que tem raízes profundas exatamente para sustentar a fron-
dosidade da copa. O mundo da imaginação permite ainda conceber
que essa árvore não está presa a um lugar. Ela anda, reunindo à sua
sombra os velhos e os novos caminhantes. Juntam-se nessa ima-
gem os títulos de dois importantes livros de Paulo Freire: À sombra
dessa mangueira (FREIRE, 1995) e O caminho se faz caminhando
(FREIRE; HORTON, 2003)
A ideia de uma obra que se constitui no movimento tem uma
longa história, mas se renova e ganha novas nuances. A capa de Risk
(1975), uma publicação do Conselho Mundial de Igrejas, traz a ima-
gem de uma estrada, estando de um lado Paulo Freire com uma mo-
chila às costas com a inscrição Conscientization e no outro lado Ivan
Illich, em cuja mochila se lê Deschooling. Os polegares apontam em
direções diferentes, indicando que o óbvio sobre a educação e a es-
cola precisa ser problematizado. O título da revista, Pilgrims of the
obvious, indica o papel de ambos nessa peregrinação pelo mundo
para falar do óbvio, entendendo a sua face e vendo o que se esconde
164
sob as suas aparências.
Andarilho da utopia, o título de um programa radiofônico
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

da Radio Netherland6, em 1998, é uma expressão que não por


acaso captou o imaginário freireano. Nele confluem duas ideias
chaves: a andarilhagem como expressão da práxis e a utopia
como expressão da esperança que mobiliza. Walter Kohan (2019)
traduz a andarilhagem por errância, que ele identifica como um
dos princípios na obra de Paulo Freire, ao lado da vida, da igual-
dade do amor e da infância. Segundo ele, “um educador é alguém
que anda, caminha, se desloca...Sem um destino final, cria as con-
dições para se encontrar com os que estão fora...num tempo pre-
sente, de presença... O educador anda no mundo para mostrar que
ele sempre pode ser de outra maneira” (KOHAN, 2019, p. 143).
Na andarilhagem estão também as marchas, que por analogia à
marcha dos sem-terra, Paulo Freire ansiava ver sendo realizada
por tantos outros “sem”.

6
Ver https://www.youtube.com/watch?v=SYrjkAzpqMs. Acesso em: 13 set. 2021.
Das muitas referências à andarilhagem, destacam-se as palavras
de Carlos Rodrigues Brandão (2019), tanto pela plasticidade lin-
guística quando pelo conteúdo:

Somos humanos porque aprendemos a andar. Somos huma-


nos porque aprendemos a pendular entre um estar aqui e
um contínuo “partir”, “ir para”. Entre os que andam, viajam e
vagam, há os que se deslocam porque querem (os viajantes,
os turistas), os que se deslocam porque creem (os peregri-
nos, romeiros), os que se deslocam porque precisam (os mi-
grantes da fome, os exilados), e há os que se deslocam por-
que devem (os “engajados” – para usar uma palavra cara aos
dos anos 1960 – os “comprometidos com o outro, com uma
causa”). (BRANDÃO, 2019, p. 44).

Brandão diz então que o andar de Paulo Freire se enquadra nas


duas últimas categorias. O exílio é sempre uma ruptura e pode levar
tanto ao desespero e à desesperança, quanto pode ser visto como 165
um desafio para novas aprendizagens. Freire soube conciliar a sau-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dade de sua terra e sua gente com a experiência de outros inédi-
tos viáveis a partir de novas situações limites que encontrou tanto
no trabalho com campesinos no Chile, quanto com acadêmicos em
Harvard, quanto com as experiências na África enquanto consultor
do Conselho Mundial das Igrejas.
O exílio, lembra Paulo Freire, se sofre. “Sofrer o exílio é assumir
o drama da ruptura que caracteriza a experiência de existir num
contexto de empréstimo” (FREIRE, 1995, p. 51). Isso implica lidar
com uma série de dificuldades, desde a manutenção física até a in-
serção em uma nova cultura e a reconstituição das redes sociais e
profissionais. Mas sofrer o exílio, diz ele, não pode resumir-se em
saudosismos e lamentos. Significa ao mesmo tempo viver o presen-
te como forma de se preparar para a volta possível. Existe também,
segundo ele mesmo, o exílio de quem fica, ou porque não pode sair
ou porque se negou a deixar a sua terra, sua cultura e suas lutas.
Tanto quanto os primeiros, esses/as exilados/as são igualmente
desafiados/as a andarilhagens pelo desconhecido em busca de uma
realidade que está por ser construída.
Antes de olhar com mais atenção sua andarilhagem em um es-
paço geográfico e cultural específico no Brasil, o estado do Rio
Grande do Sul, destacamos algumas características dessa pedago-
gia que se constrói no movimento. Das andanças que marcaram
a vida e a obra de Paulo Freire estão a passagem pela Bolívia e
Chile e em alguns países africanos. Pode-se dizer que o exílio pro-
piciou a aprendizagem da latino-americanidade. Como a maioria
dos profissionais que se formam nas escolas e universidades bra-
sileiras, é pouco provável que Paulo Freire tenha adquirido um
conhecimento mais profundo da América Latina e, mais do que
isso, a identificação com uma tradição pedagógica forjada no sub-
continente durante séculos de dominação estrangeira. Isso pode
ser verificado na quase inexistência de autores latino-americanos
em seus primeiros escritos.
A passagem pela Bolívia, ainda que breve e com as dificuldades
de adaptação à altitude de La Paz, deve ter deixado marcas indelé-
166
veis no recém-exilado. Impossível que um visitante não seja impac-
tado pela vida diferente que pulsa nas ruas dessa cidade andina,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

desde a vestimenta, às folhas de coca vendidas nas ruas e mercados,


até às formas de relacionamento entre as pessoas. Mas sua grande
escola de América Latina foi sem dúvida o Chile. Ao voltar ao Chile
20 anos depois de sua partida, Paulo Freire comenta que o Chile
lhe ensinou muitas coisas. “Aprendi con los amigos y compañeros
chilenos como aprender también”. Vê o retorno ao Chile como uma
espécie de prestação de contas porque “las cosas más substantiva-
mente radicales las escribi aqui” Entre essas coisas mais radicais
está Pedagogia do oprimido. Ele também reflete sobre o que veio
depois do Chile com as seguintes palavras: “Hoy les confieso que
despues de dejar este país me converti en una espécie de vagabun-
do o andariego, caminando por el mundo, discutiendo, conversan-
do, aprendiendo” (FREIRE, 1991, p. 24 - 25).7
A reinvenção da Pedagogia do Oprimido, cuja experiência fun-
dante foi o projeto de alfabetização em Angicos, no Rio Grande
7
Pedagogia da esperança traz uma descrição detalhada da experiência de Paulo Freire no
Chile. Ver também o livro Paulo Freire e Fiori no exílio: um projeto político-pedagógico no
Chile (TRIVIÑOS; ANDREOLA, 2001).
do Norte, foi sendo levada para outros lugares do mundo quando
Paulo Freire assumiu o trabalho como consultor na área da edu-
cação para o Conselho Mundial de Educação em Genebra. De to-
das experiências, merece especial destaque o envolvimento com a
recém libertada Guiné-Bissau sob a liderança de Amílcar Cabral,
em 1974. Em Cartas a Guiné-Bissau Paulo Freire faz uma conexão
expressa com o trabalho desenvolvido no Chile quando reafirma
a impossibilidade, dentro de uma visão pedagógica revolucioná-
ria, transplantar práticas. Não se tratava, pois, de levar projetos e
planos feitos em Genebra para serem implantados, mas de desen-
volver uma proposta educativa que partisse da escuta e da com-
preensão da realidade nacional. Em carta ao Engenheiro Mário
Cabral, Paulo Freire escreve:

Por isso mesmo é que iremos à Guiné-Bissau como camara-


das, como militantes, curiosa e humildemente, e, não como
uma missão de técnicos estrangeiros que se julgasse possui- 167
dora da verdade e que levasse consigo um relatório de sua

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


visita, quando não escrito, já elaborado em suas linhas ge-
rais, com receitas e prescrições sobre o que fazer e como.
(FREIRE, 1977, p. 93)

Essa aprendizagem não se resume a uma apreensão cognitiva de


dados estatísticos ou de reconhecimento quase folclóricos da cul-
tura local. Assim como Paulo Freire aprende a sua latino-america-
nidade no Chile, assim ele percebe que a África é parte dele ou que
ele é parte da África. Ao descrever a sua primeira viagem à Tanzâ-
nia, com a cor do céu, as comidas e o gingar do corpo das pessoas,
ele diz que isso “me tomou todo e me fez perceber que eu era mais
africano do que pensava” (Id., p. 15). Pisar o chão da África era en-
tão um reencontro consigo mesmo, tendo a impressão que estava
voltando e não chegando.
Procuramos evidenciar como a prática educativa de Paulo Frei-
re se reinventa em contextos sociais, políticos e culturais distintos.
Essa reinvenção se deu e continua se dando em muitos lugares e
muitas formas, como os abundantes relatos em publicações e vi-
deoconferências estão revelando. Nosso propósito, neste capítulo é
trazer à reflexão como essa reinvenção acontece em uma área deli-
mitada do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul. Primeiro, trazemos
alguns dados gerais dessa presença com destaque para a presença
de Paulo Freire na secretaria municipal de Porto Alegre durante
administrações lideradas pelo Partido dos Trabalhadores. A seguir,
focalizamos a experiência itinerante do Fórum de Estudos, Leituras
de Paulo Freire.

Paulo Freire no Rio Grande do Sul

A Pedagogia do Oprimido adquire sentido à medida que se en-


raíza na realidade através de práticas concretas, seja na gestão, no
ensino ou na pesquisa. Perguntamo-nos, nesta seção, sobre a pre-
sença e o legado de Paulo Freire em terras gaúchas. A partir do pro-
168 jeto de pesquisa em âmbito nacional coordenado pela professora
Ana Maria Saul, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, já
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

na terceira edição, um grupo de estudiosos da obra de Paulo Freire


começou a se reunir para registrar momentos da presença de Paulo
Freire no estado em diálogos com pessoas que com ele conviveram
e fazer um estudo das repercussões de sua obra em vários âmbitos.
Apresentamos aqui alguns dados desse estudo coletivo que foi pu-
blicado no livro Paulo Freire no Rio Grande do Sul: Legado e reinven-
ção (MORETTI; STRECK; PITANO, 2018). Na continuidade, o texto
destaca a contribuição de Paulo Freire na política educacional da
Administração Popular de Porto Alegre.
Paulo Freire relata uma breve passagem pelo estado ainda na
década de 1950, ocasião em que viria a conhecer Ernani Maria Fio-
ri, um de seus principais interlocutores na escrita de Pedagogia do
oprimido e autor do esplêndido prefácio ao livro na edição em por-
tuguês8. Em entrevista a Tomás Tadeu da Silva (FREIRE, 1986) Frei-
re refere essa viagem ao estado:

8
O prefácio do livro na edição em inglês é de autoria do teólogo Richard Shaull, que usava
os manuscritos de Paulo Freire em seminários com educadores e educadoras nos Estados
Unidos e com quem Freire manteve importantes diálogos.
Olha, eu conheci Ernani Fiori [...] nos anos 50, quando éramos
ambos muito jovens. Eu me lembro que vim... nesta época eu
trabalhava no SESI de Pernambuco, e vim ao Rio Grande do
Sul em visita e conversando com Mario Reis, um gaúcho que
era na época diretor geral do SESI no Rio Grande do Sul, ele
então numa conversa de almoço comigo, me disse que havia
um professor da faculdade de direito, eu acho que Ernani tra-
balhou, deu aula também na Faculdade de direito. Lecionava
Filosofia do Direito. Ele disse que havia este professor chama-
do Ernani Maria Fiori, que era amigo dele, e aí marcou-se uma
visita a Ernani. (FREIRE apud ANDREOLA, 2011, p. 4)

Destacamos esse contato pela importância que o mesmo teve


posteriormente na criação do Instituto de Cultura Popular. O mes-
mo foi criado no dia 14 de dezembro de 1963, com a presença do
ministro da educação, Júlio Sambaqui, e de Paulo Freire, respon-
sável pelo programa nacional de alfabetização de adultos. Ernani
Maria Fiori seria o seu primeiro presidente. Embora o Instituto
169
tenha tido uma vida curta devido ao golpe de estado, houve no

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Rio Grande do Sul uma intensa movimentação política-educacio-
nal com a criação de mais de 600 círculos de cultura espalhados
por todo o território. Paulo Freire viria ao estado ainda em 1964,
pouco antes de seu exílio, para proferir uma palestra para educa-
dores e educadoras sobre o método de alfabetização por ele de-
senvolvido e testado em Angicos.
Memória 01: Primeiro “Curso Paulo Freire”, Porto Alegre, 16
de julho de 1963. Da esquerda para a direita: Geraldo Fagun-
des, Mercedes Marchant e Paulo Freire9

170
Fonte: ANDREOLA (1992).
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Após seu retorno ao Brasil, Paulo Freire teve várias passagens


pelo estado, em universidades e outros contextos como no assenta-
mento Fronteira da Conquista - município de Hulha Negra “Interior
de Bagé”, junto com a esposa Ana Maria Araújo Freire, onde desta-
cou o assentamento como espaço de produção dos frutos da terra
e produção de cultura, em 1992. No ano de 1995, a Universidade
Federal do Rio Grande do Sul lhe conferiu o título de Doutor Hono-
ris Causa, sendo na ocasião acolhido por uma singular saudação do
professor Balduíno Andreola (ANDREOLA, 2018).
Ao se tratar da presença de Paulo Freire no RS, merece atenção
especial a sua contribuição e referência no âmbito da política edu-
cacional da Administração Popular (AP) em Porto Alegre (1989 a
2004). Ao longo de quatro mandatos consecutivos, a experiência
da AP gestou a proposição da Escola Cidadã (AZEVEDO et al, 2000;
AZEVEDO, 2020). Coincide com os primeiros anos da experiência
9
Foto cedida por Cheron Zanini Moretti. Encontra-se publicada no livro Paulo Freire no Rio
Grande do Sul: legado e reinvenção, no capítulo “Círculos de cultura no Rio Grande do Sul:
memórias de uma experiência de Educação Popular (SCHULTZ; MORETTI, 2018).
na capital do RS o trabalho de Paulo Freire como secretário muni-
cipal de educação em São Paulo (1989-1991), cuja gestão propôs
“mudar a cara da escola”, reinventando-a na perspectiva da educa-
ção popular (FREIRE, 1991).
Da mesma forma, o Projeto Constituinte Escolar, apresentado na
segunda gestão em Porto Alegre (1993-1996), desencadeou o pro-
cesso de reinvenção da escola na rede municipal de ensino (FREI-
TAS, 2004; 2020). A organização curricular por ciclos de formação e
a organização do ensino por Complexo Temático, ênfase do trabalho
político-pedagógico realizado da terceira gestão (1997-2000), as-
sumiu a educação popular como referência para reinventar a escola
pública municipal, tomando Paulo Freire como fonte de inspiração
e referência (CAVEDON NUNES, 2020).
No contexto da reflexão a que nos propomos neste momento, as
imagens a seguir apresentam significativas memórias reveladoras
da presença de Paulo Freire no âmbito da política educacional em
Porto Alegre neste período.

Memória 02: A educação popular morreu? – diálogo em Por-


to Alegre

Fonte: Acervo pessoal da autora.


Em dezembro de 1995, a Secretaria Municipal de Educação
(SMED) contou com a presença de Paulo Freire em um grande en-
contro realizado no Ginásio Tesourinha, intitulado A Educação Po-
pular morreu?. Tendo exercido entre 1989 e maio de 1991 a função
de secretário municipal de educação em São Paulo, sua experiência
no processo de reinvenção da escola foi fundamental para exercer
o diálogo com o processo vivido em Porto Alegre. Dois olhares rein-
ventando a escola foi a reflexão compartilhada com Madalena Freire
que nos convidou a pensar a reinvenção da escola como um movi-
mento permanente de busca. Nas palavras de Paulo Freire: “Quer
dizer, nada pode paralisar-se, imobilizar-se no ato da invenção. Ao
ser inventado começa a querer ser reinventado. Um dos grandes
problemas nossos então, é que somos especializados em inventar,
mas não em reinventar10.”

Memória 03: Curso Planejamento e organização do ensino na


Escola Cidadã

Fonte: Acervo pessoal da autora.

A imagem retrata o Curso de formação realizado com as equipes


diretivas das escolas em novembro de 2000, último ano da terceira
10
Texto encontra-se na página do Memorial Virtual Paulo Freire. Disponível em:
http://www.memorial.paulofreire.org. Acesso em: 30 set. 2021.
gestão da AP, momento em que todas as escolas da rede municipal
já estavam organizadas por ciclos de formação. À época, as escolas
foram convidadas a compartilhar sua experiência a partir da escrita
de uma Carta Pedagógica, anexando seus registros de planejamen-
to. Entre os registros compartilhados, merece destaque a diversida-
de da expressão gráfica dos Complexos Temáticos produzidos em
cada escola.
A pesquisa como fonte do currículo foi sem dúvida uma contri-
buição relevante de Paulo Freire para a política educacional neste
período, com significativas repercussões nas práticas pedagógicas
na escola. O ano de 2000 coincide com a publicação da obra Peda-
gogia da Indignação (FREIRE, 2000), cujo subtítulo – cartas peda-
gógicas e outros registros, chama atenção para a expressão empre-
gada por ele em seus últimos escritos. Pela proposição apresentada
às escolas para a participação no referido curso, fica evidente a pre-
sença de Paulo Freire no trabalho de formação realizado, também a
173
partir da obra que ficou inconclusa.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Assim como em Porto Alegre, a Pedagogia do Oprimido foi re-
ferência para outras gestões populares no estado. Sua presença é
igualmente marcante em pesquisas de mestrado e doutorado, na
educação de jovens e adultos, na economia solidária, na educação
ambiental, nas escolas de educação infantil e básica e movimentos
sociais (MORETTI; STRECK; PITANO, 2018). A seguir dedicaremos
um espaço especial para uma iniciativa que de certa forma serve
como “sombra de mangueira” para as reinvenções da Pedagogia do
Oprimido nessa variedade de contextos.

Itinerância pedagógica: o fórum de estudos:


leituras de Paulo Freire

A partir do alcance mundial da obra de Freire e de sua presença


no Rio Grande do Sul, foram criadas as condições acadêmicas, mi-
litantes a afetivas para a construção de um espaço dialógico acerca
de leituras e reinvenções do autor. Em congresso na Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), em 1998, foram lançadas as
bases para que a primeira edição do denominado Fórum de Estu-
dos: Leituras de Paulo Freire pudesse acontecer em 1999 na pró-
pria UNISINOS. O professor Balduino Antonio Andreola, em sua
carta-prefácio a Paulo Freire no livro póstumo Pedagogia da indig-
nação, apresenta a origem do Fórum:

No Congresso da UNISINOS fundamos o Fórum Paulo Frei-


re, como instância permanente de diálogo e intercâmbio em
torno de experiências e estudos relacionados com tua obra.
O 1º Encontro do Fórum realizou-se na UNISINOS, nos dias
21 e 22 de maio de 99, contando com mais de 70 trabalhos
inscritos. Em maio desse ano [2000] o 2º Encontro anual
será sediado pela Universidade Federal de Santa Maria, coor-
denado pelo nosso amigo Fábio e outros estudiosos da tua
obra daquela Universidade. O Fórum Paulo Freire, nascido
como criação e projeto coletivo, assim irá continuar sendo
sediado a cada ano por uma cidade diversa do Estado, cons-
tituindo-se, pela dinâmica de sua organização, uma expe-
174 riência muito variada, prazerosa, e ao mesmo tempo crítica
e criativa, de diálogo genuinamente freireano ou “paulino”
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

em torno de diferentes leituras e diferentes recriações de tua


obra. (ANDREOLA, 2000, p. 17-18, grifo do autor)

Esse registro fundante da memória do professor Andreola é


muito representativo do compromisso que o Fórum assumiu no
Rio Grande do Sul, caracterizando-se como um espaço de trocas,
partilhas e atualização permanente de temas, metodologias e no-
vas leituras de Freire. Sua realização anual, itinerante e mobilizada
por diferentes sujeitos sociais torna o evento uma experiência de
encontros, mediada por leituras acadêmicas e militantes no campo
da educação popular. Assim,

o Fórum caracteriza-se pela itinerância em instituições de


ensino superior no Rio Grande do Sul e destina-se a atualizar
o legado freireano com referência da práxis da educação po-
pular, em diferentes contextos. O fato de ser itinerante, de ter
uma estrutura leve, de equilibrar a rotatividade com a per-
manência de membros na coordenação, faz do Fórum uma
espécie de laboratório no qual permanentemente se tensio-
na a relação entre o instituído e instituinte, entre adaptação
às instituições nas quais ele se realiza e as experiências ante-
riores e a ruptura com enquadramentos em institucionalida-
des que não se coligam à lógica do Fórum. (FREITAS; STRE-
CK; GHIGGI, 2011, p. 18)

Portanto, é na “gestão da tensão produtiva que se estabelece


entre a tradição e a inovação” (FREITAS; LIMA; MACHADO, 2018,
p. 31) que este movimento de articulação regional acerca da leitu-
ra da obra de Paulo Freire se mantém há mais de duas décadas de
forma ininterrupta. No quadro a seguir, apresentamos a itinerân-
cia pedagógica do Fórum pelo Rio Grande do Sul. Nomeamos como
itinerância pedagógica uma organização que pretende dar maior
visibilidade à frequência de participação das instituições que as-
sumiram a coordenação local do Fórum, deixando suas marcas no
percurso delineado até o momento.
175

Quadro 1: Itinerância Pedagógica do Fórum de Estudos:

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Leituras de Paulo Freire

Cidade Local Ano

Universidade do Vale
do Rio dos Sinos 1999 – 2008 – 2018
(UNISINOS)
São Leopoldo
Escola Superior de
2005
Teologia (EST)
Universidade Federal
do Rio Grande do Sul 2009
(UFRGS)
Porto Alegre
Pontifícia Universidade
Cató-lica do Rio Grande 2010
do Sul (PUCRS)

Universidade Federal
Santa Maria 2000 – 2015
de San-ta Maria (UFSM)

Universidade Federal
Rio Grande 2007 – 2017
do Rio Grande (FURG)

Universidade Federal
Erechim 2012 – 2020/2021
176 da Fronteira Sul (UFFS)
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Universidade de Caxias
Caxias do Sul 2019
do Sul (UCS)

Universidade Federal
Jaguarão 2016
do Pampa (UNIPAMPA)

Universidade Regional
Integrada do Alto
Santo Ângelo 2014
Uruguai e das Missões
(URI)

Faculdades Integradas
Taquara 2013
de Taquara (FACCAT)

Universidade Regional
do Noroeste do estado
Santa Rosa 2011
Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ)
Universidade de Passo
Passo Fundo 2006
Fun-do (UPF)

Universidade Estadual
Alegrete do Rio Grande do Sul 2004
(UERGS)

Universidade de Santa
Santa Cruz do Sul 2003
Cruz do Sul (UNISC)

Universidade Federal
Pelotas 2002
de Pe-lotas (UFPel)

Universidade La Salle
Canoas 2001
(UNI-LASALLE) 177

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Fonte: Reelaborado pela autora e autores, com base em FREITAS (2020).

De acordo com o quadro acima, observamos que o Fórum já es-


teve em 15 cidades e mobilizou, em suas 22 edições, 17 instituições
públicas e comunitárias de Educação Superior. Diante dessa fecun-
da pluralidade de instituições e pessoas, tornou-se interessante a
criação de uma “Carta Compromisso”11, estabelecendo, depois de
amplo diálogo e encharcada das experiências concretas das edições
do evento, os princípios que devem orientar a realização do Fórum.
Segundo este documento, que teve sua versão atualizada na XX
edição, em 2018, o Fórum se organiza por meio da gestão articula-
da de uma coordenação estadual com uma equipe local, ou seja, a
cada ano, dentro da programação do evento, há uma assembleia de-
liberativa entre os/as participantes. A ideia principal é que o Fórum
não se burocratize pela institucionalidade, priorizando a leveza do

11
Disponível em: https://xxiiforumpaulofreire.wixsite.com/uffserechim/circulares-1.
Acesso em: 27 set. 2021. Versões da carta-compromisso podem ser conhecidas em Freitas
(2020).
encontro em diferentes localidades. Mais uma vez, recorremos ao
professor Balduino Andreola para o conhecimento da natureza do
evento:

A apresentação, em grupos temáticos ou círculos de cultura,


é seguida de debates e problematizações, a partir dos quais
é desencadeada a “continuidade do diálogo”, nas escolas, nas
universidades, nos movimentos sociais. Todos aprendemos
com todos. Não há no Fórum estrelas com luz própria ofus-
cando os iniciantes. Todos(as) iluminam e são iluminados(as),
como nas constelações. Nós amamos o Cruzeiro do Sul porque
é uma linda constelação. Que pena se fosse apenas uma estre-
la de primeira grandeza! (ANDREOLA, 2011, p. 8)

Por isso, cabe a cada comissão organizadora local a definição da


programação e da própria proposta metodológica do evento, in-
cluindo a realização de Pré-Fóruns, que são momentos mobiliza-
178
dores ao evento. Isso explica os diferentes arranjos verificados ao
longo das diversas edições do Fórum. Em especial, a XXII edição
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

foi marcada pelo contexto da pandemia do novo coronavírus (Co-


vid-19), alterando a tradição do evento em seus encontros presen-
ciais, para o espaço virtual. Um fórum de educação popular de for-
ma remota é um enorme desafio. Inclusive, a pandemia gerou um
fato inédito na trajetória do evento, uma vez que a edição de 2020
teve de ser adiada, se reconfigurando para formatos de internet e se
efetivando em maio de 202112.
Entendemos que o Fórum é uma “[...] rede de educadoras e edu-
cadores [que] vem se encontrando anualmente, em meados de
maio, cada vez em uma nova cidade. Suas atividades e participações
espontâneas reforçam vínculos, parceiras e projetos de formação”
(STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2018, p. 13). Portanto, a potencialida-
de do encontro é produzida pela sinergia entre o rigor acadêmico e
o posicionamento político de quem busca a “criação de um mundo

12
Para a compreensão dos dilemas organizativos e da construção do XXII Fórum como um
“inédito-viável”, ver o e-book organizado por Allana Cavanhi, Micheli Souza, Silvana Ribei-
ro e Thiago Ingrassia Pereira (2021), que pode ser acessado em: https://livrariacirkula.
com.br/produto/9786589312215. Acesso em: 27 set. 2021.
em que seja menos difícil amar”, conforme nos ensina Paulo Freire
em Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1988, p. 184)
Na XXII edição, apostamos no exercício de uma pedagogia da
pergunta, mais do que das respostas. Por isso, nossa proposta foi
embasada no círculo de cultura. Dessa forma, observando a pro-
posta dialógica nos termos freireanos, mesmo em cenário remoto,
compusemos cada sala virtual por um(a) animador(a), um(a) rela-
tor(a) e todos e todas que se propuseram ao encontro. Tivemos a
realização concomitante de dezesseis salas virtuais, distribuindo os
217 trabalhos enviados ao evento.
Diferentemente de outras edições do Fórum, a XXII estava pen-
sada como um momento de tensionamento da tradicional lógica de
Grupos de Trabalho (GTs) de eventos acadêmicos. Ainda que a exis-
tência de GTs e eixos de diálogo não signifique, por si só, a manu-
tenção de espaços tradicionais de eventos, compreende-se que há
bom número de espaços universitários que se organizam por GTs, 179
podendo o Fórum, conforme apresentado acima, ser um laborató-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


rio entre o instituído e o instituinte.
Assim, a inscrição para compartilhar experiências e pesquisas
foi no Fórum, não em GTs ou Eixos, seguindo na linha metodológica
observada na XVII edição, realizada na UFSM. Apostamos na diver-
sidade para a aprendizagem, na abertura para o novo, na alterida-
de. Isso não exclui as especialidades de cada pessoa em sua área
de atuação, pelo contrário, potencializa um repertório mais denso,
mais curioso e, portanto, mais científico.
Os círculos dialógicos têm como objetivo principal fomentar a
interdisciplinaridade, o pensamento complexo ou, até mesmo, a
(auto)crítica de seus e suas participantes. Afinal, a educação é uma
área científica complexa, ampla e implicada a um extenso quadro
teórico-conceitual em seus fundamentos. Portanto, não cabem lei-
turas simplistas em seu fazer acadêmico (pesquisa). Da mesma
forma, não cabe o academicismo que despreza a prática e a expe-
riência. O “chão da escola” (ensino) é um espaço potente de conhe-
cimentos e seus e suas profissionais são sujeitos participantes des-
se processo.
Todas as temáticas que dialogam com a obra de Paulo Freire são
bem-vindas no Fórum. A ideia é acolhermos trabalhos escritos em
diferentes tempos formativos, ou seja, reflexões (comunicações)
sobre práticas educativas em espaços escolares e não escolares,
pesquisas realizadas na graduação e na pós-graduação (especiali-
zação, mestrado e doutorado) e outras formas de expressão (poe-
sia, banner, música, teatro, dança, vídeo e outras que a criatividade
permitir).
Os trabalhos escritos - comunicações e outras expressões – fo-
ram enviados a XXII edição de duas formas: (1) Resumo expandido
e (2) Carta pedagógica. Registre-se a importante presença de cartas
pedagógicas como forma de comunicação no Fórum, sinalizando
para atualizações importantes quanto à forma de apresentação de
trabalhos.
No decorrer da itinerância do evento a experiência de participa-
180 ção de longo prazo proporcionou reinventar o legado de Paulo Frei-
re tanto em diversas experiências de estudos e pesquisas quanto
em relação à própria organização do Fórum. Por sua condição hu-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mana e histórica, não isenta de tensões, reavaliações e distintos en-


tendimentos quanto à sua organização ao longo dos anos. Por outro
lado, primando pela rigorosidade metódica no acompanhamento
do processo, a itinerância se fez pedagógica no modo de andarilhar,
valorizando o movimento e a alegria do encontro, bem como exer-
cendo o ato crítico de registrar.
Na atualidade da leitura crítica da experiência do Fórum de Estu-
dos: Leituras de Paulo Freire, compreende-se que o modo de anda-
rilhar freireanamente envolve reconhecer que o movimento consti-
tutivo da práxis – ação, reflexão-ação – inclui dois outros elementos
inerentes à complexidade dos processos de (trans)formação defla-
grados no acompanhamento da itinerância: a emoção e o registro.
A complexidade desta compreensão se apresenta por meio da ex-
pressão gráfica a seguir.
Imagem 1: Tetragrama da (Trans)formação permanente

Fonte: FREITAS (2020, p.67).

A figura do tetragrama referencia-se no pensamento de Edgar


Morin (1990), parafraseado nesta proposição. O autor emprega a 181
matriz tetragramática para expressar seu entendimento do Univer-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


so, visualizando-o no interior de sistemas de ordem, desordem, in-
teração e organização, numa perspectiva de reorganização perma-
nente. No contexto desta reflexão importa considerar a relevância
de pensar o todo, considerando a relação entre as partes, bem como
compreender o caráter desafiador do todo em que consiste cada
uma das partes. Esta é uma compreensão que nos desafia a seguir
reinventando o legado de Paulo Freire e a fomentar os movimentos
de Leituras de Paulo Freire que ocorrem no RS, em conexão com
outros espaços.

Como conclusão

A intensa movimentação e mobilização provocada pelo centená-


rio de nascimento de Paulo Freire não é acidental. Ela tem a ver com
a maneira como a Pedagogia do Oprimido se constitui ao longo de
mais de meio século de vida desse educador, refazendo-se em tem-
pos e espaços de forma criativa e socialmente relevante. Mas a mo-
bilização tem a ver também com o tempo que vivemos no mundo e
muito especialmente no Brasil. Prega-se hoje de forma caricatural
e descontextualizada o perigo do comunismo, o moralismo ou pu-
ritanismo arrogante e preconceituoso toma o lugar do agir ético e
apregoa-se ser este não apenas o melhor dos mundos, mas o único
possível. Para esses, Paulo Freire aparece agora como um fantasma
a ser mais uma vez expurgado, imputando-se a ele a ideologização
(que sempre é dos outros) da educação, o precário preparo profis-
sional, a licenciosidade e violência, entre outros males que assolam
a educação no país.
O movimento da Pedagogia do Oprimido nos ensina que se apren-
de na ação e na escuta. Os escritos de Paulo Freire refletem que o
aprender e ensinar, como parte do ato de conhecer, por sua vez são
parte de práticas sociais muito mais amplas. Daí a politicidade de
toda ação educativa, o que por seu turno implica a permanente pro-
blematização das experiências e do mundo que é colocado como
182
mediação entre educadores-educandos e educandos-educadores.
As ações problematizadoras e transformadoras hoje se multi-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

plicam em inúmeros inéditos viáveis, muitos dos quais tiveram a


oportunidade de se tornar visíveis e conhecidos nesse ano do cen-
tenário. São ações de resistência às novas formas de colonização
das mentes e corpos e são também recriações de conceitos chaves
da teoria freireana. Por exemplo, quando na pandemia se passou
para o trabalho online os clássicos círculos de cultura tiveram que
ser reinventados em telas de computador e o diálogo teve que inte-
grar novas mediações tecnológicas.
O movimento implica também uma permanente disponibilidade
para escutar, ou seja, a abertura para novas aprendizagens para en-
tão poder entrar dialogicamente em um processo verdadeiramen-
te educativo. Criar condições para que todos digam a sua palavra,
exercendo também a escuta de quem reconhece o/a outro/a como
sujeito de conhecimento é condição tanto para a formulação de po-
líticas educativas quanto para a prática educativa em sala de aula.
Ou seja, o movimento não é apenas do educador e da educadora,
mas é de todos seres andantes, peregrinos ou andarilhos que bus-
cam o ser mais para si mesmos, que nunca pode ser dissociado do
ser mais dos outros e do cuidado com o mundo mais que humano
do qual somos parte.

REFERÊNCIAS

ANDREOLA, Balduino A. Apresentação. In: Leituras de Pau-


lo Freire na partilha de experiências. Organização: Ana Lucia
Souza de Freitas, Gomercindo Ghiggi e Márcia Cavalcante.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.

ANDREOLA, Balduino A. Saudação ao professor Paulo Frei-


re: Doutor honoris Causa pela UFRGS-20/10/1994. In: Paulo
Freire no Rio Grande do Sul: Legado e reinvenção. Organiza-
ção: Cheron Zanini Moretti, Danilo Romeu Streck e Sandro de
183
Castro Pitano. Caxias do Sul:UCS, 2018. p. 283-291.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ANDREOLA, Balduino A. Relatório de pesquisa. O instituto de
Cultura Popular no Rio Grande do Sul: história, influências e
desdobramentos. Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Porto Algre, 13 de agosto de 1992.
ANDREOLA, Balduino A. Carta-prefácio a Paulo Freire. In:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas
e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000, p. 15-25.

ANDREOLA, Balduino A.; GHIGGI, Gomercindo. Paulo Freire


no Rio Grande do Sul - Diálogos, aprendizagens e reinvenções.
Revista e-curriculum, São Paulo, v.7 n.3, p. 1-20, dez. 2011.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/curricu-
lum/article/view/7600. Acesso em: 20 out 2021.
AZEVEDO, José Clóvis. Escola Cidadã: uma experiência con-
tra-hegemônica. In: FREITAS, Ana Lúcia Souza de; SILVA, An-
tonio Fernando Gouvea da; SANTOS, Maria Walburga dos.
Dossiê Temático: Democracia Participativa e Educação Cida-
dã: legados e reinvenção (ou tempos para esperançar). Críti-
ca Educativa. v. 6, n. 1, 2020, p. 1-17. Disponível em: https://
www.criticaeducativa.ufscar.br/index.php/criticaeducativa/
article/view/473. Acesso em: 15 jul 2021.

AZEVEDO, José Clóvis de et al. (orgs.). Utopia e democracia na


Educação Cidadã. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/Se-
cretaria Municipal de Educação. 2000.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Andarilhagem. In: Dicionário


Paulo Freire. Organização: Danilo Streck, Euclides Redin e Jai-
184 me José Zitkoskim 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

CAVANHI, Allan; SOUZA, Micheli; RIBEIRO, Silvana; PEREI-


RA, Thiago Ingrassia (Orgs.). Leituras freireanas em tem-
pos de incerteza: memórias, registros e anais do XXII Fórum
de Estudos: Leituras de Paulo Freire. Porto Alegre: CirKula,
2021. Disponível em: https://livrariacirkula.com.br/produ-
to/9786589312215. Acesso em: 27 set. 2021.

CAVEDON NUNES, Sofia. Conceitos e práxis referenciais da


Escola Cidadã - legados e o desafio de reinvenção In: FREI-
TAS, Ana Lúcia Souza de; SILVA, Antonio Fernando Gouvea da;
SANTOS, Maria Walburga dos. Dossiê Temático: Democracia
Participativa e Educação Cidadã: legados e reinvenção (ou
tempos para esperançar). Crítica Educativa. v. 6, n. 1, 2020b, p.
1-20. Disponível em: https://www.criticaeducativa.ufscar.br/
index.php/ criticaeducativa/article/view/506. Acesso em: 15
ago 2021.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas
e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

FREIRE, Paulo. À sombra dessa mangueira. São Paulo: Olho


d’Água, 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e


Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18a. edição, São Paulo:


Paz e Terra, 1988.

FREIRE, Paulo. “Ernani Fiori: um intelectual apaixonado”. En-


trevista a Tomaz Tadeu da Silva. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 11, n. 1, p. 11-18, jan./jun. 1986. Disponível em: ht- 185
tps://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/issue/view/3068/

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


showToc. Acesso em: 20 out 2021.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: Registros de uma expe-


riência em progresso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

FREIRE, Paulo. Paulo Freire em Chile. Conversaciones, Confe-


rencias y Entrevistas. San Bernardo, Chile: Centro el Canelo
de Nos, 1991.

FREIRE, Paulo; HORTON, Myles. O caminho se faz caminhan-


do: Conversas sobre educação e mudança social. Petrópolis,
Vozes, 2003.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Andarilhagens de uma educado-
ra pesquisadora: cartas pedagógicas e outros registros de par-
ticipação no Fórum de Estudos Leituras de Paulo Freire. São
Paulo: BT Acadêmica; Porto Alegre: Poiseis & Poiética Casa
Publicadora, 2020.

FREITAS, Ana Lúcia Souza de; LIMA, Cleiva Aguiar de; MA-
CHADO, Maria Elisabete. Fórum de Estudos: leituras de Paulo
Freire – um movimento de (trans)formação permanente no
Rio Grande do Sul. In: Paulo Freire no Rio Grande do Sul: lega-
do e reinvenção. Organização: Cheron Zanini Moretti, Danilo
Romeu Streck e Sandro de Castro Pitano. Caxias do Sul: EDU-
CS, 2018, p.19-35.

FREITAS, Ana Lucia Souza de; STRECK, Danilo Romeu; GHIG-


186 GI, Gomercindo. Histórias, saberes e aprendizagens em movi-
mento. In. Leituras de Paulo Freire na partilha de experiências.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Organização: Ana Lucia Souza de Freitas, Gomercindo Ghiggi


e Márcia Cavalcante. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, p. 28.

FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Pedagogia do inédito-viável:


contribuições da participação pesquisante em favor de uma
política pública e inclusiva de formação com educadores e
educadoras. Porto Alegre, RS. Tese (Doutorado em Educação)
- Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Projeto Constituinte Escolar:
um legado da experiência da Escola Cidadã em Porto Alegre/
RS In: FREITAS, Ana Lúcia Souza de; SILVA, Antonio Fernando
Gouvea da; SANTOS, Maria Walburga dos. Dossiê Temático:
Democracia Participativa e Educação Cidadã: legados e rein-
venção (ou tempos para esperançar). Crítica Educativa. v. 6, n.
1, 2020b, p. 1–18. Disponível em: https://www.criticaeduca-
tiva.ufscar.br/ index.php/criticaeducativa/article/view/488.
Acesso: 15 ago 2021.

KOHAN, Walter. Paulo Freire mais do que nunca: Uma biografia


filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Portugal: Publicações


Europa-América Ltda., 1990.
187

MORETTI, Cheron Zanini; STRECK, Danilo Romeu; PITANO,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Sandro de Castro. Paulo Freire no Rio Grande do Sul: Legado e
reinvenção. Caxias do Sul: UCS, 2018.

REINVENTAR. Memorial virtual Paulo Freire. Disponível em:


http://memorial.paulofreire.org/. Acesso em: 15 jul 2021.

SAUL, Ana Maria. Saudade. In: Dicionário Paulo Freire. Orga-


nização: Danilo R. Streck, Euclides Redin e Jaime J. Zitkoski.
4. ed. revista e ampliada. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p.
425.

SCHULTZ, Ângela Cristine; MORETTI, Cheron Zanini. Círculos


de cultura no Rio Grande do Sul: memórias de uma experiên-
cia educativa. In: MORETTI, Cheron Zanini; STRECK, Danilo
Romeu; PITANO, Sandro de Castro. Paulo Freire no Rio Grande
do Sul: Legado e reinvenção. Caxias do Sul: UCS, 2018.
STRECK, Danilo Romeu; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime
José. Apresentação à quarta edição revista e ampliada. In: Di-
cionário Paulo Freire. Danilo R. Streck, Euclides Redin e Jaime
J. Zitkoski. 4. ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018.

TORRES C., Alfonso. Paulo Freire, um árbol que camina (Edi-


torial). Pedagogía y saberes. N. 55, julio-diciembre de 2021, p.
7-9. Bogotá, DC. Disponível em: https://revistas.pedagogica.
edu.co/index.php/PYS/article/view/14204. Acesso em: 20
out 2021.

TRIVIÑOS, Augusto Nivaldo Silva; ANDREOLA, Balduino A.


Paulo Freire e Fiori no exílio: um projeto político-pedagógico
no Chile. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2001.

188
WCC. Risk. Pilgrims of the Obvious. Geneva: WCC Publications
Office, vol. 11, n. 1, 1975.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

RESUMO
O objetivo do capítulo é identificar a presença de Paulo
Freire no estado do Rio Grande do Sul e o modo como o
conhecimento e reinvenção de seu legado, nas últimas duas
décadas, vem caracterizando o Fórum de Estudos: Leituras
de Paulo Freire. Concebe-se a Pedagogia do Oprimido como
uma práxis constituída no movimento ou nas andarilhagens
que caracterizam a própria vida e obra de Paulo Freire. Busca-
se contribuir tanto para a memória histórica quanto para as
possibilidades criativas propiciadas pela obra de Paulo Freire.
Palavras-chave: Paulo Freire, Andarilhagens, Rio Grande do
Sul, Fórum de Estudos: leituras de Paulo Freire.
ABSTRACT
The objective of the chapter is to identify the presence of
Paulo Freire in the state of Rio Grande do Sul and the way in
which the knowledge and reinvention of his legacy, in the last
two decades, has characterized the Study Forum: Readings
of Paulo Freire. The Pedagogy of the Oppressed is conceived
as a praxis constituted in the movement or wanderings that
characterize the life and work of Paulo Freire. The reflection
seeks to contribute both to historical memory and to the
creative possibilities provided by Paulo Freire’s work.
Key-words: Paulo Freire, Wanderings, Rio Grande do Sul,
Study Forum: Readings of Paulo Freire.

SOBRE AUTORA E AUTORES

189
Danilo R. Streck

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade de
Caxias do Sul. Suas pesquisas e produção acadêmica concen-
tram-se nas áreas de pedagogia latino-americana, educação
popular e mediações pedagógicas em processos sociais parti-
cipativos. Participa do GT de Educação Popular e Pedagogias
Críticas na América Latina da CLACSO e editor executivo do
International Journal of Action Research.

Ana Lúcia Souza de Freitas


Pesquisadora visitante da Universidade Federal do Pampa
(Unipampa) - Campus Jaguarão e membro do Grupo de Estu-
dos e Pesquisa em Políticas, Avaliação e Gestão da Educação/
GEPPAGE. Cofundadora do Coletivo Leitoras de Paulo Freire
na França. Doutora em Educação (PUCRS, 2005) com estudos
de Pós-Doutorado em Pedagogia Crítica (Liverpool Hope Uni-
versity, 2015).
Thiago Ingrassia Pereira
Sociólogo e Doutor em Educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-Doutor em Educação pela
Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Gra-
duação Profissional em Educação (PPGPE) e do Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGI-
CH) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus
Erechim. Tutor do Grupo PET Práxis/Licenciaturas (FNDE).
Coordenador do XXII Fórum de Estudos: Leituras de Paulo
Freire (2020/2021).

190
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams
PAULO FREIRE E A CONSTITUIÇÃO
DE UM PENSAMENTO EDUCACIONAL1

Seria impensável um mundo em que a experiência humana


se desse ausente da continuidade necessária, quer dizer, fora
da história. Neste sentido é que a “morte da história” impli-
ca a morte das mulheres e dos homens. Homens e mulheres
não podem sobreviver à morte da história que, por ser feita
por eles e elas, as faz e refaz. O que ocorre é a superação de
uma fase histórica por outra que não elimina a continuidade
da história na mudança. (FREIRE; FREIRE, 2013, p. 31)

Débora Mazza2 191

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Brasil nas décadas de 1930 a 1960: atores,
instituições e processos

Paulo Freire teve sua infância, juventude e maturidade marca-


das pelos cenários nacional e internacional das décadas de 1930
a 1960. Esse período vinculou, de modo muito particular, os pro-
cessos de mudanças sociais no Brasil com a implementação de um
sistema público de educação para todo/as.
1
Este texto foi inicialmente apresentado com o mesmo título no 20o Congresso Brasileiro
de Sociologia, no Comitê de Pesquisa 20 (Pensamento Social). O evento ocorreu remota-
mente na Universidade Federal do Pará (UFPA), entre os dias 12 e 17 de julho de 2021.
Esta é uma versão ampliada que compõem o Capitulo 2 do Texto de Livre Docência que
submeti para o concurso público do DECISE/FE/Unicamp, em agosto/2021.
2
Possui pós doutorado em Sociologia pelo Laboratoire Genre, Travail e Mobilité (GTM),
2011 e pós doutorado em Sociologia pelo Centre de Recherche sur le Brésil Contempo-
raimn(CRBC), Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), 2003, ambos em
Paris- França. Docente do Departamento de Ciências Sociais na Educação (DECISE). Par-
ticipa do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Linha Educação e Ciências Sociais
e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas, Educação e Sociedade (GPPES). E-mail:
Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5511725315048443. Orcid: https://or-
cid.org/0000-0002-8968-4597.
Fernandes (1975) e Weffort (1967) apontam que essas décadas
promoveram modernização e progresso econômico e reclamavam o
desenvolvimento social contando com a colaboração de processos,
instituições e atores que serviram como mediadores e indutores
das mudanças em curso. No modelo produtivo urbano-industrial,
a consolidação do Estado moderno deveria alavancar crescimento
econômico, condições de participação na economia global, desen-
volvimento nacional e integração de grupos sociais até então excluí-
dos da ordem social patrimonialista, regida pela economia agrário-
-comercial-exportadora dependente (PRADO JUNIOR, 1969).
Para tanto, a elaboração de um projeto de instrução pública po-
pular comparece como uma variável política estratégica capaz de
intensificar a modernização do processo produtivo, equalizar as
desigualdades regionais nas diferentes esferas da vida social, di-
namizar o crescimento da renda da classe trabalhadora e criar as
bases para a construção de uma sociedade menos desigual. Precisa-
192
va-se de estruturas, instituições e atores que inserissem a socieda-
de brasileira na ordem capitalista em condições de competitividade
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

(CUNHA, 1989).
Paulo Freire foi tributário de uma pauta encampada por Louren-
ço Filho e Anísio Teixeira desde as décadas de 1920 e 1930, quando
participaram de reformas dos sistemas regionais de ensino no Cea-
rá (1922-1923), na Bahia (1924-1929), em São Paulo (1930-1931)
e no Distrito Federal (1931-1935). Ambos foram signatários do Ma-
nifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) e, a partir dessas
experiências, exploraram o desenvolvimento de pesquisas sistemá-
ticas sobre os problemas nacionais vinculando-os com a situação
de ensino.
Ferreira (2006, p. 17) analisa os feitos de Lourenço Filho e Aní-
sio Teixeira:

No Ceará e na Bahia, ambos promoveram a realização do cadastro


e do censo escolar [...] e deram continuidade a essas experiências
[...] em SP e no DF. No início da década de 1930, Lourenço Filho cria
o Serviço de Estatística e Arquivos da Diretoria Geral de Instrução
Pública do Estado de SP, e Anísio, o Instituto de Pesquisas Educa-
cionais na Diretoria de Instrução Pública do DF, essas experiências
locais se desdobram em âmbito nacional no INEP e nos CBPE.

Nas décadas de 1950 e 1960, Anísio acumula cargos e funções


na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), em 1951, no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (INEP), de 1952 a 1964. Também cria o Centro Brasi-
leiro de Pesquisas Educacionais (CBPE1955) em 1955, os Centros
Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPE) em 1956, em Porto
Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Recife e São Paulo. Além disso, põe
em marcha uma pauta abraçada por Lourenço Filho desde 1937,
quando este fundou o Inep (XAVIER, 1999), que defendia a descen-
tralização administrativa para promover as políticas públicas, em
geral, e os sistemas estaduais de ensino, em particular, de modo a
criar uma correspondência com a diversidade regional existente no
país e conectar a Educação com o desenvolvimento e a democrati-
zação da sociedade. Essa era a posição que eles tentavam imprimir 193
nos debates sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


(GANDINI, 1986).
A pedido de Anísio, financiados pela Capes, Costa Pinto e Edson
Carneiro (1955) realizam um estudo sobre As ciências sociais no
Brasil e traçam um panorama geral dos problemas sociais. Indicam
a necessidade da tomada de consciência sobre a mudança estrutu-
ral em curso, a urgência de as Ciências Sociais cumprirem a tarefa
de analisar, compreender e transformar a situação social e cultural
brasileira e o papel da Educação na reconstrução nacional ― des-
tacando sua contribuição na formação de mão de obra qualificada,
inclusive dos cientistas sociais ― na emergência de uma educação
popular e no fim de uma educação voltada exclusivamente para os
grupos privilegiados. A ideia central de Anísio Teixeira ― “educação
não é privilégio” ― é mobilizada pelo relatório.
Essa pauta criava interfaces entre: as tendências de desenvolvi-
mento de cada região e da sociedade brasileira como um todo, a su-
peração dos estudos sociais realizados por intelectuais brasileiros
a partir de uma tradição bacharelesca e autodidata, o desenvolvi-
mento das Ciências Sociais, os desafios deixados pelos movimen-
tos revolucionários da década de 1930 e a “tomada de consciência
científica e crítica dos processos de mudanças sociais” (COSTA PIN-
TO; CARNEIRO, p. 15). Os autores (1955, p. 23) ponderam:

As elites intelectuais do País foram obrigadas a reagir aos


problemas criados pelas mudanças sociais em processo. [...]
existe a formação de um clima de interesse que exige ini-
ciativas práticas [...], a orientação do pensamento brasileiro
face às novas situações [...][, ] da industrialização de nossa
economia, da urbanização de nossa população, da amplia-
ção do mercado interno, da expansão do proletariado, do
desenvolvimento das classes médias, da burocratização dos
aparelhos administrativos público e privado, da expansão
demográfica, da colonização interna das áreas subdesenvol-
vidas de um País subdesenvolvido, das migrações internas,
da crise da estrutura agrária e dos produtos agrícolas, dos
problemas de imigração e dos indígenas, das imposições do
194 planejamento econômico e administrativo, das alterações do
padrão tradicional de relações raciais, da aplicação de uma
legislação trabalhista complexa, do acirramento dos confli-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tos de classes e do aprofundamento das contradições da po-


sição do Brasil na economia mundial.

Os autores argumentam:

As mudanças estruturais que vinham historicamente trans-


formando a sociedade brasileira e que resultaram no movi-
mento político de 1930 [...] estão no fundo da situação social
e cultural dentro da qual as ciências sociais no Brasil tiveram
um surto de expansão. [...]
Se procura tomar consciência sociológica dos nossos pro-
blemas sociais e lançar as bases sociológicas de um sistema
educacional consentâneo com as nossas novas realidades,
para cujos problemas buscavam-se nossas soluções, cami-
nhos e fins.
A tarefa é analisar, compreender e transformar a realidade
brasileira. (COSTA PINTO; CARNEIRO, 1955, p. 20-21)
É possível sugerir que esse relatório põe em movimento o
conteúdo expresso no Manifesto dos Pioneiros de 1932 e serve de
diretriz para o desenho institucional do Centro Brasileiro de Pes-
quisas Educacionais e dos Centros Regionais. Esses espaços ado-
tam como temas centrais de suas atividades: 1) educação e mu-
dança social; 2) educação escolarizada e modificações no mundo
do trabalho (industrialização e urbanização); 3) mudança social e
suas relações com a educação informal e escolar (FERREIRA, 2006,
p. 13). A ideia era que os Centros atuassem como ramificações da
Capes e do Inep à nível nacional capilarizando a realização de pes-
quisas no território visando a subsidiar as políticas públicas para a
reconstrução da educação nacional (MEUCCI, 2015).
Talvez seja importante pontuar que existiam vários atores e
instituições que disputavam diferentes teorias de interpretações
do Brasil e da América Latina, dialogando com a inserção tardia
dos países periféricos na dinâmica do capitalismo globalizado. O
195
fim da Segunda Guerra Mundial (1945), o início da Guerra Fria, a

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Revolução Cubana (1959), a Aliança para o Progresso (década de
1960), a dominação colonialista, os processos de descolonização,
a luta de classes, os reconhecimentos das democracias ocidentais
foram cenários que agudizaram a tomada de consciência sobre a
complexidade da correlação de forças a nível nacional, regional e
internacional numa tradição histórico-crítica. A posição geopolítica
subalterna que o país ocupava deveria ser alvo de diagnósticos e
prognósticos que visavam a intervenções nas esferas econômicas,
políticas e sociais. O debate sobre o atraso e o papel dos intelec-
tuais na superação da ordem tradicional ― ancorada nas catego-
rias da raça, clima e composição étnica ―, as debilidades de nossas
instituições, o legado colonialista e patriarcal de nossa formação
econômica e a inserção tardia e periférica de nosso continente fo-
ram pautas que mobilizaram a Cepal3, o Iseb4 e a institucionalização
3
A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) foi criada em 1948 pelo
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas com o objetivo de incentivar a coope-
ração econômica entre os países membros. Ela vinculava-se à Organização das Nações
Unidas (ONU), conforme relata Toledo (1986).
4
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) foi um órgão criado em 1955, no Rio
de Janeiro, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, destinado a estudar, ensinar e
das Ciências Sociais no Brasil (CEPÊDA; MAZUCATO, 2015, p. 76).
Soma-se a isso a compleição do movimento socialista, repensada
na III Internacional, cuja orientação se afastou da possibilidade de
uma Revolução Geral internacionalmente conduzida e passou a fri-
sar a direção nacionalista seguindo a tese de que os Partidos Comu-
nistas deveriam liderar a Revolução democrático-burguesa como
etapa da Revolução Socialista (SAVIANI, 1991, p. 61-62).
Nessa ambiência de continuidades, as décadas de 1950 e 1960
promoveram também descontinuidades que influenciaram a for-
mação e a inserção profissional de Paulo Freire. Quais seriam as
continuidades e as rupturas realizadas pelas pesquisas educacio-
nais nas décadas de 1950 e 1960 e que, segundo sugiro, influencia-
ram Paulo Freire?
As continuidades se vinculavam à hegemonia de uma concep-
ção liberal burguesa que prometia possibilidades de as sociedades
196 tradicional-agrárias alçarem ao estatuto de sociedades urbano-in-
dustriais, segundo o modelo trilhado pelos países ocidentais, que
mobilizaram as revoluções industrial-inglesa, político-francesa e
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

social-americana. A ideia era que esse processo de modernização


exigia orientação da ação social, de modo a produzir sociedades
nas quais o desempenho intelectual e técnico das diferentes classes
oferecesse condições de posicionamento na estrutura ocupacional
do capitalismo competitivo. As descontinuidades atrelavam-se ao
papel que a ciência, a tecnologia e o conhecimento racional sobre a
realidade nacional alcançariam na coordenação de ações técnicas
visando à construção de sociedades democráticas.
Nesse mote, Mannheim comparece como um autor cotejado pela
Cepal, pelo Iseb, pelas Ciências Sociais e por Paulo Freire, em par-
ticular nos livros Educação e atualidade brasileira e Educação como
prática da liberdade. “Tratava-se de enfrentar os déficits que consti-
tuem os óbices do desenvolvimento do país na criação de uma men-
talidade democrática e com ímpeto emancipador.” (FREIRE, 1967, p.
101, grifos meus ou grifos do autor). Assim, a educação comparece

divulgar as Ciências Sociais, bem como a nuclear as discussões sobre o desenvolvimento


regional e nacional (TOLEDO, 1986).
como uma das técnicas sociais, como uma das mediações que pode-
riam acelerar a inserção de sociedades na ambiência democrática.
Gouveia (1971), num esforço de repertoriar as oscilações das
pesquisas educacionais desenvolvidas no Brasil, aponta que as dé-
cadas de 1920 a 1940 produziram estudos de natureza predomi-
nantemente psicopedagógica e afirma:

Eram estudos sobre a linguagem infantil, o vocabulário cor-


rente na literatura destinada à infância e juventude, análise
fatorial de habilidades verbais, padronização de testes de
avalição do nível mental, vestibulares para escolas superio-
res, aplicação experimental de provas para os candidatos a
exames de madureza. (GOUVEIA, 1971, p. 2)

Entendia-se que esses estudos ancorados na psicologia compor-


tamental e em métodos quantitativos não promoviam pesquisas
sobre as condições culturais, as tendências de desenvolvimento de 197
cada região e da sociedade brasileira como um todo; portanto, não

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


subsidiavam a política educacional para uma sociedade em mudan-
ça. Gouveia (1971, p. 3) sugere que o CBPE e os CRPE colocaram
em andamento pesquisas sobre “educação e mobilidade social, re-
lações raciais no Brasil, relações entre o processo de socialização e
a estrutura de comunidade, estrutura social da escola, estudos de
comunidade e estratificação social no Brasil.”
Autoras como Gouveia (1971), Ferreira (2006), Mariani (1982),
Meucci (2015), Paoli (1995) e Xavier (1999) identificam os atores,
as agências financiadoras e os projetos de cientistas sociais que
gravitaram no CBPE e nos CRPE e apontam a formação diferenciada
que esses Centros promoveram por meio de cursos sobre os méto-
dos e as técnicas de pesquisa social, projetos vinculados à Unesco,
articulação com a Universidade de Columbia, estudos de comunida-
de operando com equipes interdisciplinares que contavam, princi-
palmente, com: antropólogos, pedagogos, psicólogos e sociólogos.
Essa ossatura institucional, combinada com a efervescência
nacional desenvolvimentista, mobilizou atores e instituições que
transformaram o Brasil em um laboratório de suas pesquisas vi-
sando a subsidiar as políticas públicas e a induzir as mudanças so-
ciais. Nesse horizonte, a educação comparece como uma variável
heurística dos processos de aceleração das mudanças sociais que
contribuiu para descobrir o escopo das desigualdades nacionais e
identificar os setores tradicionais da sociedade que emperravam e
resistiam aos processos em curso. Era um jogo de queda de braço
entre o Brasil arcaico e o impulso de modernização. Anísio Teixeira
e Darcy Ribeiro acolheram Jacques Lambert no Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais, no Rio de Janeiro, e debatem, publicam
e divulgam, por meio dos CRPE, a tese Os dois Brasis (LAMBERT,
1959), que sugere a coexistência, na realidade brasileira, de uma
economia e de uma sociedade arcaicas e de uma economia e de uma
sociedade modernas que apresentam diferenças entre os níveis e as
condições de vida, produzindo duas categorias de brasileiros, como
“dois mundos de costas um para o outro” (LAMBERT, 1959, p. 274).
Paulo Freire é alcançado por essas inflexões e, desde seus pri-
198
meiros ensaios reflexivos sobre a realidade nacional, operou com
a “tripladiça” Estado, política e sociedade e entendeu que não era
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

possível pensar a educação sem inseri-la nas formas de organização


que estruturam as relações sociais. Adotou o conceito de “proble-
ma social” como desenvolvimento e elevação do nível de aspiração
da população, tal como preconizado por Oracy Nogueira (1975), e
distanciou-se do referencial operado por autores norte-america-
nos, tais como Abbott Herman, Richard Fuller e Robert Park, que
definiam “problema social” como situações de deterioração e de-
sorganização social.
É importante destacar que Oracy Nogueira atuou como
colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais na
década de 1950, ministrando cursos de métodos e técnicas de pes-
quisas sociais para os pesquisadores dos Centros Regionais, da Es-
cola de Sociologia e Política de São Paulo e do Centro de Estudos de
Folclore Mario de Andrade. Essa informação comparece na nota de
rodapé de vários textos por ele produzidos e publicados na forma
de livro e artigos no Correio Folclórico, página do Correio Paulista-
no (NOGUEIRA, 1975, p. 1).
Oracy entende que “um problema social [...] é qualquer situação
que atraia a atenção de um número considerável de observadores
competentes, numa sociedade, como algo a exigir reajustamento ou
solução através de ação social, isto é, coletiva.” (NOGUEIRA, 1975, p.
17). Entretanto, afasta-se do conceito manejado pela Escola de Chi-
cago, na qual ele realizou seus estudos de doutorado na década de
1940, quando trabalhou com Everett Hugles, Louis Wirth, Robert
Redfield, W. L. Warner, entre outros.
Assim, ele torce o conceito de problema social a partir da
realidade das sociedades periféricas e em desenvolvimento, e
assevera:

Um problema social implica não apenas uma situação que


ameace a sobrevivência, o bem-estar e o desenvolvimento
de seres humanos, quer considerados individualmente, quer
como membros de um grupo com experiências e valores
próprios, mas também na tomada de consciência por parte 199
dos componentes do grupo tanto das condições que assim

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


os afetam como da exequibilidade e eficácia de medidas des-
tinadas a removê-las ou a atenuar suas consequências. [...].
Em todas estas perspectivas, o problema social tem que ser
pensado a partir de um referencial. Por exemplo: nas socie-
dades nacionais altamente industrializadas os problemas
sociais tendem a ser traduzidos como situações de deterio-
rização- de fato ou potencial- de condições sociais já alcan-
çadas, enquanto que os problemas dos países subdesenvol-
vidos decorrem, antes, de não terem atingido as mesmas
condições ou, mesmo, condições mais modestas. [...] O estu-
do dos diferentes problemas sociais que afetam a sociedade
pode ser conduzido em termos de desorganização social, de
defasagem cultural ou de resistência dos valores sociais à
mudança; pode levar em conta tanto os fatores situacionais
ou objetivos como os culturais ou atitudinais. [...] Entretanto,
julgamos conveniente realçar que nas sociedades em desen-
volvimento, frequentemente, os problemas sociais refletem
antes o desenvolvimento social e a elevação do nível de as-
piração da população que a deteriorização de condições já
atingidas. É assim que se pode dar o aparente paradoxo de
o problema se estar agravando quando, examinando-se a si-
tuação numa perspectiva diacrônica, se verifica que, objeti-
vamente, ela tem melhorado. (NOGUEIRA, 1975, p. 17-23)
Nogueira se apropria do referencial da Sociologia da Escola de
Chicago, mas estabelece distinções entre as condições alcançadas
pelos países mais avançados e a possibilidade de os conceitos lá
produzidos servirem como um gabarito a ser aplicado nos países
em desenvolvimento. Ele segue e argumenta:

No Brasil, o interesse público nos problemas sociais se une


com o movimento pelo bem-estar social e o movimento pela
efetivação de direitos. Ou seja, a preocupação com os proble-
mas sociais tende a acompanhar a preocupação com a eleva-
ção do padrão de vida e da distribuição da riqueza socialmen-
te produzida. Sendo assim, do ponto de vista sociológico o
problema social implica em duas ordens de condições: 1- con-
dições materiais, objetivas ou de fato; 2- condições sociocultu-
rais. Portanto, embora frequentemente se associe a noção de
problema social à de desorganização social, com igual razão
200 se poderá associa-la à de desenvolvimento socioeconômico,
desenvolvimento, progresso ou prosperidade social [...]. No
desenvolvimento de um problema social pode-se discriminar
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

duas fases principais. A primeira fase é a da existência de um


conjunto de condições ou fatores cujas consequências são
frustradoras e, portanto, indesejáveis para os componentes
do grupo, porém não se tem consciência da possibilidade de
controle racional da situação, não vislumbrando nenhum pla-
no de ação sistemática em relação à mesma. A segunda fase
começa com a tomada de consciência da situação problema
que inaugura condições para uma eventual solução. Neste
sentido, o papel dos formadores de opinião pública, o posi-
cionamento dos peritos/intelectuais e a posição dos grupos
de pressão são decisivos na identificação, conscientização e
mudança social. (NOGUEIRA, 1975, p. 27)

Outro tema que atravessou transversalmente a produção das


Ciências Sociais brasileiras nas décadas de 1940 a 1960 foi o das
mudanças sociais no Brasil (VILLAS BOAS, 1992). Ele pautou o Se-
minário Internacional sobre “Resistências à Mudança: Fatores que
impedem ou dificultam o Desenvolvimento”, realizado em outubro
de 1959, no Rio de Janeiro, organizado pelo Centro Latino-Ameri-
cano de Pesquisas em Ciências Sociais, tendo como diretor, à época,
Luís de Aguiar Costa Pinto. Este, como já destacado acima, conhecia
Anísio Teixeira desde a década de 1940, quando ambos trabalha-
ram na Bahia, e depois coordenou as primeiras pesquisas educacio-
nais realizadas pelo CBPE, no Rio de Janeiro, (FERREIRA, 2006, p.
66-69), e recebeu financiamento da Capes para compor o relatório
da pesquisa pioneira (COSTA PINTO; CARNEIRO, 1955). No final da
década de 1950, à frente do Centro Latino-Americano, organizou
o Seminário e hospedou “quase 60 cientistas sociais, de diferentes
países e especialidades, vindos de mais de 20 países da América
do Sul, do Centro, do Norte e da Europa, que, durante uma sema-
na discutiram 43 trabalhos apresentados sobre o temário.” (COSTA
PINTO, 1960, p. 6).
Costa Pinto (1960, p. 6-11) sugere que o Seminário problema-
tizou o conceito de “mudança social” entendendo-a não como um
processo natural, mas como um campo de disputa por diferentes
projetos de sociedade e afirma:
201

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


O tema central [...] foi o desenvolvimento da América Latina
analisado do ângulo dos fatores que lhe opõem resistência.
[...] a intenção foi de colher a opinião e confrontar a expe-
riência sobre os fatores e as condições que podem compro-
meter a execução prática de políticas concebidas para pro-
mover o progresso econômico e desenvolvimento social.
Foi deliberada, por parte dos organizadores [...], a inversão
dialética que aparece na formulação do tema [...]. [Também
se debateu sobre] o ensejo de pensar as teses sobre o de-
senvolvimento a partir de sua antítese [...]. A aspiração foi,
sobretudo, [...] pensar cientificamente no problema do de-
senvolvimento – do ângulo dos fatores que impedem ou di-
ficultam o seu processo, atrasam o seu ritmo e desfiguram o
seu sentido [...]. É precisamente nos pontos de ruptura, nas
brechas abertas pelo ritmo diverso da transformação das
diferentes partes, que emergem as contradições, as assime-
trias, os círculos viciosos [...], os problemas, as tensões e as
crises de estrutura [...]. Levando em conta a situação parti-
cular da América Latina, os principais fatores de resistência
apontados no Seminário foram: 1- [...] os problemas de in-
tegração de populações atrasadas à economia e à sociedade
que se desenvolve [...][; ] 2- o arcaísmo ou desorganização
das estruturas agrárias, dos sistema e das técnicas agrícolas
e das condições de trabalho na agricultura [...][; ] 3- as ins-
tituições e os valores sociais e as atitudes e motivações que
podem impedir ou dificultar o desenvolvimento e a mudança
social [...][; ] 4- o estudo da educação e a instrução pública e
suas relações com o desenvolvimento. Esta foi uma análise
séria e científica do desenvolvimento em seus múltiplos as-
pectos, encarando-o não apenas como uma operação técni-
ca, mas como uma profunda e complexa experiência humana
historicamente vivida.

Ademais, em setembro de 1959, um mês antes da realização do


Seminário Internacional, presidido por Costa Pinto, realizou-se, no
Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, sob a pre-
sidência de Fernando de Azevedo, um Simpósio sobre Problemas
Educacionais Brasileiros. Ele teve como presidente de honra Anísio
Teixeira, então Diretor do Inep, e como coordenador Milton da Silva
Rodrigues, catedrático de Estatística da Universidade de São Paulo
202 (USP). Alguns trabalhos são discutidos e publicados nos registros
dos dois eventos científicos e divulgados entre os demais Centros
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

(CENTRO LATINO-AMERICANO DE PESQUISAS EM CIÊNCIAS SO-


CIAIS, 1960; CENTRO REGIONAL DE PESQUISAS EDUCACIONAIS
PROF. QUEIROZ FILHO, 1967).

Recife nas décadas de 1930 a 1960: atores,


instituições e processos

Os trabalhos de Paulo Freire revelam vestígios dessa linhagem


de discussões sobre a formação de cientistas sociais, os problemas
e as mudanças sociais, a abordagem crítica a partir da condição pe-
riférica e peculiar do Recife, do Brasil e da América Latina e a rele-
vância das pesquisas e das políticas socioeducacionais. Em 1947,
graduou-se Bacharel em Direito na então Faculdade de Direito da
Universidade do Recife, hoje Federal de Pernambuco. Lá, teve con-
tato com Alfredo Freyre, juiz e catedrático de Economia Política na
Faculdade e pai de Gilberto Freyre.
Em 1958, participou do Seminário Regional de Pernambuco, pre-
paratório estadual do II Congresso Nacional de Educação de Adultos
realizado, no mesmo ano, no Rio de Janeiro, Paulo fez um relatório
sobre o tema da Educação de adultos e as populações marginais: o
problema dos mocambos. Nele, sintetiza:

A educação é um processo contínuo e ininterrupto, que “vai


do berço ao túmulo” [...] [que se desenvolve] normalmente
por etapas a serem gradativamente vencidas. Cada uma de-
las confere ao ser em formação atitudes, hábitos e conheci-
mentos capazes de lhe permitirem um aperfeiçoamento in-
dividual, a par de um ajustamento satisfatório à comunidade
em que vive. [...] Quando tal processo não se desenvolve nor-
malmente, constatamos na sociedade a existência de cama-
das da população cuja educação não foi atendida no tempo
devido. Aí se situam os adultos analfabetos, que constituem
a maior parte dos habitantes de países subdesenvolvidos.
[...] assim, a preocupação principal [...] volta-se para os anal-
fabetos ou semianalfabetos [...], um aspecto angustiante que 203
oferece o problema, e que está a exigir uma atenção muito

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


especial dos poderes públicos. (FREIRE, 1958, p. 3-5)

Em 1959, Paulo concorreu ao provimento da Cadeira de His-


tória e Filosofia de Educação na Escola de Belas-Artes de Recife e
produziu seu primeiro texto sistematizado: a tese Educação e atua-
lidade brasileira. Nela, defende que,

em realidade, não nos será possível nenhum equacionamen-


to de nossos problemas, com vistas a soluções imediatas ou
a longo prazo sem nos pormos em relação de organicidade
com a nossa contextura histórico-cultural. Relação de orga-
nicidade que nos ponha emersos na nossa realidade e de que
enxerguemos crítica e conscientemente. Somente na medida
em que nos fizermos íntimos de nossos problemas, sobretu-
do de suas causas e de seus efeitos, nem sempre iguais aos de
outros espaços e outros tempos, ao contrário, quase sempre
diferentes, podemos apresentar soluções para eles. O pro-
blema educacional brasileiro, de importância indubitavel-
mente grande, é dever que precisa ser visto organicamente
do ponto de vista de nossa atualidade. No jogo de suas
forças, algumas ou muitas dentre elas, em antinomia uma
com as outras. [...] Centralismo, verbalismo, antidialogação,
autoritarismo, assistencialismo são manifestações de nossa
inexperiência democrática conformada em atitudes e dispo-
sições mentais constituindo, tudo isso, um dos dados de nos-
sa atualidade. [...] O espírito de análise e de crítica, a paixão
da pesquisa, o debate, o diálogo, de que tanto carecemos na
nossa formação histórico-cultural, nos teriam dado posturas
diferentes. (FREIRE, 1959, p. 7-12)

Naquela época, ele já apontava que as mudanças sociais não


seguiam um movimento progressivo e seguro e que a passagem
da ordem tradicional para a democrática demandava induções.
Cita

gerações de educadores e sociólogos brasileiros que têm


seus trabalhos publicados na Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos [...] e que têm insistido na perspectiva da educa-
204
ção voltada para o desenvolvimento. Anisio Teixeira, Fernan-
do de Azevedo, Lourenço Filho, Carneiro Leão, entre os mais
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

velhos. Roberto Moreira, Artur Rios, Lauro de Oliveira Lima,


Paulo de Almeida Campos, Florestan Fernandes, Guerreiro
Ramos, entre os mais jovens. (FREIRE, 1967, p. 95)

Paulo reclama a participação do povo, a transformação da es-


cola e a tomada de consciência sobre as desigualdades sociais.
Frisa:

A escola não deve perder-se no fazer estéril, bacharelesco,


oco e vazio. É o diálogo democrático que possibilitará em nós
a criação de hábitos de servir ao bem comum, ao sentimen-
to de dever cívico, o sentimento e a consciência coletivos,
a preocupação dominante do interesse público. (FREIRE,
1959, p. 53)

Ele já identificava que

cada vez mais nos convencemos de que o homem brasileiro


tem de ganhar a consciência de sua responsabilidade social
e política [...]. Participando, atuando e ganhando ingerência
nos destinos da escola de seu filho, de sua empresa, através
de agremiações, clubes, conselhos, da vida do bairro, de sua
comunidade rural [...] pela participação ativa [...]. Assim,
iria aprendendo a democracia mais rapidamente. (FREIRE,
1959, p. 13)

As perguntas que impulsionam a obra de Paulo são: como inserir


as grandes massas na atualidade brasileira? Como despertar o povo
brasileiro para a consciência e responsabilidade social e política?
Como aprender mais rapidamente o exercício da democracia?
Em 1960, Paulo desenvolveu uma pesquisa intitulada Relações
entre a escola e a comunidade, financiada pelo Centro Regional de
Pesquisas Educacionais de Recife, que era dirigido por Gilberto
Freyre. Nas fichas documentais do Centro, Paulo comparece como
assessor do reitor da Universidade do Recife (FERREIRA, 2006, p.
123). Sua pesquisa aponta processos inacabados de transição e 205
conflitos de interesses entre os padrões tradicionais e os modernos,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


que dificultavam “o desenvolvimento da economia de mercado e o
surto de industrialização como processos que promoveriam formas
plasticamente democráticas.” (FREIRE, 1959, p.10).
Meucci (2015), analisando o papel de Gilberto Freyre à frente
do Centro, identifica a malha de parcerias que ele desenvolvia com
a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o
Movimento de Cultura Popular, a Unesco, a OEA, a Secretaria Muni-
cipal de Educação, a Universidade do Recife, a Aliança para o Pro-
gresso, visando ao financiamento das pesquisas e das ações realiza-
das no Centro e na Fundação Joaquim Nabuco.
Imagem 1: Centro Regional de Pesquisas Educacionais do
Recife, Pernambuco

206
Fonte: Fundaj (2015).
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Paulo Freire gravita por várias dessas instituições, e sua obra


apresenta encaminhamentos que negociam conflitos políticos, in-
serções econômicas e competições sociais na ordem capitalista
que se manifestam nas disputas por um modelo de educação. As
pesquisas realizadas nos Centros Regionais destacavam a impor-
tância da descentralização política, didática e financeira do sistema
escolar, tendo em vista atacar as desigualdades de região e classe.
Nesses trabalhos iniciais, Paulo já operava com o conceito de “trân-
sito” de uma sociedade fechada para uma que se abria e exigia do
povo a passagem da consciência mágica para a consciência crítica,
tendo em vista a construção de uma sociedade menos excludente e
violenta (FREIRE, 1988).
Os textos de Paulo indicam certo empenho e certa desconfiança
acerca dos destinos propostos pelos grupos hegemônicos na con-
dução do processo de urbanização, industrialização, secularização
da cultura, organização do Estado, regulação do trabalho e plane-
jamento da instrução pública. Ele denuncia a pobreza, os mocam-
bos, a fome, o desemprego, o analfabetismo, a desigualdade regio-
nal, a centralização do poder que perdurava no Brasil moderno e
nos países dependentes e subdesenvolvidos. Talvez, as categorias
antagônicas, as análises dicotômicas e as orientações opostas que
estruturam a obra de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala e
Sobrados e Mocambos possam estar contidas no pensamento frei-
reano, pois apontam os limites de uma modernidade que se faz sem
romper com os moldes conservadores (RICUPERO, 2015). Paulo in-
corpora a visão dos Dois Brasis.
Paulo seguiu pelo mundo contaminado por um pensar científico
que tinha como seara a realidade desigual que operava de modo a
perdurar os problemas sociais herdados da tradição colonialista e
impediam a consolidação da ordem democrática. Vislumbrava na
educação processos de inclusão do povo brasileiro visando ao bem-
-estar coletivo e à ampliação do escopo de proteção da sociedade
para além das elites privilegiadas (MAZZA, 2019).
207
Em 1960, foi convidado para trabalhar com o prefeito de Recife,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Miguel Arraes, e o secretário de Educação, Germano Coelho, no Mo-
vimento de Cultura Popular do Recife e depois do Maranhão e do
Rio Grande do Norte. Paulo entendeu que o trabalho educativo de-
veria girar em torno das condições de vida local da população, pois
a aquisição da capacidade de leitura do mundo antecedia o domínio
das técnicas de leitura e escrita (FREIRE, 1982).
Beisiegel (1996, p. 182) nos conta:

Meu interesse pelo Método Paulo Freire de alfabetização de


adultos data de 1963 [...][, ] quando, por força de atribuições
docentes, no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de
São Paulo, alguns jovens pernambucanos, ex-alunos de Paulo
e meus orientandos no Seminário de Treinamento de Pes-
soal em Pesquisas Educacionais, selecionaram como objeto
de “pesquisa de treinamento” a experiência piloto de alfabe-
tização de adultos que seria iniciada em Vila Helena Maria,
no município de Osasco.
Ele sugere que o método de trabalho de Paulo esteve envolvido
em situações nas quais os motivos de natureza política predomina-
vam sobre as preocupações educacionais. Argumenta:

A educação, para o educador, nunca fora entendida como po-


liticamente neutra. Já em seus primeiros trabalhos, optara
pela defesa dos interesses da população mais humilde. [...] as
características de seu método de alfabetização acentuavam
a identificação entre política e educação [...][, ] explicitavam
os conteúdos políticos inerentes ao processo educativo. A
discussão das condições de vida de adultos analfabetos cor-
respondia à discussão da condição de vida dos contingentes
menos favorecidos da população. Conduzida por segmen-
tos de diversas correntes das esquerdas, essa discussão das
condições de vida das populações subalternas, naquela con-
juntura político-ideológica, inevitavelmente seria praticada
como processo de formação da consciência de classe. (BEI-
SIEGEL, 2002, p. 896-897)
208
Assim, a educação popular, nessa chave, era compreendida como
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

um fragmento da mudança em curso na sociedade brasileira, pro-


cesso esse que avançava em ritmos e rumos desiguais e que recla-
mava uma intervenção criadora nas condições de existência (BEI-
SIEGEL, 2002). Paulo entendia que a participação política do povo
se fortalecia quando os atos educativos apontavam para processos
de humanização e reivindicavam um lugar para todos/as.
Em 1964, Paulo foi acometido pelo golpe civil-militar e teve que
viver o exílio. Passou pela Bolívia, pelo Chile, pelos Estados Unidos,
pela Suíça, e trabalhou nos países recém-libertos da colonização
portuguesa em África (FREIRE; FAUNDEZ, 1985).

Paulo Freire: linhagens e constelações

No exílio, que durou cerca de duas décadas, Paulo ampliou seus


referenciais relacionais, institucionais, teóricos e metodológicos,
mas persistiu vinculado às temáticas que o forjaram, ou seja, ao
pensar a realidade dos países que se inserem de modo desigual e
dependente na atualidade capitalista e ao inquirir o papel que a
educação popular poderia desempenhar na conscientização e no
alargamento da compreensão da realidade e da intervenção nesta
(MAZZA; SPIGOLON, 2018). Era uma reflexividade voltada à educa-
ção do oprimido, tendo por finalidade a ação cultural para a liber-
dade (FREIRE, 1967).
Do ano 1964 ao início de 1969, exilado no Chile e trabalhando
com o setor agrário, a organização camponesa e a alfabetização de
adultos, Paulo amadureceu suas reflexões, sistematizou as expe-
riências vividas no Brasil e produziu, em 1968, o manuscrito escrito
em português da Pedagogia do Oprimido. Sua primeira publicação
ocorreu em Nova Iorque enquanto trabalhava em Harvard, entre
1969 e 1970. Nessa época, Darcy Ribeiro, que, na década de 1960
trabalhou com Anísio Teixeira no CBPE e na criação da Universida-
de de Brasília (UnB), visitou Paulo e revelou: “Morri de inveja quan-
do vi numa livraria de Nova York um montão de livros do Paulo
209
ao lado de um montinho do meu Processo civilizatório.” (RIBEIRO,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


1996, p. 373).
Brayner aponta que a geração de estudantes universitários fran-
ceses saída de maio de 1968, ficara mais encantada com a leitura
da Pedagogia do Oprimido do que com Marcuse, tido como guru
do movimento e que ninguém lera. O motivo? O encanto que Paulo
provocara com a ideia de ruptura das relações assimétricas entre
professor e aluno, o que representava um tabu nas universidades
europeias (BRAYNER, 2021a, p. 131).
Paulo dedica seu livro “aos esfarrapados do mundo e aos que
neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas,
sobretudo, com eles lutam.” (FREIRE, 1988, p. 23). E dialoga com

os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo


atual, que necessariamente revelam peculiaridades dos es-
paços onde se dão, e manifestam, em sua profundidade, esta
preocupação em torno da humanidade e das humanidades,
como seres no mundo e com o mundo. Em torno do que e de
como estão sendo.
Ao questionarem a civilização do consumo; ao denunciarem
as burocracias de todos os matizes; ao exigirem a transfor-
mação das universidades, ao rechaçarem velhas ordens e
instituições estabelecidas, busquem a afirmação de sujeitos
como seres de decisão. (FREIRE, 1988, p. 29)

E finaliza o livro dizendo: “Se nada ficar dessas páginas, algo,


pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo.
Nossa fé na humanidade e na criação de um mundo em que seja
menos difícil amar.” (FREIRE, 1988, p. 184). Paulo entendia a edu-
cação como uma ação política com os oprimidos e um diálogo
de amor profundo ao mundo e às pessoas (FREIRE, 1967, p. 72).
Essa dimensão afetiva nos escritos de Paulo instiga a indignação
contra as injustiças e resiste à frieza do distanciamento e da atitu-
de calculista e insensível. É importante retomar essa perspectiva
crítica e amorosa em um momento em que contamos com mais de
210 4.800.000 de mortes pelo vírus da Covid-19 no planeta, sendo mais
de 700 mil nos Estados Unidos e quase 600 mil no Brasil (JOHN
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

HOPKINS, 06/10/2021).
Adorno (2000) sugere que o desafio número um para a educação
nas sociedades contemporâneas é que Auschwitz não se repita! Ele
indaga perplexo sobre os motivos que levaram uma sociedade alta-
mente avançada, desenvolvida, moderna e escolarizada, como a ale-
mã, a fingir que não assistia à morte de 6 milhões de pessoas em cam-
pos de concentração em situações bárbaras, atrozes e desumanas.
O autor sugere que a frieza é expressão do mal-estar da cultura e se
expressa na atitude passiva diante do sofrimento alheio, na atomiza-
ção da sociedade que coloca os indivíduos em posições de choques,
disputas e empurrões, na produção isolada e solitária que valoriza
as escolhas individuais, na primazia dos valores da vida privada so-
bre os interesses públicos e coletivos, na sociedade do consumo que
enfeitiça e coisifica processos, desejos e pessoas e no sentimento de
indiferença diante do que acontece com o semelhante.
A frieza é um projeto cognitivo, moral, ético e político em curso
nas sociedades burguesas. Ela educa as mentes, os corpos e os cora-
ções e o pensamento educacional de Paulo, desde os seus primeiros
escritos, permaneceu combatendo as injustiças sociais e dizendo
claramente: “mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE, 2000, p.98).

Imagem 2: Caricatura de Paulo Freire

211

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Fonte: Oliveira e Dominique (1996, p. 582).

Por que faço este contraponto entre Paulo e Adorno? Entendo


que as Pedagogias do Oprimido, da Pergunta, da Autonomia e da In-
dignação podem servir como antídotos contra o projeto de frieza
que promove o mal-estar da cultura e desagua na educação. Elas
podem nos ajudar a suspender e desarmar a barbárie que ronda o
processo civilizador.
Finalizo com estas palavras de Paulo na Pedagogia da Indignação:

É certo que mulheres e homens podem mudar o mundo para


melhor, para fazê-lo menos injusto, mas a partir da realida-
de concreta a que chegam em sua geração. E não fundada(o)
s em devaneios, falsos sonhos sem raízes, puras ilusões. O
que não é, porém, possível é sequer pensar em transformar
o mundo sem sonho, utopia ou projeto [...]. A transformação
do mundo necessita tanto do sonho quanto [...] da lealdade
de quem sonha a partir das condições históricas materiais.
Os sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização
não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica avanços,
recuos, marchas às vezes demoradas [...]. A transformação
do mundo a que o sonho aspira é um ato político e seria uma
ingenuidade não reconhecer que os sonhos instigam pro-
jetos de contra sonhos [...]. O movimento histórico revela
marcas antigas que envolvem compreensões de realidade,
interesses de grupos, de classes, preconceitos, gestação de
ideologias que se perpetuam em contradição com aspectos
que clamam por transformação. [...] Não há atualidade que
não seja palco de confrontações entre forças que reagem ao
avanço e forças que por ele se batem. É neste sentido que
se acham contraditoriamente presentes em nossa atualida-
de fortes marcas do nosso passado colonial e escravocrata,
obstaculizando avanços da modernidade. São marcas de um
212
passado que, incapaz de perdurar por muito tempo, insiste
em prolongar sua presença em prejuízo da mudança.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

A luta ideológica, política, pedagógica e ética se dá para


quem se posiciona numa opção progressista. Se passa tanto
em casa, nas relações entre pais, mães, filhos, filhas, quanto
na escola ou nas relações de trabalho. O fundamental é tes-
temunhar [...] o respeito à dignidade do outro, ao seu direito
de ser. Por maior que seja a força condicionante da economia
sobre o nosso comportamento individual e social, não posso
aceitar minha passividade perante ela. Se aceitamos que a
economia [...] exerce sobre nós um poder irrecorrível[, ] não
temos outro caminho senão renunciar nossa capacidade de
pensar, conjecturar, escolher, decidir, projetar e sonhar [...]. a
política perde o sentido de luta pela concretização de sonhos
diferentes. Esgota-se a eticidade de nossa presença no mun-
do em defesa do bem-estar da humanidade e da proteção da
sociedade. (FREIRE, 2000, p. 53-55)

Esse é um pensar educacional que não cedeu ao ideário anti-hu-


manista contemporâneo de gestação da ética do prazer, do indivi-
dualismo narcísico, da meritocracia da juventude, da felicidade pes-
soal; atributos que foram rapidamente apropriados pela lógica do
mercado, incluindo o educacional, por meio do estimulo incontrolá-
vel ao consumo, da liberdade e das escolhas individuais (BRAYNER,
2021a, p. 132). Ele pode muito nos ajudar a resistir em tempos de
recuos e marchas demoradas rumo a uma sociedade mais igualitá-
ria e menos violenta.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. 2. ed. São


Paulo: Paz e Terra, 2000.

BEISIEGEL, Celso de R. O Método Paulo Freire. In: Paulo Frei-


re. Uma biobliografia. Organização: Moacir Gadotti. São Paulo:
Cortez: Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: Unesco, 1996. p.
182-184.
213

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


BEISIEGEL, Celso de R. Verbete Paulo Réglus Neves Freire.
In: Dicionário de Educadores no Brasil. Organização: Maria de
Lourdes de A. Favero e Jader de M. Brito. 2. ed. aum. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ/MEC-INEP-COMPED, 2002. p. 893-
899.

CENTRO LATINO AMERICANO DE PESQUISAS EM CIÊNCIAS


SOCIAIS. Resistências à mudança: fatores que impedem ou
dificultam o desenvolvimento. Anais do Seminário Internacio-
nal. Rio de Janeiro: Centro Latino Americano de Pesquisas em
Ciências Sociais, 1960.

CENTRO REGIONAL DE PESQUISAS EDUCACIONASI PROF.


QUEIROZ FILHO. Técnicas e problemas de mudança cultural
provocada em face da organização e funcionamento do sistema
educacional brasileiro. São Paulo: MEC/INEP, 1967. (Estudos
e Documentos, v. 5).
CEPÊDA, Vera A.; MAZUCATO, Thiago. Ciências, intelectuais e
democracia no centro e na periferia: o diálogo teórico entre
Karl Mannheim e Florestan Fernandes. In: ______. (org.). Flo-
restan Fernandes 20 anos depois: um exercício de memória.
São Carlos: Ideias, Intelectuais e Instituições: UFSCAR, 2015,
p. 65- 86.

COSTA PINTO, Luís de A.; CARNEIRO, Edison. As ciências so-


ciais no Brasil. Estudo realizado para a CAPES. Rio de Janeiro:
CAPES, 1955. (Estudos e Ensaios, v. 6).

COSTA PINTO, Luís de A. Introdução. In: CENTRO LATINO


AMERICANO DE PESQUISAS EM CIÊNCIAS SOCIAIS. Anais do
Seminário Internacional. Resistências à mudança: fatores que
impedem ou dificultam o desenvolvimento. Rio de Janeiro:
214 Centro Latino Americano de Pesquisas em Ciências Sociais,
1960. p. 5-12.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

CUNHA, Luiz A. Educação e desenvolvimento social no Brasil.


11. ed. Recife: Francisco Alves, 1989.

CUNHA, Luiz A.; GOÉS, Moacyr de. O golpe na educação. 6. ed.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo:


Difusão Europeia do Livro, 1960.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. En-


saios de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores, 1975.
FERREIRA, Marcia dos S. Centros de Pesquisas do INEP: pes-
quisas e políticas educacionais entre as décadas de 1950 e
1970. 2006. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, 2006.

FREIRE, Paulo. Relatório final do Seminário Regional de Edu-


cação de Adultos. Recife: Governo de Pernambuco, 1958.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 1959. Tese


(Concurso para a Cadeira de História e Filosofia de Educação)
‒ Escola de Belas Artes, Recife, 1959.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Ja-


neiro: Paz e Terra, 1967.
215
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


e Terra, 1975.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1988.

FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com


a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários


à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Educação: preparação para o século XXI. In:
Caderno Pedagógico. Publicação comemorativa dos 50 anos da
APP- Sindicato. A educação no século XXI. Diálogo inédito entre
Dermeval Saviani, Adriano Nogueira e Paulo Freire. Organiza-
ção: APP Sindicato. Curitiba: APP Sindicato, 1997. p. 44-62.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e


outros escritos. 5. imp. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da per-


gunta. São Paulo: Paz e Terra, 1985.

FREIRE, Paulo; FREIRE, Ana Ma. de A. (org.). Á sombra desta


mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
216
FREIRE, Paulo; OLIVEIRA, Miguel e Rosiska de D.; CECCON,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Claudius. Vivendo e aprendendo: experiências do IDAC em


educação popular. São Paulo: Livraria Brasiliense, 1980.

FUNDAJ. 2015. 1 fotografia. Disponível em: http://myriam-


brindeiro.com.br/a-pesquisadora/. Acesso em: 13 jul. 2021.

GADOTTI, Moacir. A voz do biografo brasileiro: a prática à


altura do sonho. In: ______. Paulo Freire. Uma biobibliografia.
São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire: Brasília, DF: Unesco,
1996. p. 69-115.

GANDINI, Raquel P. C. Anísio Teixeira e os limites da pedago-


gia liberal. In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES, Ricardo; FER-
RANTE, Vera B. Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1986. p.77- 100.
GOUVEIA, Aparecida J. As pesquisas educacionais no Brasil.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, p. 1-48, jul. 1971.

HADDAD, Sergio. O educador: um perfil de Paulo Freire. SP: Ed-


itora Todavia, 2019.

JOHN HOPKINS. COVID-19 Dashboard. [S. l.], 2021. Disponí-


vel em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em:
06/10/2021.

LAMBERT, Jaques. Os Dois Brasis. Rio de Janeiro: MEC/INEP/


CBPE, 1959.

LIMA, Licínio C. Organização escolar e democracia radical:


Paulo Freire e a governação democrática da escola pública. 217
São Paulo: Cortez: IPF, 2000.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


MARIANI, Maria C. Educação e Ciências Sociais: o INEP. In:
Universidades e instituições científicas no Rio de Janeiro. Simon
Schwartzman. Brasília, DF: CNPq, 1982.

MAZZA, Débora. Paulo Freire e o pensamento educacional


brasileiro. In: 20º. CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLO-
GIA, 2021, Belém. Anais [...]. Porto Alegre: SBS, 2021a. p.
1-20. Disponível em: https://www.sbs2021.sbsociologia.
com.br/atividade/view?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7c-
zozNToiYToxOntzOjEyOiJJRF9BVElWSURBREUiO3M6M-
j o i M j I i O 3 0 i O 3 M 6 M To i a C I 7 c z o z M j o i M m Z l N W J k M -
TE2M2M3N2NlODBiZDYyMDMwYzk0YTkzYTkiO30%-
3D&ID_ATIVIDADE=22. Acesso em: jul. 2021.
MAZZA, Débora. O contributo de Paulo Freire para a educação
e o contraponto do Projeto Escola sem Partido. Jornal Aduni-
camp, Campinas, p. 22-24, nov. 2019. Disponível em: http://
adunicamp.org.br/wp-content/uploads/2019/11/2019_11_
dossie_ADunicamp_projeto_neoliberal_final_mobile.pdf.
Acesso em: 13 jul 2021.

MAZZA, Débora; SPIGOLON, Nima I. Educação, exílio e revo-


lução: o camarada Paulo Freire. Revista Brasileira de Pesqui-
sa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 3, n. 7, p. 203-220, jan./abr.
2018. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.
php/rbpab/article/view/4462/3154. Acesso em: 13 jul 2021.

MEUCCI, Simone. Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil: da


sistematização à constituição do campo científico. Tese de
218 doutorado. Campinas: Programa de Pós-Graduação em Socio-
logia da Unicamp, 2006.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

MEUCCI, Simone. Gilberto Freyre no comando do Centro Re-


gional de Pesquisas Educacionais do Recife: Educação em
Debate (1957 a 1964). Revista Sociologia & Antropologia,
Rio de Janeiro, v. 5, p. 129 -155, abr. 2015. Disponível em:
http://www.sociologiaeantropologia.com.br/wp-content/
uploads/2015/05/v5n01_06.pdf. Acesso em: 17 out 2021.

NOGUEIRA, Oracy. Pesquisa social. Introdução à suas técnicas.


São Paulo: Editora Nacional, 1975.

OLIVEIRA, Rosiska D.; DOMINIQUE, Pierre. Illich e Freire. A


opressão da pedagogia e a pedagogia dos oprimidos. In: Pau-
lo Freire. Uma biobliografia. Organização: Moacir Gadotti. São
Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire; Brasília, DF: Unesco,
1996. p. 580- 582.
PAOLI, Niuvenius J. As relações entre Ciências Sociais e Edu-
cação nos anos 1950/60 a partir das histórias e produções
intelectuais de quatro personagens: Josildeth Gomes Consor-
te, Aparecida Joly Gouveia, Juarez Brandao Lopes e Oracy No-
gueira. 1995. Tese (Doutorado em Educação) ― Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.

PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 11. ed. São


Paulo: Editora Brasiliense, 1969.

PREISWERK, Matías; FÉRNANDEZ, Benito; GONZÀLEZ,


Eduardo; MAZZA, Débora; TORRES, Rosa M.; FREIRE, Paulo;
FAÚNDEZ, Antonio (org.). Fe y Pueblo. Revista ecuménica de
reflexión teológica, La Paz, ano IV, n. 16-17, p. 1-64, oct. 1987.

219
RIBEIRO, Darcy. Morri de inveja. GADOTTI, Moacir (org.). Pau-
lo Freire. Uma biobliografia. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Freire; Brasília, DF: UNESCO, 1996. p. 373.

RICUPERO, Bernardo. Florestan Fernandes e as interpre-


tações do Brasil. In: Florestan Fernandes 20 anos depois: um
exercício de memória. Organização: Vera A. Cepêda e Thiago
Mazucato. São Carlos: Ideias, Intelectuais e Instituições: UFS-
CAR, 2015. p. 47- 64.

SAVIANI, Dermeval. A Pedagogia Histórico-Crítica. Contextua-


lização histórica e teórica. In: APP SINDICATO. Caderno Peda-
gógico. Publicação comemorativa dos 50 anos da APP- Sindica-
to. A educação no século XXI. Diálogo inédito entre Dermeval
Saviani, Adriano Nogueira e Paulo Freire. Curitiba: APP-Sindi-
cato, 1997. p. 7-22.

SAVIANI, Dermeval. Educação e questões da atualidade. São


Paulo: Livros do Tatu: Cortez, 1991.
TOLEDO, Caio N. de. Teoria e ideologia na perspectiva do ISEB.
In: MORAES, Reginaldo; ANTUNES, Ricardo; FERRANTE, Vera
B. Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 224-
256.

VASCONCELOS, Joana S. Paulo Freire e a Guerra Fria: notas


de leitura. Mouro. Revista Marxista, São Paulo, ano 11, n. 14,
p. 1-10, jan. 2020. Disponível em: http://www.mouro.com.
br/Mouro%2014/015%20-%20NOTAS%20DE%20LEITU-
RA%20-%20PauloFreire%20e%20a%20GuerraFria_Joana-
Salem.pdf. Acesso em: 15 jul 2021.

