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I lU v v I m nossos dias?

Mais que isso, nos diz


, I I pr nt, e é necessária, em todos os per io-
I ti t hum na: quer como força integradora, que une
I irrn t dos os elementos intelectuais, emocionais e
fi I I I j r pessoal perante o infinito e incondicional;
1" t rn di torções, como fé idólatra, não voltada para o infi-
111 , m nlf stando-se então como força que desintegra e des-
11 I. I· como o autor chega a tais conclusões partindo de
I tlnlçõ s positivas e negativas da fé; dos símbolos adequados
p r tr tar da mesma; descrevendo vários tipos de fé, que por
u vez geram vários tipos de ação, atitudes e comunhões de
f ; desenvolvendo a relação e tensão entre certeza e dúvida;
ntre fé e razão, entre verdade de fé e verdades cientffica, his-
tórica e filosófica; concluindo que uma ciência que permane-
ce ciência não pode contradizer uma fé que permanece fé. Pois
8 fé se justifica a si mesma e pode ser atacada só em nome de
outra fé. Este é o triunfo da dinâmica da fé: Que toda nega-
ção de fé já é expressão de fé. Tal assunto é de extrema atua-
lidade.
L I. ..J!)


Paul Tillich

,
DINÂMICA DA FE

Tradução de Walter O. Schlupp

3a Edição

EDITORA SINODAL

1985
01 DOADA POR:

C~_~ .._
't l\ T J\ _.1~/...Q_?__1__ ?..€.._.....

Título do original inglês DYNAMICS OF FAITH., Harper & Row, [)INÂMICA DA FÉ


Publishers, Inc., New York. Traduzido com apoio na versão alemã
"Wesen und Wandel des Glaubens" (Evang. Verlagswerk, Stuttgart,
1970). Observações Introdu·tórias
Dificilmente haverá 31guma palavra na linguagem religiosa -
Copyright (c) 1957 by Paul Tillich, com permissão de Harper
seja ela erudita ou popular - que tenha sido mais incompreendida,
& Row, Publishers, Inc., New York. distorcida e mal definida do que a palavra "fé". Ela é um desses
termos que primeiro precisam ser curados, antes de poderem curar
Um volume de "World Perspectives Series" - série planejada e pessoas. Hoje ~ palavra "fé" ~ ~ desorientação do ~ cura.
editada por Ruth Nanda Anshen. Ela confunde as pessoas, levando a extremos como .f.eticismo ou fa-
natismo, resist.êo.cia ~ razão ou s~ emocionaL rejeição de
~ genuína ou aceitaçãõ-aÚTtlca==cresucedâneos. Às vezes até
Direitos da edição portuguesa reservados à EDITORA SINODAL
surge a tentação de sugerir que se abandone completamente a palavra
Rua Epifânio Fogaça, 467, 93000 SÃO LEOPOLDO, RS, Brasil "fé". Mas por mais desejável que seja, isso dificilmente é possível.
Uma poderosa tradição esté protegendo esta palavra. Além disso
Capa: Ary Schmachtenberg não possuímos nenhum outro termo que faça jus à realidade ex-
pressa por "fé". Assim não nos resta por enquanto nenhuma outra

,
saída senão tentar reinterpretar esta palavra e excluir suas cono-
tações distorcidas e enganadoras, as quais se lhe associaram através
dos séculos. t a esperança do autor alcançar ao menos esse propósito,
, GTlj~~',:;i::r mesmo se não lhe for dado chegar à meta rnuito mais ambiciosa
r~;:.::~·
".~~:,.".: 1 de convencer alguns leitores do poder oculto da fé que se encontra
em seu íntimo, mostrando-Ihes a imensurável importância daquilo
que é expresso na fé.
Jfo~:.';~:~:_~~
_
:..~---_•.. _ ...••. I. O QUE É A FÉ

1. Fé como estar possuído por aquilo que nos toca inccndi-


cionalmente
Fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente.
Como todos os outros seres vivos, o homem se preocupa com muitas
coisas; sobretudo ele se preocupa com coisas tão necessárias como
IMPRESSÃO: GRÁFICA SINODAL alimento e moradia. Mas à diferença de outros seres vivos, o homem
também tem preocupações espirituais, isto é, estéticas, sociais, po-
líticas e cognitivas. Algumas dessas preocupações são urgentes,
muitas vezes até extremamente urgentes, e cada uma delas,
. tanto quanto as exigência~ do sustento, pode ser' considera-

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I (1I1T10 Imprescindível para a vida de um indivíduo bem
!l1I1I li loduma comunidade. Quando isto acontece, a preocupação Este mandamento proclama inequivocamente a natureza da fé ge-
111 !II! 1 f Ige dedicação total por parte daquele que aceita essa nuína e a exigência de dedicação total àquilo que perfaz a preo-
I 111 I . Mas ao mesmo tempo ela promete realização perfeita, .;uf2ação última. O Antigo Testamento está repleto de mandamentos
1111 1110 ,I urres exigências passam para o segundo plano ou mesmo que esclarecem a natureza desse dedicação, associando-os a um
1'" (I Irr r rejeitadas. Quando um povo faz da vida e do cres- sem-número de promessas e ameaças. Aqui também as promessas
I 1111 111 I d \ nação a sua E!..eocupação suprema;-é--e:>Zigido- qüe se são de uma indefinição simbólica, se bem que no centro se en-
li, H rl!1 [uern todas as outras coisas, como sejam bem-estar, saúde contre a realização da vida nacional e pessoal. Como ameaça, porém,
vld I, r mílie, valores cognitivos e estéticos, justiça e humanidade. surge a exclusão dessa real ização; ela significa decadência do povo
A Iorrn xtremas de nacionalismo como as conhecemos em nossa ou extinção do indivíduo. Para o homem do Antigo Testamento a
I rvem até de modelo para verificarmos os efeitos de uma fé é o estar possuído última e incondicionalmente por Javé e por
"pr ocupação suprema" sobre todos os âmbitos da existência hu- tudo aquilo que ele representa através de seus mandamentos, amea-
111 n , até nas questões mais triviais da vida cotidiana. Tudo deve ças e prornessas.,
rvlr o deus único: a nação. Quando finalmente esse deus também . Outro exemplo, que é quase um contra-exemplo, se bem que
videncia como um demônio, ele demonstra claramente a exi- Igualmente revelador, está na maneira em que sucesso na vida,
n i Incondicional levantada por toda preocupação suprema". "statu:" .social e ascensão econômica s~ transformam numa preo-
Mas a reocu a ão .21!.[ne a. de uma pessoa não se esgota. na cupaçao Incondicional. Este é o "deus" de muitas pessoas no mundo
1mpies exig&J}cia de sujeição incondicional; .ela contém igualmente ocidental, dominado pelo espírito de concorrência. Como todo in-
rom~ de realização suprema. que é esperada num ato de fé. teresse último, também ele reivindica obediência incondicional às
te promessa 'áe maneira alguma precisa ser determinada em dê: suas leis, mesmo que isso signifique que a pessoa terá que sacrificar
I Ihes. Ela pode vir' à tona em símbolos indefinidos ou concretos, relações humanas genuínas, convicções próprias e criatividade. Sua
p nas não !.e pode compreendê-Ios ao pé da letra. Isto acontece a..cneaça é _d~dência social e econômica; sua promessa - vaga
por exemplo com a "grandeza" da própria nação, da qual, ao que c~m? todas as promessas desse tipo -, ? realização da própria es-
sencie. O colapso de semelhante fé é um traço característico da nossa
dizem, se participa até depois de se morrer por ela; ou com a
Ivação da humanidade através de uma raça superior, ete. Em cada literatura contemporânea, a qual justamente por esta razão recebe
um desses casos se promete uma "realização última", ameaçando-se um significado religioso. O que se· manifesta em novelas como Peint
xcluir dessa realização a todo aquele que foge à exigência in- of no Return (1) de John P. Marquard não é um cálculo falso mas
condicional. sim uma fé desenganada. No momento da realização a promessa se
evidencia como nula.
Um exemplo - e mais do que um exemplo - é a fé que se
manifesta na religião do Antigo Testamento. Ela também tem o Fé é 0_ estado em que se é possuído por algo que nos toca
c ráter incondicional na exigência, arneeçe e promessa. Mas aquilo incondidonalmente. Está certo que o conteúdo específico da fé é
'lua interessa incondicionalmente não é a nação, se bem que o de máxima importância para o crente,' mas este conteúdo é irrele-
n cionalismo judeu ocasionalmente lhe tentou dar esta forma dis- vante para a definição de fé. Este é o primeiro aspecto que precisa-
torcida; o que, porém, preocupa incondicionalmerite é o Deus da mos reconhecer, ~e quisermos c.Q!Ill2reender a dinâmica da fé.
[ustiçe, que é chamado de Deus Todo-Poderoso, o Deus de toda a-
rleção, porque' para todo homem e para cada povo ele encarna 2. Fé como ato da pessoa inteira
justiça. ,êe é a preocupação incondicional de todo judeu devoto, Fé como estar possuído por aquilo que nos toes incondicional-
por isso em seu nome é proclamado o mandamento de maior mente é um ato da pessoa como um todo. Ele se realiza no centro
minência: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de da vidá pessoal e todos os elementos desta dele participam. Fé é
lod a tua alma, e de toda a tua força" (Dt 6, 5). Nisto está expresso o ato mais íntimo e global. do espírito humano. Ela não é um pro-.
'lu quer dizer preocupação última, estar possuído incondicional- cesso que se dá numa seção parcial da pessoa nem uma função
m nt , e é desse mandamento supremo que deriva o conceito da especial da vivência humana. Todas as funções do homem estão con-
"pr ocupação última", ou do "que nos preocupa incondicionalmente".
(1) N. do T.: Em português este título poder io ser: "Não há que voltar atrás".

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jugadas no ato de fé. A fé, no entanto, não é apenas a om contra o "pai". Em todos os casos, fé e cultura só podem ser man-
das funções individuais. Ela ultrapassa cada uma das áreas d tidos, se o super-ego encarna normas e princípios objetivos do ser
vida humana ao mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma (Sein).
delas. - Neste ponto surge a seguinte pergunta: Qual é a relação entre
Uma ve·z que a fé é um ato da pessoa toda, ela participa da a fé como um ato pessoal centrado e a estrutura racional do homem,
dinâmica da vida pesSõãr1 ssa ainâmica Ta roi descrita de muitas que se manifesta em sua linguagem lógica, sua capacidade de dis-
maneiras, mas as publicações mais recentes no campo da sicolo ia tinguir o verdadeiro e de fazer o bem, assim como em seu senso

,
I
/analítica é que mais se aprofundaram aqui. Todas elas têm em comum
o' pensamento em polaridades e a observação das tensões e conflitos
daí resultantes. Com isso a psicologia da pessoa se torna extrema-
estético e de [ustiçe. t tudo isso, e não só a sua capacidade
distinguir, calcular e fundamentar que- faz do homem um ente ra-
cional. Mas apesar desse conceito mais global da razão, precisamos
de

mente dinâmica, levando necessariamente a uma teoria dinâmica da rejeitar a opinião de que se possa identificar a natureza própria do
fé, a qual, mais do que qualquer outra manifestação vital do homem; homem com a estrurure racional de seu espírito. O homem tem a
tem sua raiz no centro da pessoa. A polaridade primeira e decisiva possibilidade de se decidir a favor ou contra a razão; ele tem a
na psicologia analítica está entre o assim chamado inconsciente e capacidade de ir além da raZGO em sua criatividade, bem como de
o consciente. Fé como manifestação da essoa inEgral não pode ser destruir, contrariando toda a razão. O que dá ao homem essa capa- .
imaginada sem a atuação concomitante dos elementos inconscientes cidade é o poder do seu eu (2), em cujo cerne estão conjuqados
na esfrutura da pessoa. Eles sempre estão presentes e de-terminam todos os elementos de seu ser. Fé não é, portanto, um ato de forças
em a to grau o conteúdo da fé. Por outro lado, porém, a fé é um ato irracionais quaisquer, assim como também não é um ato do incons-
consciente, e com isso os elementos inconscientes só participam do ciente'; ela é, isto sim, um ato em que se transcendem tanto os ele-
;urgimento 'da fé quando são levados ao centro da pessoa e por ele mentos racionais como não.:racionais da vivência humana.
são impregnados. Se isto não acontece, quando apenas as forças in- Sendo o ato global e mais íntimo da pessoa, a fé é "e xtática".
conscientes determinam a constituição interior da pessoa, então o Ela é mais do que os impulsos do subconsciente irracional e também
ue surge não é fé; mas atos obs ssivos de diversos tipos que tomam vai além das estruturas do consciente racional. Ela os transcende,
seu lugar. fíJíãS.f!.j. uma questão d lib rdade. liberdade por sua mas não os destrói. O caráter exiá~ico da fó não exclui a razão, se'
ve-z é nada mais do que a possibilid d d agir a partir do centro bem que não é idêntica a ele; além disso ele também engloba
da pessoa. Esta maneira de ver pod 'ri s r muito útil em freqüentes elementos não-racionais, sem que se resuma nesses. 1\)0 êxtase da
discussões em que fé e liberdade são apr ·s ntadas como opostos. Aqui fé há uma consciência da verdade
~ e de valores éticos; amor e-
liberdade e fé são vistas como um s6 cois . ódio, briga e conciliação, influências individuais e coletivas, como·
A outra polaridade, assinal da por Fr ud e sua escola como ego foram experienciadas no decurso da vida, tudo isso está integrado na
e super-ego, é de igual import nela p' ra a compreensão da fé. O fé. "Êxtase" quer dizer "estar ~ora de si", sem deixar de ser a gente
conceito do super-ego é bastante embíçuo. Por um lado ele é o mesmo, sem sacrificar um só dos elementos reunidos no centro
fundamento de toda vida cultural na medida em que não permite da pessoa,
que se dê rédeas soltas à libido sempre insistente. Por outro lado Para compreender a fé ainda é necessário saber da tensão entre
ele castra a vitalidade da pessoa, gera o "mal-estar da cultura", a função cognitiva de um lado, e sentimenio e vontade do outro.
levando sob certas circunstâncias à neurose. Sob esse ponto de vista Num capítulo posterior tentarei provar que muitos mal-entendidos
os símbolos da fé aparecem como expressão do super-ego ou, em acerca da fé têm sua raiz na tendência de relacionar a fé com uma
termos concretos, da "imagem do pai", que dá ao super-ego seu dessas funções. Quero afirrner aqui com toda ênfase que todo ato
conteúdo propriamente dito. E devido a esta teoria inadequada do de fé também contém um elemento cognitivo, mas não como resul-
super-ego que, como o naturalismo, Freud rejeita normas e princí- tado de um processo independente de pensamento, mas como um
pios. Quando o super-ego não se justifica por normas objetivas, ele elemento indispensável de um ato global de receber e dedicar. Assim
se transforma num tirano, Mas a fé real consegue vesti r-se da ima- também é rejeiteda a opinião de que a fé é o resultado de um
gem paterna, transformando-a mesmo assim num princípio de ver- ato independente da vontade. ~ claro que a vontade também par-
dade e justiça, o qual, se for o caso, precisa ser defendido mesmo {2} N, do T,: O termo original "Sclb sr" (in!]:,ss "sclf") sempre será reprocluzido por "eu",

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ticipa quando aceitamos aquilo que nos toca incondicionalmente; cionados e- passageiros. Isto não só quer dizer que surgem e desa-
mas a fé não é uma obra da vontade. No êxtase da fé a prontidão perecem, mas também se refere ao seu conteúdo, a não ser que
para ace-itar e dedicar-se é apenas um elemento da fé, mas de modo sejam elevados ao nível de validade incondicional. Isto, porém, pres-
algum é a sua causa. Fé não brota de um turbilhão de sentimentos; supõe uma faculdade especial e a presença do elemento do infinito
não é isso que se quer dizer com êxtase. Não há dúvida de que o no homem. a homem, num ato direto, pessoal e central, é capaz
sentimento está incluso na fé, como em toda manifestação de vida de captar o sentido do que é último, incondicional, absoluto e infi-
e-spiritual. Mas sentimento não produz fé. Esta contém conhecimento, . nito. Apenas isso faz da fé uma possibilidade do homem.
como também é urna decisão da vontade, isto é, ela é a unidade de
Possibilidades humanas são forças que urgem em se- realizar.
todos esses elementos no e·u "centr ado". Naturalmente esta unidade
não exclui a possibilidade de que um ou outro elemento tenha pre-
a homem é impelido para a fé ao se conscientizar do infinito de que
faz parte, mas do qual ele não pode tomar posse como de uma
dominância em certas formas espe-ciais da fé; esse elemento determina
propriedade. Com isso está prosaicamente formulado aquilo que
então o caráter da fé, mas não a produz.
ocorre no curso da vida como "inquietude do coração".
Com isso também respondemos à pergunta se é possível uma
Estar possuído incondicionalmente - ou seja: fé - é estar to-
psicologia da fé. Tudo o que acontece na personalidade (personhaftes
mado pelo incondicional. A paixão infinita, como também Ia se
Sein] do homem pode ser objeto da psicologia. Também é impor-
chamou a fé, é a paixão pelo infinito; ou, voltando à nossa formu-
tante que tanto o filósofo da religião como o cura d'almas se dêem
lação anterior, na "preocupação incondicional" se trata daquilo que
conta de como o ato da fé está inserido na totalidade dos processos
o homem expe-rimentou como incondicional, de validade última.
psicológicos. Esta forma legítima e até necessária de uma psicologia
Com isso já nos voltamos do aspecto subjetivo da fé como um ato
da fé se encontra, porém, em contraposição com uma outra que
central da pessoa para o seu significado objetivo, para a questão
procura derivar a fé de Igo que nada tem a ver com fé, e sim
do que é expe-rimentado no ato da fé. Nesta altura de nossa inves-
com medo, na maioria do, c sos. Tal procedimento se apóia na
tigação, de nada nos adiantaria chamar aquilo que é experimentado
suposição de que o medo ou qu Iquer outra coisa, da qual se deriva
no ato da fé, de "Deus" ou "um deus". CI.ntes perguntamos aqui:
a fé, seja mais original e fund m nt I do que a própria fé. Mas esta
Que é que fundamenta a divindade na idéia de De-us? A resposta é:
suposição não pode ser provada. Muito pelo contrário, pode-se de-
Trata-se do elemento do incondicional, do que tem validade- última.
monstrar que em todo proc dim nto ci ntífico que leve a tais con-
Isto determina o caráter do divino. Uma vez ente-ndido isto, com-
clusões, a fé sempre já está atu ndo. A f pr c de a todas as tenta-
preende-se também por que quase tudo "no céu e na terra" já alcançou
tivas de derivá-Ia de algum outr cois; pois ssas tentativas já
o caráter do incondicional no decurso da história da religião. Mas tam-
pressupõem a fé.
bém podemos compreender que na consciência religiosa do homem
sempre já esteve e ainda está agindo um princípio crítico, o qual pro-
3. A Fonte da Fé
cura separar o que é realmente incondicional daquilo que reivindica
Nós descrevemos a fé e su rei ção com a totalidade da pessoa. para si o caráter de incondicional, mas na realidade- é apenas pro-
Neste sentido a fé é um ato integral procedente do centro do eu visório, passageiro e finito.
pessoal, no qual pe-rcebemos o incondicional, o infinito, e por ele A expressão "preocupação incondicional" engloba os aspectos
somos possuídos. Mas o que é fonte dessa preocupação que tudo subje-tivo e objetivo (3) do ato de crer: a fides qua creditur, isto é,
engloba e tudo transcende? A expressão "preocupação incondicio- a fé pela qual se crê, e a fides quae creditur, isto é, a fé que é crida.
nal" indica dois lados de' um relucionamento: ela mostra para .Ao. primeira fórmula é a expressão clássica para o ato subjetivo, pro-
aquele que por ela é possuído como para aquilo que o possui. Daí veniente do íntimo da pessoa, ou sua preocupação incondicional. A
resulta que precisamos nos conscientizar da situação do homem segunda fórmula é a e-xpressão clássica para aquilo a que se dirige
como tal por um lado, e do homem em relação com o seu mundo o ato, para o incondicional como tal, expresso em símbolos do di-
por outro. a fato de- o homem ter uma preocupação última revela vino. Não há dúvida de que esta diferenciação é muito importante,
algo de sua natureza, isto é, que ele tem a capacidade de trans-
cender o fluxo contínuo de experiências finitas e passageiras. As (3) N. do T.: Na r e al.dede, a expr e s s âo portuguesa para "unbedingtes Anliegen"
experiências, os sentimentos e pensamentos do homem são condi- ("preocupação incondicional") reflete apenas sutilmente o aspecto objetivo do
ato da fé.

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mas não absoluta, pois nenhum dos dois lados do ato de crer é dialética no que ela é fé e como tal um ato central da pessoa; mas
pode persistir por si mesmo. Não existe fé sem conteúdo que a o centro do qual ela parte se encontra mais na periferia, e com
preencha, pois a fé sempre se dirige a algo determinado. Por' outro isso essa fé leva à perda do centro da essência e à destruição da
lado é impossível assimilar o conteúdo da fé a não ser por um ato de pessoa. O caráter extático, que também é próprio de tal crença,
crer. Não tem sentido falar de coisas divinas se não se está tomado só disfarça transitoriamente esta conseqüência.
incondicionalmente por elas. Pois aquilo que está expresso no ato
de crer não pede ser alcançado senão pelo próprio ato de crer. 4. A Fé e a Dinâmica elo Sagrado (4)
Em expressões como de validade última, incondicional, infinito, Quem penetra na esfera da fé, está pisando no Santíssimo da
absoluto está superada a distinção entre subjetivo e objetivo, O vida. Onde há fé também se encont~ um conhecime·nto do que é sa-
estar tom.ado incondicionalmente no ato da fé, e o incondicional, que grado. Esta constateçêo não contradiz àquilo que foi dito' acima
é experimentado no eto dt! crer. são uma coisa só. Os místicos o sobre a idolatria; mas ela contradiz ao conceito popular da palavra
expressam simbolicamente ao dizerem que seu conheciment6 de Deus "santo". Algo que nos toca incondicionalmente se torna sagrado. A
é oconhecirnento que Deus tem de si mesmo. Em I (o 13, 12 ~ experiênCia do sagrado é experiência do divino. Isto está expresso
quer dizer basicamente mesma coisa: "então conhecerei como tam- de maneira magnífica no Anriqo Testamento,' desde' ás visões dos
bém sou conhecido", isso é, por Deus. Deus nunca pode ser objeto sem patriarcas e de Moisés até as impressionantes experiências dos gran-
ser sujeito ao mesmo tempo. Sequndo Paulo; nem mesmo uma oração des profetas e salmistas. O sagrado permanece mistério, se bem que
chega aos ouvidos de D us, S9' não for o Espírito de Deus que ora é revelado. Quem se lhe depara é por ele atraído e ao mesmo tempo
dentro de nós (Rm 8). Pod -se formular abstratamente a mesma estremece. Rudolf Oito, em sua obra clássica sobre "O Sagrado",
experiência como sendo c nul ção da contra posição sujeito-objeto chamou esses dois aspectos na essência do sagrado de fa5cinosum
na experiência do incondicion I. No to de crer, a origem dessa fé e tremendum. Ambos os aspectos se enconlram em todas as religiões,
está presente de um modo 'lu t r nsc nde a separação de sujeito pois em ambos o homem s d fronte com aquilo que o toca incon-
e objeto. dicionalmente. O motivo par esse efeito duplo do sagrado fica
Essa caracterização d nos d, um critério adi- claro quando entendemos relcção entre a experiência do sagrado
cional para a distinção de incondl i r
I . 11 ti V rd doire. As e a experiência do infinito. O coração humano procura o infinito,
coisas finitas, que ilusoriamenl r -lvlu II 11111 lníinitucl p r si, como pbrque o finito quer repousar no infinito. No infinito ele vê a sua
por exemplo a "nação" ou "venc r 11 I vi 111", n I I rn capacidade própria realização. Nisso é que se baseia a atração extática e a
de superar a seperoção de sujeito Ili 10. I\qui' Ir. t sempre de fascinação de tudo que revela o infinilo. Por outro lado o homem
um objeto, ao que] o crente se dirl Jf IIlO um wi iro. Ele o pode experimenta simultaneamente a distância infinita entre o finito e o
alcançar com os meios cognilivo OllllJll', t 0111 I lidar com os infinito, e com isso ele experimenta ao mesmo tempo o veredito
métodos usuais. Naturalme·nle exi ,I 111 ,,,ulll dir renças de grau no negativo sobre todas as tentativas do finito de alcançar o infinito.
campo infinito de valores qu r11', 11111 1111 I cl mam a categoria de O sentimento de ser aniquilado pela presença do divino é o que
incondicional. A nação, por cx mpl ,'.c proxima mais do incon- expressa mais profundamente a relação em que se encontra o homem
dicional do que o sucesso n vi 11. O li Ilrio nacionalista pode gerar diante do sagrado. E esse sentimento perpassa todo ato de fé legí-
um estado em que o sujeito ó qlJlI,t l,oCJd o pelo objeto. Mas algum timo e todo estar possuído em última instância.
tempo depois ele ressurge sóbrio, , i il ndo agora com ceticismo Esse significado original e unicernente correto do sagrado pre-
e crítica descomedida as [u I, , , ivlnclicoções da nação. Quanto maisl cisa ser colocado no lugar da disiorção corrente de seu sentido pró-
a fé se transforma em ido I 11, ill, m 'no ela consegue superar a se- prio. "Santo" tomou o sentido de perfeição moral, principalmente em
paração de sujeito e ob] 10. 1'01', :;1 é a diferença entre a fé ver- alguns grupos protestantes. As causas históricas dessa mudança de
dadeira e a falsa. No f6 v<'rdllcJcirw u preocupação incondicional é sentido são importantes para uma nova' compreensão da natureza
o estar tomado pelo 'lu Ó v rdadeiramenle incondicional; a fé do santo. Originalmente santo significava algo que estava separado
idólatr~ em contraste, I Vil oi tlS pessoqeires e finitas à categõria
')
de incondicionais. E ItI dull rnção leva fatalmente à "fruslração (4) N. do T.: Os te-rnos fI~agruo01/ c "r e nro" :er(lo U':'3c!C:S aqui corno nlClho~ convier
existencial", que solape) us I ases do existência humana. A fé idólatra para reproduzir o termo originol "heilig".

