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O processo civilizatório avança e já se pode afirmar que, sob os mais novos modelos
institucionais dos Estados Democráticos de Direito, as políticas econômicas e sociais estão
perdendo aquela conformação rigidamente hierarquizada, até porque as elites tradicionais já não
dispõem do monopólio da inovação e do poder.
A metodologia quantitativa da “Pesquisa Social Brasileira” compartilhada por Alberto
Carlos Almeida,14 no livro “A Cabeça do Brasileiro”, demonstra, por exemplo, que o ícone da
nossa formação social foi o senhor de engenho com grandes propriedades e muitos escravos.
Formava-se ali uma sociedade bastante assimétrica, em que poucos eram proprietários de
grandes extensões territoriais e muitos (escravos e trabalhadores livres) não tinham nenhum
pedaço de terra.
Essa é a principal matriz social e econômica da formação do Brasil, mas não a única. Eis
algumas questões sobre como tudo isto repercute hoje, consoante demonstrado na pesquisa:
“Quem mora nas capitais tende a ser menos patrimonialista do que quem mora fora das
capitais”; “Os habitantes do Nordeste são mais patrimonialistas do que as pessoas que moram
nas demais regiões do Brasil”; “Os homens tendem a ser mais patrimonialistas do que as
mulheres”; “Os mais velhos tendem a ser mais patrimonialistas do que os mais jovens”; “As
pessoas que fazem parte da População Economicamente Ativa tendem a ser menos
patrimonialistas do que as que não fazem parte”; “A relação entre escolaridade e visão de
mundo hierárquica é muito forte”; “O Brasil é uma sociedade regida por uma lógica
predominantemente hierárquica”; “Os dados da Pesquisa Social Brasileira mostram que
hierarquia e autoritarismo estão positivamente relacionados”; “Patrimonialismo e corrupção são
ideias afins”. A tolerância à corrupção “é realmente maior entre aqueles de escolaridade mais
baixa...”.
Tudo isso confirma, conforme a lição de Raymundo Faoro, a persistência da nossa cultura
patrimonialista – centralizadora, burocrática e corrupta – originária de uma tradição que
remonta ao passado lusitano, ibérico, colonial.15
O aspecto positivo da pesquisa é que ela nos indica que, num movimento inverso, a
intensificação dos investimentos na qualidade e intensidade da educação formal e informal e a
democratização das informações, sob o influxo da revolução virtual dos conhecimentos, em
meio a esse “nomadismo” do mundo contemporâneo, podem estar desconstruindo o padrão
hierárquico e patrimonialista dessa velha cultura lusitana.
Com efeito, as sociedades modernas, centrais, ou mesmo as periféricas, foram
incorporando a consciência de uma complexidade crescente e atenuando os códigos do poder
hierárquico, na medida em que se afirmam diferenciações funcionais. Em substituição ao
modelo hierárquico unilateral, em sentido único “do poder para o direito” e “do soberano para o
súdito”, passou-se progressivamente a construir uma circularidade instável entre poder, direito,
estado e cidadania, sob a dinâmica de uma moral pós-convencional.
Isto, a nosso ver, em decorrência das novas tecnologias da informação, que possibilitaram
o acesso ao conhecimento pela grande massa populacional, pois, a exemplo da tripartição do
poder formal em executivo, legislativo e judiciário, consolida-se uma tripartição do poder
material entre Estado, Mercado e Sociedade Civil Organizada/pluralista.
Especialmente a partir das últimas décadas do século XX, uma “Revolução dos
Conhecimentos” vem contribuindo para mudanças substanciais. As pessoas, sociologicamente
urbanizadas, vão-se tornando avessas às hierarquias tradicionais, pois o amplo acesso ao
conhecimento não é compatível com posturas de imposição unilateral. Ao atenuar as hierarquias
patrimonialistas, a “Revolução dos Conhecimentos” deflagra ondas emancipatórias.
Paralelamente à emancipação feminina, avança, na consciência moral e política do povo, um
sentimento-ideia de igualdade, que se expressa na forma de um movimento emancipatório,
insurrecional.