VASCONCELOS, Joana S. Jacques Chonchol em Cuba. Mouro.


Revista Marxista, São Paulo, ano 4, n. 7, p. 1-18, set. 2012.
Disponível em: http://www.mouro.com.br/Jacques%20Con-
220 chol%20em%20Cuba_JoanaVasconcelos.pdf. Acesso em: 05
jul 2021.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

VILLAS BOAS, Glaucia K. A vocação das Ciências Sociais


(1945/1964). Um estudo de sua produção em livro. 1992. Tese
(Doutorado em Sociologia) ― Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1992.

XAVIER, Libânia N. O Brasil como laboratório. Educação e


Ciências Sociais no Projeto dos Centros Brasileiros de Pesquisas
Educacionais CBPE/INEP/MEC (1950-1960). Bragança Paulis-
ta: IFAN/CDAPH/EDUSP, 1999.

RESUMO
O trabalho analisa a contribuição de Paulo Freire relacionan-
do-a com o cenário nacional e internacional das décadas de
1930 a 1960 que vincula, de modo particular, os processos
de mudanças sociais no Brasil com a implementação de um
sistema público de educação para todo/as. Autores apontam
que estas décadas promoveram progresso econômico que re-
clamava desenvolvimento social contando com a colaboração
de instituições, processos e atores que serviram como media-
dores das mudanças em curso. No modelo produtivo urbano
industrial, a consolidação do Estado moderno deveria alavan-
car crescimento econômico, participação na economia global,
desenvolvimento nacional e integração de grupos sociais até
então excluídos da ordem patrimonialista latifundiária. Para
tanto, a elaboração de um projeto de instrução pública popu-
lar comparece como um dos fatores de equalização do avanço
econômico e social que se processava em diferentes ritmos
nas diversas regiões do país. Ancorada em fontes documen-
tais, o artigo associa a produção de Paulo com o cenário de
uma sociedade em transição que combinou de modo peculiar
padrões tradicionais e modernos promovendo interpreta-
ções do Brasil que tematizaram a organização da nação. Nesta
perspectiva, a obra do autor apresenta encaminhamentos que 221
negociam conflitos políticos, inserções econômicas e compe-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


tições sociais na ordem capitalista e se manifestam nas dispu-
tas por um modelo de educação.
Palavras chaves: Paulo Freire, Educação, Pensamento Social
Brasileiro.

ABSTRACT
The work analyzes Paulo Freire’s contribution, relating it to
the national and international scenario from the 1930s to
the 1960s, which links, in a particular way, the processes of
social change in Brazil with the implementation of a public
education system for all.. Authors point out that these
decades promoted economic progress that called for social
development with the collaboration of institutions, processes
and actors that served as mediators of ongoing changes. In
the industrial urban productive model, the consolidation
of the modern State should leverage economic growth,
participation in the global economy, national development
and integration of social groups hitherto excluded from the
landlord patrimonialist order. For that, the elaboration of
a popular public education project appears as one of the
equalization factors of the economic and social advance that
was processed at different paces in the different regions of
the country. Anchored in documentary sources, the article
associates Paulo’s production with the scenario of a society in
transition that peculiarly combined traditional and modern
patterns, promoting interpretations of Brazil that thematized
the organization of the nation. In this perspective, the
author’s work presents paths that negotiate political conflicts,
economic insertions and social competitions in the capitalist
order and are manifested in disputes for a model of education.
Keywords: Paulo Freire, Education, Brazilian Social Thought.

222 SOBRE A AUTORA


Possui pós-doutorado em Sociologia pelo Laboratoire Genre,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Travail e Mobilité (GTM), 2011 e pelo Centre de Recherche


sur le Brésil Contemporain (CRBC), Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales (EHESS), 2003, ambos em Paris- Fran-
ça. Realizou missão de trabalho em mobilidade internacional
na Universidade Jean Piaget, em Praia, Cabo Verde- África
(2015). Possui Doutorado em Ciências Sociais pelo Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), é docente do Depar-
tamento de Ciências Sociais na Educação (DECISE), participa
do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Linha Edu-
cação e Ciências Sociais e do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Políticas, Educação e Sociedade (GPPES) da Faculdade de
Educação, todos na UNICAMP. É pesquisadora PQ CNPq e tem
experiência na área de Sociologia e Educação.
PAULO FREIRE, PEDAGOGO
Y ARTISTA SOCIAL

Ramón Flecha García1

Introducción

El público congregado en la sede del Parlamento Europeo se sor-


prendió e ilusionó con las palabras de una niña de 10 años: cuando
leímos La Odisea vimos la guerra de Troya desde el punto de vista
de los griegos, ahora que estamos leyendo La Eneida la vemos des-
223
de el punto de vista de los troyanos; esto nos ha ayudado a enten-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


der mejor las guerras. Nuria hablaba así de las tertulias literarias
dialógicas que hacían en su escuela del nivel socioeconómico más
bajo de su país, que tenía como una de sus principales referencias
a Paulo Freire y desarrollaba esa actividad cultural de éxito. Más
de 10000 escuelas de diferentes partes del mundo están recreando
en sus contextos esa misma actividad logrando que su alumnado
disfrute de obras literarias como Las Mil y una Noches, Las Olas de
Virginia Woolf, El Cartero del Rey de Tagore, Poemas de Safo, Cien
Años de Soledad de Vargas Llosa, El Quijote de Cervantes o El Ale-
ph de Borges. El alumnado puede seguir así la estela de la palabra
boniteza que contiene la raíz común a los vocablos latinos bonus
y bellus, bueno y bello; esos diálogos contienen conjuntamente la
bondad y la belleza a las que tienen derecho todas las niñas y niños
del mundo, sin ningún tipo de discriminación. En Pedagogia da To-
lerânça leemos: “Não é possível moralidade sem boniteza” (FREIRE,
2005, p. 9) y también “Quando você rompe com a boniteza, cedo ou
tarde você cai na imoralidade” (FREIRE, 2005, p. 260).
1
Catedrático de sociología por la Universidad de Barcelona y Doctor Honoris Causa por
la Universidad Vest Timisoara. E-mail: ramon.flecha@ub.edu. Orcid: https://orcid.org/
0000-0001-7230-516X
Impacto social de la teoría dialógica de Freire

En las bellas palabras que tienen la suerte de leer estas personas


de tan diversas edades y condiciones, surge el valor de la paz, de la
convivencia como solución a la guerra y a todo tipo de violencia. La
teoría dialógica de Freire (2018) se publicó ya en 1968, trece años
antes de la teoría de la acción comunicativa de Habermas. Actual-
mente, la investigación de más excelencia en todas las ciencias está
experimentando un giro dialógico tan revolucionario y mucho más
participativo de lo que un día significó el giro copernicano. Como
entonces, el oscurantismo trata de esconder y atacar las evidencias
científicas internacionales, pero las voces más diversas de la ciu-
dadanía exigen el cumplimiento del artículo 27 de la Declaración
Universal de los Derechos Humanos que incluye el derecho de toda
persona a participar del progreso científico y de los beneficios que
de él se deriven.
224 Programas de investigación científica del máximo nivel incluyen
ya incluso como requisitos la co-creación y el impacto social. La co-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

-creación es la creación conjunta de conocimientos entre las perso-


nas de ciencia y la ciudadanía, sin ningún tipo de discriminación. El
impacto social supone poner la ciencia al servicio de las personas,
al contrario que el cientificismo que intenta usar a las personas al
servicio de una supuesta ciencia. En 1988, en su discurso de acep-
tación del Doctorado Honoris Causa por la Universidad de Barcelo-
na, ante las jerarquías feudales académicas de aquella época, Paulo
Freire dijo que más que de la academia había aprendido de las tra-
bajadoras y trabajadores del campo y de las ciudades de diferentes
partes del mundo. Ese era un criterio muy claro de Paulo desde que
elaboró en los años sesenta su teoría de la acción dialógica y hoy
vemos cómo se va generalizando a todas las ciencias.
Sus aportaciones dialógicas primero se implementaron en escue-
las infantiles, primarias y secundarias, dieron sus primeros pasos en
la educación popular, en la educación de personas adultas, y lo mis-
mo ocurrió con las tertulias literarias dialógicas, las primeras fueron
también creadas en la educación popular. Cuando se publicó esa teo-
ría dialógica en La pedagogía del oprimido, Goyo era estudiante de
educación secundaria y comenzó a hacer voluntariado en un barrio
de chabolas de Bilbao, alfabetizando con ideas que llegaban clandes-
tinamente desde Brasil. Comenzó, al mismo tiempo, una década de
intensa dedicación al movimiento clandestino por la democracia.
Una vez finalizada la dictadura franquista y elaborada la constitu-
ción, decidió iniciar una profunda transformación cultural y social,
conjuntamente con las personas que más la necesitaban. 
En 1978, Goyo decidió ir a vivir y a trabajar en el barrio que en
aquellos momentos era el más excluido de Barcelona. En otros bar-
rios que también eran muy pobres, en los que también había chabo-
las (favelas), se desarrollaban conocidos programas para intentar
mejorarlos; sin embargo, del barrio de “La Verneda” solo se hablaba
de que era muy peligroso pasar por allí. Llegó a La Verneda con
imágenes, recuerdos y palabras que habían enriquecido su cerebro
las muchísimas y diversas obras literarias que había leído desde
niño y comentado con sus amigos y amigas. Pero llegaba decidido
a no hablar hasta no haber escuchado a la diversidad de personas 225
que vivían allí. En Pedagogía de los sueños posibles leemos que Pau-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


lo comienza sus palabras de la pedagogía del deseo mencionando el
trabajo con las personas que viven en la calle (FREIRE, 2015, p. 44):
“Para poder desarrollar alternativas de trabajo viables para cada
situación, tendríamos que acercarnos a las personas y analizar con
ellas lo que es necesario hacer en ese contexto”. Esa es la orienta-
ción de escucha dialógica que Goyo desarrolló a su llegada a ese
barrio.
Desgraciadamente, las teorías educativas y culturales entonces
dominantes negaban la posibilidad de que niñas y niños de es-
cuelas de niveles socioeconómicos bajos, con niveles académicos
también bajos de sus padres y madres y con diversidad cultural,
pudieran lograr éxito educativo y cultural. Ya hacía casi diez años
que Althusser había publicado Ideología y Aparatos Ideológicos de
Estado, afirmando que la escuela solo servía para reproducir desi-
gualdades, no para transformarlas. Un año después, Bourdieu pu-
blicaba con un colaborador La Reproducción y en 1979 vio la luz su
libro más influyente: La Distinción. Su concepto de habitus atribuye
a las familias de alto capital cultural el gusto distinguido, excluyen-
do del mismo a las personas del habitus desarrollado en familias
trabajadoras. 
Por el contrario, Erik Olin Wright, ex presidente de la Asociación
Americana de Sociología, afirmó que “las tertulias literarias dialó-
gicas demuestran que el concepto de distinción de Bourdieu esta-
ba equivocado”. En la literatura científica no aparece ninguna su-
peración de desigualdades promovida u orientada por teorías que,
como la de Bourdieu, niegan esa posibilidad. Su impacto ha sido
dificultar esa superación y, por tanto, reforzar las desigualdades. El
estructuralismo negaba la posibilidad del cambio y el posestructu-
ralismo llegaba todavía más lejos negando no solo su posibilidad,
sino también su conveniencia.
Estos diálogos dialógicos y otras actuaciones educativas de éxi-
to también dialógicas están logrando en muchas partes del mundo
que en escuelas de más bajo nivel socioeconómico las niñas y niños
no sufran la exclusión de los niveles de aprendizajes que frecuen-
226 temente alcanza el alumnado de las clases sociales más altas. A ve-
ces, la prensa clarifica a estos centros educativos con el nombre de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

escuelas milagro. Sin embargo, sus profesionales, sus familias, su


alumnado saben muy bien que las superaciones de las desigualda-
des que logran es por seguir una orientación dialógica en todas sus
actividades, con diálogos que no excluyen lo aportado por las más
excelentes evidencias científicas internacionales y las más bellas
creaciones científicas de la humanidad. 
En las entrevistas alumnado de esas escuelas, destacan los
aprendizajes logrados, pero todavía con mucha más intensidad las
amistades conseguidas, los sentimientos desarrollados. El profe-
sorado declara en las investigaciones sentirse más ilusionado que
cuando no seguía esas actuaciones de éxito, que llega los lunes a la
escuela con mayor optimismo, que se siente mejor de salud y que
puede ayudar mejor a sus propias hijas e hijos. Familiares señalan
las mejoras que se han producido en sus domicilios, el encanto que
ha ido impregnando sus relaciones. Más allá de cualquier reducción
utilitarista de los logros de esas actuaciones, la atmósfera de esos
centros educativos se llena de amor a la vida propia y de amor a las
vidas de las demás personas.
Durante los días que en 1988 fuimos inseparables, escuché y
miré atentamente a Paulo expresando con profundo sentimiento su
tristeza por la desesperanza que generaban incluso en ellos mismos
la negación del sujeto transformador que hacían algunos autores.
Le dolía recordar cómo Althusser había estrangulado a su mujer y
cómo Poulantzas se había lanzado al vacío con sus libros. Escuché y
miré sus muy expresivos actos comunicativos, no solo sus actos de
habla, no solo sus palabras, sino también el tono de su voz, el brillo
de sus ojos, el movimiento lleno de sentido de sus manos. De forma
opuesta a esos autores, Paulo decía que le gustaba la vida para él y
para todas las personas, una vida con las esperanzas y los sueños
que enriquecen nuestra existencia y la hacen bella.
Goyo compartía con Freire su misma oposición al fatalismo, la
misma convicción de que esas expectativas bajas eran las que re-
producían esas desigualdades. Se atribuía a las estructuras, a las
causas externas a la acción humana, la existencia y reproducción
de las desigualdades. Quienes no leían y dialogaban con tanto entu- 227
siasmo y rigurosidad como las personas participantes en la citada

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


actividad cultural quedaban sometidas con facilidad a ese discurso
entonces dominante y no se daban cuenta que esas teorías de la re-
producción y la distinción no solo estaban trabajando en la misma
línea que las estructuras que reproducían desigualdades, sino que
reforzaban con esas bajas expectativas esa reproducción.

Tertulias literarias dialógicas

En el contexto intelectual dominante en aquella época, transfor-


mar ese barrio era una verdadera Odisea. Goyo guardaba muy bien
en el cofre de sus recuerdos palabras que había leído como aquellas
de La Odisea (2007) en las que Zeus se queja de los mortales dicien-
do: “De qué modo culpan los mortales a los númenes, dicen que las
cosas malas les vienen de nosotros y son ellos quienes se atraen
con sus locuras infortunios no decretados por el destino” (p.22).
Las desigualdades que sufrían las personas de La Verneda no eran
causadas por Zeus ni por el destino, ni solo por las estructuras, sino
también por actuaciones humanas; por tanto, había que cambiar
esas actuaciones para lograr superar esas desigualdades.
Aunque era nuevo en el barrio, pronto reunió un grupo de per-
sonas adultas formado por obreras de la industria textil, auxiliares
sanitarios, jubilados, inmigrantes, modistas, trabajadoras del hogar
y vendedores ambulantes. En diálogo igualitario con esas perso-
nas, iniciaron un sueño de transformación de la zona que incluía un
sueño de una escuela de educación de personas adultas con orien-
tación claramente dialógica. Ese mismo grupo promovió también
la creación de una coordinadora de entidades que se llama VERN,
expresando así la voluntad de que esa transformación fuera ver-
de, llena de árboles (vern es el nombre en catalán del árbol aliso)
frente a la acumulación de cemento a que llevaba entonces la moda
de las “plazas duras”. Con una mentalidad democrática y por tanto
pluralista, en esa coordinadora participaron un ateneo anarquista,
una parroquia católica, todos los partidos políticos y todo tipo de
228 colectivos, una gran diversidad solo unida por el sueño de transfor-
mar las desigualdades sociales y culturales.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Al mismo tiempo y en el mismo edificio que la escuela popular,


fundaron el que fue uno de los primeros (si no el primero) centro
de planificación familiar para las clases populares de Catalunya. Las
mujeres populares, denominadas “las otras mujeres” por la femi-
nista Lidia Puigvert, habían sido excluidas de todos los ámbitos, no
solo de los estudios de secundaria o de los liderazgos en las empre-
sas o en la política, sino también incluso en los propios movimien-
tos feministas de la época. Sin embargo, cuando Judith Butler tuvo
ocasión de dialogar con ellas escribió las siguientes palabras: Fue
una experiencia bella y emocionante, que me cambió a mí y a mi
trabajo, … me habéis devuelto el sentido más básico de por qué el
feminismo es urgente, emocionante y creativo (BUTLER, como se
citó en BURGUÉS y SERRADELL, 2009, p 38).
Algunas de esas otras mujeres tomaron el liderazgo dialógico en
el movimiento de transformación que se creó en ese barrio; comen-
zaron a alfabetizarse en la propia escuela popular y crearon la pri-
mera tertulia literaria dialógica en 1979, el mismo año de la publi-
cación de La Distinción de Pierre Bourdieu. Esas personas llegaron
a leer, disfrutar y dialogar sobre libros como Ulises de James Joyce.
Una de las participantes, trabajadora manual del textil, comenzó de
adulta a participar en esta actividad cuando todavía era neolectora.
Años después impresionó al cantante y parlamentario Labordeta
que manifestó su agradable sorpresa al ver cómo ella conocía con
detalle y relataba con pasión el Ulises de James Joyce que ya había
leído cinco veces, mientras que dijo que él incluso llegó a hacer una
estancia en un monasterio para lograr la concentración necesaria
para leerlo por primera vez y no había logrado terminarlo.
Los debates seguían los criterios del diálogo igualitario, todas
las voces eran tenidas en cuenta por igual, cada persona escogía
unas líneas, las leía en voz alta e iniciaba su comentario que po-
dían continuar otras personas del grupo. Se abría así el próximo
turno a otra persona que leía el párrafo que había elegido durante
la semana. La persona moderadora era una más, solo tenía como
una tarea adicional el dar las palabras priorizando siempre a quien
menos veces había hablado de forma que se conseguía una partici-
pación universal. Como todas sabían que iban a ser escuchadas con 229
atención, daban muchas vueltas durante los días anteriores a qué

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


líneas en concreto escoger y qué comentario hacer. Cada vez más,
se atrevían a compartir esas reflexiones con colegas de sus traba-
jos, miembros de sus familias y amistades extendiendo ese diálogo
igualitario a sus contextos. Muchas terminaban siendo líderes de
los movimientos sociales de sus barrios y empresas, de las acciones
feministas o antirracistas y también de sus familias especialmente
en los momentos de dificultad pero también en la organización de
sus fiestas.
Sus visiones eran muy diversas casi siempre, pero coincidieron
en que Penélop no era el modelo de mujer que tenían ellas ya a
finales de los años setenta, cuando ya se criticaba abiertamente
que las mujeres tuvieran que esperar mientras el marido corría
sus aventuras. Pero tampoco les gustaba el modelo de Molly que,
mientras duerme su sumiso marido, recuerda al amante con quien
había tenido una relación ese mismo día. Ni la relación entre Uli-
ses y Penélope, ni la que había entre Leopold y Molly respondían
al ideal de amor igualitario que tenían unas mujeres que ya vivían
el feminismo y las nuevas masculinidades con admirable sentido y
consecuencia.
La mayoría de estas mujeres populares transformaron sus ante-
riores complejos y sumisión en seguridad y liderazgo dialógico en
todos sus ámbitos. No solo se logró el sueño de una escuela dialó-
gica sino también todas las transformaciones en ámbitos de salud,
urbanístico y social que habían incluido en su sueño de barrio. En
lugar de eliminar los pocos árboles existentes para hacer plazas y
calles duras, la zona se fue llenando de verde hasta constituir una
verdadera Verneda. Donde iba a haber solo bloques de cemento,
se hizo una residencia de mayores llena de ventanales desde los
cuales podían ver a unos metros los juegos infantiles de la plaza que
sustituyo a las piedras. Donde había dos carreteras radiales que se
iban a convertir en autopistas, sus habitantes disfrutan hoy de pa-
seos por dos ramblas rodeadas de árboles que llegan hasta el mar. 
Sus domicilios eran otro ámbito de transformación en igualdad
y seguridad de sus anteriores complejos y sumisiones. Una partici-
pante que limpiaba oficinas y casas ajenas para lograr que su hija
230 pudiera estudiar en la universidad aceptó sumisamente que la chi-
ca la fuera valorando cada vez menos según progresaba en su edad
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

y en sus estudios. Se casó con un profesor de educación secundaria


como ella y su madre compraba y hacía la cena de Navidad además
de recoger sus platos. Cuando salía algún tema más o menos cultu-
ral sobre libros o películas no se oía su voz ni tampoco se esperaba
ni aceptaba. Pero en una de esas cenas, su yerno empezó a hablar
de la película El proceso de forma que se veía que no había leído
directamente a Kafka. Ella sí lo había leído en la tertulia dialógica y
tomó la palabra para hablar, dejando muy claro lo injusto y lo erró-
neo que era repartir etiquetas de personas cultas y no cultas en la
familia. 
Eduardo Galeano envió estas palabras a un congreso de perso-
nas adultas sobre esta actividad: 

haciendo lo que están haciendo, que escribir no es una pa-


sión inútil, y que esa tentativa de comunión vale la pena (…)
Y estoy seguro que Onetti y Joyce están muy contentos de
estar aquí, charlando con ustedes, vivos en las palabras que
escribieron y en los libros que dejaron. (GALEANO como se
citó en GINER, 2018, p. 86-87) 
También lo hicieron otras personas como José Saramago: Me en-
canta saber que unas tertulias literarias interesan tanto a la gente
y que hayan alcanzado tanto éxito. A Freire también le sorprendía
e ilusionaba esta actividad y que personas trabajadoras con muy
poca escolaridad previa llegaran a disfrutar de una forma tan trans-
formadora de libros como Ulises. En 1995 comentamos ese y otros
temas cuando fuimos con Paulo, Nita, Donaldo y Jesús “Pato” Gómez
a casa de José María Valverde, Premio Nacional de Poesía cuando
tenía 23 años y luego traductor también premiado de esa obra de
James Joyce.
En las primeras sesiones dialógicas, esas personas habían leído y
comentado poemas de Safo de Lesbos. Les encantaban las palabras
de Safo diciendo que “lo que es bello es bueno y quien es bueno
también llegará a ser bello”. En la misma línea que Safo, la obra de
Freire se basa en la unión entre lo bello y lo bueno que se represen-
ta mejor que en ninguna otra en la palabra boniteza. Las personas
participantes en esos diálogos literarios descubrían continuamente 231
nuevas formas de unir belleza y bondad en sus propias vidas mejo-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


rando cada vez más su felicidad y sus relaciones. Al principio, esas
transformaciones se lograban solo en sus propias existencias, pero
pronto se extendieron a sus conversaciones en sus centros de tra-
bajo, en los bares y en todos los sitios donde desarrollaban su vida
social. 
Las otras mujeres participantes en esta actividad cultural fue-
ron desde el inicio profundamente feministas y siempre que en los
diferentes barrios y pueblos se hacía alguna acción contra la vio-
lencia de género, en La Verneda-Sant Martí adquiría una especial
masividad. Lejos de hacer una lucha de hombres contra mujeres o
de mujeres contra hombres, hacían una lucha de todas las personas
de cualquier género que estaban en contra de la violencia de género
para frenar a los acosadores. Con esa orientación profundamente
feminista, les encantaba Safo cuando dedica a una de sus amigas en
el día de su boda unas palabras de admiración hacia el marido que
ha escogido diciendo: Me parece que iguala a los dioses el hombre
que está sentado frente a ti y escucha de cerca tu dulce hablar.
Personas formadas en las tertulias literarias dialógicas transfor-
maban sus relaciones en todos los ámbitos en que desarrollaban
sus actividades profesionales, familiares, sociales e intelectuales,
conseguían una gran seguridad al leer directamente las obras li-
terarias que escogían y al comentarlas con otras compañeras y
compañeros. Les indignó muchísimo saber que Althusser, el autor
que había elaborado el modelo de la reproducción, había llegado
a afirmar que las escuelas no podían transformar las desigualda-
des desde un estructuralismo “marxista” de libros como Para leer
El Capital, que escribió con otro colega sin haber leído él mismo El
Capital. Les indignaba todavía más que se pusieran como referentes
intelectuales a personas como Althusser, que además había llegado
a estrangular a su mujer. Se dieron cuenta que ese hábito de hablar
y escribir sobre lo que no se ha leído directamente era muy común
en la intelectualidad. 
Algunas de esas personas asistieron a las conferencias que Frei-
re dio en Barcelona. Se les quedó grabado que dijo en el acto oficial
de su nombramiento como Doctor Honoris Causa de la Universidad
232 de Barcelona que no había aprendido tanto de la academia como
de trabajadores y trabajadoras de campos y ciudades de diferentes
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

partes del mundo: mujeres y hombres con los cuales voy aprendien-
do y al aprender de ellas y ellos, igualmente voy enseñando. Esas
palabras las reafirmaron en su ya previa idea de que aprendían mu-
cho más de otras mujeres de bajos niveles económicos y académi-
cos, pero que leían directamente los libros y dialogaban sobre ellos,
que de los intelectuales y académicos que hablaban y escribían de
lo que no habían leído.
Cuando Habermas impartió en Barcelona una conferencia so-
bre los derechos humanos asistió un público universitario, desde
catedráticos a estudiantes de doctorado, con la excepción de ocho
personas de una de las tertulias literarias dialógicas de la Verneda-
Sant Martí. Las primeras preguntas del debate se hicieron con un
lenguaje muy “culto”, de ese que acompleja a personas no académi-
cas pero que no lograba esconder que habla de lo que no ha leído
rigurosamente ante quienes sí han hecho las lecturas más impor-
tantes y dialogado sobre ellas. De repente, sonó una voz distinta ha-
ciendo una pregunta sobre los derechos humanos colectivos, sobre
su olvido en las primeras redacciones de la Declaración Universal y
la importancia de los derechos de grupos como las mujeres u otros
grupos de género. Sin todavía haber escuchado la pregunta, solo
por el tono de voz y el lenguaje empleado, se veía que esa mujer no
era universitaria y que posiblemente se dedicaba al trabajo manual
y que no habría completado su escolaridad. Después de sus prime-
ras palabras, la mitad de la sala se puso a reír, la traductora pensó
que no valía la pena traducir esa pregunta y dejó de hacerlo. Haber-
mas le dijo que la tradujera y empezó su respuesta diciendo que esa
sí que era una pregunta inteligente y crítica.
Estas otras mujeres comentaban sus lecturas primero entre
ellas, luego se fueron acostumbrando a hacerlo también en todos
los contextos y, entre ellos, en sus familias, con sus hijas e hijos, con
sus nietas y nietos, iniciaban tertulias literarias dialógicas. Luego se
enteraban en las escuelas infantiles, primarias y secundarias donde
iban esas niñas y comenzaban a proporcionar la oportunidad de
disfrutar de las tertulias literarias dialógicas a todo su alumnado,
llegando así a tener personas como Nuria, de 10 años, impresionan-
do en la sede del Parlamento Europeo. A su vez, esas niñas y niños 233
llegaban a desarrollar un liderazgo dialógico muy transformador

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


en todos sus ámbitos. 
Nerea, cuando tenía 6 años, cambió a una escuela donde las niñas
y niños de su aula se conocían de años anteriores. Se encontró el
primer día de clase con que la profesora estaba distribuyendo cómo
se sentaban los diferentes niños y niñas y nadie quería sentarse con
Laura, una niña con síndrome de Down. Rápidamente Nerea levantó
la mano y dijo “yo me siento con Laura”. Ya había tenido relación
con otra niña con síndrome de Down y sabía que, así, tanto Laura
como ella aprenderían mejor algunos sentimientos como la amis-
tad, pero también desarrollarían más sus respectivas inteligencias,
ya que se esforzaría mucho para explicar las cosas a una niña que
tenía importantes dificultades.
Pronto supo que el año anterior el padre y la madre de Laura
habían invitado por su cumpleaños a toda la clase y nadie había
acudido. Unas semanas después, la madre y el padre volvieron a
invitar a ese nuevo cumpleaños a toda la clase; Begoña dijo a su
mamá: “contesta al mail y di que yo sí que voy a ir”; con esa postura
segura logró que hasta 13 niños y niñas celebraran con Laura su
cumpleaños. Una investigadora, al oír el relato, preguntó a Begoña
por qué había hecho eso, a lo que ella le contestó que porque no
era un rinoceronte. La investigadora no entendía nada hasta que la
niña explicó que en la obra de teatro de Ionescu El Rinoceronte todo
el mundo se iba transformando en rinoceronte y solo una persona
se atreve a ir contracorriente. Igual que su admirada Sherezade, la
fuente de esta niña de 6 años para transformar la realidad eran los
relatos de los que había dialogado desde muy pequeña. Luego, la
investigadora leería en A la sombra de este árbol las palabras de
Freire sobre esa misma obra: “Siempre me llamó la atención la po-
sición quijotesca de Berenger que, desde el inicio, se opuso a sus
compañeros que, de uno en uno, se iban transformando en rinoce-
rontes” (FREIRE, 1997, p. 55-56).
Hay muchas excelentes publicaciones sobre Freire como el peda-
gogo más importante de la historia y también filósofo, teólogo… Se
ha hablado y escrito menos hasta ahora de Paulo como creador so-
cial, como artista social. Las personas que pintaron muchos de los
234 más bellos cuadros no fueron consideradas artistas, su actividad se
valoraba solo como trabajo manual. Incluso Botticelli realizó su fa-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

moso cuadro del nacimiento de Venus siguiendo estrictamente las


instrucciones escritas del filósofo Ficino. Durante el renacimiento,
algunas de esas actividades como la pintura fueron adquiriendo la
valoración como arte que mantienen en la actualidad.
En el siglo XXI, se ha comenzado ya a reconocer como creación
social, como artistas sociales, a quienes crean nuevas relaciones so-
ciales, a quienes transforman las existentes dando brillo a las me-
jores relaciones, como hizo Paulo Freire y cómo hacen muchas de
las personas de todo el mundo que le tienen como uno de sus refe-
rentes. Además, las propuestas de Paulo, y otras autoras y autores,
permiten que todo el mundo se pueda convertir en artista social
recreando esas relaciones dialógicas en sus propios contextos edu-
cativos, culturales, intelectuales, familiares, laborales, sociales. La
vivencia dialógica de la literatura y también de los relatos popu-
lares es una de las mejores fuentes de recursos para realizar esas
creaciones. Eso es lo que hizo Begoña en su aula y sigue haciendo
en todos los ámbitos. 
En las primeras sesiones de la primera tertulia literaria dialógi-
ca, había participantes que no sabían escribir, pero sí cantar algunos
poemas de García Lorca. Este escritor les encantaba, entre otras co-
sas, porque sabía poner al mismo nivel cultural que las complicadas
metáforas de Góngora las que hacía el pueblo llano: Llamar alero a
la parte saliente del tejado es una imagen magnífica; o llamar a un
dulce tocino del cielo o suspiros de monja, otras muy graciosas, por
cierto, y muy agudas; llamar a una cúpula media naranja es otra, y
así, infinidad. 
Había relatos populares de tanto valor o mayor que los libros
que ganaban grandes premios. No oponían esas historias orales a
las obras literarias de calidad, sí que oponían ambas a algunos bes-
tsellers promovidos por el mercado debido a su rentabilidad y no a
su calidad artística ni humana.
Visitantes de todo el mundo califican de extraordinario ver cómo
las personas que participan en las tertulias literarias dialógicas
crean nuevas relaciones sociales, realzan el brillo de las mejores que
tienen en sus entornos. Paulo fue y es un artista social, un creador
social que abre el camino para que muchas personas muy diversas 235
sean también artistas sociales. La formación de esas creadoras so-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ciales se realiza con independencia del nivel académico que hayan
podido adquirir con anterioridad, se hace con personas de 3 años y
también con personas de 90 años que nunca cursaron la educación
primaria en su infancia. Esa formación incluye diversidad de crea-
ciones artísticas y, entre ellas, la vivencia, la lectura directa página
a página, palabra a palabra, de obras literarias; y no solo su lectura
individual, sino una lectura promovida y enriquecida por el diálogo
con otras personas. 
Quienes habían recibido previamente imágenes estereotipadas
de Las mil y una noches se sorprendieron cuando leyeron: Shereza-
de había leído los libros, los anales, las leyendas de los reyes anti-
guos y las historias de los pueblos pasados. Dicen que poseía tam-
bién mil libros de crónicas referentes a los pueblos de las edades
remotas, a los reyes de la antigüedad y sus poetas. Cuando las niñas
y niños descubren las lecturas que había hecho la muy culta Shere-
zade, cuando ven que gracias a esas lecturas conocía cuentos que
permitieron no solo salvar su vida, noche a noche, sino también sal-
var las de muchas otras chicas, esas niñas y niños descubren que el
mejor recurso para crear nuevas relaciones sociales y para mejorar
las existentes no es ninguna espada, pistola o bomba, sino los actos
comunicativos que llenan de boniteza nuestras existencias. Algún
profesorado, que había tenido hasta entonces un conocimiento de
Paulo, también se sorprende al leer en A la sombra de este árbol lo
aficionado que era a la música de Villa-Lobos (FREIRE, 1997), en
cuyas bachianas brasileiras influyó El clavecín bien temperado de
Bach, por cierto, obra que La distinción atribuye al gusto distingui-
do de la élite y que en realidad gusta a muchísimas personas de los
más diversos sectores sociales.
No consideramos acertado negar la realidad, negar la verdad, ne-
gar la ciencia diciendo que todo lo que existe es narración, lo mis-
mo una novela que un libro científico. Esa afirmación tiene como
base en parte una insuficiente lectura y comprensión de lo que es
el diálogo. El diálogo se realiza a través de actos comunicativos que
no incluyen solo los actos de habla, una de las cosas que Habermas
no logró entender y, por supuesto, todavía menos los autores pos-
236 testructuralistas. El diálogo incluye esa unidad entre la bondad, la
belleza y la verdad, muy bien representada en el mencionado cua-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

dro de Botticelli. Esa unidad que fue rota por la racionalidad instru-
mental de una modernización selectiva que priorizó el dinero y el
poder, limitando no solo las relaciones sociales y las posibilidades
de la vida humana, sino que ha llegado incluso a poner en peligro al
propio planeta. 
El diálogo, antes de Sócrates, incluía todas esas dimensiones
en la misma relación, en el mismo acto comunicativo. A partir de
Sócrates, se produjo una reducción apolínea de la comprensión de
ese diálogo, suprimiendo o relegando su dimensión dionisíaca. La
sociedad y la mayoría de las obras de ciencias sociales fueron domi-
nadas por esa racionalidad instrumental, relegando los valores, las
emociones, los sentimientos. El desencanto que a veces recorre la
vida moderna en nuestras sociedades tiene una de sus raíces en la
ruptura de esa unidad. La obra dialógica de Paulo Freire es una re-
-creación humana actual de la idea original de diálogo y su palabra
boniteza hace florecer el encanto. 
Creaciones artísticas como la literatura son diferentes de textos
científicos como los de historia y no hay que equivocarlos, pero
hemos de saber que la creación de nuevas realidades sociales, ser
artistas sociales como lo era y lo sigue siendo Paulo Freire, se fo-
menta con la vivencia profunda de creaciones artísticas como las
creaciones literarias. Las niñas y niños que leen y comentan relatos
como los que están escritos sobre Sherezade se convierten también
en relatoras y relatores de cuentos para sus amigas, amigos y en
sus propias familias. Las personas adultas que los leen explican a
sus hijas e hijos, a sus sobrinas y sobrinos, cuentos extraídos de los
relatos literarios que han leído y comentado. A veces llamamos de-
corar un domicilio, un piso o una casa, a los objetos materiales y es
cierto que según qué objetos pongamos, según su belleza estética,
artística, de esos objetos materiales tenemos un decorado estimu-
lante e inspirador en lugar de deprimente. Sin embargo, además de
con esos objetos materiales, un domicilio, una cocina, una habita-
ción, se decoran también con las relaciones sociales que se generan
allí dentro, con las amistades y amores que se viven, con las risas
y los sentimientos que quedan incorporados a esas paredes, a esa
atmósfera, a nuestros cerebros. 237

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Consideraciones finales

Vivir dialógicamente la literatura hace que se disfrute al máximo


ese decorado humano que nos llena de recuerdos y que nos hacen
vivir de una forma u otra lo que ocurre allí dentro. Cuando se leyó
y comentó En busca del tiempo perdido, lógicamente uno de los pa-
sajes que más conversación suscitó es el de la llamada magdalena;
cada persona adulta recordaba y comentaba cuál había sido y era
su magdalena de Proust. Uno de los participantes relató cómo de
pequeño disfrutaba de una taza de chocolate y una rosquilla que le
hacía su abuela. Para él siempre esas rosquillas significaron diver-
sos y profundos sentimientos, que le acompañaron incluso en los
momentos más duros y tristes de su vida. 
Un domingo a la mañana disfrutaba de ese sabor recordando
cómo la tarde del día anterior había tenido a sus 14 años su pri-
mera cita, después de una mañana en que había estado releyendo
pasajes de En busca del tiempo perdido. Fue a esa primera cita sin
saber si duraría un minuto, un año o toda la vida, pero lo que sí sa-
bía es que, aunque durara un minuto, permanecería toda la vida en
su memoria. Varias décadas después de no haber mantenido nin-
guna comunicación, el día del cumpleaños de la chica, él escribió
un mail con una sola palabra: “Felicidades”. Rápidamente recibió
una respuesta: “¿Eres quien quiero que seas?”. Indudablemente, la
memoria de aquella primera cita había alegrado sus vidas, les había
regalado sentido y sentimientos que continuaban creando relacio-
nes sociales décadas después, apoyo para que las nuevas relaciones
que tenía ese participante continuaran en esa boniteza e incluso lo
mejoraran en cada una de ellas.

REFERENCIAS

BOURDIEU, Pierre. La distincion. Criterios y bases sociales del


gusto. [1979] Madrid : Editorial Taurus, 2006.
238
BURGUÉS, Ana y SERRADELL, Olga. Weber, Beck y creación fe-
minista de sentido en la escuela. RASE, v.2, n.3, p.30-44, 2009.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

FREIRE, Paulo. A la sombra de este árbol. [1995]. Barcelona:


Editorial El Roure, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogía de los sueños posibles [2014]. Ma-


drid: Siglo Veintiuno Editores, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Editora


Unesp, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogy of the Oppressed (50th-Anniversary


ed.) [1968]. London: Bloomsbury Academic, 2018.

GINER, Elisenda. Amistades creadoras. [2013]. Barcelona: Hi-


patia Press, 2018. (p.o. 2013).
HOMERO. La Odisea. Madrid: Editorial Akal, 2007.

IONESCO, Eugéne. El Rinoceronte. [1959]. Madrid: Editorial


Losada, 2017.

JOYCE, James. Ulysses. [1922]. Reino Unido: Editorial Penguin


Books Ltd, 2000.

RESUMEN
En el siglo actual está comenzando la valoración como artistas
sociales de personas como Paulo, que crearon realidades
sociales no menos difíciles ni menos importantes para la
humanidad que otras creaciones pictóricas. Autoras y autores
como Freire abrieron además a otras personas la posibilidad
de recrear en sus contextos diversas experiencias educativas
como las tertulias literarias dialógicas que se relatan en este 239
capítulo.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Palabras clave: Tertulias Literarias Dialógicas, Artistas So-
ciales, Transformación Social.

ABSTRACT
In the current century we assist to the beginning of the
consideration as social artists of authors like Paulo, who
created social realities no less difficult or less relevant for
humanity than other artistic creations. Authors such as Freire
also opened up to other people the possibility of recreating
various educational experiences in their contexts, such as
the dialogical literary gatherings that are explained in this
chapter.
Keywords: Dialogic Literary Gatherings, Social Artists, Social
Transformation.
BIOGRAFÍA
Dr. Ramon Flecha, catedrático de sociología por la Universi-
dad de Barcelona y Doctor Honoris Causa por la Universidad
Vest Timisoara. Es actualmente el número 1 en el ranking de
Gender Violence en Google Scholar. Fue director INCLUDED,
único proyecto de ciencias sociales y humanidades incluido
en la lista de diez investigaciones de éxito del programa de
investigación científica europea. Dr. Flecha fue contratado
como Chair del Grupo de Expertos que elaboró los criterios de
relevancia e impacto social de todas las ciencias en Horizon
Europe. Ha destacado también por formar continuamente
jóvenes de diversas culturas y géneros que han llegado a
dirigir proyectos del programa europeo y de otros programas
científicos.

240
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams
III
DIÁLOGOS COM A
OBRA DE PAULO FREIRE
CAMINHANDO COM FREIRE,
INSPIRAÇÃO, CRIAÇÃO E PARTILHA
EM BUSCA DE LUGAR

Eunice Macedo1

É com total disponibilidade que me


entrego à vida de corpo e alma, pensa-
mento crítico, emoção, curiosidade e
desejo, da mesma forma que vou apren-
dendo a ser eu mesmo[a] na relação
com o[a] outro[a]. Além disso, ainda me
243
entrego à experiência de lidar sem medo
nem prejuízo com a diferença, aprendo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


a conhecer-me melhor e construo o meu
perfil… (FREIRE, 2001, p. 152)

A palavra citada de Freire que tomo como ponto de partida para


este texto, de certa forma, sistematiza a razão e razões pelas quais
me encontrei em Freire e mantenho com o seu trabalho uma das
relações mais duradouras da minha vida. Uma entrega de corpo in-
teiro, na abertura às outras pessoas com que me reinvento e (re)
crio mundos de possibilidade, num processo permanente de cons-
trução da minha história mediatizada pelo mundo, como diria Frei-
re (1999). Este capítulo, que escrevo na primeira pessoa, traz uma
memória biográfica reflexiva do ‘encontro’ com o pensamento frei-
riano. Caminho com Freire, numa sequência de encontros, que cul-
minam na co-criação e na co-laboração com o Instituto Paulo Freire
de Portugal (IPFP), que perdura. O encontro com Freire constitui
1
Doutoramento em Ciências da Educação - Faculdade de Psicologia e de Ciências da Edu-
cação, Universidade do Porto, Portugal. Professora assistente na Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação, na Universidade de Porto, Portugal. E-mail: eunice@fpce.up.pt.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1200-6621.
um processo de conscientização, ao longo da vida, que me permite
avançar, hoje, mais segura, na enunciação e anúncio de um mundo
outro possível, mais humanamente humano, e construído numa re-
lação de interdependência mais autêntica e genuína.
Ao optar pela partilha biográfica, preocupei-me em pensar que
interesse poderia ter este trabalho para potenciais leitoras ou leito-
res. Assentando no pressuposto de que esta narrativa de cariz au-
tobiográfico não é – nem pretende ser – generalizável nem é esse o
objetivo – admito a interpelação entre a experiência individual e a
realidade social mais ampla, pelo que a primeira poderá permitir
compreender e apropriar os seus sentidos. Não tendo a pretensão
de assumir o recurso ao método biográfico na sua enorme comple-
xidade, com Ferrarotti (1991), estabeleço como posicionamento
investigativo na construção deste apontamento autobiográfico, a
busca de
244
ultrapassar o trabalho lógico-formal e o modelo mecanicis-
ta que caracteriza a epistemologia científica estabelecida
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

(…) [para] fazer uso sociológico do potencial heurístico da


biografia sem trair as suas características essenciais (subje-
tividade, historicidade) (…) [procurando] os fundamentos
epistemológicos do método biográfico (…) na razão dialética
capaz de compreender a práxis sintética e recíproca que go-
verna a interação entre o indivíduo e o sistema social. (FER-
RAROTTI, 1991, p. 172)

Argumento que, para além de uma renovação metodológica, o re-


curso à biografia possibilita uma aproximação ao mundo concreto,
permitindo às pessoas “compreender sua vida cotidiana, suas difi-
culdades e contradições” (SANTOS; GARMS, 2014, p. 4095). Reco-
nheço, pois, “a progressão simultânea e heurística da biografia para
a sociedade e da sociedade para a biografia” (FERRAROTI, 1991, p.
174), num movimento de interpelação e de apropriação subjetiva,
que gera sentidos, entre sujeito e contexto, sendo que ao partilhar
a minha experiência remeto para experiências geracionais como,
por exemplo, a vivência de um período revolucionário no período
da juventude, e os sopros de liberdade na formação inicial docente.
Assim, neste processo de escrita, que insere a biografia indivi-
dual num contexto de mudança, como tema gerador de época, afir-
mo a (cada vez maior) atualidade do pensamento de Freire, inspira-
ção e sonho de um mundo outro e de uma educação outra possíveis.
Neste caminho, analiso ainda - e partilho criticamente - algumas
das atividades desenvolvidas com o IPFP, como apelos da experiên-
cia que se revelam particularmente significativos, numa dinâmica
transindividual que alimenta a (re)criação de um acervo freiriano,
na partilha do seu ideário radical. Dou particular visibilidade à Co-
leção Querer Saber, desenvolvida desde 2001 e que inaugura, neste
ano do centenário, o seu 7º número. Reporto-me, ainda, às tertúlias
dialógicas, desenvolvidas desde 2016, envolvendo a academia e o
público em geral no debate do pensamento freiriano.

A importância do ato de caminhar:


em dez encontros que se completam2 245

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Eu vim de longe, de muito longe,
O que eu andei p’ra’qui chegar,
Eu vou p’ra longe,
P’ra muito longe,
Onde nos vamos encontrar,
Com o que temos p’ra nos dar
– José Mário Branco, Eu Vim de Longe
(1982)

A epígrafe com que dou início a este conjunto de encontros faz


parte do texto da canção de intervenção, cantada por José Mário
Branco, que como outras canções do período pré e pós-revolu-
cionário – do 25 de abril de 1974 – inspiravam o “pensar certo”,
como ato “de co-participação na construção do conhecimento, sus-
tentado por princípios éticos e suportado pelas ideias de aprofun-
2
Título inspirado no título da obra A importância do ato de ler: em três artigos que se com-
pletam (FREIRE, 1989).
damento na interpretação dos factos, proximidade e flexibilidade
para a mudança de opção. ‘Pensar certo é pensar a prática’ (FREIRE,
1997).” (MACEDO; VASCONCELOS; EVANS; LACERDA; VAZ PINTO,
2013, p. 145). Pensar certo, um conceito que retomo adiante, adqui-
re particular relevância quando somos desafiados ou desafiadas a
fazer a rutura com o instituído e a instituir um novo futuro possível,
baseado num novo presente, também possível e anunciado. Ao vir
“de longe”, procuro, assim também, trazer a ideia da historicidade
humana e das utopias do realizável, como inéditos viáveis que infor-
mam o nosso estar no mundo, com as outras pessoas.
Tendo nascido numa família de professoras, o debate sobre edu-
cação fez parte do cenário do meu desenvolvimento, como berço do
meu capital cultural. Cresci a montar materiais didáticos com a mi-
nha mãe, aos serões e, por vezes, nas tardes de domingo, à mesa da
sala de jantar, da nossa casa burguesa, recortando imagens de re-
vistas para tornar mais apelativo, por exemplo, o processo de leitu-
246
ra ou o conceito de número, indo além da decifração para incorpo-
rar, cor, vida e compreensão. Embora não tendo disso consciência,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

poderei situar nesses tempos o meu primeiro encontro com Freire,


na amorosidade com que a minha mãe, e eu por procuração, produ-
zíamos esses materiais que ajudavam à construção de significados
pelas crianças.
Em cada geração as e os jovens vão produzindo revoluções que
contribuem para a nossa renovação enquanto sociedades e seres
humanos. Atualmente, havendo uma mobilização jovem como ati-
vistas (GARCIA; MACEDO; QUEIRÓS, 2019) em torno de causas
muito diversificadas, parece que um dos mais fortes movimentos
vem em defesa da nossa Mãe Terra que, gerações anteriores, têm
vindo a descuidar. Em meados dos anos 1970, como estudante de
liceu (agora o ensino secundário, em Portugal, ou, no Brasil o en-
sino médio), fiz parte de uma geração marcada pelo conservado-
rismo e as restrições à manifestação pessoal, vivi numa sociedade
informada pelo ‘parece mal’, uma sociedade que regulava de forma
cuidada as questões da sexualidade, particularmente das raparigas;
questão que influenciou também a minha construção enquanto jo-
vem ‘rebelde’ em busca de experiências. A revolução da nossa gera-
ção, integrada e reforçada pela revolução mais ampla que destitui
o regime autoritário, foi a revolução contra o conservadorismo e o
cizentismo da sociedade portuguesa, em que a religião católica re-
forçava os valores de opressão imposta pelo estado.
As relações da instituição educativa com as pessoas jovens eram
fortemente hierarquizadas, não conseguindo, no entanto, constran-
ger os espaços intersticiais das relações jovens, das experiências
teatrais, ou da impressão do jornal estudantil. Sendo as relações en-
tre docentes e estudantes, na sua maioria, pautadas pela verticali-
dade e a subordinação, iam emergindo já, caminhando subtilmente
na penumbra e no silêncio, ânsias de revolta e de mudança. Assim,
vivo a experiência da revolução de abril entre a descoberta de mim
enquanto pessoa cujos afetos se expandiam para além da relação
familiar e das amizades, uma pessoa sexuada inspirada pela utopia
da busca de igualdade. As reuniões estudantis, por exemplo, na re-
247
nomeada Escola Secundária Rodrigues de Freitas, destronado que

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


foi, em abril, o nome de D. Manuel II, desenvolviam-se, então, num
equilíbrio imprevisível entre esclarecimento e reivindicação políti-
ca militante, de um lado, e a descoberta dos afetos e da sexualidade.
A tomada de consciência como ser político e sexuado foi, então,
acentuada com a vivência como jovem de um período verdadeira-
mente revolucionário, em que a dialogicidade humanizante entre
jovens nos permitia pronunciar o mundo, de forma mais autênti-
ca, indo além dos slogans manipuladores e domesticadores (FREI-
RE, 1983) do tempo da ‘velha senhora’, que se iam infiltrando de
forma mais ou menos subtil, nos interstícios da vida social, a par
da busca efetiva de libertação. Aprendíamos então, pela pele, a vi-
são humanizante de Freire, de que ser dialógico “é não invadir, é
não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na
transformação constante da realidade” (FREIRE, 1983. 28).
É também de notar que a experiência de liberdade de expressão
e reunião, que se vivenciava nestes encontros do pós-25 de abril,
dava continuidade ao movimento estudantil do pré-25 de abril que,
tendo maior expressão na zona de Lisboa e de Coimbra, e menor
no Porto, teve forte influência nas formulações de política educa-
tiva pós-revolução (ANTUNES; MEDINA; CARAMELO, 2021). Com
forte influência no meu trabalho, a visão política tem orientado a
consciência da não neutralidade da educação e da afirmação da sua
politicidade, como vou desenvolvendo ao longo dos encontros com
o pensamento freiriano, que aqui apresento. Neste enquadramento,
faço minhas as palavras de Isabel Menezes, quando refere que

ter vivido uma revolução (e ter crescido no contexto de uma


revolução) no meu [e no meu] caso, o 25 de Abril de 1974 –
afeta, inevitavelmente, a forma como pensamos o mundo e
como atribuímos importância ou significado a umas coisas
e não a outras. Seguramente, as questões da política teriam
que se cruzar no meu trabalho. (MENEZES, 2014, p. 19)

Na sequência desta Revolução dos Cravos que derruba o regime


248 ditatorial e implanta o regime democrático, em 25 de abril de 1974,
no período pós-revolucionário, entre 1977 e 1980, frequento a for-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mação inicial para professora do ensino básico (então designado


ensino primário), na escola do Magistério Primário do Porto3.
O curso era lecionado por docentes, mais ou menos, mobiliza-
dos pelo espírito de mudança e pela possibilidade de assumirem
a sua voz. Esta composição diversa promoveu a criticidade sobre
educação e a reflexão sobre os processos de poder e de desigualda-
de social a ela associados. Há que referir que, em anos anteriores,
os limites ao espaço pessoal docente incluíam a falta de direito de
reunião e de expressão, a obrigação de afirmar o não compromisso
com o comunismo, bem como a necessidade de as mulheres profes-
soras terem autorização dos maridos para lecionar. Como referem
Maria João Antunes, Teresa Medina e João Caramelo (2021, p. 205),

a mais longa ditadura da Europa [em que eu vivi como crian-


ça e jovem] caracterizou-se pela intensa repressão política,
pela perseguição violenta da polícia política, ausência de li-

3
Instituição extinta há alguns anos, que deu lugar à Escola Superior de Música e Artes do
Espetáculo.
berdades democráticas, censura e pobreza da larga maioria
da população.

A esta situação de uma opressão, naturalizada como modo de


vida, assente no medo de viver, acrescentou-se a perda dramática
de milhares de vidas de pessoas portuguesas, moçambicanas, gui-
neenses e angolanas, em tempo de guerra, nos territórios ocupa-
dos por Portugal (ANTUNES; MEDINA; CARAMELO, 2021). Uma
situação de guerra aberta que, não sendo tão mediatizada como as
guerras atuais, nos ia chegando entre murmúrios e, posteriormen-
te, nos “desejos de Bom Natal e de um ano cheio de prosperidades”,
proferidos, a preto e branco, por fileiras intermináveis de soldados,
muitos deles mortos, entretanto, em combate, sem saber a favor
de quem ou contra quem perdiam as suas vidas. Os seus discursos
sofridos eram transmitidos, horas a fio, na televisão, enchendo de
angústias o período natalício.
249
No pós-revolução, um tempo de afirmação da liberdade, estou,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


então, perante um corpo docente que, pela primeira vez, tem espa-
ço para expressar e instituir o desejo de mudança. Muitas e muitos
docentes organizam-se em sindicatos e discutem e reclamam lugar
social, no quadro de uma mobilização mais ampla em muitos se-
tores da sociedade portuguesa. Tal como entre o corpo estudantil,
entre docentes surge também alguma resistência, por parte de gru-
pos, digamos assim, mais conservadores. Isto torna o ambiente e
a experiência educativa particularmente estimulante, entre aulas,
sessões de esclarecimento, tomadas de posição, reivindicações e
pequenas revoluções, que nos “formavam na esperança de vir a mu-
dar a escola e nos mobilizavam para agir nesse sentido”4. Lembro
aqui com Freire que

numa perspectiva realmente progressista, democrática e não


autoritária, não se muda a ‘cara’ da escola por portaria. Não
se decreta que, de hoje em diante, a escola será competente,

4
Expressão utilizada pela minha colega e amiga Amélia Lopes, numa reunião de docentes,
em junho de 2021, em que se referiram os ‘velhos tempos’ de encontro no Magistério
Primário.
séria e alegre. Não se democratiza a escola autoritariamente.
(FREIRE, 1991: 25)

A transformação acreditávamos – e acredito ainda – poderá


emergir do ímpeto simultaneamente reflexivo e revolucionário,
para sonhar, enunciar e anunciar, que uma escola e uma educação
outras são possíveis. É, então, no contexto, de uma vivência revolu-
cionária esperançosa, na formação inicial para o exercício docente,
que me encontro, de novo, com Freire e a sua proposta filosófica,
política pedagógica.
Encontro com Freire porque, pela primeira vez, vejo espaço na
formação para pensar e vivenciar uma educação libertadora; uma
educação bem diferente do espírito de regulação e opressão que
informava as políticas educativas no meu tempo de menina e jovem
estudante de liceu. Encontro porque, como jovem adulta, me sinto
refletida no pensamento e obra de Freire, da poesia e do sonho, da
250
visão de possibilidade de ser e provocar mudança, questionando
poderes instituídos e buscando modos de vida mais democráticos.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Este é o encontro do lugar para respirar e sentir revolução na edu-


cação, definitivamente, ou assim o pensava então. Se a experiência
revolucionária sofreu recuos e se, em alguns aspetos, a realização
ficou aquém da promessa, houve mudanças claras na sociedade
portuguesa, com amplos grupos da população mobilizados para a
solidificação democrática. Sou presenteada no mesmo período, da
minha formação inicial com textos de Freinet (1978), como a Peda-
gogia do bom-senso, ou O texto livre (FREINET, 1976), entre muitos
outros que contribuíram para a construção do meu pensamento
político pedagógico, numa relação pautada pela dialogicidade entre
pares e com as e os docentes.
É o sonho da construção democrática que alimenta também a
minha prática como jovem professora num pequeno lugar no Alto
Alentejo, única adulta numa escola – professora, diretora, auxiliar
e empregada de limpeza –, com 11 crianças, do 1º ao 4º ano do en-
sino básico, o total da população infantil daquela zona do país. No
quotidiano, na sala de aula, fora dela e caminhando no espaço en-
volvente, íamos descobrindo a palavra e construindo a nossa pala-
vramundo, em conjunto. Era outro o ‘canto dos pássaros’, era outra
‘a dança das copas das árvores’. As ‘fortes ventanias’ eram trans-
formadas em brisa. Não tínhamos ‘tempestades, trovões, relâmpa-
gos’. Eram outras as cores, os aromas que nos enchiam os sentidos,
encarnando “os ‘textos’, as ‘palavras’, as ‘letras’ daquele contexto”
(FREIRE, 1989, p. 12). Tapetes bordados de pequenas flores amare-
las sobre matizes verdes cobriam os campos, escutávamos o mur-
múrio das searas, abraçadas pela brisa, e nesse contexto, entre o
vencer dos medos, as gargalhadas, o artesanato, e a decifração dos
números e da palavra escrita reinventávamos vida e cultura, no
sentido antropológico, proposto por Freire (1989). Numa campina
próxima, acampava, por vezes, uma família cigana. A curiosidade
das e dos meninos ciganos fazia-os dar umas escapadelas junto à
escola. Num dia, particularmente arrojado, espreitaram à porta.
Nunca falámos. Em cumplicidade com as crianças, passámos a dei-
xar folhas de papel e marcadores à porta, à hora de saída. Se não 251
eram as crianças ciganas que os iam buscar… talvez fosse alguma

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


codorniz que gostasse de escrever.
A televisão ainda não fazia parte da existência de muitas famílias
(e ainda menos a internet, os telemóveis e coisas afins). A informa-
ção não entrava sem pedir licença à hora do jantar (nem a qualquer
outra hora) e o mundo era o mundo próximo da família, do lugar, as
notícias trazidas pelos camionistas ou outros viajantes, por vezes,
as vozes no rádio partilhado no tasco da aldeia, para atrair a clien-
tela.
Entre as muitas surpresas, percebi que a revolução, que alimen-
tava a minha paixão pelo ato de educar, não fazia parte da reali-
dade daquele grupo, que vivia a uma velocidade bem distinta da
dos centros urbanos, e cujas crianças, que caminhavam livremente
pelos campos, não tinham ouvido ainda falar da (importância da)
conquista da liberdade. Trazer ‘abril’ como tema gerador – forma
de pensamento-linguagem referida a uma realidade experienciada
(FREIRE, 1999) – começou por constituir um disparate, mas falar
da liberdade de passear a pé, de ir mergulhar no riacho… fazia todo
o sentido. Foi isso que abriu a porta para falar de ‘abril’, não como
tema gerador, mas como ponto de chegada, construído a partir dos
saberes da experiência e da cultura daquele grupo, permitindo ex-
pandir esses saberes para além da experiência anterior, para cons-
truir uma visão mais ampla do mundo, como defende Freire (1999).
Nos oito anos seguintes, num contexto muito diferenciado, o novo
encontro emerge da e na grande aprendizagem foi a do reconheci-
mento e abertura às outras pessoas, vencendo o medo – absoluta-
mente irracional – da diferença que, em criança me fazia atravessar
a rua, amedrontada, face à aproximação de alguém cuja imagem
me parecesse sair da ‘norma’. A experiência extraordinária de tra-
balhar com crianças e jovens portadores de deficiência tornou-me
melhor pessoa pois tive a oportunidade de aprender a reconhecer
saberes e vozes num grupo particularmente vulnerável, frequen-
temente objeto de desumanização, humanizando-me também nes-
se processo. As relações, menos filtradas pelos saberes sociais, a
252
expressão mais aberta dos afetos, incluindo prazer e desconforto,
a construção de uma nova ‘normalidade’ em que quase tudo po-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

dia acontecer, desafiaram-me a um “pensar certo” mais centrado


na busca de participação conjunta na construção do conhecimento,
orientado por princípios éticos de cuidar, e suportado na tentativa
de chegar a uma interpretação dos factos, o mais profunda possível,
numa relação de proximidade e flexibilidade, no pensar da prática
e na busca de contribuir para o processo de humanização das e dos
sujeitos em presença, na linha de Freire (1997b).
Apesar desses princípios éticos do cuidar, a reflexão, ao longo
do tempo, tem-me levado a reconhecer a reprodução na relação
com essas crianças e jovens, de dimensões de “educação bancária”
(FREIRE, 1999; 1997a) como prática autoritária de “inculcação de
ideias e princípios, (…) que força[va ou tentava forçar] (…) uma
mudança não consensual” (MACEDO et al, 2013, 84). Um exemplo
claro é que a instituição, e eu própria em sua representação, procu-
rávamos ‘treinar’ para a assunção de comportamentos ‘aceitáveis’
no mundo social. Assim, a regulação através da educação ia além
da tentativa de transmissão de conteúdos escolares para abranger
a tentativa de inculcação de comportamentos e de modos de estar,
que poderiam ter pouco ou nenhum sentido para as e os próprios
sujeitos, como ‘saberes sociais’, vistos como necessários para ‘pas-
sar despercebido lá fora’. Se, dar quatro ou cinco saltos, no meio
de uma conversa e/ou fazer rodopios para aliviar o stress, eram
comportamentos objeto de correção por pessoas da instituição, já
caminhar em silêncio, numa fila (aparentemente) calma, na deslo-
cação entre os espaços da escola era uma conduta vivamente reco-
mendada.
Se, ao longo desse tempo, a aproximação a estas crianças e jovens
permitiu vê-los como pessoas únicas e irrepetíveis, cujos ‘traços’ e
saberes deveriam ser respeitados, na prática da escolarização eram
frequentemente vistos como “cofres vazios” onde se depositavam
conhecimentos para um saber social de diluição de si. Reproduzia-
-se nesse contexto educativo, certamente bem-intencionado, uma
tendência social mais global na educação das pessoas portadoras
253
de deficiência, pautada por essa regulação comportamental e a in-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


culcação, na medida do possível, de aprendizagens escolares, como
ler, escrever e contar, consideradas úteis e necessárias para a prote-
ção de futuros modos de vida, independentemente de constituírem
– ou não – aprendizagens com significado, para as e os sujeitos.
Nos interstícios dessa regulação bem-intencionada, iam sendo
explorados espaços de liberdade. Esse era o lugar das expressões
artísticas, às vezes, feitas a quatro mãos (MACEDO; HARDALO-
VA, 2021), nas pequenas conversas sobre afetos e as sexualidades
emergentes; nos passeios a pé nos arredores da escola, os pés cal-
cando as folhas outonais que lançavam pequenos gritos5; abraçan-
do as árvores e caminhando sobre as folhas, nas idas ao café para
‘aprender’ a ‘gerir’ o dinheiro, na troca (mais ou menos) silenciosa
de carinho no quadro de relações mais informais de proximidade. A
reflexão sobre este tempo de encontro com Freire leva-me a pensar
sobre a necessidade de rever o binómio educação bancária/ edu-
cação libertadora, situando-os num eixo tensional, pois, apesar de
filosófica e politicamente contraditórias, estas abordagens poderão
5
Memória de um jovem que, no outono, caminhava sempre na beira do passeio porque
não gostava de ouvir os gritos das folhas, quando as calcava.
ter pontos de encontro não intencionais, sobrepondo-se na prática
educativa mesmo entre educadores e educadoras progressistas.
Destaco aqui como novo encontro com Freire a passagem para
outro extremo da vida social, trabalhando com crianças e jovens de
elites económicas numa escola privada. A afirmação do privilégio
económico como raiz das desigualdades sociais é bastante consen-
sual. Não é, igualmente, consensual a necessidade e o valor de tra-
balhar com os grupos dominantes, colaborando para a tomada de
consciência, e acreditando no seu potencial para produzir transfor-
mação social, pela conscientização. Neste novo desafio a conscien-
tização – ação transformadora – ganhou corpo como processo de
mútua interpelação, numa relação entre pessoas, mediatizadas por
processos educativos, que todas as pessoas tiveram oportunidade
de se transformar, incluindo eu, no lugar de professora.
Para mim, o mais difícil foi tomar consciência, para poder liber-
254 tar-me, do (pré)conceito do privilégio e passar a compreender as
crianças e jovens autênticos com que partilhava muitas das horas
do dia. Crianças e jovens que vivenciavam tristezas e alegrias, que
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

sentiam abandono, perda e luto, mas também o prazer das cumpli-


cidades e da realização. Crianças e jovens que, como viria a escrever
anos mais tarde, sendo privilegiadas em termos do domínio econó-
mico eram também objeto de formas subtis de opressão, que era
importante desocultar (MACEDO, 2009). Se, no seu contexto educa-
tivo, estas crianças e jovens eram fortemente (diria excessivamen-
te) estimuladas para um desempenho elevado que lhes permitisse
vir a distinguir-se no mundo do trabalho, ocupando o topo da cadeia
laboral no mercado de trabalho internacional, como capital huma-
no de alta competência, os seus processos de construção enquanto
sujeitos eram informados por um conjunto de constrangimentos.
Não cabendo aqui a exploração aprofundada desses constrangi-
mentos que situavam as e os jovens enquanto ‘outros’ no interior
do próprio grupo, refiro apenas a imposição de uma lógica adul-
tocêntrica sobre as lógicas jovens e a pressão para o desempenho,
“com aprendizagem subtil dos princípios do mercado” (MACEDO,
2009, p. 64); e a aprendizagem dos “saberes de ser opressor” (p.
166) baseada tanto na naturalização do privilégio do grupo de per-
tença, como da falta de privilégio dos outros grupos da população.
Ou seja, a construção de uma visão do mundo que legitimava o pri-
vilégio enquanto tal, no quadro de “uma forma de autismo cultu-
ral e social preocupante, que pode contribuir para a construção da
realidade como um composto de factos naturais que se desenrolam
em continuidade.” (MACEDO, 2009, p. 256). Como referi, a serem
efetivos esses constrangimentos,

este contexto educativo, sustentado pelos mitos da emanci-


pação e da autonomia e pela ideia etérea de um mundo es-
colar ‘global’ consensual e inclusivo, pode ser, contrariamen-
te, considerado não só ‘arbitrário’ e ‘absurdo’, mas também
exclusor, dada a integração cultural dos seus eleitos a uma
cultura dominante, útil a um modelo de mundo desigual.
(MACEDO, 2009, p. 77)

255
Foi o trabalho continuado com essas crianças e jovens, fosse nas

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


aulas de português como primeira ou segunda língua, ou nas aulas
de ciências ou de matemática, com um currículo relativamente fixo,
fosse nas aulas de artes, e particularmente, nas aulas de expressão
dramática, com um currículo mais aberto, que se criou espaço para
a expressão das vozes (MACEDO, 2018) e a compreensão de cada
uma das pessoas em presença. Durante mais de 10 anos, fui tra-
balhando com diversos grupos, e com o mesmo grupo ao longo de
vários anos, tendo tido oportunidade de realizar um trabalho apro-
fundado com a expressão dramática, como forma de intervenção
com as crianças e jovens e no nosso mundo. Desse trabalho, como
tempo de ‘ser’ na construção da voz pessoal, e de horizontalização
das relações sociais entre participantes, resultou a produção refle-
xiva de um conjunto de peças de teatro, algumas delas criadas de
raiz com os grupos, outras introduzindo a dimensão crítico-reflexi-
va em textos de autor.
Das oito peças (re)criadas nesse período, sete foram apresenta-
das a público enquanto uma delas foi objeto de censura pelas famí-
lias, depois de o texto ter sido produzido a partir da reflexão jovem.
Consideraram que a peça era demasiado crítica e punha em causa
os princípios, digo eu, dominantes. Tive também consequências no
meu trabalho na instituição, tendo sido afastada o mais possível da
relação direta com as crianças e jovens, e tendo um grupo reduzido
de crianças sido impedido pelas famílias de frequentar as minhas
aulas. Pouco mais tarde, fui também convidada a sair da institui-
ção. Apesar dos aspetos mais difíceis deste processo, penso poder
afirmar, que o trabalho educativo que descrevi, e que deu lugar à
memória de trabalho concretizada no livro Prazer de fazer (MACE-
DO, 2004) assumiu fortes dimensões de uma educação libertadora
com intervenção no mundo. Não querendo constituir um espaço de
‘culpabilização’ das crianças e jovens pelo seu estatuto na cadeia
social, os fóruns de debate em torno das peças e/ou da sua (re)cria-
ção permitiram a reflexão a partir desse lugar, com maior abertura
aos mundos vivenciais das outras pessoas, bem como pensar um
mundo outro possível, suportado em relações solidárias e mais hu-
256 manas. Questiono-me hoje se, efetivamente, este terá sido um pro-
cesso de conscientização, capaz de conduzir à transformação social.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Anos mais tarde, já como profissional com alguns anos de ex-


periência na educação, ingresso na Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade do Porto. É um novo tempo
de possibilidade; a possibilidade de retomar a minha formação na
Licenciatura (1997-2001), num campo que me mobiliza, em par-
ticular, o da visão da educação como movimento de intervenção e
transformação socioeducativa. No término da licenciatura, propo-
nho como objeto de estágio a criação do Centro de Recursos Paulo
Freire, mobilizo um conjunto de colegas (éramos cinco, ao todo) e
peço a Luiza Cortesão que seja nossa orientadora. Ela aceita.
É também nesse ano que a equipa de estágio, em particular, Lur-
des Vasconcelos, Manuela Evans e eu própria, colaborámos, com
afeto, na criação do Instituto Paulo Freire de Portugal (IPFP), como
entidade de direito próprio, acolhida pela FPCEUP, onde ainda per-
manece. A criação do IPFP, para além do lugar que ocupa nos nossos
corações e memória coletiva, ficaria registada no livro “Um caderno
novo”, que partilha um conjunto de textos teóricos e de olhares dis-
tintos sobre a criação do instituto, inaugurou, em 2002, a Coleção
Querer Saber, de que falo mais adiante.
Tinha já sido inspirada por Luiza Cortesão num encontro sobre
literatura juvenil, talvez em 1996, em que ela participou numa me-
sa-redonda. A sessão foi ao fim da tarde. O ambiente estava pouco
iluminado. No palco, palestrantes monocórdicos, numa contraluz
de cinzentos, quase estáticos por trás da mesa, iam debitando sabe-
res, um após outro. Eu (e talvez muitas outras pessoas na audiência)
ia-me deixando embalar pelo aborrecimento de ser tratada como
cofre vazio, mas já sem espaço para tanta sabedoria. Afundava-me
já na cadeira estofada, chega a vez de Luiza Cortesão. Surpresa, esta
levanta-se, vem para a frente da mesa, e de pé anuncia “Como sa-
bem, sou mestre escola!”, uma frase que a ouviria repetir várias ve-
zes, ao longo dos mais de 20 anos de colaboração, uma expressão
porta de entrada à sua construção de relação com as audiências.
Não me lembro já do restante texto, mas foi nessa altura que decidi
257
que gostaria de vir a trabalhar com esta professora. A oportunidade

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


surgiu então com o estágio da Licenciatura em Ciências da Educa-
ção, de que vos falava antes, com a proposta de criação do centro de
recursos.
O estágio foi efetivado no ano letivo 2000/2001, portanto, antes
da efetivação, do Processo de Bolonha. Este foi iniciado em 1999,
com a Declaração de Bolonha, como processo de convergência, no
Espaço Europeu de Educação Superior, que afirmava buscar facili-
tar o intercâmbio de graduados, na Europa, e adaptar o conteúdo
dos estudos universitários à procura social. Afirmava-se também a
intenção de melhoria da qualidade do ensino universitário e da sua
competitividade, numa relação de maior transparência e um foco
mais individualizado em cada estudante.
Este processo viria, anos mais tarde, a provocar alterações pro-
fundas na lógica de funcionamento do Ensino Universitário. Con-
cretamente procedeu à redução de quatro para três anos do tempo
de licenciatura (a partir daí denominada 1º ciclo); à substituição do
ano de estágio, por um tempo reduzido de aprendizagem em con-
texto, entre outros aspetos, como o sistema de créditos europeu,
no quadro de uma lógica, dita, de harmonização, que efetivamente
parece constituir mais uma regulação dos sistemas educativos dos
estados, numa relação de compromisso e prestação de contas à Eu-
ropa (MACEDO, 2018). Nesta linha, o sistema de creditação nacio-
nal dos ciclos de estudo, que verifica o cumprimento dos requisitos,
insere-se no quadro do sistema europeu de Garantia da Qualidade
no ensino superior6.
Relativamente a esta questão, Fátima Antunes (2006, p. 69) afir-
ma que o processo de Bolonha parece ter como objetivo a elimina-
ção das “especificidades e autonomias nacionais, substituindo-as
por uma férrea regulação de nível supranacional.”. Na mesma linha
de preocupações, Afonso (2015) reflete sobre a perda de legitimi-
dade do paradigma de universidade do conhecimento científico e
humanista, que informava a vida e a experiência universitária, e a
sua subordinação a um modelo de universidade que instrumen-
taliza o conhecimento ao associá-lo à mercantilização, ao lucro, à
258
competitividade e à utilidade. E Stoer e Magalhães (2009) acen-
tuam que o serviço educativo passa a ser visto como um produto,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tendo o conhecimento como fator de produção. Nessa medida, a ce-


lebração moderna do conhecimento como “pilar de emancipação
dos indivíduos e das nações” (p. 45), passa a uma racionalidade útil
à formação de trabalhadores, no quadro de “um arquétipo de com-
petência adaptado aos requisitos do mercado de trabalho, agora
transformado na arena central onde o desenvolvimento pessoal e
social dos indivíduos tem lugar” (p. 48-49).
Este modelo, introduzido no nível universitário surge baseado,
então, nos princípios do mundo empresarial que têm vindo a inva-
dir o campo educativo, como um todo, repercutindo – e ampliando
– a introdução destes mesmos princípios em níveis de ensino an-
teriores. Face a estes argumentos, continuo a questionar-me ainda
hoje que efeitos positivos terão efetivamente produzido estas alte-
rações, neste nível de ensino (e nos anteriores), como discuti em re-
lação ao ensino secundário, numa escola de elite (MACEDO, 2009),
e em escolas do ensino regular (MACEDO, 2018).

6
Ver: https://www.uc.pt/candidatos-internacionais/sistema_graus/processo-bolonha
Este esforço de renovação da universidade, em contexto de re-
gulação europeia, vai numa direção bem distinta da descrita por
Paulo Freire (1997a), na Pedagogia da Esperança, em que refere o
esforço de recriação e inovação das universidades, já no início dos
anos 1970, na Argentina. Nesse enquadramento, Freire valorizava
já a decisão política e epistemológica de reinvenção crítica da uni-
versidade, numa articulação forte entre docência, investigação e re-
lação com os movimentos sociais e com a população, em torno da
tomada de consciência. Afirma também que a universidade deverá
orientar-se por rigor e seriedade como preocupações indissociá-
veis e em interpelação mútua na construção do conhecimento; o
qual, como afirma Freire, decorre em dois momentos que também
não são dicotómicos: o primeiro, principalmente na docência, no
reconhecimento do conhecimento existente e, o segundo, na pro-
dução de conhecimento novo, que corresponderá principalmente,
à pesquisa. Dando força ao argumento da inseparabilidade entre
docência e pesquisa, o autor reforça, 259

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Não há docência verdadeira em cujo processo não se en-
contre a pesquisa como pergunta, como indagação, como
curiosidade, criatividade, assim como não há pesquisa em
cujo andamento necessariamente não se aprenda porque se
conhece e não se ensine porque se aprende. O papel da Uni-
versidade, seja progressista ou conservadora, é viver, com
seriedade, os momentos deste ciclo. É ensinar, é formar, é
pesquisar. (FREIRE, 1992, p. 192)

Feita a necessária reflexão sobre as alterações na vida univer-


sitária, na tensão entre o foco nos princípios do mercado e a va-
lorização do processo de construção do conhecimento, retomo a
reflexão sobre o estágio, no encontro com Freire, estágio que desen-
volvi numa universidade progressista, politicamente consciente e
orientada para a construção e disseminação do conhecimento, com
uma intenção transformadora. O estágio abre, então, um espaço de
aprofundamento do estudo do pensamento freiriano, ao longo de
um ano letivo completo. Leitura, escrita e revisão de textos, davam
corpo à busca de sentidos. O percurso quase exaustivo de leitura de
Freire e revisão crítica do nosso trabalho de leitura, constituindo
um processo de tomada de consciência, permitiu uma aproximação
dialógica à sua vida e obra. Viria a resultar na publicação conjunta,
em 2001, do livro Revisitando Paulo Freire: Sentidos na educação,
pela Editora ASA, o qual viria a ser reeditado em 2013, no Brasil,
pela Editora IberLivro. Essa nova publicação deu-se graças ao apoio
e reconhecimento por José Eustáquio Romão, amigo e um dos fun-
dadores do Instituto Paulo Freire, a que aqui faço o agradecimento
público.
Esse livro, necessariamente dedicado à nossa orientadora, dizia
assim “A Luiza Cortesão, mulher admirável, cuja infinita paciência,
saber e solidariedade incondicional permitiram a realização deste
projecto. Com carinho.” (MACEDO; VASCONCELOS; EVANS; LACER-
DA; VAZ PINTO, 2001), um carinho que hoje prevalece. Destaco,
nesta obra, o prefácio, de Luiza Cortesão, a apresentação de Moacir
Gadotti, e um texto produzido conjuntamente pelas cinco autoras,
260
textos que se unem no argumento em favor da atualidade de Freire,
que prevalece. A imersão no pensamento freiriano, que incluiu a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

leitura e elaboração de sínteses críticas de vinte obras; a categori-


zação de excertos dos seus textos, por unidades de sentido, entre
outros aspectos explorados, permitiu a construção de relações con-
ceituais, e abriu espaço a uma compreensão mais ampla dos signifi-
cados e da atualidade do seu trabalho, numa articulação entre a sua
vida e a obra, construída no diálogo com outras pessoas (FREIRE,
1997a). Foi, claramente, um tempo de encontro muito frutífero.
Constituindo um novo encontro, o desafio teórico de articulação
do pensamento freiriano com perspetivas feministas de educação
e voz, que subjaz à abordagem autobiográfica aqui apresentada,
transborda para além das margens. Este novo e encontro surgiu
como possibilidade, ainda discreta, no âmbito da frequência do
Mestrado em Educação, Género e Cidadania, Coordenado por Hele-
na Costa Araújo (2003-2005), em que pela primeira vez, na minha
investigação, explorei articulações entre o conceito de opressão,
proposto por Iris Young (1990), e o conceito freiriano de opressão.
É em resultado dessa pesquisa de mestrado, que venho a publicar,
em 2009, o livro Cidadania em confronto: Educação de jovens elites
em tempo de globalização, que já referi acima, quando apelei à me-
mória da experiência de trabalho com as – e reconhecimento das
– vozes jovens, mais ou menos poderosas (MACEDO, 2009, 2009a,
2009b), deste grupo da população; uma pesquisa que tem como
pano de fundo teórico a minha formação, experiência, história, vi-
sões e expectativas face ao mundo – a minha voz – enquanto femi-
nista e freiriana.
O movimento feminista e aquilo que poderia designar como
movimento freiriano constituem duas “tradições epistemológico-
-metodológicas emancipatórias da voz” (ARNOT, 2006, p.408) que
podem ser vistas como conflituais. Em mim, assumem um lugar de
diálogo e complementaridade, como inédito viável concetual que
cruza a tradição feminista e a tradição crítica, em que se insere Frei-
re e algumas linhas do movimento freiriano. Estas tradições têm
em comum a visão humanista e a centralidade da voz, sendo que
261
a primeira, toma a questão de género como ponto de partida, e a

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


segunda, parte das desigualdades de classe social (MACEDO, 2017;
2021; no prelo).
Em ambos os movimentos pode observar-se uma evolução no
sentido de maior intersecionalidade, pela incorporação de dimen-
sões, que não eram antes tidas em conta como geradoras de desi-
gualdade, uma evolução que caminha também para uma reconcep-
tualização pluriperspectivada da opressão e de quem é oprimido
ou oprimida. Arrisco dizer que a modernidade tardia obriga à rutu-
ra com os conceitos de opressão e oprimido enquanto grandes nar-
rativas modernas para assumir a fragmentação das e dos sujeitos e
das condições de opressão que se cruzam, de modos diversos, nas
suas vidas. Isto obriga também à reconceptualização da ideia de
grupo social para acentuar as suas dimensões de heterogeneidade
(YOUNG, 1997), e a partilha de alguns aspetos das suas vidas e de
outros não.
Neste, já longo encontro, a exploração da relação entre feminis-
mos e o pensamento de Freire é também testemunhada na obra
Ecos de Freire e o pensamento feminista: Diálogos e esclarecimentos,
que coordenei (MACEDO, 2017a), e que põe em contacto entre si – e
com Freire – feministas freirianas, de várias partes do mundo, em
cujas vozes se reconhece o encontro com Freire. Foi a maior intimi-
dade com o pensamento freiriano que me permitiu assumir o risco
desta produção. Esta busca de dialogia entre a pedagogia freiriana
e as pedagogias feministas, ganhou mais corpo após a pesquisa de
Doutoramento (2007-2012). O desafio de participação no debate
de género e, particularmente, da violência sobre as mulheres, com o
Núcleo de Direitos Humanos da Unesp de Marília, foi profundamen-
te mobilizador deste novo encontro, tendo resultado num conjunto
de debates, reflexões, comunicações e publicações de que destaco
a obra referida acima. Nessa obra explora-se, então, este veio de
possibilidades de diálogo teórico entre as pensadoras feministas e
Paulo Freire.
No que concerne à articulação com cidadania, o encontro com
Freire em diálogo com pensadoras como Iris Young e Ruth Lister,
262
permitiu-me desenvolver um pensamento em que se acentua a
complexidade das relações que constituem a(s) vida(s) humana(s),
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

particularmente, no aprofundamento da politicidade da educação


como fundamento da transformação social e no quadro de uma
visão da escola como espaço público partilhado, onde têm lugar
construções jovens da relação com a polis (MACEDO, 2018). Esta
construção narrativa pode incluir, cidadania como direito político e
cultural de construção e expressão da própria voz; quasi-cidadania
que “incorpora processos de negociação e asserção pessoal em que
se cruzam pensamento crítico e reprodutivo, sendo a cidadania, de
alguma forma, mitigada e aquém de realizada”; e não-cidadania que
diz respeito a “formas de asserção pessoal sustentados na reprodu-
ção social acrítica que contradizem a cidadania como direito polí-
tico e cultural.” (MACEDO, 2018, p.133). É a linha de pensamento
feminista que informa a escuta das vozes jovens em educação, e a
compreensão da sua construção, enquanto autores e autoras da sua
história, como argumenta Freire (1999).
Recuperando memórias, na articulação com cidadania, lembro
aqui a publicação do nº 1 da Coleção Querer Saber, do Instituto Pau-
lo Freire de Portugal (IPFP), que tenho vindo a coordenar desde
2002. Nesse número, apresento o meu primeiro texto a solo com
Freire, sob o título “Questões de cidadania: Uma incursão para além
de Freire” (MACEDO, 2002), onde refiro, numa visão de que, entre-
tanto, me distanciei no que concerne a ‘não ter voz’. Sei hoje, que
todas as pessoas e grupos têm voz, faltando-lhes muitas vezes o es-
paço para que essa voz se faça ouvir. Dizia, então,

Com Freire, aposta-se na possibilidade de contribuir para a


afirmação da cidadania daqueles que actualmente ‘não têm
voz’, através da dialogicidade e contração na construção do
‘Eu’ na sua diversidade de género, etnia e classe, procurando
contribuir para a abertura de uma janela de possibilidade, li-
bertadora e emancipatória, para a batalha da construção iden-
titária, nas suas múltiplas dimensões. (MACEDO, 2002, p. 35)

De forma interessante, o texto articula-se com uma comunicação 263


apresentada em Recife, no III Colóquio Internacional Paulo Freire,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


organizado pelo Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas, na Uni-
versidade Federal de Pernambuco, em 2001. A escrita deste texto,
em resultado do encontro, permite-me enfatizar a importância da
dialogicidade na construção do pensamento científico, bem à ma-
neira freiriana, uma dialogicidade que temos vindo a manter um
pouco por todo o mundo, entre pessoas que vão instituindo o mo-
vimento freiriano, mas privilegiando a relação com as nossas com-
panheiras e companheiros do Brasil, em diferentes grupos. Como é
sabido, Freire constrói o seu amplo contributo socioeducativo par-
tindo da sua experiência de vida e em diálogo com outras pessoas,
como o próprio acentua, por exemplo na Pedagogia da Esperança
(FREIRE, 1992b), e como acentuam outros membros do movimen-
to freiriano, como Afonso Scocuglia (2021).
A Coleção surge, então, nesta relação com a vida, abrindo o deba-
te a temas centrais à construção da nossa história enquanto seres
da práxis, numa relação que atravessa fronteiras e campos científi-
cos, buscando e construindo diálogos. Trata-se de um contributo do
IPFP para o movimento freiriano que se tem vindo a desenvolver ao
longo dos anos, um pouco por todo o mundo, e em diversas formas,
construindo e enunciando a palavramundo, e trabalhando para o
inédito viável de um mundo outro mais humanamente humano.
O primeiro número Um caderno novo, que já referi, celebra o lan-
çamento do IPFP e, para além de apresentar os seus estatutos, como
entidade de direito público sem fins lucrativos – hoje reconhecida
como de Utilidade Pública –, incorpora duas visões sobre a criação
do Instituto, uma de Luiza Cortesão, que assume a presidência da
direção do IPFP, desde o seu lançamento, e outra de Amélia Macedo
(minha irmã) que traz o pensamento de Paulo Freire a Portugal e
à Universidade do Porto, com a organização de um encontro sobre
ecopedagogia, no ano 2000, e após participar, em 1999, no I En-
contro da “Carta da Terra na perspectiva da educação”, organizado
pelo IPF. O livro congrega, ainda, um conjunto de textos de pessoas
ligadas à criação do IPFP, como Lurdes Vasconcelos, Manuela Evans
e Adilson Lopes. É clarificada a articulação com a Casa Mãe, o Ins-
264
tituto Paulo Freire que, a partir de São Paulo, apoiou e acolheu a
criação do novo instituto, tendo, inclusivamente, procedido à auto-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

rização do uso do nome, com a amorosidade, de quem recebe uma


criança que, atrapalhada, chega tarde à escola.
Já o nº 2 da coleção Luiza Cortesão: Uma homenagem, é publicado
em 2004, sendo coordenado em parceria com Stephen Stoer. Sendo
dedicado a todas as pessoas que com ela se cruzaram, presta os de-
vidos créditos à presidente da direção do instituto, conglomerando
um conjunto de textos que, de forma mais ou menos provocatória,
analisam os seus percursos e põem em diálogo os seus textos. Por
sua vez, no nº 3, também datado de 2004, e coordenado em par-
ceria com Rosa Nunes, intitula-se Diálogos através de Paulo Freire.
Reúne textos de três conferências, e o debate com elas, entre auto-
res portugueses e brasileiros.
Depois de um período de interrupção, provavelmente devido à
falta de financiamento, a coleção é retomada, em 2011, com o nº 4,
Porque uma educação outra é possível: Contributos para uma prá-
xis transformadora, o qual é dedicado a João Francisco de Souza.
Incorpora a reflexão em torno da mercadorização da educação, a
discussão da tensão entre pensamento dominante e pensamento
dominado, e as exclusões presentes no campo educativo. Discute
ainda o lugar dos movimentos sociais, das pedagogias inovadoras
e da educação enquanto locus de intervenção social. Sendo o livro
maioritariamente escrito em português, inclui um texto em inglês
e outro em espanhol. Fazer educação, fazer política: Linguagem re-
sistência e ação, o nº 5, é uma produção, de 2014, com autoras e
autores de Portugal e do Brasil. Tem como eixo condutor o apelo à
mobilização para a ação e uma transformação social amiga-de-mu-
lheres-e-homens, procurando ir além da desocultação das desigual-
dades para corporizar a construção de mundos outros possíveis.
O nº 6, que já referi acima, é publicado em 2017, e traz à colação
a reivindicação e afirmação de direitos. Sendo um livro quase todo
escrito por mulheres, num total de 16, que co-laboram na constru-
ção dos capítulos, incorpora um contributo masculino. Nas primei-
ras palavras, refere-se
265

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Vozes de mulheres cientistas, de vários campos conceituais,
atravessam fronteiras para prestar testemunhos, negociar
sentidos teóricos e metodológicos, e construir horizontes de
uma cidadania outra com emancipação e humanização. (…)
[E mais adiante acrescenta-se] O tempo – este tempo – recla-
ma a visão da história como possibilidade, com que Freire
nos brindou, e que este livro tanto ilustra como procura ali-
mentar. (MACEDO, 2017a, p.7)

Neste livro, a co-laboração expande-se para além dos textos, sen-


do a capa o resultado de uma composição de Rita Macedo Nóbrega,
sobre uma fotografia de Pedro Granadeiro, de esculturas de Márcia
de Oliveira.
No corrente ano, 2021, em que celebramos o Centenário de
Paulo Freire e os vinte anos do IPFP, temos na calha, saindo em se-
tembro, o nº 7 da coleção, intitulado A educação como experiência,
ética, estética e solidária: Buscando inspiração em Freire. Sendo
construído em torno de um conjunto de argumentos que incor-
poram a visão freiriana, este livro toma como ponto de partida
a análise da Pedagogia do oprimido, por José Eustáquio Romão
e Natatcha Romão (2021), para navegar entre uma compreensão
densa da conscientização (MANFREDI; REGGIO, 2021) entre ou-
tras recriações que corporizam a filosofia política do movimento
freiriano. De forma relevante, a obra cruza olhares de docentes e
de estudantes universitários que contribuem com os seus saberes
para a visão de possibilidade na praxis, que tem vindo a crescer
com a coleção, ao longo destes anos de publicação. Nas Primeiras
Palavras, sugere-se que Freire – pessoa e obra – constitua inspira-
ção e proposta de trabalho, às e aos membros de uma comunidade
freiriana que se tem vindo a construir e a expandir. E mais adiante
acrescenta-se,

Como terão oportunidade – e esperamos, desejo – de explo-


rar, este número é organizado em torno de um conjunto de
argumentos e constituído por uma multiplicidade de con-
266 tributos, de diversos campos académicos e experienciais,
oriundos de diferentes países e num enquadramento in-
tergeracional. (…) Desafiamos potenciais leitores e leitoras
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

a alinhar connosco nesta viagem entre passados vividos e


enunciados, e futuros anunciados, engajando-se nos textos
propostos a partir da sua realidade e investindo connosco na
ideação de um horizonte mais humanamente humano. (MA-
CEDO, 2021, p. 5)

Tem sido esta mesma atitude de pro-vocação que tem orientado


a realização, desde 2015, de um ciclo, já longo, de tertúlias dialó-
gicas, além-fronteiras, em torno do pensamento e obra de Freire,
que têm conseguido mobilizar estudantes universitários, docentes,
e investigadores e investigadoras, mas também pessoas do mundo
empresarial e da sociedade civil. Destaco a primeira Tertúlia Dia-
lógica a partir da obra de Paulo Freire A importância do ato de ler,
dinamizada por Maria José Chisvert, da Universidade de Valência,
Espanha, e a mais recente, a XVII, em fevereiro de 2020, com Luiza
Cortesão Acerca de transgressões sociais e educativas em Paulo Frei-
re, e Tertúlias: Memórias e Futuros, por mim com Louise Lima, Ana
Teixeira e Régia Vidal. Neste processo, tem sido o (re)conhecimento
e leitura da obra de Freire, a partir da experiência de cada tertu-
liante que tem permitido ir anunciando esse mundo outro possível
mais humanamente humano, como inédito viável, nas nossas vidas,
se não nas presentes, nas futuras. Reconheço esta visão de intertex-
tualidade, na obra de Freire, que explorei em parceria (MACEDO;
CARVALHO, 2018).
Para terminar, gostaria de referir que se a participação no deba-
te académico, através da colaboração com grupos do movimento
freiriano, da apresentação de comunicações e da publicação, me
tem permitido participar no diálogo com o pensamento de Freire,
em que enraízo o meu ser político pedagógico, é na docência que
tenho encontrado um espaço com maior amorosidade para pro-
vocar, nas e nos estudantes, o encontro com Freire… A introdução
de obras de Freire como referências essenciais em algumas das
Unidades Curriculares que leciono e a provocação às e aos estu-
dantes para ler Freire, têm suportado a busca de uma educação
267
com liberdade, que indo além do pensamento crítico da realidade,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ganha corpo na intencionalidade de transformação individual e
social – faces indissociáveis da nossa construção enquanto sujei-
tos de corpo inteiro.
Se em artigo anterior (MACEDO; CARVALHO, 2018, p. 564) en-
tendemos que, “como experiência humana, a existência de Freire
consiste no entretecer de uma diversidade de textos” que não po-
dem ser reduzidos a eventos biográficos, dado o diálogo que os atra-
vessa, no corrente texto, de cariz autobiográfico, a intertextualida-
de emerge como “lente adequada” à corrente narrativa por permitir
“a incorporação da experiência-na-obra e da obra-na-experiência,
numa perspectiva ontológica.” Nesta jornada…
Vejo-me hoje, caminhando com Freire, lado a lado. Eu sou eu.
Freire, o ar bondoso, a justa raiva que espreita e se afirma entre os
lábios, a barba ondulando a cada pensamento novo… O passo ao
mesmo tempo enérgico e calmo, como quem se deleita, à sombra
de uma mangueira, construindo voz e esperança. No meu rosto, um
leve sorriso.
REFERÊNCIAS

AFONSO, Almerindo Janela. A educação superior na economia


do conhecimento, a subalternização das ciências sociais e hu-
manas e a formação de professores. Avaliação: Revista da Ava-
liação da Educação Superior, [S. l.], v. 20, n. 2, 2015. Disponível
em: http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/avaliacao/ar-
ticle/view/2271. Acesso em: 23 out. 2021.

ANTUNES, Fátima. Governação e Espaço Europeu de Educa-


ção: Regulação da educação e visões para o projecto ‘Europa’.
Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], n. 75, 2006, p. 63-
93. DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.901. Disponível em:
http://journals.openedition.org/rccs/901. Acesso em 23 out
2021.
268

ANTUNES, Maria João; MEDINA, Maria Teresa; CARAMELO,


Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

João. Participação social e política estudantil no Porto (1969-


1974). Um olhar a partir da Faculdade de Medicina da Univer-
sidade do Porto. Revista da FLUP, v. 11, n.1, 2021, p. 203-228.
Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/historia/
article/view/10611. Acesso em: 21 out 2021.

FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do método biográ-


fico. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 9, 1991, p. 171-177.
Disponível em: https://sociologiapp.iscte-iul.pt/fichaartigo.
jsp?pkid=342. Acesso em: 21 out 2021.

FREINET, Célestin. O texto livre. Lisboa: Dinalivro, 1976.

FREINET, Célestin. Pedagogia do bom-senso. Lisboa: Moraes,


1973.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 8ª edição. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que


se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

FREIRE, Paulo. Conscientização: Teoria e prática da libertação:


uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo:
Moraes, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Um reencontro com


a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à


prática educativa. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1997b. 269

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e
Terra, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários


à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

GARCIA, Ana; MACEDO, Eunice; QUEIRÓS, João. Quando as


pessoas jovens reinventam cidadania: experiências críti-
cas e criativas. Comunicação apresentada Conferência In-
ternacional CombArt: Arte, Ativismo e Cidadania. Jun, 2019.
Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bits-
tream/10216/120619/2/336888.pdf. Acesso em: 21 out
2021. 

MACEDO, Eunice. Prazer de fazer: O lúdico-pedagógico no tea-


tro com crianças e jovens ou um trabalho de intervenção. Por-
to: Porto Editora, 2004.
MACEDO, Eunice. Cidadania em confronto: Educação de jovens
elites em tempo de globalização. Porto: LivPsic & CIIE, 2009.

MACEDO, Eunice. Vozes poderosas de jovens de elites econó-


micas portuguesas, Configurações, 5/6, 2009a, p. 175-197.
Disponível em: https://journals.openedition.org/configura-
coes/432?lang=pt#quotation. Acesso em: 22 out 2021.

MACEDO, Eunice. Percursos de elites económicas jovens. Por-


tugal. Século XXI: vozes, mais ou menos, poderosas e prospec-
ções de vida, Educação em Revista, v. 10, n. 2, 2009b, p. 15-40.
Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/
educacaoemrevista/article/view/649. Acesso em: 20 out
2021.

270
MACEDO, Eunice. Paulo Freire, um pensador feminista?: (Re)
articulando conceitos e debates. In: Ecos de Freire e o pensa-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mento feminista: Diálogos e esclarecimentos. Coordenação:


Eunice Macedo. Porto: LivPsic, IPFP, CRPF & CIIE. ISBN: 978-
989-730-049-3, 2017.

MACEDO, Eunice. (Coord.). Ecos de Freire e o pensamento femi-


nista: Diálogos e esclarecimentos (ISBN 978-989-7300349-3).
Porto: LivPsic / Instituto Paulo Freire de Portugal, 2017a.

MACEDO, Eunice. Pedagogia freiriana e pedagogias feminis-


tas: (Des)encontros e diálogos (im)possíveis? Ideação, [S. l.], v.
23, n. 1, p. 202 –, 2021. DOI: 10.48075/ri.v23i1.26306. Dispo-
nível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/ideacao/
article/view/26306. Acesso em: 24 out 2021.
MACEDO, Eunice. (no prelo). Pedagogia freiriana e pedagogia
femminista: come “tradizioni emancipatrici della voce”. Rivis-
ta MeTis - MeTis (ISSN 2240-9580) [Rivista internazionale di
Pedagogia, Didattica e Scienze della Formazione].

MACEDO, Eunice. (Coord.), Cortesão, Luiza, Macedo, Amélia,


Vasconcelos, Lurdes, Evans, Manuela, Koning, Marijke, Lopes,
Adilson. Um Caderno Novo. Porto: LivPsic, IPFP & CRPF.FP-
CEUP, 2002.