12 13
Je IJtiveira-fors
~O(Jerio l7
1 . lar
Biblioteca partlCU
. u Q _ J_J-
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'Tl'lund' O -dO coti idiiano e des


d O Li'ltO as iexoer iênci
experrencies comuns d as pessoas. EIe ficado se transforma: ele é racionalmente identificado com o verda-
está separado do âmbito do finito. Por isso todos os cultos religiosos deiro e o bom. Tudo isso significa que seu sentido original primeiro
mantinham seus lugare·s santos e atos sagrados isolados de todos precisa ser redescoberto.
os outros lugares e atividades. Entrar no Santíssimo significa en- Aquilo que foi dito anteriormente a respeito da dinâmica da
~ntro com o sagrado. Aqui o infinitamente distante se mostra próximo fé é agora confirmado pela dinâmica do sagrado. Nós estabelecemos
e presente, sem perder sua majestade. Por e·sse motivo o sagrado a diferença entre fé verdadeira e fé idólatra. O sagrado, na medida
também foi chamado de "completamente outro", a saber, aquilo que em que atua demoníece e por isso destrutivamente em última ins-
é diferente- do curso ordinário das coisas, ou, para retomar uma for- tância, é idêntico com o objeto da fé idólatra. Mesmo assim também
mulação anterior, ele é diferente do mundo, o qual se caracteriza pela a fé idólatra ainda é fé. O sagrado permanece sagrado, também em
separação em sujeito e objeto. O sagrado ultrapassa esse âmbito, este sua forma demoníaca. Aqui se manifeste nitidamente o caráter am-
é o seu mistério e seu caráter inacessível. Não há possibilidade de bíguo da religião e com isso também o perigo da fé. O perigo da
alcançar o incondicional a partir do conc!i.çiooal, assim como não se fé é a idoletrie, e a ambigüidade do sagrado resulta de sua possi-
pode conseguir o infinito por um me-io finito. bilidade demoníaca. Nossa preocupaçã-o última - aquilo que nos
O sagrado é ess nci Imente "mistério", e por isso ele se en- toca incondicionalmente - pode nos destruir assim como também I

contra com o homem do du s maneiras. O sagrado pode aparecer nos pode curar. Mas sem uma preocupação última não podemos
como força criadora bem corno destruidora. Seu elemento fascinador
viver. .-J
pode ter conseqüência cri idores e destruidoras - lembremo-nos
5. Fé e Dúvida
apenas da fascinação qu man va da idolatria do nacionalismo;
mas também o tremendum d ',d r do tem um lado criador e outro Chegamos agora a uma descrição mais global da fé como ato
destruidor - é só pens r rHI rI lur z dupla das divindades hindus central da pessoa como um todo. Um ato de fé é realizado por um'
Chiva ou Cáli. Essa natur / clur I r qual ainda há vestígios no ser finito, que está tomado pelo infinito e para este ce volta. Trata-se
Antigo Testamento, se r ri t 110, tos rituais ou quase-rituais das de um ato no âmbito do finito, com toda a limitação que como tal
religiões ou quase-religiõ , I r XI mplo no s criffcio de outros lhe é própria; mas também é um .eto do qual participa o infinito
sere-s ou do próprio eu cor ó« li I irilu I, um ritual altamente transcendendo os limites do finito. Fé é certeza na medida em que
ambíguo. Pode-se cerecteri/nr ( ,ti ,u111 i üi lei d divino-demo- ela se baseia na experiêncie do sagrado. Mas ao mesmo tempo a
níaca, sendo que o aspecto dlvln rll uuf t I rI vit6ri das possi- fé é cheia de incerteza, uma vez que o infinito,' para o qual ela
bilidades criadoras sobre Ir· lrul I ,,1', I r o, ao passo que está orientada, é exper~mentado por um ser finito. Esse elemento de
inversame·nte o demoníaco r I rt Ir 111 I I I cto d struidor do sa- insegutança na fé não 'pode ser anulado; nós precisamos aceitá-Ioj
grado. Esta natureza polariz I' I Irtl I I v u percepção mais E esta aceitação é um ato de coragem. A fé engloba a ambos: co-
profunda na religião prof tie I I\nll I I tamento. Mas este co- nhecimento direto, do qual provém a certeza, e incerteza. Aceitar
nhecimento foi afastado p 10 I o Ir , I r mb te ao elemento demo- os dois é ter cora em. É suportando cor'ajosamente a incerteza que
níaco-destruidor do sagrado. . rll I grado se transforma em a fé demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico.
justiça e verdade; ele não rn II f ',lruicJor mas apenas criador. O Nós só podemos compreender a relação entre fé e coragem se
sacrifício verdadeiro consist dr (I di ncia perante a lei. Esta é' tomarmos o termo corrente de coragem numa acepção mais ampla (5).
uma linha de- pensamento qu Ir v I icJ ntificação de santidade com Coragem como elemento da fé é arriscar a afirmar-se- a si mesmo
perfeição moral. Mas com i rede perde seu caráter de se- diante dos poderes do "não-ser", pelos quais todo ser finito está
parado, transcendente, fascinnn] r tll morizador, o completamente ,-- ameaçado. Mas onde há risco e coragem também existe a possibi-
outro. Tudo isso se volatllizcu snnto ficou sendo o que é moral- lidade do fracasso, e essa possibilidade se encontra em todo ato
mente bom e racionalmenl . v rdud ira, isto é, deixou de ser sagrado de crer. É um risco que' precisa ser levado em troca. Quem faz de
no sentido original da p lavru. R ..umindo, pode-se dizer o seguinte seu povo aquilo .que lhe toca em última e incondicional instância,
sobre toda essa evolução: nlo ou sagrado em princípio nada necessita de coragem pare se manter fiel a essa decisão. Certa é
tem a ver com a alternativa cJ om c mau: ele é tanto divino como
(5) Cf. a obra do autor "A Coragem de Ser", Paz e Terra (Ed.), Série Ecumenismo e
demoníaco. Com a repres IJ do elemento demoníaco, o seu signi- Humanismo, Vol. 6, 1967, pp. 1 ss.

14
apenes a incondicional idade como tal, a pznxao infinita como peixao Isso se expressa bem claramente na relação entre fé e dúvida.
infinita. Esta é uma realidade que é intrínseca à natureza do eu. Ela Se a fé é entendida como acreditar em alguma coisa, então dúvida
é tão imediata e fora de dúvida como o eu está fora de dúvida para e fé são irreconciliáve·is. Compreendendo-se a fé como estar tomado
o próprio eu. Sim, ela é o eu, na medida em que este se transcende por aquilo que nos toca incondicionalmente, a dúvida se torna um
a si mesmo. Mas acerca do conteúdo de nossa preocupação última, elemento necessário da fé. A dúvida se encontra encerrada no risco ..•
seja ela a nação, o sucesso na vida, um deus ou o Deus da Bíblia, da fé.
não há certeza desse tipo. Todos eles são coisas que não apresentam
A dúvida que faz parte inseparável da fé não é uma dúvida'
certeza imediata. J..ceitá-Ias como objeto de nossa preocupeção úl-
em torno de fatos ou certas conseqüências lógicas. Não é a dúvida
tima, incondicional, é um risco e como tal um ato de coragem. O
que dá impulso a toda pesquisa científica. Pois nem um teólogo
risco consiste em que o objeto de nossa preocupação última pode
tradicional haveria de negar o direito da dúvida metódica na pes-.
evidenciar-se como algo de importância provisória e passageira, por
quisa empírica ou na aplicação do método dedutivo. Um cientista
exemplo, a nação. O risco da fé como dedicar-se a algo que me toca
que afirmasse estar uma determinada teoria científica acima de qual-
incondicionalmente é de fato o maior risco que uma pessoa pode
quer dúvida, se desacreditaria como cientista. Apesar de sua dúvida,
tornar sobre si. Pois se a fé de urna pessoa se evidencia como ilusória,
porém, ele pode confiar em que na prática a sua teoria se mostre
isso pode levar a que essa pessoa perca o sentido de sua vida. Ela
digna de confiança, senão a sua aplicação técnica seria de todo im-
vê que se entregou a si m sma, a verdade e a justiça a algo que.
possível. Por isso se pode atribuir a esse tipo de confiança uma certa
não merecia esta dedicação. T I pessoa desistiu do que lhe é mais
certeza pragmática, que é plenamente suficiente para a' prática. A
intimamente próprio, sem 1 r qualquer esperança de recuperá-Io.
dúvida remanescente nesses casos se refere à teoria subjacente.
O desespero causado por x mplo pelo desmoronamento de espe-
ranças e pretensões nacionai prov irrefutevelmente o caráter idó- Existe, porém, ainda outra espécie de dúvida, a qual queremos
latra de seu patriotismo. Em úlllm n lise, toda preocupação su- denominar de cética, à diferença da dúvida científica, que é mais
prema cujo sQjeto não é v rd d ir m nt incondicional leva ao de natureza metódica. A. dúvida cética é uma certa atitude diante
desespero. Mas essa possibilid d f ~ sompr precisa levar em de tudo que o homem c~sidera verdadeiro, desde as percepções
troca. Ela nunca pode se·r xclufd, lU ndo um ser finito procura dos sentidos até as convicções religiosas. Ela é mais uma maneira de
a realização do seu eu. Urna pr oCUI çso upr m xige risco su- pensar do que uma afirmativa; pois, como afirmativa, essa dúvida.
premo e máxima coragem. Is o n O r sult d d dicação ao incon- cética entraria em contradição consigo mesma. A própria afirmativa
dicional como tal, e sim da ac il ç o digo determinado que teria de que para o homem não existe verdade de valia universal seria
incondicional idade. Toda fé ont m um I mento concreto; ela se declarada insustentáve·1 perante o juízo do princípio cético. A dúvida
orienta para um objeto ou um o . M s pode se tornar evidente cética genuína não se manifesta na forma de afirmativa. Ela é uma
que esse objeto ou essa posso n t nh m dentro de si que possua orientação que nega toda certeza. Por isso não se pode refutá-I a
validade última. Neste caso, no u diz respeito ao seu conteúdo com meios lógicos. Isto porque ela não se coloca na categoria de
concreto, a {é terá sido um ilu o, se bem que a experiência do uma tese que se pudesse averiguar. A dúvida cética leva necessa-.
incondicional, a qual também t presente nesse tipo de fé, nada riamente ao desespero ou ao cinismo ou a ambos alternadamente.
E quando esta alternativa se torna insuportável, aparece freqüente-'
tem de ilusória. Um deus pod C evidenciar como nulo, mas o
mente a indiferença e uma atitude que quer se manter livre de
divino permanece. A fé toma sobr si o risco de o deus concreto em qualquer compromisso. Mas uma vez que o homem é o ente cuja
que foi colocada a fé ser uma im gem falsa. E então pode acontecer natureza é a de se preocupar essencialme·nte com o seu próprio
que o crente seja arrasado por ssa decepção e não tenha forças ser ("Sein"; Heideggerl, .esse fuga no fim das contas fracassará. Este
para encontrar um novo cont údo para a sua ânsia pelo eterno e é o poder da dúvida cética. Mesmo que ela tenha um efeito de
com isso viver novamente a partir do centro de seu ser. O risco do sacudir e libertar, ela também pode impedir o desenvolvimento em
ato de crer, porém, não pode ser eliminado. Existe uma só atitude direção a uma personalidade centrada. Pois o homem como pessoa
que não encerre risco e contenha certeza imediata: a de o homem ., não é possível sem fé. O desespero do cético d,iante da irnpossibili-
ficar entre sua própria f initude e a possibilidade de alcançar o infi- dade da verdade mostra que a verdade ainda assim é a sua paixão
nito. Nisto se resumem a grandeza c a dor da existência humana. infinita. O sentimento cínico de superioridade sobre toda verdade

16 li7
de estar possuído incondicionalmente'. A dúvida como elemento
I r ninada demonstra que o cético ainda leva a sério a verdade essencial da fé surge dentro de certas circunstâncias individuais e
I disposto a perguntar pelo que é incondicionalmente válido. sociais. Quando a dúvida se faz presente, não se deveria entendê-Ia
Ico que é realmente cético não vive sem fé, mesmo-que essa fé como rejeição da fé; pois ela é um elemento sem o qual nenhum
1 nha conteúdo concreto. ato de. fé é concebív~1. ~úvida existencial e fé são os pólos que
A dúvida que está contida em toclo ato de fé não é nem a determinam o estado interior da pessoa possuída pelo incondicional.
dúvicJa metódica nern a cética. Ela é a dúvida que acompanha todo O conhecimento desta relação de fé e dúvida é da maior im-
risco. Não se trata aqui nem da permanente dúvida do cientista nem po~t~~cia prática '. Muitos cristãos bem como muitos adeptos de outras
da dwvida volátil do cético; é, isto sim, a dúvida de uma pessoa que r~llgloes, acometidos de medo, culpa e desespero, ficam perplexos
está se'rissimamente possuíde por algo concreto, Em contraste com ~Iante do ~ue c~amam de "perda da fé". A dúvida séria, porém,
as forma's acima descritas, poder-se-ia denominar esse tipo de dúvida e uma confirrneção da fé. Ela prova a seriedade e a incondicionali-
de dúvida ~JmclPl. Ela não pergunta se uma determinada tese é fal- dade da sua perplexidade. Isso também diz respeito aos cura d'almas
sa ou verdadeira, nem rejeita toda verdade concreta, mas ela conhece' o ou clérigos principiantes, que não são apenas acossados pela dúvida
elemento de incerteza próprio a toda ve·rdade existencial. A dúvida ci.entífica acerca da fidedignidade de certas doutrinas - essa dú-
inerente à fé sabe dessa incerteza e a toma sobre si num ato de Vida é tão. necessá;ia e ina,movível quanto a própria teologia -,
coragem. Fé e·ncerra coragem, Por isso a fé consegue resistir à pró- mas os quars tambem expenmentam a dúvida existencial em torno
pria dúvida de s} r;'e'sma, Naturalmente fé e coragem não :ão a ~ da mensagem de sua igreja, por exemplo a dúvida se Jesus pode
mesr(la coisa, A. fe ainda ncerra outros elementos alem da coragem, ~er chamado. de o Cristo. O critério segundo o qual eles deveriam
e a coragem ainda tem outra" funções que não a de apoiar a fé. [ulqar-se a SI mesmos é a seriedade' e a incondicional idade do seu
Ainda faz parte da fé a cor 9 m que esté pronta a tomar um risco serem atingidos por aquilo em que ele's crêem e de que ao mesmo
sobre si. tempo duvidam.
Este conceito dinâmico d í dar lugar àquela con-
fiança crente e ao sentimento d que encontramos nos 6. Fé e Comunhão
documentos de todas as grand s naturalmente também A exposição que' acabamos de fazer em torno da fé e dúvida
no cristianismo. Mas este não o caso. Pois a acepção dinâmica da n_o que tangem as confissões religiosas nos levaram àquelas ques-
fé resulta de uma análise terminol6gica do aspecto subjetivo como toes que ge;alme~te e:t~o em p~imeiro plano na discussão de pro-
também objetivo da fé. Nela não se descreveu um estado de es- blemas de fe .. A'2.ul a fe e entendida como opinião quanto à doutrina
pírito constante. Uma análise estrutural não é a descrição de um o,u .co~o c~nflss~o de um certo dogma. Seu pano de fundo socio-
certo estado. A confus50 de análise e descrição é uma fonte de log~co e ~a,ls salientado do que o ato pessoal em que se baseia seu
numerosos mal-entendidos e enganos em todos os campos da vida. ca~ater oriqinal. Os motivos históricos para essa maneira de ver são
Um exemplo típico para tal confusão se aprese·nta na presente discus- evidentes, Os .t~mpos em que a liberdade de pensamento no campo
são em torno da natureza do medo, A definição do medo como o cul!u.ral e. reliqioso era reprimida em nome de um certo dogma
conscientizar-se da própria finitude é ocasionalmente rejeitada con- reliqioso :lCaram gravados na memória das gerações posteriores. A
siderando-se o estado de espírito médio das pessoas. Medo, assim luta de vld_a e ~orte' entr~ uma autonomia insurgente e os poderes
se afirma, aparece sob certas condições, mas não é um sintoma de r~pr,~ssao r~llglosa deixou profundas cicatrizes no "inconsciente
concomitante da finitude do homem. É claro que o medo aparece coletiVO, . Isso ainda vale até para a nossa época, que já deixou bem
em sua forma mais aflitiva sob circunstâncias determinadas. Mas para tras essa repressão dominante nos fins da Idade Média e du-
é a sua estrutura subjacente da vida finita que é a condição universal rante as guerras religiosas. Por isso não parece desapropriado de-
que possibilita o surgimento do medo sob determinadas condições. fender a concepção dinâmica da fé contra a acusação de que ela
Da mesma maneira a dúvida não se impõe em todo ato de fé; mas levaria ,a n~vas formas de ortodoxia e' de repressão religiosa. Mas
ela sempre está presente como um traço fundamental na estrutura ur;na coisa e, certa~ qua.ndo a dúvida é considerada como parte in-
da fé. Esta é a diferença entre' fé e certeza imediata, seja ela sen- tnnseca da fe, entao a liberdade do espírito criador do homem não é
sível ou lógica. Não existe fé sem um "mesmo assim" que dela de modo algum restringida. Mas provavelmente surgirá a pergunta,
faça parte e sem a corajosa afirmação 'do próprio eu na situação
l~
18
se eSS3 acepção de fé pode ser coadunada com a "comunhão de de pressão interna. Esses mecanismos eram gravados sempre de
fé", que é uma realidade decisiva em todas as religiões. Não é novo nas mentes dos crentes individuais e se evidenciaram como
assim que a concepção dinâmica da fé manifesta um individualismo extremamente eficientes, mesmo' sem pressão externa. Para compre-
protestante impregnado de autonomia humanística? Será que uma ender essa situação, precisamos levar em conta que a fé, sendo o
comunhão de fé, isto é, portanto, uma igreja, poderia aceitar uma estar possuído incondicionalmente, significa a' entrega total ao objeto
fé que encerra a dúvida como parte essencial e até considera .a do estar possuído, e isso como resultado da decisão da pessoa integral..
seriedade da dúvida uma expressão de fé? E mesmo se a Igrela Isso quer dizer, portanto, que está em jogo o ser ou não-ser da
se conformasse com tal maneira de pensar entre os ·Ieigos de suas pessoa como tal. A idolatria pode destruir o centro da pessoa. Se
comunidades, seria isto também possível para seus teólogos e seu: agora, como foi o caso na igreja cristã, o conteúdo da fé em comum
órgãos diretores? precisou ser defendido através de séculos contra a idolatria intrusa,
Existem muitas respostas - algumas das quais bem sinuosas - compreende-se perfeitamente que todo desvio da confissão de fé
para estas pergunlas, muitas vezes õrdenteme~te lançadas: Aqui era considerado perigoso para a bem-aventurança. Todo desvio da
precisamos fazer a constatação evidente, ~las muito slg,nlflcatlva, de confissão era atribuído a influências demoníacas. Sob essa luz, os
que o ato de crer necessita, como todo fenomeno do espinto humano, castigos impostos pela igreja aparecem como tentativas de salvar
da linguagem e com isso também da comunhão. Pois a linguagem o atingido da autodestruição demoníaca. Todas essas medidas reve-
só está viva em meio a uma comunhão de seres dotados de espírito. lam um sério cuidado em torno da substância da fé, do qual depen-
Sem linguagem não existe fó nem experiência religiosa. Isso' vale diam vida ou condenação eternas.
para a linguagem em geral bem como para todas a,s linguagens Mas não é apenas para o indivíduo que a aceitação da con-
especiais exigidas nos diversos c mpos da vida do espirito humano. fissáo de fé fixa tem importância decisiva. A pr6pria comunhão de
A linguagem religiosa, ou seja, o linguag m do símbolo e do mito, fé precisa ser protegida contra influências perniciosas. Por isso a
forma-se na comunhão dos crentes não é bem compreensível fora igreja exclui de sua comunhão tocos aqueles que parecem negar o
dessa comunhão. Mas dentro d rcfc-ld comunhão ela faz com fundamento da igreja. Isso é que está no fundo do termo "heresia"
que a fé em comum possa rec ber um çorueúdo concreto. A fé exige em seu sentido original. O hereje não é alguém que tenha um credo
a sua própria linguagem, como também acontece com toda mani- errado - esse é um significado possível de heresia, mas não a sua
festação da vida personal (6). S m linguagem, fé seria cega, sem essência =, mas uma pessoa que deixou a fé verdadeira para se
conteúdo nem clareza sobre si mesma. Aqui se encontra a importân- entregar a uma fé falsa e idólatra. t possível que ele influencie
cia primordial de urna comunhão de fé. t só como membro de uma outros da mesma maneira, corrompendo-os interiormente e pondo a
comunhão que o homem pode obter um conteúdo para a sua pre- comunhão em perigo. Agora, se as autoridades seculares consideram
ocupação incondicional. Isso também ainda vale para aquele que a igreja como fundamento necessário para um pensamento em co-
está separado ou expulso de um grupo. mum e para a unidade da vida cultural, sem a qual nenhuma socie-
Agora, porém, se· lançará novamente a pergunta já tratada, da dade pode persistir, elas perseguem os herejes como um criminoso
seguinte forma: Se não há fé sem comunhão de fé, não será então comum e apelam para a doutrinação e também para a violência a
necessário fixar o conteúdo da fé na forma de confissão de fé, exi- fim de assegurar a unidade da sociedade no âmbito religioso e polí-
gindo que essa confissão seja reconhecida por todo membro da tico. Contra isso as pessoas começam a reagir em nome da autonomia
confissão de fé? É ve·rdade que todas as confissões de fé surgiram do espírito. E quando o espírito autônomo se impõe, ele não só
dessa maneira; daí elas receberam o seu cunho dogmático e obri- elimina a coação política que quer apoiar um certo sistema religioso,
gatório. Mas isso ainda não explica o enorme poder que tais con- mas além disso ele ainda se volta contra o próprio sistema religioso
fissões fixadas exercem sobre grupos inteiros e sobre indivíduos, e muitas vezes até contra a fé como tal. Isso, entretanto, se evidencia
de geração em geração. Isso também não explica o fanatismo_ corr; como impossível. Uma rejeição da fé só pode ser realizada na medida
que foram reprimidas dúvidas e opiniões divergen!es, e isso nao ~o em que uma outra fé assuma o lugar da fé rejeitada. Na história do
por meio de violência física, mas em grau muito maior atraves mundo, em todas as lutas entre a igreja e seus críticos liberais, uma
fé está se defrontando com a outra. Mesmo a fé dos liberais precisa
(6) N. do T.: "perscnhafl", C., como poscce. na qualidade de pCSSOil. de expressão e de certas forrnuleções em comum, pois ela precisa

20 2J
ser defendida contra os ataques autoritários. No liberalismo, aquilo nada com a essência da comunhão, a qu I pr cl
que toca incondicionalmente precisa se cristalizar em conteúdos con- conteúdo concreto de sua preocupação suprem com
cretos. E o liberalismo não pode ir mais longe do que isso, sem de confissão. Das análises precedentes resulta que n o
determinadas instituições cunhadas pela história. Ele também desen- ção para esse problema, se uma confissão de fé excluir
volveu uma linguagem própria e utiliza símbolos próprios. Sua fé dade de dúvida. O conceito de "infabilidade", esteja ele oci do
não consiste de' uma afirmação abs1rata da liberdade, mas é uma à decisão de um concílio, de um bispo ou de um livro, não p rmit
fé na liberdade como elemento inserido numa determinada situação dúvida em questões de fé para aqueles que se sujeitaram a essa
histórica. Se, em nome da liberdade, ele nega esse relacionamento autoridades. Eles podem estar expostos a conflitos interiores por
com o concreto, ele· cria um vácuo em que as forças antiliberais pene- causa dessa sujeição, mas uma vez decididos, eles reprimem toda
tram sem qualque·r esforço. Apenas a fé criativa consegue resistir dúvida acerca da infabilidade das autoridades. Com isso a fé se
à fé destruidora. Somente o estar possuído por aquilo que é real- torna estática.
mente incondicional pode opor-se à fé endemoninhada. Ela se transforma numa entreqa cega, e não só ao incondicional
Tudo isso leva à pergunta: Como é possível uma comunhão de que é aceito no ato de crer, mas também às formas concretas de
fé sem reprimir a autonomia do espírito humano? A primeira res- fé fixadas pelas autoridades eclesiásticas. Com isso se outorga a
posta que deve ser dada aqui procede da relação entre o est~do e algo provisório e condicionado, isto é, à interpretação humana de
a comunhão de fé. Ela diz o seguinte: Mesmo que uma determinada conteúdos de fé - a começar pelos autores da Bíblia até o presente -
sociedade' seja praticamente idêntica com uma comunhão de' fé, e o caráter de fncondicionalidade, tirando toda possibilidade de dúvida.
sua vida seja cunhada essencialmente pela substância espiritual de A luta contra os elementos idólatras que se fizeram presentes em
uma igreja, as autoridades seculares não deveriam se imiscuir nas conseqüência dessa fé estética, foi encetada pelo protestantismo e,
questões de fé, aceitando a possibilidade de formação de novas quando este perdeu a flexibilidade, ela foi continuada pelo lIumi-
formas de fé. Pois se o seu mpenho em forçar a unidade em ques- nismo. Me~mo que esse protesto tenha sido insuficiente em sua
tões de fé for bem sucedido, xcluem-se com isso o risco e a cora- essência e em seu efeito, seu alvo original era uma fé dinâmica, e
gem que fazem parte de toda fé real. Elas fizeram da fé um não a negação da fé nem a rejeição de certas doutrinas. Assim nos
esquema de comportamento que' não permite a decisão livre e que encontramos mais uma vez diante da pergunta: Como se pode coa-
jamais terá o caráter de validade última, mesmo se todos os deveres dunar a fé que reconhece a dúvida como parte intrínseca sua, com
religiosos forem cumpridos com toda a seriedade·. Tal situação di- a confissão de uma comunhão de fé? Para isso só existe uma res-
ficilmente ainda existirá hoje. Na maioria dos países o estado tem posta: Toda expressão de fé quEr manifesta aquilo que toca uma
diante de si diversas comunhões de fé e nem terá a capacidade de comunhão de fé última e incondicionalmente, precisa incluir a crítica
impor uma certa confissão a um povo inteiro. A união do espírito a si mesma. Em todas as afirmativas confessionais, sejam elas de
de tal sociedade é então garantida por aquilo que as diversas con- natureza litúrgica, teológica ou ética, é necessário que esteja bem
fissões têm em comum e por tradições e instituições reconhecidas manifesto que elas não tenham validade última nem incondicional.
por todos os cidadãos. Esses bens comuns podem ter caráter mais A sua função é, isto sim, indicar o valor último e o incondicional que
secular ou mais religioso. Mas em todos os casos eles são fruto a todas transcende. Isso é o que eu chamo de "princípio protestante",
de uma fé. Isso vale por exemplo para a constituição norte-americana, o elemento crítico nas formas confessionais da comunhão de fé e com
que para alguns tem o caráter de preocupação incondicional. Mas isso o elemento de dúvida no ato de crer. Nem a dúvida nem a
eles são exceções; a maioria vê nela algo condicionado e provisório, crítica estão sempre em ação, mas como possibilidades elas sempre
se bem que de enorme importância. Por isso as autoridades estatais estão presentes no ato de crer. Partindo do ponto de vista cristão,
nunca deveriam tentar reprimir manifestações de dúvida acerca das isso significa que a igreja, com seus mestres, suas instituições e
leis básicas do estado, se bem que precisam, por outro lado, insistir autoridades, se encontra sob o juízo profético, e não acima desse.
na observância das leis vigentes. Crítica e dúvida indicam que a comunhão de fé "está sob a cruz",
O segundo passo na solução de nosso problema se refere a isso se a cruz é entendida como o juízo divino sobre a vida religiosa
fé e dúvida dentro da própria comunhão de fé. A questão aqui é da humanidade, sim até sobre o' cristianismo, na me-dida em que
se a concepção dinâmica da fé pode de alguma maneira ser coadu- esse se colocou sob o sinal da cruz.

