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IMAGEM NO LIVRO DE FICÇÃO: EXPERIÊNCIA DE LEITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Jaison Luís CRESTANI,


Juvenal ZANCHETTA JR.1

Resumo: O presente texto reporta experiência de leitura de narrativas ilustradas na 5ª série do


Ensino Fundamental. Tomando-se como objeto de leitura narrativas complexas,
envolvendo a articulação entre texto verbal e imagens, por meio de entrevistas
individuais foram coletadas as impressões de leitura dos alunos sob quatro diferentes
obras, em quatro diferentes situações. Os dados obtidos permitiram o esboço de
diferentes perfis de leitura (levando-se em conta o papel da imagem na compreensão
das obras) e a sugestão de atitudes para o enfrentamento dessas narrativas em sala
de aula.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As gerações contemporâneas convivem cada vez mais com uma cultura baseada
mais em imagens e representações visuais do que na componente verbal. O enfrentamento de um
mundo em que as imagens influem decisivamente torna-se um duplo desafio para a escola. Por
um lado, é uma instituição ainda calcada na cultura escrita; por outro, há uma grave lacuna de
abordagem didática das imagens, sobretudo quando se trata de ilustração de livros de ficção para
crianças. O trabalho com a literatura infantil, por envolver a integração entre texto e imagem, torna-
se um desafio complexo. Em muitos casos, a ilustração articula-se com as palavras para a
composição da narrativa. A complexidade tende a ser ainda maior quando o texto e a imagem se
complementam, ao mesmo tempo em que mantêm certa autonomia , gerando possibilidades
diversas de combinação de sentido. Esse campo potencial de trabalho oferecido pela literatura
infantil, por outro lado, põe-se diante de um quadro de formação de professores que praticamente
despreza o estudo da imagem, dificultando o trabalho com suportes híbridos.

Embora considere-se o fato de ser uma atividade em parte individual e solitária, a


leitura tem em seu percurso um terreno em que o professor pode atuar, mesmo que não se saiba
ao certo até que ponto isso é possível. Trata-se justamente do espaço da narrativa linear
propriamente dita. É justamente na superfície do texto, seja ele verbal ou icônico, o terreno em que
o professor pode colaborar, ajudando no entendimento de elementos, articulações, situações que
permitam ao aluno a amarração da história como um todo orgânico. Com base nesse pressuposto,
uma das frentes do projeto TEPE2 investiga a leitura de imagens na escola pública de Ensino

1
Também colaboraram na redação deste artigo Adriane Ribeiro Goulart, Lucas Ramon Rosa e Silva, Marla Cecília Gil de Oliveira Enir,
Priscila Garms Thimoteo, Raquel Gutierrez Oliveira e Rita de Cássia Lamino de Araújo. Graduandos em Letras (Unesp-Assis), estes
nomes compuseram o grupo de pesquisa, que contou com recursos do Núcleo de Ensino – Unesp. O aluno Jaison Luís Crestani foi
bolsista do projeto.
2
Iniciado em 1999, o projeto Tempo, Espaço e Texto na Escola (TEPE), coordenado por Juvenal Zanchetta Jr., investiga a evolução da
percepção dos alunos do Ensino Fundamental acerca dos conceitos de texto e de tempo histórico. Entre os suportes observados (tanto

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Fundamental. Em 2003, a ênfase deu-se na leitura dos alunos de 5ª série em relação ao
fotojornalismo e à literatura para crianças e jovens. Buscava-se verificar as diferenças de
percepção da fotografia e da ilustração no livro de ficção. Em 2004, os esforços foram centrados
apenas nos livros de ficção, para averiguação da percepção dos alunos acerca da articulação
entre textos e imagens (Zanchetta, 2004; Faria, 2004).

Na execução da proposta em 2004, o trabalho foi desenvolvido com uma turma de


alunos de 5ª série, por diversas razões: a) trata-se de uma faixa de escolaridade em que se
percebe escassez de trabalhos aplicados; b) são alunos que guardam vivamente os traços
construídos na alfabetização e ainda não plenamente adaptados à dinâmica setorial da segunda
metade do Ensino Fundamental, o que tende a nos fazer ver o espontaneísmo com maior
facilidade; c) trata-se de faixa etária que ainda interage bastante com a presença de livros com
maior volume de ilustrações (na medida em que avançam na escolaridade, os alunos vêem os
livros de imagens substituídos por outros em que as ilustrações são escanteadas); d) são alunos
que ainda tendem a fabular mais freqüente e explicitamente, o que permitirá verificar o quanto a
fabulação se revela na ficção infanto-juvenil.