MACEDO, Eunice; CARVALHO, Alexandra. (2018). Intertextua-


lidade em Freire: Pedagogia da Esperança ao encontro da Pe-
dagogia do Oprimido, continuidades e pensamento novo. Edu-
cação em Perspectiva, Viçosa, MG, v. 9, n. 3, p. 564-575, 2018.
DOI: https://doi.org/10.22294/eduper/ppge/ufv.v9i3.1110.
Disponível em: https://periodicos.ufv.br/educacaoempers- 271
pectiva/article/view/7158. Acesso em: 23 out. 2021.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


MACEDO, Eunice; VASCONCELOS, Lurdes; EVANS, Manuela;
LACERDA, Manuela; VAZ PINTO, Margarida. Revisitando Paulo
Freire: Sentidos na educação. Porto: ASA, 2001.

MACEDO, Eunice; VASCONCELOS, Lurdes; EVANS, Manuela;


LACERDA, Manuela; VAZ PINTO, Margarida. Revisitando Paulo
Freire: Sentidos na educação. Brasília: Liber Livro, 2013.

MACEDO, Eunice; HARDALOVA, Poliksena. Refletir sobre a ex-


periência, a arte como oportunidade: Um texto a quatro mãos.
In: A Educação como Experiência Ética, Estética e Solidária:
Buscando Inspiração em Freire. Coordenação: Eunice Macedo.
Porto: Mais Leituras, IPFP & CIIE, p. 172-183, 2021.
MANFREDI, S. & REGGIO, P. Educação e conscientização: No-
tas sobre o conceito de conscientização em Paulo Freire. In: A
Educação como Experiência Ética, Estética e Solidária: Buscan-
do Inspiração em Freire. Coordenação: Eunice Macedo. Porto:
Mais Leituras, IPFP & CIIE, p. 41-57, 2021.

MENEZES, I. Fazer política por outros meios? In: Fazer educa-


ção, fazer política: Linguagem, resistência e ação. Coordena-
ção: Eunice Macedo. Porto: LivPsic, p. 19-36, 2014.

ROMÃO, José; ROMÃO, Natatcha. Pedagogia do oprimido: Uma


obra cinquentenária em evolução. In: A Educação como Ex-
periência Ética, Estética e Solidária: Buscando Inspiração em
Freire. Coordenação: Eunice Macedo. Porto: Mais Leituras,
IPFP & CIIE, p. 25-38, 2021.
272

SANTOS, Héllen; GARMS, Gilza. Método autobiográfico e


Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

metodologia de narrativas: contribuições, especificidades e


possibilidades para pesquisa e formação pessoal/profissio-
nal de professores. In: Congresso Nacional de Formação de
Professores, 2; Congresso Estadual Paulista sobre Formação de
Educadores, 12, 2011, Águas de Lindóia. Anais […]. São Paulo:
UNESP; PROGRAD, p. 4094-4106, 2014.

SCOCUGLIA, Afonso. A relevância do trabalho na África e a


construção da práxis and the politics of difference. Princeton:
Princeton University Press. de Paulo Freire. In: A Educação
como Experiência Ética, Estética e Solidária: Buscando Inspira-
ção em Freire. Coordenação: Eunice Macedo. Porto: Mais Leitu-
ras, IPFP & CIIE, 2021.
STOER, Stephen R., & MAGALHÃES, António M. Education,
knowledge and the network society. In: Globalisation & eu-
ropeanisation in education. Organização: Roger Dale e Susan
Robertson. Oxford (UK): Symposium Books, p. 45-64, 2009.

YOUNG, Iris. Justice and the politics of difference. Princeton:


Princeton University Press., 1990.

RESUMO
Neste artigo, tomo a palavra na primeira pessoa. Baseio-me
no método autobiográfico para caminhar ao encontro de
Paulo Freire, juntando-me à celebração do seu centenário.
Ao admitir a interpelação entre a experiência individual e a
realidade social mais ampla, admito também que a primeira
poderá permitir apropriar sentidos da segunda. Assim, explo-
ro a minha construção do pensamento freiriano, mediatiza- 273
da pelo mundo e na relação com outras pessoas, enunciando

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


significados da participação no movimento freiriano que nos
mobiliza; que, concretamente, me mobiliza no Instituto Paulo
Freire de Portugal, na construção de um mundo mais huma-
namente humano.
Nesta caminhada vou refletindo sobre momentos e situações
particulares na sociedade portuguesa ao longo da minha cons-
trução enquanto autora e atora da minha própria história,
num vaivém entre experiência pessoal e vivência dos espaços
públicos partilhados, em termos de uma vivência geracional e
em campos distintos da vida familiar, estudantil, profissional,
académica.... Dou relevo à participação na enunciação e re-
criação do pensamento freiriano, encontrando e provocando
ecos de Freire, aquém e além das fronteiras nacionais, através
da publicação e do envolvimento no diálogo acerca e com a
sua obra. Um contributo sentido – e também limitado.
Palavras-chave: Paulo Freire, Método Biográfico, Encontro,
Movimento Freiriano.
ABSTRACT
This article is written in the first person. I use the
autobiographical method to walk together with Paulo Freire,
joining the celebration of his centenary. By admitting the
interpellation between the individual experience and the
broader social reality, I also admit that the former will allow
us to understand and appropriate the meanings of the latter,
in terms of a generational experience. Thus, I explore the
construction of Freire’s thought, mediated by the world
and in the relationship with other people. Meanings of the
participation in the Freirian movement are enunciated as
they mobilize us. More concretely as I am mobilized, in the
Paulo Freire Institute of Portugal, in the construction of a
more humanely human world. In this journey, I do reflect
on particular moments and situations in the Portuguese
societythroughout my construction as an author and actor
274
of my own history, in a sway between personal experience
and the appropriative experience of shared public spaces,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

in terms of the generational experience and in diverse fields


such as family, student, professional and academic life....
I emphasize the participation in the enunciation and (re)
creation of Freire’s thought, finding and provoking echoes of
Freire, within and beyond the national borders, through the
publication and involvement in the dialogue about and with
his work. A hearty contribution – and also a limited one.
Keywords: Paulo Freire, Biographical Method, Gathering,
Freirian Movement.

SOBRE A AUTORA
Eunice Macedo é Professora na Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP)
e investigadora do seu Centro de Investigação e Interven-
ção Educativas. Tem desenvolvido investigação no campo do
abandono da educação e formação como direito social, cida-
dania educacional, educação com artes; gênero na educação
e cidadania, feminilidades e masculinidades jovens, parti-
cipação e violência sobre as mulheres. Tem experiência em
pesquisas e redes colaborativas internacionais. Co-coordena
o projeto “EduTransfer - Aprender através de diversos con-
textos educativos: Transferibilidade de práticas promissoras
no quadro do Horizonte 2020”. É vice-presidente da direção
do Instituto Paulo Freire de Portugal. Membro da Rede Mu-
lheres Vivas (transnacional) e da Rede Social Justice and In-
tercultural Education da EERA; representante da FPCEUP na
Rede de Escolas e Iniciativas de Segunda Oportunidade. Auto-
ra de várias obras, a sua pesquisa apoia a intervenção com as
comunidades, em busca de formas de educação e vida ligadas
à felicidade e à realização pessoal, mediatizadas pelo mundo.

275

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ELZA E PAULO FREIRE:
NA LUTA PELA LIBERTAÇÃO,
REVOLUÇÃO E EDUCAÇÃO EM ÁFRICA

Nima Spigolon1

Eu quero conhecer-te melhor,


minha África profunda e imortal...
Quero descobrir-te para além
do mero e estafado azul
do teu céu transparente e tropical,
277
para além dos lugares comuns

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


com que te disfarçam aqueles que não te amam
e em ti veem apenas um degrau a mais para escalar!

[...]
Sim, quero lutar em ti integrada
confundindo as almas, lado a lado,
rimando nossos esforços e suores,
sentindo o eco de cada brado
das nossas bocas, reboar por esse sertão
fora, longamente, dolorosamente...

E que alguém, perdido lá longe, o recolha e diga:


_ Mas é minha esta voz, esta dor,
é meu também este brado!

[...]
1
Pós-doutorado em andamento na Universidade Federal de Uberlândia. Professora na
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: nima@unicamp.
br. Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5304011741434335. Orcid: https://
orcid.org/0000-0002-5427-8169.
E que todos digam, quando eu cantar,
ou quando me revoltar, ou quando chorar:
É a África que canta, e grita, e chora!
(Noémia, 2016, pp. 134-135).

Conhecer-te melhor, África!

O texto se insere em cenários advindos com o Golpe de 1964 no


Brasil, a instauração da Ditadura militar e os movimentos da década
de 1970 para independência das colônias portuguesas em África.
Estes cenários se constituem mapas cujos itinerários revelam
que o engajamento de exilados políticos em África se tornou uma
das maneiras de se opor ao domínio e à invasão do colonizador, de
criar condições ao lado daqueles povos de libertação e de retornar
ao país de origem. A retrospectiva do exílio brasileiro, instrumen-
278
talizado por percursos de Elza e Paulo Freire estampa fragmentos
textuais acompanhados por concepções de mundo, percepções de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

realidade e um “que-fazer” entrelaçado tanto pelo pesquisador que


busca compreender a vida individual e coletiva em suas variadas
nuanças, quanto aos personagens históricos identificados com
nome, sobrenome e endereço (BRUNER, 1997).
De destacar ainda que foi preocupação não me circunscrever a
analisar o passado, mas antes assumir uma escrita prospectiva so-
bre uma produção aberta e em processo para potencializar projetos
de emancipação. Sucintamente, os aportes teórico-metodológicos
tornam viável a sistematização de campo empírico conjugado a rea-
lidades vinculadas a denúncias que violam os direitos humanos, re-
sistências democráticas, radicalização de propostas político-pedagó-
gicas humanizadoras e à própria sobrevivência dos corpos e sonhos.
Said (2003) sugere que o exílio marca a história da humanidade
e Dubar (2009) que o espalhamento pelo mundo conduz a redefini-
ções identitárias.
As páginas se alinhavam, por um lado, com o mapeamento de
rotas diaspóricas em continente africano, e por outro, com a inser-
ção político-pedagógica do casal2 Elza e Paulo Freire na condição de
exilados brasileiros.
É em África que o casal Freire vai viver os últimos anos do exílio,
mas é lá justamente que eles vão entrar em contato com o pensa-
mento de esquerda anticolonialista e a militância propriamente
revolucionária e libertária, embora esse processo tenha tido início
quando eles passam a viver sob a condição de exilados.
Sem condições de aprofundar é importante que questões de
África e das inserções político-pedagógicas circunscritas ao exílio
brasileiro sejam analisadas como parte do processo de colonização,
descolonização e dos movimentos para a independência (ALEN-
CASTRO, 2000; CABRAL, 1976; DAVIDSON, 1975, 1979; ÉVORA,
2004; FANON, 1980; SPIGOLON, 2014).
A presença de Elza e Paulo Freire e dos que, como eles exilados
políticos, nos países aviltantemente chamados pelos colonialistas
portugueses de “províncias de ultramar”, foi marcada pela inserção 279
no campo das lutas de libertação e revolução nos Países Africanos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)3 em geral e, particularmente,
no da Educação de Adultos.
Inserção faz parte das estratégias de sobrevivência, das questões
de identidade e, consequentemente da invenção de novas formas
de atuação política (TARROW, 2009; ROLLEMBERG, 2007).
O exílio atribui ao casal Elza e Paulo Freire, uma aproximação
não somente ideológica, política, pedagógica ou cultural com África
e seus movimentos de luta ao lado de grupos que operavam na via
de ações coletivas sem serem vinculadas nacionalidades. Grupos
que por um lado faziam contraponto ao imperialismo instituído se
2
Elza Maia Costa Oliveira nasceu em 1916, no Recife, Brasil. Concluiu o magistério em
1935. Concursada, atuou como professora e diretora. Trabalhou no MEB e MCP até 1964
– quando estava em Brasília para o PNA e veio o golpe, tornando Paulo preso e a família
exilada. O retorno ao Brasil se dá em 1979 e definitivo em 1980. Em 1986 ela falece. Após
casar-se com Paulo Réglus Neves Freire em 1944, passa a assinar Elza Maia Costa Freire.
O casal é conhecido nacional e internacionalmente como: Elza Freire e Paulo Freire (SPI-
GOLON, 2009, 2014). No texto, referir-me-ei a eles como Elza e Paulo Freire.
3
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (acrónimo PALOP), é a designação dada
aos países africanos que têm a língua portuguesa como oficial. Sigla que identifica a África
Lusófona, que teve Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe
como membros originais.
colocando em defesa da liberdade ou que por outro tiveram suas
vidas atingidas pelo terrorismo de Estado e que ao se posicionar de
forma contrária à opressão e violência se entrecruzam através da
militância em terras estrangeiras.
Esse posicionamento individual e coletivo não desistoriciza o
sujeito, ao contrário. Elza e Paulo Freire passam a ser parte desses
grupos, é a historicidade à qual eles são submetidos que mostra
como o exílio os torna militantes e, os classifica militantes de es-
querda. O casal como outros que atuaram em África na condição
de exilados políticos militantes são considerados de esquerda nos
quadros da luta pela libertação, revolução e educação, definindo
que a militância a partir de África passa a ser humanitária. Rompe-
-se as fronteiras com o local, regional e nacional, passa a ser mun-
dial; sai da dimensão do individual para ser coletivo.

280 Imagem 1: Da esquerda para a direita, mais ao centro


Paulo Freire Elza ao lado do militante angolano Pepetela,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

acompanhados por outros camaradas. Lobito, Angola, 1976.

Fonte: SPIGOLON, 2014, p. 296.


Atuar em África naquela cronologia era ser aliado da luta pela
descolonização e de todo o ideário que ela significava. Tempos-es-
paços que reuniram pessoas daquelas e de demais partes do mun-
do, representando impactos nos diversos níveis de atuação até a re-
construção de projetos de vida para os brasileiros, exilados ou não.
A epígrafe traz o desejo de romper com “situações-limites” ante
a historicidade africana e o desejo de conhecer as utopias do reali-
zável, como “inéditos viáveis” em narrar o estar no mundo, com o
outro.

Descobrir-te (África) para além dos lugares comuns


Há tempos-espaços em África que vão muito mais além da mí-
tica e reconhecida ancestralidade. Enquanto a utopia4 permanecia
no horizonte, e acontecia com o engajamento militante de Elza e
Paulo Freire definia a segunda fase do exílio brasileiro, circunscrito
na Europa e em África, sendo que a primeira é compreendida pelas 281
Américas e a terceira pelo retorno ao Brasil (SPIGOLON, 2014).

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Nessa segunda fase aponto que a radicalização das sistemati-
zações das propostas político-pedagógicas do casal, é forjada nos
caminhos de África, considerando que as dinâmicas de seus traba-
lhos decorridos das inserções e atuações deles no âmbito daquelas
realidades revelam o alinhamento com os movimentos revolucio-
nários para a libertação nacional e independência das colônias por-
tuguesas entre 1975 até a anistia e o retorno ao Brasil em 1979.
Por detrás deste povo em luta, um partido – o Partido Africano
para Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Por de-
trás deste partido, no princípio, um pequeno grupo, dentre os quais
Amílcar Cabral. Este povo, este partido, este homem, que acabaram
por se confundir, queriam dar origem a uma realidade nova – a
Guiné-Bissau e a Cabo Verde, livres e independentes.

4
O conceito de utopia se ancora em Vázquez (2001); Lefebvre (2008); Galeano (2007),
Pepetela (1997) e Freire (2000), considero como eles que a realidade também é utopia,
já que é a partir do que se vive que se projetam ideais, sonhos, esperanças de um futuro
melhor tecido a partir dos movimentos de transformação dessa realidade.
Imagem 2: Amílcar Cabral sobre a Unidade Nacional entre
Guiné-Bissau e Cabo Verde, o PAIGC, em matéria publicada no
Jornal “Nô Pintcha”, de julho de 1975. Arquivos Históricos Na-
cionais do INEP, em Bissau, Guiné-Bissau.

Fonte: Acervo da pesquisadora.

O projeto de Unidade Nacional integra a luta de libertação a fa-


vor da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, ocorrida no
território guineense e, que se distinguiu da luta nos demais PALOP,
pois, resultou de um processo único, liderado por um partido bi-
nacional, o PAIGC que, como seu próprio nome indica, considerou
tanto o continente quanto o arquipélago, porque sofriam o mesmo
domínio colonial. O PAIGC foi a força política fundamental que, quer
por meios diplomáticos, quer pela luta armada, conquista a inde-
pendência e a emancipação política dos dois países: Guiné e Cabo
Verde.
A partir de 1973 com Guiné-Bissau – a primeira colônia portu-
guesa em África a conseguir oficializar sua independência, com isso
as redes como as dos exilados latino-americanos surgiram ou se
fortaleceram.
Diversos exilados brasileiros fizeram parte dessa rede, através
do envolvimento com os movimentos revolucionários e a implanta-
ção dos primeiros governos de independência. Os processos de re-
construção dos países recém-independentes criaram também um
amplo campo de atuação profissional para os exilados.
Por exemplo, em 1976, o convite oficial do primeiro governo in-
dependente da Guiné-Bissau, através do Comissariado de Educação
e Cultura feito ao Departamento de Educação do Conselho Mundial
de Igreja (CMI) e ao Instituto de Ação Cultura (IDAC) para que Paulo
Freire, Elza e sua equipe fossem contribuir no campo da Educação 283
e, em particular no da Alfabetização de Adultos.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


De lá, eles estendem seu trabalho aos PALOP até 1979. Idas e vin-
das pendulares aos países recém-emancipados a fim de conhecer a
realidade educacional, assessorar projetos e desenvolver formas de
intervenção e militância, no esforço de reconstrução nacional, um
desafio que não pertencia apenas ao seu povo, fazia parte dos que
com eles se comprometiam e ao lado deles lutavam.
Mário Cabral, Comissário do Estado para Educação e Cultura do
primeiro governo independente de Guiné-Bissau traduz este mo-
mento:

Eu vou relembrando Paulo e Elza, o casal e coisas que tiveram


um impacto muito grande na minha existência pessoal, mas
também na própria sociedade guineense, porque em 1976
quando eles vieram cá a primeira vez, havia dois anos prati-
camente que tínhamos conseguido a libertação total do país
[...] estávamos a viver uma época de intensa atividade polí-
tica de instauração da república [...] Começamos a criar nas
zonas que foram se libertando escolas, hospitais, internatos,
a escola piloto [...] Então, nessa luta, chegamos a estatística
oficial de 99, 7 % de analfabetos, não tínhamos professores
qualificados e eu fui mandado para a Educação Nacional [...]
Fizemos pesquisas e vimos que havia um tal de Paulo Frei-
re que era um pedagogo de renome internacional. Eu topei
escrever a ele que se disponibilizou a vir participar, assim
nós recebemos o apoio dele e de Elza, da equipe do IDAC e
do CMI [...] o certo é que conseguimos instalar uma dinâmi-
ca que deu como resultado a criação do Conselho Nacional
da Alfabetização e de lá as campanhas de alfabetização de
adultos [...] E através da Guiné eles tiveram a possibilidade
de trabalhar também em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e
Angola, diríamos nos PALOP [...] Agora fico lembrando o hu-
manismo de Paulo e Elza, eles não eram indiferentes ao nos-
so país e ao nosso povo, porque eles poderiam ter vindo para
trabalhar com a educação e mais nada, mas não, eles viviam
a vida da gente, e com isso conquistaram muitos corações.
(CABRAL, 2013. In: SPIGOLON, 2014, pág. 313)

Imagem 3: Da esquerda para a direita: Mário Cabral, Paulo


Freire e Elza, em matéria publicada no Jornal Nô Pintcha, de
fevereiro de 1976. Arquivos Históricos Nacionais do INEP, em
Bissau, Guiné-Bissau.

Fonte: SPIGOLON, 2014, p. 285.


O que consegui a partir das fontes coletadas5, em sua maioria,
fontes primárias, asseguram que o casal Elza e Paulo Freire traba-
lhou, por exemplo, com assessorias em projetos para Educação e,
em particular de Adultos, com a formação de alfabetizadores para
adultos, com a elaboração de materiais didáticos e na reconstrução
nacional. Em Cabo Verde eles atuaram em duas ilhas: São Vicente e
Santiago e em Guiné-Bissau nas regiões de Bissau, Sedengal, Farim
e Cacheu com setores das Forças Armadas Revolucionárias do Povo
(FARP) e da sociedade civil. Em ambos se deslocavam das capitais
para o interior, muitas vezes em viagens de barco e caminhadas,
onde permaneciam em média de quinze a trinta dias.
Assim, os percursos de Elza e Paulo Freire na luta pela libertação,
revolução e educação que entrecruzaram África podem ser locali-
zados nas inserções político-pedagógicas que se efetivaram pelas
redes relacionais, institucionais e partidárias organizadas por bra-
sileiros, africanos e militantes de outras nacionalidades, tendo em
vista a reconstrução dos países recém-independentes através das
experiências com Educação de modo geral e, em particular da alfa-
betização de adultos, a sua vinculação com o trabalho de conscien-
tização com a leitura da realidade centrada na compreensão crítica
da prática social. A inserção e a atuação deles são características
dessa fase.
Daí se expressa o diálogo estabelecido com os nacionais inde-
pendentes: Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Prínci-
pe, que resultou dentre outros da utilização dos métodos de traba-
lho de Elza e Paulo Freire no sentido subsequente dos princípios
Freirianos e das dinâmicas de ensino-aprendizagem.
O exílio tornou possível lutar em África ao lado dos movimentos
anticolonialistas, isso representa que

5
Realizei pesquisa de campo em Cabo Verde e Guiné-Bissau nos meses de setembro/ou-
tubro de 2013, durante o Doutorado, sob a orientação da Professora Dra. Débora Mazza. A
pesquisa se efetivou nos quadros de estágio doutoral e contou com recursos do Programa
de Bolsas de Mobilidade Internacional na Pós-Graduação 2013 – Santander Universida-
des. A coleta de fontes documentais e não documentais incluiu, por exemplo: instituições
e sujeitos envolvidos com o tema, arquivos públicos, acervos pessoais, mapeamento bi-
bliográfico, entrevistas, etc. Destaco ainda, a centralidade do campo no Projeto de Unida-
de Nacional que representou as bases de atuação para o casal Freire.
A revolução é em si educativa. O camarada Amílcar dizia, “A
luta de libertação é um facto cultural e um fator de cultura”.
[...] Há uma unidade indissolúvel entre a revolução e a edu-
cação. Portanto a unidade entre a revolução e a educação é
tão grande, que quando citamos a primeira estamos a dizer a
segunda e, quando falamos em educação revolucionária logo
é a revolução. (FREIRE, 1977, p. 05)

É a libertação, vinculada a aproximação da Educação em uma


perspectiva Freiriana com a revolução.
Naqueles países a dimensão de humanidade que se despontava
no horizonte, a cultura e a luta social tornam-se referências e “a
educação é identificada como recurso que proporciona reflexões
entre teoria e prática e permite intervir na realidade aonde se inse-
re” (SPIGOLON, 2012, p. 171). O trabalho realizado por Elza e Paulo
Freire vai além do sentido de humanidade que conferimos a eles
hoje.
286
As configurações dos PALOP e os projetos de reconstrução na-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cional identificam o trabalho político-pedagógico e revolucionário


de Elza e Paulo Freire durante o exílio e, é por elas que aconteceram
as inserções iniciais do casal em África.
Na condição de exilado político, Paulo, ao lado de Elza e família,
sistematizou e publicizou obras que o fizeram conhecido. Nomea-
damente com a aproximação do pensamento de Amílcar Cabral,
dos movimentos revolucionários na luta de libertação das colô-
nias portuguesas e das experiências de Educação nos PALOP, Elza
e Paulo Freire passam a integrar o grupo de camaradas composto
por nomes tais como: Luís Cabral, Beatriz e Mário Cabral, Armando
(Miki) Noba e Augusta Henriques em Guiné-Bissau; Aristides Perei-
ra, Carlos Reis, Corsino Tolentino e Lilica Boal em Cabo Verde; Artur
Carlos M. P. dos Santos – Pepetela, Mário de Andrade, Lúcio Lara e
Agostinho Neto em Angola; Maria Amorim, Manuel Pinto da Costa
e Sinfrônio Mendes em São Tomé e Príncipe, os quais, através da
Educação, lutavam para fortalecer os movimentos revolucionários
e os governos de libertação nacional (MAZZA; SPIGOLON, 2018).
Elza e Paulo Freire – camaradas cujo esforço de enfrentar as ad-
versidades das mais variadas naturezas e percorrer as aldeias afri-
canas se demonstra no trabalho e na luta que constitui colaboração
para a libertação de um ser humano, de um povo e de um país, in-
termediado por uma educação revolucionária.

Quero lutar em ti integrada

Há uma relação dialética entre consciência, engajamento e luta


de libertação. A consciência exerce um papel nas suas relações com
os projetos de nação e o povo:

A expressão viva da nação é a consciência do movimento do


conjunto do povo. É a práxis coerente e esclarecida dos ho-
mens e das mulheres. A construção coletiva de um destino,
a assunção de uma responsabilidade à dimensão da história.
287
(FANON, 1979, p. 150-151)

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


As províncias de ultramar contêm do lado Atlântico Guiné e
Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e do Índico Moçambique.
A partir de setembro de 1973 com a independência da Guiné elas
continuam mudando o mapa de África, embora partindo dos mes-
mos ideais de luta pela libertação, cada uma apropriou-se deles
consoante as suas realidades e exigências conjunturais, escrevendo
assim sua própria história.
Os processos de independência foram extremamente diversos e
englobam uma multiplicidade de grupos étnicos, facções políticas,
propostas, estratégias e teorias. Por exemplo: história, identidade
e cultura africanas e esses fenômenos nos Estados pós-coloniais; a
formação e a construção do Estado em África e nas ex-colônias de
Portugal; o pensamento e o legado de Amílcar Cabral; as articula-
ções políticas e atuação do PAIGC; os resultados e a interrupção das
Campanhas de Alfabetização de Adultos; os debates em torno das
cartilhas; os organogramas do Comissariado de Estado para Educa-
ção e Cultura em Guiné-Bissau e do Ministério da Educação e Cultu-
ra de Cabo Verde; a atuação do IDAC; a problemática do bilinguismo
em conflito com a língua crioulo; a separação nacional entre Cabo
Verde e Guiné-Bissau seguida pela independência de Cabo Verde;
os movimentos para libertação de Angola, São Tomé e Príncipe e
Moçambique; os processos para instalação dos primeiros governos
nos países recém-independentes; etc.
Tais questões e outras semelhantes compõem as figuras, as ima-
gens e a realidade africana colonizada na qual se inseriram exilados
políticos brasileiros, Elza e Paulo Freire que integram o grupo par-
ticipante do trabalho de transformação daquelas realidades, tendo
em vista a construção de outras sociedades.
Realidade é uma palavra sempre presente nas propostas Frei-
rianas e de Amílcar Cabral. Uma inserção como essa, deve, basear-
-se na realidade, onde a militância é munição para a luta por coisas
práticas: pela educação, paz e liberdade, por melhores condições de
288 vida e pelo futuro daqueles países; significa a melhoria concreta na
vida das pessoas.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

A militância ensina que os problemas pedagógicos são, sobre-


tudo, ideológicos e políticos, por mais que essa constatação possa
assustar a educadores que falam em fins abstratos da Educação e
sonham com um modelo de ser humano desgarrado das condições
concretas em que o ser humano se acha inserido (FREIRE, 1978).
A complexidade entre os sujeitos e o exílio aponta para as ações
de militância nas quais, uma parte dos brasileiros se engajou e des-
taca a diáspora latino-americana causada pelos golpes de Estado.

A Europa foi o próximo porto da maioria [...] Mais tarde, a


África, outro continente, tão desconhecido e diferente e tão
próximo dos brasileiros. A perspectiva de volta ia se afastan-
do junto com a América Latina, empalidecendo. A necessi-
dade de se adaptar ao novo país de exílio parecia inadiável.
O aprendizado de línguas, a luta pela sobrevivência material
como parte do cotidiano. A militância teve que ser reavaliada
[...] Os exilados se espalhando pelo mundo, por países e con-
tinentes. A diáspora. (ROLLEMBERG, 1999, p. 87)
África naquele momento histórico, reuniu esperança, utopia e
realidade. O que Elza e Paulo Freire viveram em África foi realida-
de, esperança e utopia. O engajamento que os movimentos revolu-
cionários de libertação nacional produziram em Elza e Paulo Freire
representou um compasso de espera com sentido diferente, para o
casal era poder fazer lá, com adultos analfabetos em português, o
que eles tiveram interrompido no Brasil seguido ao golpe de 1964 a
partir de demonstrações do poder autoritário e do aparato repres-
sivo e violento do Estado utilizado pelo regime de governo que es-
tigmatizou brasileiros, em virtude de se tornarem alvo da ditadura
e da repressão, dentre eles, a família Freire: Elza, Paulo e os cinco
filhos: Madalena, Cristina, Fátima, Joaquim e Lutgardes.
A comoção internacional causada pela ampla discussão e di-
vulgação em torno da situação que acontecia nas colônias portu-
guesas de Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe
e Moçambique, fortaleceu no período a configuração de redes que
289
se encontravam nos caminhos de luta, resistência e sobrevivência,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


que eram também caminhos entrecruzados de exílio e militância
em África.
Essa atuação marcou o exílio brasileiro de diversas formas. As
influências, consequências e contribuições se mostram notáveis
através dos percursos de Elza e Paulo Freire e de exilados que con-
centraram e localizaram boa parte de suas inserções

Nesses países, os problemas são os mesmos que na Guiné-


-Bissau, mas com características diferentes e como tal, não
podem ser resolvidos da mesma maneira. [...] todos os cinco
países irmãos, enfrentam problemas similares, como supe-
rar o sistema educacional herdado e criar um novo sistema.
Estão envolvidos nessa luta que é a continuação da luta de
libertação e, até seria uma contradição se algum desses paí-
ses continuasse a preservar o sistema educacional colonia-
lista. Por outro lado, não é possível fazer essa superação por
decreto [...]. Em Angola, estamos a trabalhar, sobretudo ao
nível de pós-alfabetização e na cultura geral e, em são Tomé
e Príncipe, estamos a trabalhar na capacitação de quadros
para alfabetização. Estão muito curiosos com o que se passa
na Guiné, os contatos vão aumentando e o camarada Mário
Cabral pensa [...] realizar um encontro dos cinco países, para
analisar o passado a fim de se chegar a uma conclusão, no
aumento das dinâmicas dos esforços no campo educacional.
(FREIRE, 1977, p. 05)

Imagem 4: Registro jornalístico do trabalho de alfabetização


com adultos nos PALOP realizado por Paulo Freire, Elza Frei-
re e equipe, logo após a independência. Arquivos da Direção
Geral da Alfabetização e Educação de Adultos (DGAEA), em
Praia, Cabo Verde.

290
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Fonte: Acervo da pesquisadora.

África era um território que havia muito por se fazer e a libertação


pela via da Educação e da revolução representava um espaço de
transformação.
O exílio tem sido um tema que cresce em importância, seja em
razão do momento histórico do Brasil, seja segundo Said (2003) em
razão de tantas diásporas produzidas, frutos da violência, das guer-
ras, da incompetência e intransigência de elites nacionais.
Eram tempos da ditadura brasileira e de exílio... eram tempos de
revolução para a libertação nacional e reconstrução de países afri-
canos por meio da educação.
A apropriação do termo “revolução” no texto se refere às confi-
gurações de luta empreendidas por/para mudanças sociais e desta-
ca a Educação. O termo adquire força, sobretudo na segunda fase do
exílio brasileiro (SPIGOLON, 2014), devido a uma conjuntura his-
tórica de acontecimentos. O exílio tornou possível lutar em África,
isso representa que

A revolução é em si educativa. O camarada Amílcar dizia, “A


luta de libertação é um facto cultural e um fator de cultura”.
[...] Há uma unidade indissolúvel entre a revolução e a edu-
cação. Portanto a unidade entre a revolução e a educação é
tão grande, que quando citamos a primeira estamos a dizer a 291
segunda. (FREIRE, 1977, p. 05)

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


É a aproximação da Educação em uma perspectiva Freiriana
com a revolução. E a Educação como fato e ato cultural, portanto
revolucionária. Quando se dá o encontro do casal Elza e Paulo Frei-
re com a luta em África, a Educação assume outra dimensão e se
transforma na luta revolucionária pela libertação.

Não foi por acaso que os camaradas do Círculo de Cultura


que visitamos Elza e eu, ao discutirem sobre a luta, diziam
que “a luta de hoje é a mesma de ontem com algumas dife-
renças. Ontem, diziam eles, com armas nas mãos, buscáva-
mos expulsar o invasor. Hoje, com armas nas mãos, vigilan-
tes, a nossa luta é pela produção para reconstrução de nosso
país”. (FREIRE, 1978, p. 131)

Como nas lutas revolucionárias em África “as pessoas em todo o


mundo podem ser, e o são movidas por ideais de justiça e igualda-
de” (SAID, 2007, p. 29).
É a perspectiva de uma luta que integra outros continentes. E
a prática da liberdade só encontra expressão numa Educação em
que o oprimido tenha condições de reflexivamente, descobrir-se e
conquistar-se como sujeito da sua própria destinação histórica. A
violência dos opressores, que os faz também desumanizados leva
os oprimidos a lutar contra quem os fez sentir menos. A luta pela
humanização só tem sentido quando os oprimidos ao buscarem sua
liberdade e humanidade, que é uma forma de criá-la, conseguem
libertar-se a si e aos opressores, é um processo mediatizado pelo
mundo (FREIRE, 1972).
Tornados independentes e com um rumo próprio, cada país se-
gue nas órbitas de influência geopolítica de conveniência e interes-
ses, tendo em conta suas potencialidades econômicas e estratégias,
suas redes relacionais e políticas. A exclusão social, a miséria e a
violência marcam ainda o panorama dos PALOP, mas não só deles.
292 Nota-se que o encontro com as realidades africanas fez com que
os últimos anos de exílio, fossem igualmente de transição para a
grande parte dos brasileiros. Anos que representaram o início do
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

retorno, lento, gradual e seguro para o Brasil.


Dessa forma, o exílio leva em particular a adesão de Elza e Paulo
Freire à luta libertária e anticolonialista em África através da inser-
ção nos PALOP tornando-os integrantes de grupos revolucionários,
que foi capaz de expandir o alcance do pensamento e da práxis do
casal, fortalecer o caráter humanista das experiências político-pe-
dagógicas e provocar aberturas nas propostas realizadas e pensa-
das por eles. Em África surgem e se reafirmam os camaradas Elza e
Paulo Freire (SPIGOLON, 2014, pág. 344).

É minha esta voz, esta dor, é meu também este brado!

Elza e Paulo Freire vão militar, política e pedagogicamente, nos


trabalhos de Alfabetização com Adultos e nos diversos projetos de
reconstrução nacional.
Por conseguinte, estabelece ainda o encontro com a inevitável
comparação:

Eu e Elza, a minha mulher, estamos trabalhando com os


educadores nacionais desses países. Na mesma perspec-
tiva, na mesma linha de pensamento. Sem pensar ir para
lá como invasores. Ir para lá aprender, discutir. E isso nos
dá alegria. De aprender muito nessas experiências e de po-
der ensinar algo, baseado na prática anterior que tivemos.
(FREIRE, 1976, p. 4-5)

Imagem 5: Fragmento de registro jornalístico com depoi-


mento de Paulo Freire, citando Elza, o IDAC e o trabalho que
estavam a realizar juntamente com os primeiros governos
independentes nas ex-colônias portuguesas em África. Jornal
Nô Pintcha, s/d. Arquivos Históricos Nacionais do INEP, em
Bissau, Guiné-Bissau. 293

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)

Fonte: Acervo da
pesquisadora.
A inserção deles naqueles países e nos movimentos revolucio-
nários faz repensar o que é ser brasileiro e deixa emergir outra
noção do que é ser africano, “que não se refere simplesmente a
eventos históricos ou a componentes de um corpo político patrió-
tico” (BHABHA, 1998, p. 206), que diz respeito somente à história
da libertação nacional, mas aos sentidos que se podem conferir a
essa experiência factual, tomada em toda a sua dimensão coletiva,
individual, material e simbólica.
Como parte dos percursos de Elza e Paulo Freire durante o exílio
brasileiro, destaco que, inicialmente, foram os países com os quais
eles mais se envolveram tanto do ponto de vista quantitativo quanto
qualitativo; segundo Guiné-Bissau foi a porta de entrada em África
convidando o casal a se inserir no continente africano para assesso-
rar pedagogicamente os movimentos revolucionários de libertação
nacional e a implantação dos primeiros governos independentes;
terceiro dentro dos PALOP foi com eles que o casal se comprometeu
294
por mais tempo e em mais lugares.
Em busca dos vestígios do trabalho de Elza e Paulo Freire lado a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

lado em tempos e lugares primeiros da construção da Pátria sonha-


da por Amílcar Cabral, pude6 nas memórias e histórias os encon-
trar, em cada povo e país senti-los, é a certeza de que lá estiveram
também um dia.
E quem lá esteve uma vez não pode deixar de lá voltar, pois lá
se guardam em parte o encontro de Elza e Paulo Freire e outros
exilados com África e com os movimentos de independência, com
pensamentos e práxis da Educação de Adultos aliadas a libertação
e a revolução.

E que todos digam...

Ontem, na luta pela libertação e os processos de revolução; de-


pois a reconstrução nacional e os projetos de Educação; hoje, o ca-
sal camarada Elza e Paulo Freire seguem vivos na utopia de socie-
6
Consultar especificamente o capítulo IV – Itinerários do exílio: inserções político-peda-
gógicas em África, de SPIGOLON (2014, p. 285-354).
dades que queremos tornar possível. Cenários, tempos e lugares de
África durante o exílio brasileiro.
Destarte o texto versou na elaboração condensada acerca da mi-
litância de brasileiros exilados a partir do Golpe de 1964 que depôs
o Governo João Goulart e instaurou a ditadura. Sua caracterização
se situa nos primeiros governos independentes das ex-colônias
portuguesas entrecruzados pelas inserções político-pedagógicas
de Elza e Paulo Freire nos quadros dos PALOP.
Para Elza, Paulo Freire e outros exilados fazer parte desses qua-
dros era ser partícipe no campo da Educação, fortalecer posturas
humanitárias, trabalhar nos processos de emancipação e na tenta-
tiva de eliminação dos imperialismos, enfim, era um jeito de atin-
gir o totalitarismo de Estado que existia no Brasil e o colonialismo
existente pelo mundo.
Percebe-se que sob a condição de exilados políticos, Elza e Paulo
Freire participam das lutas nacionais, adentram processos de liber- 295
tação, e juntos conseguem sistematizar uma proposta mediada por

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


educação e revolução, e o ápice se dá quando passam a integrar os
primeiros governos das colônias portuguesas recém-independen-
tes em África.
Durante os Círculos de Cultura, Elza e Paulo Freire vão alinhar
suas experiências a esses campos de luta com forte caráter huma-
nista, transformando o que vinham desenvolvendo pelas Américas
e Europa pós-64 e já tinham desenvolvido no Brasil pré-64. Em to-
das as estâncias de atuação foi um trabalho de vanguarda realizado
conjuntamente por eles.
Ressalto, destacadamente a educação como possibilidade genuí-
na de se inserir naquela realidade, de trabalhar com e por aquela
população. Elza e Paulo ajudam na libertação de consciências, paí-
ses e povos; trazem possibilidades de virem a ser livres no exílio,
em uma terra que não é deles, mas que apresenta sentidos, aproxi-
mações e singularidades com o seu país, o Brasil.
Expressivo trabalho representou um divisor nos percursos de
Elza e Paulo Freire que ao circularem diasporicamente sob a con-
dição de exilados políticos estabeleceram vínculos construídos por
países e povos onde estiveram, revelando o engajamento compro-
missado, com qualidade, quantidade e militância, na dimensão po-
lítica e pedagógica das experiências que se tornaram possíveis pelo
caráter revolucionário e amoroso de ambos e, em cuja prática se
envolveram, aprendendo e ensinando.
E o fizeram através de experiências que demandaram esforços
de mobilização e de participação comovente, vinculando-se na luta
contra o analfabetismo adulto que vem acompanhada de memória
camarada

Conheci Paulo e Elza nos primeiros anos da independência


e me lembro dos dois de mão na mão [...] estávamos saindo
do Ministério da Educação a hora do almoço [...] de sandálias
os dois, Paulo com aquela barba e o olhar profundo [...] Elza
extraordinária e discreta, ela era a pedagoga, a professora
[...] eles irradiavam luz. [...] lembro-me do Paulo sempre di-
zendo, a Elza, a Elza e nós fomos, nós fizemos [...] era um ca-
296 sal amoroso [...] existe o amor, eu vi isto com Paulo e a Elza.
(HENRIQUES apud SPIGOLON, 2014, p. 346)
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Chamam-se entre si “camaradas” e, esta tratativa na forma de


palavra não aparece como uma sobrevivência histórica, ou figura
apenas como uma espécie de linguagem revolucionária, mas sim
“camarada” se afirma como a expressão viva de uma amizade e de
uma solidariedade reais. No passado, herança do tempo da luta de
libertação; no presente continua viva e representa utopia.
Dentre os ideais em comum, os camaradas pautavam que por
meio da educação libertária se consolidaria a independência e se
formaria a soberania dos novos países.
A África está na origem do mundo, em todos nós, com terras e
povos que se encontram no meio do mapa do mundo, do atlas da
vida. Pode, portanto, a África ser um suporte epistemológico para
as lutas pela libertação, revolução e educação dos que se inseriram
em projetos de reconstrução nacional a ponto de reconhecer os
conselhos de quem, africanamente, é o “irmão mais velho7”?
7
Expressão do filósofo moçambicano José Castiano (2020) ao adotar uma desobediência
epistemológica perante a histórica relação entre a filosofia africana e a filosofia ocidental
As possibilidades e as condições para o “aconselhamento” mú-
tuo, se dão porque, entre os processos de inserção político-peda-
gógica do casal Elza e Paulo Freire e aquelas realidades africanas
não houve uma relação de dominação, uma condição nem colonial
e nem pós-colonial. Esta relação de gênese de não-dominação pos-
sibilitou diálogos emancipatórios intermediados pela educação e
pautas comuns de engajamento – identifico a liberdade, a justiça
social e a reconciliação com as nossas historicidades.
A liberdade porque o retorno aos Estados autoritários e auto-
cratas está à espreita ou já em curso em distintos países; A justiça
social porque, como resultado do neoliberalismo que afeta tanto
África como ainda mais a América Latina, as desigualdades entre os
que muito têm e os que nada possuem é cada vez maior; e, por fim,
a reconciliação devido ao aumento da violência física e psicológica
cada vez mais presente em ambos continentes.
É a África que canta, e grita, e chora! E ocupou lugar de desta- 297
que nos itinerários do referido período, cujo mapeamento trouxe

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


conjunturas e dimensões da inserção de Elza e Paulo Freire junto
aos PALOP, colocando-os em contato direto com outros interlocuto-
res, camaradas e revolucionários, bem como com realidades desco-
nhecidas. Tal fato os levou a repensar conceitos e a pensar práticas
e propostas político-pedagógicas a partir daquelas experiências.
Com isso, temos por um lado que o casal Elza e Paulo Freire deli-
mitam nova fase do exílio brasileiro, e por outro que dão origem a
outra fase na práxis e no pensamento Freiriano.

REFERÊNCIAS

AUGUSTA HENRIQUES. Depoimento, 2013, Bissau, Guiné-Bis-


sau. Entrevista concedida à pesquisadora em 27 de setembro.
In: SPIGOLON, Nima I. As noites da ditadura e os dias de utopia
– o exílio, a educação e os percursos de Elza Freire nos anos
de 1964 a 1979. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de
Campinas, 2014.
(no sentido de compreender para afastar-se).
MÁRIO CABRAL. Depoimento, 2013, Bissau, Guiné-Bissau.
Entrevista concedida à pesquisadora em 07 de outubro. In:
SPIGOLON, Nima I. As noites da ditadura e os dias de utopia
– o exílio, a educação e os percursos de Elza Freire nos anos
de 1964 a 1979. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de
Campinas, 2014.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação


do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 1998.

BRUNER, Jerome. Atos de significação. Porto Alegre: Artmed,


298
1997.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta. In: Obras


escolhidas de Amílcar Cabral. Organização: Mario de Andrade.
Lisboa: Empresa de Publicidade Seara Nova, 1976.

CASTIANO, José P. Pode, o “irmão mais velho”, aconselhar? In:


Brasi(s) & África(s): educação plural, culturas de resistência e
emancipações humanas. SPIGOLON, Nima I. (organizadora).
Curitiba: Editora CRV, 2020. Prefácio.

DAVIDSON, Basil. A libertação da Guiné: aspectos de uma revo-


lução africana. Tradução: Antônio Neves-Pedro. Lisboa: Livra-
ria Sá da Costa Editora, 1975.

DAVIDSON, Basil. A política da luta armada: libertação nacio-


nal nas colônias africanas de Portugal. Tradução: Fernanda
Pinto Rodrigues. Lisboa: Editora Caminho, 1979.
DUBAR, Claude. A crise das identidades: a interpretação de
uma mutação. São Paulo: EDUSP, 2009.

ÉVORA, Roselma. Cabo Verde: abertura política e a transição


para a democracia. Cidade da Praia: Spleen Edições, 2004.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Tradução: José Lau-


rênio de Melo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1979.

FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Tradução:


Isabel Pascoal. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Porto: Afrontamento,


1972. 299

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


FREIRE, Paulo. Paulo Freire, um educador ao serviço da nova
escola: “Um centro democrático com o professor e o aluno enga-
jados na realização de objetivos sociais”. Entrevista. In: Jornal
“Nô Pintcha”, Bissau, Guiné-Bissau, ed. 21 out 1976, p. 04-05.

FREIRE, Paulo. Há uma unidade indissolúvel entre a revolu-


ção e a educação. Entrevista. In: Jornal “Nô Pintcha”, Bissau,
Guiné-Bissau, ed. 09 abril 1977, p. 05.

FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Bissau: registros de uma expe-


riência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e


outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre:
L&PM, 2007.

HUCO MONTEIRO. Depoimento, 2013, Bissau, Guiné-Bissau.


Entrevista concedida à pesquisadora em 02 de outubro.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da ex-


periência. In: Revista Brasileira de Educação nº 19, p. 20-28,
2002. Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/abstract/?lan-
g=pt. Acesso em: 27 out 2021.

LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG,


2008.
300
LOPES, Carlos. Amílcar Cabral: uma inspiração para os dias
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de hoje. In: Desafios contemporâneos da África: o legado de


Amílcar Cabral. Organização: Carlos Lopes. São Paulo: Editora
Unesp, 2012.

MÁRIO CABRAL. Depoimento, 2013, Bissau, Guiné-Bissau.


Entrevista concedida à pesquisadora em 07 de outubro.

MAZZA, Débora; SPIGOLON, Nima I. Educação, exílio e revo-


lução: o camarada Paulo Freire. Revista Brasileira de Pesquisa
(Auto)biográfica, v. 3, n. 7, p. 203-220, 26 abr. 2018. Dispo-
nível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/
article/view/4462. Acesso em: 27 out 2021.

PEPETELA [PESTANA, Artur Carlos Maurício]. A geração da


utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1997.
ROLLEMBERG, Denise. Exílio entre raízes e radares. Rio de Ja-
neiro: Editora Record, 1999.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São


Paulo: Cia. das Letras, 2003.

SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

SOUSA, Noémia de. Quero conhecer-te África. Sangue Negro.


São Paulo: Editora Kapulana, 2016, p. 134-135.

SPIGOLON, Nima I. Fases do exílio, sob as faces do tempo. Pro-


cessos da pesquisa sobre Elza Freire. In: Revista do EDICC, v. 1,
nº 1, p. 165-173, 2012. Campinas: IEL/UNICAMP. Disponível 301
em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/edicc/index.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Acesso em: 27 out 2021.

SPIGOLON, Nima I. Pedagogia da Convivência: Elza Freire –


uma vida que faz Educação. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) – Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2009.

SPIGOLON, Nima I. As noites da ditadura e os dias de utopia


– o exílio, a educação e os percursos de Elza Freire nos anos
de 1964 a 1979. Tese (Doutorado em Educação). Universidade
Estadual de Campinas, 2014.

TARROW, Sidney. O poder em movimento: movimentos sociais e


confronto político. Petrópolis: Vozes, 2009.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre a realidade e a utopia: en-


saios sobre política, moral e socialismo. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2001.
RESUMO
O capítulo sistematiza parte dos resultados de pesquisa acer-
ca dos percursos de Paulo Freire e de Elza Freire, aqui circuns-
critos ao período de 1976 a 1979, advindo das configurações
do Golpe de 1964 no Brasil e a instauração da ditadura Mili-
tar. O foco é a inserção político-pedagógica do casal junto aos
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP para
atuação nos projetos de reconstrução nacional. Sua caracteri-
zação se dá no âmbito da militância que envolveu exilados de
várias partes do mundo, inclusive brasileiros quando dos pri-
meiros governos independentes nas ex-colônias portuguesas
em África. O objetivo é identificar a radicalização da proposta
humanizadora Freireana em contato com o pensamento de
esquerda anticolonialista e a militância propriamente revo-
lucionária e libertária no campo da educação a partir dessas
experiências, embora esse processo tenha tido início quando
302
eles - Elza e Paulo Freire - passam a viver sob a condição de
exilados políticos. Considera-se forma de resistência e espe-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

rança, o legado, a vida e a obra de Paulo Freire de modo geral,


e de modo particular, ao lado de Elza. E ante a utopia e a dis-
topia, o casal Freire permanece referência viva na memória
dos povos africanos e das sociedades pelo mundo que lutam
pela extinção das desigualdades sociais, por condições dignas
e só serão anistiados politicamente quando não houver mais
nenhum adulto analfabeto ou semianalfabeto em um mundo
onde seja possível amar.
Palavras-chave: Exílio brasileiro, PALOP, Elza Freire, Paulo
Freire, Camarada.

ABSTRACT
The chapter arranges part of the research results concerning
Paulo Freire and Elza Freire’s paths, here restricted from
1976 to 1979 period, deriving from the 1964 coupe in Brazil
and the Military dictatorship installation. The objective is
the political pedagogical insertion of the couple in the Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa (African Countries
of Oficial Portuguese Language) - PALOP to act in national
reconstruction projects. Its characterization is given in
the militancy scope which involved the various deportees
from several parts of the world, besides Brazilians which
were part of the first independent governments of the first
former Portuguese colonies in Africa. The aim is to identify
the radicalization of the humanized so called Freireana
proposal in connection with the left anti colonialism thought
and the truly revolutionary and libertarian militancy in the
education field from these experiences, although this process
was initiated when they, Elza and Paulo Freire, begin living
under the political exile condition. One may consider a form
resistance and hope the legacy, life and work of Paulo Freire
in general, and particularly, by Elza’s side. And in the presence
of the utopia and dystopia, the Freire couple becomes the
living presence in the memory of African peoples and of 303
the societies worldwide; that fight to exterminate the social

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


inequalities, for more dignified conditions which will only be
politically amnestied when there is no longer any illiterate or
semiliterate adults in a world where it will be possible to love.
Keywords: Brazilian Exile, PALOP, Elza Freire, Paulo Freire,
Comrade.

SOBRE A AUTORA
Professora, pedagoga e escritora; fez Mestrado (2009) e Dou-
torado (2014) na Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP), instituição em que hoje trabalha, na Faculdade de
Educação, atuando na graduação e na pós-graduação. Desde
2006 é estudiosa da educadora Elza Freire, sobre a qual foi a
primeira pesquisadora, e sobre a qual realiza no momento –
na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – pós-doutora-
mento. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Edu-
cação de Jovens e Adultos (GEPEJA) e do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Políticas Públicas, Educação e Sociedade.
ENSINO E APRENDIZAGEM DIALÓGICA.
A PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE:
USOS E DISSEMINAÇÃO1

Staffan Selander2

Introdução

Este artigo tem como foco algumas das ideias pedagógicas de


Paulo Freire e como essas ideias foram transformadas e usadas na
305
Suécia durante os anos 1970 (SELANDER, 1984). Naquele momen-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


to, as principais ideias em circulação giravam em torno de temas
como “consciência”, “mudança” e “revolução política e/ou cultural”.
Acho que ninguém questionaria o caráter revolucionário da peda-
gogia de Paulo Freire, mas a pergunta permanece: em que sentido
ela foi revolucionária (ver também BROWN, 1975; GADOTTI, 1996;
MACKIE, 1980; MAZZA & SPIGOLON, 2018)? Esta pergunta acar-
reta outra: como podemos compreender um determinado perío-
do histórico, mais de meio século depois? Ou, em outras palavras:
podemos - e em caso afirmativo, como – descascar as camadas de
tempo que envolvem o pensamento pedagógico de Freire e chegar
ao seu âmago?
Em geral, essas questões podem ser examinadas tanto em ter-
mos de memórias - como por exemplo, textos, artefatos, edifícios ou
música - quanto em termos de lembrança - as constantes reflexões
sobre situações, conflitos e pontos de vista. Nós lembramos coisas
1
Tradução de Yasmim Camardelli e revisão da tradução por Ugo Rivetti. Nota da tradução:
para as citações ou referências a textos que já possuem uma versão para o português,
utilizamos a tradução já disponível.
2
PhD, Professor Emeritus. Dept. of Computer and Systems Sciences, Stockholm University.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4078-5458. E-mail: staffan.selander@dsv.su.se
e processos através da transformação constante dos seus “signifi-
cados”. Lembrar é uma atividade que está relacionada com “como
era”, mas também com “o tipo de memórias que importam hoje”,
bem como com a “responsabilidade” - o que queremos dizer às
futuras gerações (RICŒUR, 2005). Portanto, para sermos capazes
de interpretar um determinado período, precisamos refletir sobre
os enquadramentos históricos e teóricos. Isso é importante para o
campo educacional, onde atualmente interesses/pontos de vista
políticos e ideológicos, a-históricos e normativos guiam e orientam
grande parte da discussão (e às vezes também da pesquisa) sobre
educação e aprendizagem.

Um pano de fundo - década de 1960

Começarei descrevendo brevemente algumas características da


306 década de 1960 no mundo em geral, mas, também, particularmente
na Suécia e no Brasil. Peço, antecipadamente, desculpas ao leitor se,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ao longo da minha análise, deixei de fora alguns aspectos que pode-


riam ser relevantes para pensar as questões centrais desse texto3.

O mundo

O ano de 1968 se destaca como um símbolo das profundas mu-


danças que ocorreram no mundo após a 2ª Guerra Mundial. Se a
década de 1950, nos países industrializados ocidentais, pode ser
caracterizada pela reconstrução das sociedades após a guerra, a dé-
cada de 1960 poderia ser caracterizada pelo surgimento de novas
gerações formulando novas questões e pelo surgimento de novas
áreas de interesse cultural e político: Os Beatles em vez de Elvis
Presley, novas performances artísticas e musicais (como quando
uma mulher, vestida apenas de celofane, tocava violoncelo; ou os
3
É difícil evitar a influência de contextos geopolíticos quando se tenta interpretar um
determinado momento histórico. Por exemplo: enquanto um livro didático sueco
mencionou o período após 1976 no Vietnã como «o tempo depois da guerra», um livro
didático de Singapura escreveu sobre o mesmo período de uma forma mais ativa, como “a
formação de estados-nação” (DANIELSSON; SELANDER, 2021).
concertos de jazz em igrejas), nova arquitetura de massa, novos
móveis e materiais (por exemplo, plástico), as novas saias curtas
(ou até minissaias) que passaram a ser consideradas alta costura,
assim como os beatniks e a contra-cultura hippie (como, por exem-
plo, os festivais de Woodstock e as ideias de uma vida livre e cons-
ciente). Para além disso, os protestos contra a bomba atômica no
início da década de 1960, assim como, posteriormente, protestos
políticos contra a guerra do Vietnã, contribuíram para a agitação
política do período.
Em 1968, estudantes e trabalhadores começaram uma greve e
marcharam por Paris - inspirados por uma mistura de análises polí-
tico-econômicas marxistas e ideias como imaginação no poder (que
podemos encontrar nos novos filmes franceses que estavam sendo
produzidos na época por diretores como Chris Marker e Jean-Luc
Godard). Na China, em 1966, Mao Tsé-Tung deu início à Revolução
Cultural, que teve seu auge em 1969 e terminou em 1976 com a 307
morte de Mao. Ideias como “é mais importante ser vermelho do

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


que ser um especialista” foram disseminadas pelo “pequeno livro
vermelho de Mao”, leitura obrigatória na China. As “revoluções”
francesa e chinesa formaram grande parte do pensamento no final
dos anos 1960 e início dos anos 1970, principalmente no contexto
europeu. Em suma, podemos dizer que as idéias de harmonia social
e progresso pacífico, que dominaram a década de 1950, se transfor-
maram em idéias de conflito e revolução na década de 1960.

Suécia

A radicalização política, mencionada anteriormente, também


exerceu uma forte influência na Suécia. Houve greves em portos e
minas, e manifestações a respeito da liberdade do ensino superior
e também contra a Guerra do Vietnã. Em Estocolmo, em maio de
1968, os estudantes ocuparam o Student Union Building (Kårhuso-
ckupationen). Tal ato teve um imenso significado simbólico, embora
a ocupação em si tenha durado apenas alguns dias. Os alunos, jun-
tamente com trabalhadores e membros da classe média, que atual-
mente é mais endinheirada, exigiam também igualdade social e de
gênero, o que, entre outras coisas, levou à ampliação das creches
públicas (posteriormente transformadas em pré-escolas), para que
as mulheres pudessem ter uma chance igual de entrar no merca-
do de trabalho. Na Suécia, a radicalização do movimento teve como
foco principal o crescente número de estudantes que ingressavam
nas universidades.

Brasil

No Brasil, a situação era parcialmente diferente. Em termos eco-


nômicos, o país não andava bem. O Golpe de estado no Brasil de
1964 - que terminou em 1985 - também levou a uma instabilidade
política muito maior. Demonstrar insatisfação e protestar era mais
perigoso do que nos países europeus, e muitos radicais optaram por
308
fugir (emigrar) para a Europa, Canadá e Estados Unidos. O Nordes-
te do Brasil era dominado por grandes propriedades monoculturais
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

com mandioca e cana-de-açúcar. Nesta região árida (Terra da Seca)


a população era predominantemente rural, pobre e sem instrução,
sendo tambem um foco de diferentes tipos de resistência: tanto em
termos de ligas camponesas (JULIÃO, 1972) quanto de Radicalismo
Católico (com o Bispo socialmente ativo dom Héldor Câmara; DE
KADT, 1970). Voltaremos a esse aspecto mais tarde.

O trabalho pedagógico de Freire

Paulo Freire, que morava em Recife, no Nordeste do Brasil, e tra-


balhava com questões educacionais, desenvolveu um novo méto-
do de alfabetização. No entanto, em seu trabalho, ele não apenas
enfatizou a técnica da leitura; ele também tinha como base a ideia
de que o texto é um meio para conscientização. Pois o texto pode
ajudar a aprimorar a compreensão sobre as condições econômicas
e sociais e desenvolver as capacidades para transformar o mundo.
Nesse sentido, dar nomes às coisas e comunicar-se são habilidades
tão importantes quanto simplemente conseguir ler as palavras
(FREIRE 1972b, 1974, 1975, 1978, 2007).
Devido à situação política, Freire mudou-se do Brasil, primeiro
para o Chile e depois para os EUA, onde trabalhou por um ano em
Harvard. Depois disso, trabalhou em Genebra com o Conselho Mun-
dial de Igrejas4, e também com alfabetização na Guiné-Bissau, antes
de decidir voltar para o Brasil. Podemos perceber que Freire, para
além de seu trabalho pedagógico prático e teórico, também tinha
um interesse ecumênico.

Alfabetização

A ideia fundamental de Freire sobre a leitura era que as palavras


poderiam ser construídas a partir de elementos linguísticos bási-
cos. Por exemplo, a partir dos elementos fa-fe-fi-fo-fu, va-ve-vi-vo-
-vu e la-le-li-lo-lu, pode-se construir novas palavras como “fava” e 309
“Favela”. Ao fazer isso, torna-se possível também discutir agricultu-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ra, recursos hídricos e condições de vida. Portanto, era importante
encontrar as “palavras geradoras” que poderiam servir tanto como
base para “ler” quanto para “dar nome às coisas”. Isso pode ser feito
por meio de: (a) discussões com o grupo de participantes; (b) es-
colher palavras generativas com base em sua riqueza fonética (das
palavras mais simples às mais complexas), bem como em sua rele-
vância social, cultural e política; (c) “codificar” ou relacionar estas
palavras com a situação local e a experiencia dos participantes, pos-
sibilitando relacioná-las com as condições regionais e nacionais;
(d) criar um cronograma para organizar e coordenar o trabalho;
e (e) preparar “fichas de leitura” tendo como base as palavras ge-
radoras (FREIRE, 1975, p. 92f). Posteriormente, Freire descreveu
como é possível usar ilustrações para iniciar as discussões sobre
natureza e cultura ou, por exemplo, sobre quais ações poderiam ser
tomadas para transformar as condições de vida dos participantes

4
Conheci Paulo Freire quando o entrevistei em Genebra, em 1976 (SELANDER, 1976).
Depois disso, eu o encontrei mais algumas vezes quando ele visitou a Universidade de
Estocolmo.
(MACKIE, 1980, p. 63). No entanto, também podemos notar várias
discussões críticas sobre o “uso excessivo” ou “mau uso” das idéias
de Freire em diferentes contextos (ver, por exemplo, KIDD; KUMAR,
1981; SELANDER, 1984).

Filosofia pedagógica

Freire utilizou o termo conscientização (atividades conscientiza-


doras) para descrever o processo de tomada de consciência sobre
mundo e de reconhecimento da nossa capacidade de transformá-
-lo. Ele distinguiu entre três tipos diferentes de consciência: cons-
ciência semi-intransitiva (condição passiva), transitiva (baseada no
pensamento mágico ou ingênuo) e transitiva crítica. Para ele, era
preciso romper com “a cultura do silêncio”, mas, também, evitar
que essas atividades conscientizadoras fossem sequestradas por
310 fanáticos políticos (FREIRE, 1975, p. 60). Porém, em 1979, ele afir-
mou que havia parado de usar a palavra “conscientização” porque
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

o significado do termo se perdeu tanto na América Latina como nos


Estados Unidos.
A ideia de “diálogo”, muito presente na obra de Freire, parece
ter sido inspirada pela teologia cristã e pelo filósofo Karl Jaspers
(FREIRE, 1972b, p. 88). Freire afirmou que, antes de mais nada, o
diálogo deve ser feito com, e não para, os participantes. Uma con-
dição sine qua non para o diálogo é “amar” e “acreditar” no homem,
assim como “ ter esperança” (FREIRE, 1972b, p. 91). Esse ponto de
vista está alicerçado na compreensão da “imperfeição” do ser hu-
mano. Por fim, um verdadeiro diálogo está alicerçado no empre-
go mútuo de ”pensamento crítico” com o objetivo de transformar a
realidade, não o ser humano (FREIRE, 1972b, p. 96).
Um terceiro conceito central era “práxis”, a combinação de “refle-
xão” e “ação”: “A prática está compreendida nas situações concretas
que são codificadas para serem submetidas à análise critica...[para]
repensar a prática anterior” (FREIRE, 1972a, p. 36).
Para mim, parece que Freire está engajado na mudança social,
mas principalmente em termos de uma revolução “cultural”, não
“política” (diferente da revolução cultural chinesa que, na verdade,
foi política!). Morando no Nordeste do Brasil (em Pernambuco),
Freire conhecia bem os movimentos católicos radicais de mudança
cultural e social e seus diferentes programas de alfabetização (DE
KADT, 1970). Na verdade, ele chegou a dizer que “quando conheci
Marx, continuei a encontrar Cristo nas esquinas das ruas – quando
me encontrava com as pessoas” (MACKIE, 1980, p. 126). Em minha
opinião, Freire foi antes de tudo um humanista em seu sentido mais
profundo. Ele estava interessado em desenvolver o pensamento crí-
tico das pessoas (educação para a liberdade cultural) e torná-las
mais aptas a se engajar na prática, na mudança de suas condições
de vida; ele não fazia parte de uma esquerda política interessada
em uma agenda política revolucionária.

311
O interesse de Freire e a legitimidade na Suécia

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Na Suécia, Freire se tornou muito popular no final dos anos 1970
e início dos anos 1980. Como disse no início, achei isso muito sur-
preendente. Algum tempo depois de ter estado no Brasil (em 1975)
para estudar o MOBRAL (Programa Estadual de Alfabetização) e se-
guir as pegadas de Freire no Brasil, me interessei em acompanhar o
desenvolvimento do seu discurso na Suécia.

A introdução de Freire na Suécia - a conexão ecumênica

Freire foi apresentado na Suécia pela editora Gummessons, na


época propriedade da Associação Missionária Sueca. Walter Per-
sson, um dos editores da Gummessons, tinha um forte interesse
ecumênico. Ele conheceu Freire e foi inspirado por seu pensamen-
to pedagógico (PERNEMAN; PERSSON, 1974). Seu primeiro livro
publicado na Suécia foi a Pedagogia do Oprimido, em 1972. Isso
significa que, mesmo antes de conhecermos mais sobre seu traba-
lho prático e pedagógico, suas ideias mais gerais já estavam sendo
discutidas aqui. Mais tarde, Jan-Erik Perneman (que trabalhou com
Walter Persson) também escreveu sua dissertação inspirada no
pensamento pedagógico de Freire (PERNEMAN, 1977). Em suma,
como Freire tinha uma base teológica católica radical e havia tra-
balhado em Genebra, ele tinha uma forte legitimidade de cunho
ecumênico na Suécia.

A alfabetização de adultos

Na Suécia, a alfabetização tinha se tornado um problema. No que


diz respeito ao programa de alfabetização de adultos (ALFAVUX,
1975), o Conselho Nacional de Educação teve como base o pensa-
mento pedagógico de Freire, e enfatizou, especialmente, sua visada
humanista. No entanto, por ser também um programa prático, era
312 necessário uma metodologia mais concreta. Curiosamente, aqui a
ALFAVUX recomendou a metodologia do programa brasileiro de al-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

fabetização de adultos MOBRAL (O Movimento Brasileiro de Alfabe-


tização; UNESCO, 1975), iniciado durante a ditadura. Quando per-
guntei a Harry Hedman (que trabalhava com uma associação cristã
de educação de adultos e com o secretário da Comissão) sobre isso,
ele achou um pouco estranho (SELANDER, 1984, p. 146f). Em suma,
apesar desse erro metodológico, a obra de Freire teve legitimidade
pedagógica, tanto teórica quanto prática, nesse programa voltado
para analfabetos ou pessoas com baixa escolaridade na Suécia (prin-
cipalmente imigrantes, membros do povo Romani e viajantes).

Pré-escolas e escolas suecas

A Comissão para o desenvolvimento de uma nova creche (Bar-


nstugeutredningen) (SOU, 1975, p. 67) mudou de direção ao longo
do tempo. A Comissão começou tendo como base a pesquisa com-
portamental, mas acabou promovendo aspectos mais sociais do
cuidado com a criança, tais como a noção de uma “família esten-
dida” em termos de uma dialog-pedagogik (pedagogia dialógica).
Nesse trabalho, a Comissão se inspirou no pensamento pedagó-
gico de Paulo Freire, enfatizando que as crianças também criam
cultura e fazem história (SCHYL-BJURMAN; STRÖMBERG-LIND,
1977; SOU, 1975: 67).
O debate e as reformas da educação sueca foram orientados pela
noção de “educação social” (SOU, 1974, p. 53) e (de acordo com o
secretário Sven-Åke Johansson), uma pedagogia de orientação dialó-
gica poderia se opor ao pensamento educacional-tecnológico domi-
nante (SELANDER, 1984, p. 141). No entanto, isso não significa que a
influência de Freire, neste caso, tenha sido tão relevante, uma vez que
esta Comissão estava voltada principalmente para questões organi-
zacionais. No entanto, para concluir, podemos dizer que a pedagogia
freireana também ganhou legitimidade prática e ideológica.

Universidades suecas 313

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Nosso último exemplo do trabalho de Freire diz respeito a cursos
e seminários universitários. Ele se tornou popular não apenas em
Estocolmo (onde Freire esteve várias vezes). Parece que sua visita
a Harvard e seu livro Pedagogia do Oprimido fundamentaram sua
legitimidade teórica. Um dos pesquisadores da Universidade de
Estocolmo disse que “Freire foi uma síntese do que pensávamos,
mas ainda não tínhamos formulado” (SELANDER, 1984, p. 152). Na
minha interpretação, essa afirmação está relacionada com o senti-
mento de mudança típico da época, bem como ao interesse a res-
peito do papel que as condições culturais e sociais representavam
para educação. Em conclusão, Freire ganhou legitimidade política
(o espírito de 68) e teórica nas universidades.

Sobre a pedagogia dialógica hoje

Descrevi como o trabalho de Freire foi influente em diferentes


áreas na Suécia, e de diferentes maneiras. Parecia que cada um po-
deria esculpir “seu próprio Freire” e associá-lo aos seus próprios
interesses: em círculos de estudo ecumênicos ou programas de al-
fabetização de adultos, bem como em pré-escolas, escolas ou uni-
versidades. Assim, a teia pedagógica inspirada em Freire parecia
forte na época. No entanto, uma vez que não havia uma base sóli-
da neste novo contexto, não foi surpreendente que a influência de
Freire tenha desaparecido rapidamente da cena sueca depois de
alguns anos
Isso também abre a questão: o que é mais importante, uma pe-
dagogia como tal, ou as circunstâncias sociais para a implementa-
ção desta? Qualquer que fosse a resposta, poderíamos dizer que
uma pedagogia não pode ser “transferida” - como um projeto - para
um novo contexto. É mais uma questão de tradução, onde algumas
partes serão importantes, mas outras serão colocadas em segundo
plano. Diferentes condições culturais e sociais, novos enquadra-
mentos organizacionais, diferentes tecnologias e outras tradições
314
epistêmicas dominantes afetarão como uma pedagogia específica
será entendida e aplicada (SELANDER, 2018). No entanto, isso não
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

significa que não possamos buscar o significado mais profundo do


pensamento pedagógico a partir de um trabalho interpretativo ins-
pirado teoricamente.
Diante desse pano de fundo, poderíamos dizer que a pedagogia
de Freire ainda é relevante? Na minha opinião, sim!5 Acredito que
o que podemos aprender de mais valioso com o caso sueco é: (a)
estar ciente do contexto histórico, do enquadramento sociocultu-
ral e político (por exemplo, KALLÓS, 1978); (b) compreender que
a aprendizagem não é apenas uma empreitada individual, mas
também uma prática social (KRESS et al., 2021); e (c) compreen-
der também que as novas tecnologias globais e digitais (Inteligên-
cia Artificial, jogos e programas de simulação, e fontes distribuídas
de informação, etc.) mudam as condições de aprendizagem - bem
como impõem a necessidade de novos modelos de aprendizagem
(BROOKS et al., 2021; BJÖRKLUND; SELANDER, 2022).

5
Conferir TORRES et al., 2008; bem como o número especial da revista Viver, Mente &
Cerebro, 2005.
Isso não significa que possamos, ou devamos, voltar ao pensa-
mento pedagógico dos anos 1960. Pelo contrário, temos que desen-
volver a ideia de relações dialógicas, para que as pessoas aprendam
a “dar nome ao mundo”, aprendam a colaborar e desenvolvam capa-
cidades para agir no nosso mundo contemporâneo, de forma a res-
ponder às novas exigências futuras. E, justamente por isso, a obra
de Paulo Freire ainda pode ser uma fonte de inspiração.

REFERÊNCIAS

ALFAVUX. Alfabetiseringsundervisning I Sverige. Grundläg-


gande utbildning för vuxna som fått ofullständig eller ingen
undervisning. Förslag utarbetat av en arbetsgrupp inom SÖ.
[Alphabetization in Sweden. Basic education for adults with
incomplete, or none, education]. Skolöverstyrelsen, 1975.
315

BJÖRKLUND, Lisa Boistrup; SELANDER, Staffan (Eds.) (in

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


press). Designs for research, teaching and learning. A frame-
work for future education. Routledge.

BROOKS, Eva; DAU, Susanne; SELANDER, Staffan (Eds.). Digi-


tal learning and collaborative practices. Lessons from inclusive
and empowering participation with emerging technologies.
Routledge, 2021.

JULIÃO, Francisco. Cambão – the yoke. The hidden face of Bra-


zil. Penguin Books, 1972.

FREIRE, Paulo. Cultural action for freedom [Ação Cultural para


a Liberdade]. Penguin Books, 1972a

FREIRE, Paulo. Pedagogik för förtryckta, [Pedagogia do Opri-


mido]. Gummessons, 1972b
FREIRE, Paulo. Kulturell kamp för frihet. [Ação Cultural para a
Liberdade]. Gummessons, 1974.

FREIRE, Paulo. Utbildning för befrielse. [Educação como Práti-


ca da Liberdade]. Gummessons, 1975.

FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiên-


cia em processo [Letters to Guinea-Bissau]. Paz e Terra, 1978.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à
prática educative. Paz e Terra, 2007.

GADOTTI, Moacir (Ed.). Paulo Freire. Uma bibliografia. Edito-


ra e Livraria, Instituto Paulo Freire, 1996.
316
DE KADT, Emanuel. Catholic Radicals in Brazil. Oxford Univer-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

sity Press, 1970.

KALLÓS, Daniel. Den nya pedagogiken. En analys av den s.k.


dialogpedagogiken som svenskt samhällsfenomen. [The new
pedagogy. An analysis of the so-called dialogue-pedagogy as a
Swedish social phenomenon]. Wahlström & Widstrand, 1978.

KIDD, Ross; KUMAR, Krishna. (1981). Co-opting Freire. A


Critical Analysis of Pseudo-Freirean Adult Education. Eco-
nomic and Political Weekly, No 1–2. Disponível em: https://
www.epw.in/journal/1981/1-2/special-articles/co-opt-
ing-freire-critical-analysis-pseudo-freirean-adult-education.
Acesso em: 26 out 2021.

KRESS, Gunther; SELANDER, Staffan; SÄLJÖ, Roger; WULF,


Christoph (Eds.). Learning as social practice. Beyond educa-
tion as an individual enterprise. Routledge, 2021.
MACKIE, Robert. Literacy and Revolution. The Pedagogy of
Paulo Freire. Pluto Press, 1980.

MAZZA, Débora; SPIGOLON, Nima Imaculada. Educação, exí-


lio e revolução – o camarada Paulo Freire. Revista Brasileira
de Pesquisa (Auto) Biográfica (RBPA), v. 3, n. 7, p. 203-220, 26
abr. 2018. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/in-
dex.php/rbpab/article/view/4462. Acesso em: 25 out 2021.

PERNEMAN, J-E. & PERSSON, W. (1974). Att bli allt mer med-
veten. [To become even more conscious], Kristet Forum, No. 4–5.

PERNEMAN, J-E. (1977). Medvetenhet genom utbildning. Ett


försök att utifrån Paulo Fries perspektiv forma ett ledarut- 317
bildningsprogram och beskriva utfallet i kvalitativa skillnader.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


[Consciousness through education. An attempt to develops
program for leadership from the perspective of Paulo Freire,
and to describe the result in terms of qualitative differences].
Dissertation, University of Gothenburg.

RICŒUR, Paul. Minne, historia, glömska. Daidalos. [Memory,


history, forgetting], 2005.

SELANDER, Staffan. Paulo Freire, dialogpedagogik och alfabe-


tisering. KRUT – Kritisk Utbildningstidskrift, 1(2), 6–17, 1976.

SELANDER, Staffan. Textum Institutionis. Den pedagogiska


väven. En studie i texttraduktion utifrån exemplet Freire och
dialogpedagogiken i Sverige. Diss. Stockholm University/CWK
Gleerup. [Textum Institutionis. The pedagogical web. A study
of text-traduction: the case of Freire and the Swedish dia-
logue-pedagogy], 1984.
SELANDER, Staffan. (1990). The case of Freire: intellectu-
als and the transformation of ideas – notes on ideology and
context. Journal of Curriculum Studies, v. 22, (6), p. 557–
564. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/
abs/10.1080/0022027900220604?journalCode=tcus20.
Acesso em: 26 out 2021.

SELANDER, Staffan. Can a sign reveal its meaning? On the ques-


tion of interpretation and epistemic contexts. In: Advancing mul-
timodal and critical discourse studies, Edited by Sumin Zhao, Emil-
ia Djonov, Anders Björkvall, Morten Boeriis. Routledge, 2018.
SOU. Skolans arbetsmiljö. Betänkande avgivet av utredningen
om skolans inre arbete – SIA. [Commission report on the inner
work in schools]. Allmänna Förlaget, 1974: 53.

318 SOU. Utbildning i samspel. Betänkande avgivet av 1968 års


Barnstudgeutredning. [Education i collaboration.Commission
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

report]. Allmänna Förlaget, 1975: 67

SCHYL-BJURMAN, Gertrud; STRÖMBERG-LIND, Karin. Dialo-


gpedagogik. Liber, 1977.

TORRES, Carlos Alberto; GUTIÉRRES, Francisco; ROMÃO, José


Eustáquio; GADOTTI, Moacir; GARCIA, Walter Esteves (Eds.).
Reinventando Paulo Freire no século 21. Editora e Livraria, Ins-
tituto Paulo Freire, 2008.

UNESCO. MOBRAL – The Brazilian Adult Literacy Experiment


(1975). UNESCO: Educational Studies and Documents, No 15,
1975.
VIVER, MENTE & CÉREBRO. Coleção memória da pedagogia
– Paulo Freire, a utopia do saber. Viver: Mente & Cérebro, No
4 – Paulo Freire, 2005.

RESUMO
Este artigo é fruto de uma questão pessoal antiga: como é
possível que o pensamento pedagógico de Paulo Freire e seu
programa de alfabetização, desenvolvido no árido e pobre
Nordeste brasileiro, pudessem se tornar um destaque na Sué-
cia na década de 1970 – que por sua vez era um dos países
industrializados mais desenvolvidos do mundo? Para poder
responder a essa pergunta, abordarei três tópicos: o primeiro
diz respeito a como podemos compreender e como elabora-
mos nossas lembrança do passado, de um momento histórico
anterior ao nosso - nesse artigo o foco será o revolucionário
ano de 1968; a segunda é como podemos compreender os 319
mecanismos de influência de uma pedagogia específica em

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


um novo contexto - neste caso, a implementação da pedagogia
de Paulo Freire na Suécia; e, por fim, refletirei sobre o “ensino
e aprendizagem dialógico” hoje e como ele pode nos ajudar a
pensar o nosso mundo digital contemporâneo, tão diferente
das décadas de 1960 e 1970.
Palavras-chave: Alfabetização, Radicalismo Católico, Enqua-
dramento Contextual, Revolução Cultural, Ensino E Aprendi-
zagem Dialógico, Projetos De Aprendizagem, Disseminação
De Ideias, Memória, Lembrança.

ABSTRACT
This article is rooted in an early question of mine: How is
it possible that Paulo Freire’s pedagogical thinking, and his
program for alphabetisation which was developed in the arid
and poor Northeast of Brazil, could become a highlight in
Sweden in the 1970s – at the time one of the most developed
industrial countries in the world? To be able to answer this
question, I will address three topics: the first one concerns
how we can understand an earlier historical epoch and how
we remember it, here with a focus on the revolutionary year of
1968; the second is how we can understand the mechanisms
of the influence of a specific pedagogy in a new context – in
this case the implementation of Paulo Freire’s pedagogy
in Sweden; and, finally, I will reflect on “dialogic teaching
and learning” today, and what lessons can be learnt in our
contemporary, digitized era, so different from the situation in
the 1960s and 1970s.
Keywords: Alphabetization, Catholic Radicalism, Contextual
Framing, Cultural Revolution, Dialogic Teaching And Learning,
Designs For Learning, Dissemination Of Ideas, Memory,
Remembering.

320 SOBRE O AUTOR


Staffan Selander é PhD, Professor Emérito do Departamento
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de Computação e Sistemas Científicos da Universidade de Es-


tocolmo, Suécia. Editor dos periodicos : Designs for Learning,
www.designsforlearning.nu www.iartem.org e SLD – Scandi-
navian Learning DesignR www.scandlearndesign.se Autor de
inúmeros livros, tais como: Innovativ design för lärande (M.
Glawe & S. Selander, Liber 2021), Learning as Social Practi-
ce. Beyond Education as an Individual Enterprise (G. Kress,
S. Selander, R. Säljö & C. Wulf, Eds. Routledge 2021), Digital
Learning and Collaborative Practices – Lessons from Inclusive
and Empowering Participation in Emerging Technologies (E.
Brooks, S. Dau & S. Selander, Eds. Routledge 2021); Multimod-
al Texts in Disciplinary Education: A Comprehensive Frame-
work (K. Danielsson & S. Selander. Springer 2021). Open ac-
cess., Pedagogiska texter på väg in i hybridsamhället (I: Eilard
& Dahl (red.) Diskursanalys med utbildningsvetenskapliga
perspektiv. Studentlitteratur, 2021]; Att bli lärare (2:a uppl.,
E. Insulander & S. Selander, Eds. Liber 2021), Didaktiken efter
Vygotskij – Design för lärande (2:a uppl. Liber, 2021); Design
för lärande – Ett multimodalt perspektiv (S. Selander & G.
Kress, 3:e uppl. Studentlitteratur 2021); Designs for research,
teaching and learning. A framework for future education
(L. Björklund Boistrup & S. Selander, Eds. Routledge, 2022).
Seus interesses de pesquisa envolvem projetos dedicados ao
aprendizado, aprendizado aprimorado em tecnologia, escalas
de inovação, representações do conhecimento, culturas de re-
conhecimento, multimodalidade e hermenêutica aplicada.

321

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


AFINIDADES ELETIVAS:
PAULO FREIRE E
RAYMOND WILLIAMS
RAÇA, RELIGIÃO E PRÁTICAS
CONTRA-HEGEMÔNICAS EM
EMPSON, WILLIAMS E FREIRE1

Hywel Dix2

Neste ano de centenários, dedico


este artigo à memória de meu avô
Leslie Davies (1921-2006).

325
Este artigo explora o lugar de raça e religião nas obras de William

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Empson, Raymond Williams e Paulo Freire. Começando com uma
discussão sobre o livro Structure of Complex Words, de Empson
(1951), argumentaremos que a obra desse autor exerceu uma in-
fluência na de Williams maior do que se acreditava anteriormente,
tanto na adoção, por parte de Williams, de uma abordagem histó-
rica à linguística quanto em sua aplicação à análise sociológica da
cultura. No entanto, há também dois elementos-chave em Empson
para os quais não há equivalente em Williams: especificamente, a
ideia de uma sensibilidade cristã bem como uma perspectiva eu-
rocêntrica que falha em incorporar a diversidade racial. Os livros
The Long Revolution, Palavras-chave e Marxismo e literatura, de
Williams (1961, 1976, 1977), têm raízes na obra de Empson, mas
não dizem praticamente nada sobre religião ou raça, e o alijamen-
to dessas áreas de pensamento, no que se refere a Empson, pro-
duz uma série de efeitos bastante precisos. Certamente, permite a
1
Tradução de Yasmim Camardelli e revisão da tradução por Ugo Rivetti. Nota da tradução:
para as citações ou referências a textos que já possuem uma versão para o português,
utilizamos a tradução já disponível.
2
Associate Professor of English, Bournemouth University, UK. HDix@Bournemouth.ac.uk.
Orcid 0000-0002-3584-5199.
Williams se afastar da política racial eurocêntrica de Empson, de
modo que, embora o próprio Williams tenha sido corretamente cri-
ticado por sua incapacidade de incorporar a diversidade racial, seu
trabalho pode, pelo menos, ser lido, nesse aspecto, como um cor-
retivo silencioso do de seu antecessor. Por outro lado, uma vez que
raça e religião estão intimamente relacionadas no pensamento de
Empson, livrar-se de uma implica simultaneamente se livrar da ou-
tra. O efeito disso é que se perde a oportunidade de identificar for-
mas de relações contra-hegemônicas que uma sociologia das orga-
nizações religiosas pode proporcionar — e Williams interpreta as
organizações religiosas apenas como órgãos da ideologia dominan-
te. O problema com essa suposição é que ela falha em explicar como
os tipos de relacionamento que tipificam as comunidades baseadas
na fé (de todos os tipos) são influenciados por experiências de raça
e podem fornecer exemplos de solidariedade contra-hegemônica. É
por isso que, conforme argumentaremos neste artigo, vale a pena
326
ler Williams ao lado de seu contemporâneo Paulo Freire, porque,
pela obra de Freire, é possível restabelecer a conexão entre uma
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

política racial crítica e o reconhecimento da contribuição a esse


tipo de política crítica que certas comunidades religiosas podem,
potencialmente, oferecer. Ao fazer isso, ele adiciona nuances a nos-
so pensamento atual sobre ambos.

William Empson e a estrutura de significado

Levando em consideração o momento de sua publicação (1951),


Structure of Complex Words, de Empson (2020), parece ter sido uma
reação contra as doutrinas do alto modernismo. Na obra desses
poetas modernistas, que também eram críticos, havia uma afirma-
ção reiterada da impessoalidade da poesia e da extinção do eu poé-
tico. Empson, por outro lado, estava interessado em complementar
a abordagem técnica da linguagem literária com uma abordagem
baseada na cognição no nível emocional. Ao fazê-lo, reconheceu a
influência formativa de vários de seus predecessores e contempo-
râneos em seu pensamento sobre a linguagem, principalmente de
I. A. Richards. No entanto, encontrou em Richards uma insistência
na ideia de que o conteúdo emocional da linguagem é separável de
seu significado superficial e de que, portanto, as palavras só podem
ter um sentido primário singular em qualquer momento. Empson,
ao contrário, estava interessado no fato de que, devido às variações
históricas, palavras isoladas podiam carregar uma variedade de va-
lores semânticos. Com efeito, rastrear o surgimento desses diferen-
tes usos é, em grande medida, o objetivo de seu livro, permitindo-
-lhe argumentar que, devido a essa gama de significados, uma série
de conotações emocionais pode ser gerada:

O Professor Richards entende o Sentido de uma palavra em


um determinado uso como algo singular, embora “elabora-
do”, e, portanto, pensa que qualquer coisa além desse Senti-
do deve ser explicada em termos de sentimentos, e os sen-
timentos, é claro, são Emoções ou Tons. Mas muito do que
chamamos de “sentimento” (como é óbvio no caso de uma
metáfora complexa) é, na verdade, uma estrutura bastante 327
elaborada de significados interligados. (EMPSON, 2020, p.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


59)

Em outras palavras, Empson estava interessado em encontrar


maneiras de expressar a combinação de sentido, humor e emoção
na articulação dada de uma palavra particular em sua especificida-
de cultural e histórica. Desse modo, identificar o conteúdo emotivo,
com o qual ele estava preocupado, era, acima de tudo, uma questão
de separá-lo e distingui-lo de toda a gama de significados relacio-
nados que se encontram amalgamados em uma expressão geral. Na
verdade, ele propôs um elaborado sistema de notação para mostrar
como determinadas palavras podem ser identificadas com senti-
mentos radicalmente diferentes. Uma vez que esses sentimentos
mudam ao longo do tempo, a estrutura de significado à qual Emp-
son se refere é, na verdade, a articulação, na linguagem, dos usos
historicamente diferentes de uma mesma palavra para expressar
conceitos diferentes, os quais aparecem juntos, de forma significa-
tiva, quando do seu uso:
sem dúvida, existem associações permanentes mais signifi-
cativas do que as de um período específico; mas estas últi-
mas são mais fáceis de identificar e é mais importante no-
tá-las se o que está em questão é fazer uma leitura correta;
além disso, elas permitem que os mecanismos de mudança
sejam analisados. (EMPSON, 2020, p. 73-74)

Após estabelecer o esquema geral, Empson passa a aplicá-lo em


leituras de textos do cânone histórico literário. No processo, ele de
fato trata os textos como espaços discursivos nos quais o choque
entre diferentes significados e as implicações de certas palavras-
-chave se tornam particularmente manifestos. Como resultado, seu
principal argumento é que uma palavra proeminente usada em
uma variedade de sentidos diferentes contém a chave para inter-
pretar determinado texto. Por exemplo:

328 Como fonte de informação histórica, o N.E.D. [Novo Dicio-


nário de Inglês] oferece uma entrada particularmente boa
para a palavra honesto, contudo, eu preciso explicar por que,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ainda assim, o esforço não é suficiente. Ele diz muito pouco


sobre a interação de significados com “sentimentos”, o que,
para uma palavra como essa, é a principal dificuldade. Para
além disso, como deve fornecer um levantamento histórico
geral, não procura apresentar a estrutura da palavra em de-
terminado período. O principal objetivo de explorar a “estru-
tura” seria entender qual sentido era mais relevante, porque
a interação dos sentidos com os sentimentos gira, em grande
parte, ao redor disso. Não estou dizendo que um trabalho
desse tipo possa abarcar tudo; sem dúvida, ainda que per-
tençam a um mesmo período, grupos diferentes darão à pa-
lavra estruturas diferentes. (EMPSON, 2020, p. 188)

Às vezes, Empson, equivocadamente, dá a impressão de que, em


vez de simplesmente usar certas palavras sugestivas para ilustrar
transformações sociais mais amplas e de longa duração, as obras
dos escritores do cânone literário e histórico tratam, na verdade,
das próprias palavras. Por exemplo, em sua discussão sobre o Bobo
[Fool] em Rei Lear [King Lear], de Shakespeare, Empson argumen-
ta que a peça ilustra um desvio histórico gradual da compreensão
renascentista de Erasmo do termo bobo (um homem normal livre
de desafios complexos que, no entanto, tem a capacidade de com-
preender assuntos complicados de uma forma que seus supostos
superiores não podem) em direção a um sentido típico do período
pós-reforma, relacionado à perda de juízo e ao início da insanidade.
Mas, uma vez que a perda de juízo está relacionada à destruição
da ordem natural, o que está em jogo não é apenas o bem-estar do
indivíduo, mas o fim do mundo. Como resultado, o conflito entre os
diferentes usos do termo bobo permite que Empson situe Rei Lear
em uma órbita cristã pós-reforma.
Se basear este argumento em uma palavra parece um exage-
ro, então o número de páginas que Empson dedica às atitudes de
Shakespeare em relação aos cães parece absurdo para os padrões
modernos. Analisando o uso da palavra cachorro em Timon de Ate-
nas, Empson atribui a aparente aversão de Shakespeare pelo animal
ao fato de este último não pertencer à classe dos caçadores. A iro-
329
nia é que, enquanto o termo cachorro tinha conotações sobretudo

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


negativas quando usada no simbolismo literário antes da época de
Shakespeare, em sua época, ela começava a incorporar uma série
de virtudes e conotações mais positivas, como lealdade e firmeza.
Empson sugere que Shakespeare, aparentemente por não gostar de
cães, parece ter usado a aplicação mais antiga do termo em Timon,
apesar das mudanças que estavam em curso em seu próprio tem-
po. Mas, assim como a análise de bobo em Lear revelou implicações
para a doutrina da reforma, em Timon, Empson associa a crescente
reputação dos cães na literatura ao desenvolvimento do humanis-
mo iluminista:

A novidade fundamental era a ideia de que “o Homem não é


mais uma divindade frustrada, nascida em pecado, necessa-
riamente incompleta no mundo, mas o mais triunfante dos
animais.” Chamá-lo jocosamente de cachorro é, portanto, in-
sistir em seus direitos. (EMPSON, 2020, p. 159)

O argumento é que reconhecer qualidades humanas nos animais


(e vice-versa) tornou possível ver o potencial evolutivo em todas
as coisas vivas em igual medida, refutando, assim, a doutrina pré-
-reforma da queda inata do homem: “Havia, de fato, um sentimen-
to generalizado em relação à evolução antes do darwinismo, como
sugerem os sentimentos associados aos dois usos da palavra ‘cão’.”
(EMPSON, 2020, p. 159). As diferentes implicações por trás da pala-
vra cão, precisamente neste ponto de mudança histórica, portanto,
situam a peça em um período de transição entre uma teologia me-
dieval do pecado original e uma perspectiva iluminista baseada na
perspectiva evolutiva dos seres vivos, para a qual Deus não é mais
considerado o único criador, mas sim o guardião ou protetor.
Pode-se perceber um deslocamento semelhante da visão de
mundo medieval em direção àquela do iluminismo europeu na dis-
cussão feita por Empson a respeito do uso da palavra honesto em
Otelo, de Shakespeare. O autor explora como a peça dramatiza uma
mudança histórica no significado da palavra, de “merecer honra”
para “contar a verdade” ou mesmo “cumprir uma promessa”. No
330
entanto, a discussão de Otelo também introduz uma série de supo-
sições problemáticas, principalmente em decorrência de Empson
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ler a peça no contexto da relação entre uma Inglaterra protestante e


uma Espanha católica. Chamando atenção para o fato de que Mouro,
termo usado para se referir a Otelo na peça, era uma palavra cuja
ocorrência era mais provável na Espanha, onde era usada para se
referir aos “outros”, de origem norte africana, do que na Inglaterra
(onde a peça foi escrita) ou em Veneza (onde é aparentemente am-
bientada), Empson termina por considerar a peça como a expres-
são de uma falha na relação entre os países. Ou seja, tenta entender
até que ponto isso pode ser considerado uma alegoria da relação da
Inglaterra com a Espanha, embora nenhum dos dois países esteja
aparentemente em questão. Mesmo admitindo que seja esse o caso,
seria difícil identificar qual personagem na peça representa qual
elemento nessa relação. Otelo, como um general violento e quase
ameaçador, pode então parecer uma representação do império es-
panhol, mas a construção de sua alteridade racial na peça também
o posiciona como um inimigo daquele império:
o Otelo em que somos convidados a acreditar não é mais
reconhecido nem mesmo como um espanhol; na verdade,
seria possível ligá-lo aos espanhóis pelo motivo contrário,
como um dos Nobres Selvagens que eles estavam maltratan-
do. Inclusive, pessoas como [Francis] Drake frequentemente
afirmavam que eram bem recebidos pelos nativos das Índias
Ocidentais, e de diversos outros lugares, e tinham seus na-
vios abastecidos devido ao ódio mútuo pelos espanhóis. Para
ter certeza, precisaríamos de mais dados; Shakespeare ter
visto alguma vez um negro parece uma questão relevante
que pode ser respondida. Gostaríamos de saber por que a
ideia de casar uma princesa europeia com um negro aparece
tanto em A tempestade e O mercador de Veneza, como aqui.
(EMPSON, 2020, p. 217-218)

Reconhecidamente, o objetivo da discussão de um Otelo espa-


nhol é analisar as várias conotações da palavra honesto em seu
contexto histórico. Nesse percurso, no entanto, Empson repete a al-
teridade racial que encontrou na peça ao classificar Otelo não ape- 331
nas como um mouro, mas também como um “negro”, colocando-o,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


assim, na posição de um outro absoluto, não apenas para o públi-
co de Shakespeare, mas para seus próprios leitores. Em um livro
explicitamente dedicado a explorar como a evolução de palavras
específicas indica conflitos nos modos de valoração social, é uma
lacuna significativa que esta palavra absolutamente fundamental
permaneça sem exame algum e seja, de fato, transmitida sem ques-
tionamento.
Ania Loomba (1989, p. 42) demonstra que a forma pela qual as
palavras usadas para se referir às cores adquiriram conotações para
diferentes emoções humanas “corresponde à história do racismo.”
E o que acontece com as cores ocorre também com outras formas
de comportamento. Em uma nota de rodapé bastante lasciva, Emp-
son (2020, p. 218) afirma que o estudioso “Sr. G.B. Harrison apre-
sentou algumas evidências divertidas de que havia uma prostituta
negra na Londres de Shakespeare, que pode ter sido a Dama Negra
[dos Sonetos].” Esse fascínio em saber se Shakespeare alguma vez
viu ou não uma pessoa negra estabelece um paralelo desconfortá-
vel com outro comentário do autor sobre os animais em Timão de
Atenas, em que ele diz: “É difícil descobrir exatamente quem viu
macacos e quando; as criaturas precisam ser grandes, eu imagino,
se conseguem impor reflexões investigativas.” (EMPSON, 2020, p.
160). Embora Empson não torne a conexão explícita, a justaposição
próxima de dois comentários quase idênticos, um para se referir a
pessoas do Norte da África e o outro a macacos, parece fortemente
impregnada por um futuro e vil insulto racista.
Como vimos, a discussão do Bobo em Lear está relacionada ao
esboço que Empson faz do pensamento cristão pós-reforma. Mas
a estreita congruência entre isso e o que ele diz sobre os negros
africanos em Otelo significa que sua forma de pensar a política da
religião é inseparável do tratamento que ele dá à raça, e ambos re-
velam uma atitude eurocêntrica ultrapassada. Esse eurocentrismo
é repetido na discussão das ideias pré-iluministas de evolução em
Timon de Atenas, em que o esboço de uma visão de mundo cris-
tã pós-reforma se expressa em linguagem animal que — talvez in-
332
conscientemente — reforça as metáforas animalescas de grande
parte da ideologia racista. Devido a essa incômoda imbricação de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

eurocentrismo com religião e raça, o paradoxo central de The Struc-


ture of Complex Words é o seguinte: um estudo dedicado a explorar
como palavras arcaicas são suplementadas por novos significados
acaba parecendo, de forma irremediável, historicamente datado.