22 23
Com isso a dinâmica da fé, a qual discutimos primeiramente no a situação política evolua nessa ou naquela direção. Em todos esses
que diz respeito ao indivíduo, também foi colocada em relação à casos a suposição se baseia em dados que garantem uma probabili-
vida de toda uma comunhão de fé. Não há dúvida que a vida dade suficiente. As vezes "crê-se" 'algo que é menos provável ou
de uma comunhão de fé é um risco constante, se a própria fé é propriamente improvável, se bem que não impossível Os motivos
compreendida como risco. Mas essa é a natureza de uma fé viva para esse tipo de "crer" no campo teórico ou prático são bem diversos.
e a conseqúência do princípio protestante. Há coisas que "cremos", porque temos bons motivos para isso, se bem
que não suficientes. Ainda mais freqüentemente nós "cremos", porque
11. O QUE A FÉ NÃO ~ as respectivas afirmativas foram feitas por pessoas que nos parecem
dignas de confiança. Isto sempre acontece, por exemplo, quando
1. A Distorção da Fé como Ato do Conhecimento confiamos em dados e informações que outros consideram seguros,
apesar de não os podermos verificar pessoalmente; esse é o caso
Nossa descrição positiva da fé, acima apresentada, contém ao no que diz respeito a todos os acontecimentos do passado. Aqui
mesmo tempo uma reieição de todas aquelas concepções que dis- entra em jogo um novo elemento: a confiança numa autoridade, cuja
torcem perigosamente o sentido da fé. Mas as distorções nesse afirmação nos parece digna de "fé" (8). Sem essa confiança nada
campo exercem uma influência extraordinária sobre o pensamento podemos "crer" que não experimentamos pessoalmente. Nesse caso
popular; e em nossa época cunhada pela ciência elas contrib~í~~m o mundo se nos tornaria muito mais restrito do que ele de fato
principalmente com que muitas pessoas se afastassem da reliqião: é. Por isso é sensato confiarmos em autoridades que nos alarguem
por esses dois motivos precisamos tratá-Ias mais detalhadame~te. os horizontes, sem nos deixarmos tomar a liberdade do próprio pen-
Mas não foi somente o pensamento popular que deturpou o sentido samento. Se usarmos a palavra "fé" para esse tipo de confiança,
da fé; em última análise' concepções filosóficas e teológicas é que pode-se dizer com razão que quase todo o nosso conhecimento se
são responsáveis por isso, as quais mesmo em nível mais elevado, baseia em "fé". Mas o uso das palavras "fé" e "crer" (9) nesses casos
igualmente mal-entenderam a natureza da fé. cria confusão. Nós "acreditamos" no que nos dizem autoridades num
As diversas interpretações errôneas da fé podem ser atribuídas certo campo, nós confiamos no seu perecer, se bem que não cegamen-
a uma só raiz. Fé, como estar fomado por aquilo que nos toca incon- te; mas nós não cremos neles. Fé é mais do que confiança em autori-
dicionalmente, é um afo central da pessoa inteira. Se acontecer que dades, apesar de a confiança sempre ser um elemento da fé. Essa
apenas uma das funções que constituem a pessoa é idenfificada com distinção é importante, porque antigamente houve· teólogos que
a fé, desfigura-se o sentido da fé, Essa compreensão não está com- tentaram corroborar a autoridade incondicional da Bíblia salientando
pletamente errada, porque cada função do espírito humano participa a fidedignidade de seus autores. O cristão pode acreditar no que
do ato de crer. Mas cada verdade parcial será parfe de um erro eles relatam, mas ele não o deveria fazer sem reservas. Ele não crê
global. nos autore·s dos livros bíblicos, sim, ele nem deveria crer na Bíblia.
A distorção mais freqüenfe da fé consiste em considerá-Ia como Isso porque fé é mais do que confiança, mais do que confiança em
um conhecimenfo que apresenfa menor grau de certeza do que o autoridades rei igiosas. Fé é participação no que toca incondicional-
conhecimento científico. Conforme' essa concepção o ato de fé con- mente - participação com todo o ser. Por isso a palavra "fé" não
siste de uma suposição de probabilidade maior ou menor, a qual deveria ser usada quando se trata de conhecimento teórico, tanto faz
em si não pode ser demonstrada. Tal fé naturalmente não pode se é um conhecimento que se baseia numa certeza pré-científica ou
ser nada mais do que um "dar crédito" (7). "Crê-se" que certas infor- científica, ou numa confiança em autoridades.
mações sejam exatas; "crê-se" que documentos históricos sejam úteis Com esse exame terminológico nós chegamos ao próprio tema.
para a compreensão de acontecimentos passados; "crê-se" que uma A fé não confirma nem nega nada que faça parte do conhecimento
teoria científica esclareça a relação entre determinados fatos; "crê-se" pré-científico ou científico do nosso mundo, seja e·le baseado em
que uma pessoa se comportará de uma determinada maneira ou que experiência própria ou de outros. O conhecimento do nosso mundo
(inclusive de nós mesmos, que somos parte desse mundo) nos é
(7) N. do T. "Fuer·wahr·hatten" (literalmente "ter por verdadeiro") também pode ser
reproduzido por "acreditar " e "achar"; esse também é O sentido de "crer" nas (8) Aspas do tradutor.
frases seguintes. (9) N. do T.: Os dois termos estão para o substantivo alemão "Gleube",

24 25
dado pela nossa própria investigação ou pelas fontes em que con- ser tamanha, que ela na prática é plenamente suficiente. Mas teori-
fiamos. Ele não é uma questão de fé. A dimensão da fé não é uma camente tal certeza sempre tem algo de imperfeito, pois a qualquer
dimensão da ciência. A aceitação de uma hipótese cierrtif ice que momento ela pode ser questionada pela crítica e por novos conhe-
possui alto grau de probabilidade não é fé, mas um crédito provi- cimentos. Bem diferenfe é a certeza da fé. Ela também não se baseia
sório que precisa SE-r comprovado cientificamente e levar em conta em formas da intuição e do pensamento. A certeza da fé é "exis-
novos dados. Quase todos os confrontos entre fé e saber têm sua tencial", e isso significa que toda a existência do homem dela
raiz na f~lsa concepção de fé como uma forma de saber que tem participa. Corno já constatamos, a certeza da fé tem duas compo-
um baixo grau de certeza, mas é garantido pela autoridade. Mas nentes. Uma se dirige a algo de validede última e incondicional. Aqui
não foi somente essa confusão dos dois campos que originou as há certeza absoluta, fé sem risco. A outra componente encerra um
históricas lutas entre fé e saber, mas também o fato de que fre- risco e engloba dúvida e coragem, porque aqui se trata da afirma-
qüentemente interesses da fé se ocultam por detrás de uma afir- ção de algo não-último, de algo que se torna destrutivo se for tomado
mação que se diz puramente científica. Onde esse for o caso, en- incondicionalmente. Na certeza da fé não existe o problema teórico
contra-se fé contra fé, e não fé contra o saber. de certeza maior ou menor, do provável ou improvável. A fé gira
em torno de um problema existencial: em torno da questão de ser
A diferença entre fé e conhecimento se mostra no tipo de
ou não-ser. Ela se encontra numa outra dimensão que todo parecer
certeza que os dois suscitam. Há dois tipos de ,conhecimE'n~o ca:ac- teórico. Fé não é dar crédito, nem um conhecimento de menor pro-
terizados pelo mais alto grau de certeza. Uma e a certeza Imedlat~
babilidade. Certeza da fé não é a certeza condicionada de um juizo
dada pela percepção dos sentidos. Quem percebe uma cor verde,. ve teórico.
o verde e está certo disso. Mas ele não pode ter certza, se o objeto
que lhe depara como verde re Imente tem essa cor. Ele pode se
2. A Distorção da Fé como Ato da Vontade
enganar; mas ele não pode duvidar de que ele vê algo verde. Cert~za
suprerne também é dada por leis lógicas m temáticas, que tambem Existe um tipo católico e um evangélico da distorção voluntarís-
são perssupostas como írrefutéveis, quando ilparecer:n er:n form~la- tica da fé. O tipo católico tem uma venerável tradição na igreja
cões diferentes ou até contraditóri s, Não se pode discutir questoes romana. Ele tem a sua origem em Tomás de Aquino, que afirmava
de lógica sem pressupor estruturas lógic s básicas; sem essas uma que a impossibilidade de demonstração inerente à fé precisa ser
discussão não teria sentido. Aqui temos certeze absoluta; mas com compensada por um ato da vontade. Essa tese se baseia na pres-
isso nós percebemos tão pouco da realidade como pela percepção dos suposição de que a fé é um ato de conhecimento de baixo grau de
sentidos. Nem por isso elas são fundamentais para o nosso conhe- certeza. somente quando isso é pressuposto, a falta de certeza pode
cimento. Isso porque nenhuma verdade 6 possível sem o material qu~ ser contrapesada por um ato da vontade. Como vimos, essa con-
nos é fornecido pela percepção dos sentidos e sem a forma que .e cepção de fé não faz jus ao seu caráter existencial. Nossa crítica à
dada a esse material pelas leis lógicas e matemáticas, sobre as quais distorção intelectual da fé refuta ao mesmo tempo a distorção volun-
SE' baseia a estrutura do pensamento. Um dos piores erros que a tarística, porque essa deriva daquele. Sem um conteúdo teoricamente
teologia e a concepção corrente de religião pode cometer, consist~ fixado da fé, a "vontade para crer" não faria sentido. Esse conteúdo
em externar propositada ou involuntariamente idéias que contradi- é dado pela razão à vontade. Consideremos uma vez o fato de alguém
zem a própria estrutura do pensamento. Tais afirmações e a a!itude duvidar da lmorteiidede da alma. Ele sabe que a afirmação de
que Ihes dá origem não são fé; elas provêm de uma confusao de a alma continuar a viver após a morte do corpo não pode ser nem
crer e acreditar. provada nem assegurada por autoridade de confiança. Nós nos en-
O conhecimento da realidade concreta nunca tem o caráter de contramos, portento. diante de uma afirmação teórica insegura. Mas
certeza absoluta. O processo de conhecimento nunca chega ao fim existem outros motivos que levam as pessoas a essa suposição. Elas
_ a não ser num conhecimento de "tudo em tudo". Mas tal conhe- se decidem para a fé e preenchem com a vontade a lacuna da
cimento excede infinitamente a todo espírito finito e somente pode demonstrabilidade. Na teologia católico-romana clássica a "vontade
ser atribuído a Deus. Todo conhecimento humano da realidade apenas para crer" não é uma decisão que surge do esforço do homem, mas
tem o caráter de maior ou menor probabilidade. A certeza referente ela lhe é concedida pela graça. Deus leva a vontade a aceitar a ver-
a uma lei física, uma fato histórico eu uma constatação psicológica pode dade da doutrina da igreja. Mas também conforme essa concepção não

27
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é o intelecto que é levado por Deus à fé, mas a vontade movida Esse fato é importante para toda educação religiosa, cura d'almas
por Deus completa aquilo que o intele·cto não consegue realizar so- e pregação. Nunca se deveria dar a impressão de que a fé seria uma
zinho. Tal interpretação cor responde à orientação autoritária da igreja exigência, cuja rejeição revelaria má vontade. O homem finito não
romana. Isso porque afinal de contas é a autoridade da igreja que pode criar voluntariamente o estar possuído pelo infinito. Nossa vonta-
fixa os conteúdos da fé, a cuja aceitação o intelecto é incitado pela de inconstante não consegue gerar a certeza que está presente na fé.
vontade. Excluindo-se agora a idéia de que Deus move a vontade, Isso corresponde em todos os sentidos àquilo que já foi dito acerca
o ato volitivo se transforma, como no pragmatismo, num ato arbi- da impossibilidade de chegar à fé através de provas ou de confiança
trário. Ele se torna uma decisão que sem dúvida é amparada por em autoridades. Nem a razão, nem a vontade, nem autoridades con-
alguns fundamentos - se, bem que insuficientes -, a qual, porém, seguem criar fé.
poderia com a mesma justificativa ter sido bem outra. Tal ato de
"dar crédito" com base num ato da vontade não é fé. 3. A distorção da fé como sentimento
A forma protestante da "vontade para crer" resulta da concep- As dificuldades que surgem quando se entende a fé como
ção básica da religião como moral. Exige-se aqui "obediência de fé", uma questão da razão ou da vontade ou da cooperação de ambas
em alusão a uma palavra de Paulo. Essa expressão pode significar levaram a que se a concebesse como sentimento. Essa concepção foi'
duas coisas. Ela pode sublinhar uma vez o elemento de entrega que sustentada em parte até hoje tanto do lado religioso como do secular.
sempre está presente no estado de ser possuído incondicionalmente. Para os defensores da religião esta foi uma retirada para uma po-
Julga-se então, com razão, que nesse estar possuído incondicional- sição aparentemente segura, depois que fracassou a tentativa de
mente colaboram todas as funções do espírito humano. Ou então a justificar a fé como uma questão do conhecimento ou da vontade.
expressão "obediência da fé" significa sujeição à ordem de crer, O pai da teologia protestante moderna, Schleiermacher, descreveu a
como ela é pregada pelos profetas e apóstolos. Naturalmente, quando religião como "sentimento de dependência incondicional" (10). t claro
uma palavra profética é reconhecida como "profética", isto é, como que sentimento não é usado por Schleiermacher no mesmo sentido
palavra proveniente de Deus, então obediência da fé nada significa que na psicologia corrente. Ele não é vago e oscilante, mas tem um
senão reconhecer uma mensagem como provinda de Deus. Mas se conteúdo determinado, ou seja, "dependência incondicional", uma
houver dúvida se uma palavra é "profética" ou não, a expressão expressão análoga ao que chamamos de '''preocupação incondicional".
"obediência da fé" perde seu sentido. Ela se transforma então numa r-Mesmo assim a pala~ra ".sentimento" levou muitas ve:zes à falsa :u-
arbitrária "disposição (vontade) para crer". Essa situação ainda pode posição de que a fe serre Simplesmente uma questao de emoçoes
ser melhor esclarecida, se chamamos atenção para o fato de que sem nenhuma relação com algum conteúdo que se' pudesse reco-
jreqüenternente estarnos possuídos por alguma coisa (por exemplo nhecer e sem exigência a que cabe obediência.'
por passagem bíblicas), as quais nos parecem ser expressão objetiva
de algo incondicional e último, mas nós hesitamos e usamos subter- Essa interpretação de fé foi prontamente aceita por cientistas
e políticos. Eles viram aqui a melhor oportunidade de· eliminar toda
fúgios para não fazer dela também subjetivamente um objeto de
e qualquer interferência da religião na pesquisa científica e no âm-
nossa própria preocupação última. Nesses casos se julga que o bito político. Se a religião não é nada mais do que sentimento, ela
apelo à vontade é justificado e não parece por isso ser uma incitação é inofensiva. Chegaram então ao fim os antigos conflitos entre cul-
a um ato arbitrário. Não há dúvida de que isso está certo. Mas tal tura e religiãol~ cultura, djrigida .!:elo conhecime~to científico, .pode
ato da vontade não produz fé, pois fé como preocupação incondicio- se de'senvolverlnvremente. A reliqião. no entanto, e assunto particular
nal já estava presente antes do ato da vontade. A exigência de do indivíduo e nada mais é do que um reflexo de sua vida emocio-
obedecer não é então nada mais do que a exigência de ser aquilo nal: Ela não tem acesso à verdade, e naturalmente não pode haver,
que já se é, isto é, uma pessoa que na realidade já se entregou ao por isso, conflitos entre a religião e ciência natural, história, psicolo-
incondicional, mesmo se ela lhe quer escapar. Apenas nessa situação gi e política':Depois que a rel.igião foi ~ssim declar_ada um senti-
pode-se exigir "obediência da fé"; mas ela pressupõe que a fé mento subjetdo e tirada do meio do caminho. ela nao mais repr e-
preceda à obediência e não seja a sua conseqüência. Nem a ordem senta perigo para a vida cultural do homem. ')
de crer nem a "vontade para crer" conseguem produzir fé. (10) N. do T.: "schlcchthinnig", inglês "unconditional".

28 29
Mas nenhum dos dois lados, nem religião nem cultura, conse- Símbolos e sinais têm uma característica
guiu ater-se fielmente a essa separação das duas áreas. A fé como.. eles indicam algo que se encontra fora d I s.
~r possuído por aquilo que toca _incondici.Q.lliilme.Q.l.e-!:e.clama a cruzamento indica a prescrição segundo a qu I
pessoa inteira e não s~ deixa restringir à subjetivida o_simples parar por um determinado período. A luz v rm
~enrjjTlent0..."....l
a e reivindica verdade para si e exige entrega àquilo carros em si nada têm a ver um com o outro; mas on-
que toca incondicione lrnente , Ela não pode se contentar em ser iso- venção ambos estão relacionados, e isso dura tanto con-
lada num canto como sentimento sem compromisso. Quando a pes- venção estiver de pé. A mesma coisa vale para letras núm ros, m
soa inteira está possuída, todas as suas forças estão tomadas. Se parte até para palavras. Esses também indicam para ai m de si,
é negada essa reivindicação da religião, nega-se a própria religião. isto é, para sons e significados. Eles receberam a sua função spe-
Mas não apenas para a religião foi inaceitável a limitação da fé cífica por um acordo entre o povo ou por convenções internacionais,
à esfera do sentimento. Os próprios cientistas, artistas e políticos por exemplo os sinais matemáticos. Às vezes esses sinais são chama-
mostraram freqüentemente contra a sua vontade que eles tinham dos de símbolos. Isso entretanto é lamentável, porque· dificulta a
uma preocupação incondicional, se bem que eles manisfestavam um diferenciação entre sinal e símbolo. De importância capital nesse
vivo interesse em afastar a religião para o campo do simples senti- sentido é o fato de que os sinais não participam da realidade daquilo
mento. E isso se expressava visivelmente mesmo naquelas obras em que eles indicam; quanto aos símbolos, no entanto, esse é o caso.
que eles se voltavam mais durame·nte contra a religião. Uma análise Por isso os sinais podem ser substituídos em livre acordo por questões
exata da maioria dos sistemas filosóficos, científicos e éticos' mostra de conveniência; com os símbolos não é assim.
quanta "preocupação incondicional" eles contêm, mesmo quando Isso nos leva a mais uma característica do símbolo: ele faz parte
desempenham um papel importante na luta contra aquilo que eles daquilo que ele indica. A bandeira faz parte do poder e do prestígio
e·ntendem sob religião. da nação pela qual ela flutua. Por isso ela não pode ser substituída,
Essa exposição mostra a deficiê ncia de uma concepção que en- a não ser após uma derrocada histórica que modificou a realidade
tende a fé apenas como sentimento. Não há dúvida de que na fé como do povo representado pela bandeira. O desrespeito à bandeira é
ato da pessoa inteira o elemento do sentimento está fortemente considerado ofensa à dignidade do povo que a constituíu como
representado. Um sentimento muito vivo sempre demonstra que a símbolo. Tal ato é visto até como sacrilégio.
pessoa inteira está participando de um experiência ou de uma in- A terceira característica do símbolo consiste em que ele nos
tuição do espírito. Mas o sentimento não é a ~onte da fé. A fé leva a níveis da realidade que, não fosse ele, nos permaneceriam
tem uma orientação bem determinada e um conteúdo concreto. Por inacessíveis. Teda arte cria símbolos para uma dimensão da reali-
isso ela reclama verdade· e entrega. F' está orientada para o incon- dade que não nos é acessível de outro modo. Um quadro ou uma
diclonal, o qual surge numa situação concreta que exige e justifica poesia, por exemplo, revelam traços da realidade que não podem
essa entrega. se·r captados cientificamente.
111. SfMBOlOS DA FÉ ·A quarta característica do símbolo está em que ele abre di-
mensões e estruturas da nossa alma que correspondem às dimensões
e estruturas da reel.dade. Um grande· drama não nos dá apenas uma
1. O Conceito dI? Símbolo
nova intuição no mundo dos homens, mas também revela profun-
Aquilo que teca o homem incondicionalmente precisa ser ex- dezas ocultas do nosso próprio ser. Com isso nos tornamos capa-
presso por meio de símbolos. porque apenas a linguagem simbólica citados a entender aquilo que. a peça propriamente quer dizer.
consegue expressar o incondicional. Essa tese precisa ser expl icada. Existem aspectos dentro de nós mesmos, dos quais apenas nos po-
Apesar dos múltiplos esforços da filosofia ccnlemporSnea em obter demos conscientizar através de símbolos. Assim também melodias e
clereza acerce da natureza e da função do símbolo, as opiniões ritmos na música podem se transformar em símbolos.
quanto a esse ponto ainda são muito diver qentes. Quem, portanto, Em quinto lugar, símbolos não podem ser inventados arbitraria-
ul iliza o termo "símbolo", precisa explicar o que ele quer dizer com mente. Eles provêm do inconsciente individual ou coletivo e só tornam
isso. vida ao se radicarem no inconsciente do nosso próprio ser.

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religiosos, isso quer dizer: Deus transcende o seu próprio nome. É
o último distintivo do símbolo é uma consequencia do fato de
também por esse motivo que seu nome é tão abusado e profanado.
símbolos não poderem ser inventados. Eles surgem é desaparecem
Seja lá como designamos nossa preocupação suprema, se a chamamos
como seres vivos. Eles surgem quando a época estiver madura
de Deus ou não, as nossas afirmações sempre têm significado sim-
para eles, e desaparecem quando o tempo os tiver ultrapassado. O
bólico; e os símbolos então usados mostram para além de si mesmos
símbolo de "rei", por exemplo, apareceu numa determinada época
e têm participação naquilo que eles designam. Não há outra maneira
da história e se apagou nos tempos atuais em quase todo o mundo ..
adequada de a fé se expressar adequadamente. A linguagem da
Símbolos não morrem através da crítica, seja ela científica ou de
fé é a linguagem dos símbolos. Isso já não poderíamos dizer, se a
que tipo for. Eles desaparecem quando não encontram mais reper-
fé fosse apenas um acreditar, apenas vontade ou sentimento. Mas
cussão na comunhão a que uma vez serviram de expressão.
a fé como estar possuído por aquilo que toca incondicionalmente não
Símbolos genuínos existem nas diversas áreas da vida cultural. conhece outra linguagem senão a dos símbolos. Diante de ~I::m·=-
Nós já mencionamos a política e a arte. Também precisamos citar a Ihante constatação eu sempre aguardo a pergunta: Apenas um sím-
história, mas nosso tema específico são os símbolos religiosos. bolo? Quem indaga assim, no entanto, demonstra que lhe é estranha
a diferença entre sinal e símbolo. Ele nada sabe do poder da lin-
guagem simbólica, a qual suplanta em profundidade e força as
2. Os Símbolos Religiosos possibilidades de toda linguagem não-simbólica. Nunca se deveria
dizer "apenas um símbolo", mas sim: "nada menos que um símbolo".
Até aqui discutimos os símbolos de um modo geral, mas isso É isso que se deve manter em mente na exposição que faremos em
já em consideração ao fato de que aquilo que ioca o homem incon- seguida acerca dos diversos tipos de símbolos da fé.
dicionalmente só pode ser expresso simbolicame;1te. Poder-se-ia per-
guntar agora, por que é que aquilo que é captado pelos símbolos O símbolo fundamental para aquilo' que nos toca incondicional-
religiosos não pode ser expresso adequadamente em termos diretos. mente é Deus. Esse símbolo está presente em todo ato de crer, mesmo
Quando, por exemplo, dinheiro, sucesso ou nação são a preocupação quando esse ato de crer inclui a negação de Deus. Onc.e realmente
máxima de uma pessoa, porque não se pode dizer isso diretamente, existe o estar possuído pelo incondicional, Deus só pode ser negado
sem utilizar a linguagem dos símbolos? A isso deve-se dizer: De em nome de Deus. Um deus pode negar o outro deus, mas o estar
tudo que o toca incondicionalmente o homem faz um "deus". Quando possuído incondicionalmente não pode negar o seu próprio caráter
a nação é a preocupação incondicional de uma pessoa, e·ntão o nome - o de incondicional. Nesse fato é que se encontra a confirmação
dessa nação se torna para ela um nome santo e à nação são dadas daquilo que se quer dizer com a palavra "Deus". Ateísmo, portanto,
• qualidades divinas -que em muito excedem a natureza e propósito só pode ser compreendido como tentativa de rejeitar toda preocu-
de uma nação. Essa toma então o lugar do verdadeiro incondicional, pação incondicional, o que significa, por conseçuinte, rejeição da
tornando-se assim um ídolo. O sucesso como preocupação última pergunta pelo sentido da vida. A indiferença diante dessa pergunta
não é um desejo natural de realização de possibilidades humanas de enorme pertinência é a única forma concebível de ateísmo. Se
de maior alcance, e sim muito mais a disposição de sacrificar todos é possível semelhante ateísmo, não queremos discutir aqui. Em
os outros valores da vida ao poder e ao prestígio social. O medo de todos os casos permanece de pé que aquele que nega a Deus com
não obter sucesso satisfatório é uma forma distorcida do medo ante o paixão incondicional, afirma a Deus, porque ele manifesta algo in-
juízo de. Deus: sucesso é graça; fracasso é rejeicão por parte de Deus. condicional. Deus é o símbolo fundamental daquilo que preocupa
Dessa maneira, conceitos que refletem uma realidade por demais incondicionalmente. Mais uma vez, seria totalmente errado perguntar:
terrena, como sucesso e dinheiro, se transformam em símbolos idó- Quer dizer que Deus é apenas um símbolo? Isso porque a pergunta
letr es daquilo que realmente' tem validade última. guinte teria que ser: Um símbolo de que? E a isso só se poderia
responder: De Deus. "Deus" é símbolo para Deus. Isso significa que
O fato de tais conceitos da vida cotidiana poderem ser elevados
precisamos distinguir dois elementos em nossa concepção de Deus:
a símbolos tem sua raiz na própria IlJtureza do incondicional e da
uma vez o elemento incondicional, que se nos manifesta na experiên-
fé. O realmente incondicional deixa infinitamente atrás de si todo
cia imediata e em si nêo-é simbólico, e por outro lado o elemento
o âmbito do condicionado. Por isso ele não pode ser expresso direta
concreto, que é obtido de nossa experiência normal e é simbolica-
e i3dequi3di3mente por nenhuma rei3lidade Hnito Falando em termos
33
32