A definição da turma de alunos de 5ª série teve como critério a seleção de um grupo


que englobasse indivíduos da classe D, faixa econômica mais recorrente na escola. Além disso,
procurou-se selecionar uma turma ordinária de alunos, isto é, não composta por indivíduos
marcadamente aplicados e com excelente desempenho nem mesmo por alunos altamente
resistentes ou problemáticos. Enfim, avistamos um grupo representativo em termos sócio-
econômicos e de desempenho escolar.

Optou-se por livros de ficção fartamente ilustrados e com estruturas narrativas


desafiadoras: Algodão-Doce, de José Cássio de Cerqueira César; A Cuca vem pegar; A risada do
Saci e O papo da Cabra-Cabriola, estes três últimos livros, pertencentes à coleção Contos de
Assustar Meninos (Editora Ática), são de autoria de Regina Chamlian. Todas obras foram
ilustradas por Helena Alexandrino.

As narrativas foram trabalhadas com amparo da pesquisa-ação, tanto para o


desenvolvimento dos instrumentos para a avaliação das práticas de leituras dos estudantes, como
também para a configuração de procedimental destinado à melhorar o modo de enfrentamento de
tais obras em sala de aula. Inicialmente, foram desenvolvidas atividades de cunho diagnóstico,

para análise como para produção) estão materiais de imprensa e obras literárias. Entre os gêneros textuais avaliados com maior
atenção estão a notícia, o fotojornalismo e a literatura para crianças. O referido projeto conta em seu percurso com graduandos dos
cursos de História e Letras da Unesp-Assis. O trabalho de campo tem sido desenvolvido na Escola Estadual Cleophânia Galvão da
Silva, em Assis. Em 2004, o projeto contou, principalmente, com a colaboração da coordenadora pedagógica Sonia Ceolim Galvão e da
professora de Língua Portuguesa, Neide Ganime.

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com o intuito de destacar algumas características gerais do processo de leitura, sobretudo, no que
diz respeito à articulação entre o texto e a imagem.

Como primeiro referencial diagnóstico, as impressões de leitura dos alunos foram


classificadas de acordo com um quadro tipológico que se divide nos seguintes níveis de leitura:
leitura descritiva, leitura parafrástica e leitura autônoma, de acordo com características apontadas
por Zanchetta (Faria, 2004). Tais características serão apresentadas com maior detalhe ao longo
da descrição da leitura dos alunos.

Nas últimas e principalmente na última obra sob análise, foram propostas sugestões
para o trabalho pedagógico com o texto de ficção com imagens. A continuidade deste texto
procura mostrar, passo a passo, o conjunto de atividades propostas, ora de maneira descritiva, ora
em termos de reflexão sobre os resultados e sobre a pertinência das ações desenvolvidas.

1. ALGODÃO-DOCE

O primeiro livro trabalhado foi Algodão Doce. Helô, uma garota que gostava de
algodão-doce, sai de casa em direção ao carrinho de doce do seu Ananias. A menina compra um
algodão-doce e ganha outro de presente. Depois de comer, volta para casa, adormece e dali parte
para uma aventura nas nuvens com seu Ananias e a amiga Renata. No céu, comem tanta nuvem
(como se fosse algodão-doce), que ficam sem lugar para colocar os pés e acabam caindo.
Despertando da aventura nas nuvens, Helô vê, da janela de sua casa, seu Ananias com pressa,
pois uma tempestade se armava no céu.

Trata-se de uma história fartamente ilustrada e com uma estrutura narrativa


sugestiva. Embora tenha uma configuração relativamente convencional, com um começo, uma
situação de desequilíbrio e um fecho, tem-se uma narrativa circular: o final parece ser o início da
trama. Por outro lado, é uma história desafiadora: Helô dormiu e teve um sonho, mas é ambígua a
informação a esse respeito, não se sabendo o quanto da história é sonho da garota. As ilustrações
são bastante expressivas e têm vida própria. É possível compreender a história apenas com a
amarração proporcionada pelas imagens; aliás, está na imagem grande parte da polissemia da
história. O texto, por sua vez, também conta a história, mas sob um ângulo mais linear, portando
os diálogos e a informação das grandes ações ali presentes.