A democratização dos conhecimentos e das instituições, acionada pela expansão das
tecnologias da informação, instiga e, ao mesmo tempo, constrange milhões de cidadãos
limitados econômica, social e ecologicamente. Uma explosão de criatividade se dá ao lado de
um vulcão de frustrações. Multidões excluídas de fato se sentem, entretanto, incluídas de
direito.
Daquela combinação surge a matéria-prima de uma inusitada emancipação social.
Relações piramidais, fundadas em hierarquia e imposição, vão sendo substituídas por relações
prevalentemente horizontais, estruturadas mediante consensos instrumentais. Vivencia-se algo
que se poderia denominar neonomadismo virtual, pois é como se estivéssemos convivendo
numa pluralidade de mundos; não apenas em um lugar definido. Retorna-se à prevalência de
recursos maleáveis, de provimento incerto.
Acontecimentos em todos os rincões da terra chegam e afetam nossos valores e
sentimentos, quotidianamente. Somos emocionalmente desestabilizados por notícias que vêm de
longe, mas que entram em nossas casas como se os respectivos acontecimentos estivessem
ocorrendo ali nas vizinhanças. Em sua maioria são tragédias do quotidiano, transformadas em
espetáculo por uma mídia que nelas encontra substância para grandes audiências e
visualizações. São as grandes misérias do mundo a conformar cada um em suas misérias
pessoais.
No Brasil, milhões de jovens e suas famílias suburbanas, carentes da figura paterna, de
educação, de saúde e de sustentabilidade econômica, são induzidos ao uso da força e à prática
do ilícito, tentados a um atalho em direção aos confortos da modernidade. Talvez aí a principal
razão de tanta violência em sociedades abertas, de feição liberal democrática, em que os direitos
humanos ainda não foram efetivados. Em meio a todas essas mudanças, os cidadãos –
ressalvados os funcionários públicos estáveis – não mais se sentem ocupando um lugar seguro.
Cada um se percebe sem lugar, num lugar incerto ou, quando muito, num certo lugar. Nessas
circunstâncias, a desigualdade de oportunidades assume feições dramáticas, trágicas,
insustentáveis.
Sob esta globalização comunicativa, a cidadania vai-se universalizando e passa a ostentar
uma consciência mais clara do seu direito a uma vida digna, com aspiração de acesso a igual
liberdade, inclusive para divergir, e a uma igualdade de oportunidades, inclusive,
eventualmente, para a prática do ilícito.
Tudo isso faz combinar a continuidade de velhos conflitos com o desenvolvimento de
novos dissensos, numa inusitada metamorfose social. Velhos conflitos, assim entendidos
aqueles vinculados à posse e controle de bens materiais. Novos conflitos, aqueles relativos ao
acesso e ao compartilhamento dos bens e oportunidades do conhecimento, à oralidade
persuasiva, à consciência da intersubjetividade e, mais recentemente, à internet das coisas, à
expansão da inteligência da vida biológica, às aplicações da inteligência artificial. Velhos
conflitos, aqueles que têm como paradigmas a hierarquia, a coação, a discriminação, a
competição excludente, o fundamentalismo, o absolutismo. Novos conflitos, aqueles que têm
como paradigmas a horizontalidade, a persuasão, a igualdade de oportunidades, a competição
cooperativa, o pluralismo, o universalismo interdependente e suas dissipações.
Acentua William Uri16 (2000:108) que “A revolução dos conhecimentos nos oferece a
oportunidade mais promissora em dez mil anos de criar uma cocultura de coexistência,
cooperação e conflitos construtivos”.
Fábio Konder Comparato17 afirma que “Após séculos de interpretação unilateral do
fenômeno societário, o pensamento contemporâneo parece encaminhar-se hoje,
convergentemente, para uma visão integradora das sociedades e das civilizações”.
Mas essa visão integradora enfrenta uma contemporaneidade desafiada a lidar com o
artificialismo da vida urbana. Bilhões de pessoas amontoam--se, crescentemente, em grandes
cidades, sem condições ecológicas para a convivência humana. As pessoas embrutecem-se,
tornam-se rudes, cínicas e socialmente alienadas em suas multidões solitárias. Com isto, muito
daquele aspecto positivo e libertário da era dos conhecimentos é convertido em tédio,
impaciência, revolta e criminalidade.