Da estrutura de significado à estrutura de sentimento

Um dos objetivos deste artigo é dar destaque para a importan-


te influência formativa do método linguístico de William Empson
sobre as formas, agora mais difundidas, de análise cultural de Ray-
mond Williams, ao mesmo tempo em que pretendemos avaliar até
que ponto a abordagem de Williams de questões de política racial
pode ser lida como um corretivo a Empson. A estrutura de senti-
mento de Williams é herdeira direta da estrutura de significado de
Empson e, de fato, Williams e Michael Orrom usaram estrutura de
sentimento pela primeira vez em Preface to Film, de 1954, apenas
três anos depois de Empson, embora isso tenha sido “relativamente
pouco notado” na época (MIDDLETON, 2020, p. 1161).
Embora o termo estrutura de sentimento tenha sido usado por
Williams com implicações variadas ao longo de sua carreira — ver
Matthews (2001) —, o foco principal era chamar a atenção para
como, quando pensamos sobre a relação entre o presente e o pas-
sado, é importante resistir à tentação de pintar esses períodos
com pinceladas muito amplas, com base talvez em alguns fatos
conhecidos e, em seguida, extrapolar, acreditando que a partir de-
las é possível montar um quadro geral de toda a sociedade em um
momento específico. Porque as pessoas de fato não apreendem a
história como história, elas ainda não têm consciência do que será
posteriormente construído com as características predominantes
de seu mundo, de modo que, quando a história é vivida, ela é vivi-
da em um amplo espectro social, político e emocional. Em outras
palavras, o caráter e a composição de determinada sociedade em
333
determinado momento são sempre mais complexos e multifaceta-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dos do que quaisquer impressões singulares poderiam sugerir, e
Williams (1961, p. 53) usa o termo estrutura de sentimento para
substituir simplicidade por complexidade: “é tão sólido e definido
como ‘estrutura’ sugere e, ainda assim, opera na parte mais delica-
da e menos tangível de nossa atividade.”
Em um primeiro uso do conceito em The Long Revolution,
Williams (1961) segue de perto a aplicação de Empson do método
linguístico à análise literária. Williams (1961, p. 53) ressalta que a
estrutura de sentimento herdada de determinado período é, com
frequência, particularmente visível em sua arte e literatura, porque
é aqui, “nos únicos exemplos que temos de comunicação documen-
tada que sobrevive a seus portadores, que o real sentido da vida, a
profunda comunidade que faz com que a comunicação seja possí-
vel, é acessado naturalmente.” Não só esse insight se aproxima do
método de Empson centrado no texto, mas também a adoção de
uma palavra-chave como um conceito crítico da análise cultural é
o componente seguinte, na teoria geral, que Williams (1963, p. 52)
toma dele:
Uma palavra-chave, em tal análise, é padrão: é com a
descoberta de padrões de um tipo característico que
qualquer análise cultural útil começa, e é na relação entre
esses padrões, que algumas vezes mostram inesperadas
identidades e correspondências entre atividades até então
consideradas separadamente e outras vezes revelam des-
continuidades inesperadas, que a análise cultural geral está
interessada.

Ir de Empson em 1951 a Williams (1961) em The Long Revolu-


tion é fascinante porque revela a genealogia gradual não apenas da
estrutura de sentimento, mas também do conceito já amplamente
difundido de palavra-chave. Na obra de Empson, que possui uma
orientação literária clara, o propósito de identificar uma ou duas
dessas palavras em uma obra literária dada é torná-las base da exe-
gese do significado do todo:

334
Existe certa distância entre uma ocasional ambiguidade e
uma palavra que consegue incorporar o sabor de período,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

isto é, uma “palavra-chave” é marcada pela forma como a


estrutura de significado dessa determinada palavra é cons-
truída gradualmente ao longo de um extenso poema ou peça.
(EMPSON, 2020, 74)

Quando Williams publica The Long Revolution, em 1961, o termo


palavra-chave já se tornara explicitamente articulado e pensado
como uma palavra-chave. O termo deixou de significar uma descri-
ção geral (uma palavra particular que detém a chave interpretati-
va para determinado texto) e, em vez disso, tornou-se um conceito
mais preciso.
No entanto, o objetivo de desenvolver um novo conceito não é
simplesmente cunhar um novo termo elegante; é possibilitar novas
maneiras de compreender a cultura. É aqui que Williams começa
a romper com Empson, porque, como vimos, o método de Empson
focava-se, acima de tudo, no texto, enquanto Williams começava a
ter uma ideia do que se perde quando coisas como arte e literatura
passam a ser tratadas isoladamente de outros aspectos da socieda-
de. Ele abriu Cultura e sociedade (WILLIAMS, 1958) com uma dis-
cussão dos termos indústria, democracia, classe, arte e cultura, a fim
de traçar a história social pela qual se tornou comum pensar a arte
e a cultura como atividades especializadas, isoláveis ​​e isoladas de
todo o nexo dos processos sociais. Essa separação ocorreu na Grã-
-Bretanha principalmente durante sua transição de uma sociedade
rural para uma industrial, e teve o efeito de mistificar a estrutura
de classes criada como resultado dessa transição. Restaurar uma
história material (distinta da abstrata) para o processo de surgi-
mento dessa estrutura de classe foi, então, o primeiro passo crucial
para a consciência de classe e a adoção de uma política cultural de
resistência à classe dominante. Em outras palavras, devido à cone-
xão entre literatura e história, há um compromisso de criticar as
estruturas ideológicas em Williams que está silenciado em Empson
como resultado de seu hábito de tratar os textos literários como
objetos privilegiados de análise.
335
Tendo feito essa ruptura, Williams a expandiria ao longo de sua
carreira. Palavras-chave, seu estudo de 1976, nasceu como um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


apêndice a Cultura e sociedade, mas Williams descobriu que havia
tanto a dizer sobre esse tema que o texto acabou se estendendo até
virar um livro completo. O que é notável é que Williams não apenas
parou de usar palavra-chave como um termo descritivo geral, como
Empson fazia; ele também parou de usá-la com a estranha hifeni-
zação de The Long Revolution. Resumindo, em 1976, palavras-chave
(key-words) tornou-se uma palavra só (keywords). Ela veio acom-
panhada de um conceito teórico crítico que atingiu sua expressão
máxima em Marxismo e literatura, publicado em 1977. Nesse livro,
Williams (1977, p. 132) revisita a ideia de uma estrutura de senti-
mento, desta vez, com muito mais a dizer:

O termo é difícil, mas “sentimento” foi escolhido para enfati-


zar uma distinção em relação aos conceitos mais formais de
“visão de mundo” ou “ideologia”[...]. Estamos interessados
em significados e valores tal como são vividos e sentidos ati-
vamente, e as relações entre eles e as crenças formais ou sis-
temáticas são, na prática, variáveis[...]. Uma definição alter-
nativa seria estruturas de experiência[...]. Estamos falando
de elementos característicos de impulso, contenção e tom;
para ser mais específico, elementos afetivos de consciência e
relações; não de sentimento em contraposição a pensamen-
to, mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal
como pensado: uma consciência prática de um tipo presente,
numa continuidade viva e inter-relacionada. Estamos, então,
definindo esses elementos como uma “estrutura”: como um
conjunto, com relações internas específicas, ao mesmo tem-
po interligadas e tensionadas. Não obstante, estamos tam-
bém definindo uma experiência social que ainda está em
processo, com frequência ainda não reconhecida como so-
cial, mas como privada, idiossincrática, e mesmo como algo
que isola, mas que, na análise [...] tem suas características
emergentes, vinculantes e dominantes[...].

Vê-se que, aqui, quando Williams considera um termo alterna-


tivo para estruturas de sentimento, ele não retorna à estrutura de
significado de Empson, mas defende a ideia de uma estrutura de ex-
336 periência. Agora, o objetivo da análise cultural não é elucidar o que
esta ou aquela palavra “realmente significa”, mas ver as palavras
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

como partes de textos inteiros, que são, por sua vez, articulações de
relações materiais reais em determinado momento, de modo que
a leitura das palavras é, em um sentido objetivo, uma leitura das
próprias relações materiais. Além disso, este é o ponto preciso no
pensamento de Williams em que a ideia de uma estrutura de senti-
mento que está sempre em processo de mudança estabelece a base
para seu vocabulário de ideologias dominantes, emergentes (assim
como residuais).

Raça e Religião em Williams

Em sua discussão sobre as estruturas de sentimento em The Long


Revolution, Raymond Williams reconheceu a complexidade desse
conceito e, em uma tentativa de fornecer um exemplo prático dele,
escreveu: “Acredito que podemos entender isso melhor se pensar-
mos em qualquer análise similar de um modo de vida que nós mes-
mos compartilhamos.” (WILLIAMS, 1961, p. 52). Ele continua:
Normalmente, estamos mais conscientes disso […] quando
lemos um relato de nossas vidas por alguém de fora da co-
munidade, ou observamos as pequenas diferenças de estilo,
fala ou comportamento, em alguém que aprendeu nossos
costumes, mas não foi criado a partir deles[...]. Embora pos-
sa ser transformado em trivialidade, um fato desses não é
trivial ou marginal; ele parece bastante central. (WILLIAMS,
1961, p. 52-53)

A retórica do insider/outsider, especialmente quando usada para


se referir a “alguém que aprendeu nossos caminhos, mas que não
foi criado a partir deles”, é uma preocupação, expressa de modo re-
corrente em Empson, constante de estudantes de inglês de outros
países, potencialmente perplexos com a variedade de nuances e
significados que determinada palavra contém, assim como com o
efeito chocante que isso pode criar. Ao mesmo tempo, levanta ques-
tões sobre o “nós” e “nossos costumes” a que Williams se refere.
337
Podemos fazer um paralelo a partir de um ensaio intitulado

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


“País de Gales e Inglaterra”, escrito em 1983. Nesse texto, Williams
(1983b) argumentou que o hábito comum no País de Gales de se
identificar com os celtas, em contraste com os imaginários an-
glo-saxões da Inglaterra, é o resultado de uma série de erros de
identificação que são, eles mesmos, causados pelo pensamento
binário da política nacionalista que divide o mundo entre “nós” e
“eles”. No lugar desse binarismo, Williams (1983b, p. 18) sugere
uma ideia de história complexa que anula a distinção entre Ingla-
terra e País de Gales nesses termos tribais e tenta, em vez disso,
pensar as relações reais entre eles em termos materiais:

Não precisamos despender tanta energia em um dos assun-


tos mais saturados, o de raça. A história étnica do que hoje
é o País de Gales é de extrema complexidade, desde os tem-
pos mais remotos. Parece haver diferenças bastante básicas
entre os colonos do Neolítico e da Idade do Bronze e os re-
cém-chegados da Idade do Ferro, embora todos tendam a ser
lendária e trivialmente assimilados em termos do contraste
subsequente com “saxões” e a serem confundidos como ce-
ltas. Quando esta última e complicada descrição é afirmada,
temos que responder que, com base nas evidências disponí-
veis, os “celtas” foram os primeiros imperialistas linguísticos
invasores.

A afirmação de que a categoria de raça não precisa de mais exa-


me é um sinal sinistro, embora o ponto central de Williams seja que,
em comparação com os ingleses, o povo galês não é uma raça, mas
uma construção cultural. Criticar a fácil identificação com os celtas,
que ele considerava comum no País de Gales, é desfazer a versão
mitificada da história galesa, recusando-se a ver o povo galês ou sua
cultura como essências categoriais em vez de artefatos históricos e
historicamente variáveis:

Se há um ponto que é preciso reforçar nas análises da cultura


galesa é o complexo de descontinuidades forçadas e adqui-
ridas: uma série descontínua de mudanças radicais, dentro
338 das quais temos que marcar não apenas certas comunidades
sociais e linguísticas, mas muitos atos de autodefinição por
exclusão. (WILLIAMS, 1983b, p. 20)
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

O argumento geral é que, muitas vezes, os elementos tidos como


fundamentais da cultura galesa podem ser mais bem compreendi-
dos quando consideramos o contexto dessas mudanças forçadas,
descontinuidades e conquistas. Em outras palavras, uma série de
experiências de derrota, penetração e incorporação que ocorreram
ao longo de um extenso tempo histórico modificaram os elementos
típicos da cultura galesa de várias maneiras — inclusive, em alguns
casos, esses elementos surgiram por meio de um movimento de
contra-afirmação. Assim, por exemplo, o movimento trabalhista e
o compromisso com a consciência de classe no esboço de formas
modernas de democracia, frequente e corretamente tratadas como
características importantes da cultura galesa, são reconhecidos por
Williams como uma resposta às condições e relações historicamen-
te criadas pela Revolução Industrial que se deu tanto fora do País
de Gales quanto dentro dele. Em outras palavras, essa caracterís-
tica típica da cultura galesa não é inata, mas uma resposta a essas
condições históricas específicas impostas de fora. Além disso, em
um período anterior, o da Guerra Civil Inglesa (1642-1646), a maior
parte do País de Gales favoreceu o lado monarquista, e Williams
(1983b, p. 21) aponta que embora “um País de Gales monarquista
mais antigo não seja facilmente incluído na projeção de uma essên-
cia galesa radical e democrática”, ele ainda assim “faz mais sentido
se considerarmos que o País de Gales era assim, enquanto a Ingla-
terra ia na direção contrária.”
Talvez o melhor exemplo que ele apresenta, no entanto, seja o
não-conformismo religioso. Por uma complexa variedade de ra-
zões, a não-conformidade religiosa tem sido historicamente tratada
como uma das características mais importantes da cultura do País
de Gales. Isso ocorre em parte porque as ideias de organização co-
mum, responsabilidade compartilhada e avanço por meio da edu-
cação — que são a base do pensamento não-conformista — podem
ser mais facilmente associadas à ideia de um País de Gales social-
339
-democrata moderno do que a sua encarnação anterior, como um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


bastião da cultura monárquica. Mais significativamente, a reforma
protestante do século XVI e o contemporâneo Act of Union (1536),
que legalmente ligava o País de Gales à Inglaterra, resultaram na
imposição, no País de Gales, de uma organização religiosa, a Igreja
da Inglaterra, como órgão de controle político relativo. Que os atos
religiosos fossem frequentemente professados em inglês em uma
época em que a esmagadora maioria das pessoas no País de Gales
falava galês limitou o poder cultural e político do povo galês a seus
próprios assuntos, de modo que as capelas não-conformistas, cujas
congregações eram principalmente de língua galesa, eram impor-
tantes alternativas à Igreja oficial. Além disso, a Lei da Igreja Galesa
de 1919, que retirou a Igreja da Inglaterra de sua posição como a
igreja oficial no País de Gales, reconheceu que o povo galês tinha
maior afinidade com o não-conformismo, do que com o Cristia-
nismo Anglicano. Dado que esse foi o primeiro artigo/ato, em 400
anos, da legislação britânica a ser aplicado a todo o País de Gales,
e apenas ao País de Gales, ele foi interpretado como um marco na
recuperação de uma maior autonomia política nesse Estado, que
veio à tona no final do século XX.
Em outras palavras, o não-conformismo tem um lugar importan-
te na cultura e na história do País de Gales. No entanto, Williams
(1983b, p. 21) questiona a suposição de sua posição inerente ali,
argumentando, em vez disso, que as

formas culturais que um povo subalterno encontra para


tentar expressar sua identidade distinta podem ser bastan-
te descontínuas, e essas descontinuidades podem ser mais
bem compreendidas quando são relacionadas à condição de
subalternidade do que quando são tratadas como expres-
sões de uma essência submersa.

Mais especificamente, ele aponta que o próprio não-conformis-


mo, por tanto tempo tratado como um esteio da cultura do País de
Gales, na verdade, surgiu em certas comunidades industriais na
Inglaterra e “chegou pela fronteira inglesa” (WILLIAMS, 1983b, p.
340 20). Não é que, para ele, a busca por responsabilidade social, propó-
sito comum e compromisso compartilhado que a não-conformida-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de pode proporcionar não tenha operado no País de Gales. Mas sim


que sua presença no País de Gales é uma prova da história material
da relação entre o País de Gales e a Inglaterra. Em outras palavras, a
história é mais complexa do que a identificação superficial desta ou
daquela característica da cultura galesa poderia sugerir; para além
disso, as organizações religiosas, mesmo aquelas não-conformistas
que surgiram em oposição às formações políticas dominantes da
época, mostram-se relacionadas à ideologia dominante. Na verda-
de, é assim que Williams trata as organizações religiosas em geral:
“De castelos, palácios e igrejas a prisões, workhouses e escolas; de
armas de guerra a uma imprensa controlada; qualquer classe do-
minante, ainda que de maneiras variáveis, sempre produz material-
mente uma ordem social e política.” (WILLIAMS, 1977, p. 93).
Em outro ensaio, “The Culture of Nations”, Williams (1983a)
aborda novamente como histórias muito complexas tenderam a
ser reduzidas a essências artificiais na construção e legitimação de
versões particulares da cultura britânica como um todo. Ele conta
uma anedota sobre um político que se opunha à entrada britânica
na Comunidade Econômica Europeia em 1973, alegando que esse
seria o fim de 1000 anos de história, e continua:

“Por que 1000?”, eu me perguntei. A única data signifi-


cativa por esse cálculo seria por volta de 1066, quando
um francês normando substituiu uma monarquia nór-
dica-saxônica. E quanto aos anglos? Isso seria cerca de
1500 anos. E os britânicos? Cerca de 2500. Mas a histó-
ria real dos povos dessas ilhas remonta a um passado
muito mais distante. (WILLIAMS, 1983a, p. 198)

É o mesmo argumento novamente. O povo “britânico” não são


britânicos ou romanos, anglo-saxões ou celtas, vikings ou norman-
dos, mas uma combinação culturalmente promovida e ideologica-
mente legitimada de todos eles em uma entidade política unificada:
os britânicos. Ao recusar uma base étnica para definir o País de Ga-
les ou a Inglaterra, ele continua: 341
Todos os diversos povos que viveram nesta ilha ainda estão aqui

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


em um sentido físico substancial. O que é, de tempos em tempos,
projetado como uma “raça da ilha” é, na verdade, um longo proces-
so de sucessivas conquistas e repressões, mas também de sobrepo-
sições sucessivas e integrações relativas. Todos os processos reais
foram culturais e históricos, e todos os processos artificiais foram
políticos. (WILLIAMS, 1983a, p. 198)
Ler essa passagem, no entanto, é notar uma contradição
significativa no pensamento de Williams, uma contradição que já
estava presente em suas primeiras e vagas referências às pessoas
que estão dentro ou fora de uma comunidade específica. É impor-
tante tentar desfazer a contradição, porque ela revela, por sua vez,
certo grau de miopia na abordagem de Williams de questões deli-
cadas, como imigração e, em última análise, raça. O argumento que
se apresenta a nós é que todos os povos que habitam a ilha da Grã-
-Bretanha estiveram lá o tempo todo, mas, ao mesmo tempo, alguns
deles, aparentemente, estão lá há mais tempo do que outros:
É aqui que há, hoje, um grande problema com as imigrações
mais recentes de povos visivelmente diferentes. Quando eles
interagem com as formas seletivas mais recentes de identi-
dade — “o autêntico homem inglês” que, para além de uma
consideração subsequente, representa todo o complexo de
povos nativos estabelecidos e imigrantes anteriores ou o
imperial “britânico”, que, em uma nova identidade comum,
valeu-se de vantagens econômicas e militares para governar
100 povos em todo o mundo e justificar uma superioridade
inata sobre eles —, as confusões e os preconceitos irados são
óbvios. (WILLIAMS, 1983a, p. 199)

Essa lógica contraditória traz à tona os pressupostos proble-


máticos implícitos na discussão de Williams (1961), em The Long
Revolution, de como as melhores maneiras de compreender o con-
ceito da estrutura de sentimento é ler um relato de “nossa” própria
comunidade escrito por alguém de fora dela ou observar as peque-
nas diferenças de estilo e comportamento entre os membros dessa
342
comunidade e alguém que vive nela, mas que não nasceu nela. A
questão que essa retórica deixa sem exame é precisamente: a quem
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

esse “nós” e essa “nossa comunidade” se referem? Para um teórico


cultural da história britânica negra, como Paul Gilroy (1987), em
There ain’t no black in the union jack (em que faz referência direta a
Williams), a resposta decisiva é, portanto: “nós não”. Em vez disso,
levanta outra questão:

quanto tempo é tempo suficiente para se tornar um britâni-


co genuíno/legítimo? Sua insistência [isto é, de Williams] de
que as origens dos conflitos raciais residem na hostilidade
entre desconhecidos na cidade faz pouco sentido, dados os
efeitos da Lei de Imigração de 1971 para impedir os primei-
ros assentamentos negros. O que é mais perturbador é que
esses argumentos efetivamente negam que os negros podem
compartilhar uma “identidade social” significativa com seus
vizinhos brancos, os quais, em contraste com os recém-che-
gados, habitam o que Williams chama de “comunidades en-
raizadas”, articuladas por “ identidades vivenciadas e cons-
tituídas de um tipo estabelecido”. (GILROY, 1987, p. 51-52)
De acordo com Jim McGuigan (2019, p. 142), embora a respos-
ta raivosa de Gilroy a Williams “fosse justificada”, ele foi “longe de-
mais” ao igualar Williams a outras figuras explicitamente racistas
da época, como Enoch Powell. O ponto importante a se fazer aqui
é que tanto a crítica quanto a defesa qualificada atuam em ambos
os sentidos. Em relação ao eurocentrismo extremo de Empson, que
não via nenhum problema em justapor uma discussão sobre a pri-
meira vez que europeus viram macacos com uma sobre a primeira
vez que europeus viram africanos e optou por deixar, de forma sus-
peita, a palavra negro sem exame, a afirmação de Williams sobre a
complexidade racial e cultural parece mais sofisticada. No entanto,
a ambiguidade temporal que está no cerne das ideias de Williams
sobre raça levou Gilroy, com razão, a perguntar se as comunidades
negras e de imigrantes poderiam, portanto, ser consideradas tão
britânicas quanto aquelas enraizadas com identidades estáveis so-
bre as quais Williams discutiu.
343
Para cidadãos britânicos negros das décadas de 1970 e 1980,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


uma forma correspondente de enraizamento e identidade — em
outras palavras, uma variação da noção de comunidade tão esti-
mada por Williams — surgiu historicamente nas igrejas evangé-
licas. Dado que esse foi um período em que o racismo estrutural
contra os negros predominava fortemente na Grã-Bretanha, é de se
esperar que a forma de comunidade, a camaradagem, as relações
de apoio e incentivo fornecidas por essas igrejas fossem, ao menos
em parte, contra-hegemônicas, porque, mesmo que elas tivessem
pouca ou nenhuma orientação política ostensiva, o mero fato de sua
existência era prova de uma afirmação de pertencimento e enrai-
zamento que, em muitos casos, foi oficialmente negada. Williams,
em contraste, era incapaz de ver as organizações religiosas como
outra coisa senão veículos da ideologia dominante. Além disso, essa
suposição sobre a religião organizada é inseparável dos pontos ce-
gos em seu pensamento sobre raça. Como vimos, sua afirmação de
que todos os povos da Grã-Bretanha “sempre estiveram lá” preten-
de ser um corretivo à prática comum no pensamento nacionalista
de tratar a diferença entre a Inglaterra e o País de Gales como uma
diferença étnica, quando ela é, na verdade, uma diferença históri-
ca, baseada em prática cultural e ideologia política. Esse argumen-
to o leva diretamente à discussão de como os elementos típicos da
cultura galesa — seu monarquismo durante a Guerra Civil Inglesa,
seu inconformismo dissidente a partir do século XVIII — não são
essências culturais, mas respostas específicas às ideologias domi-
nantes do período. E, embora o não-conformismo tenha rejeitado
ostensivamente a política então dominante do culto anglicano e
a língua inglesa, Williams assume implicitamente que as formas
de solidariedade a ele associadas são exemplos das comunidades
estabelecidas e historicamente formadas, as quais Gilroy pensava
serem incapazes de incorporar diversidade, precisamente por se-
rem comunidades tão estabelecidas. Sendo assim, é difícil vê-las,
pelo menos do modo como Williams as vê, como exemplos de uma
prática contra-hegemônica em relação às estruturas dominantes e
altamente racializadas de seu tempo. E é por isso que vale a pena
ler Williams ao lado de seu contemporâneo Paulo Freire, porque,
344 embora não se possa traçar uma influência direta entre Freire e
Williams (como claramente há entre Empson e Williams), e não
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

possamos ter certeza se Williams leu ou não Freire, este restaura a


possibilidade de uma política de oposição crítica radical que está,
ao mesmo tempo, em sintonia com as desigualdades de raça e ex-
pressa-se dentro de organizações religiosas antissistema do tipo
que Williams não conseguiu imaginar.

Teologia da libertação de Paulo Freire

Após o golpe militar de 1964, Freire se exilou — primeiro na Bo-


lívia e no Chile, e, depois, nos Estados Unidos, vindo a trabalhar,
finalmente, para o Conselho Mundial de Igrejas na Suíça. Em 1975,
ele foi convidado a realizar um trabalho educacional na Guiné-Bis-
sau, estado pós-colonial da África Ocidental, onde aplicou as ideias
de sua obra mais citada, Pedagogia do oprimido (1968), com tradu-
ção para o inglês em 1970. Nela, Freire rejeita uma forma de pen-
samento que ele havia identificado em várias sociedades recém-
-descolonizadas, especialmente na África. Mais especificamente,
ele rejeitou a suposição de que as estruturas educacionais seriam
desenvolvidas em tais sociedades como parte do processo gradual
de construção de serviços públicos após a independência política
ter sido alcançada, especialmente nos casos em que a independên-
cia se deu após um levante revolucionário:

Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equi-


vocamente, “que, dado que o processo dialógico é demora-
do— o que não é verdade —, deve-se fazer a revolução sem
comunicação, por meio dos ‘comunicados’ e, depois que a
revolução venceu, eles então desenvolverão um amplo esfor-
ço educativo. Mesmo porque, continuam, não seria possível
levar a cabo uma educação — educação libertadora — antes
da tomada do poder.”. (FREIRE, 1970, p. 135)

Freire não rejeita a ideia de tomar o poder por meio da luta ar-
mada, mas chama a atenção para o fato de que só isso não criará
345
as condições necessárias para a independência. Isso porque a pré-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


-condição para a revolução política é a adoção de uma visão crítica
e contra-hegemônica, que, por sua vez, é gerada por meio da práxis
pedagógica. Em outras palavras, a educação não é posterior à revo-
lução, mas, de uma forma significativa, é um fator primordial para
que a revolução seja possível. Para além disso, assim como a in-
dependência não era algo que pudesse ser totalmente conquistado
apenas pelas atividades revolucionárias do povo colonizado, tam-
bém não era algo que pudesse ser concedido, como um presente,
pelos colonizadores, uma vez que Freire rejeitou categoricamente
seu direito de concedê-la. A libertação é, então, um processo dialó-
gico no qual a independência é desenvolvida por meio da complexa
interação entre ação e educação crítica, como um processo mutua-
mente constitutivo e transformador, decorrente do encontro entre
colonizador e colonizado.
Essa abordagem dialética é a base do modo dialógico com que
Freire pensa a educação, implicando a substituição de um modelo
pedagógico por outro. Durante a fase de descolonização da história
colonial, a prática educacional dominante nas colônias portuguesas
na África foi mais orientada para a alfabetização funcional do que
para uma alfabetização crítica politicamente capacitadora. Quem
poderia estudar, bem como o quê, onde, quando e como se estuda-
ria, tudo isso foi determinado pelas autoridades coloniais, de modo
que o conteúdo do currículo, os métodos de sua divulgação, as ha-
bilidades e conhecimentos gerados e os modos de avaliar contri-
buíram de forma indireta e, às vezes, de forma abertamente direta
para a reprodução da ordem social hierárquica em que se baseava
a estrutura das sociedades coloniais. Por apenas fornecer aos alu-
nos conhecimentos e habilidades suficientes para ocupar um lugar
pré-determinado dentro dessa ordem, mas sem equipá-los com a
orientação crítica necessária para questioná-la ou transformá-la,
Freire se referiu a essa prática como o método “bancário” de educa-
ção – depositando simbolicamente tanto conhecimento em tantos
alunos-recipientes por determinado período, de modo que esse co-
nhecimento pudesse ser recuperado e sacado/embolsado quando
346 necessário.
No cerne do conceito bancário de educação, Freire identifica
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

uma contradição simbólica. Como os professores são frequente-


mente membros da comunidade em que lecionam, eles falam do
mesmo lugar, ou seja, ocupam a mesma posição discursiva perante
as autoridades coloniais, assim como seus alunos e suas famílias.
Ao mesmo tempo, como as estruturas educacionais estavam en-
volvidas na reprodução da ordem social dominante, professores e
alunos tinham papéis muito diferentes a desempenhar dentro dela.
O avanço educacional dependia da capacidade do aluno de forne-
cer respostas pré-programadas a uma gama limitada de questões
funcionais sem criticar as premissas das próprias questões. Ou
seja, para passar nos exames e avançar para a etapa seguinte, eles
tinham que reproduzir os sistemas dominantes de pensamento e
crença ditados pelo professor; portanto, a relação entre professor e
aluno era hierárquica e unidirecional.
Devido a essa contradição entre o lugar do aluno e a posição do
professor na sociedade, Freire, em Pedagogia do oprimido, sugere a
substituição do modelo bancário pelo que ele chama de um concei-
to problematizador de educação. Em vez de perseguir uma agenda
educacional imposta externamente como um veículo para a legiti-
mação ideológica do imperialismo, uma educação problematizado-
ra daria a seus alunos a oportunidade de desenvolver programas de
trabalho mais importantes para as circunstâncias em que viviam.
Uma série de outras implicações resultavam dessa sugestão. Em
primeiro lugar, uma vez que o objetivo da educação problematiza-
dora é identificar e enfrentar os desafios que afetam todos os mem-
bros da comunidade e não apenas — talvez nem principalmente
— as crianças, os alunos não precisariam ser reunidos em grupos
com base na idade, e a educação poderia, de fato, abranger estudan-
tes de todas as idades. A oportunidade de participar da educação
em todas as faixas etárias implicou um objetivo sutilmente altera-
do na finalidade e no propósito da educação em si, em que o pro-
gresso individual não era o objetivo principal e a educação poderia
ser usada para a melhoria da comunidade como um todo, em um
processo mútuo de enriquecimento e transformação. Ao mesmo 347
tempo, como os próprios professores não estão separados das co-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


munidades, eles também podem participar desse processo mútuo,
substituindo, assim, a relação hierárquica entre professor e aluno
por uma prática de esforço compartilhado e empreendimento con-
junto, que resolveria a contradição no cerne da concepção bancária.
A educação problematizadora de Freire começa com a sugestão
de que fazer perguntas é mais capacitador para uma orientação crí-
tica em relação ao mundo do que a reprodução de suposições pré-
-fornecidas ou respostas superficiais. Uma educação problematiza-
dora requer a criação de um novo conteúdo programático extraído
do mundo dos alunos, e esse conteúdo é identificado e descoberto
por meio de uma série dos chamados “temas geradores” (FREIRE,
1970, p. 86): à medida que os alunos identificam o que estão ten-
tando alcançar em e para sua comunidade, vem à tona um núme-
ro crescente de identificações secundárias. Que barreiras existem
para alcançar o objetivo? Como essas barreiras podem ser supe-
radas? Quem mais está equipado com habilidades, conhecimento,
experiência ou função para contribuir com o processo? Acima de
tudo, se o programa for bem-sucedido, o que mudará? Em outras
palavras, uma prática de educação problematizadora contribui
para elevar a alfabetização crítica — em oposição à meramente
funcional — de seus alunos. Criar oportunidades para desenvolver
sua consciência crítica em relação às desigualdades de poder e do-
minação existentes permite-lhes ver que o que sabem do mundo é
altamente mediado por suas experiências e por estruturas de re-
produção ideológica, como cultura e educação. Quando há um cho-
que entre essas questões, surgem ainda mais oportunidades para
rejeitar a ideologia dominante e desafiar as desigualdades que ela
legitima. Em última instância, portanto, mais do que uma ferramen-
ta da ordem capitalista e imperial, a educação problematizadora é
um instrumento de libertação.
Para fazer essa mudança de ênfase no objeto e na prática da edu-
cação na Guiné-Bissau durante o período de descolonização, foi ne-
cessária uma transformação adicional, especificamente na forma
como os educadores eram treinados e preparados para oferecer tal
348
educação. Como parte desse processo, Freire propôs que os profes-
sores estagiários estudassem e observassem a vida da comunidade
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

na qual lecionariam por um longo período, a fim de decodificar os


significantes aparentemente superficiais do significado e usá-los
para obter uma visão profunda da dinâmica, das relações de poder
e dos desafios comuns a essa comunidade. E é aqui que sua pedago-
gia da libertação se reconecta com uma forma de teologia da liber-
tação com referência à raça e à religião, porque, na descolonização
da África Ocidental, na década de 1960, as organizações religiosas
eram geralmente mais do que locais de culto, eram também locais
de pertença e solidariedade e, portanto, impulsionadores de relações
sociais importantes adjacentes às relações dominantes da hierarquia
colonial. Portanto, compreender a posição dessas relações na socie-
dade foi um passo importante para decodificar a dinâmica de poder
operando e identificar possíveis meios para aproveitar as relações
pré-existentes a serviço de uma pedagogia de libertação política:

Nesse estágio de “decodificação”, os investigadores ob-


servam certos momentos da vida da localidade — al-
gumas vezes diretamente, outras vezes, por conversas
informais com os seus habitantes. Eles registram tudo
em seus cadernos, incluindo itens aparentemente de-
simportantes: a forma como as pessoas conversam,
seu estilo de vida, seu comportamento na igreja e no
trabalho. Eles registram a linguagem das pessoas: suas
expressões, seu vocabulário e sua sintaxe (não sua pro-
núncia incorreta, mas o modo como eles constroem
seu pensamento). (FREIRE, 1970, p. 111)

Isto é, por estar situada no coração da comunidade e por incor-


porar uma série de relações horizontais dentro dela, uma igreja
pode ser tomada como um ponto de partida para identificar os te-
mas geradores relevantes para seus membros. Como seria o caso
mais tarde na África do Sul, durante a luta contra o apartheid, cer-
tas organizações religiosas forneceram recursos comunitários que
poderiam ser usados para​​ germinar formas de resistência contra-
-hegemônica. A questão não é que Freire acreditasse que esse era
sempre e inevitavelmente o papel dos grupos religiosos em todos 349
os casos; mas é que, devido a sua localização geográfica dentro das

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


comunidades e a sua abertura teórica a todos, as igrejas têm o po-
tencial de fomentar as relações de oposição tanto quanto as rela-
ções de opressão. É por isso que Freire também destaca que, em
seu compromisso de usar a educação para cultivar uma consciência
política radical, o Conselho Mundial de Igrejas “estava me ofere-
cendo mais do que qualquer universidade.” (FREIRE, 1998, p. 198).
Ou seja, uma pedagogia da libertação abre, em sua obra, uma porta
para uma forma de teologia da libertação.

Conclusão: raça e religião hoje

Na obra de William Empson, compreender o contexto cristão de


certas palavras-chave continha a chave para restaurar o significado
correto em vários textos literários do cânone literário e histórico.
No entanto, como os significados anteriores se perderam quan-
do a própria linguagem passou por mudanças radicais durante a
Reforma e o Iluminismo europeus, sua ideia de significado corre-
to era inseparável tanto de uma visão de mundo cristã quanto de
uma perspectiva eurocêntrica. Raymond Williams baseou-se am-
plamente no método de Empson no desenvolvimento da linguística
histórica, mas, em vez de usar palavras-chave para analisar objetos
textuais delimitados, Williams aplicou-as a uma inovadora leitura
crítica de estruturas ideológicas dominantes no mundo. Embora
o pensamento de Williams sobre raça não fosse muito sofisticado,
ele evitou os piores excessos de Empson a esse respeito, embora o
tenha feito apenas associando a religião à ideologia dominante e
descartando-a junto com a raça, de modo que, em última análise,
tenha dito muito pouco sobre qualquer um deles. A leitura de Freire
sobre a relação entre raça e religião é intrinsecamente mais matiza-
da, tanto porque trabalhar na Guiné-Bissau anticolonial no fim do
período do imperialismo europeu não pode ter deixado de envol-
ver uma altamente racializada dimensão na abordagem da relação
entre colonizador e colonizado quanto porque realizou esse traba-
350 lho a serviço de uma organização religiosa. Em outras palavras, a
igreja não deve mais ser vista —pelo menos, não necessariamente
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

— como um órgão da ideologia dominante, podendo operar como o


locus de resistência para os oprimidos, que, naquele caso, também
eram uma comunidade racializada oprimida.
Desde a morte de Freire, tornou-se comum que suas ideias fos-
sem adotadas na educação crítica de raça nos Estados Unidos. Em-
bora Stephen Nathan Haymes (2002, p. 151) tenha argumentado
que, devido a sua tendência de dissolver a ideia de raça na ideia de
classe, “a relevância de Freire pode ser exagerada quando se trata de
afro-americanos nos Estados Unidos”, Renée Smith-Maddox e Da-
niel G. Solórzano (2002, p. 71) propuseram que a combinação entre
a Teoria Crítica da Raça e o método de educação problematizadora
de Freire oferece àqueles envolvidos no processo de formação de
professores “tanto uma maneira de iniciar futuros professores em
discursos e abordagens pedagógicas que atendam às necessidades
dos alunos negros quanto de fazer os futuros professores aprende-
rem a examinar sua noção de justiça social.”. Eles continuam, citan-
do certas igrejas afro-americanas capazes de fornecer “inúmeras
questões de pesquisa educacional e jurídica, questões literárias e
artísticas e materiais curriculares e pedagógicos relacionados as-
sociados a pessoas negras” (SMITH-MADDOX; SOLÓRZANO, 2002,
p. 71-72), bem como de “fornecer informações e aulas sobre acesso,
permanência e bolsas de estudo na faculdade.” (SMITH-MADDOX;
SOLÓRZANO, 2002, p. 79).
No Reino Unido, a situação é um pouco diferente, principalmen-
te porque, desde o censo de 2011, pela primeira vez na história a
maioria dos cidadãos se identificou como não tendo religião. Mas,
embora isso seja verdade para a população como um todo, não é
verdade para a população negra britânica em particular, ou mes-
mo para qualquer um dos diferentes grupos étnicos minoritários,
nos quais a prática religiosa permanece preponderante. É notável
que muitos intelectuais públicos da Grã-Bretanha são ateus decla-
rados, mas quase nenhum deles revela qualquer consciência de
que o ateísmo de que se orgulham é, em parte, determinado por
sua posição privilegiada em relação às estruturas de classe e raça.
351
Em contraste, entre as populações negras e de minorias étnicas, o

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ateísmo frequentemente não é possível nem desejável, uma vez que
as igrejas negras costumam estar entre os mecanismos de apoio e
recursos comunitários mais importantes disponíveis. Afirmar isso
não é mistificar a prática da fé como tal, que é, em todo caso, uma
vocação individual, mas é chamar a atenção para as formas de or-
ganização social e comportamento social possibilitadas pela parti-
cipação nas relações e nas redes de grupos religiosos. Por isso, ler
Paulo Freire ao lado de Raymond Williams é restabelecer a conexão
entre a organização religiosa e o potencial para a prática contra-he-
gemônica em relação à raça.

REFERÊNCIAS

EMPSON, William. The Structure of Complex Words edited by


Helen Thaventhiran and Stefan Collini. Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 2020. [1. Ed. 1951]
FREIRE, Paulo. Pedagogy of the Oppressed. Translation by
Myra Ramos. Freiburg im Breisgau: Herder and Herder, 1970.

FREIRE, Paulo. The Paulo Freire Reader. Edited by Ana Maria


Araújo Freire and Donaldo Pereira Macedo. New York: Contin-
uum, 1998.

GILROY, Paul. There Ain’t no Black in the Union Jack: The Cul-
tural Politics of Race and Nation. London: Unwin Hyman,
1987.

HAYMES, Stephen Nathan. Race, Pedagogy, and Paulo Freire.


Radical Philosophy Review, Charlottesville, v. 5, n. 1/2, p. 165-
175, 2002.
352
LOOMBA, Ania. Gender, Race, Renaissance Drama. Manches-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ter: Manchester University Press, 1989.

MATTHEWS, Sean. Change and Theory in Raymond Williams’s


Structure of Feeling. Pretexts: literary and cultural studies, [S.
l.], v. 10, n. 2, p. 179-194, 2001.

MCGUIGAN, Jim. Raymond Williams: Cultural Analyst. Bristol:


Intellect Books, 2019.

MIDDLETON, Stuart. Raymond Williams’s “Structure of Feel-


ing” and the Problem of Democratic Values in Britain, 1938-
1961. Modern Intellectual History, Cambridge, v. 17, n. 4, p.
1133-1161, 2020.
SMITH-MADDOX, Renée; SOLÓRZANO, Daniel G. Using Criti-
cal Race Theory, Paulo Freire’s Problem-Posing Method, and
Case Study Research to Confront Race and Racism in Educa-
tion. Qualitative Inquiry, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 66-84, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Culture and Society. London: Chatto


and Windus, 1958.

WILLIAMS, Raymond. Keywords: A Vocabulary of Society and


Culture. London: Croon Helm, 1976.

WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. Oxford: Oxford


University Press, 1977.

WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. London: Chatto 353


and Windus, 1961.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


WILLIAMS, Raymond. The Culture of Nations. In: WILLIAMS,
Daniel (ed.). Who Speaks For Wales? Nation, Culture, Identity.
Cardiff: University of Wales Press, 1983a. p. 191-203.

WILLIAMS, Raymond. Wales and England. In: WILLIAMS,


Daniel (ed.). Who Speaks For Wales? Nation, Culture, Identity.
Cardiff: University of Wales Press, 1983b. p. 16-26.

WILLIAMS, Raymond; ORROM, Michael. Preface to Film. Lon-


don: Film Drama Limited, 1954.

RESUMO
Este capítulo explora o lugar da raça e da religião no trabalho
de Raymond Williams e Paulo Freire. Começando com uma
discussão sobre a Estrutura de Palavras Complexas de William
Empson (1951), o texto sugere que o trabalho de Empson
foi uma influência maior no trabalho de Williams do que foi
pensado anteriormente, especialmente no uso da linguística
social para analisar a cultura. Entretanto, há também dois ele-
mentos-chave em Empson para os quais não há equivalente
em Williams: uma sensibilidade cristã e uma perspectiva eu-
rocêntrica que não incorpora a diversidade racial. Cultura e
Sociedade (1958), Palavras-chave (1976) e Marxismo e Lite-
ratura (1977) estão todas enraizadas no trabalho de Empson,
mas não dizem praticamente nada sobre religião ou raça, e o
abandono dessas coisas tem uma série de efeitos muito preci-
sos. Positivamente, ele permite que Williams se afaste da polí-
tica racial eurocêntrica de Empson, de modo que seu trabalho
possa ser lido como uma correção, a este respeito, em relação
ao seu antecessor. Por outro lado, perde-se a oportunidade de
identificar formas de relações contra-hegemônicas que uma
sociologia de organizações religiosas pode proporcionar - e
354 Williams interpreta as organizações de religião apenas como
órgãos da ideologia dominante. O problema com esta suposi-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ção é que ela não dá conta de como os tipos de relacionamento


que caracterizam as comunidades baseadas na fé (de todos os
tipos) são inflectidas pelas experiências de raça e podem pro-
porcionar instâncias de solidariedade contra-hegemônicas. É
por isso que este texto sugere que vale a pena ler Williams ao
lado de seu exato contemporâneo, Paulo Freire, pois no traba-
lho de Freire há uma conexão entre uma política racial crítica
e o reconhecimento da contribuição que certas comunidades
religiosas podem potencialmente dar para que a política pos-
sa ser restabelecida.
Palavras-chave: lingüística histórica; raça; religião; ideologia
dominante; prática contra-hegemônica
ABSTRACT
This chapter explores the place of race and religion in the
work of Raymond Williams and Paulo Freire. Beginning with
a discussion of William Empson’s Structure of Complex Words
(1951), it argues that the work of Empson was a greater
influence on Williams’s work than has previously been
realised, especially in using social linguistics to analyse culture.
However, there are also two key elements in Empson for which
there are no equivalent in Williams: a Christian sensibility and
a Eurocentric perspective which fails to incorporate racial
diversity. Williams’s Culture and Society (1958), Keywords
(1976) and Marxism and Literature (1977) are all rooted in
the work of Empson but say virtually nothing about either
religion or race and the jettisoning of these things has a series
of very precise effects. Positively, it enables Williams to move
away from the Eurocentric racial politics of Empson so that
355
his work can be read as a corrective to his predecessor’s in

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


this regard. On the other hand, the opportunity to identify
forms of counter-hegemonic relationships that a sociology of
religious organisations can provide is missed – and Williams
interprets organisations of religion solely as organs of the
dominant ideology. The problem with this assumption is
that it fails to account for how the kinds of relationship that
typify faith-based communities (of all kinds) are inflected by
experiences of race and can provide instances of counter-
hegemonic solidarity. This, the chapter argues, is why it is
worth reading Williams alongside his exact contemporary
Paulo Freire, because in Freire’s work a connection between
a critical racial politics and an acknowledgement of the
contribution certain religious communities can potentially
make to that politics can be re-established.
Keywords: historical linguistics; race; religion; dominant
ideology; counter-hegemonic practice
SOBRE O AUTOR
Hywel Dix é professor associado de inglês na Universidade de
Bournemouth, Reino Unido. Ele publicou amplamente sobre
a relação entre literatura, cultura e mudança política na Grã-
-Bretanha contemporânea, mais notadamente em Postmodern
Fiction and the Break-Up of Britain (2010), After Raymond
Williams: Cultural Materialism and the Break-Up of Britain
(Segunda Edição, 2013) e Multicultural Narratives: Traces and
Perspectives, co-editado com Mustafa Kirca (2018). Seus inte-
resses mais amplos de pesquisa incluem literatura moderna
e contemporânea, teoria cultural crítica, carreiras autorais e
autoficção. Sua monografia sobre carreiras literárias intitu-
lada The Late-Career Novelist foi publicada pela Bloomsbury
em 2017 e uma coleção editada de ensaios sobre autoficção
em inglês foi publicada pela Palgrave em 2018. Ele comple-
tou recentemente um estudo intitulado Compatriots or Com-
356
petitors? Welsh, Scottish, English and Northern Irish Writing e
Brexit in Comparative Contexts.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams
RAYMOND WILLIAMS
I
Legados de
Raymond Williams:
educação, estudos culturais,
cultura, marxismo
e direitos humanos
O LEGADO DE RAYMOND WILLIAMS

Maria Elisa Cevasco1

O centenário de Raymond Williams (1921-1988) nos dá a opor-


tunidade de celebrar sua imensa contribuição para um diagnóstico
e uma teoria da vida social do ponto de vista da produção cultu-
ral. Quero aqui destacar as linhas centrais de sua teoria da cultura
como a interrelação dos diferentes elementos (históricos, sociais e
políticos) de todo um modo de vida. Reconstituir sua trajetória, é,
penso, uma das maneiras de manter vivo seu legado.
361

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


O trajeto

A elaboração primeira dessa teoria é quase uma imposição de


seu momento histórico. Ele nos conta que, terminada a Segunda
Guerra, onde serviu em uma unidade de tanques, voltou para a uni-
versidade de Cambridge para terminar, ainda como aluno bolsista,
seu curso de Literatura. Ele lembra que os quatro ou cinco anos que
passou fora da Universidade haviam mudado totalmente a atmos-
fera. Uma palavra parecia concentrar a mudança: cultura. Antes da
guerra, era usada para se referir às artes e aos processos especiais
de criação. No momento de seu retorno a Cambridge, o sentido de
cultura como modo de vida começa a circular com grande insistên-
cia. A palavra, para ele, concentrava o sentido da transformação que
era necessário precisar, e apontava a análise cultural como ponto

1
Livre docente e professora titular do Departamento de Letras Modernas, da Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Especialista em teo-
ria cultural materialista. E-mail: maece@usp.br. Link para currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/9179735778741467. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1253-5996.
de entrada privilegiado para a investigação dos propósitos e funda-
mentos da vida social.
Seu projeto intelectual está dado aí: sua obra, desde pelo menos
1958, iria ser dedicada a estudar o significado cambiante dessa pa-
lavra em diferentes períodos históricos e a trabalhar para que se
instaurasse um sentido que fosse favorável à democracia e à mu-
dança social. Em um dos seus ensaios mais comoventes, para os
que, como nós, apostam nas ideias com as sementes da vida, ele
esclarece, já no começo da sua jornada, que a tarefa do intelectual
engajado se ancora na incorporação, integral, dos valores de que
depende uma nova forma de vida, entre os quais ele elenca,

que a gente comum deve governar, que a cultura e a educa-


ção são comuns, que não há massas a serem salvas, captu-
radas ou dirigidas, mas apenas essas pessoas todas juntas,
envolvidas no curso de uma expansão extraordinária, rápida
362 e confusa de suas vidas. O trabalho de um escritor é com os
sentidos individuais e em como transformar esses sentidos
em algo comum a todos. (WILLIAMS, [1958] 1989, p. 18)
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Difícil dar uma descrição melhor de seu legado: ele deixou o


campo dos estudos da cultura completamente transformado e um
arsenal teórico e argumentativo para combater as concepções e va-
lores que apequenam o significado da vida em sociedade. Seu tra-
jeto vai construindo uma forma de pensar a análise da produção
cultural em instrumento de diagnóstico dos rumos de uma socieda-
de, de intervenção nas mudanças qualitativas da vida em comum,
e na transformação da cultura, no mais das vezes mera apologia ao
sistema, em uma forma de luta que contribua para o que ele cha-
ma de “a longa revolução”, que nos levaria a uma nova forma de
vida. Acredito que era a isso que Cornell West se referia ao dizer
que “Raymond Williams foi o último dos grandes intelectuais re-
volucionários socialistas nascidos antes do fim da Idade da Europa
(1492-1945)” (WEST, 1992, p. 6).
Quais os principais movimentos desse projeto intelectual? O
primeiro, e mais evidente, é o desmonte de uma longa tradição
conservadora de conceber a cultura como algo abstrato e absoluto,
como a herança de uma humanidade indefinida e repositório de va-
lores eternos e imutáveis, a versão idealista e hegemônica de uma
esfera apartada da concretude e materialidade do modo de vida.
Sua primeira grande obra, Culture and Society, reconstrói uma tra-
dição de pensamento sobre a cultura desde dos fins do século XVIII
até 1950. Ele mostra, no livro, como as mudanças na vida social
neste primeiro período da Revolução Industrial, quando, para falar
como Marx, tudo que é sólido desmancha no ar, vai se articulando
uma visão de cultura como um universo autônomo de valores, se-
parado dos conflitos que marcam a vida social. A cultura seria, nes-
sa visão que vai sendo construída por muitos pensadores ao longo
da história, um espaço idealizado onde seríamos todos igualmente
humanos, um conjunto do melhor que foi pensado e dito pela hu-
manidade, para falar como Matthew Arnold, figura central nessa
tradição.
363

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Cultura Conservadora e não

Em seu livro Culture and Anarchy, de 1869, Arnold recomen-


da a cultura como o antídoto para a anarquia do materialismo, do
novo modo de vida moldado pela sociedade industrial e da nova
modalidade de agitação social em que os trabalhadores demanda-
vam maior participação política. Para dar um exemplo, o famoso
incidente no Hyde Park, em que a Liga Reformista pedia, em 1866,
a extensão do voto a todos os homens, e que terminou com todas
as cercas do parque quebradas e em confrontos com a polícia, dá
bem ideia do que ele considerava anarquia. Na sua visão, a “cultura
olha para além das máquinas, a cultura odeia o ódio, a cultura tem
uma grande paixão, a paixão por doçura e luz” (WILLIAMS, 1958, p.
126). Isso, claro, se ninguém fosse reivindicar igualdade ou a exten-
são da democracia.
Essa visão Arnoldiana encontra seu ápice no século XX, na posi-
ção de F.R. Leavis, fundador da disciplina de literatura inglesa em
Cambridge. Esta disciplina, que a partir dessa universidade se espa-
lhou por outras instituições de educação da Grã-Bretanha, e, mais
tarde, dos Estados Unidos e por muitos outros lugares do mundo,
acabou se constituindo na maneira única de pensar a literatura, e
teve uma influência sobre a vida social muito maior do que se cos-
tuma associar a uma disciplina acadêmica. Como lembra Perry An-
derson, uma das peculiaridades da Grã-Bretanha é que, ao contrá-
rio de outras potências europeias, esta nunca havia produzido “uma
sociologia clássica nem um marxismo nacional. Como resultado, a
cultura britânica caracterizou-se pela ausência de um centro. Isso
porque tanto o materialismo histórico quanto a sociologia clássica
eram empreendimentos totalizantes – tentativas de apreender a es-
trutura das estruturas, a articulação do social” (ANDERSON, [1968]
1992, p. 56). Este vazio foi ocupado pelos preceitos de Leavis, que
pareciam oferecer uma explicação sinóptica do que estava errado
no que ele chamava de civilização da máquina, e como a cultura
podia erigir um modo de vida oposto a esta civilização, baseado na
364 conservação dos tais valores eternos e imutáveis. Seu sucesso foi
inegável. Para Terry Eagleton:
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Em princípios da década de 1920, era difícil explicar porque


valia a pena estudar literatura inglesa; em princípios da dé-
cada de 1930, a questão passou a ser para que perder tempo
com qualquer outra coisa. O Inglês era não apenas uma ma-
téria que valia a pena estudar, mas também a mais civiliza-
dora das atividades, a essência espiritual da formação social.
Longe de ser uma atividade amadorística ou impressionista,
era a arena em que as questões mais fundamentais da vida
humana – o que significa ser humano, empenhar-se em rela-
ções com os outros, viver a partir dos valores mais essenciais
– adquiriam relevo e podiam ser submetidas ao mais intenso
escrutínio. (EAGLETON, 2006, p. 34)

Uma das possíveis razões para o predomínio dessa visão até pelo
menos os anos 1960, quando Williams vai colocá-la em questão, é
que seu projeto é essencialmente conformista, idealista e tradicio-
nalista. A dissociação entre o que ele chama de cultura e a vida so-
cial, a civilização, coloca a cultura em um plano separado do mundo
material onde as mudanças, os conflitos, as desigualdades se dão
de fato. Essa separação funciona como uma repressão e dissolução
da política e da intervenção na vida social: a civilização e o mundo
real são vistos como algo perdido, pelo qual não vale a pena lutar.
A única luta que vale a pena é a da esfera espiritual da cultura, a
manutenção da tradição e o cultivo de valores imutáveis. Nesse pla-
no, o discurso da mobilização contra as estruturas sociais realmen-
te existentes não faz sentido. Uma das razões para o “sucesso” do
projeto e sua constituição em princípio fundamental do ensino de
literatura em várias partes do mundo pode estar justamente aí, no
fato de que não revolucionou nada que fosse absolutamente funda-
mental para essas estruturas.
No momento do pós-guerra, quando Williams volta a Cambridge,
essa visão de cultura – que equivale, como todas, a uma visão de
mundo – está convivendo com outra concepção, vinda em especial
da antropologia, a de cultura como todo um modo de vida. Em 1948,
365
o poeta conservador T.S.Eliot publicou um livro muito influente no
debate intelectual, intitulado Notes towards the definition of cultu-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


re, onde apresenta uma visão mais abrangente do que a de Leavis,
mas com o mesmo espírito elitista e anti-democrático. Ler suas co-
locações hoje é chocante, e faz um contraste esclarecedor com as
posições de Williams: por exemplo, “de acordo com minha visão
de cultura, toda a população deveria ter um papel ativo em todas
as atividades culturais: não todos nas mesmas atividades e nem no
mesmo nível” (ELIOT, 1962, p. 38). Caberia às elites liderar a socie-
dade e preservar os valores espirituais:

Parecer-me-ia que na medida em que aperfeiçoarmos os mo-


dos de identificar na mais tenra idade, educar para seu papel
no futuro, e colocar em posições de comando esses indiví-
duos que formarão as elites, todas as distinções anteriores
de classe e de hierarquia se tornarão um mero vestígio ou
simples sombra, e a única distinção de nível social será entre
as elites e o resto da comunidade, a menos que, como pode
ocorrer, vá haver uma ordem de precedência e prestígio en-
tre as próprias elites. (ELIOT, 1962, p. 36-37)
Coube a Williams se contrapor a essa maneira de pensar. Ele ti-
nha consciência do que está envolvido na definição do significado
dessa palavra chave. Tinha já demostrado no livro que comentei
aqui, Culture and Society, que a ideia de cultura constituiu-se como
uma reação a mudanças profundas na vida social, mudanças essas
que precisavam ser avaliadas do ponto de vista da qualidade de
vida que promoviam. Essa avaliação leva a uma recomposição dos
propósitos gerais de uma sociedade, que estão sempre em disputa.
É por isso que Williams reconhece que “A elaboração de uma ideia
de cultura é um esforço continuado para controlar esse sentido.”
(WILLIAMS, 1958, p. 285).
Vale a pena citar por extenso a formulação dessa nova ideia, que
abarca tanto o significado de cultura como a tradição e criação de
grandes obras quanto os outros significados e valores da forma de
vida que faz com que a cultura seja “ordinária”, comum a todos, em-
bora com grandes diferenças de acesso. Esta a visão que vai emba-
366
sar a trajetória intelectual de Williams:
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus pró-


prios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade
humana expressa tudo isso nas instituições, nas artes e no
conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta
de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento
se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pres-
são da experiência, do contato e das invenções, inscreven-
do-se na própria terra. A sociedade em desenvolvimento é
um dado, e, no entanto, ela se constrói e reconstrói em cada
modo de pensar individual. A formação desse modo indivi-
dual é, a princípio, o lento aprendizado das formas, propó-
sitos e significados de modo a possibilitar o trabalho, a ob-
servação e a comunicação. Depois, em segundo lugar, mas de
igual importância, está a comprovação destes na experiên-
cia, a construção de novas observações, comparações e sig-
nificados. Uma cultura tem dois aspectos: os significados e
direções conhecidos, em que seus membros são treinados;
e as novas observações e significados, que são apresentados
e testados. Estes são os processos ordinários das sociedades
humanas e das mentes humanas, e observamos através deles
a natureza de uma cultura: que é sempre tanto tradicional
quanto criativa; que é tanto os mais ordinários significados
comuns quanto os mais refinados significados individuais.
Usamos a palavra cultura nesses dois sentidos: para desig-
nar todo um modo de vida – os significados comuns; e para
designar as artes e o aprendizado – os processos especiais
de descoberta e esforço criativo. Alguns escritores usam
essa palavra para um ou para o outro sentido, mas insisto
nos dois, e na importância de sua conjunção. As perguntas
que faço sobre nossa cultura são perguntas referentes aos
nossos propósitos gerais e comuns e, mesmo assim, são per-
guntas sobre sentidos pessoais profundos. A cultura é de to-
dos, em todas as sociedades e em todos os modos de pensar.
(WILLIAMS, [1958] 1989, p.4)

Cultura à moda de Williams

É assentado nessa visão que Williams vai fundar a nova posição


que estou tentando expor aqui. Como vimos, o primeiro passo tinha
que ser enfrentar a tradição hegemônica, que recobre a avaliação 367
da vida social efetivamente existente com os véus róseos de uma

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ideologia humanista sem apoio efetivo no real. Havia ainda outro
enfrentamento necessário, este mais próximo das convicções de
Williams. Ele fora, por dezoito meses, membro do Partido Comu-
nista e tem bem claro quais as restrições que faz às posições mais
conhecidas do marxismo britânico. Ele se opõe com firmeza a ideia
de que o Partido deve prescrever o que os artistas podem ou não
formular, se quiserem contribuir para um futuro socialista. Para
ele, impor uma ideia de como deve ser o futuro é pouco produtivo,
e bastante autoritário. Também não concorda com a ideia, comum
entre alguns marxistas de então, de que as massas são ignorantes e
precisam ser esclarecidas.
Seu trabalho será justamente o de formular uma teoria marxista,
a que ele chamou de materialismo cultural, que vai revolucionar as
formas da análise da cultura, no mesmo sentido em que o materia-
lismo histórico revolucionou o estudo da sociedade, da economia e
da história. Segundo Williams, aprender com Marx não é aprender
fórmulas ou métodos, mas continuar a investigação da vida social
no caminho que este deixou aberto, de modo a entender a produ-
ção da cultura e da linguagem como um processo material e social,
um aspecto fundamental, ainda que pouco desenvolvido na teoria
marxista, e que pode ser visto “como parte necessária e até mesmo
central da teoria mais geral de Marx da produção e do desenvolvi-
mento humanos.” (WILLIAMS, [1983], 1989, p. 224).

O materialismo cultural

Uma contribuição importante de Williams para a reformulação


de certa crítica marxista é sua reflexão teórica sobre como se dão
as relações entre produção cultural e produção social. Sabemos que
muito do esforço da tradição materialista se concentrou em buscar
maneiras produtivas de se descrever como se dão essas relações
entre as forças produtivas da vida material e as da vida espiritual.
As formulações mais interessantes eram as que buscavam demons-
368 trar as diferentes maneiras com que o contexto socioeconômico de-
termina a cultura, a consciência e a própria existência, moldando a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

produção cultural, e possibilitando a descrição deste contexto atra-


vés da análise dessa produção.
Para o materialismo cultural é fundamental encontrar maneiras
de descrever a relação entre cultura e sociedade. Este é o princi-
pal diferencial dessa teoria. Ao longo de sua carreira, Williams vai
explicitando como se dá essa relação. Ele apresenta uma correção
ao mecanicismo implícito na conhecida fórmula marxista da base
determina a superestrutura. Para ele, é fundamental manter a ideia
de determinação, a fim de se contrapor às teorias de uma suposta
autonomia da cultura. Ele ressalta que as relações de produção de
base efetivamente determinam a vida cultural, mas o fazem através
exercendo pressões e impondo limites ao que se produz na superes-
trutura. Por sua vez, a produção cultural exerce um papel mais for-
mativo na sociedade do que a sua descrição como superestrutural
sugere. Esta produção não só reflete a base com a inflete, a ligação
é de mão dupla. Mais ainda, essa divisão é pouco produtiva para se
descreve a situação contemporânea: em um ensaio central publica-
do em 1977, “Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory”,
ele retoma os exemplos que Marx apresenta nos Grundrisse, onde
ele ressalta que o fabricante de piano é um trabalhador produtivo,
a pessoa que distribui os pianos pode até ser considerada produti-
va, uma vez que produz mais valia, mas quem toca o piano, para si
mesmo ou para outros não seria um trabalhador produtivo. Assim,
diz Williams (1980, p. 35), “O fabricante de pianos seria base, e o
pianista superestrutura. Esse modelo não ajuda a descrever a di-
nâmica da atividade cultural, e menos ainda a atividade cultural na
era dos meios de comunicação de massa”. Em nossos dias, a própria
designação de Hollywood como “a indústria do cinema” evidencia a
interpenetração de base e superestrutura.
O que se ganha com as maneiras mais produtivas de perceber
essa interpenetração propostas por Williams? Vale lembrar que o
objetivo de toda e qualquer teoria é pensar a prática. Cada uma das
teorias nos permite perceber certos aspectos e nos impede de ver
outros. Como vimos, no caso do materialismo cultural, o fundamen-
369
tal é entender as relações entre processo social e processo criativo.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Para Williams, as definições do marxismo ortodoxo impedem de
ver que tanto a base quanto a superestrutura não se referem a algo
estático mas a instâncias em processo. Na sua interpretação, Marx
não falava de áreas estanques, mas de processos produtivos, a base
constituindo as relações estruturais onde se assentam as demais
atividades da produção social. Além de produzir mercadorias, os
homens e mulheres produzem a si mesmos, e sua história, e, assim,
a noção de base tem que levar em consideração a produção mate-
rial da vida, incluindo a produção das formas de dar sentido a essa
produção. Vendo desse modo o que se pensava, e, muitas vezes, se
menosprezava, como meramente superestrutural é, de fato, básico.
Para ele, temos que reavaliar a base não como uma “noção econô-
mica fixa, ou uma abstração tecnológica” mas como “as atividades
específicas de pessoas em relações sociais e econômicas que con-
tém variações e contradições fundamentais, e, constituem, portanto
sempre um processo dinâmico” (WILLIAMS, 1980, p. 34). A noção
de determinação para Williams deve ser pensada, já vimos, como
um processo através do qual as relações econômicas de base exer-
cem pressões e impõem limites à atividade humana. Essas formu-
lações permitem entender mais claramente as implicações mútuas
entre atividades da base e da superestrutura, tão características de
nosso tempo, como as produções da indústria cultural, das redes
sociais e de todos os demais exemplos de mercadorias vendáveis
que são também produtoras de sentidos ideológicos, formando e
informando nosso modo de vida.
Williams acrescenta que a noção de totalidade, usada por muitos
teóricos marxistas para designar o conjunto das determinações so-
ciais, tende a ser usada de forma monolítica, não deixando ver que
existe um propósito na organização dessas determinações, uma
intenção, que é a de manter as estruturas de dominação de uma
sociedade. Por isso, argumenta que a noção de hegemonia, propos-
ta por Antonio Gramsci, nos permite compreender como essas es-
truturas saturam nossa sociedade e acabam por ser a substância
e o limite do senso comum, de tal modo que são o próprio sentido
da realidade para a maioria das pessoas. Ele alerta para o fato de
370
que tampouco se trata de pensar a hegemonia como algo estático,
ela está sempre em processo e em disputa, confrontando-se com as
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

noções residuais, que se mantém de outros momentos históricos, e


as emergentes, as que anunciam o que está por vir. A crítica cultural
marxista não se pode furtar a dar uma descrição e uma intepreta-
ção persuasiva da convivência de significados e valores residuais e
hegemônicos, e de forma crucial, deve ser capaz de distinguir os va-
lores e significados emergentes, que possam contribuir para ques-
tionar a hegemonia vigente.
Que diferença fazem essas redefinições categoriais para a prá-
tica de análise? As obras de arte são pontos de encontro entre
um projeto individual e um modo coletivo de vida, que, no caso
da sociedade contemporânea, se desenvolvem dentro dos limi-
tes e das pressões do modo de produção capitalista. Uma vez que
a arte é expressão da consciência possível, ela figura o processo
social de maneiras específicas, que cabe à crítica elucidar. Nessa
visão, obras de arte não são objetos autônomos, que devem ser
decompostos para se poder descrever suas partes constitutivas,
mas, antes, “uma atividade prática, cuja natureza e condições é
tarefa da análise descobrir” (WILLIAMS, 1980, p. 47). Essa con-
cepção expande o campo da crítica cultural e potencializa sua
relevância social: seu trabalho passa a ser, mais do que aferir o
arranjo formal que compõe a obra, desvendar as estruturas que
condicionam a prática artística, proporcionando um conheci-
mento único sobre aspectos fundantes do modo de vida de uma
determinada sociedade.

Ferramentas analíticas

Buscando formular as ferramentas analíticas para este trabalho


de descobrir e interpretar o que se dá na representação artística,
Williams elaborou a categoria de estrutura de sentimento, para
designar a articulação, em obras de arte, de uma resposta a mu-
danças determinadas na organização social. Trata-se de verificar,
na análise, como se dá essa determinação da vida socio histórica 371
na própria forma das representações artísticas. A noção de estru-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


tura de sentimento foi criada para “focalizar uma modalidade de
relações históricas e sociais que era ainda totalmente interior à
obra, e não dedutível através de uma ordenação ou classificação
externas” (WILLIAMS, 1981, p. 164). Ou seja, trata-se de descre-
ver a presença de elementos comuns em várias obras de arte do
mesmo período histórico que não podem ser descritos apenas
formalmente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo:
a estrutura de sentimento é a articulação de uma resposta a mu-
danças determinadas na organização social. Essas mudanças se
inscrevem na forma da obra, e se constituem em concretizações
de elementos da realidade, que, ao adquirir existência material
na fatura artística ficam disponíveis para a percepção de todos.
Por essa via, a noção de estrutura de sentimento descreve o tra-
balho da arte, que está em “descobrir” significados e valores, co-
locá-los em circulação, e moldar nossas respostas a estes novos
significados. Estas respostas são elas mesmas reações à situação
social e histórica que as determina. Em The Long Revolution há
um formulação que, parece-me, explica bem a estranha junção de
termos de esferas habitualmente pensadas em separado: “é tão
firme e definitiva quanto sugere a palavra “estrutura” e, no en-
tanto, opera nos mais delicados e intangíveis aspectos de nossas
atividades” (WILLIAMS, 1961, p. 48).
Trata-se então de buscar uma maneira de descrever a relação
dinâmica entre experiência, consciência e linguagem, como forma-
lizada e formante na arte, nas instituições e tradições. A questão é
se buscar uma categoria para designar algo que é estruturado – na
medida em que responde a injunções de seu tempo histórico - e, ao
mesmo tempo, estruturante - uma vez que figura um sentimento
social que até aí era imperceptível. Na boa definição de Cora Kaplan,
a expressão nomeia o “sentimento vivido de um tempo, suas histó-
rias dinâmicas e efêmeras que contêm e revisam as contradições
entre as ideologias rivais e entre essas e as suas oposições ou alter-
nativas radicais” (KAPLAN, 1995, p. 231).
372 Além de inventar novas categorias, o materialismo cultural pro-
vê uma série de instrumentos para ampliar nossa postura diante
da arte. Um dos mais fulcrais é a demonstração da historicida-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de dos conceitos que são parâmetros que guiam nosso modo de


pensar. Em obras como Palavras-Chave e Marxismo e Literatura,
ele traça os sentidos cambiantes do nosso vocabulário de análise,
começando com a própria palavra “cultura” e abarcando noções
como literatura, democracia, hegemonia, tradição e muitas outras.
Mais do que sentidos fixos, o significado corrente desses termos
é, como vimos com Leavis e Eliot, produto de uma intensa dispu-
ta social, que concentra em si ecos e contradições de diferentes
momentos históricos. A percepção de que, mais que definições,
esses conceitos são um problema, muda o sentido da análise. O
que eram considerados conceitos consagrados, a prioris que a
análise convencional aceita sem criticar, são, de fato, sínteses de
múltiplas determinações e de diferentes horas históricas. Traçar
essa multiplicidade de sentidos traz à tona a substância material
e social que os moldaram, e demonstra a possibilidade de infletir
esses sentidos em outra direção.
Os Estudos Culturais

Como nenhuma das disciplinas das ciências humanas, e muito


menos a análise literária, tinham fundamentos que se aproximassem
dos do materialismo cultural, Raymond Williams acabou sendo uma
das figuras centrais da elaboração de uma nova disciplina, os estu-
dos culturais. Ele mesmo nos conta que muitos relacionam o apare-
cimento dessa disciplina com a publicação de três livros, o próprio
Culture and Society, The Uses of Literacy, 1957, de Richard Hoggart e
The Making of the English Working Class, 1963, de E. P. Thompson. Ele
concorda que estes textos são fundantes, mas chama a atenção para
o fato de que contar a história da formação dos estudos culturais a
partir de livros é mais um sintoma do tipo de historiografia cultural
característico da academia, algo que os próprios estudos culturais
são estruturados para questionar e reformular. Ele recorda que a dis-
ciplina surgiu, ainda nos anos 1940, para dar conta das demandas 373
dos alunos dos cursos de extensão universitária para adultos, onde

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


os três autores citados foram professores, a Workers’ Educational As-
sociation. Ele ressalta que os professores desse projeto educacional
fizeram uma escolha consciente de se engajar em um programa que
era uma alternativa de oposição às aulas formais. Homens de esquer-
da, viam essa prática não como uma profissão, mas como o exercício
de uma vocação militante. A questão aí era constituir uma processo
de educação efetivamente democrática, que possibilitasse aos alunos
os meios para sua conscientização e integração social. Como lem-
bra Williams, essa foi uma experiência educacional de intensa troca,
onde a dinâmica das salas de aula modificava o projeto pedagógico.
Para os alunos, tratava-se de entender as diferentes disciplinas como
forma de entender a sociedade e interferir nos seus rumos. Na re-
constituição dos professores de humanidades participantes do pro-
jeto, dar aulas aí no pós- guerra foi uma experiência educacional no
sentido forte da palavra, uma experiência de troca em que alunos e
professores se enriquecem. Para esses últimos, tratava-se de explicar
as diferentes disciplinas em termos que pudessem ser entendidos
por todos e, principalmente, pudessem ser utilizadas como formas
de intervenção em movimentos sociais reais. Com isso, tiveram que
alterar quase tudo. De saída, tiveram que mudar o que ensinavam.
Os que vieram de literatura, por exemplo, tiveram que expandir o
currículo para incluir muito mais do que as obras canônicas, e abor-
dar os meios de comunicação de massas que começavam a mudar as
formas da socialização, a caminho da atual sociedade da imagem e
da comunicação. Tiveram, ainda, que achar um novo modo de ensi-
nar, levando mais em consideração as necessidades reais de alunos
acostumados a buscar relevância e propósito em todas suas ativida-
des. Os estudantes buscavam nos fenômenos culturais uma forma de
entender o mundo que os rodeava. Esse entendimento era visto não
como a aquisição desinteressada de mais uma habilidade, mas como
ferramenta para a transformação social. Todas essas opções práticas
acabam moldando as opções teóricas e disciplinares. Isso fez com
que mudassem os programas, os métodos de análise e a finalidade
do curso, ou seja, mudaram o que, como e para que se estuda.
374
Williams, que era formado em literatura e tinha se especiali-
zado em teatro, passou a incluir muito mais em seus cursos. Se a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cultura é todo um modo de vida, suas aulas tinham que levar em


conta as diferentes materializações da cultura, indo da alta litera-
tura às grandes instituições culturais da classe trabalhadora, como
os sindicatos, organização material do princípio da solidariedade
fundamental entre os despossuídos. Até hoje, quando os estudos
culturais se tornaram uma disciplina acadêmica, os programas en-
globam diferentes manifestações culturais, que vão desde grandes
obras do cânone literário a filmes, canções populares e até mesmo
diferentes tecnologias de comunicação.
De especial interesse é a proposta de Williams de mudar a meto-
dologia tradicional de dar aulas. Ao invés de fazer palestras a seus
alunos do curso de extensão, ele pratica um método a que chama de
“ensino de discussão em oposição a ensino de crítica”.2 A ideia é que
o aprendizado se baseie no interesse dos alunos, que conduzem a
2
Sobre o método da discussão em Williams, ver neste livro o capítulo de PAIXÃO e TREVI-
SAN. Conferir também Williams (2019), em “Abandonando a palestra: método de discus-
são para as aulas de literatura para adultos”; e também Yasmim Camardelli - Dissertação
de Mestrado (em andamento na FE/UNICAMP), dedicada à tradução do livro Communi-
cations.
discussão do tema da aula. Embora a institucionalização da disci-
plina na academia tenha trazido uma série de mudanças, até nossos
dias, os melhores professores de estudos culturais têm consciência
de que os métodos tradicionais de ensino por transmissão de um
conhecimento e cobrança do que foi exposto em aula bate de frente
com a “filosofia” da nova disciplina. O central aí é ensinar os alunos
a pensar por si, tornaram-se sujeitos de seu próprio aprendizado, e
participantes na organização dos conteúdos e das formas de discu-
ti-los. Tudo isso com plena consciência de que com isso os profes-
sores perdem o controle exclusivo que exercem sobre suas aulas, e
embarcam na aventura do ensino efetivamente democrático, que
inclui os alunos desenvolverem posições diferentes e antagônicas.
Com isso a prática de ensino leva em conta os propósitos fundantes
da disciplina, que, nas palavras de Williams, eram os de levar o

melhor que se pode produzir em termos de trabalho inte-


lectual até pessoas para quem esse trabalho não é um modo 375
de vida, ou um emprego, mas uma questão de auto interesse

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


para que entendam as pressões que sofrem, pressões de to-
dos os tipos, das mais pessoais às mais amplamente políti-
cas. (WILLIAMS, [1986], 1989, p. 162)

Ainda nessa reconstrução da trajetória da nova disciplina que


Williams faz no texto The Future of Cultural Studies, que venho re-
senhando aqui, ele assinala a alteração fundamental no modo de
abordar a produção cultural que ela traz.
Esta proposição teórica é um ponto de chegada do projeto de
conceber uma crítica cultural marxista que dê conta de explicar a
interrelação entre processo artístico e processos sociais. Trata-se
de uma contribuição original às formas de se abordar os produtos
culturais. Certamente estudar, por exemplo, uma obra literária em
relação a seu contexto social ou histórico, ou ilustrar esse contexto
através de obras literárias não é novidade. O diferencial dos estudos
de cultura é que eles se propõem a considerar a criação artística e o
modo de vida de uma sociedade como diferentes manifestações da
mesma estrutura, que determina tanto a produção cultural quanto
a vida social.
Postular a inter-constitucionalidade de arte e sociedade abre es-
paço para transformar a atividade da crítica. Mais do que avaliar
a construção formal de um objeto, fazer crítica adquire um gran-
de potencial cognitivo uma vez que fazer crítica cultural é também
apreender o funcionamento real de uma determinada sociedade,
cujas contradições e processos a obra de arte concretiza, possibili-
tando seu reconhecimento para além dos véus da ideologia. Claro
que para uma crítica assumidamente militante, conhecer esse fun-
cionamento é parte fundamental do projeto de modificar a socieda-
de, tornando-a mais justa e democrática.
Esta maneira de entender possibilita, então, ao crítico “ler” a
sociedade nas obras como concretização de relações sociais, como
processos complexos que requerem uma “interpretação ativa, su-
376 jeita a convenções que são elas mesmas formas (sempre cambian-
tes) de organização e relação sociais” (WILLIAMS, [1973], 1997, p.
47). Estamos aí a uma grande distância das concepções das dife-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

rentes escolas críticas da obra de arte como um objeto cujos com-


ponentes devem ser analisados um a um. Essa forma de ver a arte
como prática social confere franqueia uma compreensão específica
dos fundamentos de uma sociedade, uma maneira única de ver e de
compreender “algumas das convenções fundamentais do que cha-
mamos de sociedade” (WILLIAMS, [1974], 1983, p. 20)

Intervenções políticas

Essa maneira de praticar a crítica cultural potencializa a capa-


cidade de intervenção política da sua obra. Ele apresentou, em en-
saios, proposições de mudança prática que levariam, para citar um
desses títulos, “Em direção a muitos socialismos”. Mas, como era de
se esperar, uma das formas mais marcantes de sua contribuição a
uma análise política vem da capacidade de nos dotar de um voca-
bulário para compreender as forças contraditórias que constituem
nossas sociedades complexas. Dos muitos exemplos da ressignifica-
ção de termos e da criação de outros, quero destacar um. Em busca
de uma maneira de compreender a permanência da dominação de
uma sociedade injusta, que claramente não responde às necessida-
des humanas, ele revisita Gramsci e apresenta uma concepção da
cultura como veículo da hegemonia, o que nos permite perceber
que a dominação de classe se mantém, certamente, pelo poder e
pela propriedade, mas também, pelo sentido que somos levados a
dar à vida :

[a hegemonia] é mantida também e inevitavelmente pela cul-


tura do vivido, aquela saturação do hábito, da experiência,
dos modos de ver, sendo continuamente renovada em todas
as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e
no interior de significados definidos, de tal forma que o que
as pessoas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma
reprodução de uma ordem social profundamente arraigada
à qual as pessoas podem até pensar que, de algum modo, se
opõem, e à qual, muitas vezes, se opõem de fato. (WILLIAMS, 377
[1975], 1989, p. 74)

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Essa percepção está na base de sua proposta de uma longa re-
volução cultural, que vá desmontando os alicerces dessa domina-
ção abrangente, e o afasta das duas correntes que advogavam a
mudança social na Esquerda. Por um lado, embasa sua crítica ao
Stalinismo, com sua concepção de tomada do poder e de mudan-
ça autoritária da hegemonia - que leva ou à “repressão inaceitável”
ou a subestimar, radicalmente, os processos reais de mudança nas
próprias pessoas, processo necessário para derrotar a hegemonia
vigente. Por outro lado, o afastava do social-democracia, que pro-
punha mudanças administrativas e remodelagem das instituições,
o que revela, para Williams, uma absoluta falta de consciência do
problema real. Sua proposta é de uma ação “conjunta, que derrote
os significados e valores de uma sociedade injusta, começando por
derrotá-los em nós mesmos, e, também através de um intenso tra-
balho educacional e social.” (WILLIAMS, [1975], 1989, p. 75).
Tempos como o nosso, de hegemonia acachapante de um só
modo de vida, em que mesmos os mais aguerridos se enredam no
mantra, incessantemente repetido, de que não há alternativas ou
saídas, demanda a retomada do pensamento de Williams, estrutu-
rado na necessidade da mudança e do estabelecimento de uma or-
dem social mais humana. Na nossa era da mesmice e do conformis-
mo, sua obra, nos limites conhecidos da discussão intelectual, deu
uma contribuição inspiradora à revolução necessária.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Perry. Components of the National Culture.


[1968]. In: English Questions. Londres, Verso, 1992.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. São


Paulo, Martins Fontes, 2006.
378
ELIOT, T.S. Notes Towards the Definition of Culture. London,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Faber and Faber, 1962.

KAPLAN, Cora. What we have again to say: Williams, Fem-


inism, and the 1840s. In: Cultural Materialism: On Raymond
Williams. Editor: Christopher Prendergast. Minneapolis, Uni-
versity of Minnesota Press, 1995.

WEST, Cornell. The Legacy of Raymond Williams. In: Social


Text.vol.10, no.1, 1992.

WILLIAMS, Raymond. Culture is Ordinary. [1958] In: Resourc-


es of Hope. Londres: Verso, 1989.

WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. [1961]. Cardigan,


Wales: Parthian, 2011.
WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist
Cultural Theory. [1973] In: Problems in Materialism and Cul-
ture. Londres: Verso, 1980.

WILLIAMS, Raymond. Drama in a Dramatized Society. [1974]


In: Writing in Society. Londres: Verso, 1983.

WILLIAMS, Raymond. You are a Marxist, aren’t you?. [1975].


In: Resources of Hope. Londres: Verso, 1989.

WILLIAMS, Raymond. Marx on Culture [1983]. In: What I


came to Say. Londres: Hutchinson Radius, 1989.

WILLIAMS, Raymond. The Future of Cultural Studies. [1986].


In: The Politics of Modernism. Londres: Verso, 1989. 379

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


WILLIAMS, Raymond. Culture and Society. Londres, Chatto
and Windus, 1958.

WILLIAMS, Raymond. Culture is Ordinary [1958]. In: Resourc-


es of Hope. Londres, Verso, 1989.

WILLIAMS, Raymond. Base and Superstructure in Marxist


Cultural Theory. In: Problems in Materialism and Culture. Lon-
dres, Verso, 1980.

WILLIAMS, Raymond. Politics and Letters. London, Verso,


1981.
WILLIAMS, Raymond. Abandonando a palestra: método de
discussão para as aulas de literatura para adultos. In:______.
Raymond Williams & educação: coletânea de textos sobre ex-
tensão, tutoria, currículo e métodos de ensino. Organização:
Alexandro Henrique Paixão. Campinas, SP: FE/UNICAMP,
2019.

RESUMO
Este texto traça as principais contribuições de Raymond
Williams para a reformulação de uma teoria da cultura que fo-
caliza o novo espaço ocupado pela produção cultural na socie-
dade contemporânea. Partindo dos momentos iniciais dessa
teoria no segundo pós-guerra, vai traçando as peculiaridades
da posição formalizada por Williams, que passa pela invenção
de novas categorias para descrever as relações entre proces-
380 so artístico e processo social, e desemboca na criação de uma
nova disciplina, os estudos culturais.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Palavras-chave: Teoria da Cultura; Processo Artístico; Pro-


cesso Social; Estudos Culturais.

ABSTRACT
This text focuses on Raymond Williams´s contribution to the
formulation of a theory that takes into account the changed
role of culture in contemporary society. It starts with the first
steps of Williams´s formulation of a new theory in the post
-war years, highlights his invention of categories to describe
the relations between social and creative processes, and ends
with an examination of the setting up of a new discipline,
cultural studies.
Keywords: Culture Theory; Artistic Process; Social Process;
Cultural Studies.
SOBRE A AUTORA
Possui graduação em Letras - Português/Inglês pela
Universidade de São Paulo (1975), mestrado em Estudos
Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de
São Paulo (1985) e doutorado em Estudos Linguísticos e
Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo (1989).
Atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura
Inglesa, atuando principalmente nos seguintes temas: estudos
de cultura, Fredric Jameson, cultura e sociedade, Raymond
Williams e teoria materialista.

381

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


COMUNIDADE NACIONAL E
HUMANIDADE GLOBAL 1

Daniel Williams2

Dirigindo em direção a noroeste de Gales na A465 — aquela


“ampla rodovia em linha reta, pela qual passam caminhões em alta
velocidade” —, vire à esquerda, em uma estrada rural sem nome,
quando avistará Pandy, a terra natal dele. Seguindo nessa trilha por 383
mais 15 minutos, através dessa colcha de retalhos de campos, car-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


valhos, azevinhos, olmos e espinheiros, você chegará à Igreja Paro-
quial de St. Clydawg (WILLIAMS, 1973, p. 04).
Dizem que Clydawg, rei desta região no século V, foi morto em
uma expedição de caça por um rival que almejava a mão de sua noiva.
No dia do funeral, os bois que puxavam a carroça com seus despo-
jos recusaram-se a atravessar o rio, e ele terminou por ser sepultado
neste lugar, perto da margem do Mynwy. Seus súditos consideravam
Clydawg um mártir e se reuniam ao redor de seu túmulo para ado-
rá-lo. Uma igreja dedicada a St. Clydawg existe aqui desde o século
VI. Como era prática no País de Gales, a vila que cresceu ao redor da
1
Este capítulo de autoria de Daniel Williams é originalmente o “Epílogo” (2021) para a
nova edição revisada do livro Who Speaks for Wales? (2003), dentro das comemorações
do centenário de Raymond Williams. A tradução é de Yasmim Camardelli e a revisão da
tradução é de Ugo Rivetti.
Nota da tradução: para as citações ou referências a textos que já possuem uma versão
para o português, utilizamos traduções disponíveis. A única exceção foi a citação do livro
Escritos Judaicos, tradução de Laura Degaspare Monte Mascaro, Luciana Garcia de Oliveira
e Thiago Dias da Silva, publicado pela Amarylis, em 2016.
2
Professor do Departamento de Literatura Inglesa na Universidade de Swansea (País de
Gales). E-mail: daniel.g.williams@swansea.ac.uk. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-
8744-1479.
igreja foi chamada de Llan (cercamento). Desse modo, a região ficou
conhecida como Llan y Merthyr Clydawg. Hoje é mais conhecida pela
versão contraída e anglicizada de seu nome, Clodock.
Provavelmente sem se dar conta, vindo de Pandy, você cruzou
a fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra. Agora está em He-
refordshire. O condado já foi governado por Ewias e era parte do
País de Gales até que a fronteira foi alterada durante o reinado de
Henrique VIII. A paróquia permaneceu sob a jurisdição da Igreja
Galesa até 1858, quando foi incluída na Diocese de Hereford. Até
meados do século XIX, Cymraeg era a língua falada nessa região. É
neste lugar, “um legado, continuamente construído e reconstruído”,
que você encontrará o túmulo de Raymond Williams. 3
O túmulo está do outro lado da via da Igreja, no novo cemitério.
Certifique-se de entrar na própria Igreja antes de ir embora, pois
há mais do que uma lápide dedicada a sua memória. Ao entrar, olhe
384 para a parede acima das escadas da galeria. Você verá um grande
e belo Decálogo do século XVIII, restaurado em 1989, como infor-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ma uma pequena inscrição onde se lê: “Em memória do professor


Raymond Williams.” Levando em conta o lugar secundário que a
religião ocupa nos escritos de Williams e sua recusa, que “não cau-
sou uma crise familiar”, em “se converter” quando adolescente, esse
memorial pode parecer, de alguma forma, incongruente, tanto pelo
lugar (em uma Igreja) como pelo conteúdo (os 10 mandamentos)
(“Boyhood”, WSFW, 2021). No entanto, apesar da hostilidade de seu
pai à religião e de suas próprias ideias comunistas e socialistas em
ebulição, Raymond Williams frequentou a igreja com sua avó quan-
do criança e foi “enviado à igreja” um pouco mais velho (“Boyhood”,
WSFW, 2021). Seu apelo para ser liberado da convocação para a
Guerra da Coréia foi baseado em um pacifismo enraizado na “at-
mosfera de instrução cristã”, na qual ele foi criado (SMITH, 2008, p.
3
Ver WILLIAMS, “Black Mountains”, Who Speaks for Wales? [Nova Edição, 2021], organiza-
do por Daniel Williams. A partir de agora todas as referências a este livro abrangendo os
ensaios de Raymond Williams virão citadas entre parênteses, contendo apenas os títulos
dos capítulos indicados entre aspas, seguido da abreviação WSFW, referente às iniciais do
título do livro (Who Speaks for Wales?), mais o ano da nova edição inglesa (2021). Sobre o
assunto mencionado no parágrafo supracitado, Daniel Williams comenta que um panfleto
intitulado “A Igreja Paroquial de St. Clydawg” foi preparado pelo Centro Educacional Exte-
rior de Longtown e pode ser consultado na Igreja.
329). À sombra desse Decálogo, podemos perguntar se a Trilogia
Galesa de romances escritos por Raymond Williams deve ser con-
siderada uma manifestação da “política de êxodo” que, conforme
Michael Walzer argumenta, está na base do pensamento revolu-
cionário no Ocidente. Seguindo a estrutura tripartite da análise de
Walzer, não seria Border Country uma análise da “casa da servidão”,
Second Generation uma documentação dos “murmúrios na imen-
sidão selvagem” e The Fight for Manod uma tentativa de imaginar
um “povo livre”? (WALZER, 1985). Que significado devemos dar ao
fato de que, em outro romance de Williams, The Volunteers, os ga-
leses são descritos como os “judeus da Grã-Bretanha”? (WILLIAMS,
[1978] 1985, p 72).

II

Em 11 de abril de 1962, Hannah Arendt escreveu a Raymond 385


Williams para dizer-lhe o quanto tinha apreciado e tirado proveito

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


da leitura de sua resenha de Entre o Passado e o Futuro (WILLIAMS,
1962). O texto de Williams, no qual ele prestou “mais do que um tri-
buto convencional” ao trabalho de Arendt, apareceu na The Kenyon
Review, em 1961. Ele descreveu o último estudo de Arendt como
um “sucessor digno e natural de A Condição Humana” e como uma
reflexão profunda sobre “o desmantelamento da tradição em nosso
tempo e os efeitos decorrentes da perda dessa ponte natural entre
passado e futuro” (WILLIAMS, 1961, p. 698 – 702). Ele achou que
muita coisa no livro era “genuinamente esclarecedora”, mas dese-
java que “pudesse haver um diálogo real entre o que me parecem
ser os padrões de pensamento de determinada sociedade e padrões
locais semelhantes que podem ser identificados em outros luga-
res.” Williams referia-se à tendência que reconheceu no trabalho
de Arendt de supor que a experiência americana, na qual os laços
da sociedade eram supostamente corroídos por uma devastadora
“cultura de consumo”, poderia ser tomada como uma verdade sobre
o mundo contemporâneo. Embora reconhecesse que “tendências
de consumo muito poderosas” fizessem parte da realidade britâni-
ca, Williams se apresentava como membro de um grupo de críticos
que entendiam esse fenômeno como “um estágio particular do ca-
pitalismo” ao qual poderíamos resistir, sendo inclusive “capazes de
rechaçá-lo”. Seus contemporâneos americanos, por outro lado, pa-
reciam incapazes de “pensar no capitalismo como algo transitório
e substituível”. Não teria como haver um diálogo genuíno através
do Atlântico, argumentou Williams, se “os processos da sociedade
americana forem tratados, consciente ou inconscientemente, como
processos universais.” Somente pela aceitação das particularidades
e da natureza não generalizável das culturas nacionais será possível
“estabelecer um diálogo real entre o que me parecem ser os pa-
drões de pensamento de determinada sociedade e os padrões lo-
cais semelhantes que podem ser identificados em outros lugares”
(WILLIAMS, 1961, p. 701 – 702).
Ao criticar o modo como os grupos e formações dominantes ten-
dem a tratar suas particularidades como universais, a resenha de
386
Williams de Entre o Passado e o Futuro explicita uma de suas preo-
cupações mais recorrentes. Ele estava — como fica evidente nos
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ensaios reunidos em Who Speaks for Wales? ([2003] 2021) — in-


teressado nas continuidades e particularidades das culturas, e nos
mecanismos pelos quais as pessoas resistem à dominação e à assi-
milação. Ele observou em 1977 que, por conta da “grande continui-
dade da linguagem e da consciência da diferença no passado”, os ga-
leses retêm “o sentimento, que eu acho muito importante nesta fase
do século XX, de que é possível ser um povo diferente.” (“Marxism,
Poetry, Wales”, WSFW, 2021). No entanto, essa defesa do particu-
larismo é raramente assumida a partir de uma posição antiuniver-
salista. A observação de C.L.R. James, em uma resenha de Cultura e
sociedade, de que a base da visão de mundo de Williams “parece ser
a semirreligiosa ‘irmandade entre homens’”’, merece mais atenção,
pois a preocupação de Williams com o particular coexiste com seu
desejo de fazer conexões em nome de uma “totalidade” cultural”, de
uma “cultura comum” ou de um “interesse geral”4. Hannah Arendt,
creditada por Williams em sua breve lista de agradecimentos em
Tragédia moderna, cujo livro Sobre a Violência foi resenhado por
4
Ver JOHNSON, 1962, s/p. Ver também: “Introduction”, WSFW, 2021.
ele anos mais tarde, é um complemento útil a Williams para meus
propósitos neste texto, no qual estou interessado na tensão entre
o universal e o particular em seus escritos sobre o País de Gales
(WILLIAMS, [1966], 1992, s/p; WILLIAMS, 1970). Essa tensão fun-
damenta o trabalho de Arendt e é central para seu argumento de
que “o conceito de direitos humanos pode voltar a ser significativo
apenas se for redefinido para significar o direito à própria condi-
ção humana, que depende do pertencimento a alguma comunidade
humana.”5 Tanto Williams como Arendt, no fim, chegaram à conclu-
são de que um mundo tolerante é um mundo formado por muitas
comunidades e cidadanias particulares e de que sonhos de ordens
globais universalistas tenderam a sustentar regimes totalitários.
No entanto, eles chegaram a essa conclusão por caminhos um tanto
diferentes.
Nascida em uma família de judeus seculares em Hanover, em
1906, Hannah Arendt presenciou a ascensão do nazismo. Foi priva-
387
da de sua cidadania alemã em 1937 e, após ser presa por um curto

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


período pela Gestapo, fugiu da Alemanha para a Tchecoslováquia e
a Suíça, antes de se refugiar por um período em Paris. Quando a Ale-
manha invadiu a França em 1940, foi detida pelos franceses como
uma estrangeira. Em 1941, ela fugiu, via Portugal, para os Estados
Unidos, onde permaneceu até o fim de sua vida (BERNSTEIN, 2018,
p. 1-8). Arendt estava profundamente ciente do modo pelo qual dis-
cursos dominantes poderiam obliterar as histórias dos outros. Em
seu texto “Moisés ou Washington”, escrito em 1942, observou que,
embora a “humanidade cristã” tenha “se apropriado da” história ju-
daica, “reivindicando nossos heróis como heróis da humanidade”,

paradoxalmente, há um número crescente de pessoas para


as quais é preciso substituir Moisés e Davi por Washington
ou Napoleão. No fim das contas, essa tentativa de esquecer o
nosso passado e de buscar vigor às custas de outras figuras
fracassará — simplesmente porque os heróis de Washington
e Napoleão se chamavam Moisés e Davi. (ARENDT, 2007, p.
149-150)
5
Conferir ARENDT ([1951] 2017, p. 439). É importante destacar que se trata da primeira
edição e que esta passagem mencionada foi excluída das últimas edições.
Ao evocar “nosso próprio” passado, Arendt afirma sua identida-
de judaica como um meio para desafiar formas de excepcionalismo
francês e americano. Arendt já tinha visto seus direitos humanos
serem negados em 1940, no exato momento em que, destituída de
sua cidadania alemã, foi reduzida ao status de ser humano “em ge-
ral” e, portanto, passou a necessitar da proteção daqueles “direitos
humanos universais” que pertencem aos indivíduos independen-
temente da cidadania. Mas, privados da identidade sociopolítica
particular que equivale à cidadania, os judeus da Europa dos anos
1940 descobriram que eles não eram mais, em absoluto, reconheci-
dos como humanos. “O mundo”, observou Arendt em uma sentença
arrepiante, “não encontrou nada sagrado na nudez abstrata de ser
humano.” (ARENDT, [1951] 2017, p. 392)
Reafirmar sua conexão com Moisés e Davi foi uma resposta a esse
cenário. A outra foi rastrear as raízes do pensamento autoritário.
Seu livro As origens do totalitarismo contém um capítulo memorável
388
sobre “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”.
É aqui que Arendt faz uma distinção entre os direitos humanos uni-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

versais, pré-políticos, possuídos por todo ser humano “como tal”, e


os direitos políticos específicos que alguém pode adquirir por ser
um cidadão político de determinada nação. Para Arendt, a perda da
cidadania é a perda do “direito de ter direitos”, que resulta em uma
“morte política”6. Aqueles que estão nessa condição até “podem se
tornar objetos de caridade ou benevolência”, mas não podem fazer
reivindicações de “primeira ordem” como cidadãos; “tornam-se
não-cidadãos em relação à justiça.” (FRASER, 2005, p. 77).. A con-
clusão a que Arendt chega é que os “direitos humanos” universais
só encontram expressão dentro de formas particulares de cidada-
nia nacional. Não há conceito profícuo/proveitoso/produtivo/fru-
tífero de natureza humana que possa ser acessado independente-
mente de comunidades particulares. Em meio aos assassinatos em
massa da Segunda Guerra Mundial, Hannah Arendt dissociou “raça”
de “nação”, “racismo” de “nacionalismo” e defendeu um universalis-
mo enraizado no particular. O foco de Arendt era a nação enquanto
uma entidade política com estruturas legais e cívicas/civis que po-
6
O termo “morte política” é de FRASER (2005, p. 77).
deria assegurar “o direito de ter direitos” de um indivíduo (AREN-
DT, 2017, p. 388).
A ênfase de Raymond Williams foi bem diferente. Ele argumen-
tou que era um erro “supor que os problemas de identidade social”
pudessem ser “resolvidos por definições formais.” “Reduzir a iden-
tidade social a definições meramente legais e formais, no nível do
Estado, é contribuir para superficialidades alienantes da ‘nação’,
que são os termos funcionais limitados da classe dominante mo-
derna.” (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021; WILLIAMS, 1983,
p. 195).
Ao longo do capítulo “The Culture of Nations” (1983), Williams
contrasta a estrutura política “artificial” do Estado-nação com uma
forma alternativa de identidade, descrita de modo variado como
“profundamente arraigada”, “estabelecida”, “real” e “residual”. Há
certa ironia em Williams ter sido homenageado na forma de um
“decálogo” na Igreja de Clodock, pois ele considerava uma nação 389
definida por leis e a tendência a adotar as formas legais de cida-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dania nacional como aportes de uma classe intelectual “móvel” e
“isolada” (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021). O que Williams
ofereceu no lugar desse constitucionalismo legal foi uma “posição
socialista” que

rejeita, completamente, as ideologias que dividem “raça” e


“nação” como as empregadas na prática pela classe domi-
nante. Mas ela [a posição socialista] as rejeita em favor de
identidades formadas a partir da experiência, quer seja uma
identidade já estabelecida, se disponível, ou uma identidade
potencial, na qual deslocamento e realocação demandam no-
vas formações. (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021)

Para Williams, não existe um conceito utilizável de natureza hu-


mana que possa ser acessado independentemente das “identidades
formadas a partir de experiências” particulares. Para Arendt, não
existe um conceito utilizável de natureza humana que possa ser
acessado independentemente das estruturas legais e políticas de
comunidades nacionais específicas. Apesar de o foco de Williams
ser a identidade e a prática cultural, e o de Arendt, as estruturas
políticas do Estado, eles chegam a conclusões compatíveis.
Um dos motivos pelos quais os argumentos de Williams e Arendt
chegam a conclusões semelhantes é que eles compartilham o mes-
mo ponto de partida. A célebre seção sobre o “Direito de ter Direi-
tos”, em As Origens do Totalitarismo, começa com uma discussão so-
bre o crítico irlandês da Revolução Francesa Edmund Burke. Burke
é frequentemente visto como uma figura fundadora do pensamento
conservador na Grã-Bretanha, mas a descrição que Henry Louis Ga-
tes Jr. faz de Raymond Williams como um “burkeano de esquerda”,
é bastante esclarecedora. Henry Louis Gates Jr. observa que Burke
— o crítico reacionário do universalismo iluminista e da Revolução
Francesa — também pode ser considerado um pai do relativismo
cultural e do anticolonialismo (GATES JR., 2010, p. 28-32). Burke
criticou o Estado colonial moderno, fez campanha contra a admi-
nistração britânica na Índia e liderou por oito anos um processo
390
contra Warren Hastings, governador de Bengala e chefe da East
India Trading Company. Luke Gibbons enfatizou as maneiras pelas
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

quais Burke, informado pela história irlandesa, descreveu a violên-


cia, tanto material quanto cultural, que o colonialismo infligiu aos
povos subjugados, “gerada por fanatismo religioso, como no caso
da Irlanda, pela pilhagem de Warren Hastings na Índia ou pelos ex-
cessos sórdidos da política militar britânica durante a Revolução
Americana” (GIBBONS, 2003, p. 88). A ênfase de Burke em culturas
e tradições particulares em oposição ao discurso universalista dos
“direitos do homem” fazem dele uma inspiração importante para
Arendt:

Esses fatos e reflexões oferecem o que parece uma confirma-


ção irônica, amarga e tardia dos famosos argumentos com
que Edmund Burke se opôs à Declaração dos Direitos do Ho-
mem da Revolução Francesa. Parecem reforçar sua afirma-
ção de que os direitos do homem eram uma “abstração”, de
que seria muito mais sensato confiar na “herança vinculada”
de direitos que o homem transmite a seus filhos, como trans-
mite a própria vida, e de reivindicar seus direitos enquanto
“os direitos de um inglês”, e não os direitos inalienáveis do
homem. De acordo com Burke, os direitos de que desfruta-
mos emanam “de dentro da nação”, de modo que nem a lei
natural, nem o mandamento divino, nem qualquer conceito
de humanidade, como o de “raça humana” de Robespierre,
“a soberania da terra”, são necessários como fonte da lei. A
solidez pragmática do conceito de Burke parece estar, sem
qualquer dúvida, à luz de nossas múltiplas experiências.
(ARENDT, [1951] 2017, p. 391-392)

É possível perceber que o argumento de Arendt de que os


direitos humanos podem ser mais bem articulados e defendidos
quando fazem referência às tradições particularistas tem como
base os escritos de Burke.
Cultura e sociedade (1958), de Williams, começa com Burke. Para
Williams, Burke inaugura a tradição que pensa a cultura como meio
de criticar a sociedade industrial. Como a citação a seguir sugere,
Burke também parece relevante por articular uma definição de per-
391
tencimento nacional:

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


[Burke] preparou uma posição na mente inglesa a partir da
qual a marcha do industrialismo e do liberalismo seria con-
tinuamente atacada. Ele estabeleceu a ideia do Estado como
o agente necessário da perfeição humana e, em termos des-
sa ideia, o individualismo agressivo do século XIX teria de ser
condenado. Além disso, ele estabeleceu a ideia daquilo que foi
chamado de uma “sociedade orgânica”, em que a ênfase está
na inter-relação e continuidade das atividades humanas e não
na separação em esferas de interesse, cada uma governada
por suas próprias leis.
Uma nação não é apenas uma ideia de extensão local e agrega-
ção individual momentânea; ela é uma ideia de continuidade,
que se estende no tempo, bem como em números e no espa-
ço. E essa é uma escolha não de um dia, ou de um grupo de
pessoas, não é uma escolha desordenada e acidental. É uma
escolha deliberada de épocas e gerações; é uma constituição
feita por aquilo que é dez mil vezes melhor que a escolha, é
feita por circunstâncias, ocasiões, humores e disposições pe-
culiares e pelos hábitos morais, civis e sociais do povo, que se
revelam apenas em um longo espaço de tempo.
Imediatamente após Burke, esse complexo que ele descreve
seria chamado de “espírito da nação”; no final do século XIX,
já estaria sendo chamado de uma “cultura” nacional. O exame
da influência e do desenvolvimento dessas ideias será feito em
meus capítulos finais. (WILLIAMS, [1958] 1983, p. 11)

Mas, na verdade, “essas ideias”, pelo menos no que se refere à


“nação”, que parecem ser o tema dos trechos de Burke aqui citados,
não voltam a aparecer nos capítulos finais de Williams. Tampouco
aparecem em The Long Revolution, livro publicado em 1961 como
uma sequência de Cultura e sociedade. Na verdade, embora a ideia
de nacionalidade seja uma preocupação explícita dos romances e
ensaios sobre o País de Gales e a identidade galesa que Williams
começou a escrever no início dos anos 1970, temos que esperar a
publicação de Towards 2000 (1983) para encontrar um debate mais
denso e teórico a respeito da identidade nacional. Williams argu-
392 menta nesse livro, publicado 5 anos antes de sua morte prematura
em 1988, que “é essencial garantir proteção legal (e comunitária) a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

grupos e minorias deslocados e vulneráveis.” Mas ele observa que


é “um erro grave, quando consideramos as relações sociais de ma-
neira integral, supor que os problemas de identidade social podem
ser resolvidos por definições formais. De forma não só desigual e,
às vezes, precária, mas também sempre substancial, por nascer de
uma longa série de experiências, uma consciência efetiva da iden-
tidade social depende de relações sociais reais e contínuas” (“The
Culture of Nations”, WSFW, 2021).
Tanto para Williams como para Arendt, uma humanidade co-
mum não assumiria a forma de um universalismo globalmente indi-
vidualista, mas se basearia na reivindicação universalizante de que
todo indivíduo é inseparável de sua particularidade local, seja ela
comunal ou nacional. A humanidade deve ser desenvolvida dentro
das comunidades locais como parte de um valor compartilhado, co-
mum a todas as comunidades locais e particulares, a fim de garantir,
universalmente, um “direito humano de ter direitos”. Esse modelo,
como notou Mark Greif, parece exigir alguma garantia supranacio-
nal, planetária ou em nível de espécie, algum tipo de lei maior, de
governo mundial, para assegurar que todas as comunidades cum-
pram suas responsabilidades éticas e morais (GREIF, 2015, p. 94).
“Politicamente”, afirmou Arendt, “antes de redigir a constituição
de um novo corpo político, devemos criar — e não apenas desco-
brir — uma nova fundação para a comunidade humana como tal”
(ARENDT, 1951, p. 434). Em resposta a “formas políticas que ago-
ra limitam, subordinam e destroem as pessoas”, afirmou Raymond
Williams, “devemos começar de novo, coletivamente, a construir
novas formas políticas” (“The Culture of Nations”, WSFW). “Muito
mais difícil do que criar as instituições necessárias”, continua ele,
“é desenvolver os sentimentos indispensáveis para que essas insti-
tuições funcionem”. E conclui: “acho que há um recurso muito rico
para isso no País de Gales” (‘The Welsh Trilogy and The Volunteers’,
WSFW, 2021).