Em sala de aula, o livro foi lido pausadamente por um integrante do grupo e


mostrado página por página para os alunos por meio de transparências coloridas. Os alunos não
receberam uma cópia do livro, em vez disso, apenas acompanharam a leitura, observando as
imagens e o texto escrito exposto nas transparências. Após a leitura da história, os alunos foram
convidados a participar de entrevista com 07 questões específicas, para se determinar o nível de

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compreensão da narrativa por parte deles. A informação constituiu uma forma de se evitar a
dificuldade de escrita apresentada por grande parte dos alunos desse estágio escolar. Além disso,
em anos anteriores verificou-se que os alunos, quando convidados a reescrever a história,
geralmente amparam-se na informação escrita já disponível, transparecendo em seus
depoimentos, basicamente, o referencial verbal e menos o imagético. Assim, a opção pela
entrevista oral tinha como propósito uma sondagem mais direta acerca da relação entre o leitor e a
narrativa, dentro das condições oferecidas.

As entrevistas foram realizadas individualmente. A professora deu continuidade às


suas atividades escolares, enquanto os pesquisadores entrevistava os alunos, uma a um, fora da
sala. Nessa primeira abordagem, foram tomados 18 depoimentos de alunos. Dentre os itens
levantados pela entrevista, merece destaque a recontagem da história – um exercício que se fez
bastante pertinente para diagnosticar o nível de compreensão do texto alcançado pelos alunos.

1.1 Leitura com predominância descritiva

Esse nível de leitura é marcado pela descrição pontual dos quadros da história. Há
uma amarração mínima, garantida pelas ligações primárias entre as grandes ações da narrativa.
Esse tipo de percepção toma a narrativa de maneira truncada: os alunos apenas vêem certas
situações, sem atentar para a dinâmica de cada situação e para detalhes menos evidentes
presentes na palavra e na ilustração.

Nesse plano, o leitor tende a destacar os elementos que vê em cada quadro,


individualizando-os e lendo-os como retratos fechados, promovendo ligação tênue, por vezes
equivocada, entre os quadros. Além disso, a leitura quadro a quadro, por estar menos atenta ao
conjunto, pode implicar problemas de entendimento, chegando-se a interpretações diferentes (de
personagens e de situações) daquela proposta pela história linear.

Eu lembro da menina pulando, do algodão doce e o ...; como é mesmo o nome do outro
cara?...; e ele buscando ela na sorveteria, ela brincando com a Renata e aquele cabrinha
pedindo ajuda. Qual é o outro mesmo? (fica pensando...). Nossa... ah, o avião passando
e ela levando um susto muito grande e quase caiu das nuvens.

Uma outra característica percebida nesse perfil de leitura é a precariedade de


referências. Por descrever os quadros isoladamente, a leitura tende a destacar apenas a
marcação das ações, sobrepondo-as, sem organizá-las por meio de indicadores temporais,
espaciais e situacionais da narrativa. Desse modo, a leitura não constrói a narrativa, antes reporta
alguns de seus elementos, muitas vezes elencados aleatoriamente. O preenchimento das lacunas
do texto ou a amarração entre as situações está ancorada na experiência pessoal do leitor e
menos nas indicações propostas pela ilustração, como se observa no seguinte trecho:

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Comeram toda a nuvem e ela não agüentou mais eles. Eles caíram e se arrebentaram no
3
chão.

Finalmente, convém ressaltar que a descrição, embora esteja na base das leituras
mais fragmentadas, também está na composição de diversos outros perfis de leitura. Entretanto,
torna-se problemática quando ocorre isoladamente. Há casos de percepção bastante deficiente e
equivocada, que sugerem desde dificuldades de entendimento de códigos gráficos até problemas
graves de leitura e de alfabetização.

1.2 Leitura com predominância da paráfrase

Neste plano, o leitor demonstra dominar a narrativa em seus próprios elementos. O


aluno consegue dar conta do conjunto da história, pressupondo conhecer os pontos mais
relevantes da história (a situação inicial, a situação de desequilíbrio e o desfecho). A história é
recontada com certa fidelidade ao texto original (escrito e ilustrado). Entretanto, a recontagem
tende a ser desprovida de aspectos menos superficiais e também há pouco investimento em
termos de indicações temporais e espaciais.

Diversas são as formas de concatenação dos quadros (e...e..., daí...daí..., aí...aí...,


quando...quando...). Elas ainda são marcadas por certa horizontalidade, porque as situações são
encadeadas como se fossem todas elas semelhantes (em termos de intensidade, de gravidade
etc.). Provavelmente, o que ocorre é a falta de recursos lingüísticos para expressar ligações
complexas. De todo modo, neste plano de leitura, uma atitude evidente é o apego aos elementos
mais visíveis da narrativa. A partir daí, a leitura se dá quadro a quadro ou de forma mais conjunta
dos elementos, obedecendo, porém, a uma espécie de linha horizontal do texto, o que dificulta a
percepção de associações mais intrincadas.