~L . "
mente relacionado com Deus. A pessoa, cuja preocupação
cional se exprime numa árvore santa, está tanto tomada por uma
incondi-
Áu~,De~s
, ~ Inao
t:
retirados de nossa experiência cotidiana, e não
em t:mpos antiquíssimos ou fará
ar c~edlto a semelhantes relatos,
afirmações sobre O
em futuro distante
e sim aceitação d~
preocupação incondicional como pela concreticidade da árvore, que sim o os que exprimem através da ima em d - di
simboliza' a sua dedicação ao incondicional. A pessoa que adora a estar possuído incondicional. g a açao rvina o nosso
Apoio, está possuída pelo incondicional, e isso de modo concreto,
pois para ela o incondicional está representado na imagem divina . Outro grupo de símbolos são manifestações do di .
de Apoio. A pessoa que venera a Javé, o Deus do Antigo Testa- ~~~:asc: eventos, em indivíduos ou grupos, palavras ou escr;:~~o To~:
mento, não tem apenas uma preocupação incondicional, mas também M br:npo de objetc:.s sa~rados é um tesouro repleto de. sí~bolos
uma imagem concreta daquilo que o toca incondicionalmente. Esse as o [etos santos nao sao em si santos, mas mostram além de :
é o sentido da constatação aparentemente tão paradoxa de que ~~~n:l:onte de toda santidade, para aquilo que é o próprio inco~~
"Deus" é o símbolo para Deus. Nesse sentido Deus é o conteúdo
próprio e universalmente válido da fé.
Está claro que semelhante concepção da natureza de Deus torna 3. Símbolo e Mito
sem sentido a pergunta acerca da existência ou não-existência de
Deus. Não tem sentido perguntar pela incondicional idade do incon- ?s símbolos da fé não ocorrem individualmente Eles estã
associados
.. I a "histórias dos deuses" r pOIS .,. e ISSO mesmo que . signif o
dicional. Esse elemento na idéia de Deus é certo em si mesmo. Por
outro lado, a expressão simbólica do incondicional se' transforma cnçine t mente a palavra grega "mito" . N esses, os d euses se aprerca
incessantemente no decorrer da história da humanidade. Aqui tam- sen am como personagens individuais e se parecem com -
bém não te·ria sentido perguntar se essa ou aquela imagem em humanos. Como esses, eles se diferenciam pelo sexo têm ant seres
que o incondicional se manifesta simbolicamente de fato existe. Se sados e descendentes e estão cheios de amor e ódi d epas-
com o outro O d h _. 10 e um para
se entende por "existência" algo que possa ser encontrado em algum bé d mun o e os omens sao Criados por eles que tam
lugar no todo da re·alidade, então não existe nenhum ente divino. em atuam
deza e d entro ddo espaço
.,. h e d o t empo. EIes participam r da gran- -
Portanto nem pode ser fe'ita a pergunta pela existência de Deus. A . a rruserra _ o~ omens, da sua atividade criativa bem como
pergunta que precisa ser feita é: Quaj dentre os inúmeros símbolos destrutiva. Eles dao a humanidade cultur I' .-
ritos sagrados. Eles ajudam e amea am o a e re Iglao e protegem
A

corresponde mais profundamente ao se·ntido da fé? Em outras pa- mente certas estirpes tribos e povos N' genero humano, especial-
lavras: Que símbolo do incondicional expressa o absoluto sem estar f . r • os os encontramos em .
.amas e enca mações. eles fundam lu a.' epr-
imbuído de elementos idólatras? Esse é propriamente o problema, e Instituem sacerdotes e criam cultos M g Ies e ritos consagrados,
não a assim chamada pergunta pela "existência de Deus" uma locu- sob o domínio e ameaça do desti~o a: e es me~mo~ ~e encontram
ção que apresenta uma comb:nação impossível de palavras. Deus e.xiste. Tudo isso é mitologia, a qual' sur qi~e desta sujeito .tu~o que
como o incondicional no estar possuído incondicional do homem é g
sionante na antiga Grécia. Mas muitos d e modo. mais impres-
mais certo do que toda outra certeza, mesmo aquela acerca do se encontram em qualquer mitologia C os traços aqui enumerados
próprio eu. Mas reconhecer Deus no símbolo de uma imagem divina não são equiparados Há uma h' . ~mumen~e os deuses do mito
é uma questão de fé, coragem e risco. supremo, como na Grécia, ou ~~~ar~~laa ~~~~a~~ada por um de.us
Deus é o símbolo fundamental da fé, mas não é o único. Todas ou por ur:na divindade polar-dualista, como na Pérs'ia c~~o ~a lndie,
as qualidades que lhe atribuímos, como poder, amor, justiça, pro- que mediam entre os deuses supremos e h . a re entores,
vêm do âmbito de nossas experiências finitas e são projetadas sobre d sua imortalidade intrínseca sofrem os omens, e q~e, apesar
aquilo que se' encontra além de finitude e infinitude. Quando a fé o mundo do mito d , morrem e ressuscitam. Esse
, um mun o vasto e estranho
chama Deus de "onipotente", ela utiliza a experiência humana do f r~ação, mas fundamentalmente sempre o me;ms~.mpre em tr.ans-
poder para designar simbolicamente o objeto de seu estar possuído t o da suprema preocupação do êner h . uma rnenifes-
incondicionalmente; mas com isso ela não caracteriza um ente su- irnbolicamente em personagens e t g d'? um~no, ~epre'sentado
premo que pode fazer o que lhe aprazo O mesmo se dá com todas 1m 0105 da fé associados a lenda~ o~s ~~~~ss.f~ltos ~ao, portanto,
as outras qualidades de Deus e com todas as ações no passado, dos d uses entre si e dos deuses com os Irornens.a am os encontros
presente e. futuro que o homem lhe atribui. Tudo isso são sfmbolos
35
34

1
Mitos estão presentes em todo ato de crer, porque o símbolo
é a linguagem da fé. Mas em todas as grandes religiões da humani- I 50 porque o mito é a associação d e sim ímb o los que exprimem o que
dade eles são criticados e transcendidos. O motivo para isso está na nos toca incondicionalmente. . it d
própria nature·za do mito, que obtém seu material da nossa expe- ' did como mito sem ser reje: a o ou
riência cotidiana e coloca os atos e experiências dos deuses dentro Um mito que e enten di °d "mito q~ebrado". Em conformi-
b it íd ode ser chama o e d it
do tempo e do espaço. Mas uma característica vital do incondicional su sf UI o, P A' tianismo precisa rejeitar to o mio

é exatamente que ele está além do espaço e tempo. Sobretudo, dade com a sua .es:encla, ? ~~I:eado no primeiro mandamento, no
não-quebrado; pOIS ISSO esta D na rejeição de todo tipo de
porém, o mito cinde o divino em uma série de personagens, sub- h· t de Deus como eus e íbli
traindo-Ihes assim a incondicional idade, sem eliminar as suas rei- recon ecrrnen o 't I' . os presentes na BI Ia, na
idolatria. Todos os eleme~tos rru o ogl~hecidos como tais. Mas eles
vindicações de incondicional idade. Isso forçosamente leva a conflitos
doutrina e na liturgia precisam sfer reco. bólica e não ser substituí-
entre essas diferentes reivindicações, que podem ser tão veementes a ntidos em sua arma Sim, b I
ponto de pôr em perigo a existência do indivíduo bem como de deveriam
dos ser ma científices.
por fórmulas . ,. Poi
OIS ~ao _ há substitutos para sím o os e
grupos inteiros.
mitos eles são a linguagem da fe.
A crítica ao mito se dirige em primeira linha contra a cisão do , . ., uma reação ao fato de que a cons-
divino, superando-a com o conceito de um Deus único, se bem que A críti.ca ra~lc~l. ao ml:o e bstinadamente a toda tentativa de
esse conceito pode apresentar traços bem diferentes nas diversas ciência mítlca. primitiva r~slst~Iao teme todo ato de demitologização
religiões. Isso porque mesmo o Deus único permanece objeto de {)() entender o mito como ml~o. do" de a sua verdade e a sua capa-
linguagem mítica, e quando se fala dele, ele é necessariamente colo- ..:r e acha que um "~ito que ra.o ~:rm mundo mítico inabalado, sen-
cado dentro de espaço e tempo. Sim, perde-se até a sua incondicio_ ( M cidade de persuas~o. Quem vlve õe fanaticamente a toda tentativa
U g fi te-se seguro e abrigado. Ele se o p h a atenção para o caráter
nalidade ao ser ele feito conteúdo concreto de uma determinada fé. lU •• b dito" porque essa c ama A • ,

Sucede daí que a crítica ao mito não se esgota com a rejeição de uma ••• 8! 11) de "que ra o. m, d . egurança. Essa resistêncie e
mitologia politeísta. S 1& simbólico e cria um elemen.tc: . e sejam eles do tipo religioso ou

Também o monoteísmo está sujeito à crítica ao mito e precisa,


..•.=
~ - I-
••• fill:
VI favoreci
id
a por s
istemas autor itár ios. s
.
político. Pois está em seu Inter~sse .em _
balar em segurança as pessoas
dando assim aos domina-
como hoje se diz, da "demitização".
contexto da descoberta
Esse conceito foi cunhado no
dos elementos mfticos nas narrações e nos
•i que se encontram sob a sua 0rr:I~aç~o'demitizacão se mostra num
C'l dores o poder incon,telste. AOoP~sI1a~0: e mitos ;ão entendidos lite-
símbolos da Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento. rígido agarramento a. etra. s sim d natureza e da história, é
Trata-se aqui de relatos Como o do Paraíso, da queda de Adão, do
ralmente. Seu material, emp~~:ta:~eri~1 mente A essência de 5:':1-
dilúvio, da saída do' Egito, do nascimento virginal do Messias, seus interpretado pelo ~ue apr~se I que se encontra fora dele, não
múltiplos milagres, sua ressurreição e ascensão bem como de sua bolo, que indica alem de SI pa~a a gO'a ão como um ato mágico no
eSl?erada volta como juiz do cosmo. Em suma, todas as narrativas é reconhecido. Entende-se entao ad cr~ ç Adão é localizada no espaço
a que
em que se descreve atuação divina entre os homens são entendidas "Era uma vez ... li da fábula;d t .a deo' o nascimento virginal do
ib íd um homem e ermllla , _
como mitológicas em sua essência e com isso sujeitas ao processo e etri UI a a . _ bi lógica. ressurreição e ascensao
de demitização. Que se deve dizer agora desse termo negativo e Messias recebe uma IIlterpre;?~ao 10o reto~no de Cristo é entendido
artificialmente criado? Ele deve ser aceito, caso ele for usado para se apresentam ;omo eventos . ISI~O,S,e Terra ou o cosmo. A condição
como uma catastrofe que atlll?~a a, . _ d ue Deus tem
salientar a necessidade de se compreender um símbolo como sím-
para semelhante crença literalístice e a ~~~~~~~~ oe :7rso das coisas
bolo, e um mito como mito. O conceito da demitização, no entanto, c
uma localização no ten:Pfol e n? despaço ~ todo outro ente no mundo.
precisa ser rejeitado, se ele significa o expurgo dos símbolos e mitos b é por ele 111uencla o com . di .
como tais. Semelhante empreendimento nunca será bem sucedido, em como _. I d Bíblia despoja Deus de sua incon rciona-
Essa compreensao litera a I" os também de sua majestade.
porque símbolo e mito revelam formas de pensamento e de intuição lid d falando em termos re Iglos t • _

que estão inseparavelmente ligados à estrutura da consciência hu- I a e e, . 'I do finito e condicionado. Em tudo ISSO nao
Ela o rebaixa ao ruve lti acional mas sim intra-religiosa. Uma
mana. Pode-se substituir um determinado mito por outro, mas não
estamos diante de um~ C~I;c: ;iteralm~nte é idolatria. Ela chama de
se pode desligar o pensamento mítico da vida do espírito humano.
fé que enten~eàquilo
incondicional s.eusquesim,e omenos
o qu e incondicional. A fé, entretanto,
36
37
r

que está consciente do caráter simbólico de seus símbolos dá a Deus cepção limitaria consideravelmente a utilizaç~o do termo mito. _0
a honra que lhe cabe. mito não poderia mais então ser compre·endldo como a expressao
Temos de distinguir agora duas faces na distorção . literal da lingüística da nossa preocupa,ção incondicion~I" r:'as apenas como
um idioma antiquado dessa línqua. Mas a história demonstra que
compreensão dos símbolos: a original e a defensiva. Na fase original
não existem apenas mitos da natureza, mas também mitos históricos.
o. mítico e. o, I~teral não são diferenciados um do outro. Nos prirnór-
Se na Pérsia antiga o mundo é visto como ~ campo .de batal.ha, ?e
dios da história nem as pessoas nem os grupos conseguem distin-
dois poderes divinos, nós temos diante de nos um mlt~ da hl~to;I~.
guir as criações imaginativas de símbolos, de fatos que podem ser
Quando o Deus da criação elege um povo e o leva atraves da hlstórie
demonstrados pela observação e a experiência. Essa fase tem a
em direção a Um alvo que transcende a toda a história, entã~ ~sso
sua razão de ser até o instante em que o espírito investigador do
é um mito da história. Quando o Cristo, um ser transcendente, divino,
homem supera o crédito literal aos mitos. Quando chega esse mo-
mento, abrem-se duas possibilidades. Uma consiste em substituir o aparece na plenitude do t~r:'Po, viv:,. m?rre e, ressu:~ita, isso é no-
vamente um mito da história. O Cristianismo e a critica a todas as
mito incólume pelo mito quebrado. Esse é o caminho objetivamente
religiões que estão presas a mitos da natureza. Mas _como .to?a
correto, se bem que ele não é viável para muitos, porque eles pre-
outra religião, o cristianismo fala a língua do mi.to, se~a.o o cristia-
ferem reprimir seu questionamento do que tomar sobre si a incer-
nismo não seria expressão daquilo que nos toca incondicionalmente.
teza que surge da quebra do mito. Assim eles são arrastados à
segunda fase da compreensão literal dos mitos. Intimamente eles
~abem da razão do questionamento, mas o reprimem por medo da IV, TIPOS DE FÉ
Insegurança. Geralmente essa repressão se dá com auxílio de uma
autoridade sagrada, como por exemplo a igreja ou a Bíblia, às quais 1, Os Elementos da Fé e sua Dinâmica
se deve obediência incondicional. Também essa fase é justificável,
Fé como estar possuído por aquilo que nos toca incondicional-
quando a consciêncie crítica é pouco desenvolvida e pode ser facil-
mente existe sob muitas formas, e isso vale tanto para o ato de
mente tranqüilizada. No entanto é imperdoável, quando nesse es-
crer como para o conteúdo da fé. Todo grupo religioso e cultural e
tág~~ um espirito, ~aduro é ~a.rtido em seu âmago por métodos
até certo ponto todo indivíduo tem uma experiência de fé especial
políticos e psicolóqicos e precipitado numa profunda cisão consigo
com conteúdo de fé próprio. O estado subjetivo do crente se trans-
I~esm~. O, inimigo da teologia crítica não é, por isso, a compreensão
forma e provoca transformações dos símbolos da fé e vice-versa.
literal inqenua dos símbolos, mas sim aquela que é feita consciente-
Para se poder compreender as múltiplas formas de expressão da fé,
mente, com uma agressiva supressão do pensamento independente.
deveremos distinguir em seguida alguns tipos básicos e descrever a
Os símbolos da fé não podem ser substituídos por outros sím- sua mútua relação dinâmica. Tipos religiosos em si são estáticos.
bc:los, artísticos por exemplo, e eles também não podem ser anulados Mas isso não é a última coisa que se pode afirmar acerca dos tipos
pela crítica científica. Como a ciência e a arte, eles estão firmemente de fé, uma vez que eles contém um elemento dinâmico na medida
enraizados na essência do espírito humano. Em seu caráter simbólico em que eles reivindicam validade incondicional para o aspecto es-
é que está a sua verdade e o seu poder. Nada que seja inferior a pecial da fé que eles represe·ntam. Daí resultam tensões e_ luta~,
símbolos e mitos pode expressar aquilo que nos toca incondicional- tanto entre os difer-;ntes tipos de fé dentro de uma comunhao reli-
mente.
giosa bem como entre as grandes religiões.
Por último precisa-se perguntar se mitos são capazes de repre-
se.nt~r to_do tipo de preocupação incondicional. Alguns teólogos Não se deve esquecer que tipos sempre são construções do
cnstaos sao da opinião de que a palavra "mito" somente deveria ser pensamento e como tais nunca se encontram em estado puro na
usada com relação à natureza. isto é, quando se trata da descrição realidade. Em nenhum âmbito da vida existem tipos puros. Todos
de processos da natureza que se repetem ritmicamente (por exem- os objetos reais pertencem a vários tipos. Existem porém !r.a~os pre-
plo, as estações do ano) e são interpretados em sentido religioso. Os dominantes que' determinam uma coisa e a permitem classlflc~-I~ s:,b
mesmos teólogos não aceitam que se chame de mito a evolução do um' certo tipo. Esses traços precisam ser destacados, se a dinârnica
~u~d:" a qual a fé cristã bem como a judaica vê como um processo da vida deve ser explicada. Isso também vale para as formas da
histórico que tem um começo, um centro e um fim. Semelhante con- fé e seus símbolos.
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- --
Fundamental para a distinção dos tipos de fé são os dois ele- tante está na autocrítica e na coragem d 'i!1I 11 pllll',11 1I I
mentos que estão presentes na experiência do sagrado. Um elemento dade. Daí a dinâmica da fé se manifestar moi Iort ITI li" 1111I I
é a presença do sagrado aqui e agora. Ela santifica o lugar em que tantismo do que em qualquer outro lugar: o in nulávol 1111,11,1
aparece e a realidade em que ela se manifesta. Essa experiência a incondicionalidade da exigência da fé e a ondi I 11 IleI 111
toma posse do espírito humano com uma violência estremecedora e vida concreta de fé.
fascinante. Ela irrompe na realidade costumeira e a impele extatica-
mente para além de si mesma. Ela fundamenta regras, pelas quais 2. Os Tipos Ontológicos de Fé
se pode compreender o sagrado. O sagrado precisa estar presente
e precisa ser experimentado como estando presente, se é que ele O sagrado é experimentado como estando presenl . II
deve ser experimentado. aqui e agora, isto é, ele se nos depara num objeto, num II
num acontecimento. A fé vê numa porção concret 1(1 Ir 1
Ao mesmo tempo o sagrado é o juízo sobre tudo que é. Ele exige lidade O fundamento último de toda a realidade. N ,,11111111
santidade, no sentido de justiça e amor, tanto para o indivíduo como parte da realidade está excluída da possibilid~de de s.e tom I fi 1I
para um grupo. Ele representa aquilo que somos de acordo com tadora do sagrado, e de fato quase tudo que e real fOI no CUI '. I
o que pela própria essência somos e por isso também deveríamos história das religiões chamado uma vez, em atos de fé, I
ser. Como lei do nosso próprio ser, e·le está contra nós e a favor de grado, seja por grupos ou por indivíduos. Tal porção da re li
nós. Onde quer que o sagrado seja experimentado, também se ex- que é experimentada num ato de crer como portadora do sagrado, I
perimenta o seu poder de exigir aquilo que deveríamos ser. como diz o termo tradicional, caráter "sacrament'al". Este cálice, 11
Nós queremos chamar o primeiro elemento na experiência do pão, esta árvore, este gesto da mão, este ajoelhar-se, _este edifr i I

sagrado de "santidade do ser", o segundo, de "santidade do dever". este rio, esta cor, esta palavra, este livro, esta pessoa sao portador '
Poder-se-ia chamar a primeira forma de fé, em termos breves, de do sagrado. Através deles a pessoa crente exp~rimenta. aqu.ilo qUI
tipo ontológico, a segunda de tipo ético. Em toda religião a dinâ- a toca incondiiconalmente. Eles não são e'~,colhldos arbltreriernent
mica da fé está consideravelmente defjnida por esses dois tipos e como portadores do sagrado, e sim pela intuição visionária de indi-
por sua interdependência e seu antagonismo. Ambos os tipos de víduos. Eles são aceitos pelo consenso comum de todo um grupo
fé influenciam tanto a mais fntima vid do fé pessoal como também transmitidos de geração a geração; eles são modificados, reduzido
as grandes religiões históricas. Elos estão pr sentes em todo ato de e ampliados. Diante deles as pessoas são tomadas de reverência,
crer. Mas um dos dois sempre pr valec , pois o homem é finito e fascinação, veneração, idolatria e crítica e finalmente os substituem
nunca capaz de possuir todos os elementos da verdade. Por outro por outros portadores do sagrado. Esse tipo sacram~n~~1 de fé se
lado o homem não pode descansar no reconhecimento de sua finitude, encontra em todo o mundo e aparece em todas as rellgloes. Ele é o
porque a fé gira em torno do incondicional e de suas formas de "pão diário" da fé, sem o qual uma fé se tornaria vazia e abstrata,
expressão adequadas. Toda express-o inadequada da fé pode levar perdendo seu significado para a vida do indivíduo e do grupo.
a que o homem não atinja o incondicional e seja então determinado
em toda a sua existência por algo que permanece aquém do incon- Fé no tipo sacramental de religião não quer dizer que certas
dicional. Por isso o homem sempre precisa tentar romper os limites coisas são sagradas e outras não. Fé é o estar possuído, que é trans-
de sua finitude e alcançar aquilo que nunca pode ser alcançado: mitido por um determinado meio. A afirmação de que algo seja
o próprio incondicional. Dessa tensão surge o problema da relação "sagrado" só tem sentido para aquela fé que o testemu~ha. ~om~
entre fé e tolerância. Uma tolerância que nada mais é do que rela- [uízc teórico, que reivindica validade geral, essa afirmação e
tivismo, uma atitude em que nada de incondicional se exige, é uma combinação absurda de palavras; apenas no interrelacionamento
negativa e sem peso; ela não escapa à sina de se transformar em entre sujeito e objeto da fé ela é verdadeira e faz sentido., O obser-
seu oposto, um despotismo intole·rante. A fé, no entanto, precisa vador que está à distância somente pode constatar que ha .uma re-
conjugar ambas as coisas: a tolerância consciente da condicionalidade lação de fé. Mas ele nunca poderá depor algo acerca da genuinidad:
de toda fé determinada, e a certeza fundamentada no incondicional. de semelhante relação. Quando, por exemplo, um protestante ve
Em todos os tipos de fé, porém especialmente no protestantismo, um católico orar diante' de uma imagem da Virgem Maria, ele
esse problema é significativo. A grandeza e o perigo da fé protes- permanece um observador isolado e não é capaz de participar do

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I
que está acontecendo ali em termos de fé. A coisa é outra se for ser comprimido num sistema racional. 6 . ( P 'ri 11 I I xt I
um católico que estiver observando. Ele poderá acompanhar aquele isso somente se pode falar do incondicioru I nun 1111 lU
que ele observa em seu ato de fé. Um critério pelo qual se pudesse está consciente de que em si não se pode f I r I-I
julgar a fé não existe, quando o que julga se encontra fora da fé.
Por outro lado o crente pode perguntar a si mesmo ou ser perguntado Essa é a única maneira em que a experiênci mr ti
por outrem se o meio através do qual ele experimenta o incondi- se expressar. Pode-se, porém, pergu~tar: Exist,e e~t~o li, I
cional exprime o que é verdadeiramente incondicional. Essa per- que possa ser expressa, já que.:' objeto d~ fe ml.stlca ultr p. . to II
gunta é a força dinâmica na história da religião, ela se volta decidi- possibilidade de expressão? Nao se baseia a fe na expen nCI do
damente contra o tipo sacramental da fé e rompe suas limitações sagrado como estando esse presente? Como é possível semelh nt
em muitos sentidos. A justificativa dessa pergunta está em que o experiência, se o incondicional é aquilo que tr.anscende toda exp -
riência? A isso os místicos respondem que ha um lugar em que
finito - também o finito mais sagrado - pode somente indicar aquilo
que toca o homem incondicionalmente. O homem, porém, esquece o incondicional está presente no mundo finito: nas profund~z.as da
esse limite e identifica o objeto sagrado com o próprio sagrado. O alma humana. Essas profundezas são o lugar em q~e o flnl!O se
objeto sacramental é visto como sagrado em si mesmo. Desaparece toca com o infinito. A fim de lá chegar, o homem precisa despojar-se
o seu caráter de indicar, como portador do sagrado, para além de si. de todos os conteúdos finitos. Ele precisa renunciar a todas as preo-
O ato de crer não se dirige mais para o incondicional como tal, mas cupações provisórias em prol da preocupação última .. Ele também
par a o representante do incondicional: a árvore, o livro, o .edifício, precisa transcender todas as coisas reai:, em que a fe sacr.a~ental
a pessoa. Perde"se a transparência do ato de fé. O ponto de vista experimenta o incondicional. Ele precisa transcender. a_ ciseo da
protestante vê na doutrina católica da substanciação, segundo a existência, mesmo a mais profunda e geral de todas a; cisoes. aq.u:la
qual pão e vinho são transformados em corpo e sangue do Cristo, entre sujeito e objeto. O incondicional se encontra alem ~e_ssa ciseo,
essa perda da transparência do divino, uma vez que o divino é e o homem que o quer alcançar precisa superar essa ciseo dentr?
igualado a uma porção limitada da realidade. É verdade que a fé de si através da meditação, contemplação e êxtase. Nesse rnovi-
experimenta a presença do sagrado que se apresenta na imagem mento da alma, a fé se acha num estado de oscilação entre ter e
do Cristo, no pão e vinho do sacramento. Uma distorção dogmática, não ter aquilo que a toca incondicionalmente. A fé está num movi-
no entanto, é tratar o próprio pão e vinho como objetos santos, que mento de aproximação gradativa, de recaídas e de realização repen-
como tais são efetivos e podem ser guardados num relicário. Nada tina. A fé mística não despreza nem rejeita a fé sacramental, mas
existe de sagrado fora da fé viva. Até os santos somente são santos ela a transcende' em direção àquilo que está presente em todo ato
porque a fonte do sagrado por e·les transparece. sacramental, mas permanece oculto sob os objetos concretos em que
se encarna. Por algum tempo os teólogos contrastaram fé ~ ~xp~-
Os limites e' perigos do tipo sacramental de fé levaram os riência mística. Eles achavam que a fé permaneceria numa distancia
rnlsticos em todas as épocas da história ao passo radical de trans- intransponível do incondicional, enquanto que a mística procur~ria
cender a realidade, seja em uma de suas partes, seja em seu todo. a fusão do espírito humano com o fundamento do ser e do sentld~.
Eles identificaram o incondicional com a base ou a substância de Semelhante contraposição de fé e mística, porém, somente tem vali-
todo o ser e o chamaram de o "Uno", o "Inefável", o "Ser acima do dade condicional. O próprio místico sabe da infinita distância entre
ser". O místico não está interessado em rejeitar as formas sacra- o infinito e o finito e se conforma com uma vida em que a união
mentais concretas da fé, mas em ultrapassá-Ias. A experiência mística extática com o infinito é apenas raramente ou mesmo jamais alcan-
se encontra ao termo de um longo caminho, que leva das formas mais çada. E o crente só pode ter fé na medida em qU,e ele ~ possuído
concretas da fé a um ponto em que todo determinado desaparece por aquilo que o toca incon,dicion~lmente. t;. mlstlca. e, como o
no abismo da divindade pura. A mística não é irracional. Alguns sacramentalismo, um tipo de fe, e nao o contrario de fe; e em todo
dos maiores místicos da Europa e da Ásia eram ao mesmo tempo tipo de fé há um elemento místico bem como um sacramental.
grandes filósofos, que se sobressaíam na clareza e conseqüência do A mesma coisa vale para a forma humanística da fé ontológica,
seu pensamento. Eles reconheceram que aquilo que nos toca incon- cuja consideração é especialmente importante" por~ue' freqüente,-
dicionalmente, o objeto de nossa fé, não pode ser igualado a mente humanismo é identificado com falta de fe e e contraposto a
uma parte da realidade, como o tenta a fé sacramental, nem fé. Isso, porém, só é possível se fé é definida como acreditar na
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existência de seres divinos. Se, no entanto, fé é entendida como
ele pode ser contemplado na natureza C n hi 16r .
estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente então
sagrado numa flor, em como ela se descnvolv , n
também o humanismo encerra um elemento de fé. Sob hurnanismr,
ele se move,' no homem, como ele apresent um
nós entendemos aqui a orientação que faz do que é verdadeiramente
singular, ou num determinado povo, nu.~a. cultur p I I, num
humano o critério e alvo da vida do espírito, isso na arte e filosofia,
sistema social específico, esse tem expenencies que d mp • nl~ m
ria ciência e política, nas relações sociais e na ética pessoal.
um importante papel no tipo romântico-conservador. Par o rorndntlc
Conforme a concepção humanística, o divino se revela como humano
aquilo que já está dado é sagrado e ,é conteú~o de sua preocup ç. o
e vice-versa. Aquilo que toca o homem incondicionalmente é o
última. A analogia dessa forma de fe com a fe sacramental é óbvi .
homem. Com isso se quer dizer o homem em sua essência, o homem
A for-ma romântico-conservadora da fé humanística é fé sacrament.al
verdadeiro, o homem como "idéia", não o homem real na aliena-
secularizada: o sagrado está presente aqui e agora. O cons.ervadons-
ção de sua natureza verdadeira. Quando, sob essa pressuposição,
mo cultural e político se deriva em última análise desse tipo de fé
a fé humanística diz que o objeto de sua preocupação suprema é o
secularizada. Ela é fé real, mas encobre o incondicional que ela pre.s-
homem, então ela vê o infinito e incondicional em algo finito, e
supõe. Sua fraqueza e perigo consiste ~m perder sua substência
nisso ela não se diferencia da fé sacramental, que quer abarcar o
religiosa original. A história demonstrou ISSO em t~das as cul!u~as
infinito numa porção de finitude, ou da fé mística, que encontra nas
puramente seculares, as quais sempre de. novo recal~m nos ~staglos
profundezas da pessoa o lugar do infinito. Persiste, porém, uma
anteriores de sua religiosidade, dos quais elas havlarn partido.
diferença. Os tipos sacramental e místico rompem os limites do hu-
mano: o sacramental em direção ao universo e todos os seus conteú-
3 .. Os Tipos Morais de Fé
dos, o místico em direção àquilo que transcende o homem e seu
mundo. O hurnanista, em contraste, permanece dentro do âmbito A característica comum dos tipos morais de fé é a idéia da lei.
do humano. Por esse motivo a fé humanística é chamada de "pro- Deus é sobretudo aquele que deu a lei - como dádiva e exigência.
fana", enquanto qve se designa os outros dois de "religiosos". "Pro- Somente aquele que segue· a lei pode chegar a ~eus. É :,erdad~
fano" significa nesse contexto permanecer dentro do quadro do que também a fé mística e sacramental ~onhec.e. leis. tambem aq~1
curso costumeiro das coisas, sem ultrapassá-Io em direção a um âm- ninguém consegue alcançar o último e incondicional, sem cum~nr
bit~ sagrado. No .Iatim ~ nas línguas dele derivadas fala-se de pro- essas leis. Existe, porém, uma diferença i~po!tante ~~a~to ao tipo
fanidede no sentido onginal da palavra, isto é: "estar diante das Jas leis. No caso do tipo cntológico, a lei rrnpoe a sujerçao a orden~
portas do templo". Muitas pessoas dizem de si mesmas que elas rituais ou a exercícios ascéticos. No caso do tipo moral, uma lei
"vivem diante dos portões do templo" e que não têm fé. No entanto, moral demanda obediência moral. Está certo que a diferença não
~e são. r:erguntadas se podem viver sem que alguma coisa as toque é absoluta, pois a lei ritual tam,b~m contém exigên.~ias n:ora.i~, ; a I~i
incondicionalmente, sem que levem algo incondicionalme'nte a sério ética encerra elementos ontolóqicos. Mas essa diferença Ia e sufi-
das decididamente o negariam. Com isso elas testemunham que ciente para tornar compreensível o s·urgimen.to da; .diversas grandes
estão no estado de fé. Elas representam o tipo humanístico de fé, religiões. Elas sequem a um QU ao outro tipo básico.
que pode ter cunhos diversos. O fato de alguém dizer de si mesmo No âmbito do tipo moral de fé podemos distinguir a forma ju~í-
que ele está completamente na profanidade não o exclui da comu- dica a convencional e a ética. A primeira recebeu sua expressao
nhão dos crentes. Seria uma tarefa interminável, se quiséssemos mai; forte no judaísmo talmúdico e no islamismo: o melhor e~e~plo
descrever as múltiplas formas em que se exprime a fé humanística. para a forma convencional se encontra na Ch~na d~ C?nfuclo; ~
Ela está difundida em vastas áreas do mundo ocidental bem como forma ética, no entanto, é encarnada pelos protetas [udaicos, A fe
em culturas asiáticas. A distinção entre tipos ontológicos e mo- do muçulmano é fé na revelação através de Maomé, : essa. revela-
rais de fé, que aplicamos nos tipos religiosos, também podemos ção é aquilo que o toca incondicionalmente. A rev~l.açao tra~ld~ p~r
. fazer na orientação humanística de fé. - O tipo ontológico tem a sua Maomé consiste principalmente de leis rituais e sociais. As leis ntuais
expressão mais forte na forma romântico-conservadora do humanis- lembram a fase sacramental, da qual provêm todas as religiões e
mo; o tipo moral da fé, na progressista-utópica. A palavra "român- culturas. As leis sociais vão mais longe do que o elemento ritual e
tico" indica nesse contexto a experiência do infinito no finito, como santificam "aquilo que deveria ser". Leis desse tipo. permeiam a vida
inteira (por exemplo, no judaísmo ortodoxo). A lei sempre se apre-
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( ", I ( mo dádiva e exiçêncí». Apenas sob a proteção da lei é que
•.•vid» possíve·1 e digna de se viver. O mesmo vale para o adepto
rn di no do islamismo bem como para todos os que desenvolveram fé e fornecea~ regras parar~d:a ~:~~~;t~~~~s~Slnt;/~;r ~ ~11 /
n ssa mesma base um humanismo secular, em grande parte influen- na vida cotidiana. O sag, m na mais insignificanl eco d, vi t
ciado pelo pensamento da Antiga Grécia. Se alguém diz da orientação deve ser lembrado tambe . tem valor se est ossociado
f.
ó