III 393

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Que “formas” seriam essas, e com quais “povos” devemos “co-
meçar”? Que tipo de “sentimentos” permitiria que as instituições
funcionassem? Essas questões, que giram em torno dos quadros
da tomada de decisão política, enfatizada por Arendt, e da cons-
tituição cultural da comunidade, enfatizada por Williams, trazem-
-me de volta às conhecidas acusações de racismo e essencialismo
feitas contra Williams por Paul Gilroy.7 De fato, minha defesa de
Williams em 2003 me levou a cometer algumas omissões, e eu gos-
taria de abordá-las agora. A crítica mais dura de Gilroy derivou de
dois aspectos da análise de Williams sobre a identidade nacional
em Towards 2000, aos quais retornarei, mais uma vez, a seguir. O
primeiro foi o fato de Williams basear sua discussão de raça em
um cenário em que “um trabalhador inglês (inglês nos termos de
uma integração moderna contínua) protesta contra a chegada ou
presença de ‘estrangeiros’ ou ‘imigrantes’ para, no estágio seguinte,

7
Gates Jr. retoma o argumento de Gilroy em Tradition and the Black Atlantic. Conferir um
contra-argumento em WILLIAMS (2015, p. 93 – 111).
identificá-los como ‘negros’.” (GILROY, 1987, p. 49-51).8 Com base
nessa evidência, Gilroy alega que “Williams não parece reconhe-
cer o negro para além de sua condição de subalternidade em uma
ideologia de supremacia racial” (GILROY, 1987, p. 50). O segundo
aspecto da análise de Williams que Gilroy considerou preocupante
foi que, embora Williams reconhecesse o perigo do “salto do res-
sentimento com os vizinhos estrangeiros para especificações ideo-
lógicas de ‘raça’ e ‘superioridade’” seu foco não estava na visão de
mundo do “trabalhador inglês”, mas na “ideologia” da “resposta li-
beral padrão” a seus protestos: “eles são britânicos como você.” A
resposta do liberal britânico, para Williams, consistia em “reduzir a
identidade social a definições legais formais, no nível do Estado” e
em ignorar o poder e a legitimidade das “identidades comunitárias”
das pessoas (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021). Para Gilroy,
esse foco na “resposta liberal” equivale a uma “recusa”, da parte de
Williams, “em examinar o conceito de racismo” (GILROY, 1987, p.
394 50). Para fins de análise, é útil abordar a seguir esses aspectos do
argumento de Williams.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Meu principal contra-argumento às acusações de racismo e es-


sencialismo de Gilroy foi observar que Williams não endossou ou
defendeu as palavras do “trabalhador inglês”. Williams não nega a
“imprescindibilidade dos direitos de cidadania para os imigrantes”,
pois afirma explicitamente algumas linhas antes que “uma defini-
ção puramente legal do que é ser ‘britânico’ [...] é necessária e im-
portante, afirmando corretamente a necessidade de uma garantia
de igualdade e proteção legal” (“The Culture of Nations”, WSFW,
2021).
Para além disso, Williams localizou as “verdadeiras bases da es-
perança” na experiência dos “vales mineiros galeses, para os quais
houve uma imigração massiva e diversa no século XIX, mas nos
quais, depois de duas gerações, havia algumas das comunidades
mais extraordinariamente sólidas e mutuamente leais de que te-
mos registro” (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021). Ainda assim,
gostaria de enfatizar que Williams nunca se opôs à imigração e que

8
Ver também “The Culture of Nations”, WSFW, 2021.
qualquer comparação de seu pensamento com as posturas expli-
citamente racistas de Enoch Powell é enganosa. Agora, eu gosta-
ria de suplementar esse argumento com uma análise das maneiras
pelas quais as “comunidades mais extraordinariamente sólidas e
mutuamente leais de que temos registro”, conforme a descrição de
Williams, foram parcialmente formadas por meio de um processo
pelo qual uma classe trabalhadora branca definiu a si mesma em
oposição a um “outro” racial. Embora houvesse uma presença ne-
gra histórica e contemporânea, especialmente em Butetown e nas
docas de Cardiff (onde uma grande revolta racial ocorreu em 1911),
a imigração para o sul do País de Gales envolveu principalmente
grupos étnicos brancos. Esse foi um aspecto da crítica que deixei
de abordar em outros momentos, e vale a pena fazê-lo agora para
pensar as narrativas que informam sobre a história cultural galesa
nas quais Raymond Williams se baseou e para as quais contribuiu.
Em sua discussão sobre “raça e a formação da classe trabalhado-
395
ra americana”, David Roediger registra a contribuição crucial feita

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


pelos expoentes da “nova história do trabalho” durante as décadas
de 1960, 1970 e 1980, ao mostrar em que medida os trabalhadores,
mesmo em períodos de depressão econômica ou opressão política,
mantiveram-se como atores históricos, a fazer suas próprias esco-
lhas políticas e a criar suas próprias formas culturais. Ele ressalta,
no entanto, uma hesitação, por parte dos historiadores de esquerda,
em explorar “a ‘branquitude’ e a supremacia branca da classe tra-
balhadora como criações, em parte, da própria classe trabalhadora”
(ROEDIGER, 1991, p. 9). O trabalho de Roediger tem como ponto de
partida as comunidades étnica e racialmente diversas da América
industrial, mas, vale a pena ter em mente sua observação de que,
“mesmo em uma cidade totalmente branca, a raça nunca está au-
sente” quando nos voltarmos para a análise da construção de iden-
tidades em um País de Gales industrial e “americano”9. Os historia-
dores do trabalho galeses — notadamente Gwyn A. Williams e Dai
Smith — nos quais Raymond Williams mais se baseou/apoiou em
9
Ver ROEDIGER (1991, p. 3). “Gales Americana” foi um termo cunhado por Alfred Zim-
mern no livro My Impressions of Wales (1921) para descrever a região industrial do sul de
Gales. A expressão foi citada por Dai Smith em seu livro Aneurin Bevan and the World of
South Wales (1993, p. I).
sua compreensão da história galesa, rejeitaram as visões de socie-
dades operárias como vítimas impensadas de hegemonias políticas
ou culturais. No entanto, como observou o etnógrafo afro-america-
no que residia no País de Gales, Glenn Jordan, as formas culturais e
os valores políticos que emergiram dessas sociedades nem sempre
foram progressivamente subversivos:

Os mineiros e as comunidades mineiras do sul do País de


Gales são famosos por suas tradições socialistas e por seu
internacionalismo, incluindo sua quase devoção por Paul
Robeson. Mas há outra tradição de longa data nos vales do
sul do País de Gales: a comunidade da classe trabalhadora
como solo fértil para o racismo. (JORDAN, 2005, p. 70-71)

Como tentei mapear em Black Skin, Blue Books (2012), as formas


dominantes de “galesidade” evoluíram e foram elaboradas duran-
396 te o século XIX em relação a um discurso imperial de “negritude”.
O infame “Relatório sobre o estado da educação no País de Gales”
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de 1847 (os “livros azuis” de meu título) descreveu a língua galesa


como “a língua da escravidão” que mantém os galeses na “servidão”,
e o galês como alguém que vivia em “um submundo próprio” en-
quanto “a sociedade seguia marchando por cima de sua cabeça.”10
Os desvios linguístico e religioso das normas anglófona e anglicana
eram revestidos em uma linguagem de “escravidão” e “servidão”.
Durante a era vitoriana, setores significativos da burguesia galesa
responderam a esses ataques procurando provar sua “branquitu-
de”, a fim de remodelar a si e seu povo como britânicos práticos,
empresariais, que falavam inglês. Na verdade, “gwyn” (“branco”)
é uma das palavras-chave da ideologia galesa de ascensão social
(EDWARDS, 1989; WILLIAMS, 2002, p. 343-68). Nos Estados Uni-
dos, essa foi a história de como “os irlandeses se tornaram brancos”
(para usar a formulação de Noel Ignatiev); e na Europa continental,
de como camponeses britânicos se tornaram franceses francófo-
nos (adaptando a formulação de Eugen Weber).11 No século XX, a

10
Citado em WILLIAMS (2012, p. 26-28); ver também ROBERTS (1998, p. 203).
11
Conferir IGNATIEV (1995) e WEBER, 1976.
figura do menestrel maquiado e fantasiado como uma pessoa ne-
gra (o chamado blackface) tornou-se bastante recorrente na cultu-
ra popular das sociedades industriais e dos romances industriais
galeses de Jack Jones e Gwyn Jones.12 Durante os longos meses do
locaute de 1926, que formam o pano de fundo das memórias de
infância de Border Country, comunidades mineiras encontraram
expressão em bandas como “Seven Sisters Black Natives”, “Caro-
lina Coons” e “Graig Miners”, que faziam uso de blackface (FRAN-
CIS E SMITH, 1998, p. 58). O sul de Gales serve de exemplo para o
argumento de Susan Gubar de que as práticas de “disfarce” racial
“permitiram a artistas de diferentes tradições relacionar relatos
comparativos e nuançados acerca de vários modos e gradações do
outro” (GUBAR, 1997, p. 48). Argumentei, em uma discussão sobre
a recepção de Paul Robeson, que a emergência de um movimento
operário coerente e politicamente empoderador, a partir da diver-
sidade étnica (especialmente linguística e religiosa) característica
da sociedade industrial galesa, originou formas de masculinidade 397
negra na cultura popular que funcionaram como imagens de um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


“outro” (WILLIAMS, 2012, p. 193 e p. 204). Como observa Tiffany
Willoughby-Herard, o processo de ascensão social de grupos “bran-
cos pobres”, em diversos contextos, envolveu um processo de “des-
contaminação” racial; tendo sido definido ou associado à “negritu-
de” nos discursos vitorianos de classe e império, o “progresso” das
minorias brancas era medido por sua distância de um “outro” negro
(WILLOUGHBY-HERARD, 2015, p. 153). Embora o que W. E. B. Du
Bois descreveu como a “compensação” da branquitude tenha aber-
to uma rota assimilacionista das etnias brancas, isso não estava ao
alcance de seus contemporâneos negros (DU BOIS, [1935] 1998, p.
30 e p. 700). A ascensão do “étnico” branco na hierarquia social nos
Estados Unidos foi, nos termos de Walter Benn Michael, “menos um
efeito do triunfo sobre o racismo” do que “um efeito do triunfo do
racismo.” O menestrel fazendo blackface pode ser lido como uma
personificação dessa dinâmica na cultura popular dos Estados Uni-
dos e, embora em uma forma silenciosa, no País de Gales.

12
Conferir a discussão em Williams (2012, p. 188 – 193).
No entanto, quando o romancista afro-americano Richard Wri-
ght desenvolveu o conceito de white negro em sua obra Pagan
Spain, publicada em 1957, ele não descrevia tentativas de se passar
por branco, mas sim enfatizava a “impureza” de uma história espa-
nhola que incluía influências pagãs, católicas, judias, muçulmanas,
africanas e mouriscas (WRIGHT, 2002, p. 162). Se um discurso de
crescente “branquitude” refletia a lógica racial da assimilação, na-
cionalismos minoritários na Europa e subculturas brancas antias-
similacionistas nos Estados Unidos, seguiam o exemplo de Wright
ao adotar a máscara da negritude como meio de se diferenciar das
normas convencionais. À medida que formas de nacionalismo sepa-
ratista se desenvolviam nas periferias dos Estados francês e britâ-
nico e várias subculturas americanas passavam a questionar a ideo-
logia da ascensão que sustentava o assimilacionismo americano,
minorias brancas começavam a se reapropriar da “negritude” que
haviam tentado rejeitar desesperadamente uma geração antes.13
398 Raymond Williams talvez estivesse familiarizado com o ensaio The
White Negro, de Norman Mailer — que tanto exemplificava quanto
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

analisava, de forma problemática, esse uso da “negritude” como um


marcador de diferença pelos poetas da geração Beat e pelos hips-
ters dos anos 1950 —, pois resenhou uma antologia de artigos da
revista Dissent na qual o ensaio foi republicado (WILLIAMS, 1959,
p. 174-175). Williams nunca se apropriaria da máscara negra dessa
maneira primitivista, mas apontou, em sua resenha de The Welsh
Extremist, de Ned Thomas, que, de fato, nas sociedades capitalistas
tardias, alguns dos movimentos mais potentes emergiram de ex-
periências e situações específicas não absorvidas (e, portanto, ne-
cessariamente marginais). O movimento Black Power nos Estados
Unidos, os direitos civis em Ulster, a língua do País de Gales, são
experiências comparáveis, nesse aspecto, ao movimento estudantil
e ao movimento de libertação das mulheres.14

13
Esta é, particularmente, uma característica da música pop em língua galesa nos anos de
1970 e 1980, conforme apontou Williams (2010, p. XV). Sobre o mesmo assunto, só que
em solo estadunidense, ver Lott (2017).
14
Conferir “Who Speaks for Wales”, WSFW, 2021.
Na verdade, o título daquela resenha, “Who Speaks for Wales?”,
parece fazer referência ao amplamente difundido Who Speaks for
the Negro (1965), de Robert Penn Warren (1965). Ao escrever so-
bre o País de Gales, Williams também se baseou explicitamente no
trabalho de Michael Hechter sobre o nacionalismo, principalmen-
te no livro Internal Colonialism: the Celtic Fringe in British National
Development. Hechter constatou que a intenção de seu principal
trabalho de historiografia comparada era explorar as “relações in-
tergrupais” de “longo prazo” observáveis nas Ilhas Britânicas, a fim
de compreender a experiência afro-americana. O trabalho de He-
chter é útil para nos lembrar que é necessário distinguir entre “as
diferentes estratégias usadas na luta pela libertação das minorias
oprimidas — assimilacionismo versus nacionalismo” (HECHTER,
1998, pp. XXVI – XXIX). Na verdade, foi a consciência da experiência
galesa “de sujeição histórica à expansão e assimilação inglesas” que
“alertou” Raymond Williams para “os perigos” de sua ênfase inicial,
em Cultura e sociedade e The Long Revolution, em uma “cultura co- 399
mum” como a base de “um tipo persuasivo de definição de comuni-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


dade, que é, ao mesmo tempo, dominante e exclusivo” (WILLIAMS,
1979, p. 118-119).
Desse modo, precisamos fazer uma distinção entre o medo da
negritude característico da postura assimilacionista, típica dos
discursos de grupos minoritários brancos que defendem uma ade-
quação às normas “britânicas” ou “americanas”, e a celebração da
negritude, fruto do desejo de se aproximar de outros movimentos
anticoloniais, como parte de uma estratégia usada por grupos na-
cionalistas minoritários para fazer frente e resistir ao assimilacio-
nismo (HECHTER, 1998, p. XXVIII-XXIX). Tanto o desejo de “purifi-
car”, típico da postura assimilacionista, quanto o desejo da minoria
nacionalista de “se associar” a outros grupos são problemáticos,
embora o sejam por razões diferentes. O primeiro é baseado em
uma hierarquia racial de inferioridade e superioridade e no medo
racista de “contaminação”. O último se baseia em vertentes de iden-
tificação a-histórica e romântica para poder “ dublar” as vozes dos
outros racializados, assim, potencialmente (se nunca totalmente),
negando-lhes o poder de falar por si próprios.15 Em nenhum outro
lugar esse perigo é mais evidente do que no uso do termo “colonia-
lismo” para descrever a experiência galesa, especialmente porque o
País de Gales é, hoje, uma nação de primeiro mundo, cuja história
industrial está intimamente ligada à economia e à prática do co-
mércio de escravos e do Império. No entanto, também é verdade
que a história literária e intelectual galesa constitui uma das mais
antigas tradições documentadas de resistência à dominação e à as-
similação (AARON, 2005, p. 137 – 158; JONES, 2005, p. 23 – 38). Eu
ainda reiteraria o que disse, em outros momentos, então sobre a
questão colonial e o País de Gales, e reafirmaria que Williams per-
cebeu a continuidade dessa história de opressão colonial e colabo-
ração imperial em sua própria psique. “Minha descoberta mais tris-
te”, afirma ele, “foi quando percebi, em mim mesmo [...] essa forma
mais crucial de imperialismo. Ou seja, quando partes de sua mente
são dominadas por um sistema de ideias, um sistema de sentimen-
400 tos, que realmente emanam do centro de poder” (“The Importance
of Community”, WSFW, 2021).
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

É preciso reconhecer, no entanto, que a natureza e os termos do


debate colonial mudam quando o próprio País de Gales passa a ser
definido como um espaço multicultural, a partir do reconhecimen-
to de sua própria mistura, em oposição a ser considerado como um
ingrediente racial dentro do grande caldeirão britânico. Charlotte
Williams responde vigorosamente ao desafio que a existência de
múltiplas “galesidades” representa para a narrativa da opressão co-
lonial galesa: se “o galês” é, “no fundo, um negro”, como fica “o ho-
mem negro que é galês ou o galês que é negro?” (WILLIAMS, 2002,
p. 176). Responder a essa pergunta requer um envolvimento com
as diversas histórias que constituem o povo galês contemporâneo,
mas não implica necessariamente uma rejeição do nacionalismo.
Werner Sollors observou que a “própria linguagem usada para criar
unidade nacional e um senso de coerência” por meio do “caldeirão”
assimilacionista pode, também, servir para “impulsionar a etnogê-
nese de grupos regionais e étnicos que, por sua vez, podem desafiar
15
Para uma análise fina das formas de alegorização e apropriação em relação à identidade
judaica, ver Boyarin (1994), principalmente o capítulo 9.
a unidade nacional” (SOLLORS, 1986, p. 99). As minorias podem
resistir à assimilação reivindicando “temperos” ou “ingredientes”
próprios, enfatizando, assim, sua própria diversidade interna e ca-
pacidade de incorporar diferentes elementos. De fato, em um tipo
de pensamento que pode ser relacionado à ênfase de Arendt no pa-
pel da nação em conferir direitos ao indivíduo, o desejo de eviden-
ciar suas credenciais híbridas e multiculturais é uma das marcas
mais significativas das variedades de nacionalismos minoritários.
Williams nunca usou os termos dos debates multiculturais contem-
porâneos, mas sua ênfase nos ensaios reunidos em Who Speaks for
Wales? ([2003] 2021) recai consistentemente na diversidade inter-
na da nação. Se o País de Gales, como Williams observa, tende a ser
tratado, em uma perspectiva inglesa, como um espaço “comumente
uniforme”, ele inverte o olhar em Border Country ao afirmar que é
do lado galês da fronteira que as identidades se tornam instáveis,
que a diversidade e a abertura substituem uma “inglesidade”, des-
crita em termos de sua reserva e insularidade (WILLIAMS, 2015, 401
p. 99 – 105). “Um dos fatos menos conhecidos, pelos outros, sobre

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


a cultura e a política galesa contemporânea”, observa Williams, “é
que a cultura galesa, vista de fora, pode parecer estranhamente
uniforme, mas é palco de disputas e conflitos contínuos” (“Com-
munity”, WSFW, 2021). Nesse sentido, País de Gales é um exemplo
de seu argumento mais amplo de que “qualquer lugar é tão real e
potencialmente interessante quanto outro, e apenas a centralização
metropolitana e o imperialismo cultural diriam o contrário/veriam
de outro modo” (“Freedom and a Lack of Confidence”, WSFW, 2021).
Tendo em vista esse argumento, devemos considerar a proble-
mática mudança de foco de Williams em “The Culture of Nations”
— da ideologia que sustenta “os protestos do trabalhador inglês
na chegada ou presença de ‘estrangeiros’ ou ‘imigrantes’ para a
ideologia da ‘resposta liberal padrão’ de que ‘eles são tão britâni-
cos quanto você’.”16 Conforme aleguei na introdução de Who Speaks
for Wales? ([2003] 2021), Williams não se volta para a ideologia da
“resposta liberal padrão” para questionar “quanto tempo é suficien-
te para alguém se tornar um britânico legítimo”, como Gilroy alega,
16
Conferir “The Culture of Nations”, WSFW.
tampouco a questão de Williams se apoia em um “desconforto” pro-
vocado por “aqueles que não estavam estabelecidos/fixados/as-
sentados, que não eram verdadeiramente ingleses, que não faziam
parte da nação”, como sugere Henry Louis Gates (GILORY, 1987, p.
49; GATES JR., 2010, p. 42). É apenas ignorando que Williams se
autodefinia como um galês-europeu que tais leituras se tornam
possíveis, e, de fato, o que Gilroy e Gates ignoram totalmente, em
suas respectivas histórias dos estudos culturais na Inglaterra, é que
a figura que, como ambos sugerem, inaugurou essa tradição, fazia
parte, ela mesma, de uma minoria. Essa não é uma questão trivial,
pois a omissão da identidade galesa de Williams leva a interpreta-
ções errôneas de seu trabalho. A intenção de Williams ao se voltar
para a ideologia da resposta liberal é rejeitar o tipo de concepção
a-histórica e assimilacionista de britanidade que Gilroy percebe, al-
gumas páginas depois, em um pôster eleitoral conservador de 1983
no qual a foto de um homem negro trajando um terno mal ajus-
402 tado é acompanhada da seguinte legenda: “Os trabalhistas dizem
que ele é ‘negro’. Os Tories dizem que ele é ‘britânico’.” “Os negros
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

estão sendo convidados”, afirma Gilroy, “a abandonar tudo o que os


caracteriza como culturalmente distintos em nome da verdadeira
britanidade” (GILROY, 1987, p. 59). Este é precisamente o ponto de
Williams. Concentrar-se na ideologia da “resposta liberal padrão”
é expor a maneira pela qual a britanidade é esvaziada de qualquer
conteúdo, a fim de que ela funcione como o espaço neutro universal
em que a diferença seja tornada irrelevante e o particularismo cul-
tural, transcendido (“The Culture of Nations”, WSFW, 2021).
Slavoj Žižek observa que, “quando algum procedimento é denun-
ciado como ideológico [...], pode-se ter certeza de que sua inversão
não é menos ideológica.” Ele aprovaria a reversão revisionista de
Williams, pois ela está de acordo com o próprio argumento do eslo-
veno a respeito da “autonegação da identidade branca” (ŽIŽEK, 1994,
p. 4) nos debates contemporâneos relativos à descolonização:

É por isso que os liberais brancos se entregam de modo


tão indulgente à autoflagelação: o verdadeiro objetivo de
sua atividade não é realmente ajudar os outros, mas o Lus-
tgewinn [ganho de prazer] resultante de sua autorreprova-
ção, o sentimento de sua própria superioridade moral sobre
os outros. O problema da autonegação da identidade branca
não é que ela vai longe demais, mas que não vai longe o su-
ficiente: embora seu conteúdo manifesto pareça radical, sua
posição de enunciação permanece a da universalidade privi-
legiada. (ŽIŽEK, 2018, p. 134)

Para “descolonizar” a britanidade, não basta seguir Edward Said,


Gauri Viswanathan, Paul Gilroy, e outros tantos, na desmistificação
do mito da homogeneidade, coesão e uniformidade culturais (um
discurso que equipara “britanidade” à “inglesidade dos ‘condados
originais’”, para usar a formulação de Williams, tornando centrais
à história “nacional” o Império e seus legados (“Region and Class
in the Novel”, WSFW, 2021). É preciso, também, desmistificar as
formas de universalismo britânico. Jed Esty apresenta os motivos
pelos quais é necessário passar esse pente-fino:
403

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Na modernidade colonial, a inglesidade representava tanto
uma fonte insular de valores distintivos quanto uma quase
vazia capacidade metacultural arnoldiana de absorver e go-
vernar as culturas de sua periferia. A peculiaridade inglesa
é, então, ao mesmo tempo, uma essência cultural e um vazio
cultural essencial. (ESTY, 2004, p. 196)

A descolonização requer, ao mesmo tempo, uma insistência no


aspecto multicultural da história e da realidade britânicas con-
tra mitos monoculturais e uma crítica das maneiras pelas quais a
britanidade se apresenta como o reino do universal. Esty vê esse
processo duplo exemplificado na obra de Stuart Hall, cujo trabalho
combina estudos multiculturais e multiétnicos da Inglaterra que
desafiam os mitos monolíticos da identidade nacional, ao mesmo
tempo que reconhecem a importância de abordar “uma concepção
de ‘inglesidade’ que, por ser hegemônica, não se apresenta como
étnica” (ESTY, 2004, p. 196). Essas ênfases estão presentes nos tex-
tos de Williams organizados no livro Who Speaks for Wales?; por
um lado, a ênfase na diversidade das “identidades formadas a partir
da experiência, quer seja uma identidade já estabelecida, se dispo-
nível, ou uma identidade potencial, na qual deslocamento e realo-
cação demandam uma nova formação” e, por outro, a rejeição das
“superficialidades alienadas da ‘nação’.” (“The Culture of Nations”,
WSFW, 2021). De fato, a vantagem de uma posição nacionalista mi-
noritária para Williams é que ela permite um maior discernimen-
to e uma ênfase nas “artificialidades da ideia de ‘senso comum’ de
Estado-nação estabelecida”, permitindo ao crítico “desmantelá-las
a partir da história e da teoria social” (“The Culture of Nations”,
WSFW, 2021). Williams endossa o argumento de Sartre, quando
este “escreve sobre os bascos”, de que “estamos lidando com um
tipo totalmente diferente” de nacionalismo quando “se trata de um
caso de nacionalidade marginal, absorvida ou oprimida, do sentido
de diferença em relação a um Estado-nação particular grande e do-
minante ou, é claro, ao império” (“Marxism. Poetry, Wales”, WSFW,
2021). A questão que se coloca aqui é: o que acontece se o projeto
404 nacionalista for bem-sucedido e a subordinação chegar ao fim na
forma de um estado político? Estaria a minoria condenada, em tal
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cenário, a adotar os “discursos de uniformidade” característicos da-


queles universalismos coercitivos que negam as diferenças particu-
laristas dos outros? (BOYARIN E BOYARIN, 1995, p. 319).
Essa questão nos leva a uma etapa final do argumento. A “res-
posta liberal padrão” de que “eles são tão britânicos quanto você”
expressa o desejo de que a maioria seja tolerante o suficiente para
permitir que as minorias transcendam suas particularidades ao
abraçar uma britanidade ampla. O que esse gesto aparentemen-
te tolerante exclui é a possibilidade de um universalismo distinto,
enraizado nas experiências das minorias; um universalismo “ga-
lês” ou “negro”, digamos. A resposta assimilacionista liberal rejeita
acertadamente a intolerância racista, mas esconde o medo de que
as minorias possam não querer abrir mão de suas particularidades,
possam não desejar ser assimiladas a um britanismo predefinido,
mas sim forjar um universalismo próprio e distinto do que o que
lhes foi oferecido. Essa forma do universal não exigiria o apagamen-
to de seu particularismo pela comunidade negra, judaica ou de lín-
gua galesa. Exigiria, isso sim, abraçar o que Žižek descreve como a
“negação determinada” que traz a marca daquilo que nega. Assim,
enquanto a “resposta liberal padrão” ao particularismo de um mo-
vimento como Black Lives Matter enfatizaria que “todas as vidas im-
portam” (uma variante de “eles são tão britânicos quanto você”, no
cenário de Williams), uma resposta muito mais ampla reconheceria

que, embora este princípio seja verdadeiro, na atual cons-


telação concreta, a violência a que os negros estão expostos
não é apenas um caso neutro de violência social, mas seu
caso exemplar e privilegiado — reduzi-la a um caso parti-
cular de violência significa ignorar a verdadeira natureza da
violência em nossa sociedade. Esta é a “universalidade con-
creta” hegeliana: só podemos formular a dimensão universal
se nos concentrarmos em um caso particular que a exempli-
fica. (ŽIŽEK, 2020, p. XII)

Isso está muito próximo do que Raymond Williams quis dizer


405
quando falou em “particularismo militante” e “universalidades

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


concretas”17. Nessa dimensão central de seu pensamento, as lógi-
cas dos movimentos de classe, etnia e nação estão estruturalmente
interligadas. Escrevendo em 1981 sobre o “caráter único e extraor-
dinário da auto-organização da classe trabalhadora”, Williams ob-
servou que

ela [a auto-organização da classe] tentou conectar lutas par-


ticulares a uma luta geral de uma maneira muito especial.
Pretendeu, como movimento, dar concretude ao que pode
parecer, à primeira vista, uma afirmação extraordinária de
que a defesa e a promoção de certos interesses particula-
res, devidamente reunidos, são, de fato, de interesse geral.
(WILLIAMS, 1989, p. 249)

O movimento desse argumento, do particular para o geral, é


repetido na tentativa de buscar uma resposta para a “confusão
intolerável” sobre nacionalidade e identidade. Pouco se ganha, ob-

17
Conferir Williams (1989, p. 249); ver também “The Culture of Nations”, WSFW, 2021.
serva Williams, com o “salto intelectual familiar para esta ou aquela
universalidade.” Mas isso não acarreta uma rejeição do universal:

As verdadeiras “universalidades” — grandes formas que


conseguem prevalecer sobre formas mais locais — não são
encontradas em sistemas intelectuais, mas em relações reais
e organizadas que conseguem exercer poder efetivo em
áreas centrais. Esta é a maneira de olhar para o problema
moderno urgente da “nação”. É ineficaz e até trivial gastar
energia em uma demonstração da universalidade do ser hu-
mano como tal e esperar que as pessoas, somente a partir
desse fato, reorganizem suas vidas, tratando todos os seus
agrupamentos e relacionamentos imediatos e reais como se-
cundários. Pois o sentido de ser humano e a valorização da
vida humana só podem, na prática, ser compreendidos, e tal-
vez, em teoria, somente concebíveis, por meio das relações
significativas que um ser humano constrói em sua relação
com outro ser humano. Nenhuma abstração, por si só, conse-
gue capturar os sentidos mais particulares que surgem des-
406 sas relações. Ampliá-los e expandi-los, em um sentido muito
material, envolve a construção de novas relações sociais que
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

formam um continuum significativo — ao contrário de uma


oposição — com relações mais limitadas e particulares que
constituem, e precisam constituir, o tecido da vida humana.
(“The Culture of Nations”, WSFW, 2021)

Para que a solidariedade forjada em uma luta particular se tor-


ne viável, é necessário que sua extensão e ampliação conduzam a
novas formas de sociedade. Para Williams, o engajamento político
precisa ser baseado em um particularismo militante em que uma
verdade universal mais ampla se manifesta. O movimento dos Di-
reitos Civis e do Black Lives Matter, nos Estados Unidos, valem-se
da especificidade da experiência afro-americana para articular um
programa de justiça universal; as vertentes mais argutas do mo-
vimento feminista e do movimento ecológico projetam seus par-
ticularismos em reconstruções abrangentes da sociedade com o
objetivo de beneficiar a todos. Esse processo — em que as crises
particulares de uma comunidade “sob pressão, sob ataque” se es-
tendem a um “movimento político” que aborda “as relações totais
de uma sociedade” — é identificado por Raymond Williams como
sendo também “uma parte muito significativa da história do País
de Gales” (The Importance of Community”, WSFW, 2021). À preten-
dida “federação” de movimentos que mobiliza energias específicas
para fins universais, ele adiciona as “forças nacionalistas radicais”
de “irlandeses, escoceses, galeses, bretões ou bascos” (“The Practi-
ce of Possibility” e “The Importance of Community”, WSFW, 2021).
Os leitores de Who Speaks for Wales? ([2003] 2021) perceberão
que os ensaios presentes nele seguem uma trajetória do particu-
lar ao geral. Ao concluir seus argumentos sobre o nacionalismo ga-
lês no primeiro ensaio, que dá título ao livro, Williams afirma que
“desafiar, pessoal e publicamente, de onde quer que estejamos, os
imensos imperativos que não estão apenas dissolvendo, mas tam-
bém tolhendo, as expressões de identidade e cultura ” é “melhor
que uma causa nacional e mais do que uma causa internacional,
pois, em suas formas variadas, trata-se de um movimento humano
e social muito geral.”18 Os “ensaios galeses” apresentados em Who 407
Speaks for Wales? ([2003] 2021) não são, então, produtos da reti-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


rada de Williams “para seu reduto galês”, nem representam a busca
por consolo em uma “comunidade celta” (PARRINDER, 1987, p. 78;
DAVIES, 1993, p. 207).
Eles representam a tentativa de Williams de propor um univer-
salismo que não apague o particular.

IV

Agora, vire-se e, com o Decálogo atrás de você, abandone o si-


lêncio sereno da Igreja Paroquial de St. Clydawg. A luz ofuscará mo-
mentaneamente seus olhos ainda descostumados com a claridade,
mas, quando eles voltarem ao foco, você se verá cercado pelas lon-
gas cristas das Montanhas Negras. É um local adequado para termi-
nar. Raymond Williams começou The People of the Black Mountains,
seu romance inacabado e publicado postumamente, colocando
sua “mão direita”, “palma para baixo”, sobre as “camadas de areni-
18
Conferir “Who Speaks for Wales?”, WSFW, 2021..
to” desta paisagem, sentindo que ali “as gerações” estavam “todas
subitamente presentes” (WILLIAMS, [1989] 1990, p. 1 – 2). Ao fa-
zer isso, estaria ele reconhecendo que a desejada reconciliação da
comunidade nacional com a humanidade universal permanecia —
como a terra prometida do Monte Nebo — fora de alcance?

REFERÊNCIAS

AARON, Jane. Bardic Anti-colonialism. In: AARON, Jane and


WILLIAMS, Chris eds. Postcolonial Wales. Cardiff: University
of Wales Press, 2005.

ARENDT, Hannah Arendt. The Origins of Totalitarianism. New


York: Harcourt Brace, 1951.
408
ARENDT, Hannah. The Origins of Totalitarianism. [1951]. Lon-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

don, Penguin, 2017.

ARENDT, Hannah. Letter to Raymond Williams. April 11, 1962.


In: WILLIAMS, Raymond. Papers. Swansea University (Acervo
Richard Burton Archives).

ARENDT, Hannah. The Jewish Writings, Edited by Jerome Kohn


and Ron H. Feldman. New York: Schocken Books, 2007.

BERNSTEIN, Richard J. Why Read Hannah Arendt Now. Cam-


bridge: Polity Press, 2018.

BOYARIN, Daniel and BOYARIN, Jonathan. Diaspora: Genera-


tion and the Ground of Jewish Identity. In: APPIAH, Kwame
Anthony and GATES JR., Henry Louis eds. Identities. Chicago:
University of Chicago Press, 1995.
BOYARIN, Daniel. A Radical Jew: Paul and the Politics of Identi-
ty. Los Angeles: University of California Press, 1994.

DAVIES, James A. Not going back, but...exile ending: Raymond


Williams’s fictional Wales. In: MORGAN, W.J. and PRESTON, P.
eds. Raymond Williams: Politics, Education, Letters. London:
Macmillan, 1993.

DU BOIS, W. E. B. Black Reconstruction in America, 1860-1880.


[1935] New York: Paperback, 1998.

EDWARDS, Hywel Teifi. Codi’r Hen Wlad yn ei Hôl 1850 – 1914.


Llandysul: Gomer, 1989.

ESTY, Jed. A Shrinking Island: Modernism and National Culture 409


in England. Princeton: Princeton University Press, 2004.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


FRANCIS, Hywel and SMITH, Dai. The Fed: A History of the
South Wales Miners in the Twentieth Century. [1980] Cardiff:
University of Wales Press, 1998.

FRASER, Nancy. Reframing Justice in a Globalising World. In:


______. New Left Review II, 36 (Nov/Dec 2005), p. 77.

GATES JR., Henry Louis. Tradition and the Black Atlantic: Crit-
ical Theory in the African Diaspora. New York: Basic Books,
2010.

GIBBONS, Luke. Edmund Burke and Ireland. Oxford: Oxford


University Press, 2003.
GILROY, Paul. There Ain’t No Black in the Union Jack: The Cul-
tural Politics of Race and Nation. Chicago: The University of
Chicago Press, 1987.

GREIF, Mark Greif. The Age of the Crisis of Man: Thought and
Fiction in America 1933-1973. Princeton: Princeton University
Press, 2015.

GUBAR, Susan. Racechanges: White Skin, Black Face in Ameri-


can Culture. Oxford: Oxford University Pres, 1997.

HECHTER, Michael. Internal Colonialism: The Celtic Fringe in


British National Development. 2nd edition. London and New
York: Routledge, 1998.
410
IGNATIEV, Noel. How the Irish Became White. New York: Rout-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ledge, 1995.

JOHNSON, J. R. Marxism and the Intellectuals. Detroit: Facing


Reality Publishing Committee, 1962.

JONES, Richard Wyn. The Colonial Legacy in Welsh Politics.


In: AARON, Jane and WILLIAMS, Chris eds. Postcolonial Wales.
Cardiff: University of Wales Press, 2005.

JORDAN, Glenn. We Never Really Noticed You Were Coloured:


Postcolonialist Reflections on Immigrants and Minorities in
Wales. In: AARON, Jane and WILLIAMS, Chris eds. Postcolonial
Wales. Cardiff: University of Wales Press, 2005.

LOTT, Eric. Black Mirror: The Cultural Contradictions of Amer-


ican Racism. Cambridge MA: Harvard University Press, 2017.
PARRINDER, Patrick. The Failure of Theory. Brighton: The
Harvester Press, 1987.

ROBERTS, Gwyneth Tyson. The Language of the Blue Books:


The Perfect Instrument of Empire. Cardiff: University of Wales
Press, 1998.

ROEDIGER, David R. The Wages of Whiteness: Race and the


Making of the American Working Class. London: Verso, 1991.

SMITH, Dai. Aneurin Bevan and the World of South Wales. Car-
diff: University of Wales press, 1993.

SMITH, Dai. Raymond Williams: A Warrior’s Tale. Cardigan:


Parthian, 2008. 411

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


SOLLORS, Werner. Beyond Ethnicity: Consent and Descent in
American Culture. New York: Oxford University Press, 1986.

WALZER, Michael. Exodus and Revolution. New York: Basic


Books, 1985.

WARREN, Robert Penn Warren. Who Speaks for the Negro?.


New York: Random House Publishing, 1965.

WEBER, Eugen. Peasants into Frenchmen: Modernization of


Rural France, 1870-1914. Stanford: Stanford University Press,
1976.

WILLIAMS, Charlotte. Sugar and Slate. Aberystwyth: Planet,


2002.
WILLIAMS, Daniel G. ‘Cyflwyniad’, Canu Caeth: Y Cymry a’r Af-
fro-Americaniaid. Llandysul: Gomer, 2010.

WILLIAMS, Daniel G. Black Skin, Blue Books: African Amer-


icans and Wales 1845 – 1945. Cardiff: University of Wales
Press, 2012.

WILLIAMS, Daniel G. To Know the Divisions: the identity of


Raymond Williams. In: Wales Unchained: Literature, Politics
and Identity in the American Century. Cardiff: University of
Wales Press, 2015.

WILLIAMS, Daniel G. Wales Unchained: Literature, Politics and


Identity in the American Century. Cardiff: University of Wales
Press, 2015.
412
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

WILLIAMS, Daniel G. The Welsh Atlantic: Mapping the Con-


texts of Welsh-American Literature’. In: SHELL, Marc Shell ed.
American Babel: Literatures of the United States from Abnaki to
Zuni. Cambridge MA: Harvard University Press, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Culture and Society: 1780-1950. [1958]


New York: Columbia University Press, 1983.

WILLIAMS, Raymond. Grammar of Dissent. Review of Voices


of Dissent: A selection of Articles from Dissent Magazine, The
Nation 188 (1959), pp. 174-175.

WILLIAMS, Raymond. Modern Tragedy. [1966]. London: Hog-


arth Press, 1992.

WILLIAMS, Raymond. People of the Black Mountains: The Be-


ginning. [1989] London: Paladin, 1990.
WILLIAMS, Raymond. Politics and Letters: Interviews with
New Left Review. London: Verso, 1979.
WILLIAMS, Raymond. The Country and the City. London: Chat-
to and Windus, 1973.

WILLIAMS, Raymond. The Forward March of Labour Halted?


In: ______. Resources of Hope. GABLE, Robin e/d. London: Verso,
1989.

WILLIAMS, Raymond. The Volunteers [1978]. London: Hoga-


rth Press, 1985.

WILLIAMS, Raymond. Thoughts on a Masked Stranger. In: The


Kenyon Review, 23:4 (Autumn, 1961), p. 698 – 702.
413
WILLIAMS, Raymond. Towards 2000. London: Chatto and

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Windus, 1983.

WILLIAMS, Raymond. Violence and Confusion. In: The Guard-


ian, 25 June 1970.

WILLIAMS, Raymond. Who Speaks for Wales? (WSFW). [2003]


[Nova Edição Inglesa Revisada] Organização: Daniel Williams.
Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLIAMS, Raymond. Introduction. In: ______. WSFW. [2003]


[Nova Edição Inglesa Revisada] Organização: Daniel Williams.
Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLIAMS, Raymond. Community. In: ______. WSFW. [2003]


[Nova Edição Inglesa Revisada] Organização: Daniel Williams.
Cardiff: University of Wales Press, 2021.
WILLIAMS, Raymond. Freedom and a Lack of Confidence. In:
______. WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Orga-
nização: Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press,
2021.

WILLIAMS, Raymond. Marxism, Poetry, Wales. In: ______.


WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Organização:
Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLIAMS, Raymond. Region and Class in the Novel. In: ______.


WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Organização:
Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLIAMS, Raymond. The Culture of Nations. In: ______. WSFW.


[2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Organização: Daniel
414
Williams. Cardiff: University of Wales Press, 2021.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

WILLIAMS, Raymond. The Importance of Community. In:


______. WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Orga-
nização: Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press,
2021.

WILLIAMS, Raymond. The Practice of Possibility. In: ______.


WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Organização:
Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLIAMS, Raymond. The Welsh Trilogy and The Volunteers. In:


______. WSFW. [2003] [Nova Edição Inglesa Revisada] Organiza-
ção: Daniel Williams. Cardiff: University of Wales Press, 2021.

WILLOUGHBY-HERARD, Tiffany. Waste of a White Skin: The


Carnegie Corporation and the Racial Logic of White Vulnerabil-
ity. Oakland: University of California Press, 2015.
WRIGHT, Richard. Pagan Spain. [1957] Jackson: University
Press of Mississippi, 2002.

ZIMMERN, Alfred. My Impressions of Wales. London: Mills and


Boon, 1921.

ŽIŽEK, Slavoj. Introduction: The Spectre of Ideology. In: ______.


Mapping Ideology. London: Verso, 1994.

ŽIŽEK, Slavoj. Like a Thief in Broad Daylight: Power in the Era


of Post-Humanity. London: Allen Lane, 2018.

ŽIŽEK, Slavoj..Foreword: The Importance of Theory. In: ZAL-


LOUA, Zahi. Žižek on Race: To/wards and Anti-Racist Future.
London: Bloomsbury, 2020. 415

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


RESUMO
Este capítulo explora a relação entre o universal e o particular
nos textos de Raymond Williams. Argumenta que os ensaios
de Williams sobre Gales e a identidade galesa partilham com
Hannah Arendt uma ênfase na necessidade de comunidades
particularistas, e sugere que as raízes desta semelhança se
encontram na forma como ambos os pensadores se basearam
na obra de Edmund Burke. Para Raymond Williams, o envol-
vimento político precisa ser fundamentado num particula-
rismo militante que exemplifica uma verdade universal mais
ampla. Os seus escritos sobre o País de Gales não devem ser
descartados como se fossem atos de nostalgia, mas como con-
tribuições cruciais para os debates em curso sobre a identi-
dade nacional, cidadania e direitos humanos. Os movimentos
“Civil Rights and Black Lives Matter” nos Estados Unidos, por
exemplo, baseiam-se na especificidade da experiência afro-a-
mericana para articular um programa de justiça universal; as
tensões mais longínquas dos movimentos feministas e ecoló-
gicos projetam os seus particularismos para a reconstrução
abrangente da sociedade, com o objectivo de beneficiar a to-
dos. Este processo - em que as crises particulares de uma co-
munidade “sob stress, sob ataque” se tornam extensivas a um
“movimento político” que aborda “as relações totais de uma
sociedade” - é identificado por Raymond Williams como sen-
do também “uma parte mais significativa da história do País
de Gales”.
Palavras-chave: Nacionalismo, Identidade, Direitos, Univer-
salismo, Particularismo.

ABSTRACT
This chapter explores the relationship between the universal
and particular in Raymond Williams’s writing. It argues
that Williams’s essays on Wales and Welsh identity share an
416 emphasis on the need for particularistic communities with
Hannah Arendt, and suggests that the roots of this similarity
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

is to be found in the ways that both thinkers drew on the


work of Edmund Burke. For Raymond Williams, political
engagement needs to be grounded in a militant particularism
that exemplifies a broader universal truth. His writings on
Wales should not be dismissed as acts of nostalgia but as
crucial contributions to ongoing debates regarding national
identity, citizenship and human rights. The Civil Rights and
Black Lives Matter movements in the United States, for
instance, draw on the specificity of the African American
experience to articulate a programme of universal justice;
the most far-seeing strains of the feminist and ecological
movements project their particularisms forwards into wide-
ranging reconstructions of society with the aim of benefitting
all. This process - where the particular crises of a community
‘under stress, under attack’ becomes extended into a ‘political
movement’ that addresses ‘the total relations of a society’
– is identified by Raymond Williams as also being ‘a most
significant part of the history of Wales’.
Keywords: Nationalism, Identity, Rights, Universalism,
Particularism.

SOBRE O AUTOR
O professor Daniel Gwydion Williams é crítico cultural e um
dos principais intelectuais públicos do País de Gales. Seus in-
teresses de pesquisa abrangem literaturas em galês e inglês
de ambos os lados do Atlântico, partindo do século XIX até
os dias de hoje, com ênfase nas questões do nacionalismo, da
etnia e da identidade.
Graduado em Literatura Americana e Inglesa na Universida-
de de East Anglia (Norwich), passando seu terceiro ano na
Universidade Clark, Worcester, Massachusetts. Mestre em
Línguas e Literaturas Celtas, em 1997, na Universidade de
Harvard. PhD em Literatura Inglesa (2001), na Universidade
de Cambridge. Professor na Universidade de Swansea desde 417
janeiro de 2000. Foi diretor assistente do CREW (Centro de

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Pesquisa em Literatura e Língua Inglesa do País de Gales) de
2001 a 2007, e diretor entre 2007 a 2010, conjuntamente com
o professor M. Wynn Thomas.
Além do meio acadêmico, Daniel Williams interessa-se por
música e política. Ele é um saxofonista semi-profissional de
jazz e membro fundador do sexteto jazz-folk ‘Burum’, que
lançou três álbuns - Alawon (2007), Caniadau (2012), Llef
(2016). Ele vive na circunscrição eleitoral de Neath, onde se
apresentou como o candidato Plaid Cymru / Partido de Gales
nas eleições de 2017 e 2019, em Westminster.
LINGUAGEM E DETERMINISMO
CULTURAL: DIÁLOGOS CRÍTICOS
DE RAYMOND WILLIAMS

Ana Lúcia Teixeira1

Para Paulo

“Cidadão fiscal de rendas,


eu lhe juro 419
as palavras custam

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ao poeta
um duro juro.
Para nós,
a rima
é um barril.
Barril de dinamite.
O verso, um estopim. (...)
Mas a força do poeta
não se reduz só
a que te lembrem
no futuro
entre soluços.
Não!
1
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e do Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais da Unifesp. Email: alu.fteixeira@gmail.com Link para Currí-
culo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7293529482131431 Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-2547-9938
Hoje também
a rima do poeta
é carícia
slogan
açoite
baioneta.”

Conversa sobre poesia


com o fiscal de rendas
Vladímir Maiakóvski
1926

Raymond Williams pode ser considerado um dos analistas da


cultura no século XX mais interessados em nela destacar sua di-
420
mensão política. Tal preocupação rendeu ao autor não só inúme-
ras interfaces de contestação crítica – em especial voltadas a uma
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

gama de estudos que ele enfeixa no chamado “paradigma da lin-


guagem” (WILLIAMS, 2011, p. 205) –, mas tentativas de interfe-
rência direta no mundo político, de que é exemplo o May Day Ma-
nifesto2, texto que publica juntamente com Stuart Hall e Edward
Thompson em 1968.
É grande a tentação de conectar as escolhas metodológicas de
Williams – refiro-me aqui ao materialismo cultural – à origem de
classe do autor. Como é amplamente conhecido, Williams nasceu
em Pandy, um pequeno vilarejo rural no País de Gales, em uma fa-
mília de poucas posses cujo pai trabalhava na estrada de ferro lo-
cal. Ainda jovem, Williams já se envolvia com o movimento sindi-
cal e a ligação com movimentos de esquerda o acompanharia por
toda a vida3. Envolveu-se tanto com o Partido Comunista quanto
com o Partido Trabalhista4 e é reconhecidamente um dos fundado-
2
Para mais detalhes sobre a importância e o sentido do May Day Manifesto na trajetória de
Williams, veja Eldridge e Eldridge (2005), especialmente o capítulo “Politics”.
3
Para mais detalhes sobre a biografia de Williams, veja Inglis (2005).
4
Para informações detalhadas sobre a participação de Williams em ambos os partidos,
res da British New Left. Meu intuito, no entanto, é outro: não o de
perscrutar a dimensão biográfica que poderia exercer uma função
explicativa em relação às suas escolhas de método, mas o de loca-
lizar no cenário teórico da época os diálogos críticos que tornaram
relevante justamente propor um método de análise que amarra es-
treitamente a análise da cultura e um posicionamento político ine-
quívoco diante dela.
Tomarei como interlocutoras de Williams, de um lado, algumas
perspectivas consideradas idealistas pelo autor e, de outro, o pen-
samento marxista inglês para buscar aquilatar a importância dos
detalhes da noção de cultura e da teoria da cultura formuladas por
Williams. Não quero com isso dizer que esses são os únicos diálo-
gos críticos estabelecidos por Williams em sua obra, mas apenas
que são os mais relevantes para evidenciar a forma como Williams
restaura a dimensão política em sua própria formulação do concei-
to de cultura. 421
O que o autor considera se poder formular como uma teoria sig-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


nificativa da cultura é, em seus termos, um tanto controverso, já
que se funda num duplo enfrentamento teórico-metodológico que
implica

distinguir uma teoria da cultura significativa, de um lado,


das teorias das artes específicas, que em algumas de suas
formas menos produtivas a teoria da cultura se propõe a su-
plantar ou mesmo suprimir; e de outro, das teorias propria-
mente sociais e sociológicas que investigam as ordens gerais
e as instituições, que algumas teorias da cultura se propõem
a agregar ou a substituir. (WILLIAMS, 2011, p. 189)

Isso porque, a despeito de suas enormes diferenças, ambas as


perspectivas teóricas recaem num mesmo problema que é o de
tomar as categorias cultura e sociedade, respectivamente, de for-
ma apriorística. Aqui Williams se refere, a título de exemplo, tan-
to às teorias que operam o binômio “base-superestrutura” quan-
to aquelas que criam uma sinonímia entre cultura e alta-cultura, à
veja Glaser (2008).
qual corresponderia uma comunidade de elite, guardiã dos valo-
res originários de sua cultura. De forma inteiramente diversa, para
Williams, uma teoria significativa da cultura haveria de enfrentar
as múltiplas

atividades humanas que têm sido agrupadas histórica e teo-


ricamente nessas categorias, e especialmente quando ela ex-
plora essas relações como simultaneamente dinâmicas e es-
pecíficas dentro de situações históricas descritíveis (...) que
são alteráveis, assim como o nosso presente o é. (WILLIAMS,
2011, p. 190)

Isso significa, portanto, abandonar a ideia de que a cultura e a


sociedade são dados pressupostos, assim como pressuposta seria
a relação entre elas. Em seu lugar, o que Williams propõe é colocar
sob análise precisamente as atividades e relações que a crítica fre-
422 quentemente enfeixa sob o nome de cultura e de sociedade.
Antes de tratar da proposta analítica de Williams, buscarei ex-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

por com mais detalhes a leitura feita pelo autor dessas perspectivas
teóricas com as quais estabelece um diálogo crítico.

O idealismo sob a forma de autonomia da arte

Quando Williams adentra o espaço acadêmico de Cambridge,


encontra, como mais elevada expressão do cânone vigente, o tra-
balho de F. R. Leavis, I. A. Richards e de outros intelectuais que or-
bitam em torno da célebre revista Scrutiny. A crítica produzida por
Williams a essa perspectiva teórica talvez tenha sido a mais intensa
de sua carreira.
O trabalho de Leavis é marcado pelo estabelecimento de uma
noção de literatura pensada como receptáculo dos valores mais
elevados que podem ser experimentados numa determinada comu-
nidade. Esses valores fazem referência a uma Inglaterra ancestral,
em que se valorizam principalmente os espaços rurais, e por isso
mesmo vinha sofrendo um processo de decadência à medida que
o processo de industrialização e sua correlata urbanização vinham
consolidando o que o autor chama de “sociedade de massas”.

Havia uma velha Inglaterra, predominantemente agrária,


com uma cultura tradicional de alto valor. Ela foi substituí-
da pelo estado industrial moderno cujas instituições ca-
racterísticas deliberadamente barateiam nossas reações
humanas naturais, transformando a arte e a literatura em
sobreviventes e testemunhas terminais, enquanto uma nova
vulgaridade mecanizada toma de assalto os centros de po-
der. (WILLIAMS, 2015a, p. 13)

Ao mesmo tempo, esse processo histórico via se estabelecer no


âmbito da educação em geral, e no da crítica literária em particular,
um papel da maior relevância para um grupo específico de intelec-
tuais: o de pequeno e seleto grupo guardião desses valores em de-
saparecimento: 423

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


A única forma de defesa está na educação, que pelo menos
mantém vivas algumas coisas e que também, pelo menos
em uma minoria, desenvolve modos de pensar e sentimen-
tos capazes de entender o que está acontecendo, e de man-
ter os mais requintados valores individuais. (WILLIAMS,
2015a, p. 13)

É explícito o caráter segregacionista e elitista de uma tal


concepção de cultura e de comunidade de eleitos, aspecto da obra
de Leavis que será fortemente criticado por Williams, apesar do
reconhecimento que este manifesta à figura de referência que foi
Leavis (CEVASCO, 2001, p. 79-80). O que se tem em Leavis é uma
sólida proposta de firmar um posicionamento contrário a todos os
mecanismos de democratização da educação e da cultura (alfabeti-
zação generalizada, difusão de livros de bolso e periódicos em geral
em razão do barateamento de seu processo de produção, etc.) em
prol do caráter absolutamente seletivo e elitizado daqueles a quem
caberia resguardar os valores eruditos que estavam sendo compro-
metidos numa sociedade em declínio.
Uma das críticas mais incisivas de Williams à teoria de Leavis
se refere precisamente à concepção de comunidade envolvida na
necessidade de preservação dos valores mais elevados dessa Ingla-
terra pré-industrial, plasmados precisamente na literatura. Uma tal
correlação envolve afirmar que esses valores teriam permanecido
imutáveis a despeito da passagem do tempo, o que, por certo, atesta
o caráter a-histórico dessa abordagem, em tudo avesso ao materia-
lismo cultural de Williams.
Williams localiza em Coleridge, assim como em sua formulação
de clerezia como guardiã cultural, a origem dessa concepção de co-
munidade em Leavis:

Civilização é um termo reservado ao mundo material – o


mesmo mundo que a Revolução Industrial transformava ra-
dicalmente no tempo de Coleridge e determinava a necessi-
dade de se postular uma clerezia para defender o domínio
424 separado da cultura. Neste residiriam os valores humanos.
Dessa separação decorre uma série de efeitos: a cultura pas-
sa a ser uma flor de estufa, algo frágil e delicado que tem de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ser preservado por uma minoria de eleitos e portanto está


dissociada das questões reais que movem o mundo material.
(CEVASCO, 2001, p. 90-91)

Um segundo aspecto da formulação de Leavis que merece o


olhar crítico de Williams – e atinge na raiz o seu projeto teórico
– reside na própria composição da comunidade orgânica a quem
caberia preservar os valores literários. Como a eleição e perma-
nência de tais valores pressupõem o consenso dos seus membros,
essa concepção de comunidade não aceita fissuras. Não há ali es-
paço para o conflito, para o dissenso, para as contradições que
a perspectiva materialista de Williams ressaltaria nas sociedades
industriais.
Há que se considerar ainda que, ao localizar os valores a serem
preservados, e, portanto, a cultura num momento pré-industrial e
perceber no desenvolvimento histórico das sociedades industriais
precisamente o declínio desses valores e da sociedade como um
todo, Leavis opõe cultura e civilização, que passam a assumir papéis
antitéticos. Tudo que há de sublime no mundo dos valores perten-
ceria à esfera da cultura. Colaborando para o seu declínio estariam
todos os aspectos envolvidos no desenvolvimento histórico da so-
ciedade industrial, aí incluídos seus conflitos, seus problemas, suas
fraturas. Portanto, quanto mais se desenvolve a civilização, menor
é o espaço que resta à cultura. Como se vê, ao opor cultura e civili-
zação, Leavis defende uma ideia que seria inteiramente rechaçada
por Williams, a da oposição entre cultura e história.

c
Outra perspectiva idealista com a qual Williams estabelece uma
interlocução fundamental é o estruturalismo francês5, sem perder
de vista certos tipos de análise precedentes que de alguma forma o
influenciaram:
425

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


De fato, quando essa tendência do estruturalismo literá-
rio apareceu como uma importação da França, nos anos
1960, arrisquei-me a dizer que ela parecia estranha ape-
nas porque era um primo há muito perdido que emigrara
de Cambridge no final dos anos 1920 e início dos 1930.
(WILLIAMS, 2014, p. 209)

Movimento contemporâneo do autor, o estruturalismo propõe


uma análise exclusivamente interna das obras, partindo do pressu-
posto de que todas elas possuem uma racionalidade interna que as
costura em sua totalidade em termos de um sistema significante e,
assim, descarta qualquer movimento analítico que busque conectar
sua análise a seu contexto social.
Na perspectiva de Williams, o estruturalismo dos anos 1960
pode ser tomado como uma espécie de herdeiro do formalismo
5
Em “Marxismo, Estruturalismo e Análise Literária” (2014), Williams perpassa os deta-
lhes que diferenciam diferentes abordagens do estruturalismo, mencionando não o mé-
todo estruturalista na Antropologia, na Linguística e na Psicanálise, mas, no que se refere
precisamente à análise literária, os trabalhos de Lucien Goldmann, Louis Althusser, Pierre
Macherey, entre outros. Para o meu propósito, interessa ressaltar algo que eles têm em
comum, que é a análise exclusivamente interna das obras literárias.
russo dos anos 1920, por sua vez desdobramento do futurismo que
exprimia “um modernismo extremo e uma negação radical do pas-
sado (...) combinados com a completa ausência de conteúdo inter-
no.” (BAKHTIN; MEDVEDEV apud WILLIAMS, 2011, p. 194).
A repetida defesa da autonomia da arte feita pelos movimentos
de vanguarda e reapropriada pelo formalismo foi o mote preciso
que permitiu, segundo Williams, a desconexão contextual tão pro-
fundamente característica dessa corrente analítica6. Se, de um lado,
ela permitiu uma ruptura com a ordem burguesa, de outro, descar-
tou o instrumental que permitiria a conexão com qualquer outra
forma de organização social. O crítico Paul Filmer vai direto ao pon-
to na consideração que faz sobre a forma como Williams pensa o
pós-modernismo:

(...) o pós-modernismo, através da des-historização da narra-


tiva literária e, através da privação da tipificação experiencial
426 exemplar das personagens, impede a exploração imaginária
e a descoberta das possíveis alternativas para a ordem das
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

relações sociais e culturais existentes – arrisca-se a tornar


o planejamento impossível por carregar sua insignificância.
Para Williams, estas eram as mais sérias ameaças à autorida-
de e à historicidade da literatura e da arte, que continuavam
a ser a chave para a análise interpretativa da cultura política
da modernidade mais recente. (FILMER, 2009, p. 391)

A consequência mais grave dessa perspectiva, segundo Williams,


é que, ao prescindir do estabelecimento das conexões contextuais
envolvidas na elaboração das obras, ela perde de vista também as
transformações ocorridas no contexto e, portanto, perde a conexão
com a história e esvazia-se dos instrumentos de interferência no
mundo social.

6
Não é meu intuito examinar a leitura feita por Williams do princípio de autonomia da
arte que, de formas variadas, foi compartilhada por muitos dos movimentos de vanguarda
da virada do século XIX para o XX na Europa. Para uma discussão minuciosa desse tema,
levando em conta diferentes formas de expressão estética, veja Rancière, 2003, especial-
mente o capítulo intitulado “La surface du design”. Para uma discussão voltada especifica-
mente à literatura, veja Costa (2017).
(...) a recusa a priori da história como relevante ou mesmo
possível, que tem caracterizado essa tendência que se esten-
de do formalismo, passando pelo estruturalismo, até o que
tem sido chamado de pós-estruturalismo, foi, ao cabo, um
distanciamento de algumas formas-chave de especificidade,
sob o pretexto de uma atenção seletiva àquelas versões de
especificidade que Medvedev e Bakhtin definiram como o
pressuposto formalista de uma ‘contemporaneidade eterna’.
(WILLIAMS, 2011, p. 195-196)

Para essa retomada nos anos 1960 de determinadas premissas


metodológicas que já nos anos 1920 haviam se provado insuficien-
tes, premissas que vêm vertebrar sobretudo o estruturalismo e o
pós-estruturalismo na França, Jacques Leenhardt formula uma hi-
pótese que está na dependência justamente da contextualização
histórica do movimento: a recém encerrada Guerra da Argélia e
a adesão definitiva da França à sociedade de consumo. Leenhardt
aponta aqui um gesto analítico de negação do contexto de produção 427
cultural, assumindo que nada que dele viesse poderia ser analitica-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


mente proveitoso:

Nada de positivo poderia emanar das forças sociais e políti-


cas tradicionais, impasse que deu forma à tese da domina-
ção absoluta dos simulacros no conjunto das ações sociais.
Nesse contexto, restaurar uma distância adequadamente
erudita parecia oferecer uma alternativa, uma vez que toda
práxis estava posta em questão. Tratava-se, em uma pa-
lavra, de romper com a tradição cujo emblema havia sido
Jean-Paul Sartre, para a qual toda reflexão válida era neces-
sariamente articulada a uma tomada de posição política.
(LEENHARDT, 2018, p. 37)

É precisamente a negativa de se produzir uma análise


enraizando as obras em seu chão histórico, opção feita pelos
formalistas e posteriormente pelos estruturalistas e pós-estru-
turalistas, que é o objeto de crítica de Williams.
Limitações da cultura no âmbito do
materialismo determinista

Em Cultura e Sociedade (1969, p. 276), Williams afirma que foi


apenas na década de 1930 que teorias marxistas da cultura come-
çaram a chegar à Inglaterra de forma mais efetiva. A premissa bási-
ca do materialismo que circulava no pensamento inglês era lida em
termos excessivamente dogmáticos, traduzida pelo célebre fórmula
da infraestrutura determinando a superestrutura – para muitos, a
chave de toda teoria marxista da cultura. Essa formulação, eviden-
temente, confina o plano da cultura numa condição exclusiva de
produto, simples resultado passivo dos fenômenos que se dão no
plano de fato definidor que é, ao fim e ao cabo, o econômico.
Para contestar essa perspectiva, ilustrada principalmente pela
figura de William Morris, Williams recorre ao próprio Marx para
428 desconstruir, antes de mais nada, a própria ideia de que ambos os
planos, base material e superestrutura, fossem separados de forma
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tão completamente estanque e de que guardassem entre si uma re-


lação de determinação:

Marx, ele próprio, esboçou mas nunca desenvolveu por com-


pleto uma teoria da cultura. Seus comentários ocasionais
acerca da literatura, por exemplo, são os de um homem culto
e inteligente de sua época – não o que hoje entendemos por
crítica literária marxista. Ocasionalmente, acontece que a
sua extraordinária intuição social lhe permite estender um
comentário, mas nunca se tem a impressão de que estivesse
aplicando uma teoria. Não somente o tom da sua discussão
desses temas é normalmente desprovido de qualquer dog-
matismo, como se apressa a refrear tanto em teoria quanto
em prática literárias tudo aquilo que, evidentemente, consi-
derava uma extensão mecânica e devida a entusiasmo exces-
sivo de suas conclusões de ordem política, econômica e his-
tórica a outros tipos de fatos.” (WILLIAMS, 1969, p. 276-277)

Com essas considerações, Williams pretende mostrar que, den-


tro de uma formulação metodológica materialista que admite o par
conceitual base material-superestrutura, há que se considerar que
Marx deixou clara a necessidade de desenvolvimento de formas
analíticas diferenciadas para cada uma dessas dimensões. É em Cri-
tique of Political Economy que Williams busca os elementos para
sustentar sua interpretação da perspectiva de Marx sobre a supe-
restrutura:

O modo de produção da vida material condiciona o processo


de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência. (…) A transformação
se produziu na base econômica transforma mais ou menos
lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.
Quando se consideram tais transformações, convém distin-
guir sempre a transformação material das condições econô-
micas de produção - que podem ser verificadas fielmente com
ajuda das ciências físicas e naturais - e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as
formas ideológicas sob as quais os homens adquirem cons- 429
ciência desse conflito e o levam até o fim. (MARX, 2008, p.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


47-49, grifos meus)

A afirmação da necessidade de distinguir analiticamente os fe-


nômenos da base material daqueles da superestrutura implica, em
decorrência, que esses últimos não podem ser considerados me-
ros desdobramentos dos primeiros, meros resultados de um pro-
cesso de racionalização. Ademais, não se pode ignorar a afirmação
de Marx de que os fenômenos que se dão na superestrutura são
mais complexos e não podem ser compreendidos e explicados com
a mesma precisão com que se explicam os da base econômica. A
relação entre elas, base e superestrutura, não pode, portanto, ser
reduzida a um processo de determinação ou de reflexo.
No entanto, a grande tendência entre os marxistas ingleses foi a
de interpretar a análise de Marx como se esta definisse o plano eco-
nômico e aquele que reúne, não só a formação da consciência, mas
as dimensões política e cultural da vida em sociedade como planos
perfeitamente delimitados e igualmente observáveis da vida social.
Inteiramente diversa é a forma como Williams lê essa passagem
em Marx. O que os marxistas tomaram como conceitos precisos
que deveriam operar mecanicamente em termos de determinação,
Williams lê em termos muito menos conceituais e mais relacionais.
Isso significa dizer que ambas as dimensões, a seu ver, devem ser
tratadas na forma de uma analogia, dando espaço a diferenças ana-
líticas entre elas. Nesse sentido, o efeito geral produzido pela base
econômica seria muito mais o de organizador das forças manifestas
na superestrutura do que de determinação cerceadora de sua com-
plexidade:

Chega-se, em face disso, a um modelo diferente, em que a


realidade se apresenta como um campo de forças muito com-
plexo dentro do qual as forças econômicas vêm, por fim, re-
velar-se o elemento organizador. (WILLIAMS, 1969, p. 278)

430 Pensar o efeito da base econômica como um efeito organizador


escapa da formulação dos conceitos de base material-superestru-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tura e com isso “admite diversidade e complexidade, leva em conta


a continuidade dentro da mudança, aceita o acaso e certas autono-
mias limitadas” (WILLIAMS, 1969, p. 279-280), que é precisamente
o que Williams buscou fazer na construção de sua teoria da cultura,
em dissonância em relação à maioria dos marxistas ingleses que, ao
assumirem essa perspectiva determinista, manifestaram uma pos-
tura claramente anti-marxista:

É portanto, uma ironia lembrar que a força crítica original de


Marx se voltava principalmente contra a separação das áreas
de pensamento e atividade (como na separação entre a cons-
ciência e a produção material) e contra o esvaziamento corre-
lato do conteúdo específico – atividades humanas reais – pela
imposição de categorias abstratas. (Williams, 1979, p. 82)

Ao que se soma o esclarecimento de Engels, em carta de setem-


bro de 1890 a Joseph Bloch:
De acordo com a concepção materialista da história, o ele-
mento determinante na história é, em última análise, a pro-
dução e reprodução na vida real. Mais do que isto, nem Marx
nem eu alguma vez afirmamos. Portanto, se alguém distor-
cer isto na afirmação de que o elemento económico é o único
elemento determinante - transforma-o numa frase sem sen-
tido, abstrata e absurda. A situação económica é a base, mas
os vários elementos da superestrutura - formas políticas da
luta de classes e suas consequências, constituições estabele-
cidas pela classe vitoriosa após uma batalha bem sucedida,
etc. - formas de direito - e mesmo os reflexos de todas estas
lutas reais no cérebro dos combatentes: teorias políticas,
jurídicas, filosóficas, ideias religiosas e o seu posterior de-
senvolvimento em sistemas de dogma - também exercem a
sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos ca-
sos, preponderam na determinação da sua forma. (ENGELS,
1936, p. 475, grifo do autor)

Mas afinal, se a cultura não pode ser pensada como uma catego-
431
ria estanque que resultaria de um processo de racionalização das

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


forças produtivas, não podendo ser reduzida a mero reflexo passi-
vo do que se passa na base material, o que quer Williams dizer ao
afirmar que “um marxismo sem algum conceito de determinação é,
com efeito, destituído de validade” (WILLIAMS, 1979, p. 87)?
A questão aqui é a de aquilatar qual o sentido de determinação
que Williams encontra em Marx. No capítulo dedicado a esse tema
em Marxismo e Literatura, Williams traça os problemas de tradu-
ção dos dois termos em alemão – bestimmen e konstatieren – que
podem ser traduzidos pelo termo inglês determine. Nesse proces-
so, Williams encontrará algo muito distante do estabelecimento
de leis que se aplicariam a um processo histórico, por isso mesmo
previsível e imutável. Em seu lugar, Williams busca na própria raiz
etimológica do termo inglês determine – estabelecer fronteiras – o
sentido que encontra nesse conjunto de termos em alemão utiliza-
do por Marx. Ao determinar, a base material fixa os limites dentro
dos quais se moveriam as forças componentes da cultura, da po-
lítica, da consciência, o que não significa definir seus conteúdos e
significados, tampouco tomá-las como instância passiva cujo papel
histórico seria apenas o de refletir mecanicamente o jogo de forças
travado no âmbito da base material.
Mas a noção de determinação carrega também um segundo sen-
tido, fortemente ressaltado por Williams, que é o de exercer pres-
sões. Ela pressiona os indivíduos em determinada direção, razão
pela qual, embora se preserve uma dimensão de agência na análise
de Williams, essa nunca é pensada de forma inteiramente indivi-
dual, já que resulta de pressões exercidas pela base material. Esse
sentido de determinação – “um processo complexo e inter-relacio-
nado de limites e pressões” (WILLIAMS, 1979, p. 91) –, portanto,
não possui apenas uma dimensão negativa, cerceadora, ao impor
limites, mas adquire também um sentido positivo, incitador, de le-
var a fazer, ao exercer pressões, conectando a ação individual ao
processo histórico global.

432 Onde reside a perspectiva política da análise


Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Uma ferramenta central na obra de Williams que ajuda a com-


preender a forma como ele confronta as perspectivas teóricas aci-
ma mencionadas é o conceito de cultura. Em Williams, trata-se de
uma categoria complexa, que implica mais de um significado e que
dá a medida da envergadura da teoria williamsiana no que se refe-
re à produção de uma análise materialista em que obras literárias
assumem um papel ativo nas transformações do mundo social e,
portanto, na história.
Para ele,

A ideia de cultura é uma reação geral a uma grande mudança


nas condições da nossa vida comum. O seu elemento básico é
o seu esforço de avaliação qualitativa total. A mudança em
toda a forma da nossa vida comum produziu, como reação
necessária, uma ênfase na atenção a essa forma. Uma mu-
dança particular modificará uma disciplina habitual, deslo-
cará uma ação habitual. A mudança geral, quando ela própria
funcionou claramente, impulsiona-nos de volta aos nossos
sinais gerais, que temos de aprender a ver de novo, e como
um todo. O aperfeiçoamento da ideia de cultura é novamente
um lento caminho para o controle. (WILLIAMS, 1960, p. 314,
grifos meus)

A consideração de que a cultura é uma reação geral a uma mu-


dança que se processa em nossa vida em comum já anuncia uma
imensa ampliação no espectro do conceito de cultura, se compara-
do com a forma como Leavis a conceituava. Falamos de um conceito
que engloba a ideia de vida em comum de toda uma sociedade, e
não de um pequeno tesouro que deve permanecer sob a guarda de
uma comunidade de eleitos dando notícias de tempos felizes mas
extintos.
Williams promove um movimento de verticalização do concei-
to de cultura ao afirmar, em ensaio de 1958, que “a cultura é algo
comum, ordinário” (WILLIAMS, 2015a, p. 4), e, como tal, ela se
manifesta em todas as camadas da pirâmide social. Não se trata,
433
portanto, de privilégio de eleitos. Há aqui um processo de antro-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


pologização do conceito de cultura na medida em que ela assume o
sentido de todo um modo de vida que pode ser sintetizado em ter-
mos estéticos. Em texto de 1968 intitulado “A ideia de uma cultura
comum”, o autor retoma o problema em na seguinte formulação:

(...) a cultura é de todos: que não existe uma classe específica,


ou um grupo de homens, que esteja envolvido na criação de
significados e valores, seja em um sentido geral, seja especi-
ficamente em arte e crença. Essa criação não pode ser restri-
ta a uma minoria, ainda que talentosa, e na prática não foi de
fato restrita. (...) Assim, falando-se de uma cultura comum,
falava-se primeiramente que a cultura era o modo de vida de
um povo, bem como as contribuições essenciais e indispen-
sáveis de pessoas talentosas e identificáveis, e utilizava-se
a noção de elemento comum da cultura – sua comunidade
– como uma maneira de criticar essa cultura dividida e frag-
mentada que efetivamente temos. (Williams, 2015b, p. 53,
grifo do autor)

Essa formulação do conceito de cultura confronta a perspectiva


que primava no cânone acadêmico da época – refiro-me aqui nova-
mente a Leavis, Richards e à revista Scrutiny – na medida em que
amplia suas possibilidades para recantos do mundo social que eram
impensáveis para os frequentadores da casa de chás em Cambrid-
ge7. Uma tal ampliação não acarreta apenas implicações teóricas,
mas políticas no sentido de trazer para dentro do enquadramento
metodológico a preocupação com formulações conceituais que en-
frentam desigualdades presentes dentro e fora da teoria.
É essa mesma acepção de cultura que confronta a perspectiva
estruturalista na medida em que reivindica, no trabalho analítico, o
estabelecimento das conexões entre a construção textual e o espaço
contextual de sua produção. Ao propor que a cultura engloba todo
um modo de vida, o autor traz para a análise o que se produz em
todos os estratos sociais, mas não suprime, nem pretende fazê-lo,
a dimensão de conflito e desigualdade presentes na sociedade. Ao
contrário, considera que a cultura também os exprime e, portanto,
434
reivindica a conexão entre os dois âmbitos. Nada que se pareça com
uma perspectiva teórica que pensa a obra literária em sua mais ab-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

soluta autonomia e a partir de uma grade conceitual formulada em


termos de sistemas de significados.
Mas esse não é o único sentido do conceito de cultura formula-
do por Williams. Trata-se de um conceito que se desdobra em dois
níveis diversos e complementares, permitindo uma formulação me-
todológica que não descuida da singularidade criativa da confecção
das obras e, portanto, preserva a dimensão emancipatória da cultu-
ra. Paul Jones assevera, acerca do conceito de cultura em Williams,

(a) seu uso com duplo propósito da categoria e das formula-


ções relacionadas como meio de construir uma norma social
crítico-emancipatória e como um meio de avaliação ‘empí-
7
A forma escolhida por Williams para descrever a extrapolação do segregacionismo de
membros da universidade do plano teórico para as práticas sociais é tocante: “Não me
senti oprimido pela universidade, mas a casa de chá, algo como se fosse um de seus depar-
tamentos mais antigos e respeitáveis, era um caso diferente. Lá estava a cultura em nenhu-
ma das acepções que eu conhecia, mas em uma acepção especial: como um sinal externo e
enfaticamente visível de um tipo especial de pessoa, as pessoas cultivadas. Não eram, em
sua grande maioria, particularmente eruditos, praticavam poucas artes, mas tinham essa
coisa e mostravam a você que a tinham. (WILLIAMS, 2015, p. 6-7)
rica’ contra
​​ essa norma. (b) O segundo critério de sobrepo-
sição deriva de sua visão de que, embora a ‘democratização
cultural’ tenha acarretado a rejeição do elitismo das várias
formulações de minoria/massa, ela não implicava ‘equalizar’
todos os atos culturais existentes como se eles fossem de
igual mérito estético qualitativo. (JONES, 2004, p. 3, grifos
do autor)

O sentido fundamental dessa dupla dimensão é o de dissolver


uma possível contradição entre o movimento democratizante da
cultura envolvido em sua acepção como todo um modo de vida e o
reconhecimento da singularidade emancipatória que é reconhecida
apenas por meio do valor estético de algumas obras.
O segundo sentido envolvido nessa concepção de cultura permi-
te a Williams fazer frente à perspectiva materialista inglesa que, em
grande parte, tendia a ler a cultura no registro da superestrutura
determinada pela base material, portanto de forma passiva e desti-
435
tuída das possibilidades de transformação social. Nesses termos, a

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


cultura não seria simplesmente determinada pela base material de
uma certa sociedade, mas um agente transformador dessa mesma
sociedade8.
Ao restaurar a dimensão de agência ao plano da cultura e inse-
ri-la no âmbito de uma sociedade desigual, Williams a investe sis-
tematicamente da possibilidade de atuação política. Só o reconhe-
cimento do potencial transformador da cultura pode reservar a ela
o lugar de um ator político relevante. Como mero produto passivo,
reflexo das relações materiais, ela é insignificante como vetor de
transformação social. Eis porque a perspectiva determinista da cul-
tura é, por definição, incapaz de reconhecer seu alcance político.
Williams, assim, mantém um posicionamento crítico tanto em
relação às perspectivas idealistas de Leavis e dos estruturalistas
quanto em relação à perspectiva determinista dos materialistas

8
Esse é um tema caro aos Estudos Culturais. Em Hall se encontra uma formulação seme-
lhante: “compreender a ‘determinação’ em termos de estabelecimento de limites e parâ-
metros, da definição de espaços de operação, das condições concretas de existência, do
caráter do ‘já dado’ das práticas sociais, em vez da previsibilidade absoluta de resultados
específicos, é a única base de um ‘marxismo sem garantias finais’.” (HALL, 2003, p. 292).
britânicos. Não se trata, no entanto, de estar a meio caminho entre
ambas as posições teóricas, mas de delinear um projeto teórico-po-
lítico no interior do qual a noção de cultura é pensada como “a or-
ganização simbólica dos significados e valores de uma determinada
sociedade, sendo, portanto, patrimônio de todos” (CEVASCO, 2011,
p.VIII) e, ao mesmo tempo, pensada a partir de sua singularidade
como obra, dotada das possibilidades de interferência no mundo
social e, portanto, na história:

Aliado de sua luta por democracia social, as esperanças de


futuro de Williams são uma força sempre presente em sua
resposta à literatura. O seu dedicado exame da linguagem, e
da construção e alteração de definições, permite-lhe atacar o
sistema de significados e valores gerados por uma sociedade
capitalista a partir de um ponto de vista histórico e teórico.
Desta forma, a crítica literária de Williams é também uma
crítica social. (ELDRIDGE e ELDRIDGE, 2005, p. 114)
436

REFERÊNCIAS
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo:


Editora Paz e Terra, 2001.

CEVASCO, Maria Elisa. Prefácio à edição brasileira. In:


WILLIAMS, Raymond. Políticas do Modernismo: contra os no-
vos conformistas. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. VII-XIV.

COSTA, Tiago Leite. Autonomia, literatura e arte contempo-


rânea. In: Ipotesi: Juiz de Fora, v.21, no.2, pp.3-11, jul/dez,
2017. DOI: 10.34019/1982-0836.2017.v21.19437. Disponí-
vel em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/
view/19437. Acesso em 14 out. 2021.

ELDRIDGE, John e ELDRIDGE, Lizzie. Raymond Williams –


making connections. London/New York: Routledge, 2005.
FILMER, Paul. A Estrutura do Sentimento e das Formações
Sócio-Culturais: o sentido de literatura e de experiência para
a sociologia da cultura de Raymond Williams. Estudos de So-
ciologia, Araraquara, vol. 14, no. 27, p. 371-396, 2009. Dispo-
nível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/
view/1944. Acesso em: 14 out. 2021.

GLASER, André L. Materialismo cultural. Tese de doutorado


apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literaturas
Inglesa e Norte Americana, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.


Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
437

INGLIS, Fred. Raymond Williams. London/New York: Rout-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ledge, 2005.

JONES, Paul. Raymond Williams’s Sociology of Culture: a crit-


ical reconstruction. Hampshire/New York: Palgrave Mac-
Millian, 2004.

LEENHARDT, Jacques. Existência e objeto da ‘sociologia da li-


teratura’ hoje. In: Sociologias, vol. 20, no. 48, 2018, p. 30-46.
DOI: 10.1590/15174522-020004802. Disponível em: ht-
tps://seer.ufrgs.br/sociologias/article/view/77406. Acesso
em: 13 out. 2021.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. São


Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Correspondence 1846-1895.
London: Lawrence and Wishart LTD., 1936.

RANCIÈRE, Jacques. Le destin des images. Paris: La Fabrique


Éditions, 2003.

WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In:______. Re-


cursos da esperança. São Paulo: Editora da Unesp, 2015a, p.
3-28.

WILLIAMS, Raymond. A ideia de uma cultura comum. In:______.


Recursos da esperança. São Paulo: Editora da Unesp, 2015b, p.
49-57.

438 WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade – 1780-1950. São


Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

WILLIAMS, Raymond. Culture and Society – 1780-1950. New


York: Anchor Books, 1960.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1979.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo, Estruturalismo e Análise


Literária. Revista Plural, [S. l.], v.21.1, 2014, p.195-216. DOI:
10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83628. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/83628.
Acesso em: 17 out. 2021.

WILLIAMS, Raymond. Os usos da teoria da cultura. In:______.


Políticas do modernismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2011,
pp.189-209.
RESUMO
Raymond Williams é considerado um dos analistas da cultura no
século XX mais interessados em entrecruzá-la com a dimensão
política da vida social, entendida aqui de maneira muito ampla e
diversificada. Tal preocupação rendeu ao autor não só inúmeras
interfaces de contestação crítica – em especial com uma gama
de estudos que ele enfeixa no chamado “paradigma da lingua-
gem” –, mas tentativas de interferência direta no mundo político,
de que é exemplo o May Day Manifesto. O propósito deste tex-
to é explorar esse entrecruzamento não apenas como parte do
compromisso público que Williams assume mas como compo-
nente inerente de seu instrumental primeiro de análise da cul-
tura, componente este que o levou a banir de sua embocadura
metodológica qualquer forma de separação, a seu ver sempre
improdutiva, porque ideológica, entre uma visada internalista
das obras e outra exclusivamente atenta a seus aspectos exter-
439
nos. Se a tentativa de supressão deste impasse – entre as dimen-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


sões interna e externa das obras – esteve presente nos trabalhos
de boa parte dos analistas da cultura do século XX, em Williams
esse gesto está envolvido num projeto político-intelectual mais
amplo, qual seja, o da percepção de que uma concepção de lite-
ratura em que texto e formações históricas são desconectados e
o texto se permite apreender de forma inteiramente autônoma
enseja uma percepção ideológica em que a cultura aparece como
coisa socialmente elevada que encontra numa pequena elite in-
telectual sua justa guardiã. Em direção oposta, Williams defen-
de como sua prerrogativa de método a interconexão entre essas
duas dimensões na medida em que a considera absolutamente
fundamental para uma concepção emancipatória da cultura. Sua
escolha metodológica se faz, portanto, movida por uma bússola
política cujas implicações este trabalho pretende explorar.
Palavras-chave: Raymond Williams, Literatura, Estrutura-
lismo Literário, Materialismo Determinista, Materialismo
Cultural.
ABSTRACT
Raymond Williams is considered one of the twentieth century
analysts of culture most interested in intersecting it with
the political dimension of social life, understood here in a
very broad and diverse way. Such a concern gave the author
not only numerous interfaces of critical contestation - in
particular with a range of studies that he bundles into the
so-called “language paradigm” - but also attempts at direct
interference in the political world, of which the May Day
Manifesto is an example. The purpose of this paper is to
explore this intersection not only as part of Williams’ public
commitment but also as an inherent component of his primary
instrumentality in the analysis of culture, a component that
has led him to banish from his methodological embouchure
any form of separation, in his view always unproductive
because ideological, between an internalist view of works and
440
another one exclusively attentive to their external aspects. If
the attempt to eliminate this impasse - between the internal
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

and external dimensions of the art works - was present in the


work of most twentieth-century cultural analysts, in Williams
this gesture is involved in a broader political-intellectual
project, namely the perception that a conception of literature
in which text and historical formations are disconnected and
the text can be taken in an entirely autonomous way gives
rise to an ideological perception in which culture appears
as something socially elevated that finds its just guardian in
a small intellectual elite. In the opposite direction, Williams
defends as his prerogative of method the interconnection
between these two dimensions to the extent that he considers
it absolutely fundamental for an emancipatory conception of
culture. His methodological choice is therefore driven by a
political compass whose implications this paper intends to
explore.
Keywords: Raymond Williams, Literature, Literary
Structuralism, Materialism Determinism, Cultural Materialism.
SOBRE A AUTORA
Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de
São Paulo (2000) e mestrado (2004) e doutorado (2009) em
Sociologia pela mesma Universidade. Atualmente é professora
de Sociologia junto à Universidade Federal de São Paulo (UNI-
FESP), pesquisadora ligada ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, também da UNIFESP, e vice-presidente
do Research Committee 37 (Sociology of Arts) da International
Sociological Association (ISA). Trabalha na área da Sociologia
da Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas:
sociologia da literatura, sociologia da arte, modernidades pe-
riféricas, fundamentos da análise sociológica da literatura, li-
teratura e política, teoria sociológica.

441

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


RAYMOND WILLIAMS E MÉTODOS
DE ENSINO DE LITERATURA E
CINEMA NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS

Alexandro Henrique Paixão1


Anderson Ricardo Trevisan2

Introdução

Este capítulo dedica-se ao comentário e à interpretação de dois 443


artigos de Raymond Williams que tratam de métodos de ensino

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


na educação de adultos. Ambos se baseiam na leitura literária e
na análise fílmica. São eles: “Abandonando a palestra: método de
discussão para as aulas de literatura para adultos”, de 1950, sem
referência ao local e suporte de publicação (livro ou periódico); 3
e “Film as a tutorial subject”, de 1953, publicado por Rewley House
Papers.4
1
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Psicanalista Membro Fi-
liado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Professor do Departamento
de Ciências Sociais na Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). E-mail: ahpaixao@unicamp.br. Link para Currículo Lattes: http://
lattes.cnpq.br/5853197146724583. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1684-3611.
2
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento
de Ciências Sociais na Educação, da Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail: detre-
vis@unicamp.br. Link para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0855602056725085.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8174-8699
3
Cf. Williams (2019). Originalmente, este documento pertence ao fundo Raymond
Williams, conservado no Richard Burton Archives, Swansea University, País de Gales, na
referência: WWE/2/2/1/3/4.
4
A Rewley House Papers, em 1931, tornou-se a responsável pela publicação da produção
do Departamento Extramuros da Universidade de Oxford. Este artigo de 1953 pertence
ao fundo Raymond Williams, conservado no Richard Burton Archives, Swansea University,
País de Gales, na referência: WWE/2/1/7/1/31. O artigo foi publicado posteriormente em
McIlroy e Westwood (1993, p. 185-192).
Raymond Williams, que nasceu na região rural de Pandy, no País
de Gales, completaria 100 anos no dia 31 de agosto de 2021, tendo
falecido em 26 de janeiro de 1988, em Essex, na Inglaterra. Durante
parte de sua vida, particularmente entre 1946 e 1961, foi tutor de
adultos do Departamento Extramuros da Universidade de Oxford
e da Workers’ Educational Association, antes de se tornar professor
da Universidade de Cambridge. É um dos autores britânicos mun-
dialmente conhecidos no debate de cultura e sociedade, detentor
de uma produção intelectual bastante vasta, impossível de abarcar
e apresentar em um único trabalho.
Neste capítulo, buscaremos debater a leitura literária e a análi-
se fílmica por meio de métodos de ensino praticados por Williams
na educação de adultos na Inglaterra, logo após a Segunda Guerra
Mundial. Descrever tais métodos é nosso objetivo por meio da ex-
plicação dos textos, aqui representados pelos dois artigos.
444 O método da explicação do texto consiste em expor as ideias e
os argumentos do autor por meio de fragmentos ou excertos tex-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tuais, selecionados a partir de uma leitura prévia. O comentário e a


interpretação devem sempre partir do texto para que o leitor acom-
panhe a discussão e possa colocar à prova os pensamentos dos in-
térpretes.5
Esse será o método pelo qual pretendemos descrever as ideias e
as situações apresentadas nos artigos de Williams aqui seleciona-
dos, sem a pretensão de oferecermos uma explicação total daquilo
que expõem, correndo o risco de sermos esquemáticos e parciais
quando enfatizarmos algumas partes. A justificativa para isso é
nos concentrar em nosso objetivo, que, vale repetir, é descrever o
método de ensino para a educação de adultos na perspectiva de
Williams, fazendo o seguinte movimento: comentário e interpre-
tação do primeiro artigo (I) “Abandonando a palestra…” e, em se-
guida, do segundo (II) “Filme como um tutorial…”, sem intenção de
compará-los.