A menina chegou da escola, jogou os livros, os cadernos, as canetas e foi pro seu cofre
levar o dinheiro pra comprar algodão doce e ganhou um e depois o moço mandou ela
fechar os olhos e depois mandou ela abrir e ela estava no meio de nuvens de algodão
doce, daí ela achou, encontrou uma amiga e, que tava tomando um sorvete, ofereceu pra
ela, ela não quis e ela perguntou pra ela como que ela fez pra tá lá, na outra nuvem. Daí
ela disse que o moço convidou ela e daí a menina convidou ela pra brincar e eles
aceitaram. Depois eles pulando, pulando, depois teve uma hora que o homem tava
ajudando e ele estava afundando. Depois elas estavam dando risada como que eles iam
ver. As meninas tavam dando risada de como eles lá debaixo iam ver a perna dele, lá no
ar, lá em cima. Daí elas puxaram e conseguiram puxar ele e foram comendo os
pedacinhos de algodão doce, daí ela voltaram lá onde elas estavam e o moço pegou o
seu carrinho e saiu correndo e que ia, estava havendo um temporal.

3
Tal situação não acontece na história. Ao cair da nuvem, Helô acorda. No entanto, ao ver a ilustração de que a menina estava caindo,
o aluno infere que ela irá se estatelar no chão.

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Embora os leitores consigam recriar uma narrativa mais associativa, com relativa
autonomia e individualidade, de um modo geral não conseguem ultrapassar a superfície do texto.
Os depoimentos, em sua maioria, ainda são desprovidos de inferências e comentários reflexivos
ou mais abrangentes do conjunto da história. Nesse caso, o principal indicativo dessa carência é a
não percepção de que a aventura de Helô nas nuvens trata-se de um sonho.

1.3 Leitura autônoma ou reflexiva

Neste plano, o leitor apresenta sinais claros de que compreendeu a história. Sua
leitura se desprende das ilustrações e amarra com facilidade os diversos momentos da narrativa a
partir dos desenhos. Na leitura reflexiva o aluno é capaz de transitar pelo texto, indo e vindo,
fazendo marcações temporais e espaciais, afora considerações sobre as personagens.

Trata-se de uma situação de leitura que, além de pressupor o domínio pleno do


percurso da narrativa, tende a observar a história não apenas como uma sucessão de episódios.
Atitudes de memorização, compreensão e imaginação ganham contorno mais visível e integrado,
ou seja, cada situação narrada se relaciona com o conjunto da história. Uma das marcas mais
representativas desse processo está nas inferências e interpretações que o leitor consegue
estabelecer, para completar a história e mesmo suscitar novos desdobramentos para o percurso
original. Nesse estágio de leitura, os depoimentos dos alunos sugerem um entendimento
aprofundado da estrutura da narrativa.

Embora não se tenha encontrado relatos que possam ser enquadrados inteiramente
nesse nível de leitura, pode-se dizer que alguns relatos apresentam indícios de uma leitura
autônoma. Em geral, os alunos não narram incorporando detalhes da ilustração; e isso faz com
que a leitura se distancia do original, por amparar-se apenas nas imagens.

No caso do presente livro, as marcas de uma leitura reflexiva se revelariam pelas


indicações de que o aluno percebeu a questão do sonho. A passagem para o mundo do sonho é
representada por um desenho em que Helô é levantada pelo braço para fora das linhas da página;
mas isso é lembrado por poucos alunos.

A menina tava com dinheiro e aí ela comprou algodão doce. Aí ela comprou outro, aí ela
começou a andar, andar. Aí ela viu a colega dela na sorveteria, aí ela começou a andar,
andar. Aí ela olhou pro céu, viu as nuvens branquinhas e imaginou que elas podiam se
chamar nuvens de algodão doce, porque eram branquinhas. Aí ela foi pra casa, deu sono
e ela sonhou que tava no céu.

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O relato do aluno em questão carrega consigo marcas evidentes da oralidade;
praticamente todas as sentenças são interligadas por meio do uso constante da expressão aí.
Apesar disso, podemos dizer que o seu depoimento se destaca dentre os demais, revelando
capacidade de síntese e uma percepção mais articulada. O aluno dá indicações claras de que
obteve um domínio aprofundado da estrutura narrativa, mostrando que conseguiu entender a
respeito da questão do sonho. Um outro aluno também revelou certa autonomia e individualidade
em seu relato. Este, por sua vez, em lugar da síntese, apresenta grande riqueza de detalhes na
recontagem da história.

