Rosto, Responsabildade e relação ética assimétrica
De acordo com o pensamento levinasiano, a interpelação
do rosto lança sobre o eu uma responsabilidade que o antecede, criando assim a subjetividade. Independentemente de uma anuência ou concordância do eu, a responsabilidade que me vem a partir do rosto do outro me impele e, por se tratar de uma relação assimétrica, não tenho possibilidade de me deslocar de sua incessante inquisição. O rosto é obrigação infinda que arrebata a cada momento, em que nos damos conta de nosso existir, pois ele se torna também condição de inteligibilidade do mundo. Sou, enquanto me responsabilizo.
Quando Lévinas admite que essa responsabilidade é
indeclinável, ele quer que entendamos que não podemos dizer não a ela. Ser eu, de acordo com ele, significa não ser capaz de evitar a responsabilidade, porque estou ligado, de uma maneira peculiar, ao outro. Segundo Hutchens (2007): (...) mesmo antes de encontrar o outro eu já sou responsável. Estou obrigado sem que essa obrigação tenha começado em mim, como se uma ordem tivesse penetrado sorrateiramente em minha consciência como um ladrão, metendo-se ali clandestinamente (...) A face de outra pessoa evoca uma responsabilidade para com aquela pessoa. Em todas as ocasiões em que reagimos a alguém, estamos sendo responsáveis para com ele de uma maneira indeclinável , ou seja, irrecusável. A face da outra pessoa em um relacionamento face a face tem uma espécie de direito privilegiado sobre nós. Muitas vezes Lévinas escreve sobre o eu como se fosse um refém perseguido pela outra pessoa.
"A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer
atentar na cor dos olhos". (LÉVINAS 1982, p. 77) Com essa frase o autor tenta mostrar a improbabilidade que é o contato com o Rosto. É improvável, pois aquele que o apreende em suas feições acaba por não alcançá-lo enquanto tal. Assim, se seguirmos a recomendação do autor poderemos aferir o paradoxo que é a relação com o rosto. Ora, se de um lado o rosto se encontra "despido", "sem defesa", "ameaçado", de outro, é esse mesmo rosto que nos impede de atuar de outra forma senão com amor. O rosto é o que nos proíbe de matar. Neste momento, trata-se de traçarmos a relação proposta, entre rosto, responsabilidade e relação ética assimétrica. Assim, é para esse rosto que devo tudo, a quem tudo preciso responder enquanto apelo ético desamparado que me clama e ordena em uma relação assimétrica. Neste sentido, ao mirar esse rosto, tenho-me interpelado por ele como uma ordem, pois sua fragilidade me ordena: não matarás! e a esta altura do rosto é que me curvo enquanto seu refém. Incapaz de conceituá-lo, dada sua anterioridade, que me constitui em minha própria subjetividade. Os dizeres de CHARLIER autorizam o nos referimos, ou seja, a relação assimétrica imposta pelo outro não me é questionada, ela me vem. Nesse sentido, não há qualquer esperança de retribuição para o existir ético, em verdade, o que irá colorir a relação ética será, de fato, o desinteresse que me demove até o rosto, que me responsabiliza por ele.
De fato, de acordo com Lévinas, o outro diz-me respeito
mesmo se me ignora, se me olha com indiferença, ou passa, atarefado sem me ver. A ética impõe-me deixar o terreno, violento e inelutavelmente enganoso, da luta pelo reconhecimento, da rivalidade e da vingança. A nudez inscrita no rosto de outrem, ainda que daquele que não hesita em me sacrificar por causa dos seus interesses, consigna-me imediatamente responsável, obsidia-me e até me põe em questão se ele se recusa, obstinadamente, a reconhecer-me (...) ( LÉVINAS apud CHARLIER 1993, p. 123-124)
E às críticas acerca de uma tal desobrigação pelo outro que
não me ama e que me faz mal, Lévinas responde da seguinte forma: (A) assimetria ética, a única capaz, segundo ele, de fazer entrar um pouco de humanidade num mundo expostos aos mais dilacerantes ódios. Como se fosse necessário saber abrir uma brecha na rivalidade mimética que tão frequentemente aprisiona os homens, não hesitando em consentir à bondade, em primeiro lugar, sem garantia quanto à recção de outrem, susceptível, com efeito, de confundir esta bondade com uma fraqueza e de se aproveitar disso. (LÉVINAS apud CHARLIER 1993, p. 124) Aqui estaríamos no terreno daquilo que se chamou vocação para santidade. Exatamente no sentido de afirmar que a ética seria desinteresse. Relação de pura assimetria em face do outro que me contém e para o qual eu «sempre tenho uma resposta a mais para dar». Independente de qualquer ordem recíproca, posto que se trata de uma relação de santidade, simplesmente de um "eis-me aqui!".
Responsabilidade: A rota de fuga dessa violência simbólica
fica apontada com a ideia levinasiana de responsabilidade. Ao nos referirmos a esta ideia, precisamos estabelecer, aliás, como já anunciado, que a existência do eu não se funda propriamente na percepção dada pelo cogito. O outro me antecede na relação com o mundo. Nesse sentido, a existência do ser humano é não apenas mediada pelo outro, mas, em verdade, temos nele a condição primitiva de minha colocação no mundo. Estabeleço- me no mundo a partir e através do outro. No encontro com a face do outro, me responsabilizo por ele e por todos os outros que vierem, ora, o mundo constitui-se desta e por essa possibilidade. Assim, a existência do ser humano restaria, dada a partir do encontro com o outro. O outro que me permite habitar o mundo enquanto me dou a ele em condição de refém, mesmo sem querer, mesmo sem que se tenha aprovado essa responsabilidade, de maneira antecipada. De certa forma, o pensamento contemporâneo parece não estar muito bem resolvido em face dessa perspectiva, uma vez que a já proclamada violência simbólica, foi ela mesma condição para que erguêssemos o mundo tal qual é conhecido. O mundo é ocidental, diriam os mais desavisados, e contra esse pensamento racionalizante e instaurador de opressões e diferenciações das mais diversificadas montas, é que o messianismo de Lévinas aparece como nova possibilidade ao ser humano. Um encontro de rostos que não se identificam. Um encontro em que os convivas não se apresentam, dado que a violência se apresenta na relação, desde já, quando nos assumimos como habitantes de uma determinada nacionalidade ou etnia. Daí em diante, as mais terríveis atrocidades, no sentido da violência simbólica, são realizadas sob a benção da linguagem. Essa linguagem ocidentalizada e fundada no logos seria ela, assim mesmo, com todas as suas heranças, a própria violência simbólica em ação. No limite, não haveria forma outra de relação que não fosse já uma relação violenta. Escutar o outro, talvez seja esse o apelo para a saída dessa encruzilhada. Pois, se ficou estabelecido que o homem é esse ser de linguagem, se sua condição mesma de habitar o mundo com o outro resta estabelecida a partir daquilo que a linguagem se nos oferece, em certo sentido, poderíamos afirmar que o logos não daria conta da indicação para a saída desse problema. Advertimos aqui para uma necessária audição do pensamento de Lévinas para que a santidade do homem - sua busca - torne-se o existencial privilegiado afim de que este problema transcenda o patamar do logos.