5
O método da explicação de texto foi, particularmente, empregado na filologia alemã de
Erich Auerbach (1946) e nos estudos de literatura e sociedade empenhados por Antonio
Candido (1993) no Brasil e por Raymond Williams (1950) na Grã-Bretanha.
(I) “Abandonando a palestra…”

Se olharmos retrospectivamente a participação das univer-


sidades na educação de adultos, podemos perceber que a
própria divisão entre cursos de extensão e aulas tutoriais ex-
prime uma diferença fundamental de valores. Extensão, em
si mesma, é apenas: um conjunto de palestras que estendem
o conteúdo universitário para um público mais amplo.
Mas o que as palestras de extensão têm frequentemente
estendido é a pior parte do ensino universitário interno — o
convencional modelo de palestra “delivery”, seguido ou não
por questões de fato e pela enunciação de pontos de vista
desconexos.
A aula tutorial, por outro lado, estende a tradição, particular-
mente associada a Oxford e Cambridge, do ensino que tem
o aluno como ponto de partida e o modela e remodela para
atender tanto às suas necessidades quanto aos padrões do
tutor e da instituição de que faz parte... A finalidade das aulas
é o estudo muito focado (“close study”) de um assunto es- 445
colhido em conjunto por um grupo limitado de adultos, que

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


estão se relacionando pessoalmente e continuamente com
um tutor habilitado. O método para cada aula é em essência
flexível, limitado somente pela conformidade com o assunto
estudado. O tutor precisa, assim, adaptar sua forma de ensi-
nar com base nas reais capacidades e dificuldades dos seus
estudantes, e emoldurar as aulas em compasso com isso.
Nesse processo, os estudantes exercem um papel ativo e de-
terminante... A boa aula tutorial, de fato, não é apenas o con-
traponto à má palestra de extensão. A autoridade que uma
boa aula cria não é aquela dos estudantes, nem mesmo a do
tutor, mas provém do grupo em si — a própria corporifica-
ção da tutoria. O processo de criação dessa autoridade, e os
meios da educação tutorial, é o que eu chamo de discussão
(WILLIAMS, 2019, p. 38-39).

Na Grã-Bretanha, a participação das universidades na educa-


ção de adultos remonta, pelo menos, ao século XIX. A Universidade
de Oxford, inclusive citada no excerto ao lado da Universidade de
Cambridge, há mais de 200 anos, realiza um trabalho pedagógico
de educação continuada relacionado à extensão universitária (Ox-
ford Extension).6 Trata-se da continuação das atuações iniciadas
pela “Delegacia para a Extensão do Ensino Além dos Limites da Uni-
versidade”, que veio a se chamar Departamento Extramuros, onde
Williams encontrou seu primeiro emprego, como tutor de adultos,
em 1946.
A universidade, como único agente da extensão comunitária bri-
tânica, perdurou até os anos de 1908, quando um “Comitê Conjunto
entre a Universidade e representantes de associações de trabalha-
dores” assumiu algumas parcerias, a exemplo da Workers’ Educatio-
nal Association (WEA), fomentando um movimento institucional de
cooperação entre a universidade e a associação. Surgia, assim, uma
das histórias da extensão universitária na Grã-Bretanha e, dentro
dela, um movimento de educação de adultos do qual Williams faria
parte a partir dos anos de 1940, como uma personalidade singu-
lar. Singular nos termos de uma sociologia simmeliana (SIMMEL,
446 1939, p. 7-56; SIMMEL, 2006, p.39-58 e p. 83-118; SIMMEL, 2001,
p. 317-324), que nos orienta a posicionar indivíduos como ponto de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cruzamento de círculos sociais, no caso, portadores e suportes do


movimento de educação de adultos britânico, no qual identificamos
Williams em determinada posição social: a de tutor de adultos.
Localizando Williams e aquilo que expõe sobre extensão, tutoria,
método e estudantes, pretendemos fazer uma sociologia histórica
não de grupos e suas ideias sociais, mas de uma personalidade e de
sua perspectiva sobre esses quatro temas mencionados (extensão,
tutoria, método e estudantes), extraídos de um assunto mais geral:
a participação das universidades na educação de adultos. Porque os
problemas são sempre de perspectiva e de fatos históricos e literá-
rios (WILLIAMS, 2000), algo que essas temáticas vão nos ajudar a
debater.
A extensão universitária era entendida como uma falha no mo-
vimento educacional britânico. Falha porque, para Williams, todo
trabalho extensionista deveria consistir num programa de exten-
são cultural, e não apenas universitária. Era preciso estabelecer
discussões, práticas e ações entre a comunidade e a universidade
6
Para mais dados e informações sobre Oxford Extension, conferir Paixão e Trevisan (2020).
para realizar uma cultura em comum. Algo bem diferente do que
era vivido com a tradicional palestra acadêmica extramuro, chama-
da extensão universitária. Para Williams, tal modalidade de ensino
devia ser questionada em razão de a extensão universitária falhar
em sua missão pedagógica de educar para além dos muros da uni-
versidade.
Essa proposta formativa frustrava-se porque estendia para a co-
munidade extramuro o que a universidade tinha de pior, “o conven-
cional modelo de palestra ‘delivery’, seguido ou não por questões
de fato e pela enunciação de pontos de vista desconexos”, conforme
acabamos de ler. Esse “modelo de palestra delivery” consistia em
discursos de mais ou menos duas horas de exposições pelo tutor, ao
longo de três anos, para estudantes adultos de fora da universidade.
Quanto ao conteúdo, não se tratava de “questões de fato” extraídas
de textos literários, mas de “pontos de vista desconexos” de tutores 447
variados, que entregavam (delivery) enunciados e opiniões abstra-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


tas sobre a literatura britânica, pensando aqui nas aulas de litera-
tura, embora Williams apontasse, também nesse artigo, só que em
outra parte, que o mesmo problema da palestra delivery se repetia
em “todas as matérias” ensinadas. As aulas-palestras equivaliam a
mercadorias ou embalagens artificiais, entregues na sala de aula
de forma desvinculada da cultura comum de tutores e estudantes
adultos.
Williams chegou a tratar, em outra parte também do mesmo
texto, do caráter anedótico das palestras, como se fossem truques
discursivos para envolver a audiência desconectada de estudantes
adultos, a maioria “trabalhadores manuais” do sul da ilha. Não va-
mos nos concentrar nisso agora, mas indicar apenas que o público-
-alvo se tratava de trabalhadores da construção civil, dos serviços e
do turismo da região de East Sussex, especialmente dos balneários,
onde encontramos determinados “grupos profissionais”, tais como:
garçons, jardineiros, arrumadeiras, atendentes, pedreiros, encana-
dores, pintores, entre outros, podemos sugerir.
Quanto à questão da “desconexão” com esses grupos de traba-
lhadores, 7 tratava-se de um problema central dentro do assunto da
extensão. Não se conseguia conectar a comunidade ao ensino ofe-
recido pela universidade, criando uma barreira no aprendizado de
experiências ordinárias ou comuns. Isso porque a agência das aulas
era dos tutores, que seguiam programas de ensino enciclopédicos,
elitistas, logo, distantes da vida comum dos trabalhadores adultos.
Partindo dessas ponderações, podemos ler esse artigo sobre o
abandono da palestra como a primeira defesa de Williams a favor
da conexão entre comunidade e universidade, chamada extensão
cultural. No texto que estamos discutindo, Williams não chega a
falar em extensão cultural. Limita-se apenas à crítica da extensão
universitária e propõe o método da discussão como uma alterna-
tiva para criar a agência dos grupos de estudantes, em parceria
com os tutores, enfatizando não a escada, mas o caminho comum
(WILLIAMS, 2015, p. 23).
448
Foi em seu livro Communications, de 1962, que o projeto de ex-
tensão cultural se consolidou, conforme podemos ler numa das
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

passagens dessa obra produzida no contexto das Conferências do


Sindicato Nacional de Professores (NUT):

Se quisermos aproveitar ao máximo as oportunidades novas


e reais que a extensão cultural proporciona, e se quisermos
evitar e corrigir os erros que estão sendo cometidos, a res-
ponsabilidade pessoal deve se transformar em responsabi-
lidade pública, que é uma coisa radicalmente e totalmente
diferente. (WILLIAMS, 1975, mimeo)8

7
Dentre os estudiosos de Williams no Brasil, Maria Elisa Cevasco (2003) foi quem enfati-
zou pela primeira vez essa desconexão nas aulas de adultos reguladas pelas universidades
britânicas. Há um capítulo interessante sobre o tema da desconexão no trabalho mono-
gráfico de Lima (2017).
8
Agradecemos à Yasmim Camardelli por ter conjugado analiticamente o artigo de 1950
(“Abandonando a palestra…”) com o livro de 1962 em sua Dissertação de Mestrado ― fi-
nanciada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em anda-
mento na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp)
―, dedicada à tradução e ao comentário de Communications, oferecendo-nos uma oportu-
nidade preciosa de reflexão.
Uma das responsabilidades públicas à qual Williams se refere é
a educação; dentro dela, está a importância da discussão cultural
como modelo de ensino para a realização de uma proposta mais
democrática. Esta consistia em que tutores e estudantes conjugas-
sem experiências de aprendizado em comum mediante aulas que
incluíssem no ensino de literatura matérias jornalísticas ou pro-
venientes de revistas femininas, programas de televisão, filmes,
artigos sobre construção civil, arquitetura, planejamento urbano,
enfim, uma gama de temas e assuntos em comum para tutores e
estudantes, tipicamente conhecidos como trabalhadores-adultos.
Portanto, tais propostas de uma educação mais democrática,
Williams reúne nesse livro de 1962, embora elas tenham sido indi-
cadas antes, no artigo de 1950 que estamos estudando e em outro
ensaio dessa mesma época, chamado “A cultura é algo comum”:

Desejo, em primeiro lugar, que todos reconheçamos que a 449


educação é algo comum, ordinário: trata-se, antes de mais
nada, do processo de dotar todos os membros da sociedade

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


com a totalidade de seus significados comuns e com as habi-
lidades que lhes possibilitarão retificar esses significados, à
luz de suas próprias experiências pessoais e comuns… Não
aceito que a educação seja um treinamento para um empre-
go, para se formar cidadãos úteis (ou seja, que se adaptem a
este sistema). A educação é a confirmação dos significados
comuns de uma sociedade… (WILLIAMS, 2015, p. 21-22)

São bastante perceptíveis os argumentos de Williams a favor de


uma educação que não seja um treinamento, mas sim um processo
contínuo de aprendizado comum entre tutores e estudantes e entre
esses dois tipos de sujeito e suas instituições de ensino defensoras de
uma educação democrática. A “ideia é dar uma educação humanísti-
ca para todos em nossa sociedade”, enfatiza Williams (2015, p. 23).
Compreendemos que esse tipo de aprendizado se dava não na
universidade, mas nas aulas tutoriais. Ele devia ocorrer por inter-
médio de um método específico, que Williams aprendeu, possivel-
mente, na universidade, porém reorientou para as aulas de adultos.
As chamadas aulas tutoriais consistiam, na perspectiva apresen-
tada pelo autor, em encontros que primavam pela participação dos
estudantes nas aulas semanais, que realizavam um estudo muito
focado dos textos literários, cujo termo em inglês é close study. Com
base em outro trabalho sobre Williams (2019), destacamos que o
close study na prática pedagógica é uma espécie de close reading,
que se dá na prática literária. É importante lembrar que Williams
herdou muitas coisas dos estudos literários da universidade britâ-
nica, sobretudo, dos trabalhos de Frank Leavis e de seus métodos
de ensino de literatura, embora se apropriando de todos eles de
forma bastante crítica, pois o projeto de uma minoria educada de
Leavis era completamente oposto ao projeto democrático de uma
maioria educada defendido por Williams (2015, 1962, 1969). Cabe
a nós, aqui, apenas apontar essa questão, pois o que nos interessa
é expor o método de ensino aplicado nos estudos muito focados ou
450
dirigidos para o texto literário.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Dito isso, passemos à síntese do método da discussão, tomando


como referência as próprias formulações de Williams (2019):

• A primeira orientação dada por esse método relaciona-se


ao tempo de duração das aulas: os encontros entre tutores
e estudantes não deveriam ultrapassar duas horas na sala
de aula. Mais que isso, haveria grande dispersão e desgaste
da turma de adultos.
• A segunda regra refere-se ao protagonismo dos estudantes
adultos: quem abria a aula era um educando que lia um ar-
tigo ou dois ou mais alunos participando de uma discussão
planejada ou, algumas vezes, partindo de anotações. Em
ambos os casos, seguia-se pela discussão geral da classe,
que, ao final do período, contaria com os comentários ou
as orientações do tutor.
• A terceira regra do método era trabalhar com as fontes ori-
ginais da literatura, e não com comentadores, biografias
ou histórias literárias. Williams dizia que muitas aulas de
literatura eram palestras sobre comentadores de literatu-
ra, tais como historiadores, biógrafos, filólogos, sociólo-
gos etc., e não estudos de literatura em si. A primazia era
sempre pela explicação da obra original. Caso contrário, as
aulas acabariam sendo comentários do comentário de um
poema, de uma peça de teatro ou de uma propaganda de
um filme, mas não o filme em si ― voltaremos a esse ponto
durante a explicação do método da análise fílmica.
• A quarta regra da discussão como método relaciona-se à
quantidade de textos por aulas. A experiência de Williams
dizia que, para cada 24 encontros de 2 horas, selecionar 1
poema e/ou 1 trecho de 1 romance por encontro não ga-
rantia qualquer tipo de imersão naquele mundo da vida
451
literária. Por isso, uma regra do método da discussão con-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


sistia em escolher 6 ou 7 textos para os 24 encontros, o
que significava que 1 texto seria trabalhado em cada 3 ou 4
aulas.

Essas são as principais “regras” do método da discussão. Resta


agora, para terminar a explicação do primeiro artigo de Williams,
exemplificar como se dava a leitura literária mediante aquilo que o
próprio autor nos apresenta em seu artigo por meio do estudo de
poemas. Vamos às sínteses de Williams (2019), mais uma vez:

• Nos dois primeiros encontros, eram distribuídas folhas du-


plas de poemas, uma de William Blake, outra de Virgílio,
por exemplo, nas quais não constavam quaisquer identifi-
cações sobre datas nem mesmo o nome dos autores.
• Um poema, talvez dois, era lido a cada encontro. Uma pri-
meira leitura era feita sem nenhum comentário introdutó-
rio. Quem lia podia ser tanto o tutor quanto um membro
da turma que concordasse em estudar o poema na semana
precedente.
• As folhas eram distribuídas o mais cedo possível para que
houvesse leituras preliminares suficientes, comenta o au-
tor. Após essa leitura, pedia-se aos membros da turma que
lessem o poema individualmente. Depois de alguns minu-
tos dedicados a isso, o tutor perguntava se havia algum co-
mentário. Eventualmente, os comentários surgiam, pontos
de vista eram questionados, e a discussão começava.
• A tarefa do tutor nesse estágio era se manter fora da dis-
cussão e intervir apenas para assegurar a relevância dos
comentários. Os detalhes de autor, data, entre outros da-
dos, eram excluídos por Williams para evitar algum choque
dessas informações nas respostas dos estudantes adultos.
• Era essencial que os estudantes dissessem o que realmente
452 sentiam em vez de expressar o que eles achavam que deve-
riam sentir. Williams entendia que isso só podia ser alcan-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

çado se o tutor não indicasse que tipos de comentários ele


esperava. O tutor, na opinião dele, não deveria explicitar se
preferia comentários sobre o “estilo” ou o “conteúdo”. Era
importante para ele que tipo de comentário o estudante fa-
zia sem nenhuma influência imediata do tutor. As únicas
questões às quais o tutor responderia eram aquelas sobre
as dificuldades puramente literais, como palavras antiqua-
das, assim por diante.
• A leitura era individual e deveria levar cerca de 10 minu-
tos, e a discussão geral, da qual o tutor se abstinha, podia
durar de 50 minutos a 1 hora. Nesse estágio, quando hou-
vesse uma brecha, o tutor deveria sugerir refazer a leitura
do poema, dando preferência à voz de outro estudante.
• Depois dessa leitura, o tutor oferecia um resumo das res-
postas anteriores, discutindo aquelas que lhe pareciam ser
baseadas em uma preconcepção ou em um mal-entendido
generalizado. Discutia-se leituras alternativas do poema. E
para terminar a aula, o tutor oferecia sua própria leitura
por meio de um resumo, que era, naturalmente, seu posi-
cionamento acerca da obra.
• O tutor deveria deixar claro, antes do resumo, que os es-
tudantes poderiam intervir conforme desejassem. Se uma
discussão se desenvolvesse dessa forma, a qualquer mo-
mento, ele a seguiria.
• Esse retorno à discussão geral completava a aula, e os ar-
ranjos preliminares necessários para a semana seguinte
eram feitos. Desse modo, acreditava-se que era possível
ler literatura de forma adequada e treinar a leitura para
abordar problemas críticos e abstrações sobre questões
prementes e preparar-se para estender a discussão para
temas filosóficos e sociais sempre que necessário.
• Informações que auxiliassem a leitura do poema eram in-
troduzidas conforme a necessidade que os alunos sentiam
ou expressavam: não havia palestras. A regra era abando- 453
ná-las.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


• Comparações poderiam ser feitas, generalizações revistas,
apontamentos de leitura poderiam ser fornecidos para
estudos posteriores, desde que tudo fosse feito dentro do
método da discussão, que, acima de tudo, era coletivo, em-
bora não abdicasse do trabalho individual.
• Aliás, este é o ponto decisivo: cada sujeito estudante pre-
cisava ser respeitado e valorizado em sua individualidade
para que ela se expandisse para o trabalho coletivo em sala
de aula. Com isso, experimentava-se a literatura e a história
na sala de aula como uma realidade herdada de determina-
do autor e de certa época, mas transformada numa nova
realidade, graças ao encontro dos tutores com os estudan-
tes e desses com os textos herdados.

Em resumo, a ênfase do método da discussão era construir um


caminho em comum e não a hierarquia habitual escolar que preva-
lecia nas relações entre tutores e estudantes.
Para terminar, é preciso evidenciar que existia uma peculiaridade
nesse grupo discente na educação de adultos. Tratava-se do
indivíduo trabalhador-adulto, integrado ao todo social por meio
do trabalho e da situação concreta de cidadão britânico em for-
mação. Pensando na luta por determinados direitos, relacionados
ao emprego e à educação, e nas obrigações relativas a jornadas de
trabalho mais humanizadas e à oferta de matrículas e melhores
condições de frequência e permanência nas aulas, esse tipo social,
pertencente a determinado grupo profissional, fazia parte do proje-
to socialista de Williams, voltado à educação democrática das clas-
ses trabalhadoras britânicas.9
Precisamos enfatizar tal peculiaridade, a de ser estudante traba-
lhador-adulto, por compreender que a educação de adultos se di-
fere da educação em geral. Ela concentra-se em adultos (jovens e/
ou pessoas mais velhas) e empregados (ou desempregados), todos
tendo como princípio organizador da vida o trabalho, configurando
454
aquilo que Edward Thompson (2012, p. 141), que também foi tutor
de adultos, chamava de “grupos ocupacionais”. Manteremos o ter-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mo de Williams ― grupos profissionais ―, mas seguiremos dentro


do raciocínio de Thompson para matizar este último ponto, relacio-
nado ao tema dos estudantes.
O tipo de educação empenhada em atender determinado grupo
social profissional e específico chamava-se educação de grupos de
trabalhadores, e visava ao indivíduo-cidadão em sua situação pro-
dutiva. Conferia características peculiares a esse tipo social especí-
fico de estudante, o trabalhador-adulto.
Esses sujeitos advinham do interior do proletariado inglês, na
situação do pós-guerra, mas tinham necessidades muito específicas
de formação, ligadas a seu grupo profissional. Este era composto
pelos trabalhadores manuais e, muitas vezes, temporários ligados
ao setor da construção civil e de serviços e turismo de East Sussex,
onde Williams começou sua carreira como tutor de adultos, confor-
me destacado.

9
Acerca desse projeto socialista, conferir Williams (2013) em A política e as letras. Verifi-
car também nesse livro o capítulo de Ugo Rivetti.
Estamos, portanto, diante de uma situação de classe bastante pe-
culiar, um acontecimento:

Quando falamos de uma classe, estamos pensando em um


grupo de pessoas, definido sem grande precisão, comparti-
lhando as mesmas categorias de interesses, experiências so-
ciais, tradição e sistemas de valores, que tem disposição para
se comportar como classe, para definir, a si próprio em suas
ações e em sua consciência em relação a outros grupos de
pessoas, em termos classistas. Mas classe, mesmo, não é uma
coisa, é um acontecimento. (THOMPSON, 2012, p. 169)

No mencionado contexto formativo, havia uma mesma classe


social, formada por dois grupos sociais específicos, estudantes e
trabalhadores, combinados para desempenhar um mesmo papel:
frequentar aulas noturnas para estudar e alcançar uma formação
humanística não só por intermédio da literatura, mas também por
455
meio do cinema, conforme discutiremos ainda.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Segundo Edward Thompson (2012), o trabalhador-adulto tinha
outra experiência para “a relação professor-aluno”, especialmente
em razão da posição social que ocupava na sociedade, a de traba-
lhador e cidadão. Essa condição social, geradora de experiências
peculiares, modifica, segundo o autor, todo o processo educacional,
influenciando “os métodos de ensino, a seleção e aperfeiçoamento
dos mestres e currículos; revela pontos fracos ou omissões nas dis-
ciplinas acadêmicas tradicionais e leva à elaboração de novas áreas
de estudo” (THOMPSON, 2002, p. 13), como os Estudos Culturais,
nascentes desse projeto de educação de adultos, embora isso seja
outro assunto.
Vimos como Williams pretendia criar métodos que introduzis-
sem novas práticas pedagógicas para transformar o que antes era
extensão universitária em extensão cultural, primando pelas ex-
periências em comum entre a comunidade e a universidade. Um
exemplo é o da Universidade de Cambridge, que formava os tutores
para atuar na educação de adultos, como aconteceu com Williams,
que se graduou em Literatura Inglesa, logo após o fim da Segun-
da Guerra Mundial, e transferiu seu conhecimento acadêmico para
a educação de trabalhadores por meio de métodos de ensino, re-
sultado das interações mútuas entre comunidade e universidade.
Tratava-se das chamadas “reciprocidades de influências”, para citar
de passagem aquilo que Florestan Fernandes, em outro contexto, o
de São Paulo, em 1946, discutia sobre a necessidade de ensinar o
folclore dentro da universidade, criando uma interação dinâmica
entre comunidade e universidade.10
Este capítulo discutiu, nesta primeira parte, a participação de
Raymond Williams nesse processo educacional modificado pelos
trabalhadores-estudantes ingleses, colaborando na elaboração e
aplicação de novos métodos de ensino voltados às necessidades so-
ciais e educacionais de seus alunos trabalhadores-adultos, que fre-
quentaram suas aulas entre 1945 e 1961, na Inglaterra. Defenden-
do o abandono da palestra nas aulas de adultos, Williams (2015, p.
23) primava por uma educação em comum, pois, segundo ele, “a
456
ignorância de qualquer ser humano me diminui, e a habilitação de
todo ser humano é um ganho comum de horizontes.”
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Essa construção de uma cultura comum passava, portanto, pela


leitura literária como um processo de formação intelectual da clas-
se trabalhadora britânica. A análise fílmica também foi inserida
nesse programa educacional democrático, centrado no ensino da
discussão.

(II) Filme como um tutorial...

Em “Abandonando a palestra...”, como vimos até aqui, Williams


destacou, entre outras coisas, como seu método de ensino da discus-
10
A luta de Florestan Fernandes em favor do folclore, advindo das classes populares, den-
tro da universidade, consistia em enfatizar não a falta de cultura no folclore, mas a falta
do folclore dentro da cultura de caráter nacional em construção nos meios acadêmicos,
operado pelas classes mais elevadas daquele tempo. Esse processo de integração do fol-
clore à universidade não seria uma passagem dos costumes populares às formas eruditas,
mas uma ligação entre elas, uma reciprocidade de influências. Tratava-se de uma luta pela
democratização da cultura como algo comum a todas as classes sociais. Consistia na entra-
da do folclore na cultura universitária canônica, configurando uma verdadeira mudança
social (FERNANDES, 1989). Mais aproximações sobre Florestan Fernandes e Raymond
Williams, podem ser conferidas neste livro, no capítulo de Eliane Veras e Adélia Miglievich.
são dos textos literários ― fossem eles romances, poemas ou peças
de teatro ― não se limitava apenas à literatura, mas também abran-
gia o cinema na educação de adultos, como podemos depreender
da leitura de seu artigo “Film as a tutorial subject”, de 1953. Nele,
Williams não apenas informa sobre sua prática no uso de filmes em
aulas tutoriais, mas também apresenta um novo método para isso.
Dana Polan (2013) conta que o interesse de Williams pelo ci-
nema começou nos anos de 1930, a partir de sua experiência na
Universidade de Cambridge. Foi nessa época que conheceu o jovem
cineasta Michael Orrom, com quem estabeleceu vínculos tanto de
trabalho quanto de amizade (POLAN, 2013, p. 3). Ambos serviram
na Segunda Guerra, mas, depois dela, reencontraram-se e realiza-
ram diversos projetos ligados ao cinema, roteiros que, por motivos
variados, nunca se concretizaram como filmes. Chegaram a criar
um selo editorial em 1953, o Film Drama Ltd., por meio do qual
pretendiam levar adiante os filmes planejados e publicaram o livro
457
Preface to Film (1954), obra que sugere formas de compreensão do

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


cinema a partir do teatro, ficando cada um dos autores responsável
por um capítulo.
No entanto, o que nos interessa aqui é discutir as proposições
metodológicas de Williams para suas aulas tutoriais com filmes,
como aparece em “Film as a tutorial subject”.11
Williams começa seu artigo sobre filmes com pequenas cita-
ções, de onde extrai os problemas iniciais que darão o mote para
seu debate:

… Caro Editor: Tenho muito prazer em renunciar a meu posto


de crítico de cinema, com efeito imediato. O fato é que 95% de
todos os filmes lançados são tão ruins que não se pode escre-
ver sobre eles; certamente não em qualquer papel destinado
a ser lido enquanto se masca chiclete.
… Bem, que cada um faça a sua maneira, mas eu nunca ouvi
tal absurdo como um curso de apreciação de filmes. Se este
cara quer estudar Betty Grable, deixe-o fazer como eu, com

11
Desenvolvemos de forma mais aprofundada a relação de Williams com o cinema e seu
método para o uso de filmes em aulas tutoriais em Paixão e Trevisan (2019).
alguns centavos, mas não espere ser subsidiado com dinheiro
público (Relatório de uma reunião do Educational Comittee).
… Cinema? Bem, eis aí algo novo. Eu sempre procuro algum
para um bom descanso (WILLIAMS, 1953, p. 27, tradução
nossa).12

Na primeira citação, temos o que seria a fala de um crítico de ci-


nema desdenhando dos filmes da época, motivo pelo qual se sente
aliviado por abandonar a referida função. A segunda citação contém
um extrato do relatório do Educational Comittee, que critica a rea-
lização de um curso sobre apreciação fílmica13 com financiamento
público. Por fim, a última citação inclui o relato de uma pessoa que
aprecia o cinema como um bom lugar para descansar.
Ao comentar os excertos, Williams concorda com todos, mas
não sem adendos. Considera que o crítico de cinema subestimava
a porcentagem de filmes ruins. Pondera que o comitê educacional
458 está correto, pois um curso de apreciação fílmica somente deve-
ria interessar a fãs. Por fim, afirma que a pessoa que descrevia os
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cinemas como locais onde se podia descansar representa milhões


de pessoas que veem esses locais como espaços onde podem se
distanciar de si, dos outros e da própria sociedade (Williams,
1953, p. 28).
Williams parte desse cenário desfavorável para propor, contra-
riamente, a necessidade de um curso em que se ensine modos es-
pecíficos de olhar para os filmes, não apenas para melhor apreciá-
-los, mas também para construir caminhos profícuos na educação
de adultos, mediante uma crítica fílmica de caráter sociológico. Ao
12
“Dear Editor: I have much pleasure in resigning my post as a film critic, effective immedi-
ately. The Fact is that 95% of all issued films are so bad that they cannot be written about at
all; certainly not in any paper designed to be read while not at the same time chewing gum.”
“Well, have it your own way, but I’ve never heard such nonsense as a course in film ap-
preciation. If this chap wants to study Betty Grable, let him do it where I do it from, the
one-and-ninepennies, not expect to get subsidised out of public money” (report of a meeting
of and Education Committee).
“The pictures? Well, it makes a change. I Always go for a good rest myself.”
13
A expressão “film appreciation” poderia ser traduzida como “análise fílmica”, mas aqui é
importante manter a tradução literal (“apreciação fílmica”), pois, para Williams, a concep-
ção do comitê era limitada a esse sentido. Em seu método, isso é colocado de forma mais
assertiva como algo relacionado à “crítica fílmica”.
final de seu artigo, o autor indica que esse movimento pode con-
tribuir para a estruturação de um tipo de Sociologia dos filmes,
que deveria ser praticada metodologicamente nas salas de aula, tal
como ele fazia em Sussex, onde já ensinava a discussão da literatura
também como um método de ensino.
Acerca disso, Williams nos apresenta algumas “regras” do méto-
do fílmico em sala de aula. O primeiro princípio relaciona-se com a
escolha dos filmes. Williams parte do pressuposto de que não de-
vem ser trabalhadas apenas obras vistas como importantes ou de
qualidade, citando como exemplos não só os diretores Pudovkin,
Lang ou Eisenstein, mas também filmes considerados menos elabo-
rados, como La Bête Humaine ou Storm Warning.14
O segundo princípio relaciona-se com a necessidade de colo-
car o cinema como parte da tradição dramática (como sabemos,
a carreira de Williams também foi dedicada ao estudo do teatro
(WILLIAMS, 2010). Partir desse princípio, para Williams, significa 459
um avanço em relação ao que se costumava fazer até então, que se

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


circunscrevia a julgar a técnica empregada, produzir um resumo
da obra, analisar os personagens como se fossem personalidades
ou, por fim, realizar estudos bibliográficos de diretores ou atores.
Tudo isso se afasta daquilo que Williams (1953, p. 31) chama de
um “julgamento integrado”. Como alternativa, quando se concebia
o filme a partir do modelo dramático, pensava-se em compreen-
dê-lo como algo “essencialmente visual”, que “desenha sobre as
palavras” (WILLIAMS, 1953, p. 32). No entanto, o método de aná-
lise dos filmes não podia ser o mesmo aplicado às peças teatrais. A
partir disso, Williams propõe um modo específico de realizar essa
abordagem. Passemos, então, às particularidades desse método.
Assim como acontecia na literatura, na qual Williams (2019), a
partir do “close study”, buscava desenvolver nos estudantes a práti-
ca da leitura, na abordagem dos filmes, ele partia de um problema:
praticar a atenção dos estudantes. Porém, se em um poema ou ro-
14
Williams não dá maiores informações sobre esses filmes, mas provavelmente o primeiro
é o realizado por Jean Renoir em 1938 (A besta humana) e o segundo é de Stuart Heisler
e estrelado por Ginger Rogers, Doris Day e Ronald Reagan, lançado em 1951 (Dilema de
uma consciência).
mance era possível voltar a página nesse movimento analítico, nos
filmes em projeção, isso não era uma realidade. Assim, a solução
foi criar o que ele chamava de filmshows, baseados inicialmente na
exibição de filmes curtos ou trechos, propondo exercícios em que
os estudantes deveriam discutir aquilo que assistiam e fazer regis-
tros escritos, produzindo textos com os resultados desse processo
(WILLIAMS, 1953, p. 32-33).
Williams conta que, no começo do curso, já era possível men-
surar o avanço da habilidade dos estudantes em sua capacidade
de observação e memorização. Para exemplificar, o autor cita uma
análise inicial feita por um estudante a partir do Mother (1926), de
Vsevolod Pudovkin:

Eu me senti imediatamente interessado quando o extrato


começou com a exibição da figura curvada. Não havia nada
no fundo para distrair o olho, portanto a atenção estava com-
460 pletamente na figura central. As solas de seus sapatos foram
enfatizadas, e então apareceu um círculo escuro abrindo-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

-se para a luz, como se fosse o olho de sua mente, e nesse


círculo foram mostrados homens levantando as tábuas do
piso onde as armas estavam escondidas. Os homens então
entraram com o pai morto: primeiro nos mostraram as solas
de suas botas e as pernas daqueles que o carregavam, e os
movimentos indicavam a dificuldade que eles estavam tendo
em carregá-lo através da porta estreita. Então, novamente,
as solas foram enfatizadas, e se via a mão flácida balançando.
(WILLIAMS, 1953, p. 33, tradução nossa)15

Ao comentar esse texto, Williams (1953) considera se tratar de


uma análise ainda bem rudimentar, pois ainda se atém a diversas
abstrações. Contudo, salienta que já indica um aprimoramento da
observação e da memória.
15
“I felt immediately interested when the extract began with the showing of the bowed
figure. There was nothing in the background to distract the eye, therefore attention was
completely on the central figure. The soles of her shoes were emphasised, and then came a
dark circle opening out into light as if it were her mind’s eye, and in this circle were shown
men lifting the floor boards where the guns were hidden. Men then entered with the dead
father: first we were shown the soles of his boots, and the legs of those carrying him, and
the movements indicated the difficulty they were having in carrying him through the nar-
row door. Then again the soles were emphasised, and one saw the limp, dangling hand”.
Williams utilizava as primeiras oito semanas do curso com ativi-
dades como essa, baseadas na projeção de excertos ou filmes curtos
e registro textual pelos estudantes. Somente após esse período é
que eram apresentados conteúdos de caráter mais técnico sobre
cinema e sua linguagem, que poderiam avançar as possibilidades
em termos de análise fílmica (WILLIAMS, 1953, p. 34).
Após esse primeiro momento de contato com o material fílmi-
co, os estudantes já tinham condições de analisar obras comple-
tas. No entanto, as discussões16 só aconteciam na aula seguinte,
uma vez que o processo de assistir aos filmes podia ser exaustivo,
tornando as discussões menos satisfatórias quando realizadas no
mesmo dia.
O registro das análises fílmicas em texto era fundamental para o
desenvolvimento desse método. Segundo Williams (1953), o resul-
tado satisfatório das aulas apareceu justamente a partir dos textos
elaborados pelos estudantes, que eram examinados por ele antes 461
do encontro seguinte, quando então eram discutidos para a devida

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


reformulação. Nesse processo, extratos do filme eram novamente
exibidos.
Esse é um ponto a se destacar no método proposto: no início,
trabalhava-se com filmes curtos ou extratos, de modo a praticar o
processo de atenção dos estudantes. Uma vez desenvolvidas cer-
tas habilidades, os trechos de filmes só deviam ser utilizados para
a discussão dos textos produzidos, pois, nesse momento, todos
já deviam ter condições de analisar filmes integrais (WILLIAMS,
1953, p.34). O autor comenta que era comum estudantes apresen-
tarem, nessa fase do curso, análises ainda muito presas a julga-
mentos sobre a narrativa ou os personagens. Porém, a abstração
percebida nos primeiros contatos com os filmes já não aparecia
mais, o que se evidenciava pela presença de elementos encontra-
dos no próprio filme nos textos apresentados. Os momentos finais
do curso previam a ida dos estudantes aos cinemas, de modo a
16
Lembrando que a questão da “discussão” para Williams é um método de ensino, de
modo que os filmes fazem parte de uma mesma concepção pedagógica centrada na práti-
ca-teórica-prática dos objetos culturais, conforme já discutido em “Abandonando a pales-
tra...” acerca da literatura.
colocarem em prática essa observação crítica, que também deve-
ria se converter em texto (WILLIAMS, 1953, p. 34). Fica evidente
que essa abordagem prevê, necessariamente, o registro escrito da
análise fílmica.
Esse método foi chamado por Williams (1953) de crítica fílmica
(film criticism). No entanto, ao final de seu artigo, o autor sugere
que tudo o que foi exposto poderia ser pensado nos termos de uma
Sociologia do filme, algo a ser praticado pedagogicamente tam-
bém nos cursos de Sociologia e não somente nas aulas de adultos
(WILLIAMS, 1953, p.35). Para tanto, avalia ser importante partir do
universo interno à obra, mas levando em consideração também for-
mas de recepção ou percepção fílmica. A análise sociológica, segun-
do Williams (1953), precisava compreender os filmes à luz de tudo
o que envolvia a produção de conhecimento durante a projeção fí-
lmica. Nesse sentido, ele não hesitava em eleger a obra de Sigfried
Kracauer, De Caligari a Hitler, de 1947 (KRACAUER, 1988), como
462
uma referência, ainda que reconhecesse seus limites, no sentido do
pouco rigor com as evidências na construção dos argumentos.17 Os
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

méritos de Krakauer, segundo Williams (1953, p. 35), estavam em


relacionar o filme às condições sociais e políticas da época, mas a
análise fílmica deixava a desejar.
Em síntese, percebemos que, para Williams, apenas uma visada
sociológica teria condições de realizar uma leitura adequada dos
filmes, no sentido de permitir combinar uma leitura interna com
elementos externos. Assim, ao mesmo tempo em que construía mé-
todos para o uso de filmes em aulas tutoriais, Williams dava ele-
mentos para pensar uma Sociologia do filme, por meio de novos
métodos de ensino.

17
Pierre Sorlin (1977, p. 48) critica o método de Kracauer por considerar que o autor
exagera na homologia entre os filmes e sociedade, ao ver o cinema como um reflexo da psi-
cologia de uma época. Ao que parece, para Williams (1953), o problema maior estava na
falta de comprovação empírica das proposições de Kracauer, ainda que a ideia de relacio-
nar cinema e sociedade fosse acertada. De nossa parte, consideramos que as proposições
de Kracauer, Williams e Sorlin, respeitadas as particularidades, são compatíveis, uma vez
que todas buscam nos filmes elementos para pensar sua relação com a sociedade.
Considerações finais

Esse debate entre extensão e tutoria, universidade e comuni-


dade, bem como a exposição sobre os métodos de ensino empre-
gados na educação de grupos de adultos, é tensionado dentro do
raciocínio pedagógico de Williams, construído nos anos de 1950,
conforme lemos nos artigos explicados aqui. Trata-se de algo bas-
tante atual, afinal na Unicamp e em várias universidades brasileiras,
hoje, a extensão universitária, mais particularmente a “curriculari-
zação” da extensão, está na ordem do dia. Na chave interpretativa
de Williams, optar pela extensão universitária é algo destinado a fa-
lhar, pois a ênfase deveria ser na extensão cultural, buscando asso-
ciar, de forma integrada, comunidade e universidade, e primando,
sobretudo, pela agência da comunidade na universidade na prática
da extensão.
Raymond Williams, nesses dois artigos da década de 1950 que 463
acabamos de analisar e comentar para celebrar o centenário de seu

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


nascimento, expuseram seu método de ensino extensionista, que
era, ao mesmo tempo, um programa em defesa de uma educação
humanística. Era por meio de processos de aprendizagem, centra-
dos no ensino da discussão da literatura e do filme, que Williams
sonhava em formar uma sociedade mais democrática. A força e a
ação de seu pensamento crítico e vivo estavam em praticar a dis-
cussão nas aulas de adultos, porque quem acredita na democracia
sabe que a educação e a participação da maioria são necessárias
para a construção de uma cultura comum.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo:


Terceira Leitura/FFLCH/USP, 1993.

CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São


Paulo: Boitempo, 2003.
FERNANDES, Florestan. Mário de Andrade e o folclore brasi-
leiro. In:______. O folclore brasileiro. São Paulo: Martins Fontes,
1989. p. 147-168.

KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psi-


cológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

McILROY, John; WESTWOOD, Sallie. Border Country: Raymond


Williams in Adult Education. Leicester: National Institute of
Adult Continuing Education, 1993.

LIMA, Edinaldo de Souza Lima. Raymond Williams, E. P. Thomp-


son, Richard Hoggart: intelectuais orgânicos e a cultura como
luta política. Monografia (Graduação em História) - Universi-
dade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2017, 64 p.
464
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

PAIXÃO, Alexandro Henrique; TREVISAN, Anderson Ricardo.


Cinema educativo em cena: Raymond Williams, análise fílmi-
ca e produção de um saber. ETD: Educação Temática Digital,
Campinas, v. 21, n. 3, p. 738-759, 2019. DOI10.20396/etd.
v21i3.8652292.

PAIXÃO, Alexandro Henrique; TREVISAN, Anderson Ricardo.


Raymond Williams, cultura e extensão universitária. Resga-
te: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 28, n.
00, p. e020008, 2020. DOI: 10.20396/resgate.v28i0.8657391.
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.
php/resgate/article/view/8657391. Acesso em: 26 set. 2021.

POLAN, Dana. Raymond Williams on film. Cinema Journal,


Austin, v. 52, n. 3, p. 1-18, Spring 2013.
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia: indiví-
duo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

SIMMEL, Jorge. El individuo y la libertad: ensayos de crítica de


la cultura. Barcelona: Ediciones Península, 2001.

SIMMEL, Jorge. Sociología - estudios sobre las formas de so-


cialización. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1939.

SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma: ouverture pour l’ histoi-


re de demain. Paris: Aubier Montaigne, 1977.

THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e


outros artigos. Organização: Antonio Luigi Negro e Sergio Sil-
va. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 465

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


THOMPSON, Edward Palmer. Os românticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Abandonando a palestra: método de


discussão para as aulas de literatura para adultos. In:______.
Raymond Williams & educação: coletânea de textos sobre ex-
tensão, tutoria, currículo e métodos de ensino. Organização:
Alexandro Henrique Paixão. Campinas, SP: FE/UNICAMP,
2019.

WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In:______. Re-


cursos de Esperança. São Paulo: Editora Unesp, 2015. p. 03-28.

WILLIAMS, Raymond. A política e as letras: entrevistas da New


Left Review. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
WILLIAMS, Raymond. Britain in the Sixties: communications.
Baltimore: Penguin Books, 1962.

WILLIAMS, Raymond. Britain in the Sixties: communications.


Harmondsworth, Middlesex, England: Pelican Books, 1975.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade. São Paulo: Compa-


nhia Editora Nacional, 1969.

WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac Naify,


2010.

WILLIAMS, Raymond. Film as a tutorial subject. Rewley House


Papers, v. 3, n. 2, 1953b. Acervo do Richard Burton Archives,
466 WWE/2/1/7/1/31. Universidade de Swansea.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na lite-


ratura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

WILLIAMS, Raymond. Raymond Williams & educação: coletâ-


nea de textos sobre extensão, tutoria, currículo e métodos de
ensino. Organização: Alexandro Henrique Paixão. Campinas:
FE/UNICAMP, 2019.

WILLIAMS, Raymond. Reading and criticism. London: Freder-


ick Muller, 1950.

WILLIAMS, Raymond; ORROM, Michael. Preface to film. Lon-


don: Film Drama Limited, 1954. Acervo da British Library.
RESUMO
Neste capítulo, discorre-se sobre os métodos de ensino de
Raymond Williams, baseados na abordagem crítica das obras
de arte, literatura ou cinema. Raymond Williams, um dos cria-
dores e principais expoentes dos chamados Estudos Culturais,
é amplamente conhecido do público universitário, sobretudo
em seus escritos sobre cultura e sociedade, com destaque
para os estudos de literatura. Entre suas célebres produções,
estão Cultura e Sociedade, O campo e a cidade: na história e
na literatura e Marxism and Literature. Também se pode ci-
tar seus estudos sobre meios de comunicação (Communica-
tions e Televisão) e teatro (Drama em cena). Porém, o que uma
parcela menor do público conhece são seus trabalhos sobre
educação, muitos deles dispersos em publicações de menor
acesso, como “Abandonando a palestra: método de discussão
para as aula de literatura para adultos” e “Film as a tutorial
467
subject”. A maior parte dessa produção de Williams nasceu do

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


trabalho que realizou dentro de um projeto de extensão, ge-
rado na interação entre a Universidade de Oxford e a Workers’
Educational Association (WEA), entre os anos de 1946 e 1961.
Para suas experiências em sala de aula com adultos, em ge-
ral trabalhadores de East Sussex, Williams mobilizava textos
literários e filmes, a partir de uma clivagem sociológica que,
muito provavelmente, foi essencial para a fatura de sua prin-
cipal obra, Cultura e Sociedade, de 1958, escrita durante essa
experiência de ensino. Tanto para a literatura quanto para o
cinema, Williams desenvolveu métodos de análise crítica, no
sentido de promover, entre seus estudantes, a um só tempo,
formação educacional e espírito crítico, tendo sempre como
foco a promoção da democracia e da mudança social. Busca-
-se aqui não apenas homenagear o centenário de nascimento
do autor e professor galês, mas também destacar a importân-
cia da sala de aula como espaço de formação e de transfor-
mação social bem como a relevância dos métodos de ensino
e análise de cultura do referido pesquisador para os dias de
hoje, em que ainda se luta pela democracia, talvez mais do
que nos tempos de Raymond Williams, e num momento em
particular em que todas as salas de aula do país e do mundo
encontram-se esvaziadas, redimensionado o papel do ensino
e da aprendizagem.
Palavras-chave: Raymond Williams, Métodos de Ensino, Li-
teratura, Cinema, Extensão.

ABSTRACT
This chapter discusses Raymond Williams’ teaching methods,
based on a critical approach to works of art, literature, or
cinema. Raymond Williams, one of the creators and main
exponents of the so-called Cultural Studies, is widely known
to the university public, especially in his writings on culture
and society, with emphasis on literature studies. Among
his celebrated productions are Culture and Society, The
468 Country and the City: In History and Literature, and Marxism
and Literature. One can also mention his studies on media
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

(Communications and Television) and theater (Drama in


performance). However, what a smaller portion of the public
knows are his works on education, many of them scattered in
less accessible publications, such as “Abandoning the Lecture:
Discussion Method for the Adult Literature Class” and “Film
as a tutorial subject”. Most of Williams’ output grew out of his
work within an extension project, generated in the interaction
between Oxford University and the Workers’ Educational
Association (WEA) between the years 1946 and 1961. For his
classroom experiences with adults, usually workers from East
Sussex, Williams mobilized literary texts and films, based on
a sociological approach that, most likely, was essential to the
making of his main work, Culture and Society (1958) written
during this teaching experience. For both literature and film,
Williams developed methods of critical analysis, in order to
promote, among his students, at the same time, educational
training and critical spirit, always focusing on the promotion
of democracy and social change. The purpose of this paper is
not only to pay homage to the birth centenary of the Welsh
author and teacher, but also to highlight the importance of the
classroom as a space for education and social transformation,
as well as the relevance of his teaching methods and cultural
analysis for today, when democracy is still being fought for,
perhaps even more than in Raymond Williams’ time, and
when all classrooms in the country and the world are empty,
and the role of teaching and learning has been resized.
Keywords: Raymond Williams, Teaching Methods, Literature,
Film, Extension.

SOBRE OS AUTORES
Alexandro Henrique Paixão é psicanalista, professor de So-
ciologia e Psicanálise na Faculdade de Educação (FE), Uni-
camp, organizador do ebook Raymond Williams e Educação:
coletânea de textos sobre extensão, tutoria, currículo e métodos 469
de ensino (Editora da FE/Unicamp, 2019) e autor de artigos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


versados, principalmente, em Raymond Williams, Antonio
Candido, Sociologia da Literatura, público literário e estudos
psicanalíticos. Desde 2014, coordena o Laboratório de Estu-
dos de Cultura, História, Educação, Sociologia e Psicanálise
(Lechesp), na FE/Unicamp.
Anderson Ricardo Trevisan é professor de Sociologia na Facul-
dade de Educação da Unicamp, autor do livro A redescoberta
de Debret no Brasil modernista (Alameda, 2015) e de artigos
versados, principalmente, na discussão de Pintura e Socieda-
de e do Cinema Educativo no Brasil e na Europa. Desenvolve
pesquisas nas áreas de Sociologia da Arte, do Cinema e da Cul-
tura. Desde 2018, coordena o Laboratório de Investigação em
Sociologia da Arte (Laisa), na FE/Unicamp.
II
Raymond Williams:
política e crítica
TRABALHANDO A TERRA
EM CAMPO MINADO:
RAYMOND WILLIAMS POLÍTICO1

Ugo Rivetti2

Introdução

Pouco mais de um mês após sua morte, em 28 de fevereiro de


1988, Raymond Williams foi homenageado em um debate, transmi-
473
tido pela rede pública britânica Channel 4, que reuniu os expoentes

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


da Nova Esquerda Stuart Hall, Anthony Barnett e Terry Eagleton,
a crítica de cinema da New Statesman Judith Williamson e o par-
lamentar galês Dafydd Elis Thomas. Em sua primeira intervenção,
Hall compartilhou uma recordação, tida por ele como especialmen-
te “pessoal e característica”. Em 1966, um grupo formado, entre
outros, por Eagleton, E.P. Thompson e o próprio Hall, se reuniu na
sala de Williams no Jesus College, em Cambridge (onde ele lecionou
por vinte anos), para debater e redigir o rascunho do que viria a
ser o May Day Manifesto. Em seu relato, Hall recorda como aquela
situação lhe pareceu, então, algo incongruente: intelectuais socia-
listas reunidos para uma atividade política em um ambiente como
Cambridge. Ainda segundo seu relato, todos os presentes pareciam
compartilhar aquele desconforto – menos Williams. Para ele, pa-
recia não haver incongruência alguma, o que, para o Hall de vinte
anos depois, era prova de como as filiações políticas e socialistas de
1
Este texto consiste em uma versão bastante sintetizada de minha tese de doutorado. Cf.
Rivetti (2021).
2
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. E-mail: uc.rivetti@gmail.com. Link
para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8316487200083561. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-3368-7219.
Williams não haviam sido abaladas por sua atuação naquele meio,
bastante elitizado e simpático ao pensamento conservador.3
O relato de Stuart Hall importa, entre outras razões, por ilustrar
a centralidade da política e do socialismo na trajetória de Williams.
Ainda que se possa colocar em questão a forma bem-resolvida com
que, segundo Hall, Williams conciliaria a política e sua atuação aca-
dêmica profissional, parece fora de questão, especialmente quando
tomamos por base sua trajetória, que a atuação pública fora dos
muros da universidade constituía parte imprescindível de sua vida.
Muito já se discorreu sobre a influência mais geral da política na
conformação da abordagem teórica de Williams.4 O que pretendo
explorar a seguir é um aspecto particular dessa questão: a dimen-
são mais concreta e historicamente circunscrita da atuação política
de Williams, enquanto intelectual socialista que desempenhou um
papel crucial na renovação teórica do pensamento socialista e da
474
tradição marxista e enquanto militante que protagonizou alguns
dos experimentos políticos mais importantes e originais da história
da Grã-Bretanha na segunda metade do século XX.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Dos anos de formação à Nova Esquerda

O contato de Williams com a política e o socialismo se deu bastan-


te precocemente. Ele nasceu e cresceu em uma comunidade (Pandy,
na fronteira do País de Gales com a Inglaterra) impregnada pela polí-
tica trabalhista e sindical dos trabalhadores da ferrovia que cortava a
região – dentre os quais seu pai, Harry, filiado ao Partido Trabalhista
e que chegou a “secretário da subdivisão local” (WILLIAMS, 2013, p.
17). Também sua mãe, Gwen, era uma dedicada militante trabalhista,
ainda que atuando no espaço então reservado às mulheres.5 Williams
cresceu em uma casa onde greves, campanhas eleitorais e atividades
partidárias faziam parte do cotidiano.
3
Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rcgmUOF4hUI&t=394s.
4
Ponto explorado por Blackburn (1988), Hall (1989), O’Connor (1989) e Higgins (1999).
E, no Brasil, por Cevasco (2001) e Glaser (2009).
5
“Era a situação clássica da mulher no Partido Trabalhista. Ela faz o chá, endereça os enve-
lopes e os entrega, mas não tem muita atividade política” (WILLIAMS, 2013, p. 11).
Apesar da enorme penetração do trabalhismo em sua vida so-
cial e familiar, não demorou para que Williams começasse a trilhar
um caminho próprio, vindo a se aproximar do comunismo por in-
termédio do Left Book Club, ao qual se associou em 1937. Além da
atividade editorial, o Left Book Club contava com uma revista e uma
ampla rede de grupos de discussão espalhados por todo o país.6
Foi por intermédio dessa corrente de livros e pessoas que Williams
teve seu primeiro contato com a literatura socialista – sobretudo
os textos de referência da ortodoxia soviética, com destaque para o
último Engels.
Se permeou o ambiente no qual Williams nasceu e cresceu, a po-
lítica passou a desempenhar uma função ainda mais central a par-
tir do seu ingresso em Cambridge, em outubro de 1939.7 Conforme
relatado por Williams no final dos anos 1970, Cambridge surgiu a
ele como um mundo estranho, como que feito para os membros de
uma classe que não a sua. O que facilitou a sua integração naquele
475
ambiente foi o Clube Socialista – “um lar longe de casa” (WILLIAMS,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


2013, p. 23-24) –, ao qual Williams se associou no mesmo mês em
que iniciou os estudos na Faculdade de Inglês. Não demorou para
que o Clube (como espaço de sociabilidade e núcleo de atividades
culturais e debates políticos) se tornasse o centro em torno do qual
a vida de Williams na universidade passou a girar.
O ingresso no clube – de tendências comunistas em sua direção
política e orientação teórica, apesar da diversidade das correntes
abrigadas – desembocou na filiação de Williams ao Partido Comu-
nista da Grã-Bretanha em dezembro de 1939, onde sua atuação se
6
Em seu auge, em 1939, o Left Book Club exibia números impressionantes (58 mil filiados
e 1, 2 mil grupos de discussão), evidência de sua importância nos meios de esquerda e na
cultura britânica do entre-guerras. Cf. Betty Reid (1979).
7
O percurso até Cambridge não foi fácil. Filho único, Williams sempre foi muito deman-
dado pelos pais em seu desempenho escolar. Além disso, a progressão pelas etapas do
sistema educacional da época impunha um desafio nada desprezível a uma criança com
suas origens, como se pode ver pelo relato do próprio Williams: “O vilarejo teve seu ano
de ouro quando fiz o exame para a bolsa de estudos – sete alunos conseguiram as bolsas
do distrito. Tiramos uma foto do grupo por ser um evento tão excepcional: seis garotas e
eu. Mas as meninas, muitas delas filhas de fazendeiros, geralmente estudavam apenas até
o quinto período e então deixavam a escola. Os outros garotos do vilarejo também avança-
vam até o quinto período, quando então tinham frequentemente dificuldades em passar
o matric [exame de admissão – N. T.]. Assim, ao ser aceito no sexto período, eu era o único
de Pandy” (WILLIAMS, 2013, p. 13).
concentrou na redação de textos e panfletos.8 O vínculo formal com
a agremiação, contudo, durou pouco. Ainda segundo o relato do
próprio Williams, ele se deu conta, sobretudo a partir do segundo
ano de seus estudos universitários, de que não teria condições, com
base no arsenal teórico fornecido pelo Partido Comunista, de en-
frentar o desafio de compreender os problemas da cultura (já então
seu maior interesse). Essa limitação teórico-interpretativa do so-
cialismo referendado por Moscou se tornou explícita a Williams em
sua incapacidade de debater em pé de igualdade com os professo-
res da Faculdade de Inglês – todos eles alinhados, uns mais outros
menos, ao modelo de crítica literária de extração conservadora que
dominava o cenário intelectual inglês da época.
Williams se afastou de Cambridge, entre julho de 1941 e outu-
bro de 1945, em razão da guerra, na qual combateu (entre 1944 e
1945) como oficial de um regimento antitanque. A década que se
seguiu a seu retorno a Cambridge foi por ele descrita, posterior-
476
mente, como um período de crise e isolamento, no qual todas as
suas energias foram dirigidas a uma dedicação quase que absoluta
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ao trabalho acadêmico e intelectual.9 Ainda que se possa colocar em


questão o que a reconstrução de Williams tem de parcial, para além
de todas as atividades que ele desempenhou entre 1945 e mea-
dos da década seguinte – sobretudo como editor, ao lado de Wolf
Mankowitz e Clifford Collins, de Politics and Letters (1947-1948) e
tutor na educação de adultos (1946-1961) –, o fato é que Williams
não pode contar, ao longo daqueles anos, com o suporte oferecido
por vínculos políticos, não estando filiado a nenhum dos dois prin-
cipais partidos da esquerda britânica da época (o Comunista e o
Trabalhista). À guisa de ilustração, vale mencionar a imagem que
8
“Éramos colocados em determinado grupo de acordo com o assunto que estávamos len-
do: lá discutíamos os problemas intelectuais relacionados ao tópico. O nosso grupo era
chamado o Grupo dos Escritores, por estarmos na Faculdade de Inglês. Com essa com-
petência, éramos frequentemente requisitados para trabalhos urgentes de propaganda
[...]. Como profissionais da palavra, estávamos frequentemente envolvidos na redação de
textos sobre assuntos que não conhecíamos muito bem. Os textos eram publicados pela
cúpula, sem assinatura” (WILLIAMS, 2013, p. 27).
9
O que se refletiu em uma produção extraordinária, com a publicação de Reading and Cri-
ticism (1950), Drama from Ibsen to Eliot (1952) e Drama em cena (1954), além do trabalho
de redação de Cultura e sociedade (iniciado em 1950) e Border Country (iniciado em 1947)
– publicados, respectivamente, em 1958 e 1960.
membros do Partido Comunista proscritos em 1956 tinham dele:
como um “daqueles que deixaram o Partido para cultivar seus pró-
prios jardins” (SMITH, 2008, p. 410).10
A situação de crise e isolamento na qual Williams se via envolto
desde 1945 começou a desanuviar por volta de 1956. Isso se deu,
sobretudo, por seu contato, por intermédio do historiador e intelec-
tual socialista G.D.H. Cole, com o grupo de estudantes de pós-gra-
duação de Oxford (com destaque para Stuart Hall, Gabriel Pearson,
Raphael Samuel e Charles Taylor) então envolvido na montagem de
uma nova revista, a Universities and Left Review. Williams foi logo
atraído pelo projeto desse grupo de desenvolver uma abordagem
que, recusando o determinismo econômico de certo marxismo,
privilegiasse a dimensão da cultura no esforço por compreender
o capitalismo em sua fase contemporânea.11 Da mesma forma, não
demorou para que Williams se tornasse uma das principais refe-
rências teóricas do grupo.12
477
Foi por intermédio da Universities and Left Review que Williams

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


se aproximou do outro grupo que deu forma à Nova Esquerda, in-
tegrado por comunistas desligados do partido em 1956 no bojo da
crise desencadeada pela revelação dos crimes de Stalin e pela in-
vasão soviética de Budapeste (notadamente, E.P. Thompson, John
Saville, Ralph Miliband e Peter Worsley), reunidos em torno da re-
vista The New Reasoner. Foi pela fusão dessas duas publicações que
surgiu, em dezembro de 1959, a New Left Review.
Desde o início, Williams ocupou uma posição um tanto quanto
ambígua no interior da Nova Esquerda: por um lado, mais próxi-
mo, do ponto de vista geracional, do grupo mais velho de The New
Reasoner; por outro, mais próximo, do ponto de vista teórico, dos
10
Todas as passagens citadas extraídas de edições em língua estrangeira foram por mim
traduzidas.
11
No centro desse projeto vigorava uma relação incontornável entre a tarefa de elaborar
uma compreensão renovada da realidade e a ênfase na cultura: “A atenção era colocada na
reprodução dos valores dominantes na sociedade, [...] e como esses podem ser deslocados
e substituídos por uma cultura política participativa e um novo senso de comunidade”
(KENNY, 1995, p. 75).
12
Vale lembrar que dois capítulos de Cultura e sociedade (1958) foram discutidos, antes
da publicação do livro, no Clube Socialista de Oxford, um dos espaços nos quais o grupo da
Universities and Left Review se reunia.
membros de Universities and Left Review. Foi essa posição singular
que permitiu a ele fazer a ponte entre os grupos que se constituí-
ram com a crise que atingiu a Nova Esquerda em 1962.

Da crise da Nova Esquerda ao May Day Manifesto

Se as afinidades entre The New Reasoner e Universities and Left


Review (reforçadas pelas dificuldades financeiras a que ambas as
publicações estavam sujeitas) pavimentaram o caminho para a
constituição da New Left Review, as muitas divergências entre os
seus membros contribuíram decisivamente para o fim precoce do
grupo que ganhou forma com a nova revista.
Para além da diferença geracional, trata-se aqui de um desacor-
do relativo aos projetos políticos e intelectuais abraçados por cada
um desses grupos. Enquanto os membros de The New Reasoner se
478 formaram politicamente no seio do Partido Comunista e no con-
texto do combate (nos anos 1940) ao fascismo, o grupo de Univer-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

sities and Left Review provinha do ambiente acadêmico de Oxford,


reconhecendo como questões políticas mais urgentes de sua época
os efeitos produzidos pelo acirramento da Guerra Fria e pela crise
do imperialismo europeu. Por outro lado, enquanto os dissidentes
comunistas estavam comprometidos, sobretudo, com a atualização
e requalificação do marxismo em face dos desafios colocados pela
ortodoxia soviética e pelo stalinismo, os pós-graduandos de Oxford
tinham como sua prioridade a elaboração de uma abordagem capaz
de dar conta das novas configurações do capitalismo. As divergên-
cias entre os dois grupos que constituíam a Nova Esquerda atingi-
ram um ponto sem volta em 1962, quando, após o desligamento
de muitos dos membros fundadores da revista, uma nova geração
assumiu a dianteira do projeto, sob a liderança de Perry Anderson,
que passou a ocupar, no mesmo ano, a posição de editor, sucedendo
Stuart Hall.13

13
Williams foi, ao lado de Ralph Miliband e Raphael Samuel, uma exceção, mantendo-se
vinculado à revista mesmo após as saídas conflituosas de Thompson e Hall. Trata-se aqui
de um indício importante do seu esforço de manter pontes entre os dois grupos.
Após o desmonte da primeira formação da Nova Esquerda mui-
tos de seus integrantes retornaram à universidade – agora na po-
sição de docentes. Thompson ingressou na University of Warwick
logo após a publicação de A formação da classe operária inglesa em
novembro de 1963; Hall se associou à University of London após seu
desligamento da New Left Review, transferindo-se para a University
of Birmingham em 1964; John Saville ingressou na University of Hull
e Ralph Miliband, na London School of Economics. Williams não fu-
giu ao padrão de seus contemporâneos, integrando-se, em abril de
1961, a Cambridge, onde lecionou até sua aposentadoria em 1983.
Esse retorno à universidade e à carreira acadêmica não signi-
ficou um afastamento do debate político. Ao contrário, tornou
possível a configuração de um novo tipo de engajamento político
e de intervenção no debate público, agora mediados pela atuação
acadêmica e pela produção intelectual. Esse deslocamento se deu
em paralelo a outro movimento, de afastamento desses nomes das
479
instituições partidárias, fenômeno ligado a outra marca da trajetó-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ria dos membros da primeira formação da Nova Esquerda após a
crise que atingiu a New Left Review: o debate, atravessando os anos
1960, acerca dos rumos do Partido Trabalhista.
Após integrar o governo de coalizão liderado por Winston Chur-
chill, entre 1940 e 1945, os trabalhistas venceram as eleições de ju-
lho de 1945, formando um gabinete encabeçado por Clement Attlee,
líder do partido desde 1935. Essa gestão se engajou em um esforço
surpreendente (e bastante bem-sucedido) para levar adiante proje-
tos de nacionalização de setores da economia e de serviços públicos,
os quais resultaram na nacionalização do Banco da Inglaterra e dos
setores de aviação civil, transporte, eletricidade, gás e exploração
de carvão, ferro e aço, além do estabelecimento de uma ambiciosa
legislação social, que teve na instituição do National Health Servi-
ce (NHS) sua maior conquista. Embora vitoriosos, os trabalhistas
saíram das eleições de fevereiro de 1950 com uma maioria parla-
mentar estreita, de apenas seis assentos no Parlamento. Decidido a
construir uma base mais ampla, Attlee dissolveu o gabinete no ano
seguinte, mas, nas eleições de outubro de 1951, os conservadores,
mais uma vez liderados por Churchill, retomaram o poder.
De volta à oposição, o Partido Trabalhista se viu confrontado
com o desafio de atualizar seu programa político frente a uma nova
conjuntura, impactada pelo esvaziamento da plataforma da nacio-
nalização da economia (já concretizada em seus pontos principais)
e pela opção do novo governo conservador por manter as bases da
economia mista e das políticas de bem-estar social. Foi no enfren-
tamento desse desafio que ganhou proeminência dentro do partido
uma nova corrente de intelectuais, interessados em “‘repensar’ as
políticas socialistas à luz da mudança social e econômica e não ape-
nas [em] ‘reaplicar’ princípios tradicionais” (BOGDANOR, 1970, p.
86). Dentre esses intelectuais, o mais importante foi Anthony Cros-
land, autor daquele que é considerado o texto mais representativo
das teses revisionistas que passaram a ditar as ações do Partido
Trabalhista, The Future of Socialism (1956). Para Crosland, em li-
480
nhas gerais, o projeto trabalhista de promover avanços sociais den-
tro do capitalismo deveria se apoiar na realização de reformas pon-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tuais – o que implicava em eliminar definitivamente do horizonte


do partido políticas de nacionalização da economia.
A corrente revisionista também ganhou protagonismo do ponto
de vista da divisão interna de poder. Em 1955, Attlee foi sucedido
na liderança por Hugh Gaitskell, o candidato ao posto mais alinhado
aos revisionistas. Morto precocemente em 1963, Gaitskell foi suce-
dido por Harold Wilson, que, embora não tão explicitamente vincu-
lado aos revisionistas e destituído da ambição teórica de reformar
o estatuto do partido exibida por seu antecessor, completou a vira-
da dos trabalhistas para uma posição que afastou-os ainda mais da
esquerda socialista.

Se valendo das ideias que tinham sido desenvolvidas sob a


liderança de Gaitskell, Wilson fez da lenta marcha do avanço
científico e tecnológico a base de seu ataque sobre os con-
servadores. Não era a desumanidade e a vulgaridade da So-
ciedade Afluente que Wilson atacava, mas sim o amadorismo
responsável pela baixa taxa de crescimento econômico na
Grã-Bretanha (BOGDANOR, 1970, p. 105).

Sob a liderança de Wilson, os trabalhistas venceram as eleições


de outubro de 1964. Confirmando o que a plataforma da “revolução
científica” já permitia antecipar, as principais medidas do novo go-
verno só contribuíram para aumentar o fosso entre o Partido Tra-
balhista e a Nova Esquerda. Destacam-se, entre essas medidas, o
alinhamento aos Estados Unidos e a manutenção do programa nu-
clear britânico, no plano da política externa, e, no plano da política
econômica, o emprego de medidas inflacionárias e recessivas para
fazer frente ao déficit da balança de pagamentos.
Embora concordassem no diagnóstico de que as políticas do go-
verno Wilson não constituíam reações pontuais e emergenciais a
uma conjuntura excepcional – refletindo, ao contrário, certos “com-
promissos ideológicos e políticos anteriores” (MILIBAND, 1966, p.
481
12) –, os expoentes da primeira formação da Nova Esquerda divi-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


diam-se quanto às ações a serem tomadas com vistas a superar os
impasses criados pelo deslocamento do Partido Trabalhista a posi-
ções revisionistas.
Por um lado, havia os que, como Miliband e Saville (então edito-
res da Socialist Register, revista fundada por eles em 1964), rejeita-
vam a ação dentro do partido, defendendo a “criação e proliferação
de grupos de pressão da esquerda trabalhista [...] para propósitos
limitados e em relação a questões específicas” (MILIBAND; SAVILLE,
1964, p. 155, grifos no original). Outros, como Stuart Hall e Char-
les Taylor, apostavam suas fichas na constituição de um movimento
amplo apoiado na cultura comunitária que, segundo eles, singulari-
zava a classe trabalhadora inglesa. Outra posição foi assumida pe-
los novos membros da New Left Review (com destaque para Perry
Anderson, Tom Nairn e Robin Blackburn), para quem a tarefa cen-
tral da esquerda britânica consistia em encontrar meios para que o
Partido Trabalhista conquistasse a opinião pública e, assim, chegas-
se com força às eleições seguintes.
A posição assumida por Williams no interior desse debate guarda
algumas singularidades importantes, relativas tanto ao diagnóstico
como às ações políticas tidas como prioritárias para intervir naquela
conjuntura. Segundo Williams, estava em movimento, desde os anos
1950, um processo de adesão do movimento trabalhista aos modos
de pensamento aos quais ele antes se opunha – um processo de cap-
tura das instituições da classe trabalhadora pela sociedade que elas
pretendiam combater, ao fim do qual “as próprias aspirações do de-
safio original ao capitalismo são usadas como meio de fortalecê-lo”
(WILLIAMS, 2001, p. 331). Dado que esse sequestro se deu em pa-
ralelo aos avanços sociais e econômicos conquistados no pós-guer-
ra, só restaria ao movimento trabalhista recorrer a ações defensivas,
reativas, animadas pelo objetivo de conservar aquelas conquistas. A
captura das instituições do movimento trabalhista e o consequente
estreitamento do horizonte de sua ação política integrariam, segundo
Williams, o quadro mais amplo do consenso em torno das políticas
482 de bem-estar social, o qual se fundava, por sua vez, em um diagnósti-
co do presente segundo o qual a Grã-Bretanha seria “um país com um
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

futuro bastante óbvio: industrialmente avançado, asseguradamente


democrático e com um nível geral de educação e cultura continua-
mente ascendente” (WILLIAMS, 2001, p. 319).
Contudo, o Partido Trabalhista ainda se mantinha como a insti-
tuição mais importante da esquerda britânica. Segundo Williams,
essa resiliência do Partido Trabalhista decorreria daquele que seria
o “principal elemento ideológico no movimento operário britânico”
(WILLIAMS, 1965, p. 22): o caráter moral da sua crítica, o qual re-
fletiria, por sua vez, uma classe mais interessada em preservar as
suas próprias instituições do que em conquistar o poder político e
transformar a estrutura da sociedade. Segundo Williams, era desse
“elemento ideológico” que os dois movimentos mais importantes
no cenário da esquerda britânica da virada dos anos 1950 para os
1960 – a Campanha para o Desarmamento Nuclear (CND, na sigla
em inglês) e a própria Nova Esquerda – extraíam sua força.14
14
Assim como a Nova Esquerda, a CND surgiu em meados dos anos 1950, como uma ini-
ciativa de militantes e intelectuais socialistas que se opunham ao desenvolvimento da
bomba atômica – projeto que ganhou tração na Grã-Bretanha da época, com apoio aberto
do governo conservador de Harold Macmillan (1957-1963). A CND se consolidou rapida-
Assim, não parece tão surpreendente que, no que diz respeito
ao caminho político a ser seguido naquele momento, Williams se
aproximasse do posicionamento da New Left Review, advogando
pela continuidade do apoio ao governo Wilson, posto que o Partido
Trabalhista ainda lhe parecia “o mais provável agente das mudan-
ças profundamente necessárias na política econômica britânica.
[...] para qualquer programa de curto prazo, a única escolha para
a esquerda” (WILLIAMS, 1965, p. 24). Atestando a coerência das
posições de Williams, ele se filiou ao Partido Trabalhista em 1961 e,
embora tenha se desligado do partido em 1966, militou em campa-
nhas de candidatos trabalhistas nas eleições gerais de 1933, 1950,
1955, 1959 e 1974 e em eleições locais em 1939, 1964 e 1966.15
Mas se a resistência do movimento operário e do Partido Tra-
balhista se apoiavam no caráter defensivo da classe trabalhadora
britânica, é na superação mesma dessa característica que se funda,
para Williams, o caminho para a construção do socialismo na Grã-
483
-Bretanha. Empreender essa superação passava, ainda segundo seu

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


argumento, por reagir ao diagnóstico de uma sociedade britânica
que continuaria a se desenvolver quase que por inércia. Para tanto,
impunha-se, em primeiro lugar, recusar a visão da economia como
um conjunto de consumidores individuais interagindo no merca-
do e, daí, colocar em movimento iniciativas que se pautassem não
pelos índices de produtividade, mas pelas reais necessidades das
pessoas. No plano da política, era preciso reagir a um sistema que
tende a restringir o poder de decisão da população, limitando-a à
escolha periódica de seus representantes. Para tanto, impunha-se
fazer mudanças (na organização dos partidos e na modelagem do
sistema eleitoral) que contribuíssem para a construção de uma de-
mocracia de fato participativa, “na qual os modos e meios de envol-
ver as pessoas mais intimamente no processo de autogoverno po-
mente, reunindo bastante apoio entre a classe média e nomes de destaque do establish-
ment intelectual inglês (como Bertrand Russell).
15
Dado coletado em documento datilografado, depositado no acervo de Williams mantido
pelo Richard Burton Archives, da Swansea University (WWE/2/1/18, [“Miscellaneous”],
Raymond Williams Collection, Richard Burton Archives, Swansea University, Wales – daqui
em diante, Williams Collection). Agradeço ao Richard Burton Archives, por conceder aces-
so ao acervo de Williams, e ao “Estate of Raymond Williams”, por ter gentilmente autoriza-
do a reprodução do material.
der ser aprendido e estendido” (WILLIAMS, 2001, p. 342-343). Por
fim, no plano da cultura, trata-se de implementar um modelo que
libere a produção cultural do controle tanto de grupos financeiros
como de burocracias estatais e que o faça estimulando a constitui-
ção de organizações culturais dirigidas pelos próprios produtores
culturais.16
Não demorou para que Williams rompesse com o governo Wil-
son e o partido. A gota d’água foi a reação oficial à greve convocada
pelo sindicato nacional dos portuários em maio de 1966 – quando o
governo trabalhista não só se opôs à reivindicação por melhores sa-
lários como se valeu até mesmo da falsa acusação de infiltração co-
munista para deslegitimar a mobilização, estabelecendo, após o fim
da greve, uma política mais rígida para a concessão de aumentos
salariais. Em julho do mesmo ano, Williams se desfiliou do Partido
Trabalhista e passou a se dedicar, logo no mês seguinte, ao projeto
do May Day Manifesto.
484
Do ponto de vista da atuação de Williams ao longo dos anos
1960, há uma mudança que merece menção. Se no começo da dé-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

cada ele tinha exercido um papel tímido na estruturação e mobili-


zação do grupo da Nova Esquerda – como ilustrado pela distância
que manteve em relação às atividades editoriais da New Left Review
–, quando a década chegava ao fim, Williams surgia como principal
articulador e liderança de dois dos mais importantes experimen-
tos políticos da esquerda britânica da época: o May Day Manifesto,
publicado em 1967, e a Convenção Nacional da Esquerda, realizada
em 1969. Ao lado de Hall e Thompson, Williams reuniu o grupo que
debateu o formato do Manifesto, participou da divisão das equipes
encarregadas da preparação de cada seção do documento e foi res-
ponsável pela redação final do escrito. Também foi um dos princi-
pais articuladores da Convenção – pensada como desdobramento
das discussões iniciadas com o Manifesto –, vindo a assumir o cargo
de presidente do encontro.
Tanto o Manifesto como a Convenção constituíam partes de um
projeto que pretendia superar a situação de impasse e paralisia na
16
Foi com esse projeto em vista que Williams interveio nos debate sobre política cultural,
notadamente em Communications (1962) e Televisão (1974).
qual a esquerda britânica se encontrava e que resultava, segundo o
diagnóstico apresentado no Manifesto, de sua incapacidade de com-
preender a conjuntura da época e as transformações históricas que
conduziram a ela. Dessa desorientação teórica que decorreriam,
por um lado, o apoio envergonhado de muitos socialistas britânicos
(dentre os quais podemos incluir o próprio Williams) a um partido
que há muito vinha se distanciando de uma política socialista e, por
outro, as dificuldades para propor caminhos alternativos. Era sobre
essa desorientação que o Manifesto pretendia intervir, de modo a
oferecer uma nova abordagem do presente capaz de subsidiar uma
ação política de fato socialista.
Do ponto de vista organizacional, dado o caráter integrado e
abrangente do sistema que se impunha desafiar, a reação socialis-
ta, acreditavam os signatários do Manifesto, não deveria se dar de
forma fragmentada, mas articulando indivíduos, movimentos, cam-
panhas e grupos mobilizados em torno das grandes questões da
485
época, como pobreza, desigualdade, moradia, saúde e educação, o

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


imperialismo, a nova organização do trabalho, etc. A Convenção foi
projetada justamente como ponta pé inicial da mobilização organi-
zacional defendida no Manifesto e, para tanto, reuniu representan-
tes das mais variadas correntes: sindicalistas, membros de conse-
lhos comerciais, militantes comunistas e trabalhistas, integrantes
de organizações comunitárias e de moradores, jovens liberais, etc.
Embora a Convenção tenha ao fim naufragado – se desfazendo
por divergências quanto a apoiar ou não o candidato trabalhista
nas eleições gerais de 1970 –, e o Manifesto tenha sido praticamen-
te ignorado (inclusive pela esquerda trabalhista), ambas as iniciati-
vas foram importantes, entre outras razões, por jogarem luz sobre
questões que não gozavam de tanto prestígio nos debates políti-
cos do começo da década e que não mais sairiam de cena, assim
como sobre os movimentos organizados em torno delas, como “o
movimento pacifista, o movimento ecológico, o movimento das
mulheres, a solidariedade com o terceiro mundo, as associações
de direitos humanos, as campanhas contra a pobreza e o desam-
paro, as campanhas contra a indigência e as distorções culturais”
(WILLIAMS, 1984, p. 200).

Socialismo, democracia e os novos movimentos sociais

Grande parte da energia política de Williams foi dirigida, nas


duas décadas finais de sua vida, aos problemas colocados por esses
novos movimentos, com destaque para dois: o movimento naciona-
lista galês e o movimento ecológico, com os quais ele se envolveu
mais diretamente a partir do início dos anos 1970. E foi a neces-
sidade, mais uma vez, de conectar as pautas desses novos movi-
mentos sociais o que motivou a criação da Socialist Society no início
dos anos 1980, uma das últimas empreitadas políticas nas quais
Williams se engajou em sua vida.
Em 1969, mesmo ano da Covenção Nacional da Esquerda e
486 dois após a publicação da primeira versão do May Day Manifesto,
Williams se filiou ao Plaid Cymru (Partido de Gales), uma das pon-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tas de lança políticas do movimento nacionalista galês. Embora


seu vínculo formal com o partido não tenha durado muito tempo,
esse foi um acontecimento importante como marco inicial de seu
engajamento com o nacionalismo galês. Como destacou Daniel G.
Williams, embora seja possível rastrear marcas mais ou menos ex-
plícitas e intencionalmente gravadas de sua trajetória pessoal em
seus romances – sobretudo no primeiro a ser publicado, Border
Country (1960) – e em escritos como Cultura e sociedade e O campo
e a cidade (1973), é só a partir dessa época (final dos anos 1960)
que começa a se revelar o Williams que passa “a lidar autocons-
cientemente com o sentido de sua experiência galesa” (WILLIAMS,
2003, p. xxiii).
Já no Manifesto, os movimentos nacionalistas (em particular, o
galês e o escocês) eram entendidos como parte do quadro mais ge-
ral da “formação de outros grupos radicais” (WILLIAMS, 2018, p.
179), decorrente da crise que atingiu o Partido Trabalhista nos anos
1960. Em linhas gerais, o Manifesto procurava destacar a dimensão
radical do “apelo nacional” vocalizado por esses movimentos e em
que medida a “identidade nacional” sobre a qual eles se apoiavam
poderia abarcar outras formas de “afiliações políticas” (WILLIAMS,
2018, p. 179). Em um contexto delineado por uma nova configu-
ração do capitalismo – gestada nos Estados Unidos, difundida no
bojo da expansão do poderia militar e econômico norte-americano
e na qual o protagonismo cabia a corporações multinacionais –, as
lutas nacionais tinham, cada vez mais, o potencial de assumir uma
dimensão radical.
Para Williams, impunha-se a tarefa, nessa nova conjuntura, de
desenvolver uma nova forma de política, fundada em “uma mobi-
lização popular territorialmente baseada” (WILLIAMS, 1989a, p.
240), cujo campo de ação deveria ser buscado em formas de asso-
ciação menos centralizadas e mais concretas, em “unidades nacio-
nais como o País de Gales e a Escócia”, ou em “grandes cidades como
Londres e Liverpool (WILLIAMS, 1989a, p. 239). Pensar a política
nesses termos passava, também, por pensar as relações sociais
487
para além de sua determinação de classe, considerando também

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


os vínculos que se estabelecem em um mesmo lugar e que são de-
terminados pelo pertencimento a um mesmo lugar. Nesses outros
vínculos que estaria a fonte de um socialismo adaptado às novas
condições do século que então se aproximava.

A fonte de um ethos diferente reside principalmente nesses


outros vínculos sociais, esses compromissos e propósitos
em última instância mais profundos, que o capitalismo trata
de confinar em um nível de menor importância, ou ali onde
é necessário cancelá-los. Assim, os recursos de um socialis-
mo mais amplo têm de se desenvolver a partir do que ocorre
ou do que possa ocorrer nessas outras práticas ou relações.
O que importa é o que ocorre na preocupação primária das
pessoas, nas famílias, nos bairros e nas comunidades. O que
importa é o que ocorre nos serviços organizados de saúde
e educação, na proteção e no melhoramento de nosso am-
biente físico, na qualidade de nossa informação pública e de
nosso lazer (WILLIAMS, 1984, p. 198-199).
Entre as novas questões e movimentos que se impunham nessa
época, Williams também se voltou para a crise ambiental e o mo-
vimento ecológico. Nesse plano, sua atuação se deu por meio da
Socialist Environment & Resources Association (SERA), uma organi-
zação formalmente vinculada ao Partido Trabalhista fundada em
1973, e com a qual Williams se envolveu ativamente após seu in-
gresso no início dos anos 1980. A SERA ocupou um lugar de relativo
destaque na cena política e no movimento trabalhista ingleses do
começo dos anos 1980 – contabilizando, na época, mais de 50 orga-
nizações filiadas.17
A SERA foi concebida por seus fundadores como meio para ins-
crever a questão ambiental no centro das preocupações teóricas e
das iniciativas políticas do movimento trabalhista britânico. Tra-
tava-se, desse modo, de abordar a questão ambiental em termos
de uma política socialista, o que se revela, em primeiro lugar, no
diagnóstico que vincula a crise ambiental ao padrão de desenvolvi-
488
mento e exploração econômicos prevalecente no capitalismo. Essa
ênfase muito específica se manifesta também nas estratégias polí-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ticas propugnadas para se fazer frente a essa crise, as quais deve-


riam eleger como alvo central não os sintomas da crise, mas as suas
causas – isto é, a estrutura da economia e a forma como ela opera. A
tarefa de colocar em prática uma política dessa abrangência guiou a
diretriz segundo a qual as iniciativas da SERA deveriam se espraiar
para além da pauta ambiental e das organizações mais diretamente
ligadas a ela.
Em consonância com o projeto da SERA, o interesse de Williams,
nos anos 1980, pela questão ambiental se orientava por repensar
os vínculos entre a questão ambiental e a política socialista, o que
passaria por colocar em primeiro plano as “necessidades humanas
primárias”, relativas “à paz, à segurança, a uma sociedade com servi-
ços e a uma economia cuidadosa” (WILLIAMS, 1984, p. 201). Nesse
ponto, Williams rejeita o argumento – segundo ele, presente tanto
entre as vertentes social-democrata e reformista como entre aquelas
mais ortodoxas – de que a superação do capitalismo passaria obriga-
17
“SERA’s Role” e “Report from Council to AGM (1981)” (WWE/2/1/15/1/7 [“Socialist En-
vironment & Resources Association”], Williams Collection).
toriamente pela conquista de um novo patamar de desenvolvimento
econômico. Ao contrário, a construção do socialismo dependeria de
uma ação política que vá além da transformação do padrão de pro-
priedade dos meios de produção, mirando aquilo que é, de fato, fun-
damental: “o modo como a produção é organizada, o modo como os
produtos são distribuídos” (WILLIAMS, 1989b, p. 221). Ademais, a
perspectiva que associa o socialismo a mais produção também perde
de vista aquela que, segundo Williams, deve ser a meta de toda polí-
tica socialista: não a conquista de níveis mais elevados de produção,
mas a construção de novos “controles sociais, ao invés de capitalis-
tas, sobre o que era produzido e de relações sociais modificadas que
alterassem a distribuição real de um produto de outro modo mera-
mente agregado” (WILLIAMS, 1989c, p. 307).
A SERA esteve entre as organizações e os movimentos com base
nos quais se constituiu a Socialist Society, organização política que
Williams ajudou a criar e na qual atuou politicamente na primei-
489
ra metade dos anos 1980. Fundada em janeiro de 1982, a Socialist
Society começou a ser planejada em junho do ano anterior, em um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


encontro que reuniu nomes da primeira formação da Nova Esquer-
da (Ralph Miliband e Stuart Hall, além do próprio Williams), outros
da segunda formação (Tariq Ali, Robin Blackburn, Francis Mulhern)
e signatários do May Day Manifesto (Patrick Jordan, Richard Ku-
per, Bob Rowthorn e Michael Rustin). Mas o que mais impressiona
– sobretudo quando em contraste com experimentos intelectuais
e políticos anteriores – é o número significativo de mulheres que
participaram da fundação do grupo (como Michèle Barrett, Vero-
nica Beechey, Clara Mulhern, Anne Sassoon, Lynne Segal, Hilary
Wainwright, Susan Watkins e Elizabeth Wilson).18 Não por acaso, o
grupo fundador da Sociedade descreveu assim a inspiração original
de seu empreendimento: “Esperamos que a Sociedade Socialista
seja uma reunião não-sectária de socialistas e feministas socialis-
tas, aberta a todos que concordem com o seu conjunto mais amplo
de princípios e objetivos”.19
18
“The First Year of the Socialist Society” (WWE/2/1/15/1/8 [“Socialist Society”], Wil-
liams Collection).
19
“The Socialist Society” (WWE/2/1/15/1/8 [“Socialist Society”], Williams Collection).
A Socialist Society pretendia se estabelecer como uma rede proje-
tada para conectar e articular movimentos já existentes, respeitan-
do a sua diversidade de enfoques e enraizamento social. Assim, ao
lado de bandeiras que já haviam aparecido nos anos 1960 – como
a reforma dos meios de comunicação e do sistema de educação,
além de projetos de autogestão –, figurava agora a meta de elaborar
análises da “estrutura da sociedade britânica” que privilegiassem
questões como sexismo, racismo, relações familiares, exploração
dos recursos naturais, etc.
Os novos movimentos sociais centrados nessas questões sur-
giam a Williams como a melhor base para o projeto de uma demo-
cracia socialista, assentada em processos de decisão participativos
e políticas de autogestão – projeto que ele desenvolveu em seus
textos dos anos 1980. Em um contexto histórico dominado por um
clima de pessimismo decorrente do emparedamento da esquerda
pelo governo Thatcher (1979-1990) e da crise do modelo soviéti-
490
co, Williams reconhecia como prioridade número um recuperar os
laços entre democracia e socialismo e, com isso, recusar a ideia de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

que a democracia só poderia se realizar na forma da democracia


liberal burguesa. Como alternativa, Williams defendia o modelo da-
quilo que ele qualificou como uma “democracia instruída e partici-
pativa” (WILLIAMS, 1984, p. 121), por ele defendido não apenas por
uma questão de princípio, mas também como o melhor meio para
confiar mais poder decisório ao maior número possível de pessoas.
Para Williams, uma democracia desse tipo deveria se apoiar em
projetos tanto abrangentes como localizados de autogestão.

o único tipo de socialismo que tem alguma oportunidade hoje


em dia de chegar a se estabelecer, nas velhas sociedades in-
dustrializadas e democrático-burguesas, é um socialismo
baseado centralmente em novos tipos de instituições
comunitárias, cooperativas e coletivas. Nessas instituições
estariam plenamente garantidas a liberdade de expressão, de
reunião, de candidatura para as eleições e também a toma-
da aberta de decisões, que poderão ser revisadas por todos
aqueles que a decisão incumbir, e tudo isso seria colocado em
prática segundo os procedimentos hoje tecnicamente possí-
veis. Na verdade, esse é o único caminho para os socialistas
desses países. Portanto, é necessário iniciar uma discussão
muito aberta e de projeção prática sobre as relações entre tais
instituições e a indubitável necessidade de outras instituições
de maior escala, seja na inevitável luta contra a resistência
capitalista ou externa, ou no próprio funcionamento de uma
sociedade industrial moderna, completa e multitudinária. A
fórmula atualmente dominante que propõe um rígido gover-
no partidário que nos conduzirá à autogestão me parece, no
pior dos casos, uma esperança piedosa e, no pior, uma patética
ilusão (WILLIAMS, 1984, p. 145).

Para Williams, a única alternativa verdadeiramente socialista é


a da produção que tem em vista as necessidades e interesses da
população e que supra-os admitindo o compartilhamento mais
aberto possível de informações. Só assim que a democracia seria
capaz de abarcar toda a diversidade de interesses que formam a
sociedade. Do ponto de vista da organização política, seria preciso
491
recorrer a formas originais de ação política, como “alianças, blocos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


e coalizões” (WILLIAMS, 2011, p. 363), menos hierarquizadas e ri-
gidamente estruturadas – e, portanto, mais flexíveis e adaptáveis
(do que os partidos tradicionais) a mudanças e novas circunstân-
cias políticas.
Pensando na manutenção de uma ação coletiva duradoura,
Williams reconhece a importância de restabelecer as conexões
entre as lutas particulares e a luta mais ampla pelo socialismo e,
assim, “provar que o sistema alternativo previsto é, por sua vez,
praticável e favorável ao interesse geral” (WILLIAMS, 1984, p. 190).
Considerar essas outras vinculações seria um passo decisivo como
parte não apenas do esforço teórico para a compreensão desses
novos atores, mas também do projeto socialista de transformação
da sociedade. Williams pensa a política socialista justamente como
uma forma de conectar essas pautas e esses movimentos às lutas
mais gerais.
Considerações finais

Para além de todas as mudanças e os deslocamentos compreen-


didos pela trajetória política e intelectual de Williams, as bases de
seu projeto de uma democracia socialista (elaboradas mais demo-
radamente em seus textos dos anos 1980) já estavam dadas no fi-
nal dos anos 1950 e início dos 1960, como nos já citados Cultura
e sociedade e The Long Revolution (1961). É isso o que vemos, por
exemplo, em suas considerações sobre a “cultura comum” – con-
cebida como produto não da imposição de uma classe ou de um
grupo minoritário, mas do esforço coletivo de todo o povo. A mes-
ma ênfase na ação autônoma das pessoas está presente no conceito
de revolução exposto em Tragédia moderna (1966). Porque, aqui,
Williams está interessado em mostrar como a revolução socialista
é mais do que a revolução política pontuada por acontecimentos
492 violentos e disruptivos, definindo-se, isso sim, como “revolução hu-
mana geral” que progride pela crescente incorporação de mais pes-
soas nos processos de decisão política, econômica e cultural.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Essa ênfase na capacidade de organização e mobilização das


pessoas talvez seja uma das contribuições mais originais e pere-
nes do pensamento político de Williams. Trata-se, como vimos, de
uma contribuição forjada em uma prática política que cobriu cinco
décadas. A vida de Williams dá testemunho de uma militância que,
apesar de todas as derrotas sofridas pela esquerda britânica no pe-
ríodo, manteve uma crença inabalável no potencial emancipatório
da ação humana.

REFERÊNCIAS

BLACKBURN, Robin. Raymond Williams and the Politics of a


New Left. New Left Review I/68, p. 12-22, March-April 1988.
BOGDANOR, Vernon. The Labour Party in Opposition, 1951-
1964. In: BOGDANOR, Vernon and SKIDELSKY, Robert. The
Age of Affluence 1951-1964. London and Basingstoke: Macmil-
lan, 1970, p. 78-116.

CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo:


Paz e Terra, 2001.

GLASER, André. Materialismo cultural. Tese (Doutorado em


Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) – Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2008, 236 p.

HALL, Stuart. Politics and Letters. In: Raymond Williams. Crit-


ical Perspectives. Editor: Terry Eagleton. Cambridge, Oxford:
Polity Press, Basil Blackwell, 1989.
493

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


HIGGINS, John. Raymond Williams. Literature, Marxism and
Cultural Materialism. New York: Routledge, 1999.

KENNY, Michael. The First New Left. British Intellectuals After


Stalin. London: Lawrence & Wishart, 1995.

MILIBAND, Ralph. The Labour Government and Beyond. So-


cialist Register, vol. 3, p. 11-26, 1966. Disponível em: https://
socialistregister.com/index.php/srv/article/view/5965.
Acesso em 17 out 2021.

MILIBAND, Ralph; SAVILLE, John. Labour Policy and the La-


bour Left. Socialist Register, vol. 1, p. 149-156, 1964. Disponí-
vel em: https://socialistregister.com/index.php/srv/article/
view/5934. Acesso em: 17 out 2021.
O’CONNOR, Alan. Raymond Williams. Writing, Culture Politics.
Oxford: Basil Blackwell, 1989.

REID, Betty. The Left Book Club in the Thirties. In: CLARK,
John et al. Culture and Crisis in Britain in the Thirties. London:
Lawrence & Wishart, 1979, p. 193-207.

RIVETTI, Ugo Urbano Casares. A longa jornada: Raymond


Williams, a política e o socialismo. Tese (Doutorado em So-
ciologia) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021, 181 p.

SMITH, Dai. Raymond Williams: A Warrior’s Tale. Cardigan:


Parthian, 2008.

494 WILLIAMS, Daniel G. The Return of the Native. In: Who Speaks
for Wales? Nation, Culture, Identity. Editor: Daniel G. Williams.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Cardiff: University of Wales Press, 2003, p. xv-liii.

WILLIAMS, Raymond. Além do socialismo realmente existen-


te. In: ______. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp,
2011, p. 343-372.

WILLIAMS, Raymond. A política e as letras: entrevistas da New


Left Review. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

WILLIAMS, Raymond. The British Left. New Left Review I/30,


p. 18-26, March-April 1965.

WILLIAMS, Raymond. Decentralism and the Politics of Place.


In: ______. Resources of Hope: culture, democracy, socialism.
London: Verso, 1989a, p. 238-244.
WILLIAMS, Raymond. Hacia el año 2000. Barcelona: Crítica,
1984.

WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. Peterborough:


Broadview Press, 2001.

WILLIAMS, Raymond. Socialism and Ecology. In: ______. Re-


sources of Hope: culture, democracy, socialism. London: Verso,
1989b, p. 210-226.

WILLIAMS, Raymond. Towards Many Socialisms. In: ______. Re-


sources of Hope: culture, democracy, socialism. London: Verso,
1989c, p. 295-313.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac 495


Naify, 2002.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


WILLIAMS, Raymond. May Day Manifesto 1968. London, New
York: Verso Books, 2018.

FONTES PRIMÁRIAS

WWE/2/1/15/1/7, [“Socialist Environment & Resources As-


sociation”], Raymond Williams Collection, Richard Burton Ar-
chives, Swansea University, Wales.

WWE/2/1/15/1/8, [“Socialist Society”], Raymond Williams


Collection, Richard Burton Archives, Swansea University,
Wales.

WWE/2/1/18, [“Miscellaneous”], Raymond Williams Collec-


tion, Richard Burton Archives, Swansea University, Wales.
RESUMO
Este capítulo pretende oferecer uma análise dos momentos
principais da obra e da trajetória de Raymond Williams do
ponto de vista de sua atuação política como militante e inte-
lectual socialista – o primeiro contato com a política trabalhis-
ta por intermédio de seus pais; a vinculação ao comunismo na
juventude; o envolvimento com a Nova Esquerda no final dos
anos 1950; a relação conturbada com o Partido Trabalhista e
as tentativas de renovar a esquerda britânica nos anos 1960;
e o engajamento com os novos movimento sociais nos anos
1970 e 1980. Trata-se, com isso, de verificar em que medida a
obra de Williams carrega as marcas dos debates políticos nos
quais ele interveio, bem como de cobrir as principais inicia-
tivas políticas que contaram com a sua participação. Assim,
procurou-se desenvolver uma análise o mais apta possível a
articular o conteúdo das obras a alguns dos principais mo-
496
mentos da história política e intelectual da esquerda britânica
na segunda metade do século XX, com vistas a jogar luz sobre
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

uma dimensão central da produção e da vida de Williams.


Palavras-chave: Raymond Williams, Nova Esquerda, Política
Britânica, Partido Trabalhista, Marxismo Britânico.

ABSTRACT
This chapter intends to offer an analysis of the main moments
of Raymond Williams’ work and life from the point of view of
his political acting as a militant and intellectual socialist – the
first contact with labour politics through his parents’ influence;
the link with communism in his youth; the engagement with
the New Left in the late 1950s; his eventful relation with the
Labour Party and, as a means to surpass it, the attempts to
renovate the British left in the 1960s; the involvement with
the new social movements in the 1970s and 1980s. In this
way, we aim to confirm in which ways Williams’ work bears
the signs of the political debates in which he acted, as well
as to register the main political initiatives that counted with
his participation. Therefore, this chapter intends to develop
an analysis that can be able, as far as possible, to connect the
arguments presented in his writings with the main moments
of the political and intellectual history of the British left in the
second half of the 20th century, in order to highlight a central
dimension of Williams’ work and life.
Keywords: Raymond Williams, New Left, British Politics,
Labour Party, British Marxism.