Até porque, conforme Cláudio Souto, a modernidade não eliminou os valores de grupos
sociais vingativos, presos a uma moral do “olho por olho”, ancorada no Velho Testamento. A
despeito de tantas mudanças, persevera uma antinomia entre a moral legal e determinadas
expressões de moral social.18
Embora a globalização haja destruído, em seu trajeto, diques ou trincheiras que até então
se interpunham à comunicação entre os homens, cidades, regiões e Estados, é preciso
reconhecer que ela também trouxe consigo a ideologia do mercado em sua face mais predatória:
os cartéis internacionais de interesses pouco visíveis, o crime organizado, as máfias, o
terrorismo, etc., operando à escala mundial.19
Ademais, como que para anestesiar as misérias e solidões individuais de leitores e
expectadores, amplos setores da mídia e da indústria do espetáculo priorizam a dramatização
dos escândalos e catástrofes do quotidiano, tendo como foco a provocação de fortes emoções
em meio ao estresse, à depressão ou ao hiperativismo das populações. Essa ambiência
fortemente emocional e frenética concorre para os descontroles de consumo, de violência e de
corrupção, em especial entre povos com baixos níveis de desenvolvimento humano.
Segundo Bauman,20 a incerteza em relação ao futuro, a fragilidade da posição social e a
insegurança existencial aguçam dois impulsos ubíquos na “líquida modernidade” da miscelânea
ético-cultural dos tempos atuais. Um, de mixofobia (medo de se misturar, de participar, de se
confundir em meio aos outros), impulso este que conduz ao esconderijo em ilhas de semelhança
e mesmidade. Outro, de mixofilia (desejo frenético de participação na aventura do
conhecimento e do lazer), ao lado de multidões de homens e mulheres cansados da antiga
monotonia e dos controles da vida nas pequenas cidades. Essas polaridades estão a demandar
cuidados.
Bauman ainda destaca que essa diversidade demanda o desenvolvimento de novas
habilidades comunicativas, pois a diversidade dos convívios, em ambientes de grande
complexidade, supõe novas competências, habilidades e esforços para compreender e
comprometer-se com a diferença, e em meio a ela.
A convivência na diversidade é, pois, a inevitável resultante da era dos conhecimentos,
sendo necessário que aprendamos a lidar com isso, tanto nas relações de vizinhança quanto nas
relações planetárias, a partir de uma educação que nos ajude a avançar, em cada decisão, do
conhecimento à sapiência e desta à compreensão, consoante éticas de tolerância e de
responsabilidade.
Essa tolerância enfrenta a armadilha da reatividade imediatista, nas polêmicas pelas redes
sociais. Conforme assevera David Reybrouck, historiador belga, em entrevista nas páginas
amarelas da revista Veja do dia 28 de setembro de 2016, com a ascensão da mídia de massa e,
mais recentemente, das redes sociais, a campanha política tornou-se permanente. Isso trouxe
consequência para o bom funcionamento da democracia. As notícias que, no começo do século
XXI, eram acompanhadas minuto a minuto, nos últimos anos passaram a ser seguidas segundo a
segundo. Essa cultura das ações instantâneas resultou em uma cacofonia que sufocou o
verdadeiro debate. Nessa cacofonia, sobressaem as posições extremas, radicalizadas. O estresse
que cria no ambiente político tornou-se tão grande que não temos sido capazes de encontrar
espaço para manter discussões razoáveis, ponderadas, racionais, com base em informações
confiáveis.
Precisamos, portanto, desenvolver políticas públicas de capacitação para lidar,
construtivamente, com o dissenso, validando sentimentos e evitando o imediatismo reativo,
nesta ambiência de uma moral pós-convencional, em que, estando as pessoas mais libertas e
midiáticas, o elemento hierárquico é menos consistente.