religiosa dos povos islâmicos qUE' sua fé é fé em Maomé, e por diária, E inversamente, .todo ~glr da justiça.' A qrandcz do pro-
isso está em conflito com a fé em Cristo, então deve-se retrucar: obediência diante da lei ,mora / ~ ern ue ele sempre' conden O

Decisiv'1 no Islamismo não é a fé em A\aomé Como profeta, mas fetismo vétero-testamel~~arl°s es~aan~o e~s negligenciam o elemento
a fé numa ordem que está consagrada e que determina a vida da povo bem como seus I ere , q em favor do elemento sacra-
d I· '10 que d eve ser - .
maioria das pessoas. A questão da fé não é Moisés ou Jesus ou moral a, el -, a~ul . ,. ndial da fé judaica, sacudir a segu-
mental. E a rrussao histórico-mo _, ,. judaísmo mas
Maomé; a questão é muito antes: Qual deles exprime aquilo que rança sacramental acrítica, e iss? ,~ao so no proprro ,
nos toca incondicionalmente? Assim, nos confrontos entre as reli- também em todas as outras reliqiões. " ,
giões não se trata dos conteúdos de fé como tais, mas da questão:
. . d ' não se faz sentir apenas no crrsne-
De que forma a pr€"Ocupação incondicional é mais exatamente expri- A influência
. 'I .domo[u masarsrnotam béem na forma progressista-utópica.
mida? Decisões de fé são decisões existenciais, e não teóricas. nrsrno e no ' IS.armsmo, todo o mun d o 0.1 cid en t a I, O humanismo antigo
O que acabou de ser dito tômbém vale para o sistema de da fé hurnanisfica
. I' d em de er Tanto a Iff l'.l O Io qia grega como a tragédia ,
regras convencionais que foi Em perte coligido, em parte eiaborado conhecia fil
a el f o ega v. bem como o direito I , romano e o hurnanisrno
por ConfÚcio. Freqüentemente se o considerou arreligioso, afir- grega, a I oso I?, gr • I am aquilo que deve ser. Mas
mando-se da concepção chinesa de vida que nela não haveria fé, político dos estóicos roma,nos acendu inou em toda a Antiguidade,
,. ntolóçico pre orru ,
ao menos na medida em que ela é determinada por Confúcio. Mas assim mesmo o IpO o I d ela vitória do misticismo na filo-
também no Confucionismo existe fé, e isso não somente no que diz Isso está demonstrado de um a lado pela importância das religiões
respelto à veneração <os antepassados, que representa um ele- sofia grega tardia :. de outro b 01"10 pela ausência do pensa-
mento sacramental, mas também quanto à incondicionalidade dos de mistério no lmpér io ,R~mano em c mundo antigo.
mento progressista e UtOplCOem todo o , I XVIII se
mandamentos morais, cujo pano de fundo é uma certa concepção da
estrutura metafísica do universo. A. lei do estado e da sociedade é ' d
O hurnanisrno mo erno, espec ialmente desde
't- o secu
e colocao o peso ,
. d m 'undamento crrs ao
apenas uma forma especial em qUE' se manifesta essa estrutura. Mas desen.volve :e~a~~ se~ti~o d~s profetas judaicos. Já e~ seus pri-
apesar desses elementos religiosos, o ceréter fundamental do Con-
fucionismo é secular, um fato que possibilitou dois eventos de ~~rIJilo~oel~e mostra :ortes elemt,entosfePu~oarecs~:~ta:e~s u;~~~cao~'€;I~~
enorme envergadura histórica: em primeiro lugar a influência das I' d' 'uma critica ao SISema
pre u 10 e. "i a rimeiramente para os camponeses,
re,ligiões sacramentais e místicas do Budismo e Taoismo tanto em sacramentais. Ele E'~lg; I~st ç , ~ e finalmente para as massas pro-
sua forma popular como em sua forma refinade. Além disso, a depois para a socie a e urgueds ' Iluminismo desde o século XVIII
fácil vitória alcançada neste país pela fé secular do comunismo, o I cs A fé dos precursores o I lib
qual igualmente pertence ao tipo moral da fé humanística. ,.ererres. ral da fe, h urnarus' tiice. O SI.iluministas lutaram pe a I er-,
e o tipo mo . _ L consa rada pela religião, e pela [ustiça
Como a mais influente de todas as variações do tipo moral tação da servidão reudald· id gl Sua fé era fé hurnanlstice , suas
t d ser humano rn IVI ua. , , M
de fé evidenciou-se a terceira forma: a religião do Antigo T€'stamento. para o o _ mais seculares do que religiosas. as
Como toda forma de fé, também ela tem uma ampla base sacra- formas de ex~ressao_ e~m intuicão científica, se bem que elE's acre-
mental: a idéia do povo eleito, do pacto entre Deus e o povo, e a fé tratava-se de fe, e nao e d azão conjuqada com justiça e ver-
di poder superior a re , f d
J

ritual em toda a sua riqueza, No entanto, a experiência da santidade itavarn no. " de sua fé humanística transformou a ace a
do ser nunca afastou a santidade do dever. Para os profetas e seus dade. A ,. dinâmica meta d e OCI id en t a I do mundo , depois no Oriente,
sucessores - sacerdotes, rabinos, teólogos - o caminho para Deus terra, pnmel;o. nad 'h 'I emprestou aos movimentos revo-
,6., fé humanística e cun o m~ra séculos XIX e XX a sua
se encontra apenas na obediência à lei da justiça. A lei divina é a
preocupação suprema e incondicional, e isso tenro no Antigo Testa- lucionários das ,m~ssas. ~rol~~,~a~ ~i~~vel, Como em toda fé, tam-
menro como no judaísmo moderno. Ela é o conteúdo decisivo da paixão. Sua dlna,mlca ~m f~ hu~anística gira em torno daquilo que
bérn toca
nos a forma utópice
incondicionalmente. a É dai
ai qu e ela recebe sua força incrível,
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tant~ no ~em como no mal. D;ante dessa análise b
;olns,deraçoes precedentes, carece de todo e qualque~~ c~mo das O catolicismo caracterizou a si m smo,
sistema que engloba elementos culturais r 11')1
u~:r-;~ de um desaparecimento da fé no mundo oCidentalunEs:~n~:~
entre si. Suas fontes são: o Antigo Testamento, lU
e de_ cunho secular, e essa fé forçou o religião tradic·ional
o tipo sacramental e o moral, as religiõe·s hclênic
~m~, pO~lçao de defesa. 'VIas essa fé secula rizada é fé e n - fa~;:
e e. E a sedPreocupa com algo incondicional e com a 'entregaOa mística, o humanismo clássico grego e o modo d p 11 11 I
a esse mcon icional. total da Antiguidade tardia. Sobretudo, porém, o catolicismo
no Novo Testamento, o qual em si já engloba uma s6rl 11
4. A Unidade dos Tipos de Fé repre-senta uma conjugação de elementos éticos e místico I.

Na e .,. d pio mais siqnificativo para isso é a doutrina de Paulo Il dll


estão por x~:;~~:~a un~d~:g~~~, n~s v~~:m~ntos, ontológico e moral Espírito Santo. Espírito nesse sentido é a presença do espfrito I Vlllll
Freqüentemente levam a c~nfli e_ fe e,les se separam e no espírito humano, e Espírito Santo é o espírito do amor, d lu 1 1
e da verdade. Eu não hesitaria em enxergar nessa concepç II
:e~;i~adc:n~~i~in:.lle~ã~nra~d~ s:~s~~S~I~i~~I~:~;~:~~.e-~~~d~ma~~~: espírito a resposta à pergunta pelo sentido da dinâmica e d /11 t
dominado pela lei ritual Eleo o.u ro. . tlPe:. sacramental de fé é ria da fé. Mas semelhante resposta não é um ponto em qu
leis litúrgicas e desemp~nh ~Xt.1gePpurlf,caçao, preparo, sujeição a pode ficar parado. Ela sempre precisa ser dada de uma nov m 1
o e ICO. or outro lado vi neira, a partir de novas experiências e sob condições mut nl
e Iementos rituais existem nas 1"- I mos, quantos
moral de fé. Semelhante é o craes'9ldoesf,eghalistas, ou seja, no tipo Apenas se isso acontece, ela permanece sendo uma resposta r li
o a e umanística r e m que e Ie- e inclui a possibilidade de realização. Nem o catolicismo nem
mentos progressisl'as e UtÓp'IC
os aparecem no tipo ' ti fundamentalismo reconhecem essa exigência. Ambos perderam 01
va d or, enquanto que o tipo .,. roman ICo-conser-
mentos que fazem parte- do conceito original de fé, por causa d
ções já dadas, a partir das q:a~~g::s::ii~~~u~~~~c~r;e baseia em tra~i-
predominância de um ou de outro lado. Esse é o ponto em que entrou
presente. A interpenetraçlo dos ti os d f' nscende a srtueção
tentes de fé globais dlnêrn: p e e torna as formas exis- o protesto protestante na época da Reforma. E é o ponto em qu .
. ,mlcas e autotranscendentes. o protesto protestante precisa se-r levantado em todos os tempos
A história da fé, que émuito mais . I d . em nome da incondicional idade do incondicional.
religião, é uma contínua oscila ão d. ernp a ,o ~ue a ~Istória da
dos mais diferentes tipos d fé Ç, Iconvergencla e divergência A crítica básica de todos os grupos protestantes ao catolicismo
. sso Vil e lanto para a f d fé se volta contra o fato de que o sistema autoritário excluiu a auto-
como para o conteúdo da fé A f orma a e
dicional pode se exprimir não s _ ormas em qu: preocupação incon- crítica da igreja e que os eleme-ntos sacramentais da fé sufocaram
ilimitadas. Elas são manifestacoesaod uma confu.sao de possibilidades os elementos proféticos. Uma vez que o sistema autoritário tornou
d I s e certas orientações básic impossível uma reforma de base, restou apenas uma cisão total.
se esenvo veram aos poucos na história da fé _ as que
mentadas na natureza da f p. d e que esta o funda- Essa, porém, também trouxe consigo a perda daqueles elementos
. or ISSO po e-se com d d
crever como elas se distanciam uma da outra e s pre:n er e es- contra os quais se dirigira o protesto protestante: o sacramentalismo
mente, mostrando talvez um onto e aproxlm~~ ~utua- e a autoridade da igreja nele baseados. Em conseqüência dessa perda,
em princípio alcançada A afirm~ão de em ~ue sua reconcdlaçao foi o protestantismo se tornou cada vez mais um representante unilateral
do tipo moral de fé. Não se perdeu apenas a riqueza dos ritos trans-
forma concreta de fé depende do pont;~: I:~~t:c~;t;:e~ em al~~ma
mitidos pela tradição, mas também a compreensão do fato de que
Se ele for, por exemplo um te' I . _ o que lU ga.
rã I . t o ogo crrstéo de cunho protestante o sagrado está presente em expe-riências sacramentais e místicas.
en ao e e ve-rá no cristianismo, e especialmente . tiani ' A importância do conceito paulino de espírito, em que estão reuni-
testante o alvo di - no crrs renrsrno pro-
- der: en:
nao po erra ser diferente.
rreçeo ao qual evolui a dinâmica da fé Isso
Assim mesmo t d . .
dos o tipo sacramental e o ético, não foi reconhecido
catolicismo nem pelo protestantismo.
nem pelo
A. presente exposição tenta
seme-Ihante veredito recise a ": o o .aque/e que emite indicar, na linguagem do nosso tempo, aquela realidade que Paulo
decisão "Objetivo" . p 'f~ presentar razoes obietivas para a sua designou com a palavra "espírito" como sendo a unidade do extá-
que fu~damenta to~~gsnIO~cati~~:s~;a;~.: deduzido da natureza da fé, tico com o personal, do sacramental com o moral, do místico com o
1 acional. Apenas quando o cristianismo for capaz. de reconquistar,
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como
d 'experiência
I vivida, essa unidade· dos diferentes rIpOS d e f'e,
po era e e manter de pé a sua reivindicação de responder às 18 atua na procura pela verdade, na experiência da arte n rou-
grandes questões resultantes da dinâmica da fé. lização da le·i de conduta; ela faz possível uma vida como p (1

participação na comunhão. Se a fé estivesse em contradiç


V. A VERDADE DA FÉ razão, ela teria que levar à desumanização do homem. Esse p ri
de fato existe - tanto na esfera teórica como no campo prático -
1. Fé e Razão em todos os sistemas autoritários, e isso tanto na área da religião
como na política. Uma fé que se encontra em contraposição à razão,
Nos capítulos precedentes nós mostramos a diversidade dos não se destrói apenas a si mesma, mas também aquilo que é pro-
sí~~ol~s e_tipos de fé. Isso poderia ser interpretado como desistir da priamente humano no homem. Isso porque somente um ser dotado
reivindicaçâo da verd,ad~ ,por parte da rei igião. Por isso precisamos de razão pode ser possuído por algo incondicional e distinguir preo-
perguntar agora, se e vlavel falar-se de uma reivindicacão de ver- cupações últimas das provisórias; ele pode assimilar a exigência
dade por parte da fé, e em que sentido. - da lei de conduta e perceber a presença do sagrado. Tudo isso,
Até agora era costume colocar fé e razão uma ao lado da outra aliás, só confere', quando não se pressupõe a primeira significação
e perg.untar se elas se excluem mutuamente, ou se elas poderiam do conceito de razão, razão no sentido da razão técnica, e sim a
ser ~nldas numa espécie de fé racional. Se a segunda hipótese for segunda significação, de razão como estrutura do espírito e da
possivel. como se relacionariam a razão e a fé nessa fé racional? realidade, dotada de sentido.
Se o sentido da fé for mal entendido nos modos acima expostos Razão é uma condição necessária para a fé, e fé é o ato em]
en,tão .elas s~ .excluem. mutuamente. Se, no entanto, fé é estar pos- que a razão irrompe extaticamente para além de si. Essa é a uni-
suído Incondicionalmente, então fé e razão não são necessariamente dade e a diferença entre as duas. A razão humana é finita. Por
opostos. ~ ISSO, todas as criações da cultura possuem esse caráter finito, tanto .
Ma~ ess,a resposta. não é suficiente, uma vez que a vida espiritual aquelas em que o homem conhece seu mundo, como aquelas em
do homem e uma unidade que não permite um lado-a-Iado isolado que ele transforma seu mundo. Daí elas não pertencerem àquilo
?O~ diversos ~Iementos. Todas as funções do espírito humano estão que toca o homem incondicionalmente. Mas a razão não está presa
intimamente ligadas, apesar do seu caráter diverso. Isso também à sua própria finitude; ela a reconhece, e através dessa mesma in-
vale para a relação entre fé e razão. Por isso não é suficiente a tuição ela se eleva acima de sua finitude. O homem faz a experiência
resposta de que estar possuído por algo que nos toca incondicional- de que ele faz parte do infinito, o qual por sua vez não é uma
ment~ . não contr~diz a estrutura racional do espírito. t necessário parte do homem, nem se encontra em seu poder. O infinito precisa
especificar a. relaçao entre a fé e a razão do espírito humano. Inicial- tomar posse dele como aquilo que o toca incondicionalmente. Quando
~en~e,,, precisa-se pe,rguntar em que' sentido é usada a palavra a razão é possuída pelo incondicional, ela é elevada acima de si
razao r .qua,n.do ela e contraposta à fé. Será no sentido do procedi- mesma; mas com isso ela não deixa de ser razão, razão finita. A
n;en.to clentlflco: do pensamento rigidamente lógico e do cálculo experiência e·xtática de uma preocupação última não destrói a estru-
técnico? Ou ser.a ela entendida, como em quase todas as épocas de tura da razão. txtase é ratão realizada ..a_não razão quebrada. Razão
nossa ~ult~ra o.cl~ental, como a fonte do sentido, normas e princípios? só chega a ser realizada quando ela é levada para alem dos 'limites
Na pn,m.elra hlpot.ese a razão é o instrumento para o conhecimento de sua finitude e experimenta a presença do sagrado. Sem essa
e. domin~o da re~lldade, ao passo que a fé indica o alvo, a cujo ser- experiência ela se perde a si mesma. Ela é finalmente preenchida de
VIÇ~ esta tO?O calculo e domínio da realidade. O primeiro 'tipo de conteúdos irr acionais - miticamente falando: demoníacos - e por
razao poderia ser. chamado de razão técnica, uma vez que- ela se eles destruíde. O caminho seguido é o da razão plena de fé através
ocupa com os meros, e não com o fim. Razão nesse sentido abarca da razão sem fé.· para a razão demoniacamente dividida. A segunda
a vida diária de cada um e domina a civilização técnica do nosso fase é apenas uma transição; pois nem na vida do espírito nem na
tempo. A segunda significação de razão está relacionada com aquilo natureza existe vácuo. Razão é a pressuposição da fé, e fé preenJ
que, faz do homem um homem e o diferencia de todo outro ser. che a razão. Fé como estar possuído em última instância é razão
Ela e a base de sua língua, sua liberdade e sua capacidade criadora. extática. Entre a natureza verdadeir a da fé e a natureza verdadeira
da razão não há contradição.
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Nesse ponto a teologia fará algumas perguntas. Ela indagará, racional pela revelação daquilo que o toca inr.onc.li iorialrn .nt . E
se a natureza da fé não está distorcida sob as condições da existência mesmo assim: revelação é revelação ao homem qu s .ncontre no
humana. Além disso ela perguntará, se não se perde também a estado de alienação. Através da revelação é qucbr do o poder d
verdadeira natureza da razão na situação de alienação do homem alienação, mas ele não é anulado. A alienação penetra na nova xpc-
de si mesmo. Finalmente ela perguntará se a unidade de fé e razão riência de reve·lação assim como ela havia entrado na anlitl . [Ia
e a natureza verdadeira de ambas não precisa ser restebelecide faz da fé uma idolatria e confunde os portadores do incondicional
através da "revelação", como o diz a religião. E se esse for o caso, com o próprio incondicional. Ela rouba o razão de seu poder extático,
a razão, em seu estado obscurecido, não terá que se sujeitar à de sua tendência de se transcender a si mesma e de se voltar
revelação? E não será essa sujeição sob os conteúdos da revelação para o incondicional. Devido a essa dupla distorção, ela falsifica
o sentido próprio do termo "fé"? A resposta a essas perguntas seria também a relação entre fé e razão, transformando a fé numa preo-
matéria para toda uma teologia. Aqui só podemos tratar desse cupação provisória, que se intromete nas preocupações provisórias
assunto em poucos traços fundsrnentais. Inicialmente precisa-se dizer da razão e eleva a r azêo, apesar de sua finitude natural, à validade
que o homem é homem também no estado de alienação. Razão e fé incondicional. Daí surgem novos conflitos entre fé e razão, os quais
não se perderam completamente, rolas elas não puderam manter a exigem uma revelacão nova e superior. A história da fé é uma luta
sua natureza original, sendo inevitáveis os conflitos entre uma ra- constante com a distorção da fé, e o conflito entre razão e fé é um
zão usada erroneamente e uma fé distorcida no sentido da supersti- dos mais nítidos sintomas desse dlstorcêo. As batalhas decisivas nessa
ção. A verdadeira natureza da fé e a verdadeira natureza da razão luta são os grandes eventos de revelação, e a batalha realmente vi-
transparecem apenas vagamente na vida real da fé e na utilização toriosa seria uma revelação de validade última, em que a distorção
prática da razão sob as condições da alienação. entre fé e razão está em princípio superada. O cristia~ismo clama
de si estar fundamentado em semelhante revelação. E essa uma
Devido a isso, alguma coisa precisa econtecer. que supere reivindicação que precisa ser comprovada sempre de novo no curso
tanto a distorção da fé como a da razão e restabeleça J r=laçá.) V8t"-
da história.
dedeira entre ambas. A experiência em que isso se dá é chamada
de "revelação". O conceito de revelação já foi tão abusado, que 2, A Verdade da Fé e a Verdade Científica
apenas se pode usá-Io com hesitação, sendo que algo semelhante se
dá com o conceito de razão. Na linguage~ popular, revelação signi- Entre a natureza da fé e a natureza da razão não existe con-
fica uma comunicação sobrenatural sobre Deus e sua atuação. Tais flito. Isso inclui a afirmativa de que não há um conflito entre fé
comunicações foram transmitidas, conforme essa concepção, aos pro- e conhecimento no que diz respeito à sua essência. Mesmo assim
fetas e apóstolos e aos autores da Bíblia, do Alcorão e de outros sempre já se considerou o conhecimento aquela função da, razão
escritos sagrados, no que o próprio Espírito Santo conduzia a pena. humana que com maior facilidade entra em conflito com a fe. Isso
A aceitação solícita dessas doutr inações sobrenaturais, por mais acontecia especialmente quando se via a fé como uma espécie in-
absurdas que sejam, é então chamada de fé. Cada palavra da pre- ferior de saber, cuja verdade é, porém, assegurada pela autoridade
sente exposição contradiz a essa distorção do conceito de revelação. divina. Nós rejeitemos esse conceito falso de fé e com ele elimi-
Revelação é a experiência em que uma preocupação última move namos uma das mais freqüentes causas para os conflitos entre fé
o espírito da pessoa, criando assim uma comunhão em que essa e saber. Precisamos, porém, ir mais longe, mostrando a relação con-
preocupação se expressa em símbolos de ação e de pensamento. creta da fé com as diversas formas da razão cognitiva, ou seja, com
Onde isso acontece. fé e razão são renovades. Seus conflitos inte- a forma das ciências naturais, da história e da filosofia. Aquilo que
riores e tensões recíprocas são superados, e reconciliação toma o a fé denomina de verdade é diferente daquilo que é visto como ver-
lugar da alienação. Esse é o sentido próprio de revelação; em todos dade pelas citadas formas da razão. Ainda assim todas elas tentam
os casos, é isso que ela deveria significar. Ela é um evento em que alcancar a verdade, isto é, verdade no sentido do verdadeiramente
aquilo que nos toca incondicionalme·nte se manifesta, nisso fazendo real, corno esse pode ser assimilado pelo espírito humano. Erros sur-
estremecer e transformando a situação dada na religião e cultura. gem quando o homem, em sua prccura pelo conheclmenlo, não
Nessa experiência não há conflito entre fé e razão. Isso porque o percebe o que é verdadeiramente reJI e considera real aquilo que
homem é tomado e transformado em toda a sua estrutura de ser apenas parece ser real, ou quando ele vê o que é verdadeiramente