SOBRE O AUTOR
Ugo Rivetti é doutor em Sociologia pela Universidade de São
Paulo, instituição na qual realizou o mestrado em Sociologia
e a graduação em Ciências Sociais. Autor de artigos sobre His-
tória e Teoria do Marxismo, Raymond Williams e Sociologia
da Cultura.
497

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


UM CAPÍTULO FORA DE LUGAR?
TRAGÉDIA MODERNA E A SOCIOLOGIA
DO DRAMA EM RAYMOND WILLIAMS

José Afonso Chaves1

Há uma modulação bastante específica da convicção do de-


sastre iminente e do fim efetivo da esperança nesse deleite
abstrato, nesse prazer elegante, em tocar as últimas melodias
inteligentes [...] o fato é que nem a forma francamente utópica,
nem mesmo os contornos especificados de futuros praticáveis, 499
que são hoje tão urgentemente necessários, podem começar
a fluir até que tenhamos enfrentado, com a profundidade ne-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


cessária, as divisões e contradições que agora neles habitam.
Raymond Williams2

Introdução

No elucidativo e provocativo prefácio que a professora Iná Ca-


margo Costa preparou à edição brasileira de Tragédia moderna há
um breve comentário acerca do estranhamento que um dos capítulos
parece suscitar no meio do que ela chama de “grêmio teatral”, profis-
sionais do teatro, estudiosos e críticos, isto é, o campo teatral. O ca-
pítulo em questão é “Tragédia social e pessoal: Tolstói e Lawrence”
e o referido estranhamento decorre do fato de Raymond Williams
inserir, em um livro que discute o tratamento que a tragédia rece-
1
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Escola de
Educação e Humanidades da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). E-mail: afonso.
chaves@unicap.br. Link para currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1258524189978551. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-8735-524X.
2
(2011, p. 103 e p. 106-107).
beu no universo do drama ao longo do tempo, uma análise acerca do
modo como dois narradores conceberam a questão em suas obras.
O desconcerto causado por essa inserção no campo teatral, se-
gundo Iná Camargo Costa, guarda muitas razões, sendo a mais ób-
via a suposta confusão entre os gêneros dramático e narrativo que o
trabalho evidenciaria. Na verdade, ainda segundo Costa, a produção
dessa heterodoxia seria proposital por parte de Williams, visto que
“o estudo de outras formas narrativas (para o professor, drama é uma
forma narrativa) não faria mal nenhum a quem se dedica ao teatro”
(COSTA, 2002, p. 17). Entretanto, Costa termina por não indicar e,
consequentemente, não desenvolver outras possíveis razões.
De nossa parte, em concordância com a pista levantada pela Iná
Camargo, queremos proceder a uma leitura desse capítulo preocu-
pada em investigar seu sentido quando confrontado com as trans-
formações porque passava o campo teatral na segunda metade do
500
século XX.
Nesse sentido, avançamos a hipótese de que, ao problematizar a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

dissociação operada pelas obras artísticas no mundo contemporâ-


neo entre as dimensões subjetiva e coletiva da experiência humana
configurada pelo trágico, Williams nos ajuda a pensar acerca dos
delineamentos formais predominantes no teatro do pós-guerra e
sobre os significados sociais e históricos que nele se abrigam.
Embora as experimentações cênicas ocorridas no teatro produ-
zido nas últimas décadas do século XX até agora sejam muitas e di-
ferenciadas, a elaboração teórica mais prevalecente tem sido aque-
la saída da lavra do estudioso alemão Hans-Thies Lehmann que, ao
propor uma significativa cisão entre drama e teatro3, que ele deno-
mina de pós-dramático, conseguiu oferecer um poderoso código de
interpretação para toda essa produção teatral recente.
3
Mesmo que em um trabalho recente, no qual repassa a recepção de seu influente livro e dos de-
senvolvimentos posteriores da experiência pós-dramática, Lehmann tenha afirmado que nunca
postulou pelo fim do texto dramático, ainda assim, sua proposição indicava como característica
distintiva do teatro praticado da segunda metade do século XX em diante, um declínio cada vez
maior da presença do texto dramático como elemento nucleador do teatro. Para ele, de fato,
teatro e drama são experiências distintas, visto que a segunda se insere no campo da literatura.
(LEHMANN, 2013, p. 859-878)
Para empreender nossa leitura e fundamentar nossa hipótese,
faremos uso do procedimento metodológico de base dialética que
privilegia a relação forma e processo social e que, conforme diz
Adorno:

Embora se oponha à empiria através do momento da forma


–e a mediação da forma e do conteúdo não deve conceber-se
sem a sua distinção- importa, porém, em certa mediada e ge-
ralmente, buscar a mediação no facto de a forma estética ser
conteúdo sedimentado. (ADORNO, 2006, p. 15)

Roberto Schwarz, seguindo Adorno nos diz que esse procedimen-


to, vislumbra problematizar “a nota específica” de cada elaboração
formal enquanto conteúdo socialmente sedimentado (SCHWARZ,
1999, p. 185) e, por isso mesmo, nos faz ver e problematizar o pró-
prio mundo social desde o mundo da obra.
Portanto, neste capítulo, intentaremos demonstrar que, ao inse- 501
rir uma discussão aparentemente deslocada – um capítulo fora de

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


lugar-4, na verdade Williams estava se apresentando ao debate so-
bre o modo como o teatro contemporâneo vinha ganhando forma
ao longo do século XX.

O campo teatral e o pós-dramático

O que resultou reconhecido como pós-dramático coincide com


um período de grandes experimentações ocorridas no campo tea-
tral5 e que se colocavam em estreita interação com as transforma-
ções sociais mais amplas. Na verdade, a elaboração do termo é bem
posterior e acontece por volta dos anos 1990, quando da publica-
4
Evidentemente que estamos nos valendo aqui da reconhecida expressão conceitual do Ro-
berto Schwarz quando tematiza a inadequação e ambiguidades do liberalismo na sociedade
escravocrata vigente no Brasil no século XIX. Claro, a tomamos para desenvolver e buscar um
fim invertido daquele que ele buscava e sem, não precisaria dizer, seu alcance argumentativo.
O tom aqui é alusivo. Veja, SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas
Cidades, 1977.
5
A noção de campo teatral é aqui empregada de forma fraca, visto que o enfoque de análise em-
pregado de alguma maneira extravasa o modo rigoroso como formulado por Pierre Bourdieu.
Fazemos uso em razão de sua larga adoção quando da análise dos fenômenos artísticos.
ção do livro Teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehmann6. Essa
era uma experiência concreta que vinha sendo desenhada nas prá-
ticas teatrais ao redor do mundo e, nesse sentido, conforma uma es-
trutura de sentimento, nos termos de Raymond Williams, posto que
melhor visualizada, justamente, por uma averiguação posterior.
Hans Thies Lehmann7 (1944), com a expressão pós-dramático
procura dar conta de toda uma experiência que vinha se formando
no teatro que vicejou dos anos 1950 em diante. O termo, alçado ao
plano da elaboração teórica, resulta da constatação daquilo que os
artistas da cena (diretores, atores, encenadores, autores de peças
etc.) passaram a explorar em termos de novas forma de estruturar
a própria cena, de um modo bem diferente de como terminou re-
sultante fazer no âmbito teatro ocidental ao longo do tempo. Isto
é, aquele funcionamento que operava através de uma fábula, uma
narrativa, um cenário, da sonoplastia etc. Portanto, que tinha no
502 drama e em tudo aquilo que dele deriva e se associava em uma con-
dição constitutiva. Assim, para Lehmann, essa poética dramática se
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

encontrava por demais aprisionada no texto e encenadores e atores


se encontravam em grandes dificuldades para fugir ao que ali era
demarcado.
Lehmann constrói sua análise em diálogo direto com aqueles que
para ele são os mais argutos interpretes do teatro moderno, Peter
Szondi8 e Bertolt Brecht. Entretanto, esse diálogo acontece marca-
do por um confronto com seus mestres, visto que, para Lehmann,
a despeito de ambos muito contribuírem para compreender as
transformações tecidas no campo teatral, permaneceram presos à
centralidade do texto como ponto de partida da experiência cênica.
6
Note que, no importante estudo de Marvin Carlson, do início dos anos 1980, Teorias do teatro
(1984), Lehmann sequer é citado e sua teoria do pós-dramático inexiste. Esse termo, efetiva-
mente, procura dar conta de uma experiência que vinha ocorrendo na prática já há bastante
tempo. Da mesma forma, no reconhecido Dicionário de teatro, de Patrice Pavis não se encontra
menção a Lehmann e suas questões.
7
Nascido em 1944. É professor de estudos teatrais na universidade Johann Wolfgang Goethe,
em Frankfurt. Desde o lançamento de seu Teatro pós-dramático em 1999, se tornou um dos
nomes mais influentes da teoria do teatro na contemporaneidade.
8
O húngaro Peter Szondi foi um nome central para a compreensão do drama moderno e bur-
guês, como demonstram seus importantes trabalhos: Teoria do drama moderno (1956) e Teoria
do drama burguês (1973).
Mais, Szondi e Brecht são tributários da noção de totalidade narra-
tiva advinda de Hegel, portanto, estariam conformados, ainda, em
uma concepção de cena na qual prevalece um enredo com gênese e,
por isso mesmo, visaria, necessariamente, um fim.
Ocorre que, em meados do século XX, Lehmann percebe que
os produtores da cena, ao tempo de sua criação, passam, cada vez
mais, afazer uso de elementos provindos de diferentes linguagens
artísticas. Essa recolha de muitas manifestações artísticas transfor-
mou-se em condição basilar de um novo modo de se pensar o fa-
zer teatral. Desse modo, e no sentido de aprofundar o diálogo com
outras linguagens artísticas, os agentes do campo teatral passaram
a valorizar mais o corpo e suas possibilidades, em detrimento do
texto teatral que, com isso, vai deixando de ser o elemento nortea-
dor dessa elaboração criativa, e passa a ser compreendido como
mais um elemento da cena, juntamente com muitos outros. Para
Lehmann: 503

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Na estática clássica, a dialética formal do drama, com suas
implicações filosóficas, foi um tema central. Daí a pertinên-
cia de verificar aqui o que realmente foi abandonado quando
o drama foi abandonado. O drama e a tragédia eram consi-
derados como a configuração mais elevada, ou uma das mais
elevadas, da manifestação do espirito. A essência dialética do
gênero (diálogo, conflito, solução, alto grau de abstração da
forma dramática, exposição do sujeito em seu caráter confli-
tuoso) permitia que o drama tivesse um papel destacado no
cânone das artes. [...] Assim, a dialética é vinculada por Szon-
di ao gênero do drama e ao trágico. (LEHMANN, 2007, p. 61)

Lehmann tem consciência de que esses autores que discutiram


o drama na modernidade tinham clareza que a forma dramática já
havia se transformado consideravelmente em função das caracte-
rísticas da sociedade burguesa. Entretanto, sua crítica é dirigida
propriamente ao fato de que eles todos não conseguem abandonar
o conceito de drama como centralidade do fazer teatral. Aqui, para
ele, reside o problema dessas empreitadas, pois não conseguem le-
var na devida conta a multiplicidade elementos e direções que pas-
sam a configurar a produção de teatro.
As saídas são, no seu dizer, drásticas e unidirecionais. É o caso de
Peter Szondi que, procurando dar conta das modificações do dra-
ma, aponta como única possibilidade de destino da prática teatral a
epicização brechtiana. Vejamos:

O teatro dos modernos já negava o modelo tradicional do


drama em aspectos essenciais. A pergunta que se colocava
então era: o que entra no seu lugar? A clássica resposta de
Peter Szondi consiste em considerar as novas formas de tex-
to que se seguiram à crise do drama, descritas por ele como
variedades de epicização, e com isso fazer do teatro épico
uma chaves mestra para os desenvolvimentos mais recen-
tes. Essa resposta não é mais suficiente. Diante das novas
tendências dramáticas desde 1880, que o autor pensa como
dialética de formas e conteúdo, a drástica Teoria do dra-
504 ma moderno contrapões ao modelo do drama puro de tipo
ideal uma tendência oposta muito determinada. (LEHMANN,
2007, p. 46)
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Essa maneira de problematizar tal passagem histórica e formal


é, para Lehmann, uma tentativa frustrada, posto que muito restri-
tiva e que retira sua validade sem nuances e problematizações da
autoridade presente no teatro épico de Brecht que, por sua força
e autoridade, termina por, de acordo com o professor alemão, blo-
quear uma discussão aberta, na qual as possibilidades das experi-
mentações performativas muito teriam a contribuir.

O lugar do capítulo fora de lugar

Nesse tópico exporemos a análise de Williams acerca da cisão


entre o pessoal e o social na tragédia na elaboração da narrativa
contemporânea e, em seguida, apresentaremos a fatura heurística
que decorre de nossa leitura acerca das práticas e dos debates em
tornos do teatro recente.
O capítulo se inicia precisamente pela constatação de que a lite-
ratura cada vez mais foi aprofundando a separação entre esfera do
social e do pessoal, e Williams chega mesmo a dizer que essa divi-
são consiste na maior crise que a produção literária assistiu. Vale a
pena reproduzir esse trecho inicial, pela agudeza de sua demons-
tração:

A mais profunda crise da literatura moderna está na divisão


da experiência nas categorias social e pessoal. Trata-se agora
de algo maior do que uma questão de ênfase. É uma divisão
de raiz, para a qual se dirige o fluxo da experiência; uma di-
visão a parir da qual, com vigores característicos, crescem
como formas separadas de vida. Intelectualmente, a divisão
é combatida com o aparato completo e seguro da ideologia:
a versão individualista confronta-se com a versão coletivis-
ta; ... A tragédia foi, de maneira inevitável, moldada por essa
divisão. (WILLIAMS, 2002, p. 161)
505
Prosseguindo, Williams passa a analisar essa tomada de partido

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


por um dos polos de modo concreto e, para isso, escolhe as obras
de Liev Tolstói e D. H. Lawrence. Ele começa averiguando a inter-
pretação que Lawrence oferece da dimensão do trágico na obra de
Tolstói e. de acordo com Williams, ele retira toda a dimensão de
totalidade que a narrativa do autor russo propõe e, ao invés disso,
isola o sofrimento das personagens tão somente ao nível de numa
moralidade individual, alheia de todas as outras dimensões que
compõem suas trajetórias.
Essa separação é tão radical que, segundo Williams, termina por
configurar a mais profunda condição da tragédia em nossa época.
Diz ele:

Quando se chega a essa derradeira divisão entre sociedade e


indivíduo, no entanto, deve-se saber que a afirmação de uma
crença em qualquer uma dessas instancias é irrelevante. O
que aconteceu, de fato, foi uma perda da crença em ambas,
e essa é a nossa maneira de falar de uma perda na crença da
totalidade da experiência da vida, como homens e mulheres
podem vive-la. Essa é certamente a mais profunda e mais ca-
racterística forma de tragédia em nosso século. (WILLIAMS,
2002, p. 183)

Para o enfoque que perseguimos aqui, aquele da relação entre


forma e processo social, importa entender as razões dessa cisão da
tragédia, configuradas como escolha formal, em termos de seu diá-
logo com um processo social e histórico preciso. É aqui que o con-
ceito de estrutura de sentimento do Raymond Williams nos permi-
te esclarecer os motivos da razão da cisão e seus significados. Qual
a estrutura de sentimento predominante nas relações sociais com
as quais o campo teatral se relacionava na segunda metade do sé-
culo XX? Mas antes, vejamos melhor como Williams concebeu esse
seu conceito.
A primeira tarefa a ser empreendida na tentativa de compreen-
der essa proposição da parte do Williams consiste em apreender a
506 cisão da tragédia como uma forma artística, ou seja, a elaboração
discursiva ou performativa que cada artista concebe em termos de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

um conteúdo, uma ideia, uma temática, inevitavelmente, assume


uma modelização estética, posto que desde, pelo menos, os forma-
listas russos é assim que se convencionou distinguir o discurso ar-
tístico de outros discursos, quer dizer, a linguagem da arte decor-
re de um tratamento particular e diferenciado de seu uso corrente
e prosaico. Mesmo que continue a guardar essas características,
quando lançada no jogo da convenção artística ela assumiria tal
condição distintiva, ao menos para aqueles que participam e são
iniciados nesse mesmo jogo, ou nos diversos campos artísticos, em
uma compreensão mais aproximada do universo sociológico.
A segunda tarefa, pelo menos em uma análise que procede de
uma abordagem sociológica, diz respeito ao reconhecimento que
toda e qualquer forma artística, seja qual for, inclusive as conside-
radas mais abstratas e intimistas, ganha expressividade em meio a
relações sociais condicionadas temporal e espacialmente. Portan-
to, em termos do referencial analítico que nos propõe Raymond
Williams, toda produção artística se desenvolve em meio a uma es-
trutura de sentimento.
A terceira tarefa, talvez, consistisse em estabelecer a justa medi-
da dessa relação entre obra de arte e uma estrutura de sentimento
que lhe seja correspondente. Portanto, o trabalho de análise preci-
saria problematizar as duas dimensões constitutivas de sua intera-
ção com uma obra de arte, ou seja, seu aporte formado e aquele for-
mante. Um movimento que pode ser percebido de fora para dentro,
no primeiro caso, e outro movimento que que segue das relações
internas da obra para fora de si, no caso do segundo. Assim, no con-
ceito de estrutura de sentimento encontramos num mesmo nível
de enfoque as duas formas de abordagem tão presente nos estudos
que privilegiam as relações sociais na análise das manifestações
artísticas. Por um lado, em geral, percebemos uma ênfase no movi-
mento que prioriza as condicionantes externas que se apresentam
na feitura do processo de arte, como é o caso de Erwin Panofski,
particularmente em seu Arquitetura gótica e escolástica; por outro
lado, temos aqueles autores que procuram vislumbrar a capacidade
da obra de “suspender” e problematizar o mundo social a partir do 507
mundo interior que é configurado na própria obra, como podemos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ver em Mimesis, de Erich Auerbach.
A noção de Estrutura de Sentimento pode ser compreendida
como a ligação que há entre as alterações contidas nos produtos
culturais, a ponto de provocar modificações na sua tradição, e a
própria organização social. Para Williams todas as mudanças ocor-
ridas nos produtos culturais, na forma de estilo, tendência, corren-
te, modelo, etc. é sempre social e decorrente de respostas a mudan-
ças objetivas. As mudanças nos produtos nunca são resultantes de
uma experiência pessoal ou características de um grupo, mas de
uma forma comum de reagir ao modo de vida. A experiência é sem-
pre social e material e acontece em bloco, em conjunto, em comum.
Todos nascemos em uma Estrutura de Sentimento com a qual inte-
ragimos, seja para sua reprodução, seja para sua superação. Nesse
sentido, a análise do pós-dramático somente pode ser realizada em
articulação com os acontecimentos de seu tempo, em resposta aos
modos de vida nele impregnados.
De acordo com Cevasco, esse conceito surge na obra de Williams
para resolver um problema de ordem analítica, que era o predo-
mínio de determinadas convenções cinematográficas em períodos
específicos. Seu intuito é se afastar da fixidez de certas análises for-
malistas ou sociológicas. Diz ele que,

relacionar uma obra de arte com qualquer aspecto a totali-


dade observada pode ser, em diferentes graus, bastante pro-
dutivo; mas muitas vezes percebemos na análise que quando
se compara a obra com esses aspectos distintos, sempre so-
bra algo para que não há uma contraparte externa. Este ele-
mento é o que denominei de estrutura de sentimentos, e só
pode ser percebido através da experiência da própria obra
de arte. (WILLIAMS, apud CEVASCO, 2001, p. 152)

Raymond Williams, no seu livro Marxismo e Literatura, res-


salta que:
508
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

A análise se centraliza então nas relações entre essas insti-


tuições produzidas, formações e experiências, de modo que
agora, como naquele passado produzido, somente formas fi-
xas explícitas existem, e a presença viva se está sempre por
definição, afastando. (WILLIAMS, 1979, p. 130)

A partir desta preocupação com o distanciamento das expe-


riências vividas e sentidas no presente para a compreensão dos
dias de hoje.
A percepção desta estrutura pode ser complexa, pois reconhecer
um processo em formação é difícil, ainda mais se tratando de senti-
mentos e pensamentos. Williams cita como exemplo, a formação da
história da língua, onde se percebe em sua fase embrionária as no-
vas relações dos sentimentos pré-estabelecidos (dominantes) com
os emergentes (os novos).
O conceito de Estrutura de sentimento é importante para a total
compreensão das obras de arte e literatura, onde o conteúdo social
encontra-se presente nos vários elementos emergentes e dominan-
tes, que se interligam tornando-se evidente os laços duma geração
ou período. Pode-se perceber na estrutura de peças, romances e
filmes permeados por experiências e pensamentos históricos. Uma
das modalidades de sua presença está em traços recorrentes de
época, em convenções de gênero ou em outros dados estilístico-
-formais que definem o perfil de uma ou de um conjunto de obras.
Como observa Maria Elisa Cevasco, essa noção expressa a tentativa
de “descrever a relação dinâmica entre experiência, consciência e
linguagem, como formalizada e formante na arte, nas instituições
e tradições” (2001, p. 151). Através da compreensão do conceito
Estruturas de sentimento podemos analisar não apenas as formas
estruturadas e consagradas mas especialmente a emergência do
novo – que este sim poderá modificar as estruturas dominantes,
pois apresenta-se como uma resposta
Cevasco ainda chama a atenção para um problema importante
deste trabalho que é a leitura simplesmente formalista do artefa-
509
to literário, quando afirma que “estamos tão ‘viciados’ em análises

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


formalistas de obra de arte que é preciso lembrar que essas es-
truturas, embora dadas nas obras, não são geradas internamente”
(2001, p. 152) mas sim fruto da experiência histórica.

A percepção do interior da obra de arte pode ser vista me-


lhor: (...) nas artes e no pensamento de períodos do passado.
Quando as obras estavam sendo feitas, seus criadores mui-
tas vezes pareciam, tanto para si mesmos quanto para os
outros, estar sozinhos isolados, e serem ininteligíveis. E no
entanto, muitas vezes, quando essa estrutura de sentimen-
to tiver sido absorvida, são as conexões, as correspondên-
cias, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam
à vista. O que era então uma estrutura vivida, é agora uma
estrutura registrada, que pode ser examinada, identificada e
até generalizada. Em nosso próprio tempo, antes que isso
aconteça, é provável que aqueles para quem a nova estrutura
é mais acessível, ou em cujas obras ela está se formando de
maneira mais clara, percebam sua experiência como única:
como o que os isola das outras pessoas, ainda que o que os
isolem sejam de fato as formações herda das e as convenções
e instituições que não mais exprimem e satisfazem os aspec-
tos mais essenciais de suas vidas (...) O que isso significa na
prática é a criação de novas convenções e de novas formas.
(WILLIAMS, 1979, p. 135)

Essas estruturas, embora dadas nas obras, não são constituídas


internamente. Ao contrário, como já foi dito, são estruturações de
uma dada experiência histórica. Nesse sentido, trata-se da descri-
ção da existência de aspectos assemelhados em muitas obras de
arte do mesmo momento sócio-histórico que não têm possibilida-
des de serem descritos somente como formas ou como expressões
diretas do mundo real.
Para Williams, a totalidade social é conformada pela disputa en-
tre as várias estruturas de sentimento. Um grupo social pode fazer
com que sua estrutura de sentimento possa tornar-se preponde-
rante em relação aos demais grupos sociais, entretanto, isso não
significa que outros grupos subalternos não possam experimentar
a constituição de uma estrutura de sentimento própria. Williams
510
sustenta, ainda, que essa estrutura não se esgota na interioridade:
aflora igualmente nos produtos culturais de uma dada época e dei-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

xa a sua marca indelével nos modelos e padrões que nela são va-
lorizados. O simples trajar, os hábitos e as atitudes, os edifícios, os
artefatos, a língua e os textos em que um período histórico se mate-
rializa estão impregnados de tal sentimento. Os resíduos materiais
da estrutura de sentimento permanecem incrustados nas obras de
arte e literárias, objetos privilegiados para a análise da cultura de
um dado período. Não obstante, como admite o próprio autor, ao
observador distante no tempo não é facultada senão uma visão im-
precisa, permeada de lacunas, dessa estrutura. Williams considera-
ra três níveis distintos de cultura - a vivida, a registrada e a seletiva
- que explicavam, em grande medida, uma tal limitação. Somente
a experiência imediata permite apreender o “resultado vivo de to-
dos os elementos da organização geral”(WILLIAMS, 1979, p. 43),
enquanto que os registros de uma determinada cultura constituem
dela um mero resquício.
Assim, o conceito de estrutura de sentimento apresenta uma im-
portante contribuição aos estudos sociológicos da literatura, justa-
mente por perseguir a identificação do substrato social que inte-
rage com as formas estilísticas de cada período histórico ou cada
autor, conformando-os em uma experiência comum.
Resta-nos, portanto, entender o capítulo que trata da cisão da
tragédia em sua estrutura de sentimento específica e, com isso, as-
sim esperamos, compreender o seu “lugar” analítico ao tempo em
que emerge o pós-dramático.
Nesse sentido, o pós-dramático é a forma teatral nascida daque-
la cisão do trágico e, dessa forma, ele faz emergir, na condição de
forma performativa, uma estrutura de sentimento que privilegia a
dimensão pessoal da tragédia, em um período no qual as apostas
coletivas começam a dar sinais de franco declínio. Mas, por outro
âmbito, Williams percebe que essas experiências teatrais podem se
constituir em sementes de esperança, na possibilidade de fazer rea-
tar as duas dimensões e conformar a totalidade da experiência da
vida humana; mesmo que ainda demonstrem pouca capacidade de 511
seguir nessa direção. Williams chega a dizer que, por enquanto, são

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


sintomas de um profundo desespero.
Raymond Williams chega a enfrentar o desafio dessas duas di-
mensões presentes nas práticas teatrais contemporâneas, que aqui
estamos assumindo como pós-dramático, não custa relembrar.
Primeiramente, no prefácio à edição de 1979 de Tragédia mo-
derna, ele procede a uma genealogia dessa separação da condição
trágica. Ela começa com Ibsen, passa por Strindberg e assume um
patamar agudo em Tcheckhov, que, mesmo que matéria recorrente
de seu drama seja a existência de um grupo, o contorno é sempre
negativo.

O drama de Tcheckov é, fundamentalmente, o drama de um


grupo negativo, e é aqui, em nosso próprio tempo, que po-
demos ver de modo mais claro as conexões básicas entre
a forma da história e a forma dramática. Isso implica uma
mutação básica da tragédia, uma vez que o evento trágico
não mais é o de qualquer um dos tipos anteriores, e seu de-
senvolvimento não mais retorna seja para o mundo público,
seja para o sentimento privado. O fato e a fonte da tragédia
são agora, essencialmente a inabilidade para comunicar-se.
(WILLIAMS, 2011, p. 101-102)

E parece enxergar no teatro de autores como Beckett e Sartre


o grande desfecho presente naqueles dramaturgos inicialmente
discutidos. Essas propostas derivam de uma capacidade aguda e
refinada de seus criadores em dar forma a esse entorno aterrador
que cerca a atividade teatral. Mas Williams, justamente por isso,
não deixa de comentá-los em modo crítico, em duas maneiras: seja
porque tusso isso termina por erigir um lugar-comum no teatro,
seja porque, ao endossar tão somente essa condição incapacitante
diante da tragédia, deságua em um inconformismo improducente e,
assim, não consegue fazer florescer a dimensão ativa de uma estru-
tura de sentimento, que carrega recursos de esperança e transfor-
mação. Por isso, essas experiências teatrais:

512
Repousando inerte no que se tornou um lugar-comum, to-
mando, com uma indolência fácil, os traumas passageiros
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de fracassos específicos, ela tanto reflete como constrói um


modelo social que é o fim último da esperança; pois se não
podemos, sob quaisquer condições, falar ou tentar falar de
forma plena um com o outro, este é o fim real. E este, à frente
do que é amiúde sua luz ou sua superfície, é seu sentido como
uma forma trágica... pois, com sua linguagem deliberadamen-
te dissipadora e com seu repertorio teatral bastante desen-
volvido e com frequência dominantes dos gestos do fracasso
e de afastamento, ela não pode rastrear uma ação até seu
motivo ou consequência. (WILLIAMS, 2011, p. 103)

E na, sequência, arremata de modo bastante forte:

É com frequência dito, em uma defesa deslocada dessa forma,


que sua função como um grupo negativo, sua comunicação
radical dos limites da comunicação, é uma condição autêntica
da sociedade do capitalismo tardio ou da sociedade burguesa.
Mas o que também deve ser dito é que se trata de uma condição
confiável de permanência indefinida justamente nessa sociedade.
Não se trata gora do fim desesperado da esperança, mas de seu
fim retorcido. O sentido da tragédia, que já havia se inseri-
do na corrente sanguínea, agora penetra em todo o sistema
neural, onde pode-se até mesmo jogar com ele, amiúde com
sua complexidade espantosa. E esse último evento é a chave
para seu lugar na estrutura de sentimento de nosso período.
(WILLIAMS, 2011, p. 103)

Da mesma forma que delineia com assombro essa presença da


perda de sentido do coletivo em toda uma tradição dramatúrgica,
Williams, ainda que não nomeie, parece notar que algumas dessas
tentativas fragmentárias e que insistem no pessoal e no corporal
poderiam carregar consigo alguma possibilidade utópica. Para que
isso seja possível, Williams afirma que é preciso enfrentar as con-
dições históricas dadas com firmeza e sem contemporizações. Do
contrário, somente resta impasse e paralisia que, segundo ele, “as
formas do impasse e, muito mais frequentemente as de paralisia,
são hoje praticadas com intensidade” (WILLIAMS, 2011, p. 106).
Por fim, qual é mesmo o lugar daquele capítulo Tragédia social e 513
pessoal? Pelo que pudemos ver, através do confronto das questões

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


presentes no texto e o momento no qual ele é produzido e publica-
do, nos parece que Raymond Williams, a partir da discussão sobre
a severa divisão com que a tragédia é formalizada nos textos dra-
máticos, quer figurar toda a tendência que ganha adensamento no
teatro do século XX e que se encaminhará para um espaço cada vez
maior da dimensão da dimensão pessoal. A tragédia é o mote para
se inserir neste debate, que compõe todo o campo teatral em seu
fazer, mas também em sua elaboração teórica.
Com isso, necessitamos dizer algo a respeito de duas questões
centrais do pós-dramático e que estão presentes no capítulo aqui
em questão: Texto e totalidade.
Entendemos que o teatro não pode ser resumido ao texto dra-
mático. Isso, boa parte da experiência teatral mais recente vem
demonstrando, como também a teoria teatral que a procura acom-
panhar. Entretanto, constatar essa condição guarda uma diferença
com o completo abandono do drama. Essa parece uma compreen-
são que não é compartilhada pelo próprio Lehmsnn, pois em traba-
lho recente ele mesmo afirma que, na verdade, nunca pensou que o
texto fosse por completo relegado. Tarefa talvez impossível. O que
acabamos implementando é uma abertura a outros elementos que
cada vez mais passam a ser constitutivos do fazer teatral na mesma
condição que o texto.
Por isso, compreendemos que Williams, ao trazer uma discussão
sobre a tragédia a partir de textos narrativos, quando a experiência
teatral já começava a questionar a primazia do texto, está querendo
matizar justamente esse abandono total, pois poderíamos cair em
outros absolutos e, desse modo, perder as possibilidades de abertu-
ra e experimentação que essas práticas começam a ensaiar.
O abandono de narrativas substantivas que guiaram boa parte
do projeto de modernidade e foram absorvidas pela elaboração
teatral, fosse o texto dramático, fosse uma peça em execução, sem
a capacidade de que nossas experiências ocorrem por relações e
não apenas no âmbito exclusivamente privado e pessoal. Insistir no
514 risco dessa separação é pender para um dos lados, o que, segundo
Williams é limitante, pois sempre impedira essa condição de totali-
dade da experiência humana. Totalidade é, para Williams, o espaço
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

das relações nas quais as mediações ocorrem.


Acreditamos que com essas proposições aquele capítulo supos-
tamente estranho adquire um lugar adequado e coerente na esfera
da cidadania da teoria do teatro.

Considerações Finais

O argumento que aqui foi apresentado, o de que o capítulo do


livro Tragédia Moderna que trata da experiência do trágico na obra
de Tolstói e D. H. Lawrence não é desprovido de sentido naquela
reunião de estudos sobre o drama, mas que, ao contrário, recobre
todo um sentido quando relacionado ao seu contexto de veiculação,
certamente não se encontra na própria obra de Raymond Williams.
Trata-se de um exercício interpretativo de nossa parte.
O que fizemos foi utilizar o mesmo método de análise de Williams
para fazer render em termos analíticos um exemplar de sua pró-
pria produção. Nesse sentido, o exercício de análise consistiu em
confrontar as questões de que trata o referido capítulo com a es-
trutura de sentimento específica àquele momento. Porquanto, en-
contramos uma afinidade entre o desmanche da tragédia em duas
partes que parecem não se encontrar –o social e o pessoal- com
a emergência de formas teatrais que privilegiam o fragmentário
como componente constituinte de sua expressividade.
Com isso, acreditamos que esse texto do Williams pode ser to-
mado como importante reflexão acerca dos dilemas que o campo
teatral passava a vivenciar de modo mais incisivo a partir dos anos
1960. A discussão que é levada a cabo a respeito da tragédia, quan-
do tomada de forma mais ampla e, a partir do cenário vivenciado,
nos permite, acreditamos, pensar as questões do teatro de forma
mais ampla e que, daquele período em diante, vão se adensar na
experiência do pós-dramático. Por isso, o capítulo não seria des-
locado, mas teria um lugar preciso, que seria o de participar nas
515
discussões pertinentes a essas mesmas transformações.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Desnecessário dizer que não se trata de uma postulação pela in-
viabilidade do pós-dramático, nem de nossa parte, nem da parte
de Williams. Ora, os processos sociais e artísticos resultam de seus
próprios desdobramentos e desafios, não cabendo à teoria o papel
de tutela sobre eles. A intenção é sempre no sentido da problema-
tização desses fenômenos, enquanto produções permeadas de sen-
tido histórico e social.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2006.

CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. São Paulo: Unesp, 1997.

CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo:


Paz e Terra, 2001.
COSTA, Iná Camargo. Tragédia no século XXI. In: WILLIAMS,
Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-dramático, doze anos de-


pois. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre,
v. 3, n. 3, p. 859-878, set./dez. 2013. Disponível em: https://
www.seer.ufrgs.br/presenca/article/view/39703. Acesso
em: 02 out 2021.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Co-


sac Naify, 2007.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva,


1999.
516
SCHWARZ, Roberto. A nota específica. In: ______. Sequências
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

WILLIAMS, Raymond. Posfácio para Tragédia moderna.


In:______. Política do modernismo. São Paulo: Unesp, 2011.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac


Naify, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro:


Zahar, 1979.

RESUMO
Estudiosos e leitores de Raymond Williams recordam que
em Tragédia Moderna há um capítulo que parece destoar do
conjunto da obra, visto que, neste livro, o autor está preocu-
pado com as soluções estéticas que o drama vai constituindo
desde a relação entre forma e processos sociais. Trata-se do
capítulo “Tragédia social e pessoal: Tolstói e Lawrence”, ou
seja, Williams insere uma apreciação sobre dois narradores
em um livro que cuida do drama; portanto, um estudo fora
de lugar. Nesse sentido, esse trabalho tem por finalidade pro-
blematizar o percurso traçado por Williams em sua tentativa
de compreender como o drama foi respondendo às transfor-
mações históricas contidas no processo de modernização ca-
pitalista e quais seriam, a partir da virada brechtiana em sua
produção teórica sobre o drama, as propostas mais agudas de
radicalização e crítica desse mesmo processo sócio-histórico.
A leitura que nos propomos empreender, do texto acerca da
tragédia em Tolstói e Lawrence, desconfia que a inserção des-
se estudo em um livro sobre teatro consiste em recurso de-
monstrativo de Williams acerca de seu empenho em oferecer
uma reflexão sobre as transformações e ampliações do fazer
teatral na contemporaneidade. Ao problematizar o significa-
do dessa intromissão, a partir de sua localização no conjunto 517
da produção de Williams acerca do drama, acreditamos poder

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


situar sua obra no debate que o campo teatral empreendia
àquela quadra do século XX em torno das possibilidades da
cena, mas também, o quanto suas elaborações críticas a res-
peito da cisão entre drama e cena e da excessiva autonomia do
primeiro termo em relação ao segundo, de alguma maneira,
já vislumbrava a centralidade que a noção de pós-dramático
viria assumir na teoria teatral de nosso tempo.
Palavras-chave: Raymond Williams, Campo Teatral, Sociolo-
gia do Drama, Cena, Pós-Dramático.

ABSTRACT
Scholars and readers of Raymond Williams recall that in Modern
Tragedy there is a chapter that seems to be detached from the
work as a whole since, in this book, the author is concerned
with the aesthetic solutions that drama is constituting since
the relationship between form and social processes. It is
about the chapter “Social and Personal Tragedy: Tolstoy and
Lawrence”, that is, Williams inserts an appreciation about
two narrators in a book about drama; therefore, a study out of
place. In this sense, this work aims to problematize the path
drawn by Williams in his attempt to understand how drama
was responding to the historical transformations contained
in the process of capitalist modernization and what would
be, from the Brechtian turn in his theoretical production
on drama, the most acute proposals of radicalization and
criticism of this same socio-historical process. The reading
that we propose to undertake, of the text about the tragedy in
Tolstoy and Lawrence, suspects that the insertion of this study
in a book on theater consists of a demonstrative resource of
Williams about his commitment to offer a reflection on the
transformations and enlargements of theatrical activity in
contemporaneity. By problematizing the meaning of this
interference, from its location in Williams’ production of
518 drama as a whole, we believe we can situate his work in the
debate that the theatrical field undertook in that quarter of
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

the twentieth century around the possibilities of the scene,


but also, how much his critical elaborations regarding the
split between drama and scene and the excessive autonomy
of the first term in relation to the second, in some way, already
glimpsed the centrality that the notion of post-dramatic would
come to assume in the theatrical theory of our time.
Keywords: Raymond Williams, Theatrical Field, Sociology of
the Drama, Scene, Post-Dramatic.

SOBRE O AUTOR
Doutor em Sociologia e Mestre em Ciência Política pela Uni-
versidade Federal de Pernambuco. Licenciado em Filosofia
pela Universidade Católica de Pernambuco. É professor na
Escola de Educação e Humanidades da Unicap, onde integra
o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Tra-
balha com Sociologia da Cultura, Sociologia da Literatura e
Sociologia da Religião.
III
Raymond Williams:
Diálogos
RADICALISMOS EM DEBATE:
UMA SOCIOLOGIA DOS INTELECTUAIS
A PARTIR DE RAYMOND WILLIAMS
E ANTONIO CANDIDO

Enio Passiani 1

I.

Comparar Raymond Williams e Antonio Candido não consiste, 521


exatamente, em uma tarefa nova. Maria Elisa Cevasco (2004) e Ale-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


xandro Henrique Paixão (2015), por exemplo, não deixam de de-
monstrar várias semelhanças entre ambos e o quanto pode ser pro-
fícuo estabelecer o diálogo entre esses dois críticos da literatura e
da cultura tão criativos e inquietos.
Com o intuito de aclarar as diferenças entre a minha proposta e
a dos/as autores/as acima citados, acredito que não custa retomar
seus argumentos, ainda que sinteticamente.
Maria Elisa Cevasco pontua várias semelhanças entre Candido e
Williams, a começar pelo “[...] estímulo da realidade sociocultural
que, estruturada internacionalmente, afeta os dois países [Brasil e
Inglaterra, respectivamente]” (CEVASCO, 2004, p. 136). A autora nos
lembra que a formação do Brasil se dá em relação ao espaço intraeu-
ropeu, ou seja, a formação do Brasil não se dá à revelia da Europa,
mas em relação a ela a partir da colonização, i.e., Brasil e Inglater-
ra participavam do mesmo sistema colonial, de modos distintos, é
1
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Departamento
e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). E-mail: eniopassiani@gmail.com. Link para Currículo Lattes: https://lattes.
cnpq.br/3396333225250833 Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9937-4413
verdade. Noutros termos, embora espaços diversos, argumenta Ce-
vasco, Brasil e Inglaterra constituíam (e ainda constituem) espaços
da mesma ordem, uma vez que os dois países são comandados pela
dinâmica abrangente do capital, ainda que desempenhando papéis
diversos: um, o de colônia de exploração, para lembrar o consagra-
do conceito de Caio Prado Júnior, o outro de Império colonial; e no
passado mais recente e tempo presente, um o de nação capitalista
periférica, o outro de nação capitalista mais central – Cevasco não
abandona a perspectiva de uma dialética entre o interno e o exter-
no para interpretar e compreender o Brasil, assim como esforçou-
-se Antonio Candido ao estudar a formação da literatura brasileira.
Mas as semelhanças, segundo Cevasco, não param por aí: am-
bos teriam elaborado métodos críticos originais que contribuíram
efetivamente para uma teoria crítica da esquerda contemporânea;
em ambos presenciamos o “amálgama criativo” entre sociologia e
522
literatura 2; os dois se dedicaram à prática profissional do ensino
e da crítica literária; tanto Candido quanto Williams participaram
de grupos intelectuais que se mostraram cruciais para a sua for-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

mação intelectual, como o Grupo Clima para o primeiro e a New


Left Review para o segundo 3; ambos elaboram métodos de análise
e interpretação que se recusam a tomar e tratar os textos literá-
rios como documentos ou meros reflexos da realidade, concedendo
importância à forma sem recair em formalismos, mas encarando-a
numa relação dialética com o contexto social.
2
Entretanto, enquanto Antonio Candido faz questão de demonstrar seu distanciamen-
to em relação à sociologia para fincar os pés firmemente na crítica literária (JACKSON,
2002; WAIZBORT, 2007), sem nunca dela se desvencilhar completamente (RAMASSOTE,
2008), Williams, como procurei demonstrar alhures, ao longo de sua carreira toma cami-
nho inverso e vai se aproximando cada vez mais da sociologia, a ponto de elaborar uma
sociologia bastante peculiar e própria que chamei de “sociologia das formas discursivas”
(PASSIANI, 2020).
3
De acordo com Cevasco (2004, p. 138-140), esses dois grupos, o Clima e a New Left, em
seus respectivos contextos, demonstraram autonomia intelectual e buscavam se afastar
das posições hegemônicas do estalinismo e do trotskismo, assim como dos partidos co-
munistas de seus países. A prática autônoma de ambos os grupos, sugere Cevasco, com
razão a meu ver, teria contribuído para que Candido e Williams desenvolvessem aborda-
gens tão heterodoxas sem trair os fundamentos do socialismo, mas, ao contrário, atuali-
zando-os de acordo com as mudanças históricas. No plano político, é como se ambos se
empenhassem em desenvolver um “socialismo independente”; e, no mesmo compasso,
no plano do pensamento Candido e Williams desenvolveram críticas literárias e culturais
nada convencionais.
A partir das inúmeras semelhanças entre Candido e Williams
apresentadas por Cevasco, deduz-se que as possibilidades de diá-
logo entre os autores são muitas e variadas, que, inclusive, extrapo-
lam aquelas sugeridas pela própria Cevasco, como revela Alexandro
Henrique Paixão em comunicação apresentada em 2015 durante o
Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia realizado em Porto
Alegre.
Enquanto Cevasco desenvolve uma perspectiva mais panorâmi-
ca, mais geral ao comparar os críticos brasileiro e galês-inglês, Pai-
xão ajusta o foco do seu olhar sociológico e aplica um zoom sobre
uma questão mais específica que também aproxima os autores ob-
jeto de nossa discussão: a formação do público leitor no Brasil e na
Inglaterra.
Embora a produção literária de ambos os países fosse ampla,
escreve Paixão (2015), os seus públicos leitores eram restritos,
limitados às classes altas e os estratos mais elevados das classes 523
médias. Nesse sentido, Candido e Williams insistem igualmente na

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


necessidade (e mesmo importância) de ampliar a socialização da
cultura – e, por conseguinte, da própria literatura:

Ambos, portanto, se valeram da produção romântica nacio-


nal dos seus países para pensar os nexos estruturais entre
literatura e vida social, sendo o público (ou a falta dele no
passado) um problema central, haja vista que em ambos os
espaços nacionais (guardadas as proporções) a questão da
estratificação social (elites, grupos sociais, classes sociais) e
problemas com a educação (analfabetismo, falta de escolas,
educação privada etc.) eram marcantes, dando a impressão
de que a literatura então existente era somente cultivada pe-
los círculos dirigentes de ambos os países, gestada no seio
da família patriarcal (Brasil) ou da família burguesa (Ingla-
terra), configurando uma espécie de esfera privada literária.
(PAIXÃO, 2015, p. 9)

Diante de tal cenário histórico, os diagnósticos de Candido e de


Williams não são tão diferentes assim: no caso do Brasil, um pú-
blico restrito implicava uma produção literária igualmente restri-
ta, constituindo, pois, um fator de atraso cultural para Candido,
aponta Paixão; no caso inglês, segundo Williams, escreve o autor,
a alfabetização não foi suficiente para superar um gosto literário
duvidoso – Alexandro Paixão (2015) nos lembra que Williams não
pretende reproduzir as hierarquias entre as literaturas erudita e
popular ou insistir na manutenção de um cânone indiscutível, uma
vez que o argumento central de Williams é o de que faltava à “li-
teratura efêmera” os elementos humanizadores, como a beleza, o
humor, a ética, a profundidade das emoções e o estímulo à reflexão
(PAIXÃO, 2015, p. 11). O que aproxima Candido e Williams, portan-
to, segundo Paixão, é a ênfase que ambos depositam na importância
da ampliação do acesso a uma literatura de qualidade. Em suma:
ambos apostam suas fichas na democratização literária, uma vez
que, para o primeiro, a literatura consiste num direito e, para o se-
gundo, num “bem humanizador” – sendo que a dimensão humani-
zadora da literatura é igualmente destacada por Antonio Candido.
524 É como se ambos os autores nos alertassem de quem sem a demo-
cratização dos bens culturais – no caso, aqui, tratam-se dos textos
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

literários – não haveria cidadania possível.


Embora Cevasco (2004) e Paixão (2015) adotem caminhos dis-
tintos em suas abordagens – Cevasco pontua várias semelhanças
entre os autores, ao passo que Paixão (2015) se debruça sobre um
aspecto mais particular, a saber, tratar o público leitor como cate-
goria analítica, como ferramenta de interpretação da realidade so-
cial -, arrisco afirmar que a perspectiva de ambos, ou talvez fosse
melhor dizer que sua mirada, guarda semelhanças, seja porque
observamos que as duas abordagens insistem na dialética inter-
no-externo, aproximando os casos brasileiro e inglês a despeito de
suas diferenças, já que a consolidação do sistema literário dos dois
países enfrentava problemas devido a uma distribuição desigual de
bens culturais; seja porque Cevasco e Paixão não deixam de realçar
os liames entre vida social e literatura
De minha parte, pretendo refazer o diálogo entre Candido e
Williams adotando uma outra rota e argumentar que tanto o crítico
britânico quanto o brasileiro nos oferecem uma instigante socio-
logia dos intelectuais em textos como O círculo de Bloomsbury, de
Raymond Williams, e Radicalismos e Radicais de ocasião, de Anto-
nio Candido. Entabular uma “conversa” entre os autores a partir
de tais textos implica descortinar outras semelhanças entre eles,
mas igualmente uma certa dissonância. No entanto, é bom frisar
que compartilho a mesma posição de Cevasco e de Paixão segundo
a qual Candido e Williams permitem-nos compreender crises
culturais, que constituem problemas estruturais, de seus respecti-
vos países.

II.

Para tentar dar conta das diferenças entre os autores, me limita-


rei aqui a propor duas hipóteses para reflexões futuras ao invés de
explicações mais ou menos definitivas. Para tanto, como já revelei,
pretendo, ao comparar alguns textos de Williams e Candido, argu- 525
mentar que é possível formular uma sociologia dos intelectuais to-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


mando ambos como referência.
Em Radicais de ocasião, Candido (1978; 2007) define o “radical”
como o tipo oposto ao do “revolucionário” (VECCHI, 2018). Este,
o “revolucionário profissional”, corresponde ao militante “inteira-
mente consagrado à atividade política”, que deve adesão completa à
organização partidária, uma “obediência sem reservas” (CANDIDO,
1978, p. 193; CANDIDO, 2007, p. 77). A esses homens o nosso tem-
po deve, escreve Candido, suas realizações mais espantosas, “tan-
to as redentoras quanto as atrozes” (idem, ibidem; idem ibidem).
Já aquele, o radical, é ser de outra estirpe, um tipo completamente
oposto, mas igualmente interessante: “homem sem qualquer com-
promisso com a revolução” (Idem, ibidem; idem, ibidem), às vezes
até contrário a ela, mas que, todavia, em algum momento da vida
pode ter feito alguma coisa por tal revolução: “uma palavra, um ato,
um artigo, uma contribuição, uma assinatura”.
Justamente por isso, argumenta Candido, torna-se “(...) atraente
investigar os atos discordantes dos conformistas, os escritos radi-
cais dos conservadores, as lutas passageiras dos apáticos” (Idem,
ibidem; idem; ibidem). Figura exemplar desse “radical de ocasião”
foi João do Rio (CANDIDO, 1978; CANDIDO, 2007). Por meio de sua
crônica, expressão de uma “revolta humanitária” do autor, João do
Rio revelou-se, em vários momentos, um “observador da miséria”;
denunciando a sociedade carioca do período com um senso de
justiça, exibindo “a ferida escondida pela ostentação” (CANDIDO,
1978, p. 198; CANDIDO, 2007, p. 83). Mesmo indignado, João do Rio
não se tornou propriamente um anarquista ou um socialista.
Dez anos depois, em 1988, num artigo intitulado Radicalismos,
Antonio Candido volta ao tema do pensamento radical no Brasil,
realçando, digamos, os aspectos contraditórios de tal pensamento.
De acordo com Candido, o pensamento radical se origina na clas-
se média e nos setores esclarecidos das classes dominantes, não
constituindo um pensamento revolucionário. O radical, por conta
de suas raízes sociais, identifica-se apenas parcialmente aos inte-
526 resses específicos das classes trabalhadoras, que são o seguimento
social potencialmente revolucionário (CANDIDO, 1988). Se o pensa-
mento radical não é revolucionário, por um lado, por outro é capaz
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de apresentar um “fermento transformador”, apresentando o seu


caráter ambíguo, o que, ainda assim, num país como o Brasil, subli-
nha Candido, não é pouco. Pois o radical serve à causa das transfor-
mações viáveis em sociedades como a nossa. O pensamento radical
talvez seja a única atitude transformadora possível numa sociedade
estruturada social, econômica e racialmente como a brasileira, em
que as classes dominantes e os grupos economicamente mais bem
posicionados tendem ao conservadorismo e à atitude aristocrática.
Para Antonio Candido, “os radicalismos de cada país podem ser a
condição de êxito do pensamento revolucionário” (1988, p. 5), ou
seja, o pensamento radical pode servir de fermento ao revolucioná-
rio. De todo modo, a despeito de seus limites, o pensamento radical
implicaria, nesse sentido, o descolamento em relação ao establish-
ment, a ensejar possibilidades concretas de transformação.
Se no artigo de 1978 o argumento era ilustrado a partir de João
do Rio, em Radicalismos Candido toma Joaquim Nabuco, Manoel
Bomfim e Sergio Buarque de Holanda como modelos de pensamen-
to radical, cobrindo um período que vai do movimento abolicionis-
ta até o golpe de Estado em 1937.
Para Nabuco, segundo Candido (1988), todo o processo de liber-
tação dos escravos deveria ser regido pela harmonização, pela re-
conciliação entre oprimidos e opressores, vislumbrando, assim, uma
“sociedade integrada”, em que as tensões e os conflitos encontrassem
algum tipo de acomodação e, portanto, de arrefecimento. Nabuco se-
ria o exemplo de “radical temporário” (CANDIDO, 1988, p. 9).
Já Bomfim era um “radical permanente” (Idem, p. 10), compro-
metido a denunciar sem trégua o parasitismo dos países coloni-
zadores sobre os colonizados e das classes dominantes sobre as
dominadas. Tal parasitismo, apontava Bomfim, afetava a ética do
trabalho e colocava os dominados a serviço dos dominantes por
meio da exploração do trabalho e do voto. Nossa herança colonial,
segundo Manoel Bomfim, destaca Candido (Idem, p, 13-14), consis-
te num “conservantismo essencial” que reduz a ideia de progres- 527
so professada pelas classes dirigentes a um artifício retórico, uma

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


vez que conserva a submissão da classe trabalhadora e restringe os
efeitos do próprio desenvolvimento. Bomfim afirmava que o pro-
cesso de exploração econômica poderia ser tão brutal a ponto de
destruir o explorado, o que já teria ocorrido, como demonstrava ser
o caso da escravidão. Outra consequência dramática de tal processo
exploratório era o fato de o explorado ser constrangido a assegurar
a sobrevivência do explorador, “[...] não apenas cedendo-lhe o fruto
do seu trabalho, mas defendendo-o e apoiando-o, como capanga,
soldado ou eleitor, quando liberto” (CANDIDO, 1988, p. 13).
Sergio Buarque de Holanda (SBH) seria, pelas balizas de Candi-
do, provavelmente o mais radical entre os três, posto que entre as
alternativas entre um governo autoritário de elite e um governo po-
pular para implementar as transformações necessárias a partir da
abolição, Holanda optava por este último, um governo popular. No
momento que vinha à lume Raízes do Brasil, em 1936, havia uma
valorização dos “regimes de força”, que mostravam, supostamente,
uma firmeza que faltava aos regimes democráticos para conduzir os
processos de mudança necessários. Num cenário assim tão perigo-
so o fascismo, e sua versão brasileira encarnada pelo integralismo,
se apresentava como essa espécie de “solução nacional transfor-
madora”, constituindo-se, na verdade, numa “[...] forma de manter
o passado em termos de pensamento pequeno-burguês” (Idem, p.
18). SBH, atesta Candido, teria se colocado no polo oposto, negan-
do quaisquer alternativas de solução autoritária; o avanço político
para SBH, segundo leitura de Antonio Candido, significava atender
às reivindicações populares por intermédio de um regime no qual o
“próprio povo tomasse as rédeas”. Se, até aquele momento, a supos-
ta “atividade esclarecida das elites conscientes do seu papel social”
constituía a solução dos problemas nacionais, uma vez que seu pa-
pel era educar “o povo”, SBH representava o “o primeiro intelectual
brasileiro de peso que fez uma franca opção pelo povo no terreno
político” (idem, ibidem), atesta Candido, rompendo, dessa forma, a
tradição elitista de nosso pensamento social.
Raymond Williams, por sua vez, em O Círculo de Bloomsbury, não
528
deixa de abordar, assim como Candido - cada qual em seu respecti-
vo contexto social e histórico, evidentemente -, um grupo de inte-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

lectuais ingleses/as radicais.


O Círculo Bloomsbury era formado por pessoas que se conhe-
ceram quase todas elas em Cambridge, reunindo em seu interior
figuras como Virgínia Woolf, E.M. Forster, John Maynard Keynes,
James Strachey, entre outros. Os próprios participantes se defi-
niam como nada além de um grupo de amigos reunidos por laços
de afeto que se distribuíam entre o amor e a amizade. No entanto,
para Williams, a questão sociológica, aquela que de fato interessa,
é saber como essas “estruturas de sentimentos” se originavam em
formações culturais e sociais mais abrangentes. Estabelecer os elos
entre os pertencimentos e posições de classe e os vínculos afetivos
era o desafio teórico e metodológico para Williams. Se boa parte de
seus membros abraçou questões políticas importantes, criticando
agudamente os setores mais conservadores da sociedade inglesa,
inclusive os burgueses 4, estrato do qual se originara a maior parte
4
Os/As participantes do Bloomsbury Fraction afrontaram instituições tradicionais como
a Igreja e o Exército, apoiaram reformas sociais, participaram de maneira ativa de movi-
mentos a favor da ampliação de direitos e propuseram reformas sociais a favor dos po-
dos seus membros, por outro lado toda essa ação política não vi-
sava ultrapassar o regime burguês, revolucioná-lo, mas atualizá-lo
visando a sua preservação. Essa fração da classe dominante não
representou uma fratura radical em seu interior, mas sua continui-
dade em novos termos, “[...] o meio para o estágio seguinte neces-
sário de desenvolvimento de sua própria classe” (WILLIAMS, 2011,
p. 216). Tratava-se, nos termos de Williams, de uma revolta contra
a classe, mas para a classe, que permitiu sua continuidade no poder
a partir do exercício de sua hegemonia.
Assim como Candido, Williams também observa a gênese de um
pensamento radical no seio dos grupos sociais dominantes que
contém um viés humanitário, mas que dificilmente ultrapassa os
limites de seu pertencimento de classe, abortando qualquer possi-
bilidade autenticamente revolucionária, que subvertesse as estru-
turas sociais. Deparamo-nos aí, a meu ver, com um ponto de conver-
gência entre os autores, mas igualmente com uma diferença.
529

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


III.

Creio ser possível observar certas semelhanças entre os argu-


mentos desenvolvidos por Candido em Radicais de ocasião e a abor-
dagem de Williams em O círculo de Bloomsbury: ambos nutrem uma
certa desconfiança quanto ao pensamento radical e aos intelectuais
que o desenvolvem e o encarnam. Os limites desse tipo de pensa-
mento e a ação que pode motivar são definidos, em boa medida,
pela origem de classe dos intelectuais e, consequentemente, pelo
universo moral que compartilham. As conclusões a que chegam
Candido e Williams, aqui, são muito semelhantes a meu ver.
Contudo, a posição de Candido em Radicalismos apresenta uma
novidade em relação a Radicais de ocasião que o distancia, em algu-
ma medida, de Williams.

bres. Para dar dois exemplos: Virgínia Woolf empenhou-se energicamente nos incipientes
movimentos feministas ingleses e seu parceiro, Leonard Woolf, envolveu-se com a Liga
das Nações, com o Movimento das Cooperativas, com o Partido Trabalhista e, ainda, em
questões anti-imperialistas (PASSIANI, 2018, p. 25-26).
Tal diferença na abordagem do tema, como bem aponta Roberto
Vecchi (2018) em texto publicado numa coletânea em homenagem
a Antonio Candido, não significa que o artigo de Candido de 1988
negue o de dez anos antes, mas, sim, que há uma complementari-
dade entre eles. Ainda que Candido afirme, em 1988, que o pensa-
mento radical não representa os interesses das classes dominadas
e por isso se incline com frequência à “harmonização e à concilia-
ção” (CANDIDO, 1988, p. 4-5), ao mesmo tempo enfatiza o caráter
contraditório, ambíguo do intelectual radical, que não deixava de
apresentar uma visão não aristocrática do Brasil (PACHECO, 2018,
p. 110). Como aponta Ana Paula Pacheco (2018), o radicalismo
pode constituir tanto o êxito do pensamento revolucionário quanto
tender à conservação, mas, de todo modo, as “duas cabeças” são
necessárias num contexto como o brasileiro. Nesse sentido, o radi-
cal de classe média é, “[...] no mínimo, uma contradição produzida
por dias melhores” (PACHECO, 2018, p. 112-113). Em suma, se em
530 Radicais de ocasião (1978) Antonio Candido define o “radical” como
o tipo oposto do revolucionário em virtude do “conservadorismo
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

insensível e desumano das elites”, em Radicalismos (1988) Candido


realça a posição ação transformadora do radical, transformando-se
no “agente do possível mais avançado” (VECCHI, 2018, p. 135-137).
É a ênfase nesta contradição que aproxima os textos de Candido,
mas que falta em O Círculo de Bloomsbury, de Williams. Ou numa
formulação provavelmente mais adequada em termos sociológi-
cos: tanto Williams quanto Candido acentuam as contradições do
pensamento radical das classes mais favorecidas, no entanto, o pri-
meiro sublinha a importância desses intelectuais na renovação da
dominação, enquanto o segundo, pelo menos em Radicalismos, ar-
gumenta que a contradição pode ensejar transformações profundas
no corpo social; como já esclareci mais acima, reside no pensamen-
to radical a centelha que poderia, futuramente, inflamar e produzir
o pensamento revolucionário.
Cada autor, portanto, destaca um aspecto da contradição. Como
explicar essa diferença? Não pretendo apresentar uma resposta
mais bem acabada à pergunta, como já alertei, mas limito-me a su-
gerir duas hipóteses:

1) As origens sociais de cada autor reverberam em suas


respectivas análises a propósito do pensamento radical
das classes médias e altas. Candido, em virtude de um
background social mais privilegiado se comparado ao
de Williams, ver-se-ia ele próprio como um intelectual
radical, inscrevendo-se, assim, numa tradição do pensa-
mento social nacional. Talvez o pertencimento de Can-
dido ao grupo que analisa o tornasse mais transigente?
Podemos suspeitar, por outro lado, que a condição de
outsider de Williams, descendente de trabalhadores ru-
rais galeses, próximos ao trabalhismo socialista e poli-
ticamente engajados (RIVETTI, 2021) contribui para
tornar mais afiada a sua crítica em relação ao próprio 531
grupo de intelectuais que analisa, o Círculo Bloomsbury,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


quase todos/as eles/elas ingleses/as e bem-nascidos/
as – a única exceção, até onde sei, foi Duncan Grant, nas-
cido ao norte da Escócia.
2) Outra hipótese que pode ajudar a compreender, acredi-
to, a diferente acentuação que cada um atribui às con-
tradições do pensamento radical, é que Candido tinha
consciência que as condições históricas que ensejaram a
formação do país, pelo menos até o momento que inicia
suas reflexões sobre os radicalismos e os radicais, que
começam mais ou menos em meados dos anos 1970,
não permitiam ainda o florescimento de um pensamen-
to profundamente revolucionário. A maneira como o
país se estruturava, com uma universidade recém-nas-
cida, sofrendo ainda os efeitos do patriarcalismo e da es-
cravidão, marcada por uma modernização conservado-
ra, sob tutela militar etc., não constituía solo fértil para
qualquer tipo de ruptura mais drástica e dramática, in-
clusive no âmbito do pensamento. Williams, sob outras
circunstâncias históricas, certamente exigia e reivindi-
cava mais dos/as intelectuais britânicos/as.

IV.

Se tivesse que apostar numa das hipóteses, jogaria minhas fichas


na segunda. E explico por quê.
A primeira hipótese pode provocar a impressão que Antonio
Candido representasse a figura do intelectual reformista em oposi-
ção a Raymond Williams, que encarnaria, por sua vez, o intelectual
revolucionário 5. Nesse sentido, Candido se aproximaria do tipo de
radical de ocasião, definido e discutido no artigo de 1978. No en-
tanto, as trajetórias de ambos apresentam várias coincidências que
não permitiriam, a meu juízo, sustentar tal oposição.
Em 1937, portanto com apenas dezesseis anos 6, Williams se as-
532
socia ao Left Book Club, onde tomará contato com o pensamento
socialista por intermédio dos livros e das pessoas; em outubro de
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

1939 ingressa na Universidade de Cambridge e logo se integra ao


Clube Socialista e no mesmo ano se filia ao Partido Comunista da
Grã-Bretanha, onde se dedica à redação de textos e panfletos; en-
tre 1947 e 1948 ajuda a criar e atua na revista Politics and Letters;
desgostoso com o marxismo ortodoxo e com certa rigidez burocrá-
tica, nos anos 1950 deixa o Partido Comunista e ingressa na Nova
Esquerda britânica que se reunia principalmente em torno da New
Left Review, da qual foi um dos fundadores e, claro, assíduo colabo-
rador 7.
Antonio Candido 8, por sua vez, desde muito jovem, tal como
Williams, enredou-se na vida política: participou, junto com Paulo
5
Não custa lembrar que, para Michael Löwy, a adesão de Candido às liberdades democrá-
ticas combinava-se a uma visão radical do socialismo, que não descartava a perspectiva
revolucionária (LÖWY, 2018, p. 125-126). Quiçá, para Candido, revolução significasse uma
radicalização democrática.
6
Raymond Williams nasceu em agosto de 1921.
7
As informações biográficas acerca de Williams aqui apresentadas foram retiradas da al-
tamente recomendada tese de Ugo Rivetti intitulada A longa jornada: Raymond Williams,
a política e o socialismo. A referência completa encontra-se na bibliografia deste capítulo.
8
Candido nasceu alguns anos antes de Williams, em julho de 1918.
Emílio Salles Gomes, do Grupo Radical de Ação Popular, lá editando
um jornal clandestino, o Resistência, em oposição ao Governo Var-
gas; foi um dos fundadores da União Democrática Socialista (UDS)
em 1945, e, após sua dissolução, aderiu à Esquerda Democrática,
que, em 1947, funde-se aos remanescentes da UDS para formar o
Partido Socialista Brasileiro (PSB), onde foi redator da Folha Socia-
lista e ocupou o cargo de dirigente da seção paulista e militou até
1954; foi candidato a deputado estadual pelo PSB em 1950 e parti-
cipou da fundação do PT em 1980 9.
Bem se vê que ambas as trajetórias, a despeito de origens so-
ciais muito diversas, encontram vários pontos de congruência, en-
tre eles, destacadamente, a atuação política e intelectual amarra-
das por uma militância que se deu, principalmente, a partir de suas
intervenções sob a forma de artigos e livros, contribuindo, ambos,
para acalorar os debates em seus respectivos contextos histórico e
sociais, ora se opondo ao status quo político, ora não poupando crí-
533
ticas às próprias organizações de esquerda de seus países 10 e a um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


marxismo ortodoxo que vicejava tanto aqui como além do Atlântico.
Ademais, classificar Candido como uma espécie de reformista e
Williams como revolucionário, portanto, este um antípoda daquele,
implica não considerar as críticas que o próprio Williams recebeu
de outros autores da esquerda britânica que o rotulavam justamen-
te como um reformista. Convidado a resenhar The Long Revolution,
de Williams, E.P.Thompson frisava o “[...] caráter pouco radical da
análise (e das posições políticas) de Williams nessa época (RIVET-
TI, 2021, p. 44), uma vez que sua abordagem desconsiderava as lu-
tas e os conflitos que atravessam e definem a história e a vida social,
subsumidas em conceitos metafísicos (e mesmo superficiais) como
“desenvolvimento”, “crescimento”, surgimento de “novos padrões”
(Idem, ibidem). Tal ênfase genérica e abstrata quanto à “totalidade
9
Todas as informações a respeito de Antonio Candido sintetizadas no parágrafo foram
retiradas dos seguintes sítios: https://revistapesquisa.fapesp.br/, https://www.marxists.
org/, https://bibdig.biblioteca.unesp.br/, http://www.fgv.br/, https://psb40.org.br/. Ao
final do capítulo serão informadas as referências completas e as datas de acesso.
10
O/A leitor/a poderá encontrar tais textos de intervenção e balanços políticos em Re-
cursos da esperança e A política e as letras: entrevistas da New Left Review, de Raymond
Williams; e, de Antonio Candido, Teresina etc. e Textos de intervenção, este organizado por
Vinícius Dantas.
social” - e que o próprio vocabulário williamsiano revelava – de-
nunciavam, de acordo com Thompson, o afastamento de Williams
em relação ao marxismo e a “natureza reformista” de suas posições
(Idem, ibidem).
No fundo, as posições heterodoxas e (auto)críticas de Candido e
Williams eram muitas vezes mal-vistas e mal-entendidas, a provo-
car reações frequentemente hostis. Nesse sentido, tanto um como
o outro procuravam inserir-se em tradições de pensamento nacio-
nais 11 que raramente integravam em seu interior intelectuais mais
progressistas, o que implicava a reinvenção da própria tradição,
atualizando-a, renovando-a sem abandoná-la por completo. A in-
tenção, creio, era demonstrar que uma tradição não implica enges-
samento, paralisação, mas, ao contrário, um fator de criação. Tal
exercício de reinvenção, ao que parece, enfrentava obstáculos, pois
aproximar-se de uma tradição era entendido como distanciamen-
to em relação ao marxismo ou ao socialismo, quando tratava-se de
534
trabalhá-la dialeticamente.
Pelos fatores até aqui elencados, acredito que a segunda hipó-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tese aparece como mais pertinente. A questão do “pensamento ra-


dical” (ou do “intelectual radical”, tanto faz) encontra-se no radar
de Antonio Candido desde a primeira metade da década de 1970:
numa entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, em seu vo-
lume um, de 1974 12, Candido já abordava o problema. Ali Candido
afirmava que para além do pensamento de esquerda, ainda social-
mente muito restrito, firma-se nos anos 30 e 40 do século XX um
“pensamento radical de classe média” que representava, segundo
ele, “um enorme avanço”, pois começava a surgir “uma visão não-a-
ristocrática do Brasil” - cuja última grande formulação havia sido a
de Gilberto Freyre - preocupada em realizar estudos sobre o negro,
sobre as populações pobres, a “[...] minguar o ufanismo e a ideolo-
gia patrioteira dos livros de leitura. Isso favoreceu a formação de
um pensamento radical, no qual me desenvolvi na mocidade” (CAN-
11
Candido parece fazer isso em relação ao pensamento radical no Brasil e me parece que
Williams desempenha uma tarefa semelhante em Cultura e sociedade.
12
O mesmo periódico republicou a entrevista em 2011. A referência completa da republi-
cação encontra-se na bibliografia final deste capítulo.
DIDO, 2021, p. 5). Papel importante teve também, assinala Candido
na mesma entrevista, a Universidade de São Paulo (USP), criada em
1934, uma vez que forneceu elementos decisivos para a formulação
de um pensamento radical que a partir da USP se irradiava para
todo o país. O interesse da Universidade, àquela altura (e mesmo
hoje), era favorecer um pensamento radical sem assumir posição
revolucionária, o que não deixava de se um progresso, atesta An-
tonio Candido, já que as demais faculdades brasileiras abrigavam,
quando muito, posições liberais tradicionais.
Como procurei demonstrar pouco mais acima, a noção de “pen-
samento radical” (e suas variações, como “intelectuais radicais”
ou “radicalismos”) sofre mudanças ao longo do tempo: em 1978
podemos afirmar uma posição mais crítica de Candido quanto
aos intelectuais brasileiros, posição que o aproxima da análise de
Williams a respeito do Círculo de Bloomsbury; já em 1988, Can-
dido mostrava-se pouco mais otimista quanto ao teor radical do
535
pensamento social brasileiro. Tais reconfigurações do intelectual

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


devem-se, a meu ver, aos respectivos contextos históricos nos quais
escreve Candido: em 1974 lança a questão, mas não a aprofunda,
talvez pelo fato de se tratar de uma entrevista, que difere, eviden-
temente, de um texto argumentativo, mas talvez também se deva
em razão do momento histórico, que era, lembremos, o da plena
ditadura. Mesmo contexto em que se dá a primeira elaboração mais
detalhada da questão, em 1978, i.e., ainda que já vivêssemos um
período de distensão da Ditadura, ainda eram tempos obscuros, o
que, porventura, impactava a própria análise de Candido, a resultar
num tratamento mais prevenido a respeito do intelectual radical;
posição esta que muda visivelmente no artigo de 1988, que retoma
o que foi sugerido na entrevista quatorze anos antes e o aprofunda,
apresentando o pensamento radical como alternativa viável e que
poderia desembocar em pensamentos e práticas revolucionárias.
Certo otimismo demonstrado por Candido não deixa de guardar re-
lação com o momento: 1988 despontava mais esperançoso e pare-
cia oferecer destinos mais promissores, afinal vínhamos das Diretas
Já, em 1984, e a Constituição Cidadã desabrochava no mesmo ano
que Candido publicava o seu artigo. Observamos, portanto, que o
conceito vai sendo readequado conforme os processos sociais e his-
tóricos vão se desdobrando.

V.

Procurei argumentar que a partir de alguns textos de Antonio


Candido e Raymond Williams é possível derivar e propor uma so-
ciologia dos intelectuais que, inclusive, pode ser aplicada sobre os
próprios autores que a inspiraram. Ao se realizar um procedimento
assim, i.e., empregar uma sociologia dos intelectuais aos intelec-
tuais que suscitaram tal sociologia, foi possível perceber que além
das congruências entre eles, havia outrossim um certo desencontro.
Contudo, a dissonância revela que ambos os autores adotam
procedimentos de análise e interpretação semelhantes e muito fiéis
a uma epistemologia dialética. Candido e Williams não tratam os
536 conceitos como definições irrevogáveis da realidade social, como
se procurassem embutir toda a complexidade e multiplicidade da
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

realidade social no interior de um conceito, de modo a fazer coinci-


di-lo ao mundo social. Se assim fizessem, os autores promoveriam
um tal esgotamento da realidade social e histórica a ponto de em-
pobrecê-la brutalmente, produzindo, assim, um efeito contrário da-
quele inicialmente pretendido, a saber, elaborar um conceito que
enriquecesse o olhar sobre os contextos que buscam compreen-
der. Cientes de que a história, em toda sua heterogeneidade, não se
pode capturar por completo, Candido e Williams esforçaram-se por
criar conceitos abertos, sujeitos a reelaborações, a transfigurações
que permitissem se adequar à dinâmica dos processos sociais; é
como se as mutações dos conceitos correspondessem às mutações
históricas. Noutros termos: nem Candido, nem Williams preten-
diam que as noções, as categorias que mobilizavam, coincidissem
com a realidade social, mas que a ela correspondessem, que a ela
remetessem sem com isso exauri-la.
Nesse sentido, o modo como Candido trata a categoria de “in-
telectual” nos três momentos aqui destacados solidariza-se à ma-
neira como Williams opera com vários conceitos-chave de seu
pensamento, presentes em inúmeros de seus trabalhos, como, por
exemplo, entre outros, o de “cultura” e o de “estrutura de sentimen-
tos”. Para cada caso analisado os autores em tela operam as adap-
tações necessárias, efetuam as mudanças que o próprio fenômeno
sob análise reivindica, de modo que encontramos ressonâncias de
outros momentos no mesmo conceito, mas raramente ele se apre-
senta sempre como idêntico.
Não deixa de impressionar que mesmo em suas diferenças en-
contramos compatibilidades metodológicas e epistemológicas en-
tre ambos, a demonstrar o quanto Candido e Williams manejavam
a dialética de maneira respeitosa, o que significava, no entanto, se
se quer de fato levar adiante tal perspectiva, uma renovação inces-
sante da reflexão crítica e criativa.

REFERÊNCIAS
537
BETTI, Maria Sílvia. Sobre “O direito à literatura”, de Antonio

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Candido. Literatura e Sociedade, n. 30, p. 56-63. jul./dez. 2019.
DOI: 10.11606/issn.2237-1184.v0i30p56-63. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/ls/article/view/166238. Aces-
so em: 14 out. 2021.

CANDIDO, Antonio. Radicais de ocasião. Discurso, [S. l.], n. 9,


p. 193-201, 1978. DOI: 10.11606/issn.2318-8863.discur-
so.1978.37853. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
discurso/article/view/37853. Acesso em: 17 out. 2021.

CANDIDO, A. Radicalismos. Estudos Avançados, [S. l.], v. 4, n.


8, p. 4-18, 1990. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
eav/article/view/8540. Acesso em: 17 out. 2021.

CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: ______.


Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas de Viní-
cius Dantas. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2002.
CANDIDO, A. Textos de intervenção. Seleção, apresentação e
notas de Vinícius Dantas. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34,
2002.

CANDIDO, A. Radicais de ocasião. In: ______. Teresina etc. Rio de


Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.

CANDIDO, A. Teresina etc. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,


2007.

CANDIDO, A. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos.


Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011a.

CANDIDO, A. Entrevista com Antonio Candido de Mello e Sou-


538 za. Trans/Form/Ação, [S. l.], v. 34, 2021. DOI: 10.1590/S0101-
31732011000300002. Disponível em: https://revistas.mari-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

lia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/1058.
Acesso em: 14 out. 2021.

CEVASCO, Maria Elisa. A utilidade da crítica cultural marxista.


In: CATANI, Afrânio Mendes et al. Marxismo e ciências huma-
nas. São Paulo: Xamã, 2003.

CEVASCO, Maria Elisa. Dois críticos literários: Antonio Candi-


do e Raymond Williams. In: Margens da cultura. Mestiçagem,
hibridismo e outras misturas. Organização: Benjamin Abdala
Jr. São Paulo: Boitempo, 2004.

JACKSON, Luiz Carlos. A tradição esquecida. “Os parceiros do


Rio Bonito” e a sociologia de Antonio Candido. Belo Horizon-
te: Ed. UFMG, 2002.
LÖWY, Michael. Teresina etc.: o socialismo de Antonio Candi-
do. In: Antonio Candido 100 anos. Organização: Maria Augusta
Fonseca & Roberto Schwarz. São Paulo: Boitempo, 2018.
OLIVEIRA, Irenísia Torres de. O direito à literatura: democra-
cia e dessegregação cultural. In: Antonio Candido 100 anos.
Organização: Maria Augusta Fonseca & Roberto Schwarz. São
Paulo: Boitempo, 2018.

PACHECO, Ana Paula. O radicalismo do radical de classe mé-


dia: “De cortiço a cortiço”. In: Antonio Candido 100 anos. Or-
ganização: Maria Augusta Fonseca & Roberto Schwarz. São
Paulo: Boitempo, 2018.

PAIXÃO, Alexandro Henrique. Crítica e crise em Raymond


Williams e Antonio Candido. XVII CONGRESSO BRASILEIRO
DE SOCIOLOGIA, 20 a 23 de julho de 2015, Porto Alegre (RS). 539
Disponível: http://automacaodeeventos.com.br/sociologia/

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


sis/inscricao/resumos/0001/R1845-1.PDF . Acesso:17 out.
2021

PASSIANI, Enio. Figuras do intelectual: gênese e devir. In: So-


ciologias. Porto Alegre, v. 20, n. 47, jan/abr 2018, p. 16-47. DOI:
10.1590/15174522-020004701. Disponível em: https://seer.
ufrgs.br/sociologias/article/view/82042. Acesso em: 14 out.
2021.

PASSIANI, Enio. Uma longa jornada: a gênese da sociologia


das formas discursivas de Raymond Williams. Resgate – Rev.
Interdiscip. Cult., Campinas, v. 28, n. 00, p. 1-35, 2020. DOI:
10.20396/resgate.v28i0.8658364. Disponível em: https://
periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/
view/8658364. Acesso em: 15 out. 2021.
PILATI, Alexandre. Função humanizadora e especificidade
estética: elementos da “concepção de educação literária” pre-
sente no pensamento de Antonio Candido. In: Antonio Candi-
do 100 anos. Organização: Maria Augusta Fonseca & Roberto
Schwarz. São Paulo: Boitempo, 2018.

PONTES, Heloísa. Entrevista com Antonio Candido. Revista


Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, out. 2001, p. 5-30.
DOI: 10.1590/S0102-69092001000300001. Disponível em:
http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/
rbcs/189-rbcs-47. Acesso em: 15 out. 2021.

RAMASSOTE, Rodrigo Martins. A sociologia clandestina de


Antonio Candido. Tempo Social, [S. l.], v. 20, n. 1, p. 219-237,
2008. DOI: 10.1590/S0103-20702008000100011. Disponí-
540 vel em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/12568.
Acesso em: 14 out. 2021.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

RIVETTI, Ugo Urbano Casares. A longa jornada: Raymond


Williams, a política e o socialismo. 2021. 173f. TESE (Douto-
rado em Sociologia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.

ROJO, Grínor. Antonio Candido em diálogo com a Teoria do


desenvolvimento, o desenvolvimentismo e a teoria da depen-
dência. In: Antonio Candido 100 anos. Organização: Maria Au-
gusta Fonseca & Roberto Schwarz. São Paulo: Boitempo, 2018.

TORRES, Mario René Rodríguez. De Antonio a Antonio: um


programa de leitura de Antonio Candido em chave latino-a-
mericana. In: Antonio Candido 100 anos. Organização: Maria
Augusta Fonseca & Roberto Schwarz. São Paulo: Boitempo,
2018.
VASCONCELOS, Sandra Guardini. Movimentos de um crítico:
Antonio Candido e a tradição anglo-americana. In: Revista
USP, [S. l.], n. 118, p. 89-104, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-
9036.v0i118p89-104. Disponível em: https://www.revistas.
usp.br/revusp/article/view/150030. Acesso em: 14 out.
2021.

VECCHI, Roberto. Antonio Candido e a história conceitual: a


herança da radicalidade. In: Antonio Candido 100 anos. Orga-
nização: Maria Augusta Fonseca & Roberto Schwarz. São Pau-
lo: Boitempo, 2018.

WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um. São Paulo:


Cosac Naify, 2007.

541
WILLIAMS, Raymond. O círculo de Bloomsbury. In: ______. Cul-
tura e materialismo. São Paulo: Unesp, 2011.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


WILLIAMS, Raymond. Você é marxista, não é? In: ______. Recur-
sos da esperança. São Paulo: Unesp, 2015.

WILLIAMS, Raymond. O escritor: engajamento e alinhamento.


In: ______. Recursos da esperança. São Paulo: Unesp, 2015.

WILLIAMS, Raymond. Arte: liberdade como dever. In: ______.


Recursos da esperança. São Paulo: Unesp, 2015.

WILLIAMS, Raymond. A esquerda britânica. In: ______. Recur-


sos da esperança. São Paulo: Unesp, 2015.
SITES CONSULTADOS

ANTONIO Candido: o pioneirismo do mestre. Revista Pesqui-


sa Fapesp. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.
br/antonio-candido-o-pioneirismo-do-mestre/. Acesso em:
09/10/2021.

BIBLIOTECA DIGITAL UNESP. Disponível em: https://bi-


bdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/8913. Acesso em:
09/10/2021.

FGV CPDOC. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acer-


vo/dicionarios/verbete-tematico/uniao-democratica-socia-
lista. Acesso em: 09/10/2021.
542
IMPRENSA PROLETÁRIA. Arquivo marxista na internet. Dis-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ponível em: https://www.marxists.org/portugues/tematica/


jornais/folha/index.htm. Acesso em: 09/10/2021.

KONDER, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo: Anto-


nio Candido. Disponível em: https://www.marxists.org/por-
tugues/konder/1990/03/10.htm. Acesso em: 09/20/2021.

PSB40. Disponível em: https://psb40.org.br/noticias/aos-


-98-anos-morre-antonio-candido-um-dos-fundadores-do-
-psb/. Acesso em: 09/10/2021.

RESUMO
Comparar Raymond Williams e Antonio Candido não consti-
tui, exatamente, uma novidade. Embora abordagens distintas,
Maria Elisa Cevasco e Alexandro Henrique Paixão não deixam
de demonstrar várias semelhanças entre Williams e Candido
e o quanto pode ser profícuo estabelecer o diálogo entre esses
dois críticos da literatura e da cultura tão criativos e inquie-
tos. Pretendo retomar esse caminho de uma outra perspectiva
e argumentar que tanto o crítico britânico quanto o brasileiro
nos oferecem uma instigante sociologia dos intelectuais em
textos como O círculo de Bloomsbury, de Raymond Williams, e
Radicalismos e Radicais de ocasião, de Antonio Candido. Enta-
bular uma “conversa” entre os autores a partir de tais textos
implica descortinar outras semelhanças entre eles, mas igual-
mente uma certa dissonância.
Palavras-chave: Raymond Williams, Antonio Candido, Socio-
logia dos Intelectuais, Pensamento Radical, Pensamento Re-
volucionário.

ABSTRACT
Comparing Raymond Williams and Antonio Candido is
not exactly new. Despite different approaches, Maria Elisa 543
Cevasco and Alexandro Henrique Paixão demonstrate several

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


similarities between them and how fruitful it can be to establish
a dialogue between these two creative and inquisitive critics
of literature and culture. I intend to take up this dialogue
from another perspective and argue that both the British
and the Brazilian critics offer us a stimulating sociology of
intellectuals in texts such as The Bloomsbury Fraction, by
Raymond Williams, and Radicalismos and Radicais de ocasião,
by Antonio Candido. Starting a “conversation” between
these authors based on such texts implies revealing other
similarities between them, but also a certain dissonance.
Keywords: Raymond Williams, Antonio Candido, Sociology of
Intellectuals, Radical Thinking, Revolutionay Thinking.

SOBRE O AUTOR
Enio Passiani é Professor do Departamento e do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS); Editor Assessor do periódico Socio-
logias; membro do Conselho Editorial do Norbert Elias Stu-
dies, da Editora Palgrave Macmillan; autor do livro Na trilha
do Jeca: Monteio Lobato e a formação do campo literário no
Brasil; tem publicado artigos no Brasil e no exterior sobre
Teoria Sociológica, Pensamento Social no Brasil, sociologia da
literatura e da literatura; e, atualmente, desenvolve pesquisa
na área de sociologia dos sonhos intitulada Sonhos, sociedade
e pandemia.

544
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams
OS LUGARES DO LITERÁRIO EM
O CAMPO E A CIDADE E NA
CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA
DA DÉCADA DE 19701

Jefferson Agostini Mello2

Ao rastrear algumas linhas de força teoria da literatura e da lei-


tura de Raymond Williams, pode parecer estranho ao leitor brasi-
leiro o modo como esse autor se relaciona com o cânone de língua 545
inglesa e, de modo geral, com o texto literário. Com efeito, em sis-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


temas literários como o nosso, em que mesmo nas abordagens ma-
terialistas da cultura escritores são, em geral, tratados como heróis
ou santos pela crítica especializada e em que, nas abordagens mais
internalistas, o texto só pode ser relacionado à sociedade após ter
passado pelo rigoroso escrutínio analítico que determinaria o seu
valor, causa espécie ler um estudioso da literatura que não esteja
preocupado em construir nem hagiografias nem leituras internas e,
mais ainda, que pensa obras e autores como produtoras e produto-
res de sentidos muitas vezes atrelados ao modo de ser das classes
dominantes; ou que, em contraponto, entenda obras e autores como
constituintes de partes ou de passos para se poder chegar a uma vi-
são mais ampla da realidade social e suas iniquidades, com vistas a
contribuir com a sua transformação, as obras literárias, nesse caso,
independentemente da sua suposta qualidade, tornando-se um dos
1
Este texto toma como ponto de partida o artigo “Sem heróis ou santos”, de minha autoria,
publicado na revista Cult, em junho de 2017, em dossiê dedicado a Raymond Williams.
2
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Pau-
lo. Professor Associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
de São Paulo. E-mail: jefferson@usp.br. Link para Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9935965203538050. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2015-8943.
elementos de todo um modo de vida, não necessariamente o mais
importante.
Neste capítulo, pretendo tratar de alguns aspectos da crítica/
teoria literária de Raymond Williams, enfatizando seja o seu mé-
todo de análise, seja seus pressupostos e ideias gerais. Ainda, com
foco em O campo e a cidade, obra de 1973, busco comparar o tra-
balho de Williams com outras obras e escritos de crítica literária
brasileira surgidas no Brasil à mesma época. Na comparação, tento
demonstrar que esse conjunto de textos trabalha na perspectiva da
exceção e da excelência, e não na perspectiva da cultura como algo
comum, vislumbrada por Williams, o que parece dizer tanto dos im-
passes da nossa crítica naquele período quanto das possibilidades
abertas por esse autor.

546
c
Chamo a atenção, em primeiro lugar, à crítica de Williams a uma
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

literatura baseada na imaginação, na organicidade, no gênio cria-


dor, nas exceções que, segundo ele, traduzem uma visão homogê-
nea e irreal de sociedade, limitada por uma perspectiva da classe
ou da fração de classe a que pertencem os seus proponentes. Tal
perspectiva, embora reativa ao processo de industrialização da so-
ciedade inglesa, acaba por encobrir a heterogeneidade, as contra-
dições daquela realidade social e a luta de classes, sendo, no limite,
conservadora. É o que sugere o capítulo “O artista romântico”, de
Cultura e Sociedade, ao tratar do modo como, no romantismo inglês,
alguns poetas e críticos criaram um espaço singular para a poesia,
como se ela fosse uma reserva de imaginação na sociedade que se
transformava rapidamente:

[...] a arte tornou-se uma abstração simbólica de toda uma


gama de experiências humanas gerais: uma abstração valio-
sa, porque na verdade a grande arte tem esse poder último;
mas ainda assim uma abstração, porque uma atividade so-
cial geral foi forçada a adotar o status de um departamento
ou província e obras de arte reais foram em parte transfor-
madas em uma ideologia de autodefesa. [...] a liberdade do
gênio achou cada vez mais difícil harmonizar-se com a liber-
dade do mercado, e a dificuldade não foi resolvida, apenas
amortecida por uma idealização. (WILLIAMS, 2011a, p. 71)

De acordo com o que se lê, embora importantes, a arte e o ar-


tista que a promove tornam-se simplesmente inócuos no comba-
te às agruras trazidas pela industrialização burguesa. Mais do que
isso, acabam por operar a favor da ideologia dominante, impedindo
de se perceber a realidade social, por conta de uma auto-idealiza-
ção. No processo, que é longo, pelo que se observa no livro em tela,
contam com o apoio dos modos de ler, ou seja, das teorias literá-
rias que transformaram obras que respondem a demandas muitas
vezes distintas em objetos para o consumo crítico. É o que aponta
Williams, em “Base e superestrutura na teoria da cultura marxista”,
texto já da década de 1970,
547

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


[...] quase todas as formas de teoria crítica contemporânea
são teorias de consumo. Ou seja, elas estão preocupadas com
a compreensão de um objeto de tal forma que ele possa ser
consumido correta ou proveitosamente. O estágio inicial da
teoria do consumo foi a teoria do ‘gosto’, na qual a ligação en-
tre a prática e a teoria era direta, como expressa na própria
metáfora. Do gosto surgiu a noção mais elevada da ‘sensibi-
lidade’, na qual o consumo pela sensibilidade de obras eleva-
das [...] era considerado a prática essencial da leitura, sendo
que a atividade crítica aparecia, então, como uma função
dessa sensibilidade. Surgiram então as teorias mais desen-
volvidas, na década de 1920, com I. A. Richards e, mais tar-
de, com a Nova Crítica, na qual os efeitos do consumo foram
estudados diretamente. A linguagem da obra de arte como
objeto tornou-se, então, mais evidente. […]. Naturalmente, a
noção da obra de arte como objeto, como texto, como artefa-
to isolado, tornou-se central em todas essas teorias posterio-
res de consumo. WILLIAMS, 2011b, p. 63-64)

Ainda, as teorias literárias que percebem o texto como objeto


isolado se ligam ao que Williams chama de uma tradição seletiva,
isto é, ao processo de canonização literária, agrupamento de obras
a partir de características gerais que salta por cima dos contextos
de produção para comprovar o que a crítica do momento já acredita
ser importante. Recortam-se do texto aspectos que correspondem
aos valores de uma minoria auto-qualificada de leitores. Além de
irrelevantes do ponto de vista de uma educação igualitária, tais va-
lores serão bem aproveitados pelas classes dominantes inglesas no
processo educacional reformista do pós-guerra.
Além disso, tal perspectiva, ao articular os valores intrínsecos
da obra, da excepcionalidade do escritor, da maestria da leitura
interna e da exceção da Literatura frente a outros campos, diz de
uma uma estrutura de sentimento mais individualista do que co-
munitária. Pois uma teoria literária que só se interessa em eleger
monumentos não é capaz de perceber nem a fragilidade crítica des-
ses monumentos nem o quanto esses monumentos devem seja às
obras menores, seja ao que se convencionou chamar de cultura que,
em uma de suas acepções quer dizer todo um modo de vida. Assim,
548
na sua conclusão de Cultura e sociedade, o autor afirma que, na so-
ciedade inglesa,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

[...] desde o começo do século XIX foi difícil para qualquer


observador sentir que o cuidado da obra intelectual e imagi-
nativa deveria com segurança ser confiado a qualquer classe
social ou econômica ou até identificado com aquela classe.
Foi com relação a essa situação que a própria ideia de cultura
foi [...] desenvolvida. (WILLIAMS, 2011a, p. 346)

Argumenta, então, que a cultura de uma sociedade como a ingle-


sa não é necessariamente obra de uma minoria, mas um trabalho
conjunto, de longa duração, que envolve, também, mais de um sis-
tema simbólico, com vistas à mudança, como ocorre com o próprio
idioma inglês:

O problema mais difícil com que nos defrontamos em qual-


quer período em que haja uma mudança significativa do po-
der social é o processo complicado de reivindicação da tradi-
ção herdada. O idioma comum, ao ser, por si só, uma questão
tão crucial, nos dá um exemplo excelente desse processo. É
obviamente de importância vital para uma cultura que seu
idioma comum não perca sua força, riqueza e flexibilidade;
ele deve, além disso, ser adequado para expressar nossas
experiências e para esclarecer mudanças. Mas um idioma
como o inglês ainda está evoluindo, e é possível prejudicá-lo
seriamente pela imposição de categorias grosseiras de clas-
se. (WILLIAMS, 2011a, p. 346)

O que vale para o inglês vale para a literatura e para a cultura.


Por isso, tanto com o fito de apontar imposições e limites em auto-
res e obras específicos, quanto demonstrar a literatura e a cultura
de um país como resultado de um processo complexo, o trabalho
crítico, para Williams, consiste, antes de tudo, em uma contextuali-
zação radical, tendo em vista as mediações, isto é, o que se encontra
entre o texto e o que se chamaria de externo, que não é apenas o
que se tende a chamar de o modo de produção. Este certamente
importa para a análise, mas é preciso, dentro de um mesmo modo
549
de produção, atentar para os seus diferentes estágios, para as for-
mações e os agrupamentos de artistas que os defendem ou a eles

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


se opõem, para as instituições a que esses artistas estão ligados,
para as formas de produção da arte e da literatura, seus pontos de
convergência e divergência com, por exemplo, o patronato, o me-
cenato, ou o mercado. Também é fundamental particularizar cada
artista, sua formação, ocupação, conjunto de valores, perceptíveis
em outros escritos que não os literários, mas, também, para o de-
sespero de puristas, nos próprios textos literários. Trata-se de um
programa heterodoxo, entre a sociologia e a crítica literária, e de
ambição totalizante, mas que não tem a preocupação de decifrar
os enigmas de um poema ou de um romance, antes de vê-los como
chave para desvendar questões da sociedade e da cultura comum,
que é o que importa para quem não está em busca do específico ou
do excepcional.
Em texto sobre a fração Bloomsbury – “O círculo de Bloomsbury”
– paradigmático para uma perspectiva que leve em conta o traba-
lho das mediações, Williams se opõe não apenas à teoria do reflexo,
mas, também à da individualidade criadora. Segundo ele, “nenhuma
história da cultura moderna poderia ter sido escrita sem atenção
a eles [os grupos de artistas]” (WILLIAMS, 2011b, p. 202). Propõe
também que, além da “estrutura de sentimento” do grupo de Virgi-
nia Woolf e Leonard Keynes – refletida não só no conjunto das suas
produções artísticas e intelectuais mas no estilo, no modo de ser – e
as outras forças do campo intelectual do período, e da classe social,
cuja fração eles representam, existe igualmente a instituição, isto é,
a universidade de Cambridge, a partir das quais indivíduos que nela
se encontraram travaram amizade e se reconheceram mutuamente
enquanto um grupo, posicionando-se contra outros grupos. Nesse
sentido, as obras artísticas, literárias, ensaísticas, sociológicas e
econômicas desse grupo formam um conjunto amplo, contribuin-
do para a manutenção do próprio grupo, sem romper com o dis-
curso hegemônico, embora propondo alternativas a ele. Williams,
no geral, não é nada condescendente com os autores ou obras sob
análise, principalmente se eles não conseguem se voltar contra a
sua classe de origem ou se sua revolta é parcial ou para a classe.
550 Os supostos avanços que uma crítica mais textualista ou específica
ressaltaria, em nome do literário ou da grandeza de uma literatura
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

nacional, são, no caso do autor galês, ressignificados e, ao mesmo


tempo, relativizados. De acordo com ele,

[...] apesar de todas as suas excentricidades, incluindo as ex-


centricidades valiosas, Bloomsbury estava articulando uma
posição que, mesmo que apenas em momentos cuidadosa-
mente diluídos, tornar-se-ia a norma ‘civilizada’. No poder
mesmo de sua exibição da sensibilidade privada que deve
ser protegida e estendida por formas de interesse público,
eles moldaram as formas efetivas da dissociação ideológica
contemporânea entre a vida ‘pública’ e a ‘privada’. A cons-
ciência de sua própria formação como indivíduos dentro da
sociedade, daquela formação social específica que os fez ex-
plicitamente um grupo e implicitamente uma fração de uma
classe, não estava apenas além do seu alcance; ela foi direta-
mente descartada, uma vez que o indivíduo livre e civilizado
já era o seu elemento fundante. (WILLIAMS, 2011b, p. 229)

De modo que
A natureza definitiva de Bloomsbury como um grupo é a de
que ele era, de forma distintiva, um grupo da e para a noção
dos indivíduos livres. Qualquer posição geral distinta des-
se pressuposto específico teria causado rupturas no grupo,
embora toda uma série de posições especializadas fosse, ao
mesmo tempo, necessária para os indivíduos livres se torna-
rem civilizados. A ironia é que tanto o pressuposto específico
quanto a gama de posições especializadas naturalizaram-se
– embora agora de modo evidentemente incoerente – em
todas as fases posteriores da cultura inglesa. É nesse senti-
do exato que esse grupo de indivíduos deve ser visto, por
fim, como uma fração (civilizada) de sua classe. (WILLIAMS,
2011b, p. 229-230)

Em outras palavras, Bloomsbury pressentia e projetava, em ter-


mos artísticos, os destinos estéticos e éticos da sua classe, daí a sua
classificação possível de artífices de uma cultura emergente alter-
nativa, mas não opositora. Dentro dos parâmetros do próprio autor,
551

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Por ‘emergente’ quero dizer, primeiramente, que novos signi-
ficados e valores, novas práticas, novos sentidos e experiên-
cias estão sendo continuamente criados. Mas há, então, uma
tentativa muito anterior de incorporá-los, apenas por eles
fazerem parte – embora essa seja uma parte não definida –
da prática contemporânea efetiva. Com efeito, é significativo
em nosso período o quão cedo essa tentativa ocorre, o quão
alerta a cultura dominante está hoje em relação a tudo o que
pode ser visto como emergente. (WILLIAMS, 2011b, p. 57)

Assim, é com base em uma perspectiva gramsciana, para quem


a hegemonia “constitui... um sentido absoluto por se tratar de uma
realidade além da qual se torna muito difícil para a maioria dos
membros da sociedade mover-se, e que abrangem muitas áreas de
suas vidas” (WILLIAMS, 2011b, p. 53), que Williams elabora a críti-
ca acerca dos que propõem e/ou louvam a cultura da individualida-
de. Ao mesmo tempo, investiga e aponta – porque tem consciência
de que sua leitura e seleção também são políticas – outras práticas
culturais, mormente opositoras, porque, segundo ele, a cultura não
é jamais estática ou unidirecional.
c
Sua proposta teórica fica mais evidente em O campo e a cidade,
de 1973, um dos seus livros de análise literária, de ambição enciclo-
pédica, em que ele se lê que i) a voz literária e a posição social dos
autores estão articuladas ii) a literatura de um país é, antes, uma
construção coletiva, de manifestações que se complementam do
que um conjunto de obras de grandes autores e iii) essa construção
coletiva é feita de modo dinâmico, por representantes de mais de
uma classe, por diversos tipos de escrita, inclusive os não-literários.
O próprio estilo argumentativo corrobora o primeiro desses três
pontos. Como se pode ler, O campo e a cidade possui capítulos que
se iniciam sem o tão esperado comentário crítico sobre o texto. Se,
para se trabalhar a literatura do século XVIII, seriam esperadas, nas
552 análises de poemas, que fossem relacionadas e descritas, primeira-
mente, as suas tópicas e gêneros, de acordo com a tradição clássica,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

o leitor de Williams é, ao contrário, introduzido de chofre ao con-


teúdo do texto. Não que o autor não informe que tal poema é uma
écloga ou de uma epístola, apontando o seu vínculo a um conjunto
maior de obras, incluindo as literaturas grega e latina. Mas, o que
poderia ser o principal para uma leitura de especialista, para ele,
é acessório. O principal torna-se o modo como um determinado
poema e autor, ou poemas e conjuntos de autores, colocam-se em
relação à idealização do campo, lugar de refúgio da cidade, tema
recorrente na literatura inglesa assim como na literatura ocidental.
E essa maneira de se colocar é sistematicamente vinculada tanto às
posições e às disposições dos autores que podem ter a ver com as
suas profissões ou mesmo com a origem social no momento em que
escrevem, quanto ao estágio do capitalismo agrário ou industrial e
suas características no campo e na cidade ingleses, de onde se nota
o importante papel das mediações.
Por exemplo, na análise da poesia de G. Crabbe, Williams ressalta
uma ruptura desse poeta com os predecessores. Possuidor de uma
visão independente, Crabbe, em sua antibucólica, rompe com uma
ideologia, denunciando a crise do capitalismo rural e a exploração
dos trabalhadores. Mas, “quem será o culpado” pela exploração,
pergunta-se Williams. Será que o poeta fará a denúncia do proprie-
tário? E ele mesmo responde, após citar um trecho de um poema
de Crabbe: “Pároco e médico – homens como Crabbe: o próprio
Crabbe – negligenciam o que deveria ser um dever moral deles”
(WILLIAMS, 1990, p. 131). Isto é, com laços com o poder local, ele
não denuncia o senhor que submete os trabalhadores ao trabalho
excessivo e às doenças dele recorrentes; em troca, vislumbra “um
alvo mais fácil: o consumidor excessivo” (WILLIAMS, 1990, p. 133)
que por consumir demais e não se exercitar ficaria doente. Segue a
conclusão de Williams:

Crabbe não está sendo bajulador quando recoloca a reali-


dade do trabalho no cenário idílico; mas também ele, como
médico e sacerdote, capelão doméstico de um proprietário
responsável por um cercamento, não chega a ser realmen- 553
te independente. No primeiro livro de The village, abre um

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


espaço para a observação independente e o apelo moral. No
final, porém, a moralidade é dissociada das relações sociais
que geram a pobreza e a indiferença. Sua atenção e seus
sentimentos estão dirigidos para o problema da assistência
aos indigentes, e não para os fatores que geram a indigência
(WILLIAMS, 1990, p. 134-135).