Fala de uma menina que gostava de comer algodão doce e que quando ela foi comprar
algodão doce ela encontrou sua amiga Renata na sorveteria comprando sorvete. E ela foi
andando, viu sua amiga e falou:- Oi. E ela continuou andando, depois ela parou e
pensou: - como as nuvens são parecidas com algodão doce, sem tirar nem por. De
repente, ela passeou bastante, foi embora para sua casa, deitou no sofá e o sono pegou
ela rapidinho e ela dormiu aquele sono tranqüilo, quando uma voz conhecida chamou: -
Helô, Helô. Aí era o seu Ananias, quem veio perturbar o sono dela. Ele pegou e falou
assim pra ela: Helô, feche os olhos e estenda sua mão. Aí ela fechou os olhos, ele pegou
na mão dela e eles voaram. Aí chegou a uma certa altura, seu Ananias falou: - Pode
abrir os olhos, aí ela não acreditou que estava naquele lugar. Quando ela ouviu uma voz
bem baixinho atrás dela era sua amiga Renata com sorvete de chocolate e ofereceu pra
ela e ela disse obrigada. Antes disso, seu Ananias perguntou se ela queria experimentar
a nuvem de algodão doce. Aí ela ouviu um barulho de avião que tava vindo, ela levou um
susto e quase caiu da nuvem. Aí, tava escrito lá assim:-também ela não ia desistir de
experimentar as nuvens. Daí ela pulou pra nuvem de cima e os três comeram, comeram,
comeram, e as nuvens ficaram pequenas e eles subiram pra outras. Aí eles subiram pra
outra nuvem, daí eles comeram tanto que a nuvem ficou pequena e não agüentou os três
amigos. Os três caíram e o vento era tão forte que fez a Heloísa girar como parafuso.

A leitura transcrita acima mostra domínio pleno das situações da história original,
incluindo-se a percepção de referências temporais. Sua diferença em relação à leitura descritiva e
à parafrástica está na desenvoltura do encadeamento proposto, com impressões pessoais
ancoradas no texto e na ilustração, e não apenas na experiência pessoal do aluno.

Finalmente, a primeira e última página do livro fazem supor que toda a história teria
sido um sonho, do qual Helô acorda apenas na última página: a composição dos elementos no
início e no final do livro não inviabilizam tal possibilidade. Nenhum aluno aventou a possibilidade
de se estar diante de um sonho dentro um sonho (algo que as ilustrações parecem insinuar). Em
vez disso, os estudantes se baseiam mais propriamente na concretude do texto escrito.

Não se pode dizer que seja possível estabelecer um limite preciso entre os
diferentes níveis de leitura, já que estamos no terreno da subjetividade, dos contextos pessoais e
sociais. Há apenas indicações que apontam mais para um tipo de leitura do que para outro. A
despeito disso, foi possível determinar que a maioria das leituras analisadas nessa primeira
aplicação oscila entre a descrição e a paráfrase.

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2. A CUCA VEM PEGAR

A segunda etapa do trabalho foi realizada com o livro A Cuca vem pegar. A partir da
constatação de que, no estágio anterior, a assimilação da história por parte dos alunos foi bastante
deficiente, o grupo optou por uma alteração na metodologia de abordagem. Os alunos deveriam
ter um contato mais concreto e direto com o livro. Assim, em lugar de uma leitura mediada pelo
professor, proporíamos a leitura pelos próprios alunos. Foram adquiridos seis exemplares da obra,
a fim de se criar uma situação concreta de leitura. Cada integrante do grupo retirava um aluno da
classe e, num outro espaço, acompanhava a leitura individual do aluno, realizando, em seguida,
uma entrevista para observar o nível de compreensão em relação à obra proposta. Embora mais
difícil de ocorrer no dia-a-dia, esse tipo de sistemática ainda é possível no âmbito escolar, havendo
a disponibilidade de livros.

O livro de Chamlian & Alexandrino conta a história de Julinho, um menino que dizia
não ter medo da Cuca. De acordo com a narrativa, Antônia sempre cantava a canção da Cuca
antes de Julinho dormir. Uma noite, Julinho se zangou; disse que a Cuca não existia e que não era
mais para a Antônia cantar essa canção. Antônia magoada deixa o quarto e o menino fica
aborrecido. O vento batendo na cortina produzia sombras esvoaçantes no teto do quarto. Um
barulho no telhado deixou o menino ainda mais assustado. Em meio a isso, Julinho tenta dormir,
muda de posição, cobre a cabeça com o travesseiro e pensa apavorado “eu to dormindo, eu to
dormindo”.