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real, mas o exprime de forma inadequada. Muitas vezes é difícil sentantes da física moderna querem atribuir o r alid I I, o
verificar se não foi percebido o verdadeir emente real ou se aquilo movimento mecânico de minúsculas moléculas, n 9 no
que foi reconhecido como vero apenas foi mal exprimido, pois ambos realidade própria da vida, então e-les manifestam ü ~
os tipos de erro se condicionam mutuamente. Em todos os casos, subjetiva como objetivamente. Subjetivamente a clônci
ern cada ato congnitivo e·stá presente verdade ou erro, ou uma para eles aquilo que os toca incondic~onalm~nte e pelo I~,~I le',
das múltiplas transições entre verdade e erro. Também na fé está estão dispostos a sacrificar tudo, tambem a v~da, se necess I.I~ f r.
atuante a capacidade cognitiva do homem. Por isso precisamos per- Objetivamente eles criam um símbolo de,monlaco do. Ir:::on~IIl:loJ~tll,
guntar: Que significa "verdade" em relação à fé, quais são seus a saber, um universo em que tudo, lambem a sua parxao científic ,
critérios, e que relação existe entre a verdade da fé e as outras é devorado por um mecanismo sem sentido. t com razão que fé
formas da verdade com seus critérios tão diferentes? cristã rejeita esse símbolo de fé.
As ciências naturais descrevem estruturas e relações do uni- A ciência só pode entrar em conflito com a ciência, e a fé apenas
verso físico, na medida em que elas podem ser verificadas experi- com a fé. Uma ciência que permanece ciência não pode contradizer
mentalmente e formuladas matematicamente. A verdade de uma afir- a uma fé que permanece fé. Isso também confere no. que. tange
mação científica depende de quão adequadamente as leis estruturais outros campos de pesquisa científica, por exemplo, a _biologia e a
são descritas e confirmadas através de repetidas experiências. Toda psicologia. A conhecida disputa entre teoria da evoluçao e te~lo~la
verdade científica é provisória e sujeita a constante verificação, tanto .ião era uma disputa entre ciência e fé, mas sim entre uma ciencra,
no que diz respeito à sua compreensão da realidade como no que cuja fé não-exprimida rouba o homem de sua humanldade~ e. uma
tange a sua formulação científica. Esse elemento de insegurança não fé, cuja expressão teológica é cunhada por uma compreensao. literal
reduz o grau de veracidade de uma afirmação científica experimen- da Bíblia e portanto é distorcida. t inegável que .u~a teologia que
talmente examinada e provada. Mas ele impede todo dogmatismo interprete a história bíblica da criação como deswç?o fiei ao~ fatos
científico. Por isso é um proceüimento questionável, quando teólo- de um evento uma vez sucedido, forçosemente tera de colidir com
gos, no intento de defender a verdade da fé contra a verdade da a pesquisa científica sistemática. E uma teoria da. evolução que ~x-
ciência, chamam a atenção para o caráter provisório de toda afirma- plica a descendência do homem de formas mais antigas da Vida
ção científica e alegam com isso ter provido um refúgio seguro para de tal maneira que é anulada a diferença central entre homem e
a verdade da fé. Isso porque, se amanhã o progresso científico res- animal, é fé, e não ciência.
tringir. ainda mais a área de conhecimento científico inseguro, a fé
terá que se recolher ainda mais. Esse é um procedimento indigno Sob o mesmo ponto de vista precisamos considerar os conflitos
e infrutífero, pois a verdade científica e a verdade da fé fazem parte presentes e futuros entre fé e psicologia contemporânea. A psicolo-
dê dimensões diferente·s. Nem a ciência tem o direito ou a capaci- gia moderna evita, por exemplo, o conceito de alma, porque ele
dade de se intrometer nos interesses da fé, nem a fé tem o direito parece fundamentar uma realidade que não pode :,er investigada ~om
ou a capacidade de interferir na ciência. métodos científicos. Esse receio tem a sua razao de ser, pOIS a
psicologia não se deveria servir de qualquer termo que não seja
Uma ve·z compreendido isso, vêem-se numa luz bem diferente elaborado pela sua própria pesquisa científica. Ela ten: a tarefa de
os conflitos acima tratados entre fé e ciência. Na ve·rdade não se descrever os processos psíquicos do homem da maneira mais ade-
trata de um conflito entre fé e ciência, mas sim entre uma fé e quada possível, e ela precisa estar sempre pronta a substituir uma
uma ciência que esqueceram ambas, e que dimensão pertencem. suposição por outra. Isso vale para os termos: Ego, super-ego, eu
Quando os defensores da fé procuraram impedir o surgimento da (Selbst), personalidade, inconsciente, consciente, bem como pa.ra os
astronomia moderna, eles não levaram em conta que os símbolos termos tradicionais: alma, espírito, vontade, etc. A psicoloqia de
cristãos, apesar de re·fletirem a concepção da astronomia aristotélico- pesquisa metódica está tão sujeita à confirmaç~o científica como toda
ptolomaica acerca do mundo, dela não dependem. Apenas quando outra ciência. E todos os seus termos e definiçôe s. mesmo os melhor
símbolos como "Deus no céu", "o homem sobre a terr-i" e "demônios
fundamentados, são provisórios.
debaixo da terra" são vistos como descrição de lugares povoados
com deuses, homens e demônios, aí a astronomia moderna precisa Quando, porém, a fé fala da dimensão do incondicional, na
entrar em conflito com a fé cristã. Quando, por outro lado, repre- qual o homem vive e em que ele pode ganhar sua alma ou botá-Ia a

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perder, ou quando a fé fala do sentido último da existência, então 3. A Verdade da Fé e a Verdade Históric
ela de modo algum contradiz a rejeição científica do conceito de Verdade histórica e verdade científica por n tur l
alma. Nem uma psicologia que rejeite o conceito de alma pode negar contram em níveis diferentes. A história relata eventos único,
essa dimensão, nem urna psicologia que conhece o conceito de alma processos que se repetem, os quais podem ser verific do
pode confirmá-Ia. A verdade sobre o destino eterno do homem se quer momento através de experiências. A única analogi ntr
encontra numa outra dimensão que a verdade de conceitos psico- pesquisa histórica e uma experiência no campo da física é o c~ m
lógicos. e a comparação cuidadosa de documentos. Quan?o do.cumentos .lnd -
A psicologia profunda contemporânea em muitos casos entrou pendentes um do outro estão concordes entre SI, enta~ ~ma afirme-
em contradição com afirmações pré-teológicas e teológicas da fé. cão histórica é considerada demonstrada dentro dos limites do mé-
No entanto não é difícil distinguir, nas constataçõe·s da psicologia pro- todo histórico. Mas a pesquisa histórica não apenas relata uma série
funda, entre aquilo que é observação cientificamente fundamentada de fatos. Ela também procura compreender esses fatos no que diz
ou hipótese científica, e aquilo que são manifestações de fé do psicó- respeito a suas origens, suas relações entre si e seu significado. P:,s-
logo, por exemplo a sua visão do homem, de sua natureza e destinação. quisa histórica descreve, explica e· compreende. E compreensao
Os elementos naturalistas trazidos por Freud do século XIX para o sé- pressupõe "participação". Nisso se encontra a ~if~n~nça entre =:
culo XX, seu puritanismo convicto no campo do amor, seu pessimis- dade histórica e verdade científica. Na verdade histórica o respectivo
mo quanto à cultura e sua atribuição da religião a desejos racionali- pesquisador está participando existencialme~te, mas não na ver.dade
zados ideologicamente são afirmações de fé, e não resultados de científica. Já que também a verdade da fe toca o homem existen-
pesquisa científica. Não se pode negar a um cientista que fala da cialmente, tentou-se fazer da verdade histórica o fundamento da
natureza do homem e das condições de sua existência, o direito verdade da fé. E inversamente chegou-se a afirmar que a fé poderia
de pensar a partir de uma fé. Se, porém, acontecer que ele, como garantir a v_erdade de afirmações históricas inseguras. Ambas as
Freud e alguns de seus discípulos, ataca as convicções de fé de afirrnaçõ es são errôneas. O trabalho histórico genuíno exige um
outros em nome da psicologia científica, então ele está misturando método objetivo e exato, precisamente como a observação de pro-
as dimensões. Nesse caso os representantes de uma fé diferente têm cessos físicos e biológicos. Verdade histórica é primeiramente uma
razão em se opor a esses ataques. Nem sempre é fácil, numa expo- verdade baseada em fatos. Nisso e·la se diferencia da verdade de
sição psicológica, distinguir entre elementos de fé e elementos cien- um poema épico e da verdade mítica da lenda. E essa diferença é
tíficos, mas isso sempre é possível e necessário. decisiva para a relação entre a verdade da fé e a verdade da histó-
ria. A fé não pode confirmar ou rejeitar uma verdade que está
A distinção entre verdade de fé e verdade científica deveria
apoiada em fatos seguros, mas ela muito bem pode e precisa in-
alerter os teólogos contra a utilização de descobertas científicas re-
terpretar os fatos à luz de sua própria experiência. Com isso ela
centes no intuito de confirmar com seu auxílio a verdade da fé.
A física sub-etôrnice. através da temia dos quantas e da relação de traz o aspecto histórico para dentro da dimensão da fé. Mas ela
não prescreve ao historiador aquilo que ele deve achar, nem se
indeterminação colocou em questão hipóteses anteriores sobre a
estrita causalidade dos processos físicos. Diante disso autores reli- baseia ela em algum resultado de pesquisa histórica.
giosos quiseram aproveitar esses novos conhecimentos para confir- Desde que a pesquisa histórica descobriu o caráter literário
mar suas idéias acerca de liberdade humana, capacidade divina de dos escritos bíblicos, esse problema se tornou cada vez mais cons-
criação e milagres. Esse procedimento não pode ser justificado nem ciente no pensamento popular e teológico. Mostrou-se que o Antigo
pelo ponto de vista da física nem da religião. As teorias físicas não €; o Novo Testamento em seus trechos narrativos ligam elementos
têm nenhuma relação dire·ta com o fenômeno da liberdade humana históricos, lendários e mitológicos, e que em grande parte é impos-
e a emissão de energia nos quantas não tem relação direta com o sível separar esses elementos com segurança suficiente. A pesquisa
sentido religioso da palavra milagre. Quando a teologia utiliza teo- histórica evidenciou que os relatos bíblicos acerca do Jesus histórico
rias físicas dessa maneira, ela está confundindo as dimensões do têm em parte um baixo grau de probabilidade. Investigações seme-
saber com a dimensão da fé. A verdade da fé não pode ser nem lhantes sobre a fidelidade histórica dos escritos e tradições religiosas
confirmada nem negada pelas mais recentes descobertas no campo de religiões não-cristãs alcançaram o mesmo resultado. A verdade
da física, biologia ou. psicologia. da fé não pode ser feita dependente da verdade histórica dos re-

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latos e das lendas em que essa f~ se exprime'. Trata-se de uma
fé, por isso, não pode ser abalada pela pesquisa científica, mesmo
fatídica má-compreensão do sentido de fé, quando ela é igualada
se os resultados 'da pesquisa põem em dúvida a tradição trensmi-
a um acredifar das histórias bíblicas. Mas isso acontece em todos os
tida em torno do evento. Essa independência da verdade históric
níveis da exposição cienfífica e popular. Muitas pessoas dizem de
é uma das conseqüências mais importantes da nossa compreensão
si e de outros que elas não têm fé cristã porque elas não acreditam
de fé como estar possuído por aquilo que nos toca incondicional-
que as histórias de milagres do Novo Testamento estejam fidedig-
mente. Isso liberta os crentes de' um peso que eles não podem mais
namente documentadas. Certamente elas não o estão, e é necessário
suportar depois que a sua consciência foi alertada pela exigência
aplicar todos os meios de um método de pesquisa filológico e his-
de honestidade intele-ctua 1. Se essa honestidade estivesse em con-
tórico exato para deferminar o grau de probabilidade ou impro-
flito irremediável com a assim chamada "obediência de fé", então
babilidade de uma história bíblica. Também a decisão, se a edicão
Deus teria que ser visto como dividido em si mesmo. Ele teria cerec-
atualmente em uso do Alcorão coincide com o texto original, nã~ é
terísticas demoníacas. A fé então' não seria um estar possuído em
uma questão de fé, se bem que todo maometano crente inabalavel-
última instância, e sim um conflito de preocupações finitas.
mente a ela se apega. A decisão, se grande parte do Pentateuco
contém sabedoria sacerdotal da época após o exílio babilônico ou
se o livro de Gênesis encerra mais mitos e lendas do que história, 4. A Verdade da Fé e a Verdade Filosófica
não é uma questão de fé. A declsão em torno da questão, se a
Nós vimos que nem a verdade científica nem a verdade histó-
expectativa da catástrofe cósmica final como ela é vista nos últimos
rica podem confirmar ou contraprovar a verdade da fé. O mesmo
livros do Antigo Testamento e no Novo Testamento, tem sua origem
também se dá inversamente: a verdade da fé não pode nem con-
na religião persa, não é um assunto da fé. A decisão em torno de
firmar nem negar a verdade científica ou a histónca. Levanta-se
quanto material lendário e quanto de histórico está contido nas nar-
agora a questão, se também a verdade filosófica tem semelhante
rações do nascimento e ressurreição do Cristo, não é uma questão
-relação com a verdade da fé ou se aqui a situação é mais cornpli-
de fé, A decisão em torno de que versão dos relatos sobre os pri-
cada. Esse realmente é o caso, e essa dificuldade da relação entre
rnórdios da igreja tem o maior grau de probabilidade não e um
a verdade da filosofia e a da fé também complica a relação da ver-
ponto de fé. Todas essas perguntas têm que ser decididas pela
dade científica e histórica com a verdade da fé em grau mais alto do
pesquisa histórica, cujas afirmações sempre só podem ter um grau
que parecia na exposição precedente. Essa. é a motivação para as
maior ou menor de probabilidade'. Essas são perguntas em torno da
inúmeras dissertações sobre a relação entre fé e filosofia e para a
verdade histórica, e não questões de fé. A fé pode dizer que a lei
opinião corrente de que a filosofia seria o inimigo e destruidor da
vétero-testamentária tem validade incondicional para todos aqueles
fé. Teólogos já foram muitas vezes acusados de haver traído a fé
que por ela forem possuídos, independentemente de quantas
por se terem servido de conceitos filosóficos a fim de explicar a fé
dessas leis poderiam ser atribuídas a um personagem histórico,
para uma comunidade religiosa.
ou seja, Moisés. A fé pode dizer que a realidade apresentada
na imagem neotestamentária de Jesus como o Cristo encerra força A dificuldade de toda discussão em torno da natureza da filo-
1 edentora para todos os que por ela são possuídos, independente- sofia está em que a definição de filosofia depende da filosofia
mente de quanto se possa afirmar com segurança acerca da pessoa daquele que está definindo, Isso é inevitável. Mas mesmo assim existe
histórica de Jesus de Nezaré. A fé pode garantir o seu próprio no campo pré-filosófico uma ampla concordância a respeito da na-
fundamento: Moisés como o Legislador, Jesus como o Cristo, Maomé tureza da filosofia, e numa exposição como a presente nada nos
como o Profeta e Buda como o Iluminado. Mas a fé não pode afirmar resta senão utilizarmos a concepção pré-filosófica. Pode-se então
nada acerca das circunstâncias históricas que fizeram possível com entender sob filosofia a tentativa de responder às perguntas mais
gerais acerca da natureza das coisas e sobre a existência hurnana.
que esses homens se tornassem portadores do divino para grandes
porções da humanidade. A fé encerra a certeza sobre o seu próprio' As perguntas mais gerais são aquelas que não se relacionam com
fundamento, por exemplo, acerca de um evento na história que um determinado campo da realidade, como natureza ou história, mas
com o ser como tal, como ele serve de base para todas as áreas
transformou a história bem como o próprio crente. Mas a fé não
daquilo que é. A filosofia procura categorias gerais, dentro das
pode dizer nada acerca da maneira em que se deu esse evento. A
quais se encontra e se experimenta. aquilo que é.
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Se é pressuposta essa concepção acerca da natureza da filoso- O campo a que se restringem esses filósofo, tt' r 111 do 10111" II
fia, podemos definir da seguinte maneira a relação entre verdade mento e análise da linqueqern filosófico-cicntlflc,i, nuo I"fI',tlIIII nu
filosófica e· verdade de fé: Verdade filosófica é verdade no que sentido tradicional, mas é também para eles uma 'lu ItI dI' 111I irll"
tange o ser e suas estruturas; verdade de fé é verdade no que diz seriedade e paixão filosófica.
respeito àquilo que nos toca incondicionalmente. Até aqui o rela- A filosofia conjuga a paixão pelo conhecimento om I tI!",t I
cionamento se assemelha com aquele entre verdade de fé e· ver- vação estritamente objetiva das formas em que o ser s n VI 101
dade científica. Uma diferença digna de nota consiste, porém, de nos processos do universo. A experiência do incondicional n pr
que no incondicional procurado pela filosofia e na preocupação fundidade da investigação filosófica é a fonte da verdade de f 'lu
incondicional em torno da qual gira a religião existe um ponto em nela está abrigada. A visão filosófica da natureza e da situ ç O
que ambos se tocam. Na filosofia e na religião se procura e se tes- humana é uma junção de fé e pensamento. A filosofia não é apenas
temunha a verdade última; na filosofia isso se dá em termos con- o colo materno de onde partiram as ciências naturais e a pesquisa
ceituais, na religião em termos simbólicos. Verdade filosófica se histórica, ela permaneceu inseper evelmente ligada com toda ciência
baseia em conceitos verdadeiros, que dizem respeito à realidade até o dia de hoje. O sistema de referências em que todos os grandes
última, a verdade da fé consiste da verdade dos símbolos para aquilo físicos enquadraram o todo de SUilS investigações é filosófico, mesmo
que nos toca incondicionalmente. A relação entre conceito e sím- se a sua verdade s6 é demonstrada com métodos científicos. Em
bolo é o problema com que nos temos de ocupar. caso algum esse quadro sistemático é resultado de sua pesquisa,
Nesse contexto talvez se fará a pergunta: Por que é que a filo- uma descoberta cicntlfice , por assim dizer. Sempre' é uma visão
sofia usa conceitos e a fé usa símbolos, se ambos exprimem o mesmo da totalidade do ser, que determina consciente ou inconscientemente
incondicional? A resposta só pode soar: Isso é necessariamente assim, o esquema de seu pe·nsamento. Uma vez que isso é assim, pode-se
porque nos dois casos a relação com o incondicional não é a mesma. dizer que também a visão científica do mundo encerra um elemento
Em princípio, a filosofia procura uma descrição objetiva das estrutu- da fé. t com razão que os cientistas se opõem a que fé e pressupo-
ras bésices em que se apresenta o incondicional. A relação da fé
sições filosóficas influenciem as suas investigações. Em grande parte
com o incondicional é, em princípio, uma asserção existencial sobre
aquilo que toca o crente incondicionalmente. A diferença é óbvia eles o conseguem fazer. Mas mesmo uma experiência empreendida
e fundamental. Mas, como o diz a expressão "em princípio", trata-se com todas as precauções nesse sentido não é livre de elementos
de uma diferença que não é mantida na praxis, seja da filosofia ou subjetivos. O observador pode ser tão pouco excluído como a in-
da fé. Isso também seria impossfvel, porque o filósofo é um ser fluência exercida pela maneira de ele perguntar a naturez e sobre o
humano para o qual existe alguma coisa que ele consciente ou in- próprio resultado da pesquisa. Ni.E·smo em seu trabalho, o cientista
conscientemente leva a sério incondicionalmente. E o crente é um permanece um ser humano que está possuído por algo último e
ser humano que tem a capacidade bem como a necessidade de en- incondicional E' que pergunta pelo segredo do ser; e justamente essa
tender em termos conceituais. Isso envolve em profundas conse- é a pergunta filosófica.
qüências para a vida da filosofia no filósofo e para a vida da fé no Da mesma maneira também o historiador é, consciente ou in-
crente. conscientemente, um filósofo. Seu trabalho, na medida em que ele
Uma análise de sistemas filosóficos e de obras filosóficas de ultrapasse a simples pesquisa de fatos, se baseia na avaliação de
todo tipo mostra que a direção em que o filósofo pergunta e as fatores históricos como a natureza do homem, sua liberdade, seu
respostas que ele prefere não dependem apenas de reflexões lógicas, condicionamento e seu desenvolvimento no decorrer do tempo. E
mas também daquilo que o toca incondicionalmente. Os grandes mesmo na localização de fatos históricos estão presentes pressuposições
filósofos não possuíam apenas grande capacidade de reflexão, mas filosóficas. Isso vale em primeiro lugar para a questão de quais fatos,
também a maior paixão na apresentação daquilo que' os possuía in- dentre o número infinito de eventos, podem ser considerados como
condicionalmente. Isso vale para os antigos filósofos hindus e gregos historicamente importantes. Além disso, o historiador se vê forçado
bem como para os modernos, de leibniz e Spinoza até Kant e a se manifestar acerca do valor e da fidedignidade de suas fontes -
Hegel. Também a linha positivista de locke e Hume até o positi- um empreendimento que não é independente da rnterpretação da
vismo lógico de hoje em si não constitui exceção a essa regra. natureza humana. As pressuposições filosóficas estão patentes ali

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onde uma obra histórica dá seus vereditos acerca da importância 5. A Verdade da Fé e seus Critérios
de acontecimentos históricos para a existência humana. Mas onde Em que sentido pode-se falar gorl' dd v rdade da fé, já que
houver filosofia atuando, ali se encontra um elemento de fé, por ela não pode ser julgada por nenhum outro tipo d verdade - nem
mais que esse se oculte por detrás da paixão do historiador pelos pela cientlfice. nem pela histórica, nem fi I·) f .losóftce? A resposta
fatos reais. procede da própria natureza da fé: ela o sier pos uído por aquilo
Essas considerações mostram que apesar de suas diferenças que nos toca incondicionalmente. Como acont c com o conceito de
significativas, a verdade filosófica e a verdade da fé estão conju- "aquilo que nos toca incondicionalmente", tem m resposta tem
gadas em toda filosofia e que essa conjunção tem conseqüências um lado subjetivo e· um lado objetivo, e v rd d d f tem que
tanto para o trabalho do cientista como para o trabalho do histo- ser compreendida sob ambos os aspectos. A p rtir do lado subjetivo
riador. Essa conjunção foi denominada de "fé filosófica" (Jaspers). deve-se dizer o seguinte: Fé é "verdadeira" qu f do I exprime
Esse termo é enganoso, porque aparenta misturar a verdade filosó- adequadamente uma preocupação incondicion I. Vi t do lado obje-
fica com a verdade da fé. Além disso ele parece dar a entender que tivo, fé é "verdadeira" quando seu conteúdo é r 1m nt o incondi-
somente existe uma fé filosófica, uma "philosophia perennis", como cional. A primeira resposta reconhece que verd d d f está con-
foi denominada. Mas a palavra "perennis" só vale para as perguntas tida em todos os símbolos e tipos genuínos d . f . Com isso são
filosóficas, e não para as respostas filosóficas. Existe apenas um justificadas ao mesmo tempo todas as religiões hi tóric s. e sua
processo constante' de interpretação mútua entre elementos filosó- história se torna compreensível como a história d quilo que toca
ficos e elementos da fé, mas não há algo como uma fé filosófica. .0 homem em última e incondicional instância, como história de
A verdade filosófica encerra verdade de fé, e na verdade de fé sua resposta a manifestações do sagrado em muitos lug res e sob
está contida verdade filosófica. Para se compreender isso, é neces- muitas formas. A segunda resposta indica um critério incondicional,
sário comparar a expressão conceitual da verdade filosófica com a pelo qual as religiões históricas são julgadas, não no sentido de
expressão simbólica da verdade da fé. Pode-se dizer que a maioria negação, mas no sen-tido de um "sim e não".
dos conceitos filosóficos tem raízes mitológicas, e que a maior parte Fé tem verdade na medida em que ela exprime adequadamente
dos símbolos mitológicos contém elementos conceituais. Esses são uma preocupação .ncondicional. Esse é o caso quando o poder do
elaborados assim que a consciência filosófica é despertada. A idéia incondicional nela surge de tal maneira que provoca no homem uma
de Deus encerra os conceitos do ser, da vida, do espírito, da unidade resposta, ação e comunhão. Símbolos capazes de causar semelhantes
e diversidade. No símbolo da criação estão contidos os conceitos de efeitos estão vivos. Mas a vida dos símbolos é limitada; a relação
finitude, medo, liberdade e tempo. O símbolo da "queda de Adão" do homem com o incondicional está sujeita a transformações. Con-
abarca a idéia da natureza essencial do homem, de sua contradição teúdos ~e preocupação última desaparecem ou são substituídos por
consigo mesmo e de sua alienação de si mesmo. Somente porque outros. As vezes acontece que a encarnação do divino num deter-
todo símbolo mitológico tem em si a possibilidade de formação de minado personagem a uma certa altura da história não desperta
termos filosóficos é que é possível a "teo-loqia", e em cada um mais aquele eco no homem; ela não é mais um símbolo de validade
desses símbolos está a semente de toda uma filosofia. No entanto, universal e perde o poder de conclamar à ação. Há símbolos que
exprimem a verdade da fé por algum tempo num determinado lugar
a fé não determina o movimento do pensamento filosófico, tampouco
para uma certa comunhão e que hoje apenas ainda lembram a fé
como a filosofia determina aquilo que toca o homem incondicional-
de uma época passada. Eles perderam a sua verdade, e é questioná-
mente. Símbolos de fé podem abrir os olhos do filósofo para di- vel se símbolos mortos podem ser reanimados. Provavelmente isso
mensões da realidade, as quais ele· nunca teria divisado sem esses é impossível. Se olhamos desse ponto de vista a história da fé até
símbolos. Mas a fé não exige uma determinada' filosofia, se bem o dia de hoje, evidencia-se que· os critérios para a verdade da fé
que igrejas e teologias tenham feito essa reivindicação em todas as consistem de sua vitalidade. Esse critério certamente não é exato
épocas, e usaram Platão, Aristóteles, Kant ou Hume para seus fins. no sentido científico, mas ele é uma escala prcítica para se julgar
As sementes filosóficas nos símbolos da fé podem ser desenvolvidas com acerto o passado com sua profusão de símbolos evidentemente
de muitas maneiras, mas a verdade da fé e a verdade da filosofia extintos. Para o presente, no entanto, esse critério é difícil de aplicar,
não dependem uma da outra. porque não se pode dizer com certeza que um símbolo está defi-

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rurivarnente morto enquanto ele ainda é aceito por alguém em forma ela apareça na história da religião; e é um "não", porque
algum lugar. Poderia ser que ele, por assim dizer, apenas esteja nenhuma verdade de f reconhecid como incondicional, a não
adormecido, e então não se pode excluir a possibilidade de um ser aquela que diz que n nhuma pessoa a pode possuir. O fato de
reavivamento. que esse critério coincid com o princfpio protestante e se tornou
O outro critério que decide sobre a verdade de um símbolo realidade na cruz do Cri to p rfaz grandeza do cristianismo pro-
de fé é a sua capacidade de expressar em toda a sua plenitude a testante.
incondicionalidede do incondicional, excluindo assim tudo dentro de VI. A VIDA DA F~
si que é menos do que incondicional. O símbolo não pode se tornar
1_ Fé e Coragem
um ídolo. Pois esse é o perigo de todo símbolo da fé. Calvino des-
creveu o espírito humano como uma fábrica em que constantemente Tudo que foi dito t lui c rc da fé foi tomado da expe-
estão sendo produzidos ídolos. Nenhum tipo de fé se eleva acima riência real da fé, ou/ findo fi ur demente, da vida da fé. Essa
desse pe·rigo, e mesmo o protestantismo, que está muito consciente experiência deverá ser o unto do último capítulo dessa expo-
dele, não lhe escapa. Também ele é passível de distorções demo- sição. A "dinâmica da f " n o mostra apenas nas tensões e nos
níacas e precisa medir-se a si mesmo com o mesmo critério com que conflitos do conteúdo de f / m t mbém na própria vida da fé.
ele mede outras religiões. Todo tipo de fé tem a tendência de
elevar seus símbolos concretos à validade absoluta. Por isso o critério Onde houver fé, el viv r n tensão entre a participação no
para a verdade da fé está em que ele contenha em si um elemento incondicional e o estar S p Ir o d 10. Nós usamos a imagem do
de auto-crítica. O símbolo de fé que mais se aproxima da verdade "estar possuído" a fim de d cr -v r a relação com o incondicional.
é aquele que exprime não apenas o incondicional, mas ao mesmo Dada a natureza do estar po ul 0/ quele que está possuído e aquilo
tempo a sua própria falta de incondicionalidade. O cristianismo possui de que ele é possuído tem, por ssim dizer, um lugar em comum.
esse símbolo de rnaneirz, perfeita na cruz do Cristo. Jesus não Sem participação no objeto d ue se está possuído não é possível
poderia ter-se tornedo o Cristo, se ele como Jesus não se tivesse verdedeirc estar possuído. N s ntido todo ato de crer pressupõe
sacrificado a si mesmo como o Cristo. Toda aceitação de Jesus como participação naquilo para qu stá dirigido.· Sem uma experiência
o Cristo que não inclu o mesmo tempo a aceitação do Jesus cruci- anterior do incondicional n O pode have·r fé no incondicional. O
ficado/ é uma form d ido I tria. A preocupação última do cristão tipo místico de fé salientou com a maior ênfase essa relação; nisso
não é Jesus, e sim O Cristo no Jesus crucificado. O evento que criou se encontra a sua verdade, u não pode ser destruída por nenhuma
esse símbolo é ;:;0 mesmo tempo o critério a parlir do qual a ver- teologia de "mera fé". Som r ·velação de Deus no homem não é
dade do cristianismo e a verdad d todas as outras religiões pre- possível a pergunta por D us pela fé em Deus. Não existe fé sem
cisa ser julgada. A única verdade incondicional da fé, aquela ver- participação no objeto d f.
dade na qual o incondicional se revela a si mesmo como incondicio- Mas a fé deixaria de s r fé sem o elemento oposto da separação.
nal, é o fato de que toda afirmação da fé se encontra sob um "sim Quem crê também está sep r do do objeto .de sua fé; de outro modo
e não". ele o possuiria. Então h v ri certeza direta, e não fé. O elemento
Orie·ntado por esse critério, o protestantismo se voltou contra do "assim mesmo" faltari fé. A situação do homem, sua finitude
a igreja romana. Não foram tanto as doutrinas que cindiram as e alienação impedem a p rticipação direta no incondicional. Aqui
igrejas na época da Reforma, mas sim a redescoberta do princípio despontam os limites d mlstica. Não há fé sem o elemento da
básico de que nenhuma igreja tem o direito de se colocar no lugar separação do que é crido.
do incondicional. Toda verdade de uma igreja é julgada a partir Do elemento de p rticipação advém a certeza da fé; do ele-
do incondicional, e aquilo que· vale para a igreja .também vale para mento da separação resulta a dúvida dentro da fé. Ambas são parte
a Bíblia. A pesquisa protestante mostrou que existem muitos estratos da natureza da fé. As vezes a certeza vence sobre a dúvida, sem
dentro dos escritos bíblicos, e que por isso é impossível identificar jamais conseguir anulá-Ia completamente, às vezes a dúvida vence
a Bíblia como um todo com a verdade da fé. Também sobre a sobre a fé, encerrando, porém, em si elementos da fé, senão ela
história da religião e cultura restante· está o "sim e não". Trata-se redundaria em indiferença total. Nem a fé pode desaparecer na
de um "sim", porque é aceita toda verdade da fé, seja em que dúvida, nem a dúvida na fé, se bem que cada uma das duas se