Sobre essas habilidades devemos ter em conta as variadas circunstâncias em que ocorre o
conflito, sendo necessária a prévia identificação – em cada situação objetiva que se nos
apresente – dos valores, expectativas e interesses envolvidos. Os valores, expectativas e
interesses expressam a prevalência de uma cultura de dominação ou de uma cultura de paz, num
movimento pendular de variação de culturas, a depender de circunstâncias estruturais e do nível
de sensibilidade e habilitação das pessoas no trato concreto dos seus conflitos.
Como identificar, então, os valores, expectativas e interesses que caracterizam essas
culturas? Para facilitar a compreensão dessas diferenças, segue, adiante, o que entendemos
como elementos caracterizadores de cada uma dessas culturas.
Sob uma cultura de dominação prevalecem a desigualdade, a hierarquia, a verticalidade de
um elitismo hereditário ou simplesmente discriminatório, enquanto sob uma cultura de paz e
direitos humanos prevalece o sentimento de igualdade, em relações fundadas na autonomia da
vontade e tendencialmente horizontalizadas.
Sob uma cultura de dominação prevalecem a litigiosidade, a coatividade, o decisionismo,
enquanto sob uma cultura de paz e direitos humanos destacam-se a persuasão, a negociação e a
mediação.
Sob uma cultura de dominação prevalece o patrimonialismo, consubstanciado na
apropriação privativa e excludente dos recursos disponíveis, enquanto sob uma cultura de paz e
direitos humanos destacam-se o compartilhamento dos saberes e o emparceiramento na
exploração dos recursos.
Sob uma cultura de dominação prevalece a competição predatória, enquanto sob
uma cultura de paz e direitos humanos pratica-se uma negociação cooperativa, com vistas aos
interesses comuns, aos princípios, aos ganhos mútuos.
Sob uma cultura de dominação tende-se ao absolutismo, ao fundamentalismo, às crenças
abrangentes, enquanto, sob uma cultura de paz e direitos humanos, princípios gerais são
acolhidos como hipóteses na orientação de comportamentos e instituições democráticas,
inspiradas em doutrinas razoáveis, com respeito às diferenças.
Sob uma cultura de dominação, as pessoas são prestigiadas e distinguidas por seus sinais
exteriores de poder e riqueza, sendo discriminadas aquelas que não se enquadram nesse padrão,
enquanto, sob uma cultura de paz e direitos humanos, busca-se premiar e reconhecer o ser
humano em si e o meio ambiente saudável, afastando-se os preconceitos, rótulos e estereótipos.
Os mediadores experientes sabem que, em situações de disputa, a atitude dominadora, em
cada um dos mediandos, tende, inicialmente, a se destacar e que, na dinâmica do entendimento
facilitado pelo mediador – quando vão sendo saciados desejos e impulsos básicos e
evidenciados os interesses e necessidades comuns – a atitude colaborativa vai sendo construída.
Com efeito, vamos observando que as atitudes de imposição e de colaboração expressam, acima
de tudo, estados emocionais e padrões relacionais, que podem ser alterados no processo de
transformação do conflito, pela mediação.
Enfim, na contemporaneidade, em que a violência – apesar de mais difusa – tem-se
mostrado menos intensa do que nos últimos milênios da história humana, a predominância de
relações horizontais coloca-nos o desafio de promover mudanças e resolver disputas,
especialmente por meio da negociação, da mediação e do diálogo restaurativo, haja vista a
desconformidade e a perda relativa da eficácia dos instrumentos de força.
Grandes cidades são especialmente vulneráveis, pois a sua pujança e fraqueza vêm
justamente da massa crítica e da interconexão das suas redes. Rede elétrica sujeita a sabotagens,
desastres naturais, falhas. Rede de água e esgoto, rede de galerias pluviais, rede de gás,
gasodutos, oleodutos, redes de telefonia fixa e celular, redes de TV e dados a cabo e fibra, rede
de ruas e avenidas, redes de transporte público, ônibus, metrô, trens, etc. Soma-se a isso essa
mudança cultural que se converte num “protestantismo” de massas.