Nisso aparece a Cuca, que pega o menino e coloca-o num saco. Em seguida,
transforma-se numa coruja e leva-o para um castelo. No castelo, em companhia de uma centena
de crianças aprisionadas pela Cuca, Julinho passa por grandes aventuras, até ser salvo por um
grilo gigante que o leva de volta para casa e coloca-o para dormir. Então, Julinho pede para o grilo
cantar a canção da Cuca. Com os olhos pesados de sono, ele acha engraçado o fato de o grilo ter
a mesma voz da Antônia.

Novamente, trata-se de uma história fartamente ilustrada e com uma estrutura


narrativa complexa. Embora também tenha uma configuração relativamente convencional, com um
começo, uma situação de desequilíbrio e um fecho, tem-se uma narrativa circular: o final remete
ao início da trama. Isso se torna evidente ao se observar a segunda e a última ilustração. As
imagens são basicamente as mesmas, alternando-se apenas a figura de Antônia para a do grilo
gigante. A ilustração oferece subsídios concretos para que o aluno consiga estabelecer mais
facilmente as relações de sentido exigidas pelo livro, como é o caso da associação entre o
segundo e o último desenho, que alude ao caráter circular da narrativa.

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Outra vez, estamos diante de uma história desafiadora: Julinho dormiu e teve um
sonho, mas a informação a esse respeito é camuflada, não se sabe exatamente o momento em
que ocorre a passagem da realidade para o sonho. Durante o tempo em que esteve no castelo,
Julinho tem um outro sonho, o que sugere que a história trata-se de um sonho dentro de um outro
sonho. A inclusão de um segundo sonho no decorrer da história contribui para complicar ainda
mais a percepção do grande sonho que permeia toda a história do livro.

Na abordagem da presente narrativa, após a leitura do livro, seguiu-se uma


entrevista muito mais detalhada que a anterior, procurando levantar diversos itens. Dentre eles,
destacam-se a recontagem da história a partir das ilustrações, a relação associativa entre o
segundo e o último desenho e, conseqüentemente, entre a figura do grilo e a de Antônia. Os
alunos entrevistados apresentaram entendimentos variados e em níveis diferentes.

Roteiro da entrevista

As informações obtidas formaram um corpus diversificado e relevante para a


continuidade do trabalho. Com os novos resultados, foi possível especular sobre um quadro
tipológico de leituras mais ampliado, descrito da seguinte forma:

2.1 Leitura quadro a quadro


Trata-se de uma leitura fragmentada, mas com alguma amarração mínima (embora
equivocada) da narrativa. O aluno não consegue alinhavar a narrativa com os elementos dela
própria. É preciso trazer elementos de seu horizonte de expectativas para fazer isso. O relato
abaixo pode ser tomado como um exemplo de leitura quadro a quadro. A recontagem da história
apresenta uma amarração e, por vezes, equivocada.

Começou quando a Antonia cantava uma musiquinha para o menino e daí ele falava que
não era mais neném. Daí ele estava imaginando que a Cuca não existe. Daí ele ouviu
passos em cima do telhado e a Cuca pegou o menino, pôs ele no saco e levou para a
casa dela e falou que ia fazer uma festa. Daí mandou o menino buscar pimenta. Depois
ela fez um chá para ele, mas ele não queria tomar e o anão falou para o menino beber
porque senão a Cuca ia comer ele. Daí todas as crianças foram buscar pimenta.
Enquanto a Cuca estava fazendo a sopa, o menino estava pegando o tempero, que era o
chá do sono pesado. Daí na festa os convidados estavam reclamando que não tinham
comido nada, daí ela trouxe a sopa para eles comer. Então a Cuca estava com dor de
barriga e mandou o menino tirar o grilo da gaiola para levar para ela. Mas o menino falou
que não ia levar o grilo para a bruxa, daí então ele soltou o grilo. Daí todas as crianças
montaram no grilo e fugiram da Cuca. Daí era o grilo que cantava para a Cuca.

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Além disso, o aluno não consegue estabelecer uma relação adequada entre a figura
do grilo e a da Antônia, não identifica nem o primeiro e nem o segundo sonho. Ao ser questionado
sobre a relação existente entre Antônia e o grilo, o aluno responde: “A Antônia é uma pessoa e o
grilo é um inseto. Na história os dois não se conheceram”. Ademais, em alguns casos, o aluno
demonstra ter dificuldades para ligar o nome das personagens às figuras que as representam.

2.2 Leitura pontual

Trata-se de um perfil descritivo de leitura, um pouco menos fragmentado e já mais


ligado à narrativa. A limitação estaria no fato de que apenas alguns elementos se destacam na
leitura, enquanto que outros são deixados de lado ou esquecidos quando da reconstituição da
história. O aluno estabelece as ligações que permitem constituir a história, mas destaca apenas
alguns elementos, em geral aqueles que mais o impressionaram.