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pode perder quase que completamente na vida da fé. Mas uma vez que pode ser despertada novamente para a fé viva. Esse fato é
que nenhum ser humano é capaz de viver sem uma preocupação especialmente importante para a educação. Não é insensato familia-
última, tanto fé como dúvida sempre estão por natureza presentes rizar crianças e jovens com os símbolos da fé, já que neles' se
no homem. expressa a fé viva de gerações anteriores. Mesmo assim isso é simul-
Fé e dúvida têm sido colocados como opostos, exaltando-se a' taneamente perigoso, um vez que a fé destarte transmitida pode
certeza da fé como o fim de toda dúvida. E verdade que existe ficar presa à tradição, sem nunc tingir a fé como tal. O reconheci-
semelhante serenidade muito além das agitadas lutas entre fé e mento desse perigo levou qu alguns educadores hesitassem em
dúvida; e alcançar esse estado é um desejo natural e justo. Mas transmitir a jovens quaisqu r ímbolos tradicionais que fossem, de
mesmo quando ele é atingido - como, por exemplo, por santos ou modo a preferirem esperar at qu surjam por si perguntas pelo
por pessoas que estão firmes em sua fé -, nunca está ausente o sentido da vida. Semelhant orl nt ç o pode levar a uma pujante
elemento da dúvida. Nos santos a dúvida aparece, como o mostram vida de fé; mas ela também pode f zer com que surjam o vazio e
as lendas em torno dos santos, sob a forma de tentação, a qual o cinismo, sendo que, em r ç o, o v zio surgido é depois preen-
aumenta na medida em que cresce a santidade. Nas pessoas que chido por símbolos concretos, m d monlecos.
clamam ter uma fé inabalada, o farisaísmo e o fanatismo são fre- Fé viva contém a dúvid r pito de si mesma, a coragem e
qüentemente a prova infalível de que a dúvida provavelmente foi o risco de suportar essa dúvld . A m smo tempo há em toda fé
reprimida ou de fato ainda está atuando secretamente. A dúvida r.ão um elemento de certeza im di t, u não está sujeita à dúvida,
é superada pela repressão, e sim pela coragem. A coragem não nega à coragem e ao risco - a cert 1 d pr Sprlo incondicional. A pessoa
que a dúvida está aí; mas ela aceita a dúvida como expressão da experimenta o incondicional em p Ix o, medo, desespero e êxtase;
finitude humana e se confessa, apesar da dúvida, àquilo que toca mas ele nunca o experimenta d modo direto, mas sempre no en-
incondicionalmente. A coragem não precisa da segurança de uma contro com um conteúdo concr I . O Incondicional é experimentado
convicção inquestionável. Ela engloba o risco, sem o qual não é no, com e através do conteúdo con r 10, e apenas o espírito que
possível qualquer vida criativa. Quando, por exemplo, a ?reocupação investiga analiticamente o pod compr ndor teoricamente. (TaJ con-
incondicional de uma pessoa é a convicção de que Jesus é o Cristo, sideração teórica é em si o obj tlvo d s livro.) Por esse caminho
então semelhante fé não é um questão de certeza isenta de dúvida, chegamos a definir a fé como o t r po surdo por aquilo que nos
e sim de coragem que se arrisca, que encerre o perigo do fracasso. toca incondicionalmente. Mas vld d fé está além de semelhante
Mesmo quando a confissão "Jesus 6 o Cristo" é exprimida com a análise. Esta, porém, revela qu dúvid ante o conteúdo concreto
convicção mais profunda, ela contém risco e coragem. A própria de uma preocupação incondiclon I dirige contra a fé em sua
"confissão" indica isso (11). totalidade. E diante disso a fé como to d pessoa inteira precisa se
Tudo isso é válido para a fé viva, para a fé como uma preo- confirmar na coragem.
cupação viva, e não como atitude meramente tradicional, uma ati- O uso da palavra "cor 9 m" n se contexto (12) necessita de
tude sem tensões, sem dúvidas e sem coragem. Semelhante fé tra- uma explicação, especialmente no que tange a sua relação com a
dicional, isto é, a forma de fé de muitos cristãos de igreja de hoje fé. Em termos bem breves se pod ri dizer: A coragem é o elemento
e da sociedade toda, carece do caráter dinâmico que é próprio à fé da fé que incorre no risco da fó. NSo se pode substituir a fé pela
viva. Poder-se-ia dizer que essa fé convencional é um resquício coragem; mas também não se pode separar a fé da coragem. Nas
morto de antigas experiências vivas do incondicional. Ela está morta; obras dos místicos a "visão do ser" é descrita como um ser em que
mas ela pode ser ressuscitada, pois também a fé petrificada vive é transcendido o estado de crer. Isso se dá ou após o decurso da
em símbolos. Nesses símbolos ainda está contido o poder da fé ori- vida terrena ou em raros momentos já aqui na terra. Na união per-
ginal; por isso não se deveria subestimar a importância de uma ati- feita com a base divina do ser é anulada a separação, e com essa
tude tradicional de fé. Ela não é fé viva; mas ela é fé "adormecida", se elimina incerteza, dúvida, coragem e risco. O finito é englobado
no infinito; ele não é extinto, mas também não está mais separado
(11) N. do T,: Essa afirmação vale para o termo alemão "Bekenntnis". O autor não a
faz na versão anterior, inglesa, com referência ao termo inglês "confession", que do infinito. Esse não é, porém, o estado cotidiano da pessoa, na
está próximo ao português; mas, no que tange o termo português "confissão", ela
tem a mesma validade. (12) Cf. a exposição detalhada no meu livro nA Coragem de Ser", loc. cito pp. 1ss.

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qual antes prevale'Cem finitude e separação, e com essas a fé e empresta a todos os outros interesses a sua profundidade, direção e
a coragem de se arriscar. O risco diz respeito ao conteúdo concreto unidade, fundamentado assim o homem como pessoa. Uma vida de
de uma preocupação incondicional. Nisso pode acontecer que não caráter realmente personal é integral e unida em si; o poder que
é o ve·rdadeiramente incondicional que está contido na fé, e sim cria essa integridade da pessoa é a fé. Semelhante afirmação seria
algo condicionado, do qual foi feito um ídolo. Dessa maneira os absurda, se fé fosse o dar crédito a coisas que não se podem demons-
próprios desejos podem determinar o conteúdo da fé; mas também trar. Mas essa afirmação não é absurda, e sim evidentemente ver-
pode acontecer que os interesses do grupo social a que pertencemos dadeira, se fé é o ser atingido por aquilo que nos toca incondicio-
nos prendam a tradições mortas, levando a uma espécie de idolatria. r.alrnente.
Ou também pode acontecer que uma porção limitada da realidade é Uma preocupação incondicional se manifesta em todas as áreas
transformada num ídolo como no politeísmo antigo e novo, ou se da realidade e em todas as xpressões de vida da pessoa. Isso porque
tenta abusar do incondicional para os fins arbitrários do crente, como, o incondicional não é um objeto entre outros, e sim a base e origem
por exemplo nas práticas mágicas de todas as religiões. Sobretudo, de todo ser, e como tal, o centro unificador da vida como pessoa.
porém, o portedor, o invólucro do sagrado, é confundido com o pró- Estar sem uma preocupação incondicional significa estar sem um
prio sagrado. Também isso se dá em todos os tipos de· fé, consistin- centro. Desse estado o homem só pode se aproximar, mas nunca
do esse desde o início um perigo especial para o cristianismo. Um lhe estará completamente ntr que. pois um ser humano sem centro
protesto contra semelhante confusão encontramos na exclamação de algum deixaria de ser hum no. Por esse motivo não se pode con-
Jesus no evangelho de João: "Quem crê em mim, crê, não em mim, ceber que haja alguém s m uma preocupação incondicional e por-
mas naquele que me enviou." Mas dogma, liturgia e devoção popu- tanto sem fé.
lar não permaneceram isentos dessa confusão. O cristão sabe da
possibilidade e quase inevitabilidade da distorção idólatra. Mas ele O centro da pessoa une todos os elementos da vida da per-
também sabe que na imagem do próprio Cristo está dado o juízo sonalidade: as forças corporais, inconscientes, conscientes e intelec-
sobre tudo que é id61atra - na cruz. Da cruz também provém a tuais. Do ato . de fé particip todo nervo do corpo humano, toda·
mensagem dirigida ao homem, a qual perfaz o âmago do cristianis- aspiração da alma, todo impulso do espírito humano. Mas corpo,
mo e antes de tudo possibilita a coragem de crer no Cristo: a men- alma e espírito não são três partes isoladas do homem. Elas são
sagem de que a soperaçêo ntre Deus e homem foi superada pelo dimensões do ser pessoa e sempre estão entrelaçadas; pois o homem
próprio Deus a despeito de todos os poderes separadores da des- é uma unidade, e não um composto de diversas partes. Fé, por isso,
truição. Semelhante poder da separ ção é a dúvida, a qual procura não tange somente o espírito ou apenas a alma ou exclusivamente
impedir a coragem de aceitar a fé. Mas mesmo então a fé pode ser a vitalidade, e sim ela é a orientação da pessoa inteira em direção
arriscada, uma vez que permanece a certeza de que até uma fé ao incondicional.
que fracassa não pode separar o homem do incondicional. Essa é a Fé é um ato de paixão infinita, e paixão não é possível sem
única certeza absoluta da fé, a qual corresponde ao único conteúdo ligação ao corpo, mesmo se se trata de paixão intelectual. Também
absoluto da fé: em nossa relação com o incondicional nós sempre o corpo participa de todo ato de fé genuína. Isso pode acontecer
só podemos receber, e nunca dar. Nós nunca seremos capazes de de múltiplas formas, tanto em êxtase vital, como pela ascese que
transpor a distância infinita entre o infinito e o finito a partir de leva à êxtase espiritual. Mas seja em realização de vitalidade ou na
nós mesmos, a partir do finito. A risco do fracasso, do erro e da autonegação, o corpo sempre faz parte da vida da fé. O mesmo
idolatrização, porém, pode ser suportado, porque também o fracasso vale para as aspirações inconscientes da alma. Elas é que determi-
não nos pode separar daquilo que nos toca incondicionalmente. nam a escolha dos símbolos religiosos e dos tipos de fé. Por isso
toda comunhão de fé procura influenciar o inconsciente de seus
2. A Fé e a Integração da Pessoa crentes, especialmente entre a geração jovem.
O que acabamos de dizer explica a importância da fé para o Quando a fé de uma pessoa se exprime em símbolos que cor-
desenvolvimento da pessoa humana. Uma vez que fé é estar pos- respondem a seus impulsos inconscientes, esses impulsos deixam
suído por aquilo que nos toca incondicionalmente, a ela se subordi- de ser caóticos. Eles não precisam mais ser reprimidos, uma vez
nam todas as preocupações provisórias. A preocupação incondicional que eles experimentaram uma "sublimação" legítima e estão unidos

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o gir consciente da pe-ssoa. A fé também dirige a vida consciente não se deveria utilizar a palavra "fé", e esses processos não deve-
do homem na medida em que ela lhe dá a preocupação mais íntima riam ser tomados como uma prova para a capacidade terapêutica
no âmago do seu ser. Um dos grandes problemas de toda vida do de um estar possuído incondicional.
personalidade é a divergência dos conteúdos do consciente. Quando A força integradora da fé numa situação concreta depende das
falta um ce·ntro unificador, a multiformidade infinita do mundo ao condições subjetivas e ob] tivas. Quanto ao aspecto subjetivo tudo
redor e dos processos espirituais interiores pode levar à cisão ou depende do grau de abertur de uma pessoa para o poder da fé
mesmo desintegração total da personalidade. Nada há que possa e da força e paixão de sua pr ocupação suprema. Essa abertura é
proteger contra essa constante ameaça senão a força unificante do uma dádiva e não pode ser provocada intencionalmente, ela é o
estar possuído incondicional. Isso pode acontecer de diversas ma- que a religião chama de graç . O I do objetivo é o grau em que
neiras. Uma possibilidade é a disciplina com que uma pessoa dispõe a fé superou em si o perigo d idol tria e está dirigida para 0 que
a sua vida de modo ordenado; outra é a meditação. Também a é verdadeiramente incondicional. A ido I tria não tem continuidade.
busca de um alvo determinado e a dedicação a uma outra pessoa Ela pode estar carregada de p ix o xcrcer poder integrador. Ela
são caminhos pelos quais se pode realizar o estar possuído incondi- pode curar e levar a personalid d unidade. Os deuses do poli-
cionalmente. Todos esses caminhos pressupõem fé; nenhum deles teísmo possuíam poderes de cur , n o apenas no sentido mágico,
pode levar à meta sem fé. A vida intelectual do homem, as obras mas também como transmissores d r novação genuína. Também os
de um artista, a pesquisa científica, a atuação ética ou política são objetos da idolatria secularizad mod rn , como a "nação" ou "ven-
expressões conscientes ou inconscientes de uma preocupação última. cer na vida" tem capacidade ter p ulic , nêo apenas pela fascinação
Somente assim elas são pree·nchidas de paixão e de eros criativos, mágica de um "lider". de um 10 n u de uma promessa, mas
com isso recebendo unidade e profundidade. também pelo fato de criarem lar f um vida provida de sentido
para impulsos que de outro modo n o od riam realizar-se. Mas a
Nós mostramos como a fé dá forma e une a todos os elementos
base dessa integração é muito cstr it . f\ f idólatra desmorona mais
intelectuais, emocionais e corporais da pessoa e como ela representa
cedo ou mais tarde, e a ·niséria s 10m pior do que antes. Aquela
a força integradora como tal. Essa imagem do poder da fé contém,
porém, apenas as cores alegres e não os aspectos sombrios da desa- área limitada da realidade que s I v r categoria de incondicio-
nal é atacada em nome de outras pr ocu: IÇO s finitas. A consciência
gregação e do mórbido, que podem impedir a fé de criar uma vida
se fende no momento exato em qu d um alto valor a cada uma
integral da personalidade, mesmo naquelas pessoas em que a força
das preocupações em conflito. A r li7aç~0 dos impulsos inconscien-
de fé se manifesta de modo mais visível: nos santos, místicos e pro-
tes não dura; eles são reprimidos ou irrompcm desenfreadamente.
fetas. O homem nunca vive e·xclusivamente a partir de um centro da
Desaparece o poder orientador do p/rito porque o objeto a que
vida. Em todos os âmbitos de seu ser atuam forças corruptoras.
ele se dirigia perdeu seu poder d conv nccr. A atividade espiritual
Pode-se dizer que a força unificadora da fé possui efeito terapêutica.
criadora se torna cada vez mais sup rficial; ela fica vazia, já que
Essa constatação necessita, porém, de um esclarecimento, isso por
não há nenhum sentido infinito qu lho empreste profundidade. A
causa dos múltiplos mal-ente-ndidos sobre a relação entre fé e cura.
paixão da fé se transforma num suport r de dúvidas não superadas
Tanto no uso dos termos como também na compreensão do assunto
e em desespero, sendo que em muitos casos o último recurso é a
é necessário distinguir a força integradora da fé daquilo que se
fuga para a neurose ou a psicose. A f idólatra desintegra e destrói
denominou de "cura pela fé". "Cura pela fé" no sentido em que é
mais do que a indiferença, exatament porque ela é fé e pode pro-
usada essa expressão, é a tentativa de- ajudar a outros ou a si mesmo
vocar uma integração passageira.
através da concentração psicológica sobre as forças terapêuticas nos
outros ou em si mesmo. Semelhantes forças terapêuticas existem na A fé é dotada de poder de cura; por isso precisamos perguntar
natureza e no homem e podem ser reforçadas através do esforço agora em que relação ela se encontra com outras forças terapêuticas.
psicológico. Sem qualquer depreciação se poderia falar aqui da A possibilidade de influência de pessoa para pessoa nós já men-
aplicação de práticas "mágicas"; e não há dúvida de que existe cionamos, mas ainda não tratamos da arte médica e- de sua aplicação
magia terapêutica tanto nas relações entre as pessoas como também bem como de suas pressuposiçõe·s científicas e técnicas. Existe um
na autosugestão do homem. Essa é uma experiência cotidiana, e é grande número de métodos de cura, dos quais nenhum pode rei-
notável às vezes a intensidade e o sucesso dessas forças. Mas aqui vindicar ser o único válido. Mas é possível fixar metodicamente cada

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um deles a uma determinada tarefa. Talvez se poderia dizer que a se a fé é entendida como um acreditar ou como o estar possuído por
capacidade curadora da fé se estende à pessoa inteira, indepen- aquilo que nos toca incondicionalme·nte. No primeiro caso é contes-
dentemente de quaisquer distúrbios específicos do corpo ou do tado que amor e oção dependam diretamente da fé; no segundo
espírito, e que ela atua em cada momento de nossa vida, seja em caso amor e ação estão contidos na fé c dei não podem ser separados.
sentido positivo ou negativo. Ela precede todas as outras possibili- Apesar de todos os enganos mal- ·nlendidos na interpretação da
dades de cura, as acompanha, transcende e Ihes segue. Mas ela fé, a última é a doutrina clássic d igreja, a qual muitas vezes foi
sozinha não é suficiente para o desenvolvimento do homem como bastante mal expressa.
"pessoa"; isso porque o homem, em conseqüência de sua finitude e Só se é possuído incondicion Imente por aquilo a que se per-
alienação, não é um todo, e sim está fendido em diversos campos. tence pela própria essência, m -srno qu ndo se está dele separado
Cada um desses campos pode decair independentemente dos outros. existencialmente. Como vimos, f n-o é a mesma coisa que a visão
6rgãos isolados do corpo podem adoecer sem que surja alguma perfeita de Deus. Essa não conl c dentro do tempo. Mas existe
doença mental; e doenças mentais são possíveis sem que haja uma aspiração infinita de ale nç r s m Ih nte visão, em que é con-
problemas visíveis no corpo. Em algumas formas de enfe·rmidade seguida a re-união do que Si 5 P r do. E o impulso para a re-
psíquica, especialmente na neurose, e em quase todas as doenças união do separado é o amor. 1\ pr ocup ção da fé coincide com o
do corpo, a vida intelectual pode permanecer completamente sadia alvo do .ernor. ambos procuram r conciliação com aquilo a que
e até ganhar força e intensidade. A arte médica precisa intervir se pertence e de que se est li n do. No "grande mandamento"
sempre que um aspecto parcial de toda a personalidade adoece por do Antigo Testamento, o qu I foi confirmado por Jesus, Deus é
motivos externos ou internos. Isso vale tanto para a psicoterapia ambas as coisas: o objeto daquilo qu nos toca incondicionalmente
como par a medicina em geral. Não existem conflitos entre seus e o objeto de amor irrestrito. D 5 mor se deduz o amor que se
métodos e cura que pode ser alcançada pela fé; tàmbém está claro dirige àquilo que é "de Deus", isto é: o próximo e a própria pessoa.
que nenhuma intervc·nção médica - também não a psicoterapia - Por isso o "ternor a Deus" e o " mor de Cristo" é que determinam o
pode levar à inlegração da pessoa como um todo. Isso só a fé con- comportamento em relação s outras pessoas em toda a literatura
segue fazer. As tcnsõ s entre as duas formas de terapia desapare- bíblica. No hinduísmo e no budismo é a fé no "Uno", do qual pro-
ceriam se elas r conh c ssem suas tarefas específicas e seus limites vém tudo que é e ao qual volt tudo que é, que determina a par-
determinados. Elas ntão t mbém não mais se deixariam perturbar ticipação no próximo. O conh cimento da iden1idade última no
pelo terceiro método d cur, ou seja, a concentração mágica. Elas "Uno" torna possível e necessária a união com tudo que é. Mas
aceitariam sua ajud ,s b m qu centuando as possibilidades limi- isso não é a mesma coisa que o conceito bíblico do amor. Amor
tadas de·sta. participe, mas não se funde com o objeto do amor. Ambas as
Existem tantos tipos de personalidedes integradas como há concepções de fé têm em comum que elas não apresentam amor e
tipos de fé. Além disso, porém, há ainda um tipo que reúne em si ação como algo que se encontrasse fora da fé (o que acontece em
muitos traços dos outros tipos de integração pessoal. Trata-se do toda fé que é menos do que o estar possuído incondicional), mas
tipo de pe·rsonalidade criada pelo cristianismo primitivo que sempre sim amor e ação são elementos da própria fé. A separação de fé
de novo surgiu e se perdeu no curso da história da igreja. Sua e amor sempre é conseqüência de uma degeneração da religião.
natureza não pode ser descrita apenas a partir da fé; isso porque ela Quando a fé judaica se tornou um sistema de prescrições rituais,
ainda reúne dentro de si outras características. Para compreendê-Ia, quando as religiões dos hindus se degeneraram num sacramentalismo
é necessário responder primeiro a questão do relacionamento entre mágico, e quando o cristianismo incorreu em ambos os enganos e
fé e amor e da relação entre' fé e ação. Ihes acrescentou ainda uma rígida dogmática, a relação entre fé e
amor se tornou um sério problema para numerosas pessoas dentro
3. Fé, Amor e Ação e fora de cada uma dessas religiões, motivando que muitos se vol-
A questão sobre a relação da fé com o amor e a ação sempre tassem para uma ética não-religiosa.
foi colocada desde que o apóstolo Paulo passou pela experiência Elas tentaram escapar aos descaminhos da fé deixando de lado
de que é a fé no perdão divino e não a ação do homem que o faz a própria fé. Mas a questão é: Existe algo como amor sem fé? Certa-
aceitável perante Deus. As respostas são diversas, dependendo de mente que há amor sem a aceitação de certas doutrines. Sim, a histó-

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ria demonstra que os mais terríveis crimes contra o amor foram co- fanática. Isso porque ela precisa reprimir dentro de si tod
metidos em nome de dogmas fanaticamente defendidos. Fé como vidas que se le·vantam secretamente contra a elevação de
uma série de doutrinas apaixohadamente defendidas não gera amor. visório à categoria de incondicional.
Mas fé como aquilo que nos toca incondicionalmente inclui o amor,
A expressão direta do amor é a ação. Teólogos já discutiram I
isto é, o desejo e a aspiração pela re-união do separado, seja entre
questão de como a fé pode resultar em agir. Isso é possível porqu
Deus e Homem, seja entre duas pessoas.
té encerra amor e porque amor se manifeste em ação. O elo do
Mas a pergunta persiste: É possível o amor sem fé? Urna pessoa ligação entre fé e ação é o amor. Quando os Reformadores achavam
que não tenha fé é capaz de amar? Essa é propriamente a forma que a salvação só é alcançada pela fé e quando eles rejeitaram
adequada para a pergunta, e a resposta é: Não há ser humano sem a doutrina católico-romana de que também as obras são necessárias
uma preocupação incondicional e portanto sem fé e sem amor. O para a salvação, então eles tinham razão em negar que nenhuma
amor está atuando em todo ser humano, mesmo que profundamente ação do homem pode provocar a união com Deus. Somente Deus
oculto, pois todo ser humano aspira a união com o fundamento pode reconciliar o alienado consigo mesmo. Mas nisso os Re·forma-
último do ser. dores não se deram conta de algo que também na doutrina católic
Nós discutimos as interpre·tações errôneas cio sentido de "fé". só está expresso de maneira muito vaga: o fato de que amor
Igualmente necessário seria agora - o que não é possível neste um elemento da própria fé, quando fé é entendida como aquilo
presente contexto - mostrar as más interpretações sofridas pelo que nos toca incondicionalmente. Fé inclui amor, amor vive n
sentido do amor. Mas uma das maneiras mais fre·qüentes de se en- ação: nesse sentido a fé se realiza em "obras". Onde houver pr ·0'
tender mal o amor ainda precisa ser mencionada. Trata-se da cupação incondicional, ali também existe o desejo ardente de r
limitação do amor ao sentimento. Assim como a fé encerra o senti- lizar essa preocupação. Preocupação - na significação origin I d
mento, assim também o amor; mas dessa maneira o amor como tal palavra - inclui o desejo de agir; mas o tipo de ação depend d
ainda não se torna sentimento. Amor é o poder no fundame·nto tipo de fé. Na fé de tipo ontológico é almejada a volta do qu t
último de todo o ser, o poder que impulsiona o e.ite para além de separado para a união. A fé do tipo ético aspira a transform ç

si em direção à re-união com a outra pessoa e, em última análise, da realidade alienada.