Eis um caso real: por nada ou por tudo, 50 pessoas incendeiam pneus, param avenidas ou
ferrovias críticas e sequestram as interconexões. Em 21 de janeiro de 2014, em São Paulo, um
menor (16 anos) pega uma moto, corre pela Marginal do Rio Tietê, perde o controle, choca-se
com um poste e morre. A família e os vizinhos resolveram protestar contra a morte do
adolescente. A pista local da Marginal do Rio Tietê foi fechada duas vezes, pela manhã e à
noite. Na manhã, o grupo colocou fogo em pedaços de madeira e pneus, bloqueando toda a pista
local. Motoristas tiverem de voltar na contramão para pegar a pista expressa. O Corpo de
Bombeiros foi acionado e conteve as chamas. Já no fim do dia, de dentro do conjunto
habitacional Cingapura, os manifestantes atiraram pedras e restos de entulho na pista, atingindo
carros. A Polícia Militar invadiu o conjunto habitacional para parar os manifestantes, atirando
bombas de gás e balas de borracha.
Parece haver uma raiva difusa no ar, uma raiva que vai além do sofrimento pela morte
desse jovem de 16 anos, ou mesmo pelo trânsito de São Paulo. Uma raiva que incendeia. Esses
problemas localizados são motivações, mas a causa dessas explosões emocionais pode estar na
frustração dos sentimentos-ideias de igualdade em choque contra antigas e profundas injustiças,
tudo isso agravado pela nossa ignorância comunicativa no trato construtivo dos conflitos.
Quais seriam os pensamentos por trás do uso da força? Mais do que simplesmente
associadas à mediação de conflitos, estas questões estão relacionadas às condições para
desenvolvimento de uma cultura de paz. Apoiamos as nossas reflexões, a seguir, nas ideias do
Marshall Rosenberg.
Os pensamentos por trás do uso da força seriam: a) evitar danos e injustiça (força
protetora) e/ou b) fazer as pessoas sofrerem pelo mal que praticaram (força punitiva). Quando
praticamos o uso protetor da força a nossa intenção é assegurar a vida e os direitos que
desejamos proteger. Por exemplo, a força utilizada pelo pai que impede a criança de atravessar a
rua sozinha; a força utilizada pela polícia que aparta a briga física entre dois homens; a força
que você utiliza para se proteger de quem lhe ameaça com uma arma de fogo.
Quem usa a força protetora entende que as pessoas são capazes de se prejudicar e aos
outros devido a algum tipo de ignorância como, por exemplo, a) a crença de que nós temos o
direito de punir os outros pelos que eles possam ter feito erradamente; b) a falta de consciência
dos problemas que serão deflagrados pelas nossas violências; e, especialmente, c) o
desconhecimento de que as nossas necessidades podem ser atendidas sem prejudicar os outros.
Outra hipótese de ignorância está nos comportamentos patológicos ou delirantes, de alguém.
Assim, em face de qualquer dessas hipóteses de ignorância, a força protetiva é voltada para
educar, não para punir.
Quem usa a força punitiva baseia-se na crença de que as pessoas fazem coisas erradas
porque são más, e de que, para corrigir a maldade, é preciso puni-las para a) sofrerem o
suficiente e perceberem como as suas ações foram erradas; b) arrependerem-se; c) mudarem o
seu comportamento. “Ocorre que, na prática, é mais provável que, em vez de gerarem
arrependimento, ações punitivas produzam ressentimento e hostilidade, e que alimentem a
resistência ao próprio comportamento que estamos buscando.”21
O castigo punitivo físico, como bater nos filhos, nas pessoas, é um exemplo do uso
punitivo da força. Outros adotam a punição psicológica, rotulando o filho de “imaturo”,
“problemático”, “egoísta” etc., quando ele não se comporta convenientemente. Pais alegam que
este é o modo de estabelecer limites. Que, no futuro, esses mesmos filhos irão reconhecer como
isto foi importante. Como pai de três filhos, valido esses sentimentos, mas não vi e não vejo a
necessidade do castigo punitivo. Quando falhou o diálogo, o entendimento, usei a “cadeira” e
outras privações de movimento e de comunicação; isto ocorreu didaticamente, construindo o
consenso possível e utilizando a força como protetora da consciência de responsabilidade social.