Aqui é a mulher que contava histórias para o menino. Um dia, o menino ficou com medo de que
a Cuca ia pegar ele. Ouviu um barulho no telhado e a Cuca entrou no quarto. Ela colocou ele no
saco e se transformou numa coruja enorme. A Cuca chegou no castelo, e se transformou de
novo numa velha senhora. Levou o menino para um anão que trabalhava para ela. O anão
sempre queria que ele tomasse o chá para dormir. Nessa noite, a Cuca colocou as crianças
dentro de um saco. Aí ia ter uma festa. A Cuca comeu muito e ficou com dor na barriga.

No caso acima, o aluno teve uma compreensão superficial. Apresentou dificuldades


para recontar a história, fazendo uma descrição sintética e fragmentada dos quadros principais do
livro. Apesar de ter consciência do caráter ficcional do texto – conforme supôs ao dizer, em outra
pergunta, que os desenhos mostram como se fosse na vida real – ele ainda carece de domínios
em relação à estrutura narrativa do texto literário. Sua atenção voltou-se exclusivamente para as
ações da história, sem levar em conta os recursos de efeito mais evidentes do livro. Isso revela a
não percepção do sonho que permeia toda a história e não associação entre a figura do grilo e a
da Antônia.

Também com perfil ainda restrito à descrição, esse tipo de leitura oferece elementos
para se entender individualmente os quadros de ilustração. O aluno é capaz de ampliar de certa
maneira cada ilustração (ou parte delas). Ainda assim, a falta de domínio sobre a narrativa dificulta
a amarração mais complexa dos quadros analisados.

Aqui ta começando uma senhora, ela ta cantando musiquinha pro Julinho dormir. Aqui o
Julinho tava quase dormindo, mas ai a porta estava entreaberta, ai o nariz da mulher
ficou mais grande e o queixo também ficou parecendo um monstro. Aqui a casa do
Julinho e a Cuca tava vendo ele dormir, pra ele roubar ela roubar ele com saco na mão. E
aqui a Cuca ia atravessar o telhado, mas ele escorregou, o saco ficou preso e ela caiu
pelo telhado. Aqui eu não vou lembrar. Ai aqui o anãozinho e Julinho , ele não tava
conseguindo dormir por causa do medo da Cuca, ai ele foi pedir pro anãozinho e o
anãozinho trouxe um pouco de café pra ele beber. E aqui ele não tava conseguindo
dormir por causa do medo da Cuca, ai ele foi pedir pro anãozinho e o anãozinho trouxe

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um pouco de café pra ele beber. E aqui ele não tava conseguindo dormir e o anãozinho
ajudou ele a se deitar na cama, cobrindo ele certinho.

A fragmentação se mostra menos evidente, pois o leitor consegue relatar com


desenvoltura os aspectos os mais destacados da história, reunindo-os em blocos. A limitação
estaria na falta de domínio sobre a estrutura narrativa, o que dificulta a amarração dos blocos,
comprometendo em parte o entendimento acerca da história linear.

2.3 Leitura parafrástica

Nesse plano, o leitor é capaz de ler a superfície do texto (fazendo o mesmo quando
convidado a ler pelas ilustrações). Não estabelece ligações abstratas entre as informações, mas
sabe organizar a narrativa tal como ela se desencadeia, estabelecendo um pouco mais do que
relações quadro a quadro. Neste caso, o leitor mostra que compreendeu a superfície do texto, mas
aparenta não ter entendido acerca do sonho. Foi nesse estágio que se inseriram a maior parte das
leituras realizadas.

A Antônia contava sempre a mesma história. O menino está com medo da porta e vira
para a janela. O menino escuta um ronco no telhado. Era a Cuca que ia pegar ele porque
ele não conseguia dormir. Aqui a Cuca cai do telhado com o saco. O saco tinha um
buraco e o menino espia. A Cuca pega um repolho e joga na cabeça do anão. O anão
coloca o menino na cama; tinha uma centena de crianças nas camas. O menino tem um
pesadelo por causa do chá que o anão deu para ele. Aqui eles estão colhendo pimenta.
O menino descobre os chás no armário. O anão moia as pimentas. Escuta um barulho na
porta. A Cuca e o anão saem correndo com as crianças no saco para fazer o jantar. Aqui
era o jantar dos convidados da Cuca. Depois do jantar, o castelo ficou uma bagunça. O
anão ouviu um barulho no quarto e vai ver o que era. O anão pede para o menino pegar o
grilo e fazer um chá para a bruxa, porque a barriga da bruxa estava doendo. Aqui o anão
ficou jogando pedras neles para não fugirem. O grilo deixa as crianças no jardim e leva o
Julinho para dormir.