Porém, se os limites da denúncia de Crabbe são vinculados a sua


posição fronteiriça na estrutura social, se Williams em páginas logo
a seguir, ao tratar dos cercamentos, não deixa de fazer referência à
ascensão do empresário privado nas comunidades rurais, ele, por
outro lado, evoca o indivíduo reflexivo, que pensa e lê, e que é re-
sultado não só de maior independência do produtor rural, mas do
quadro geral da vida dos trabalhadores no mundo:

Que essa história do pensamento comum por vezes cause


surpresa é mais um dos insultos perpetrados pela sociedade
de classes. Naturalmente, em todas essas situações sociais
havia homens de grande capacidade que davam sentido a
suas vidas através de muito esforço e sabedoria. Os valores
que esses homens encarnavam e representavam se opõem,
em todas as épocas e em toda parte, à ganância e ao orgulho,
do dinheiro, do poder e, muitas vezes, do saber instituciona-
lizado. (WILLIAMS, 1990, p. 143).

O pensamento comum, isto é, não-hegemônico, advém antes dos


que estão nas margens do que daqueles que, de uma forma ou de
outra, representam o capitalismo, na cidade ou no campo:

A estrutura de sentimentos que até então vigorava, de apelos


diretos e discriminações morais internas – a argumentação
da poesia de um Goldsmith ou Crabbe –, necessariamente se
transformou numa ordem de pensamento e sentimento dife-
rente. A maturidade do capitalismo enquanto sistema estava
forçando o surgimento de uma organização sistemática de
oposição a ele. (WILLIAMS, 1990, p. 157)

554 Williams evidencia as lutas políticas e culturais que se operam


no subterrâneo, na sociedade e na literatura, de maneira que ele
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

nota em alguém como William Cobbett a atenção descritiva ao de-


talhe e, mais do que isso, “uma voz nova, uma mudança radical de
ponto de vista social” (WILLIAMS, 1990, p. 153), um ódio ao pro-
prietário “em comum com muitos dos trabalhadores da sua época”
(WILLIAMS, 1990, p. 156). Mas também não deixa de assinalar, no
elogio que Cobbett faz a alguns fazendeiros, um “conflito de lealda-
des” (WILLIAMS, 1990, p. 157), por conta justamente de sua ori-
gem rural. Assim mesmo, no conjunto, Cobbett aparece tanto como
um crítico dos poderosos quanto como um precursor do gênero
romance:

Cobbett descrevia, relatava e advogava, primeiro como re-


pórter e por fim como tribuno. Sua mudança de ponto de
vista e as mudanças às quais ele reage de forma tão viva
constituem os primeiros sinais importantes do surgimento
de um novo método na literatura. (WILLIAMS, 1990, p. 157)
Provavelmente, por ser ao mesmo tempo de dentro – ter víncu-
los com o mundo rural, possuir educação literária e religiosa – e de
fora – não pertencer à nova classe dirigente urbana e pregar a volta
à velha Inglaterra que Cobbett pode, segundo Williams, fazer a críti-
ca que fez, crítica essa que, como assinalou o autor em Cultura e so-
ciedade, guarda parentesco com a dos primeiros escritos de Marx.
De maneira que a percepção de Williams da história social da
literatura é a de um processo dinâmico e tenso, em que um elemen-
to ou obra surge para recusar ou completar o outro, que é sempre
limitado, por alguma circunstância, de formação, de classe ou de
geração. Uma dinâmica, vale dizer, que não se restringe aos grandes
nomes nem às grandes obras da Literatura. Daí que, após mencio-
nar os avanços e limitações de Jane Austen – a sua crítica de dentro
que, entretanto, se torna mais moral do que social – Williams encer-
re o capítulo 11 do livro com o naturalista Gilbert White, cujo méri-
to seria o desenvolvimento de uma observação física, precursora da
555
descrição romântica da paisagem.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


c
A primeira edição brasileira de O campo e a cidade é de 1989 e
conta com a excelente tradução do poeta e tradutor Paulo Henri-
ques Britto. Ela sai apenas 16 anos depois da publicação da obra na
Inglaterra, intervalo grande, mas que parece condizente com os de-
safios aos quais a vida literária brasileira enfrentava naquele início
da década de 1970: de um lado, a resistência e o combate ao regime
ditatorial; de outro, a reforma universitária e a construção de um
campo específico para os estudos literários. No limite, é possível
dizer que os dois aspectos eram enfrentados em alguns casos como
faces de uma mesma moeda: a da dependência (científica, cultural
e econômica).
Portanto, entre nós, o trabalho enciclopédico era, em geral, subs-
tituído pelo estudo monográfico, pelo artigo científico ou pelo en-
saio, em um campo que ainda carecia de organização, mas que a
buscava. Em contraste com o livro de Williams, grande parte esses
estudos demonstram também um caráter de urgência; é como se
a solução para os nossos impasses tivesse que ser encontrada em
obras de excelência de grandes autores ou em um conjunto teórico
que nos tiraria do atraso.
É o que, em certa medida, sugerem dois artigos de Antonio Can-
dido, do início da década: “De cortiço a cortiço” (1972) e “Dialéti-
ca da malandragem” (1970). No primeiro, é vislumbrada a leitura
brasileira, independente e criativa, que Aluísio Azevedo faz de L’as-
sommoir, de Zola, em O cortiço. Ao transpor o modelo de habitação
de Zola ao espaço brasileiro, mais especificamente, carioca, Azeve-
do demonstra, ainda, a luta de classes no período, no caso, entre o
burguês aristocrata, o imigrante português com vistas a se tornar
proprietário e os homens livres, habitantes pobres dos cortiços. Se-
gundo o autor,

556 O cortiço narra com efeito a ascensão do taverneiro portu-


guês João Romão, começando pela exploração de uma escra-
va fugidia que usou como amante a besta de carga, fingindo
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

tê-la alforriado, e que se mata quando ele a vai devolver ao


dono, pois, uma vez enriquecido, precisa liquidar os hábitos
do passado para assumir as marcas da posição nova. Mas a
verdadeira matéria-prima do seu êxito é o cortiço, do qual
tira um máximo de lucro sob a forma de aluguéis e venda de
gêneros.
Ao contrário de L’Assommoir, trata-se de uma história de tra-
balhadores intimamente ligados ao projeto econômico de
um ganhador de dinheiro, por isso o romancista pôs ao lado
da habitação coletiva dos pobres o sobrado dos ricos, meta
visada pelo esforço de João Romão. A consciência das con-
dições próprias do meio brasileiro interferiu na influência
literária, tornando o exemplo francês uma fórmula capaz de
funcionar com liberdade e força criadora em circunstâncias
diferentes. (CANDIDO, 1993, p. 127)

Já, em “Dialética da malandragem”, publicado dois anos depois


do início da fase mais dura do regime militar, Candido demonstra a
dialética ordem e desordem e sua outra face, a malandragem, como
modo de funcionamento da sociedade e ethos, que tanto positiva
quanto negativamente atravessa indivíduos de diferentes classes
sociais no Brasil. Sintetizada em Memórias de um sargento de mi-
lícias, de Manuel Antonio de Almeida, mas visando ao presente, tal
dialética pode então se apresentar como uma vantagem para o indi-
víduo brasileiro em momentos de repressão – como o que se inicia-
ra em 1964, comandada por generais americanófilos – sobretudo
se comparada à rigidez da ética protestante. O que é desvantagem
pode ser vantagem. Por isso, em alguns momentos, a impressão é
de que se está diante de um texto crítico alegórico, que trata de lite-
ratura para, no fundo, tratar de sociedade e, mais ainda, de modos
de superação.

Na formação histórica dos Estados Unidos houve desde cedo


uma presença constritora da lei, religiosa e civil, que plas-
mou os grupos e os indivíduos, delimitando os comporta-
mentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sen-
timento interior de pecado. Daí uma sociedade moral, que 557
encontra no romance expressões com A Letra escarlate, de
Nathanael Hawthorne, e dá lugar a dramas como o das feiti-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


ceiras de Salem.
Esse endurecimento do grupo e do indivíduo confere a ambos
grande força de identidade e resistência; mas desumaniza as
relações com os outros, sobretudos os indivíduos de outros
grupos, que não pertencem à mesma lei e, portanto, podem
ser manipulados ao bel-prazer. [...]. (CANDIDO, 1993, p. 50)

Por outro lado, no caso do romance brasileiro em exame,

[...]. Na sua estrutura mais íntima e na sua visão latente das


coisas, este livro [Memórias de um sargento de milícias] ex-
prime a vasta acomodação geral que dissolve os extremos,
tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração
recíproca dos grupos, das ideias, das atitudes mais díspares,
criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a
transgressão é apenas um matiz na gama que vem da nor-
ma e vai ao crime. Tudo isso porque, não manifestando estas
atitudes ideológicas, o livro de Manuel Antonio de Almeida
é talvez o único em nossa literatura do século XIX que não
exprime uma visão de classe dominante. (CANDIDO, 1993,
p. 51; grifos meus)

Assim, surgem, ao longo da obra de Candido, momentos decisi-


vos (termo do próprio autor) em que a literatura, da pena de algum
autor específico, não necessariamente genial ou completo, às vezes
até obscuro, denuncia, esclarece ou dá esperanças, em um espaço
social injusto, que é o brasileiro.
Em boa medida, esses momentos serão a tônica de uma tese de
1976, de Roberto Schwarz, defendida em Paris, na Sorbonne, em
1976, e publicada em 1977 sob o título Ao vencedor as batatas. Pre-
cedida de um ensaio seminal, “As ideias fora do lugar”, o trabalho
sobre as obras da primeira fase de Machado de Assis gira em torno
da perspectiva da superação rumo à independência cultural e – qui-
çá – econômica, tendo como modelo o próprio Machado, espécie
de receptor da totalidade da história. Assim, de um lado, à época
558
do autor, havia as ideias liberais que, no Brasil, não funcionavam
nem como ideologia, tal a sua aberração em face do modelo escra-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

vocrata, e, de outro, havia o próprio Machado, que foi capaz de in-


tuir e trabalhar esse disparate, superando, assim, José de Alencar,
seu antecessor, que, entretanto, já teria avançado algumas quadras
por meio da introdução circunstanciada da forma romance no país,
mas pagando o preço de se encantar demais com as próprias ideias
liberarais e as novidades estéticas estrangeiras, daí a sua limitação.
Embora longo, este trecho do ensaio de abertura é importante para
se perceber tanto uma análise audaciosa do pensamento social bra-
sileiro quanto a vantagem que estava disponível ao nosso escritor,
no caso, um escritor cioso (e conhecedor) das modas europeias e
com o olhar atento às especificidades locais:

[...]. Em resumo, as idéias liberais não se podiam praticar,


sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa
constelação especial, uma constelação prática, a qual formou
sistema e não deixaria de afetá-Ias. Por isso, pouco ajuda
insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acom-
panhar-Ihes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte
verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergo-
nhado diante delas - as idéias mais adiantadas do planeta, ou
quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia - e rancoro-
so, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também
com orgulho, de forma ornamental, como prova de moder-
nidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias
quando pesaram no Abolicionismo. Submetidas à influência
do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam
segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambigüi-
dades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil
era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por to-
dos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretan-
to, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes
era a sua natureza. Largamente sentido como defeito, bem
conhecido mas pouco pensado, este sistema de improprie-
dades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e di-
minuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o ceticismo
em face das ideologias, por vezes bem completo e descan-
sado, e compatível aliás com muito verbalismo. Exacerbado
um nadinha, dará na força espantosa da visão de Machado
de Assis. Ora, o fundamento deste ceticismo não está segu-
ramente na exploração refletida dos limites do pensamento 559
liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


intuitivo, que nos dispensava do esforço. Inscritas num siste-
ma que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias
da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diá-
ria, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram
aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam
aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo
mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e
favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim,
o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre
nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para
quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma
roupa entre outras, muito da época mas desnecessariamente
apertada. (SCHWARZ, 2000, p. 26-27; grifos meus)

Além do foco nas figuras centrais e nos textos escritos por elas,
chama a atenção nos artigos supracitados de Candido e neste livro
de Schwarz (aliás, dois sociólogos de formação), sobretudo se com-
parados ao Williams de O campo e a cidade, as vagas referências
à origem e posição social dos autores em tela, que não funcionam
como limitadores do que produzem, assim como a sua não inserção
em um sistema mais amplo de dependências e correspondências
intelectuais, o que, mesmo com amplas explanações e análises do
contexto, tanto em Candido quanto em Schwarz, parece reforçar
ainda mais o aspecto isolado e heroico do escritor, e, mais do que
isso, o papel da Literatura, em um momento em que no Brasil ele
precisava ser reforçado.
Pois é na década de 1970, em plena ditadura militar, que o campo
dos estudos literários começa a se estruturar por aqui, campo com
o qual esses textos dialogam o tempo todo. Mesmo se a questão da
dependência econômica e cultural aos países do Primeiro Mundo
(categoria da época) está na base da crítica literária de Schwarz,
pelo menos desde a sua frequentação do célebre Grupo do Capital,
ainda no início dos anos 1960, suas preocupações, nos anos 1970,
concernem, também, a formação de uma crítica/teoria brasileira.
Logo, o discurso da crítica literária já no início dessa década é bi-
fronte: ele visa tanto ao fora (o espaço social como um todo, incluí-
560
das a política e a cultura) quanto ao dentro (a obra em si, os pa-
res acadêmicos, as teorias, o estatuto profissional do pesquisador
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

e a instituição). Esse olhar para o seu próprio ambiente, para os


colegas de universidade, para as teorias em voga, em Schwarz, é
perceptível até os dias de hoje mas parece surgir ainda nos seus
anos parisienses, em que pôde ver de perto, a partir de sua prática
docente em Vincennes, onde foi professor substituto (“chargé de
cours”), o “terrorismo” teórico dos estruturalistas, cujo combate, é
preciso dizer, constitui o pano de fundo da sua crítica, como se pode
ler no próprio “As ideias fora do lugar”, podendo ser essas ideias, no
caso, não só as liberais, mas o próprio estruturalismo.
Daí o interessante diálogo que se inicia em 1970, não apenas
com o grupo concretista mas também com os professores da PU-
C-RJ, assim como ele em início de carreira e cujos pressupostos
se distanciam e se aproximam dos dele. Aproximam-se, nos casos
de Silviano Santiago e sua coletânea Uma literatura nos trópicos
(1978) e de Luiz Costa Lima e seu livro de 1973, Estruturalismo e
teoria da literatura, porque a pergunta de fundo segue a mesma:
como superar a dependência cultural? como ombrear com a cultura
dos países do Primeiro Mundo (categoria da época)? E se distan-
ciam, como se verá, na medida em que, em Santiago, a receita tem a
ver mais com a ruptura do que com a superação, e, em Costa Lima,
a superação advém do conhecimento de uma tradição europeia dos
estudos literários e da própria construção de uma teoria literária,
do seu estudo específico, que desconectado das questões sociais e
de uma tradição de estudos literários, pode se impor como forma
de reflexão sobre o texto.
De fato, em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, ensaio
de abertura de Uma literatura nos trópicos, escrito primeiramente
em francês, para uma conferência na Universidade de Montreal, em
1971, Silviano Santiago critica uma teoria literária com base nas
fontes e influências e, da mesma forma, o que ele chama de pseudo-
-marxismo, na medida em que este torna evidente a leitura do tex-
to literário, que deriva automaticamente de uma base econômica.
Como saída, propõe aos artistas e intelectuais do Terceiro Mundo
561
(categoria da época) a desconfiança dos poderes do colonizador. A

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


estratégia, de base modernista-oswaldiana, isto é, antropofágica, é
a de desafiar o colonizador, mas após ter interiorizado a sua estra-
tégia; a resposta cultural (e não apenas literária!) vem, assim, na
forma de uma obra ou texto crítico que, em momentos específicos
(ou seja, decisivos) incorpora a cultura dita superior mas que, ao
mesmo tempo, a questiona, uma obra que, ao invés da obediência a
um modelo ou a uma tradição, propõe a diferença. Ou seja, mesmo
que Santiago se abra a outras formas simbólicas, à cultura, digamos
assim, essas produções pretendem fazer parte da sua tradição se-
letiva. Ou seja, nada mais distante, nesse momento da produção de
Santiago, de uma ideia de cultura comum.
De sua parte, Luiz Costa Lima também reflete, de uma maneira
bastante peculiar, sobre o problema da dependência cultural. Se,
como Santiago, Costa Lima rejeita a busca das fontes, sejam elas
literárias ou econômicas, como Schwarz ele aposta na acumulação
teórica e científica como a única possibilidade de ultrapassagem
da condição dependente, apesar da sua insistência na análise fe-
chada e sincrônica da obra literária. Mas, à diferença de Schwarz,
ele não pensa que a acumulação, rumo à ideia de formação, passe
pelas questões brasileiras ou por uma articulação entre forma li-
terária e processo social. Sua principal contribuição do início dos
anos 1970 é uma obra enciclopédica, de mais de 400 páginas, que
resulta de sua tese de doutorado, intitulada Estruturalismo e teoria
da literatura, cujo objetivo é o de pensar uma teoria estrutural do
discurso literário. Orientado por Antonio Candido, que segundo o
próprio pouco o orientou, trata-se de estudo de leitura difícil, con-
cebida a partir de longos e excessivos comentários sobre autores
que pensaram sobre a linguagem e a literatura, desde Platão, pas-
sando por Hegel, Kant, a estilística alemã, os formalistas russos, até
os estruturalistas. A recepção favorável das teorias estruturalistas
atravessa o livro, desde a crítica do logos, em Derrida, até a visão
de ruptura, em Foucault. Mas são Lévi-Strauss e Lacan os autores
mais utilizados. Mesmo vindo de disciplinas não literárias, são eles
que darão o embasamento da teoria do crítico brasileiro, que toma
562 distância dos predecessores, isto é, das teorias estéticas, da estilís-
tica e do formalismo russo, os quais ele concebe como prisioneiros
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

da linguagem literária. Por meio dessa obra, o autor visa a de con-


tribuir para a evolução do campo conceitual no qual ele acredita e
transformar a literatura em objeto científico. Pois, para ele, trata-se
de construir um modelo sólido a partir do qual se pode olhar a li-
teratura. Daí a sua crítica frequente aos colegas estruturalistas que,
simplesmente, aplicam os conceitos vindos de fora. Ao contrário
desses, mas também ao contrário da crítica de Silviano Santiago,
ele não quer ser visto como crítico literário, mas como um teórico
da literatura, conservando uma postura de scholar e, concomitan-
temente, de cientista. Não é nada aleatória, portanto, no rol de refe-
rências possíveis do estruturalismo, a opção por Lévi-Strauss como
possível interlocutor, cuja obra, na França e no Brasil, àquela altura,
além de consagrada, fazia parte mais do universo científico do que
do literário.
É na contramão desses estudos monográficos e um pouco à
sombra das polêmicas do período que se organiza a História concisa
da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, de 1970. Por conta de sua
ambição enciclopédica – dar conta da literatura brasileira de 1500
a 1970 – se esperaria alguma relação mais próxima com O campo e
a cidade. Porém, não é o que se constata. Mesmo que Bosi busque
olhar por fora (contexto, ideias em voga) e por dentro dos textos,
atente às correntes estéticas, dedique minibiografias intelectuais à
maioria dos autores estudados, esses aspectos não vêm, na maioria
das vezes, articulados, como em Williams. E, mais do que isso, nem
os autores nem as obras respondem diretamente aos dilemas que
a sociedade lhes impõe, permitindo que se aprenda mais sobre ela.
O objetivo de Bosi, mais do que em Candido e Schwarz, é antes que
se aprenda sobre as obras e, especificamente, sobre as melhores
obras literárias, que são as que o autor dedica análises mais alenta-
das, porque uma das missões do livro é separar o joio do trigo, seja
dentro de um mesmo período literário em exame, seja no conjun-
to da obra de um autor, atentando-se, sobretudo, para a qualidade
literária e para o modo como um determinado autor consegue ar-
ticular o domínio do estilo (derivado de um conjunto de autores
europeus) com o toque pessoal, ou seja, incorporar os pressupostos 563
de uma corrente estética adequadamente, sem constituir uma mera

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


imitação de superfície. No limite, a ideia de superação e de indepen-
dência está latente também nessa obra.
A título de exemplo, o exame da obra de Aluísio Azevedo con-
siste em apontar a dívida do autor para com Zola, dívida essa que
é também o seu limite, já que, apesar de conseguir, a partir do au-
tor francês, descrever como ninguém os agrupamentos humanos,
não consegue superar o naturalismo mais chão, nem compreender
a realidade brasileira de modo adequado, pois a sua perspectiva é,
para Bosi, antes de tudo fisiológica. O seguinte fragmento permite
ver a distância da crítica de Candido e de Bosi do mesmo romance,
O cortiço, distância que diz das lentes e dos realces de cada crítico:

A redução das criaturas ao nível animal cai dentro dos códi-


gos antirromânticos de despersonalização; mas o que uma
análise mais percuciente atribuiria ao sistema desumano de
trabalho, que deforma os que vendem e ulcera os que com-
pram, à consciência do naturalista aparece como um fado de
origem fisiológica, portanto inapelável. Como dá caráter ab-
soluto ao que é feito da iniquidade social, o naturalista acaba
fatalmente estendendo a amargura da sua reflexão à própria
fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se-lhe
uma selva selvaggia onde os fortes comem os fracos. Essa a
mola do Cortiço. Essa, a explicação das vilanias e torpezas
que ‘naturalmente’ devem povoar a existência da gente po-
bre. E essa também a causa do desfecho, que se quer trágico,
mas é apenas teatral (BOSI, 2013, p. 202-203).

De tanto olhar para o modo como, do ponto de vista estético,


Azevedo obedecia à fonte Zola, não a superando, Bosi não atentou
para outra mola, a do dinheiro, que governava relação de João Ro-
mão com Bertoleza e que constituía o núcleo do romance.

c
Em 1992, três anos após a tradução de O campo e a cidade, Alfre-
564 do Bosi publica a sua obra maior, Dialética da colonização, gestada
desde a década de 1970, em que as análises – mais culturais do que
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

literárias – de cunho gramsciano são a tônica. Uma delas, a primei-


ra, intitulada “Colônia, Culto e Cultura” e que começa pela análise
das palavras – as keywords – o autor parece se aproximar, por ou-
tras vias, da ideia de cultura comum (nota importante: Williams
não é referido na obra). Em uma das passagens, lê-se:

Como o Eros platônico, que é filho da Riqueza e da Penúria,


não sendo nem uma nem outra, mas vontade de livrar-se do
jugo presente e ascender à fruição de valores que não pere-
çam, assim o labor simbólico de uma sociedade pode revelar
o negativo do trabalho forçado e a procura de formas novas e
mais livres de existência. [...]. A condição colonial, como sis-
tema, é reflexa e contraditória (BOSI, 1992, p. 30).

Destarte, ao longo do livro, o autor procurará pelo contraditório,


pelo emergente e pelo residual, situados entre a rigidez da base e
da superestrutura, que condena. Mais do que isso, a literatura e cul-
tura tornam-se forma de luta dos oprimidos no campo social, como
se lê ao final do primeiro capítulo, em que Bosi relembra uma missa
a que assistira em 1975, em Cotia:

O capelão se postou com seus acólitos junto ao altarzinho


azul cheio de estrelas de purpurina e deu começo à reza pu-
xando um ter­ço alto e forte. Os fiéis, quase todos mulatos
de pé no chão e tresan­dando a pinga, e algumas mulheres
menos mal vestidas que os ho­mens respondiam pelo mesmo
tom e altura. Ia a coisa assim bonita e simples, até que, reci-
tadas as cinco dezenas de ave-marias e os seus padre-nos-
sos, chegou a hora do remate com o canto da Salve Rainha.
O capelão começou a entoar nesse instante hino à Virgem,
em latim (“Salve Regina, mater misericordiae”...), e, o que es-
tranhei, foi se­guido de pronto sem qualquer hesitação pelos
presentes. Depois veio o espantoso, para mim: a reza, tam-
bém entoada, de toda a extensa ladainha de Nossa Senhora
igualmente em latim. Eu olhava e não acabava de crer: aque-
les caboclos que eu via mourejando de serventes nas obras
do bairro estavam agora ali acaipirando lindamente a poe­sia
medieval do responso [...]. (BOSI, 1992, p. 49) 565

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Segue a conclusão de Bosi sobre o ritual que acabou de assistir:

A devoção, mais talvez que outras esferas da vida em socie-


dade, propicia fenômenos de persistência simbólica que, em
alguns momen­tos críticos de reação à prepotência do Estado
modernizante, tomou a forma de uma obstinada re-arcaiza-
ção da comunidade inteira. Foi o caso de certos movimentos
ao mesmo tempo regressistas e proféti­cos, tradicionalistas
e rebeldes, como Canudos e o Contestado, de ca­ráter mile-
narista.
Tudo leva a crer que, nesses cruzamentos da cultura letrada
en­volvente com a não letrada envolvida, a situação das áreas
coloniais apresente aquele convívio de extremos: os proje-
tos mais agressivos do capitalismo ocidental se plantam por
entre modos de viver antigos e, nesta ou naquela medida,
resistentes. Que esse coabitar do arcaico com o moderniza-
dor não seja um paradoxo conjuntural, mas um fe­nômeno
recorrente na história da colonização, é hipótese que só no­
vas pesquisas de campo e de texto poderão confirmar. (BOSI,
1992, p. 50-51)
É evidente aqui o diálogo não apenas com Williams - mas, tam-
bém com o E.P. Thompson de Costumes em comum - ao tratar das
culturas residuais, dando-lhes a devida dignidade, a partir da expe-
riência pessoal.
Em 1998, seis anos depois da publicação de Dialética da coloni-
zação, a ABRALIC, a Associação Brasileira de Literatura Compara-
da, daria o seguinte título para o seu congresso internacional: “Li-
teratura Comparada = Estudos Culturais?” Por mais que o ponto de
interrogação pudesse ser lido – e o foi – como uma provocação aos
literatos puros, e por mais o valor da Literatura não fosse reivindi-
cado (e questionado) em mais de uma conferência, o título é uma
preparação para o próximo congresso, de 2000, em Salvador, que
contaria com a presença de dois herdeiros de Williams e dos estu-
dos culturais britânicos, Paul Gilroy e Stuart Hall. Sinal dos tempos,
mas não sem as devidas resistências dos defensores da Letras.
566
REFERÊNCIAS
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São


Paulo: Cultrix, 2013.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia


das Letras, 1992.

CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Ci-


dades, 1993.

LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e teoria da literatura. Petró-


polis: Vozes, 1973.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo:


Perspectiva, 1978.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária
e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a


Orwell. Petrópolis: Vozes, 2011a.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Edi-


tora Unesp, 2011b.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na lite-


ratura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

RESUMO
Neste capítulo, pretendo tratar de alguns aspectos da críti- 567
ca/teoria literária de Raymond Williams, enfatizando seja o

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


seu método de análise, seja seus pressupostos e ideias gerais.
Ainda, com foco em O campo e a cidade, obra de 1973, busco
comparar o trabalho de Williams com outras obras e escritos
de crítica literária brasileira surgidas no Brasil à mesma épo-
ca. Na comparação, tento demonstrar que esse conjunto de
textos trabalha na perspectiva da exceção e da excelência, e
não na perspectiva da cultura como algo comum, vislumbrada
por Williams, o que parece dizer tanto dos impasses da nos-
sa crítica naquele período quanto das possibilidades teóricas,
abertas por esse autor nos anos 1970.
Palavras-chave: Raymond Williams, O Campo e a Cidade, Crí-
tica Literária Brasileira.

ABSTRACT
In this chapter, I intend to deal with some aspects of Raymond
Williams’ literary criticism/theory, emphasizing both his
method of analysis and his general assumptions and ideas.
Still, focusing on The Country and the City (1973), I compare
Williams’ work with other works and writings of the Brazilian
literary critic in the same period. In comparison, I try to
demonstrate that this set of texts work from the perspective
of exception and excellence, and not from the perspective of
culture as common, envisioned by Williams, which says as
much about the impasses of our criticism in that period as
about the theorical possibilities opened by the author in the
1970’s.
Keywords: Raymond Wiliams, The Country and the City,
Brazilian Literary Criticism.

SOBRE O AUTOR
Jefferson Agostini Mello é professor associado da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de
568 São Paulo. Está credenciado como orientador no Programa de
Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH e no Programa
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Faculdade de


Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Possui expe-
riência na área de Letras, com ênfase na literatura em suas re-
lações com os processos sociais, atuando principalmente nos
seguintes temas: ficção brasileira contemporânea e história e
teorias dos estudos culturais.
LUTO E ESPERANÇA:
FLORESTAN FERNANDES,
STRUTURA DE SENTIMENTOS
E O EXÍLIO CANADENSE

Adelia Miglievich-Ribeiro1
Eliane Veras Soares2

Introdução
569

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Por que o diretor da escola não
me enviou para uma universida-
de no País de Gales?
Essa teria sido uma orientação
mais adequada à minha vida.
[...] Uma vez enviado a Cambri-
dge, eu possuía um sentido bas-
tante aguçado [...], de ter meu
próprio povo me apoiando nessa
empreitada.
Raymond Williams, 2013.

1
Doutora em Sociologia (UFRJ). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Uni-
versidade Federal do Espírito Santo. E-mail: adelia.ribeiro@ufes.br. Link para o Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6821974709618583. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-9736-
2996.
2
Doutora em Sociologia (UnB). Professora do Departamento de Sociologia da Universi-
dade Federal de Pernambuco. E-mail: eliane.soares@ufpe.br. Link para o Lattes: http://
lattes.cnpq.br/8991148779865105. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8792-1042.
Acho que a coisa mais difícil que
fiz foi permanecer fiel
à minha classe de origem.
Florestan Fernandes, 1991.

O interesse em reunir dois intelectuais marxistas coetâneos, de


distintas tonalidades e ênfases, mesmo não tendo um bebido da
fonte do outro, é o exercício a que nos propomos nessa coletânea,
trazendo à baila mais um aniversariante centenário: Florestan Fer-
nandes (1920-1995), cuja trajetória é analisada à luz do materia-
lismo cultural do crítico galês, Raymond Williams (1921-1988). Os
personagens em tela possuem nítidas afinidades, a começar por
sua origem social e engajamento público.
Raymond Williams era filho da classe trabalhadora. O pai de
Williams começou a trabalhar garoto em uma fazenda pequena,
570 tornou-se sinaleiro de estradas de ferro, depois foi carregador e as-
sistente de sinaleiro até chegar a ferroviário. Não se nega que tal
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

posição naquelas décadas de crise e desemprego era algo valoroso,


dado que assalariado sindicalizado usufruindo de estabilidade. Ser
ferroviário na vila de Pandy, onde morava, era, também, atuar como
um elemento da modernização. Os ferroviários, em distintos pon-
tos das linhas férreas, liam bastante e conversavam por horas sobre
os acontecimentos políticos para além da pequena vila. O garoto
Williams, influenciado pelo pai, frequentava o New Left Club, ligado
ao Partido Trabalhista. Após a I Guerra, o pai que foi combatente
volta com ideais mais radicais que o leva ao socialismo. Por sua vez,
a mãe, que havia sido ordenhadora, adaptou-se ao papel clássico
de dona de casa, sem deixar de manifestar suas opiniões políticas
(CEVASCO, 2007).
Cevasco (2007) prossegue narrando que Williams seguiu para
completar seus estudos, mediante bolsa de estudos, na escola King
Henry VIII, no condado de Abergavenny, e, do mesmo modo, na Uni-
versidade de Cambridge quando se filiou ao Partido Comunista e ao
Clube Universitário Socialista. O caráter elitista do curso de Letras,
porém, afastou-o, em um primeiro momento, da vida acadêmica.
Voluntariou-se na II Guerra, atitude que divergia das diretrizes do
Partido Comunista, levando-o ao desligamento. Com o fim da guer-
ra, viu mudanças significativas em seu curso mesmo. A tendência à
democratização animou-o. De volta ao trabalhismo, “centro de gra-
vidade da esquerda britânica” (RIVETTI, 2020, p. 4), somente deste
se desprendeu na medida em que o reformismo crescente do parti-
do abdicou da transformação social. Aderiu, ao lado de E. P. Thomp-
son e Stuart Hall, dentre tantos, à “nova esquerda”, que buscava,
então, se distinguir do autoritarismo, do movimento comunista e
da social-democracia.
Mas, o presente ensaio não quer interpor a trajetória do galês a
do sociólogo brasileiro. Nosso desafio está em tomar o quadro teó-
rico-conceitual de Williams para desvelar a biografia de Florestan
Fernandes, atando-a, em consonância ao materialismo cultural do
teórico de Cambridge, às “estruturas de sentimentos” de seu tempo
histórico e, ultrapassando, assim, a perspectiva mais estritamente 571
individualista.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


A categoria “experiência” é a mais cara no quadro analítico de
Williams e, para ele, acentua a percepção dos movimentos de he-
gemonia e de contra-hegemonia, segundo a orientação gramsciana,
dos deslocamentos entre “tradição” ou status quo, da “oposição”,
que nasce de suas brechas, do “alternativo”, que deixa de ser oposi-
ção, deixando-se cooptar pela hegemonia, apenas sob a aparência
de divergência. A cultura, para este autor, é o lócus da luta política,
eis que é infra e superestrutural3, quando Williams rebate explici-
tamente o marxismo althusseriano. A cultura é vida, cotidiano, prá-
xis. É ordinária, mundana, comum. Nela os vínculos de classe, como
lembra Passiani (2020, p. 13), se firmam ou se desestabilizam.

As estruturas de sentimento podem ser definidas como ex-


periências sociais em solução, distintas de outras formações
3
Para Williams não há um dualismo entre experiência e consciência. O estudioso fala, na
verdade, da “consciência prática”, que emerge das situações vividas como uma qualida-
de particular da experiência social, a qual não opõe pensamento e sentimento, sendo o
pensamento tal como sentido e o sentimento tal como pensado, o elemento de uma “es-
trutura” que se dá como “uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo
engrenadas e em tensão” (WILLIAMS, 2013, p. 134).
semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma
mais evidente e imediata. Nem toda arte, porém, se relaciona
com uma estrutura contemporânea de sentimentos. As forma-
ções efetivas da maior parte da arte presente se relacionam
com formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais,
sendo principalmente com as formações emergentes (embo-
ra com frequência na forma de modificações ou perturbações
nas velhas formas) que a estrutura de sentimento, como solu-
ção, se relaciona. (WILLIAMS, 2011, p. 134)

A “hegemonia” é o conjunto de relações que envolvem as “estru-


turas de sentimentos” que, como insurgência, têm o potencial de
a desafiar. Ela é, assim, “uma tentativa de apreender processos de
emergência de experiências típicas que constituem um certo qua-
dro geracional” (WILLIAMS, 2011, p. 134), ou melhor o “fragmento
de uma geração” (FERNANDES, 1977, p. 219).
Há um denominador comum na geração desses intelectuais públi-
572
cos centenários que tratamos: o “luto” e a “esperança”. Sua prática “re-
volucionária” jamais seria explicada exclusivamente pelas redes bu-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

rocráticas em que transitou. Somente ao perscrutar as “estruturas de


sentimentos”, indefinidas e difusas, é que estaremos mais próximos
de compreender as transformações que sugerem uma “atmosfera de
mudança” que Florestan respirou dado que partícipe das dinâmicas
sociais de sua época. As “estruturas de sentimentos”, definidas por
Raymond Williams, concretizam-se nas experiências cotidianas em
conflito que, por sua vez, trazem em si a história de gerações.

[...] é uma qualidade particular da experiência social e das


relações sociais, historicamente diferente de outras qualida-
des particulares, que dá o senso de uma geração ou de um
período [..] Falamos de elementos característicos do impul-
so, contenção e tom; elementos especificamente afetivos da
consciência e das relações, e não de sentimento em contra-
posição ao pensamento, mas de pensamento tal como senti-
do e de sentimento tal como pensado: a consciência prática
de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacio-
nada. Estamos então definindo esses elementos como uma
“estrutura”: como uma série, com relações internas específi-
cas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão. (WILLIAMS,
2013, p. 134)

Muito se fala sobre a origem social de Florestan Fernandes, mas


pouco se compreende o significado de suas vivências no “intelec-
tual radical” que efetivamente foi, em que pesem os processos li-
mitantes da autonomização intelectual. Sua vida e obra são nele
exemplarmente intercambiáveis. Florestan Fernandes constrói, na
vida real, sua personalidade. Esse tempero do seu caráter, acompa-
nhou-o até o fim. Na experiência social, tal como descreve Williams,
todos nós produzimos e reproduzimos nossa existência no mundo
que, por sua vez, conforma, junto às dos outros, a totalidade social,
suas estruturas e as “fendas” nas estruturas. Disso decorre, prova-
velmente, seu “radicalismo” ao ponto de, em situações dramáticas,
negar para si o financiamento de agências internacionais como da
Fundação Ford e da Fundação Volkswagen. 573

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


O homem é limitado por sua condição humana [...] e talvez
[eu] tenha certas limitações incuráveis, que nascem de ci-
catrizes do passado. São as cicatrizes que me tornam um
tanto relutante para aproveitar vantagens que minha posi-
ção me proporciona (como o caso da dotação oferecida pela
Fundação Volkswagen, com a qual vou fazer o mesmo que já
fiz com ofertas análogas da Fundação Ford), e que percebo
me levam a agir de forma irracional. Um paradoxo. Tentar
ser ‘racional’ por vias irracionais. O que fala, porém, é o
meu passado, tão vivo em minha consciência crítica, de
criança que começou a enfrentar a vida em toda a ple-
nitude com pouco mais de seis anos. [...] A fonte da minha
força não passa, portanto, de uma imensa fraqueza, já que
estou condenado a ser um mero intelectual. (Carta de Flo-
restan Fernandes a Barbara Freitag. Toronto, 22 de abril de
1970. In FREITAG, 1996, p. 149. Os grifos são nossos)

Esse ensaio pretende partir da reconstrução de sua trajetória,


necessariamente relacional, na ênfase à sua experiência do exílio
em Toronto e que pôde ser resgatada nas cartas a uma especial re-
metente, Barbara Freitag4, que o ajudou a “sobreviver” no “clima”
desolador do exílio. Pretendemos, à luz de Raymond Williams, re-
visitar parte da correspondência de Florestan - além de ensaios e
entrevistas - que se constitui em um espaço que mistura uma au-
torreflexão sincera, lúcida e autocrítica, aos sentimentos intempes-
tivos de amargura, que contaminavam seu “fragmento de geração”.

Estruturas de sentimentos:
a iniciação de Florestan Fernandes

O destino acadêmico não era “naturalmente” o de Florestan Fer-


nandes. Como lumpen, Ele estava à margem do sistema, sem per-
tencimento. Entretanto, é esta sensação que marca profundamente
sua existência. Digamos que o exílio canadense não teria sido seu
primeiro exílio, aqui no sentido metafórico. Quando do ingresso na
574 USP, em 1941, aquele que viria a ser professor catedrático, reco-
nhecido nacional e internacionalmente, vivenciou na pele - senso-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

4
Em 1996, um ano após o falecimento de Florestan Fernandes, a pupila outsider publicou
em uma coletânea as cartas trocadas com o mestre. Barbara Freitag perguntava-se por
que teria sido eleita por ele como sua correspondente assídua. Pensa que, dada sua na-
cionalidade alemã e sua origem burguesa, era uma forma de Florestan comunicar-se com
um “mundo” diferente. Sobretudo, supunha que o professor soubesse que a típica menta-
lidade burguesa e seu senso de propriedade garantiriam que as cartas não se perderiam.
Crê, em verdade, que as cartas não se dirigiam só a ela e que Florestan gostaria que viesse
a público (FREITAG, 1996, p.132-133). Além da correspondência com Barbara Freitag,
esse é um período de intensa troca de cartas com amigos, com intelectuais e com a famí-
lia, em especial com a sua esposa Myrian Fernandes e com a sua filha Heloisa Fernandes.
Esta última escreveu um belo texto intitulado “Chaves do exílio e portas da esperança”,
baseado na correspondência de Florestan Fernandes com a esposa Myrian Fernandes (ver
FERNANDES SILVEIRA, 2006). De um ponto de vista williamsiano podemos entender os
testemunhos escritos como materialização da cultura de um tempo histórico.
rialmente, portanto - a condição de “estrangeiro”, talvez, quase “ne-
gro”5 buscando “se integrar” à ordem capitalista burguesa6.
Suas vivências se iniciaram quando sua mãe, Maria Fernandes,
imigrou para o estado de São Paulo com a família, saindo do norte
de Portugal “tangida pela fome”. Quanto Florestan nasceu, a 22 de
julho de 1920, sua mãe trabalhava na casa da família Bresser de
Lima, casal abastado e sem filhos. Os patrões de Maria Fernandes
tornaram-se padrinhos de Florestan. Entretanto, quando o meni-
no estava com seis anos, dona Maria Fernandes, retira o filho da
casa dos padrinhos, negando-lhes indignada a adoção do pequeno
Florestan: “filhos não se dão, dão-se cães” (SEREZA, 2005, p. 30).
Uma mudança abrupta processou-se ali. Sem a “proteção” da famí-
lia Bresser de Lima, em especial de dona Hermínia Bresser de Lima,
a criança passou, com a mãe, a garantir o pão de cada dia7. Analfa-
beta, dona Maria vivia das roupas que lavava. O filho, nos violentos
rituais de iniciação da rua, defendendo-se corajosamente, inclusive,
575
dos rituais de subalternização sexual dos mais fracos pelos mais

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


fortes, nas mudanças constantes de endereço para lugares sempre
degradados, portanto, sem a vivência da infância, cedo, aprendeu a
se defender e teve moldado seu caráter, agreste e rústico, orgulho-
so, tenaz, daquele que conheceu a humanidade em seu nível mais
dramático: o da sobrevivência.

5
Não é casual seu empenho para a materialização de uma de suas mais eminentes obras:
A integração do negro na sociedade de classes, tese de cátedra defendida em abril de 1964.
Quando se aprofunda na história de vida de Florestan Fernandes, fica evidente em diver-
sas passagens da referida obra uma espécie de identificação do autor com o destino do
“negro” na sociedade de classes. Em suas palavras: “[...] os leitores irão notar (e alguns,
provavelmente, estranhar) um constante esforço de projeção endopática na situação do
negro e do mulato. Devemos salientar que essa projeção nasce de uma simpatia profunda
e de um desejo ardente de compreender os dilemas com que o “negro” se defronta so-
cialmente. Procuramos evitar, cuidadosamente, que esse estado de espírito interferisse
nas interpretações: se aqui ou ali exageramos na conta, paciência! Tantos já erraram por
motivos diferentes, deformando e detratando o “negro”, que não haveria mal maior em tal
compensação... (FERNANDES, 2021, p. 54-55).
6
Entretanto, é preciso deixar claro que Florestan Fernandes muito cedo adotou posição
política claramente socialista. Sobre o tema, consultar Heloisa Fernandes (2006 e 2008);
Eliane Veras Soares (1997) e Soares; Costa (2021).
7
Maria Fernandes foi mãe de Florestan, cujo pai não assumiu a paternidade, e de uma me-
nina, Teresa, fruto de outro relacionamento, criada por uma tia paterna, que veio a falecer
precocemente aos cinco anos. Cf. SEREZA, 2005, p. 27-28 e p. 30-31.
[..] tive de enfrentar a violência terrível que menores mais
velhos exerciam sobre outros menores mais novos. Quando
se mudava de um lugar para outro, havia a recepção hostil
até que a pessoa fosse adotada pelo grupo e às vezes essa ini-
ciação tinha um caráter violento, porque sempre havia o in-
tuito de transformar um menor que se deslocava em parcei-
ro sexual e outros que praticamente se aproveitavam, ou da
inexperiência, ou da falta de proteção do garoto, porque tudo
ficava mais ou menos fechado dentro do silêncio Os meninos
não iam contar em casa. Então a criança ficava entregue a si
própria; se ela tivesse a sorte de ir para um bairro no qual
isso não acontecesse, a hostilidade poderia se transformar
em recepção pacífica e incorporação sem violência. Agora,
algumas vezes havia violência, duas vezes eu enfrentei situa-
ções de extrema violência, a mais forte foi quando fui morar
na rua Dr. Luís Barreto, numa área que era um cortiço que
tinha duas entradas, uma pela Dr. Luís Barreto, outra pela
rua Santo Antônio. E havia ali um líder chamado Papaiano,
que era o apelido dele, e que tinha essa mania de abusar dos
menores e, é claro, se não abusava, depois outros abusavam.
576 E tentou me submeter a esse ritual de iniciação. Eu fiquei
pensando como enfrentar – ele era mais velho que eu e mui-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

to mais forte, eu era um menino pequeno e franzino – até que


tive a ideia de ir lá na minha madrinha, que era rica e minha
mãe trabalhava na casa dela quando eu nasci. Ela me dava
uns Borzeguins. Borzeguins eram umas botinas feitas na
casa Clark. Duravam muito. Eu tive a ideia de abrir o couro e
enfiar giletes no meio [...]. Ele cuspiu no chão e eu passei o pé
em cima. Esse era o ritual pelo qual eu aceitava a luta. Aí ele
avançou pra mim e eu chutei a canela dele, ele deu um berro
e foi segurar a área ferida, aí eu bati nele. Eu dei uma sova
nele que ele ficou estendido no chão [risos] e nunca mais
ninguém mexeu comigo. Quer dizer, ali eu fiquei respeitado
(FERNANDES apud SOARES; COSTA, 2021, p. 54-55).

Depois de ter passado por diversos tipos de trabalhos, tendo sido


engraxate e, posteriormente trabalhado no bar Bidu, apenas aos 17
anos retomou os estudos interrompidos no terceiro ano primário.
É nesse contexto, difícil de ser imaginado e sentido por quem não
passou por experiência semelhante, que se pode compreender o
sentido da afirmação de Florestan:
Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o
meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que
recebi, através das duras lições da vida. Para o bem e para
o mal – sem invocar a questão do ressentimento, que a crí-
tica conservadora lançou contra mim – a minha formação
acadêmica superpôs-se a uma formação humana que ela
não conseguiu distorcer nem esterilizar. Portanto, ainda
que pareça pouco ortodoxo e anti-intelectualista, afirmo que
iniciei a minha aprendizagem “sociológica” aos seis anos,
quando precisei ganha a vida como se fosse um adulto e pe-
netrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento
do que é a convivência humana e a sociedade [...] (FERNAN-
DES, 1977, p. 142. O grifo é nosso)

O jovem de inteligência brilhante e autodidata, conciliando os


estudos e o trabalho, contando com o apoio de poucos e bons ami-
gos, passaria no exame para o curso de Ciências Sociais na USP.
Agarrou a oportunidade com “unhas e dentes”, lutou conta todos os
obstáculos, em curtíssimo prazo fez o mestrado, na Escola Livre de 577
Sociologia e Política sob orientação de Hebert Baldus, o doutorado

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


na USP, sob orientação de Fernando de Azevedo, e, em 1953, defen-
deu a tese de livre docência. Durante esse período foi assistente de
Fernando de Azevedo na cadeira Sociologia II e de Roger Bastide
na cadeira de Sociologia I. Mais tarde foi pelo professor Bastide in-
dicado a substituí-lo na cátedra, quando de seu retorno a França.
Florestan soube construir um saber específico, ainda nascente no
Brasil: as ciências sociais, na defesa intransigente do rigor científi-
co e coerente com sua história de classe e engajamento nas causas
públicas, em prol da superação das abissais desigualdades que con-
denavam a massa da população brasileira à miséria (SOARES, 1997;
SOARES; COSTA, 2021).
Vários eram os dilemas brasileiros que provocavam Florestan,
desde a falácia da democracia brasileira nos planos social, político e
racial; o subdesenvolvimento, o capitalismo dependente e o proces-
so de descolonização inacabada; até os obstáculos à transformação
social. Coerente a seus ideais, no final dos anos 1950, juntou-se de
corpo e alma àqueles que promoviam a “Campanha em Defesa da
Escola Pública” (PORTELA JR, 2021). Participou de vários foros so-
bre as “reformas de base” que, então, se queria levar a cabo no Bra-
sil no Governo João Goulart. Esses e outros enfrentamentos fariam
de Florestan “alvo” das forças reacionárias que tomaram o poder
com o Golpe Militar de 1º. de abril de 1964, apoiado pelo empresa-
riado brasileiro. O “fragmento de geração” politicamente engajado,
ao qual pertencia o sociólogo paulista, compartilhou, em seu coti-
diano, dramas similares.
As “estruturas de sentimentos” dialogam com as noções de mood
e de Stimmung, em alemão, podendo ser traduzidas como “clima”,
“atmosfera”, “humor”8. A diferença está, como explica Gajanigo
(2020), na ênfase dada por Raymond Williams ao materialismo cul-
tural. Enquanto este é fundamentalmente de cunho histórico, mood
concerne mais a momentos e situações.

A ideia de sintonização que está na formulação alemã é cha-


ve para nosso estudo. Quando se age sobre o clima de um
578 ambiente, de uma situação social, age-se sobre a referência
afetiva da prática dos sujeitos. Toda prática social está já im-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

buída em um clima que é social, é a sintonização dos sujeitos


ao clima que os faz interessados e interessantes no mundo.
Nesse sentido, o conceito de clima explora um aspecto que
não está evidente nos estudos sobre discurso, a saber, as
condições afetivas ambientais (a sintonização) que permi-
tem um sujeito agir numa certa situação social. Por essa ra-
zão, afirmamos que a disputa pelo clima de um debate pú-
blico é um aspecto relevante na compreensão dos conflitos
políticos, pois é por meio dela que se configura o que é ou
não audível. O foco no clima também sugere a relevância dos
instrumentos de ambientação social, ou seja, instituições,
mecanismos, aparelhos que atuam na configuração social do
clima. Nesse sentido, a conexão com o conceito de “estrutura
de sentimentos” de Raymond Williams ajuda a compreender
a centralidade da cultura na disputa sobre como sentir e seu
aspecto intrinsecamente político. (GAJANIGO, 2020, p. 171)

8
Gajanigo (2020, p. 171) explica: “Nosso humor/mood parece mais amplo do que somos,
sua localização é difícil de determinar ou fixar. Nosso humor cinzento aborrece a todos;
uma sensação de alegria banha tudo com uma luz rosa. No entanto, pensamos em nós
como estando num certo estado de ânimo (e não o contrário); estamos envolvidos ou
tomados por um clima. Mood é um sentimento de eu-e-mundo juntos”.
É nesse sentido que o “clima” na USP ficou cada vez mais pesado.
O professor chegou a ser preso por três dias em setembro de 1964,
quando ocupava o cargo de Professor Catedrático9.

Em 64, a minha inclusão em uma lista de professores a serem


inquiridos pelos policiais militares estava ligada à minha pró-
pria vida intelectual. Quando cheguei à universidade, eu era
o Florestan de origem proletária, o que nunca neguei. Eu não
procurei na universidade um meio de ascender socialmente
e me confundir com as elites. Sempre tive um papel ativo: me
tornei assistente na Faculdade de Filosofia, e a primeira coisa
que comecei a fazer foi combater a cátedra, uma forma arcaica
de autoridade do professor, e a lutar pela autogestão coleti-
va do departamento. Inclusive, defendi a gestão paritária. Fiz
parte das campanhas de defesa da escola pública, pelas refor-
mas estruturais de base e pela reforma universitária. Em 64,
puniu-se esse padrão intelectual, indesejável em uma socieda-
de na qual as elites querem manter a sua ordem de qualquer
maneira. (FERNANDES, 1991, p. 21-22) 579

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


Em 1968, antes mesmo do AI-5, Florestan Fernandes pediu sua
demissão, sendo dissuadido pelos amigos e colegas mais próximos,
não a levou adiante, em que pese estar seriamente abalado com as
acusações de alguns colegas, dentre as quais, de que estaria ele por
trás da “invasão” da reunião da Congregação da Faculdade de Filo-
sofia por parte dos estudantes.

As ocorrências do dia 21 deste mês adquiriram o significado


da gota d’água que faz o copo transbordar. Achei que jamais
voltaria a ter condições normais de ajustamento pessoal, no
clima de relações humanas que se desenha para o futuro, no
convívio dos professores entre si e com os estudantes. Por
isso, decidi afastar-me para não trair-me. Ao tomar essa de-
cisão aceitava confortavelmente as suas consequências, dis-
pondo-me a começar as atividades intelectuais em alguma
profissão na qual a minha pessoa não precisasse ser posta
em questão de maneira intermitente (O PROFESSOR FLO-

9
Recomendamos a leitura de sua carta de 9 de setembro de 1964, intitulada “Autodefesa”
dirigida ao Tenente-Coronel Bernardo Schönmann, responsável por inquiri-lo. Cf. FER-
NANDES, 1977, p. 209-212.
RESTAN FERNANDES RETIRA O SEU PEDIDO DE DEMISSÃO,
2008, p. 25).

No caso de Florestan Fernandes, ele estava na universidade e na


imprensa lutando contra a ditadura, inclusive viajando para reali-
zação de diversas conferências em fóruns diversos. A “atmosfera”
se adensa. Na última carta enviada para Barbara Freitag, antes do
Ato Institucional n.5, decretado a 13 de dezembro de 1968, ele nar-
ra acontecimentos trágicos:

A nossa escola foi bombardeada: pelos “alunos” do Macken-


zie, ou melhor pelo CCC (comando de caça aos comunistas)
[...] Destruíram tanta coisa, de cortar o coração. Fiquei furio-
so. Mas, nada pude fazer – nem posso nem poderei. [...] A luta
atual está entre o meio fascismo (o fascismo disfarçado
existente) e o fascismo declarado, que a extrema direita
quer impor ao País. É difícil ter êxito político em tal contexto,
580 principalmente porque a violência faz parte da opressão or-
ganizada, manipulada a partir de cima pelas classes no po-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

der. (Carta de Florestan Fernandes a Barbara Freitag. São


Paulo, 4 de novembro de 1968. In FREITAG, 1996, p. 144. Os
grifos são nossos)

Recorrendo novamente às lentes de Williams, em análise já rea-


lizada anteriormente (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2020), cabe observar
sua aproximação à fenomenologia de Schutz, para quem os proces-
sos interativos são capazes de promover algo como uma “consciên-
cia intersubjetiva” que conecta as dimensões cognitivas, afetivas,
estéticas e outras nas experiências idiossincráticas em processo.
Assim, o “clima” é algo “dentro-fora” de cada um que participa de
uma ambiência, tanto que é bastante corriqueiro dizer “não estou
no clima”. Importa reiterar, ainda em acordo com Gajanigo, inspi-
rado por De Rivera (2007) que os climas são “socialmente cons-
truídos e percebidos pelos indivíduos, são objetivos no sentido
de que são percebidos como existentes para além dos sentimentos
pessoais dos indivíduos. Eles refletem a maneira que os indivíduos
pensam como a maioria dos outros estão sentindo na atual situação
do grupo” (GAJANIGO, 2020, p. 169. O grifo é nosso).
Florestan sabia o que adviria do recrudescimento do regime.
Não antevia, porém, o quanto lhe seria custoso o exílio no Canadá.

No final de 68, a ditadura tinha que fazer comigo o que ela


fez, porque assim como fui implacável na luta, eles foram
implacáveis na repressão. Fui submetido a inquérito policial
militar, processado, julgado e inocentado pela Justiça Militar
e, finalmente, cassado pelo AI-5 e afastado da Universidade
[...]. Não foi uma saída legal [a saída do país], foi virulenta e
difícil. Ela aconteceu por pressões externas. Houve protestos
na Universidade de Toronto e do governo do Canadá. Mas
houve algo ainda mais eficiente que eu só soube depois de
ter cometido muitas injustiças contra companheiros norte-
-americanos do movimento dos Direitos Civis. O Magalhães
Pinto, então ministro das Relações Exteriores, foi preso em
Nova Iorque, dentro de uma sala, por várias horas, até con-
cordar em autorizar minha saída do Brasil. Eu devia estar no 581
Canadá em fins de julho, início de agosto, o mais tardar, e só

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


cheguei lá em novembro de 1969. (FERNANDES, 1991, p. 22)

É com inevitável revolta que, novamente em carta para Barbara


Freitag, narra sua aposentadoria compulsória10. Um continuum de
acontecimentos acaba por afetar sua saúde, afinal, conforme des-
crição de Stewart (2007, p. 128), o humor/mood são corpos literal-
mente afetando uns aos outros - corpos humanos, corpos discursi-
vos, corpos de pensamento. A debilidade de Florestan é prova do
“clima” experimentado:

As coisas andam mal. De um lado, não me restabeleci com-


pletamente. A alta não foi dada e deverei ir na próxima ter-
ça feira fazer novos exames. [...] De outro lado, eu e outros
10
Sobre esse momento doloroso e difícil, narra Eunice Durham: “É assim que, em 28 de
abril de 1969, 42 pessoas, entre as quais três professores da Universidade de São Paulo
– Florestan Fernandes, Jaime Tiomno e João Villanova Artigas – são compulsoriamente
aposentados dos cargos que ocupavam. O ato provocou o imediato protesto do professor
Hélio Lourenço de Oliveira, vice-reitor em exercício, e obteve uma resposta igualmente
imediata: um novo decreto aposentava o vice-reitor e mais 23 professores da Universi-
dade de São Paulo, entre os quais Caio Prado Júnior, que nem ao menos era professor”.
(DURHAM apud FERNANDES SILVEIRA, 2006, p. 99-100)
professores da USP (e de outras escolas) fomos aposentados
compulsoriamente pelo Governo Federal. Trata-se de uma
medida que esperava desde 20 de dezembro do ano passa-
do. Os seus resultados nefastos: perda súbita de parte subs-
tancial da renda; necessidade de acumular alguns trabalhos
remunerados de natureza intelectual; premência de sair do
Brasil (pois o artigo 3 do ato institucional n. 10 fecha-nos
as portas do ensino, da pesquisa e da tecnologia, ao alvitre
das autoridades). Como estava prevenindo, havia aceito um
convite para lecionar em Toronto, de setembro em diante.
Despois chegou outro convite de Harvard, que coloquei na
época subsequente. Agora, vieram mais convites, mas não
posso aceitá-los... (Carta de Florestan Fernandes a Barbara
Freitag. São Paulo, 2 de junho de 1969. In FREITAG, 1996, p.
146-147, destaques do autor)

O exílio canadense

582 Recentemente, Lawrence Grossberg (1979) e Brian Massumi


(1997), expoentes da teoria dos afetos nas ciências sociais, trouxe-
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

ram para o primeiro plano de análise o conceito de “estruturas de


sentimentos” de Williams, de modo a melhor enxergar as experiên-
cias nascentes que se expressam como “consciência prática”, firme
como uma estrutura, mas que se realiza nos mais sutis movimentos
de nossa vida cotidiana. Aqueles que comungam uma mesma “es-
trutura de sentimentos”, tendo vivenciado mudanças históricas e se
deixado afetar de forma similar, tendem a conformar um “fragmen-
to de geração”, como diagnostica Florestan:

O fragmento de geração ao qual pertenço não cometeu o erro


de uma falsa superação da história. Ele não procurou, pura
e simplesmente, transplantar aspirações intelectuais inviá-
veis. Ao contrário, fez o que estava ao seu alcance e lutou
com tenacidade seja para conciliar o desenvolvimento capi-
talista dependente com os requisitos culturais da democra-
cia, seja para atar-se ao protesto de massas e ao movimento
socialista. Se o seu acerto se converteu numa aberração, é
preciso que se entenda que a aberração foi um produto da
história, não uma perversão de um radicalismo intelectual
utópico [...] as ambiguidades e as oscilações da situação his-
tórica forjaram ambiguidades e oscilações nas relações des-
se fragmento de geração com o seu mundo intelectual [...].
Em consequência, em vez de impor-se como o paladino da
atitude política que projetava e encarnava ao nível institu-
cional e na cena histórica, tornou-se a sua principal vítima
[...]. (FERNANDES, 1977, p. 232-233)

A semântica do exílio é complexa: expatriação, forçada ou vo-


luntária, como observa Miglievich Ribeiro em Intelectuais no exílio:
onde é a minha casa? (2011)11. O “ser exilado” significa aquele que é
expulso da pátria, degredado, desterrado, banido, extraditado, de-
portado. A autora lembra, também, Theodor Adorno que, em sua
obra-prima, Mínima Moralia. Reflexões a partir da vida lesada, auto-
biografia escrita entre 1944 e 1947, no exílio nos Estados Unidos,
experimentou a condição dilacerante de “forasteiro”. Desorientado,
o exilado é, sem exceção, “prejudicado”.
583
[...] como minha relação com a ditadura era de embate deli-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


berado, não me senti chocado. Para mim, não foi uma puni-
ção e sim uma espécie de galardão, já que eu respondi com
hombridade aos deveres que cabiam a um intelectual na mi-
nha posição. Mas minha carreira foi arruinada e eu tive de
recomeçá-la da estaca zero. (FERNANDES, 1985, p. 26)

Fato é que o exílio impõe a ruptura com um mundo de referên-


cias basilares, que leva o exilado à inescapável experiência do de-
senraizamento e do desamparo. Falamos de um estado de luto em
que o que morreu foi sua própria identidade até então.

Quanto à minha vida aqui, ela é literalmente uma merda.


A cidade de Toronto é ótima, só tenho recebido atenções e
favores; e deveria ser mais reconhecido. Mas não me en-
contro mais com minha profissão e detesto a condição de
expatriado por simulação. Sei bem que ando por uma tri-
lha irracional. Porém, quem é que disse que devemos ser sis-
tematicamente “racionais”? ! [...] Como pôr-me em paz comi-
11
Ver também Miglievich Ribeiro; Fernandes, 2017 e Miglievich-Ribeiro, 2018. Sobre o
exílio de Florestan Fernandes no Canadá é indispensável a leitura de “Chaves do exílio e
portas da esperança” (FERNANDES SILVEIRA, 2006).
go mesmo numa situação em que terei de engolir a própria
consciência para sobreviver? Sentirei, a cada hora do viver,
o apodrecimento moral da pessoa, a corrupção indireta e
envolvente das pequenas concessões e dos sacrifícios invi-
síveis. (Carta de Florestan Fernandes a Barbara Freitag. To-
ronto, 16 de outubro de 1971. In FREITAG, 1996, p. 155-156.
Os grifos são nossos)

Tendo chegado a Toronto em novembro de 1969, Florestan Fer-


nandes assumiu suas atividades como professor visitante, minis-
trando disciplinas na pós-graduação. Bernd Baldus, então jovem re-
cém-doutor, que havia ingressado como professor na Universidade
de Toronto no mesmo momento em que Florestan se tornou pro-
fessor visitante sênior, assim se refere ao companheiro mais velho:

Quando Florestan e eu chegamos em Toronto, o Departa-


mento de Sociologia ainda era presidido por um diretor
584 benevolamente autoritário, mas a contratação de muitos jo-
vens membros do corpo docente da faculdade logo mudou a
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

situação. Embora Florestan fosse muito mais velho do que


nós, sua reputação acadêmica e sua perspectiva marxista
logo fizeram dele uma figura paternal para um grupo de jo-
vens docentes. Ao mesmo tempo, ele também permaneceu
um pouco como uma espécie de outsider. [...] Para alguns dos
mais jovens docentes, especialmente os nascidos no Cana-
dá, o foco era o nacionalismo canadense dirigido contra a
dominação econômica americana, e especialmente contra a
frequente contratação de professores estadunidenses. Para
outros, a prioridade era a guerra do Vietnã. Ambos os lados
se uniram para lutar contra uma administração universitária
autoritária. Frantz Fanon era popular, mas as lutas internas
das universidades ofuscaram os problemas mais distan-
tes da América Latina ou da África. As amplas perspec-
tivas teóricas de Florestan não se enquadravam nesses
conflitos, muitas vezes desagradáveis e pessoais. Suas posi-
ções marxistas não foram rejeitadas, mas a qualidade de seu
conhecimento e suas inúmeras publicações não receberam o
reconhecimento que mereciam. (BALDUS, 2020, p. 368-369.
O grifo é nosso)
Marion Blute, hoje professora emérita da Universidade de To-
ronto, foi aluna de Florestan Fernandes em seu primeiro ano letivo
na Universidade de Toronto, quando ele ministrou um curso sobre
“Sociedades latino americanas”. Ela recorda-se da forte impressão
experimentada quer pelo conteúdo das aulas quer pelo rigor aca-
dêmico de Florestan que, perante um grupo de 10 a 12 estudantes,
semanalmente, ministrava uma palestra, lendo na íntegra um texto
preparado para aquele fim.

As palestras foram finalmente publicadas em um livro The


Latin American in Residence Lectures, Toronto, Universidade
de Toronto, 1969-70, editado pelo Prof. Kurt Levy, um pro-
fessor de ciências políticas. Percebi que eu e outro estudante
de pós-graduação do curso ajudamos o editor com alguns
comentários. Quando o Prof. Fernandes nos presenteou com
uma grande liberdade de escolha dos tópicos para o trabalho
do curso, decidi continuar aprofundando meu interesse em
Frantz Fanon e Ivan Illich sobre desenvolvimento e escrevi 585
argumentando que havia uma convergência de seus pontos

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


de vista sobre o desenvolvimento autônomo. (BLUTE; COS-
TA, 2020, p. 340)

O sociólogo marxista brasileiro mantinha um distanciamento


dos discursos correntes na universidade. Florestan estava irreme-
diavelmente preso ao dilema latino americano, à sua condição de
intelectual radical brasileiro e ao seu ideal político socialista. Um
ano depois de sua chegada ao Canadá, ele escreve à Barbara:

Sua carta chegou em bom momento. Recebi-a há alguns dias.


Numa fase em que ando no fundo do poço – cansado do meu
trabalho, cansado de ser professor e até cansado da comida,
da cidade, do tipo de vida que levo em Toronto. Acho que
atingi o limite da saturação. [...] Torna-se mais difícil para
mim estabelecer uma ponte entre o que eu sou o que
eu faço e o que desejaria ser e fazer. Não tenha pena do
Florestan, velho e calejado; [...] me especializei em dar mur-
ros em ponta de faca e agora que me vejo lançado realmente
no mercado, como mercadoria estimada em dólares, sinto
que as minhas técnicas estão superadas e que seria melhor
vender sorvetes no centro de São Paulo do que ser professor
de sociologia no Norte das Américas...
No meu estado de espírito, não me atrevo a escrever sobre
o Canadá. (Carta de Florestan Fernandes a Barbara Freitag.
São Paulo, 1 de dezembro de 1970. In FREITAG, 1996, p. 150.
O grifo é nosso)

Ao final do segundo ano, a “atmosfera” se torna ainda mais ir-


respirável. Florestan já não suporta a condição de dilaceramento
existencial que vive. Não via sentido em sua atuação como profes-
sor numa Universidade do “norte”, falando sobre o “sul”, o desloca-
mento era completo. Tudo o enervava, desejando muito retornar
ao Brasil, sente-se encurralado, pois não consegue obter nenhuma
possibilidade de emprego aqui. Além disso, todos, de um modo ou
de outro, aconselhavam-no a permanecer no exterior. Seu “radica-
lismo plebeu” (COHN, 2005), talvez, contribuísse para aguçar aque-
586 le sentimento de inadequação, de não-pertencimento. Mas, era a
consciência prática da derrocada de sua geração intelectual que o
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

fazia se sentir absolutamente deslocado.

Nunca fui muito afeito aos ‘balanços de geração’ e apesar da


constante leitura de Mannheim bem com da impressão pro-
funda que me causara um texto de Gramsci, sempre pensei
que os intelectuais exageram a importância desse conceito.
De outro lado, a nossa história cultural é mais marcada por
influências que vêm de fora, que por continuidades e des-
continuidades internas. Quando me via compelido a pensar
em termos de geração, sentia-me confuso, porque me con-
siderava mais próximo dos que vinham, e um tanto enver-
gonhado, como se estivesse me apropriando de valor alheio,
pela evocação de uma amorfa categoria de referência, que
me parecia valorizar-me pela idade e pelo significado da
contribuição positiva de outros. No fundo, o meu próprio de-
senraizamento não me prendia ao passado da intelligentsia
e as minhas posições nasciam de convicções abstratas, de
ideias políticas e de um processo intelectual – o crescimento
do setor de ciências sociais na USP – que suprimiam, de mim,
a necessidade de identificar-me com determinada geração
ou fragmento de geração.
Foi, portanto, sob forte perturbação intelectual e emocio-
nal que me defrontei com algo que, para mim, pareceu uma
realidade: a descoberta de que pertenço a uma geração per-
dida, um conjunto de intelectuais que enfrentou os seus pa-
péis e, em sentido concreto, cumpriu suas tarefas. Mas, nem
por isso, chegou a atingir os seus objetivos e ver o seu talento
aproveitado pela sociedade. (FERNANDES, 1977, p. 213. Os
grifos são nossos)

Raymond Williams soube observar a habilidade com que a hege-


monia absorve tudo que teria chances de brotar como insurgência.
Sabe que até as lembranças do passado são ressignificadas através
do que chama “tradição seletiva”.

(...) aquilo que, no interior dos termos de uma cultura do-


minante e efetiva, é sempre transmitido como “a tradição”,
“o passado importante”. Mas o principal é sempre a seleção,
o modo pelo qual, de um vasto campo de possibilidades do 587
passado e do presente, certos significados e práticas são en-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


fatizados e outros negligenciados e excluídos. Ainda mais
importante, alguns desses significados e práticas são rein-
terpretados, diluídos, ou colocados em formas que apoiam
ou ao menos não contradizem outros elementos intrínsecos
à cultura dominante e efetiva. (WILLIAMS, 2011, p. 54)

A hegemonia não seria hegemonia se reduzida à mera “manipu-


lação” ou “doutrinação”. Não que relação entre dominantes domi-
nados seja passiva, sem nenhuma força de resistência, mas o ponto
é que a hegemonia se instala como um conjunto de práticas e ex-
pectativas, distribuição de energia, sistema vivido de significados
e valores que se confirmam reciprocamente. Para o materialismo
cultural de Williams, ela se constitui como um senso da realidade
que toma conta da maioria das pessoas na sociedade, mas a cultura,
compreendida como “processo social total”, indissociável do desen-
volvimento econômico, contém em si a luta de classes. Eis que as
“estruturas de sentimentos” traduzem a cultura de um período, “re-
sultado específico da vivência de todos os elementos em uma orga-
nização geral” (WILLIAMS, 2013, p. 152), que marca uma geração,
ou melhor, o “fragmento de uma geração”. O tema é complexo, tanto
que Raymond Williams alerta que as atividades culturais insurgen-
tes em uma época podem ser “oposições” à hegemonia, mas podem,
também, se transformar em “alternativas”, estas a não colidir com
o status quo.

Williams nota a astúcia na maneira como a hegemonia “in-


corpora” as experiências e significados praticados e vividos
como “cultura residual”, e, como tal, não põem em xeque a
cultura dominante. [...] A par disso, o processo de hegemonia
realiza cooptações sutis das culturas alternativas à cultura
dominante, assimilando o mais rápido possível o que pode-
ria ser “perigosamente emergente” ou opositor, isto é, poten-
cialmente contestador da ordem hegemônica. (MIGLIEVICH-
-RIBEIRO, 2020, p. 06)

O crítico galês ainda reconhece “os processos educacionais; os


588 processos mais amplos de treinamento no interior de instituições
como a família; as definições práticas e a organização do trabalho;
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

a tradição seletiva no nível intelectual e teórico [...] envolvidas na


elaboração e reelaboração contínuas da cultura dominante efetiva”
(WILLIAMS, 2011, p. 54). Isto se dava a olhos vistos por Florestan,
razão de seu desencanto com o magistério, a universidade e, sobre-
tudo, as ciências sociais que via crescer à sua volta na América do
Norte. Desabafa com sua correspondente:

E entristece-me o fato de europeus – com latino-americanos,


asiáticos e africanos no coro – empenharem-se na mesma
via de adoração de uma ciência que pode ignorar fatores que
não são essenciais (ou podem ser controlados parcialmente)
pela superpotência hegemônica, que pode desprezar pelo
menos a história imediata, que cerca a dominação mais com-
pleta e total do homem e da sociedade satelitizados. (Carta
de Florestan Fernandes a Barbara Freitag. Toronto, 29 de ja-
neiro de 1971. In FREITAG, 1996, p. 151-152)

Verdadeiro é que o “fragmento de geração” do qual participava


Florestan estava sendo vencido pelo pragmatismo da sociologia ao
seu redor, que abdicava, a seu ver, da vocação crítica e do ethos en-
gajado. Darcy Ribeiro12, exilado em outras paragens, retrucava ao
pessimismo do colega em carta:

E nossa geração, Floresta13? Que temos ainda a dar? Envelhe-


cer é saber que o importante da vida passou. Nisto não enve-
lheci. Espero uma catástrofe, algum milagre que me devolva
a patrinha, talvez me aclamando imperador. Esta esperança
faz com que o trabalho de agora se teça como uma enxerga
provisória que se deve usar enquanto chove e anoitece. É o
sentimento de um amanhã amanhecendo e de que só nisto a
vida recuperará sentido. (Carta de Darcy Ribeiro a Florestan
Fernandes, Caracas, 7 de dezembro de 1969. O grifo é nosso)

Em que pesem os dissabores, cabe dizer que Florestan jamais se


arrependeu de suas escolhas. Seu compromisso com o socialismo
aprofundou-se no exílio: “não pertenço apenas teoricamente, mas
também praticamente à esquerda” (Carta de Florestan Fernandes 589
a Barbara Freitag. São Paulo, 24 de fevereiro de 1969. In FREITAG,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


1996, p. 145). Assim é que reelabora com esperança o sentido de
sua geração intelectual:

Uma geração perdida não é uma geração derrotada e, mui-


to menos, inútil. E sua importância cresce se alguém, dentro
dela, avançar até onde é necessário para espremer o tumor.
[...] Por isto, escrevo este ensaio, como a última contribuição
que um dos membros dessa geração perdida pode dar para
chamar os espíritos à razão e para dizer o que preten-
díamos, em nome de uma aspiração legítima e tardia de
autonomia cultural. (FERNANDES, 1977, p. 215. Os grifos
são nossos)

12
Sobre Darcy Ribeiro, dizia Florestan Fernandes: “os nossos desacordos, são convergên-
cias” (Carta de Florestan Fernandes a Darcy Ribeiro. São Paulo, 19 de março de 1976).
13
Darcy Ribeiro brinca com o nome de Florestan: “Floresta”, “Florestaníssimo”, “Florestão”
são modos amorosos de se referir ao amigo: “Com o passar dos anos e o peneirar dos
amigos, poucos seixos ficaram na urupema: você entre os raros, como daqueles calhaus
redondos do riosinho (sic) de Montes Claros” (Carta de Darcy a Florestan. Carcaras, 7 de
dezembro de 1969).
Para o sociólogo paulista, havia um “nós” no qual ele existia
como indivíduo. Era precisamente um pequeno núcleo da geração
dos que “ousaram, antes e depois da instauração do terror”. Nomeia
de intelligentsia o estrato ao qual pertenceu como intelectual crítico
e militante, “não importa se tenha caído ou não sob a hecatombe
das cassações” (FERNANDES, 1977, p. 216). Via, porém, nessa mes-
ma intelligentsia as contradições de classe não solucionadas por
Mannheim (1982). Nessa falha residual e estrutural estava, em sua
perspectiva, a explicação para o desencadeamento fácil e rápido da
reação burguesa que metamorfoseou a “oposição” em “alternativa”,
capaz de conviver sem maiores alterações com a ditadura militar.
Marca, contudo, sua diferença:

[...] Com todos os méritos e realizações positivas, o fragmen-


to da geração intelectual a que pertenço comportou-se, na-
quilo que seria crucial não imitar os outros e não fazer con-
590 cessões, como os demais setores da mesma geração [...] Por
outro lado, se foi o único setor que fez uma análise lúcida da
natureza e das implicações da revolução nacional, indicando
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

com se deveria associar desenvolvimento econômico com


democracia e controle popular do poder, não teve a virtu-
de de levar essa lucidez às conclusões práticas necessárias,
de repúdio irredutível ao privilegiamento do poder burguês,
nacional e estrangeiro, e à ordem estabelecida. (FERNAN-
DES, 1977, p. 244)

Considerações Finais

A empreitada de percorrer as experiências de Florestan Fernan-


des no exílio à luz de Raymond Williams, destacou dois persona-
gens revolucionários em seu campo de estudos que, por toda a vida,
perseguiram a viabilidade da ação socialista, em compatibilidade
com a cultura democrática. A construção de um “senso de ‘interes-
se geral’” a fim de “romper o cerco e a subordinação culturais” – a
cultura é material -, como escreveu Williams na introdução de Re-
cursos da Esperança (2014), supunha a luta anti-hegemônica. Esta,
combalida tantas vezes, sempre foi a “esperança” que ambos inte-
lectuais compartilharam.
A epígrafe escolhida para iniciar esse ensaio particulariza Flo-
restan em meio à elite acadêmica de seu tempo: “Acho que a coisa
mais difícil que fiz foi permanecer fiel à minha classe de origem”.
O “radicalismo plebeu”, ligado a um fundo político-ideológico e à
sua origem de classe, era manifesto em seu cotidiano. Para o so-
ciólogo, nada mais problemático do que a posição do intelectual
que sucumbe por não realizar as tarefas que a sociedade requer. No
caso das sociedades capitalistas subdesenvolvidas e neocoloniais, a
tarefa que se impunha era compreender os processos de formação,
os mecanismos de exploração e a manutenção da heteronomia nos
planos econômico, político e cultural, dilemas que impediam a na-
ção alcançar a soberania e o socialismo democrático se implantar.
No exílio canadense, Florestan vivenciou intensamente o “luto”
após a decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, que encer- 591
rou abruptamente sua carreira na USP como professor catedrático,

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


pesquisador e formador de quadros para as ciências sociais brasi-
leiras. Contudo, a despeito dos constrangimentos que o aguarda-
vam no Brasil, Florestan foi fiel a si mesmo e não demorou mais que
três anos no exílio canadense (1969-1972). O intelectual engajado
não havia nascido, ao que se nota, para sucumbir ao “luto”. Voltou
ao Brasil, grato à sua fiel correspondente por lhe ter feito compa-
nhia na solidão:

Por fim, desligo-me de vez de Toronto. Preparo um grande


jantar em um restaurante chinês para quase 30 amigos (ou-
tros irei tratar em pequenos almoços, que saem mais baratos
e demonstram a mesma intenção), com o carinho da grati-
dão. Por sua vez, ando às voltas com jantares e pelo menos
duas festas-jantares com que serei ritualmente excluído des-
ta simpática sociedade da América do Norte. [...] Agora, que
me vou daqui, gostaria de dizer que suas cartas foram um elo
entre uma solidão relativa e uma esperança ardente. Quan-
tas vezes elas me ajudaram a enfrentar as duras realidades
da vida de bom ânimo? (Carta de Florestan Fernandes a Bar-
bara Freitag. Toronto, 27 de novembro de 1971. In FREITAG,
1996, p. 157. O grifo é nosso)
Depois dessa última carta enviada a Barbara Freitag, ainda de
Toronto, em 27 de novembro de 1971, Florestan Fernandes só lhe
escreve novamente em março de 1973. Aparentemente todo o ano
de 1972 passa sem registro de correspondência entre os dois. Em
março de 1973, já em São Paulo, Florestan comenta, entretanto,
seus trabalhos mais recentes: o “Livro de Leituras sobre o Leni-
ne”, o artigo “Democracia e desenvolvimento” e “o trabalho sobre
a revolução burguesa no Brasil” (FERNANDES In FREITAG, 1996, p.
151-152), confirmando o seu projeto intelectual de compreensão
dos dilemas das sociedades latino americanas, cada vez mais apro-
fundado por leituras do espectro marxista.
Uma biografia torna-se prosopografia quando uma só existência
fala das condições sociais de uma época, o que foi o caso de Flo-
restan Fernandes. Além disso, toda biografia é plena de “aspectos
ambíguos e irresolutos”, em contraposição a esquemas previamen-
te formatados (LEVI, 1996). Paradoxalmente, pois, o exílio tornou
592
esses intelectuais públicos cada vez mais públicos.
Mesmo tendo retornado à docência na Pontifícia Universidade
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Católica de São Paulo, a partir de 1977, Florestan não desempenha-


ria aí o papel que havia consolidado na USP: o do catedrático - líder
de um grupo de pesquisa, coordenando projetos empíricos com a
finalidade de compreender sociologicamente os processos sociais,
a formação, transformação e manutenção da ordem social -, embo-
ra alguns dos cursos ministrados neste período tenham servido de
base para livros como Apontamentos sobre a “teoria do autoritaris-
mo” (1979), Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana (1979),
A natureza sociológica da sociologia (1980). Fato é que aquele espí-
rito coletivo que marcou a escola paulista de sociologia já não podia
se reproduzir. As “estruturas de sentimentos” eram outras.

Em 73 e 74 não atuei muito, o espaço estava fechado. Foi


a esquerda católica que me deu maior chance de manifes-
tação. Fiquei praticamente aprisionado em minha casa, re-
vendo coisas que tinha escrito. Retomei o livro A revolução
burguesa no Brasil, que tinha posto de lado, e fiz conferências
para padres e para a juventude católica de esquerda. Tam-
bém contribuí para a elaboração das revistas Debate e Crítica
e Argumento, logo inviabilizadas pela repressão policial. Em
75 e 76 dei dois ciclos de conferências no Sedes Sapientiae.
No final de 77, fui contratado como professor da PUC/SP.
(FERNANDES, 1991, p. 23)

É de hegemonia e contra-hegemonia que falamos novamente.


“[...] homens e mulheres reais sabem que enfrentam uma ordem
estranha de títulos e dinheiro, que lhes parece toda-poderosa”
(WILLAMS, 2014, p. 183). No “clima” dos inícios de 1960 é que as
manifestações emergentes, até mesmo pré-emergentes, de supe-
ração do capitalismo dependente e da “modernização reflexa”, nos
termos de Darcy Ribeiro (1995), apontavam a potência desestabili-
zadora de alguns fluxos, embora germinais, em direção a mudanças
na organização social. O Golpe Civil-Militar suspendeu o curso dos
acontecimentos e atingiu em cheio os intelectuais mais engajados.
593
Tudo isso nos reduziu à condição de presa fácil e indefesa da

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


contra-revolução, a qual pulverizou, a quente e a frio, todas
as veleidades de conciliação entre capitalismo dependente,
democracia e revolução nacional, e exterminou o legado in-
telectual da intelligentsia crítica. As novas gerações se veem
na contingência de partir da estaca zero e em condições bem
mais penosas, pois têm de enfrentar a repressão organizada
contra o pensamento inventivo, de abrir os seus caminhos
dentro de um clima de desconfiança generalizada no inte-
lectual militante e de vencer a desmoralização política que
pesa, atualmente, sobre a capacidade prática do “homem de
pensamento”. (FERNANDES, 1977, p. 245)

Por isso, no retorno do exílio, Florestan Fernandes estava côns-


cio da tarefa que tinha pela frente: reacender a “obsessão política”
do intelectual, a fim de fazê-la irradiar na sociedade. Se antes ele
afirmava que o Brasil não precisava de scholars, mas de professo-
res que, em seu ofício, buscassem um “revolucionamento definiti-
vo” (FERNANDES, 1977, p. 217), visando a inéditas articulações na
cultura material da sociedade, após a experiência do exílio, a radi-
calização dos papéis dos intelectuais será compreendida em outro
diapasão.

O que é a causa principal [...]? A causa principal consiste em


ficar rente à maioria e às suas necessidades econômicas,
culturais e políticas: por o Povo no centro da história, como
mola mestra da Nação e da revolução democrática [...]. O
que devemos fazer não é “lutar pelo Povo”. As nossas tarefas
intelectuais possuem outro calibre: devemos colocar-nos
a serviço do Povo brasileiro, para que ele adquira, com a
maior rapidez e profundidade possíveis, a consciência de si
próprio e possa desencadear, por sua conta, a revolução na-
cional que instaure no Brasil uma ordem social democrática
e um Estado fundado na dominação efetiva da maioria. (FER-
NANDES, 1977, p. 246. Os grifos são nossos)

Em 1986, uma década depois de escrever sua análise da “geração


594
perdida”, Florestan Fernandes ingressou no PT. Foi Deputado Cons-
tituinte, elegeu-se por dois mandatos (1987-1990 e 1991-1994),
atuou junto aos movimentos de defesa da educação e da pesquisa,
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

do movimento negro, e tentou por todos os meios fazer jus ao papel


de intelectual crítico e militante em defesa do socialismo. Faleceu
aos 75 anos de idade, a 10 de agosto de 1995, após a realização de
um transplante de fígado mal sucedido. Seu legado hoje está mais
vivo do que nunca e suas reflexões sobre a sociedade brasileira con-
tinuam nos desafiando, visto o processo de “recrudescimento” do
poder “autocrático burguês”, típico das estruturas sociais engen-
dradas pelo “capitalismo subdesenvolvido, dependente e selvagem”
que esteve no cerne da sua reflexão sociológica.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Mínima Moralia. Reflexões a partir da vida


lesada. São Paulo: Azougue, 2008.
BALDUS, Bernd. Recordações de Bernd Baldus sobre Flores-
tan Fernandes. Novos Olhares Sociais, vol. 3, n. 2, p. 368-369,
2020. Disponível em: https://www3.ufrb.edu.br/ojs/index.
php/novosolharessociais/article/view/560. Acesso em: 14
out. 2021.

BLUTE, Marion; COSTA, Diogo Valença de A.. Tradução: As


concepções de desenvolvimento autônomo em Frantz Fanon
e Ivan Illich. Novos Olhares Sociais, vol. 3, n. 2, p. 339-367,
2020. Disponível em https://www3.ufrb.edu.br/ojs/index.
php/novosolharessociais/article/view/559. Acesso em: 18
out. 2021.

CARTA de Darcy Ribeiro a Florestan Fernandes. Caracas, 7 de


dezembro de 1969.
595

CARTA de Florestan Fernandes a Darcy Ribeiro. São Paulo, 19

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


de março de 1976.

CEVASCO, Maria Elisa. Prefácio. In: WILLIAMS, Raymond.


Palavras-chave. Um vocabulário de cultura e sociedade. São
Paulo: Boitempo, 2007, p. 9-20.

COHN, Gabriel. Florestan Fernandes e o radicalismo plebeu.


Estudos Avançados, vol. 19, n. 55, p. 245-250, 2005. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10106.
Acesso em: 16 out. 2021.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de


classes. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição
para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópo-
lis: Vozes, 1977.

FERNANDES, Florestan. Entrevista a Paulo de Tarso Vences-


lau. Teoria e Debate, n. 13, p. 16 – 25, 1991. Disponível em:
https://teoriaedebate.org.br/1991/01/20/florestan-fernan-
des/. Acesso em 13 out. 2021.

FERNANDES, Florestan. Não há neutralidade no pensamento.


Entrevista publicada no jornal Folha de S. Paulo, São Paulo, 6
de dezembro de 1985.

FERNANDES, Heloisa. Florestan Fernandes, un sociólogo so-


cialista. In: FERNANDES, Florestan. Dominación y desigual-
596
dad: el dilema social latinoamericano. Bogotá: Siglo del Hom-
bre Editores y CLACSO, 2008. p. 9-35.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

FERNANDES SILVEIRA, Heloisa. Chaves do exílio e portas da


esperança. Pulsional. Ano XIX, n. 185, mar., p. 98-105, 2006.

FREITAG, Barbara. Florestan Fernandes por ele mesmo. Estu-


dos Avançados, vol. 10, n. 26, p. 129-172, 1996. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8919. Acesso
em: 16 out. 2021.

GAJANIGO, Paulo. Evocações e disputas sobre o “clima da


abertura” durante o período de transição no Brasil (1974-
1985). Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, n. 18, p. 161-
182, 2020. Disponível em: https://www.redalyc.org/jour-
nal/5957/595765944007/movil/. Acesso em: 7 out. 2021.
GROSSBERG, Lawrence. Bringing It All Back Home. Essays on
Cultural Studies. Durham: Duke University Press, 1979.

LEVI, Giovani. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta de


Moraes & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio
de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p. 167-182.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar


Editores, 1982.

MASSUMI, Brian. Parallels of virtual: movement, affect, sensa-


tion. Durham: Duke Universtity Press, 2002.

MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia M. e FERNANDES, V.. A trajetó-


ria intelectual de Ruy Mauro Marini: notas sobre estruturas 597
de sentimentos e o pensamento crítico latino-americano. Rea-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


lis, vol. 7, p. 100-125, 2017. Disponível em: https://periodi-
cos.ufpe.br/revistas/realis/article/view/15210. Acesso em:
07 de out. 2021.

MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia M. Darcy Ribeiro e Utopia no


Exílio LatinoAmericano: “Estruturas de Sentimentos” como
Hipótese Metodológica. Tomo, n. 32, p. 15-40, jan./jun. 2018.
Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tomo/article/
view/8835. Acesso em: 07 de out. 2021.

MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia M. Intelectuais no exílio: onde


é a minha casa? Dimensões, vol. 26, p. 152-176, 2011. Dispo-
nível em: https://periodicos.ufes.br/index.php/dimensoes/
article/view/2566. Acesso em 07 de out 2021.
MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia M. Raymond Williams e “es-
truturas de sentimentos”: os afetos como criatividade so-
cial.  Resgate, vol. 28, p. 1-22, 2020. Disponível em: https://
periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/
view/8658395. Acesso em: 7 out. 2021.

O PROFESSOR FLORESTAN FERNANDES RETIRA O SEU PEDI-


DO DE DEMISSÃO. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 de março
de 1968. In: Florestan Fernandes. Organização: Amélia Cohn.
Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 24-27.

PASSIANI, Enio. Uma longa jornada: a gênese da sociologia das


formas discursivas de Raymond Williams. Resgate, vol. 28, p.
1-35, 2020. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.
br/ojs/index.php/resgate/article/view/8658364. Acesso
598 em: 7 out. 2021.
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

PORTELA JR., Aristeu. Sociologia, educação e democracia: a


Campanha em Defesa da Escola Pública. In: Florestan Fernan-
des: trajetória, memórias e dilemas do Brasil. Organização:
Eliane Veras Soares e Diogo Valença de A. Costa. Chapecó:
Marxismo21, 2021, p. 271-278. Disponível em: https://mar-
xismo21.org/florestan-fernandes-trajetoria-memorias-e-di-
lemas-no-brasil/. Acesso em: 9 de out. de 2021.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do


Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIVETTI, Ugo C.. Cultura e política em tempos de crise. Resgate,


vol. 28, p. 1-21, 2020. Disponível em: https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8658298.
Acesso em: 7 out. 2021.
SEREZA, Haroldo Ceravolo. Florestan: a inteligência militante.
São Paulo: Boitempo, 2005.

SOARES, Eliane Veras; COSTA, Diogo Valença de A. (orgs.). Flo-


restan Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil.
Chapecó: Marxismo21, 2021. Disponível em: https://marxis-
mo21.org/florestan-fernandes-trajetoria-memorias-e-dile-
mas-no-brasil/. Acesso em: 9 de out. de 2021.

SOARES, Eliane Veras; COSTA, Diogo Valença de A. (orgs.).


Florestan Fernandes, o militante solitário. São Paulo: Cortez,
1997.

STEWART, Kathleen. Ordinary Affects. Conceptualizing Rela-


tional Sociology. Ontological and Theoretical Issues. Durhan/
599
London: Duke University Press, 2007.

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


WILLIAMS, Raymond. A política e as letras. São Paulo: Editora
Unesp, 2013.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Edi-


tora Unesp, 2011.

WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança. São Paulo: Edi-


tora Unesp, 2014.

RESUMO
Reunimos dois eminentes intelectuais críticos centenários, de
distintas tonalidades e ênfases na apreensão do marxismo: o
galês Raymond Williams e o brasileiro Florestan Fernandes,
ambos filhos da classe trabalhadora. Mais do que comparar
suas trajetórias, o propósito deste ensaio foi trazer a luz o
“materialismo cultural” do primeiro para melhor compreen-
der a luta entre a hegemonia e anti-hegemonia que se deu no
Brasil nos anos 1960, levando Florestan Fernandes ao exílio.
Destacamos o exílio canadense e as “estruturas de sentimen-
tos” que contagiavam Florestan, “de dentro” e “de fora” no
sentido empregado por Williams. Sem apartar cultura de pro-
dução da vida, sem opor subjetividade à objetividade, atenta-
mos para alguns aspectos partilhados por um “fragmento de
geração”, a saber, o “luto” e a “esperança”. Observamos o “pas-
sado significativo” que moldou a personalidade do sociólogo
como “intelectual radical”.
Palavras-Chave: Florestan Fernandes, Raymond Williams,
Exílio, Estrutura de Sentimentos.

ABSTRACT
We bring together two eminent late critical intellectuals
600 with different tones and emphases in the apprehension of
Marxism: the Welsh Raymond Williams and the Brazilian
Centelhas de Transformações - Paulo Freire & Raymond Williams

Florestan Fernandes, both sons of the working class. More


than comparing their trajectories, the purpose of this essay
is to use Williams’ concept of “cultural materialism” to
better understand Fernandes’ exile in the context of the
struggle between hegemony and anti-hegemony that took
place in Brazil during the 1960’s. We highlight Fernandes’s
exile in Canada and the “structures of feelings” that affected
him “from within” and “from outside” in the sense used by
Williams. Without setting apart culture from production of
life or opposing subjectivity to objectivity, we pay attention
to some aspects shared by a “fragment of generation”, namely,
“mourning” and “hope”. We look at the “significant past” that
shaped Fernandes’ personality as a “radical intellectual”.
Keywords: Florestan Fernandes, Raymond Williams, Exile,
Structure of Feelings.
SOBRE AS AUTORAS

Adelia Miglievich-Ribeiro
Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais
(DCSO) e docente permanente do Programa de Pós-gradua-
ção em Ciências Sociais (PGCS) da Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes). Doutora em Sociologia pelo PPGSA-
-IFCS-UFRJ (2000), com pós-doutorado em Educação PD-
S-Faperj/ProPed-Uerj (2014) e em Sociologia PPGSol-UnB
(2019). Co-líder do Núcleo de Estudos em Transculturação,
Identidade e Reconhecimento (Netir-DGP-CNPq-Ufes). Coe-
ditora da Revista Simbiótica (DCSO-Ufes). Publicou, dentre
outros, o livro de sua autoria Heloísa Alberto Torres e Marina
de Vasconcellos. Pioneiras na formação das ciências sociais no
Rio de Janeiro (EDUFRJ) e as coletâneas A modernidade como
desafio teórico. Ensaios sobre o pensamento social alemão (Ed. 601
PUC-RS), Crítica Pós-Colonial. Panorama de Leituras Contem-

PAIXÃO; MAZZA; NIMA I. SPIGOLON (Org.)


porâneas (7Letras-Faperj), O espaço do sociólogo. Um balanço
de 30 anos (Edufes). Bolsista PQ-CNPq, nível 2.

Eliane Veras Soares


Professora Titular da Universidade Federal de Pernambuco,
atuando no Departamento e no Programa de Pós-graduação
em Sociologia. Desenvolveu Estágio Pós-doutoral no Centro
de Estudos Africanos ISCTE-IUL (2011-2012), e Centro de
Estudos Internacionais ISCTE-IUL (2016). Foi Professora Vi-
sitante Sênior do Centro de Estudos Comparatistas da Uni-
versidade de Lisboa (2019). É líder do Grupo de Pesquisa
Sociedade Brasileira Contemporânea: Cultura, Democracia
e Pensamento Social. Entre as suas produções, destacam-se:
Florestan Fernandes: o militante solitário (Cortez Editora,
1997); em coautoria com Diogo Valença de A. Costa: Florestan
Fernandes: trajetória, memórias e dilemas do Brasil (marxis-
mo21, 2021).

Você também pode gostar