com o próprio fundamento do ser, do qual se encontra separado.
Em ambos os casos o amor está operando. Na fé de tip
Costuma-se distinguir diversos tipos de amor, contrapondo o eros
lógico o eros predomina no amor e leva à união do que m COI1\
grego à ágape cristã. Definiu-se ercs como a aspiração pela auto-
o amado naquilo que os transcende a ambos: o fund m nto
realização através de outros seres, e ágape como a disposição a
ser. Na fé do tipo ético a ágape leva à afirmação do rn do
se entregar ao outro em prol do outro como tal. Mas essa alternativa
procura a sua transformação naquilo que ele é por su "nci
não existe. Esses assim chamados "tipos de amor" são na realidade
e por isso deveria ser. No tipo místico o amor une atr v
"qualidades do amor", características que aparecem reunidas e só
gação do eu; no tipo ético o amor transforma através d illrm ç o
entram em conflito em sua forma degene·rada. Nenhum amor é real-
do eu. Uma ação baseada no amor do tipo místico tem c r t r pre-
mente amor sem a unidade de eros e ágape. Ágape sem eros é
dominantemente ascético; uma ação que emana do mor I tipo
sujeição a uma lei moral; ela é destituída de calor, de aspiração e de
ético tem a tendência de amoldar i'l realidade. Em mbo os c 50S
l
reconciliação. Eros sem ágape é desejo desenfreado, que não respeita
a fé determina o tipo de amor e o tipo de ação.
o direito do outro de ser reconhecido como alguém que ama e vale
a pena ser amado. Amor como unidade de eros e ágape é um Esses são e·xemplos para polaridades fundam nt is no caráter
traço característico da fé. Quanto mais amor houver na fé, tanto da fé; mas ainda há muitos outros. O princípio lut r no do perdão
mais estarão superadas as suas possibilidades demoníaco-idólatras. individual, por exemplo, está menos orientado p r etu ção social
Uma fé, em que uma preocupação provisória alcança validade última, do que a fé calvinista, que tem em vista a honra de Deus. A fé
está em conflito e em contradição com todas as outras preocupações humanística na natureza racional do homem tem fitos mais posi-
provisórias; isso destrói a possibilidade do amor entre os portador.es tivos para a educação e para uma ordem social d I iocr tica do que
é

de semelhantes formas de fé. O fanático não pode amar aquilo a fé cristã tradicional, que acentua o pcccdo oriqinel e o caráter
contra que se dirige seu fanatismo; e fé idólatra é necessariamente demoníaco da realidade terrena. A fé protestant num encontro direto

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do homem com Deus gera mais personalidades independentes do seja vida na comunhão; isso também vale para o 1 01 monto e 501i-
que a fé católica, que ensina u função mediadora da igreja entre tude do místico enquanto ele ainda {ala a linguagcl d comunhão
Deus e homem. Por mais diversos, porém, que sejam os tipos de de fé. E mais: não existe simplesmente comunhão loum que não
fé, fé como estar possuído por aquilo qUE' nos toca incondicional- fosse comunhão de fé. Naturalmente existem grupos qu unem
mente inclui o amor e determina a ação. Fé é o poder que baseia devido a interesses em comum e que permanecem m unlão en-
tanto o amor como a ação. quanto dure o interesse. E há grupos que como famfli I t m
uma origem natural e desaparecem algum dia por morl n tur I
4. A Comunhão de Fé e suas Formas de Expressão quando se extinguem as suas condições de vida. N nhum I
dois tipos de associação é como tal uma comunhão de f . 1tll11
Nossa exposição sobre a natureza da fé mostrou que fé so e se um grupo surge de maneira natural ou se ele 50 o I
real e· viva numa comunhão de fé, e isso, mais exatamente, apenas causa de um interesse': ele não deixa de ser uma ligação p
quando ela cria uma linguagem comum da fé. A discussão da rela- A ligação se interrompe quando desaparecem as bases m t ri I
ção entre amor e fé levou ao mesmo resultado: amor como elemento as condições biológicas de sua existência. Para uma cornunh
da fé e como aspiração pela re-união do que está separado cria fé essas condições não são decisivas; exclusivamente a forç
comunhão. E uma vez que te leva necessariamente à ação e ação de sua fé é o fundamento e critério para sua duração. Aqull
pressupõe comunhão, o estar possuído incondicionalmente somente se baseia numa preocupação incondicional não está ameaç
é legítimo quando ele se realiza numa comunidade de ação. nenhuma destruição através de preocupações provisórias Ou
falIa de sucesso. A prova mais admiráve·1 para essa afirm
A comunidade de fé e de ação se baseia em símbolos rituais e história dos judeus. Eles são na história da humanidade
manifesta sua natur-eza em símbolos míticos. Ambos se condicionam para o caráter último e incondicional da fé.
reciprocamente; aquilo que vem a ser expresso no culto se encontra
figuradamente· no mito, e vice-versa. Não há fé sem essas duas Nem um culto nem as expressões míticas da fé fazem s ntld ,
formas de autorepresentação. Mesmo quando a "nação" ou o "su- se não Ihes é reconhecido o seu caráter simbólico. Nós t 111 mo
cesso" são objetos da fé, eles estão associados a ritos e mitos. anteriormente apontar as conseqüências destrutivas da compr 11 o
É sabido que sistemas totalitários possuem uma estrutura muito bem
!iteral de símbolos. Contra essa se levanta freqüentem nl um
elaboradu de atos rituais e que além disso têm uma quantidade de crítica religiosa e filosófica. O mito é substituído por filo ofl d
símbolos figurados, os quais - por mais absurdos que sejam - religião, e no lugar do culto se coloca uma série de prescriçõ 5 mor I .
exprimem a fé que fundam nta todo o sistema. A sociedade tota- Semelhante situação pode persistir por algum tempo por u f
litária vive em atos rituais c símbolos intuitivos que apresentam original ainda está atuando nela. Uma rejeição das form O
alguma similitude com os atos e símbolos em que vive uma comu- pressão da fé não precisa estar necessariamente dirigid contr
nidade religiosa presa à autoridade. Mas em todas as comunidades fé em si. Mas isso tem validade limitada. Sem símbolo d um
religiosas genuínas acha-se um veemente protesto contra os ele- preocupação incondicional, sistemas de pura moral d g n r m
mentos idólatras, os quais são sem mais admitidos no totalitarismo numa ética de ajuste e convenções sociais, sejam el s ju tific -
político. das em última análise ou não. A paixão infinita que cersctertz toda
fé genuína vai desaparecendo aos poucos e é substitufd pelo cal-
A vida da fé é vida na comunhão da fé; isso não vale apenas culismo inteligente, que nunca será capaz de resistir s investidas
para as atividades e instituições comunitárias, mas também para a veementes de uma fé idólatra. Semelhante processo se desenrolou
vida interior de seus membros. Quando uma pessoa se isola tran- no âmbito da cultura ocidental; ele permaneceu oculto por tanto
sitoriamente do agir comunitário, por exemplo da vida cultual da tempo apenas porque e'11 muitos representantes da fé humanista
comunidade de fé, então isso não significa necessariamente uma a capacidade ética era maior do que em muitos membros de algumas
separação da comunidade como tal. Isso alé pede levar a que a vida comunidades religiosas. Nessas pessoas ainda estava viva a fé, elas
espiritual da comunidade seja forlulecida. Isso porque freqüenlemente levavam incondicionalmente a sério a dignidade humana e a res-
tal pessoa, após um isolamento voluntário, retorna como um renovador ponsabilidade pessoal; nelas ainda estava viva a substância religiosa,
da comunidade e de seus símbolos. Nào existe vida de fé que não e essa tem que desaparecer se a fé não for renovada. Isso, porém,

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s6 pode acontecer numa comunhão de fé sob a constante influência 5. O Encontro entre Comunhões de Fé
de seus símbolos míticos e cúlticos.
Muitas comunhões de fé existem, não apenas na religião,
Um dos motivos por que a ética autônoma se voltou contra sua como também no campo culturel. Presentemente a sua maioria se
origem religiosa é a distorção de sentido sofrida pelos símbolos e encontra em contato recíproco e de um modo geral é tolerante em
mitos no curso da história da religião, também nas igrejas cristãs. suas relações entre si. Mas h exceções importantes, e pode muito
Os símbolos rituais de fé foram pervertidos como objetos dotados bem ser que o número de exceções esteja crescendo sob as difi-
de poder mágico, aos quais se atribuiu a mesma eficácia de forças culdades políticas e sociais de nossa época. Exceções constituem
naturais. Via-se neles forças sacramentais que sempre atuam, con- sobretudo os tipos políticos e pscudoreliqiosos de fé. Incluem-se aí
tanto que o homem não lhes oponha obstáculos. Essa interpretação não apenas as formas totalitári s, mas - em defesa de sua própria
supersticiosa da ação sacramental despertou o protesto dos huma- existência - também as form democráticas de fé política. No
nistas e os levou ao ideal da moral sem religião. A deposição da
âmbito puramente religioso, por6m, existem também exceções, por
superstição sacramental foi uma das preocupações principais do pro-
exemplo a doutrina oficial d igreja católico-romana de que ela
testantismo. Mas com seu protesto o protestantismo não só eliminou
a superstição cultual como também o sentido legítimo da própria sozinha esteja de posse' da v rd de, Outra exceção é a ortodoxia
ação ritual e do simbolismo sacramental. Com isso o protestantismo protestante, que rejeita todas as outras formas de cristianismo e da
contribuiu contra sua vontade com uma ética autônoma. Mas a fé religião. É facilmente compr nsfv I que semelhante intolerância
não pode ficar viva sem formas visíveis e sem participação pessoal possa se instalar no campo da Ió, Se fé é o estar possuído incon-
dos crentes nessas formas. Esse reconhecimento levou o protestan- dicionalmente que precisa se xpr S5 r de uma determinadá forma,
tismo moderno a uma nova valorização de culto e sacramento. Sem então o símbolo concreto particip do incondicional, se bem que
símbolos em que o sagrado é experimentado como estando presente, ele mesmo não seja incondicion I. Aqui se acham as raízes da intole-
desaparece por completo a experiência do sagrado. rância. Uma expressão do incondicional exclui todas as outras e assume
traços demoníacos. Isso acontec u rn todas as religiões, também no
A mesma coisa vale para as formas mitológicas de expressão cristianismo, apesar de ser a cruz o sin I da resistência contra tode
do incondicional. Quando o mito é tomado literalmente, a filosofia religião concreta que se elev a si m smo à categoria de incondicio-
tem que rejeitá-Io como absurdo. Ela precisa "demitizar" as histórias nal. A verdade do misticismo consisr rn que ele não atribui im-
sagradas. portância última a nenhuma reliqiêo isol da, conseguindo ultrapassar
assim o sistema de símbolos em qu vive qualquer religião. A indi-
O que acontece então é que o mito se transforma em filosofia
da religião, tornando-se finalmente filosofia sem religião. Mas o ferença diante de toda expressão concreta do incondicional torna o
mito em seu sentido verdadeiro é o fundamento criador de toda misticismo tolerante; mas falta-Ih a força de superar a alienação
comunhão religiosa; ele não pode ser substituído nem pela filosofia da existência humana, No judaísmo e no cristianismo a realidade é
nem por uma coletânea de prescrições morais. transformada pelo Deus que é o Senhor da história. O monoteísmo
exclusivo dos profetas, sua luta contra as divindades do paganismo,
Culto e mito mantêm viva a fé. Ninguém se desligou completa-
a mensagem de justiça universal no Antigo Testamento e de graça
mente deles, pois ninguém está inteiramente destituído de uma
preocupação incondicional. Não há dúvida de que são poucos os universal no Novo Testamento - tudo isso tornou o judaísmo, o
que compreendem o significado e o poder de culto e mito, se bem Islã e o cristianismo intolerantes perante toda outra religião. As reli-
que a vida da fé de·les depende. Eles emprestam expressão visível giões da justiça, da história e da expectativa final (13) não podiam
à fé de uma comunhão e provocam fé pessoal nos membros de aceitar a tolerância mística, por exemplo, das religiões hindus. Elas são
uma comunidade. E sem uma comunhão em que mito e culto são intolerantes e podem intensificar essa atitude até ao fanatismo. Isso
cridos e praticados, a fé desvaneceria, e tudo que há de religioso distingue o monoteísmo dos profetas com sua reivindicação aberta
mergulharia ao nível do inconsciente. No consciente a experiência de exclusividade da forma aberta do monoteísmo místico.
do sagrado ainda teria uma influência passageira sobre a ética,
mas a fé estaria eliminada como poder vivo. (13) N, do T,: "Ender we rf unq". que espero a rcalização plena no fim dos tempos.

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Surge ~gora a pergunta: O encontro entre duas formas de fé aspiração e esperança da humanidade em todos os ternoos e em
precisa lever necessariamente ou à tolerância acrítica ou à intole- todos os lugares. Existe, porém, somente uma possibilidade de atin-
rância sem autocrítica? Se fé é compreendida como estar possuído gir essa unidade: a fé precisa ser diferenciada das formas de expres-
incondicionalmente, essa alternativa estará superada. O critério de são em que ela aparece. O caminho para uma única fé que englobe
toda fé é sua capacidade de expressar a incondicional idade do in- toda a terra é o caminho dos profetas, que rejeitaram a idolatria e
condicional. A autocrítica de toda forma de fé é uma conseqüência proclamaram o Deus que é realmente Deus. Pode ser que nenhuma
do reconhecimento da validade limitada dos símbolos concretos em
fé conseguirá se expressar em um símbolo universalmente válido -
que transparece essa fé.
se bem que também seja a esperança de toda grande religião criar
Daí se compreende o sentido de "conversão". A palavra "con- esse símbolo global, em que se pode expressar a fé da humanidade.
versão" tem conotações que dificultam o seu uso. Ela pode dar a Mas essa esperança só é justificada se uma religião está cônscia do
entender o despertar de um estado em que o aspecto religioso caráter condicionado de seus próprios símbolos. Na "cruz do Cristo"
estava oculto, e o abrir-se para o sagrado de que se toma consciência. o cristianismo tem um símbolo que expressa o estar consciente de
Se "conversão" é compreendida dessa maneira, então toda expe- sua própria condicionalidade e qu permanece válido mesmo se as
riência religiosa original tem o caráter de conversão. Mas conversão igrejas cristãs esquecerem o sentido desse símbolo e atribuírem in-
também pode significar a mudança de uma confissão de fé para
condicional idade a formas específlces de fé. Dado à sua autocrítica
outra. Conversão nesse sentido é questionável. Ela só é significativa
radical o cristianismo, dentre tod s as religiões, é a que apresenta
se na nova fé a incondicional idade do incondicional é melhor guar-
maior vocação para a universalidade - isso e-nquanto ele permitir
dada do que· na fé antiga.
que essa autocrítica prossiga atuando em sua própria vida.
No mundo ocidental é especialmente importante o encontro do
cr istie.nismo com as formas de fé secularizada. Também a fé profana
CONCLusAo
é fé e nunca é destituída de uma preocupação incondicional; por
isso o encontro com el é um encontro entre formas de fé diferentes.
A Possibilidade da Fé e seu Significado no Presente
Num encontro entre fé religiosa e secular é necessário distinguir
dois elementos: a fé como tal a forma em que ela se expressa.
No que tange a fé como tal, nad se pode conseguir com argumentos , Fé é uma realidade em cada período da história da humanidade.
racionais que queiram julgar à distância a sua verdade ou falsidade Esse fato não prova que ela esteja inseparavelmente ligada com a
Só se pode tentar levar a uma nova experiência de fé. Mas no que natureza mais íntima do homem; uma determinada fé poderia ser
toca exclusivamente às formas de expressão da fé, sejam elas ideo- - como a fé supersticiosa - uma distorção da verdadeira essência
lógicas ou práticas, é possível refletir sobre elas num confronto. do homem; isso também acham muitos que rejeitam a fé. Nesse
Mas é uma ilusão tentar transformar a fé como tal com argumentos livro nós perguntamos se semelhante opinião se baseia em intuição
racionais. A fé é exclusivamente uma questão de estar possuído e real ou num mal-entendido, e nós respondemos que a rejeição da
de entrega pessoal. Muitas vezes não é fácil estabelecer a linha fé provém de um desconhecimento da natureza da fé. Nós discutimos
divisória entre uma fé e sua expressão, mas isso precisa ser tentado várias formas desse mal-entendido e muitas distorções do conceito
sempre de novo no encontro entre as formas de fé. Só então pode-se de fé. Fé é difícil de se definir. Quase cada palavra com que se
evitar o fanatismo ao mesmo tempo em que é mantida a certeza descreveu a fé - e isso também vale da nossa exposição - encerra
interior da fé. possibilidades de novos mal-entendidos. Isso não poderia ser dife-
rente, uma vez que a fé não é um fenômeno entre outros, mas sim
Através de conversão o trabalho rrussronano das grandes reli- a mais íntima preocupação na vida do homem como pessoa, sendo
giões procura alcançar a unidade de todas as formas de fé. Ninguém por isso manifesto e oculto ao mesmo tempo. Ela é religião e simul-
pode estar certo de que tal unidade será conseguida no curso da taneamente mais do que religião; ela é onipresente e concreta, ela
história da humanidade; mas ninguém pode negar que ela é a é mutável e mesmo assim permanece sempre a mesma. Fé está inse-
80 81
paravelmente ligada com a netureze do homem, sendo por isso
necessária e· universal. Ela é o estar possuído incondicionalmente,
e por isso ela não pode ser refutada nem pela ciência nem pela filo-
sofia. Ela é possível, sim, até necessária em nosso tempo. Ela também
não pode ser desvalorizada pela dístorção supersticiosa ou autoritária
de seu sentido dentro ou fora das igrejas, das seitas ou de movi- EPILOGO*
mentos ideológicos. A fé se justifica a si mesma e defende seu di-
reito contra todos que a atacarem, porque ela só pode ser atacada o Que é a Série "Perspectivas elo Mundo"
em nome de uma outra fé. Este é o triunfo da dinâmica da fé: que
toda negação da fé já é expressão de fé. por Ruth Nanda Anshen

Esta é uma reimpressão do Volume X da Série Perspectivas do


Mundo, a qual a signatária plane·jou e editou em colaboração com
uma Comissão de Editores composta por Niels Bohr, Richard Courant,
Hu Shih, Ernest Jackh, Robert M. Maciver, Jacques Maritain, J. Robert
Oppenheimer, I. I. Rabi, Sarvepalli Radhakrishnan, Alexander Sachs.
Este volume faz parte de um plano de apresentar pequenos
livros em lima variedade de campos, escritos por pensadores contem-
porâneos da maior responsabilidade. O objetivo é revelar novas
tendências básicas na civilização moderna, interpretando as forças
criativas que estão em ação tanto no Oriente como no Ocidente, e
chamar a atenção para a nova consciência que pode contribuir para
uma compreensão mais profunda da interrelação entre homem e uni-
verso, indivíduo e sociedade, e dos valores compartilhados por todos
os povos. Perspectivas do Mundo representa a comunidade mundial
de idéias em um universo em discurso, enfatizando o princípio de
unidade em uma humanidade de continuidade dentro da transfor-
mação.
Recentes evoluções em muitos campos do pensamento abriram
horizontes insuspeitados para uma compreensão mais profunda da
situação do homem e para a apreciação adequada de valores huma-
nos e aspirações humanas. Esses horizontes, mesmo sendo resultado
de estudos altamente e·specializados em campos limitados, requerem
para sua análise e síntese uma nova estrutura e um novo quadro
de referências em que eles possam ser explorados, enriquecidos e
fomentados em todos os seus aspectos, para o bem do homem e da
sociedade. O intento de Perspectivas do Mundo é definir semelhante
estrutura e quadro de referências, levando, assim esperamos, a uma
doutrina acerca do homem.

(') N. do T.: Este epílogo foi traduzido de "Dvnarnics of Faith", versão inglcsD do
presente livro.

83
Outro objetivo dessa Série é tentar superar uma das principais mento podem ser postos m conexão - alguns já estão em conexão, -
doenças da humanidade, ou seja, os efeitos da atomização do conhe- como uma grande red ,um grande rede de pessoas, ligando idéias
cimento produzida pelo esmagador acréscimo de fatos originados e sistemas de conhecim rito, uma espécie de estrutura racionalizada,
pela ciência; esclarecer e sintetizar idéias através da fertilização em que é a cultura hum n ociedade humana.
profundidade das mentes; mostrar a partir de diversos e importantes
Conhecimento, como " mostredo nesses volumes, não consiste
pontos de vista a correlação de idéias, fatos e valores que estão
mais de uma manipul ç I 10 homem e da natureza como, forças
em constante interação; demonstrar o caráter, afinidade, lógica e
opostas, nem de uma r duç J d d dos a uma ordem estatística, mas
operação de todo o organismo da realidade, mostrando ao mesmo
significa um meio d lib -rt Ir humanidade do poder destruidor
tempo o interrelacionamento dos processos da mente humana e nos
do medo, mostrando O camlnho m direção ao alvo da reabilitação
interstícios do conhecimento; revelar a síntese interior e a unidade
da vontade humana 'o , n im nto da fé e da confiança na
orgânica da própria vida,
pessoa humana, As obra I ul licnd s também procuram revelar que
É a tese de' Perspectivas do Mundo que, apesar da diferença e o clamor por esquemas, ,i' I rn I~ autoridades está se tornando
diversidade das disciplinas representadas, existI" uma forte concor- menos insistente à medid lU cr sce o desejo tanto no Oriente
dância entre os autores no que diz respeito à urgente necessidade como no Ocidente pel r u] '01 o de uma dignidade, integridade
de contrabalançar a profusão de constrangedoras atividades cientí- e autorealização que são di, ,11 " in lienáveis do homem, que não
ficas e investigações de fenômenos objetivos, desde a física até a é uma mera tabula rasa sob, IUt [ualquer coisa possa ser impri-
metafísica, história e biologia, relacionando-as à experiência exis- mida arbitrariamente por ircun I nelas externas, mas que possuí a
tencial. A fim de alcançar esse equilíbrio é necessário estimular uma potencial idade única da liv: ri lívl I de. O homem se diferencia de
consciência do fato fundamental de que em última análise a perso- outras formas de vida no lU ,I pode dirigir a mudança através
nalidade humana irrdividuel precisa ligar todas as ponta!" soltas num de um objetivo consciente, IUI dtl xperiência racional.
todo orgânico, relacionando-se consigo mesmo, com a humanidade Perspectivas do Mundo no signi-
e com a sociedade, aprofundando e promovendo ao mesmo tempo ficado do homem que não só 'I Itll .rrnlnado pela história mas que
sua comunhão com o universo, Ancorar esse espírito e imprimi-Io à +ambém determina a histório. Ili t Ii deve ser compreendida não
vida intelectual c' espiritual da humanidade, tanto sobre os que apenas como relacionada com 01 VI II cio homem sobre este planeta,
pensam como sobre os que agem, é realmente um enorme desafio mas incluindo também infloên id, smic s que interpenetram nosso
que não pode ser relegado inteiramente à ciência natural por um mundo humano. Esta geração sl,í d icobrindo que a história não
lado nem à religião organizada por outro, Isso porque estamos con- se sujeita ao otimismo social d Ivrlil o moderna e que a orga-
frontados com a imperativa n cessidade de descobrir um princípio nização de comunidade hum na I belecimento de liberdade,
de diferenciação mas que se] ao mesmo tempo relação suficiente- justiça e paz não são apenas COJKlui t intelectuais mas também
mente lúcida para justificar e purificar o conhecimento científico, espirituais e morais, exigindo Uf111 v lorizeção da personalidade
filosófico e de que tipo for, aceitando simultaneamente sua interde- humana como um todo, a "int grid d ' n o-mediada de sentimento e
pendência mútua, Essa é a crise na consciência, articulada através da pensamento", e constituindo um t rno desafio para o homem,
crise no campo da ciência. Esse é um novo despertar. de ernerqir do abismo da falt d ntido do sofrimento para ser
renovado e restabelecido no lodo de u vida.
Perspectivas do Mundo se dedica fi tarefa de mostrar que o
conhecimento teórico básico está relacionado com o conteúdo dinâ- Perspectivas do Mundo esté ngfoj do com o reconhecimento de
mico da totalidade da vida. Essa série procura uma nova síntese, que todas as grandes mudanç s s o pr C didas por uma vigorosa
tanto cognitiva como intuitiva. Ela se preocupa com a unidade e' reavaliação e reorganização inte,1 ctu I. Nossos autores estão cônscios
continuidade do conhecimento em relação com a natureza do homem de que o pecado da hybris pod r viíudo o se mostrar que o
e sua compreensão, uma tarefa para a imaginação sintetizadora e próprio processo criativo não lima atividade livre, se entendemos
SU<lS visões unificantes. A situacão do homem é nova e sua resposta livre como sendo arbitrário e não relscion do com a lei cósmica. Isso
tem que ser nova. Isso porque a natureza do homem pode ser porque o processo criativo na mente hurns nu, o processo evolutivo
conhecida de muitas maneiras, e todos esses caminhos do conheci- na natureza orgânica e as leis básicas do âmbito inorgânico podem

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ser simplesmente expressões variadas de um processo formativo
universal. Destarte Perspectivas do Mundo espera mostrar que, apesar
INDICE
das tensões excepcionais do presente período apocal íptico, também
está em ação um movimento excepcional em direção a uma unidade
Observações lntrc dllflllltl' •• "., .. , .•............... 5
compensadora que não pode obliterar a força moral última que
I. O Que é a F
pervade o universo, aquela força rnesrna de que todo esforço hu- •••• o •• " ••••••••••••• 5
mano finalmente depende, Dessa maneira nós podemos vir a compre- 1. Fé como '.111 I fi \lIdo IH r I [ullo que nos toca
ender que existe uma independência do crescimento espiritual e incondicion 1r'1' 111, '" • " • o ••••• o •••• 5
mental que, mesmo condicionado por circunstâncias, nunca é deter- 2. 'Fé como 1o ti I' 1111 11111 ir 1 •••••••••••••• 7
minado pelas circunstâncias, Assim a grande pletora de conhecimen- 3. r,
A fonte d ................... 10
to humano pode ser correlacionada com uma intuição na natureza 4. Fé e dinâmi 1 I" " ti" , . 13
da natureza humana, ao ser sintonizada com a ampla e profunda 5. Fé e dúvid 'I ••••••••••••••••• 15
gama do pensamento humano e da experiência humana, Porque o 6. Fé e comunh H ••••••••••••••...••.•.••.. 19
que falta não é o conhecimento da estrutura do universo, mas uma 11. O Que a Fé não ................ 24
consciência da qualitativa singularidade da vida humana, 1. A distorção d I f!' '"11111 do nhecirnento .
111 24
2. A distorção d (I , 1111111 dll d vontade . 27
E finalmente, é a tese desta Série, que o homem se encontra
num processo de desenvolvimento de uma nova consciência, a qual,
3, A distorção d Il I 111111 j , 11111111 1110 , •••.•••.• 29
õpesar de seu aparente cativeiro espiritual e moral, pode eventual- 111. Os Símbolos da F
mente elevar
brutalidade
a raça humana
e isolamento
acima e além do medo, da ignorância,
que a acossam atualmente. É a essa cons-
1.
2.
O conceito
Os símbolos
de
r li I Il •
. " .
30
30
3. Símbolo e mito .,., •................ 32
ciência n sc nt r a esse conceito de homem proveniente de uma ••• I I "" ••• " •••••••• 35
visão fresc da r alid d que Perspectivas do Mundo é dedicado.
IV. Tipos de Fé ,.... .. . . 39
1. Os elementos 1/ Ida f , d," 11111 I ••..•••••. 39
2. Os tipos ontológico I, I, . 41
3. Os tipos morais d f ••••• , •••.......... 45
4. A unidade dos tipo 11. , , •• , ••••...••• 48
V. A Verdade da Fé "." ., . 50
1. Fé e razão " , . 50
2. A verdade da fé VI Id HI, 1 .•...•. 53
3. A verdade da fé VI rei I, . 57
4. A verdade da fé I VI rtl d, 1110 I ••...•• 59
5. A verdade da fé u rll, ri ••........ 63
VI. A Vida da Fé ,., .. " ,., . 65
I. Fé e coragem "... , , .. , . 65
2. A fé e a lnteqreção 10 111 .(1 I I I • I • o •••••• 68
3. Fé, amor e ação ... ,."" 72
4. A comunhão de fé ,I', f 1111\1 Ir I plt '. O . 76
5. O encontro entre cornunh , 11 rt'1 , ••••• , •.•
75
Conclusão •••••• '" ••••••• " ••••••••••••• t ••••••
81
A possibilidade da fé e seu signl(l do no I r (!lI
81
Epílogo , , . 83
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