O sentido desejável não pode ser o de punição, ou de uso da força até mesmo para
proteger, mas o de consolidação de uma consciência de responsabilidade social, quando o
consenso não bastar. Rosenberg, com sua experiência de terapeuta, questiona o seguinte:
quando os pais escolhem usar a força, podem ganhar a batalha de obrigar as crianças a fazer o
que eles querem, mas, nesse processo, não estarão perpetuando uma norma social que justifica a
violência como meio de resolver as diferenças?
Diante desses conceitos, costumamos convidar os estudantes a um círculo de diálogo em
torno de questões como estas a seguir: O que constitui o uso punitivo da força? O que seria o
uso protetor da força? A quem cabe a iniciativa pelo uso protetor da força? Os grupos que,
tomados de raiva ou de ideologia, quebram bens públicos e particulares estão usando a força
como punição ou como proteção? É possível evoluirmos para uma prática social de uso protetor
(não punitivo) da força e apenas quando o diálogo for inviável? Você tem ideia do poder da
resistência pacífica?
1
RUMMEL, Rudolf J. Understanding conflict and war. New York: John Wiley and Sons, 1976, v. II,
p 235-239, apud SERPA, Maria de Nazareth. Mediação, uma solução judiciosa para conflitos. Belo
Horizonte: Del Rey, 2017.
2
RUMMEL, Rudolf J. op. cit. v. II, p. 62 e v. III, p. 63, apud SERPA, Maria de Nazareth. Mediação,
uma solução judiciosa para conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2017.
3
JANDT, F.E. Conflict resolution through communication. New York, 1984, apud SERPA, Maria de
Nazareth. Mediação, uma solução judiciosa para conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2017.
4
RATTON JR., José Luiz de Amorim. Racionalidade, política e normalidade do crime em Émile
Durkheim. Revista Científica Argumentum da Faculdade Marista do Recife, Recife: Faculdade
Marista, vol. 1, 2005, p. 111-129.
5
PELIZZOLI, Marcelo L. Paz e conflito. Visão sistêmico-fenomenológica. In: PELIZZOLI, Marcelo
(Org.). Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010. p. 13-31.
6
DEUSTCH, Morton. A Resolução do Conflito: processos construtivos e destrutivos. New Haven (CT)
Yale University Press, 1977 – traduzido e parcialmente publicado em AZEVEDO, André Gomma de
(org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. V 3. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2004.
7
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá
Jacobina. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 51.
8
URY, William. Chegando à paz – Resolvendo conflitos em casa, no trabalho e no dia a dia. Rio de
Janeiro: Campus, 2000. p. 54-66.
9
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína
Marcoantônio. Porto AlegreS: L&PM, 2016. p. 30-36.
10
DAN, Wei. Mediação na China: passado, presente e futuro. In: CASELLA, Paulo Borba; SOUZA,
Luciane Moessa de (Org.). Mediação de conflitos. Novo paradigma de acesso à justiça. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 342.
11
SANTOS, Boaventura de Sousa. O Estado heterogêneo e o pluralismo jurídico. Conflito e
transformação social. Uma paisagem das justiças em Moçambique. Boaventura de Sousa Santos e
João Carlos Trindade (orgs.). Porto: Edições Afrontamento, 2003. 1.º vol., p. 47-89.
12
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 290-292.
13
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 31. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006. p. 18.
14
ALMEIDA, Alberto Carlos. A Cabeça do Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 45-110.
15
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 5. ed. São Paulo: Colombo, 2012. 929 p.
16
URI, William. Op. cit., p. 108.
17
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 18, 716 p.
18
SOUTO, Cláudio. Tempo do direito alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997. p. 79-81.
19
MAYER, Dayse de Vasconcelos. A democracia capturada: a face oculta do poder: um ensaio
jurídico-político. São Paulo: Método, 2009. p. 254.
20
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 131-138.
21
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta. Técnicas para aprimorar relacionamentos
pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006. p. 223-229.
II