Embora ainda não consiga articular sentidos mais amplos, ancorados na interação
entre o texto e imagem, como é o caso do sonho, o aluno acima foi capaz de fazer uma
recontagem da história mais concatenada.

2.4 Leitura complementar

Neste nível, inserem-se as leituras que contêm um certo nível de autonomia. É


possível perceber que as ilustrações colaboram bastante para o entendimento da história. O leitor
faz as personagens falarem nas ilustrações, amarrando a narrativa a partir das relações que
percebe nos desenhos. Embora seja perigoso afirmar que foram os desenhos que auxiliaram o
aluno a entender a história, é possível dizer que o trânsito do aluno pela história torna-se mais ágil
com a ajuda das ilustrações.

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Logo depois apareceu a Cuca e o Cara de Sapo com vários sacos na mão e a Cuca dizendo:
“Vamos, ande com isso, pois não temos muito tempo. Pegue algumas crianças e coloque dentro
do saco”. Cada um pegou um saco, descendo as escadas. Quando iam trancar a porta, ouviram
o barulho da campainha. Então esqueceram a porta do quarto aberto. Então o menino viu que a
porta estava aberta e resolveu ficar olhando lá em cima o que ele estava fazendo.

O trecho apresentado acima faz parte de um relato de nível complementar, em que


o aluno revela certa autonomia e individualidade. Podemos perceber que o aluno consegue
transitar mais facilmente pela narrativa; faz amarrações entre as partes da história e consegue,
inclusive, dar voz às personagens reportadas nas ilustrações.

2.5 Leitura reflexiva ou autônoma

Neste plano, o leitor apresenta sinais claros de que compreendeu a história. No


caso do presente livro, dá indicações de que percebeu a questão do sonho. Sua leitura se
desprende das ilustrações e amarra com facilidade os diversos momentos da narrativa a partir dos
desenhos. A leitura reflexiva é capaz de fazer com que o aluno transite pelo texto, indo e vindo,
fazendo marcações temporais e espaciais, afora considerações acerca das personagens.

A mãe coloca o menino para dormir. Ela está cantando uma música para fazer ele dormir.
O vento assusta o menino. Ele fica com medo das sombras. A Cuca está subindo no
telhado. Ela vê que ele não está dormindo e vai pegar ele. Ela coloca ele dentro do saco
e amarra bem. Dentro do saco tava tudo pinicando. Depois, ela bateu as asas e saiu
voando. Ela caiu em cima do telhado, tentou se agarrar, mas não conseguiu e o saco
caiu em cima dela com bastante força. Ela foi rolando, rolando, e caiu na porta de um
castelo e encontrou um duende, jovem, de olho estalado. O duende era escravo da Cuca.
Ele colocava as crianças para dormir. A Cuca mandou ele preparar os temperos para
fazer a comida. Ela ficou brava com ele, porque ele não estava sabendo fazer a comida.
Então, ela jogou um repolho na cabeça dele. O duende subiu as escadas e foi para o
quarto, tirou o menino do saco e colocou ele para dormir, e deu um chá que deixava com
sono. Julinho tomou o chá e dormiu. Tava dormindo, dormindo... quando o duende
acordou ele para colher pimenta. O duende ficou coordenando o pessoal na colheita da
pimenta: - Vai, pega aqui... O menino descobre que o chá era do sono pesado. Depois da
colheita, foram todos dormir. O duende leva o chá, mas Julinho, sabendo que era do
sono profundo, não tomou o chá, jogou fora. Então, tocou a campainha. Entraram os
convidados, tinha o ogro, o monstro de duas cabeças, as duas mãos... Todos estavam
com muita fome. O duende chega com o vinho e eles foram bebendo. O ogro sente
cheiro de criança e vai procurar. Quando ele ia encontrar o menino, a Cuca chegou com
o caldeirão de comida e ele não queria ser o último a comer. Depois da festa, a Cuca
ficou com dor de barriga. A Cuca mandou o menino preparar um chá, mas o menino não
quis matar o bichinho. O menino demorou e, quando o duende apareceu, ele disse que o
grilo tinha fugido. O duende mandou ele procurar outro grilo. Então, ele chamou as
crianças e um grilo enorme posou e levou eles embora. O duende atirou pedras neles. A
Cuca tentou voar para pegar eles, mas deu uma mudança no estômago dela e ela soltou
outro... outro... outro... outro traque e explodiu tudo. O menino disse para o grilo que ele
não era mais criança, mas era para ele cantar para ele dormir. Ele disse que o grilo tinha
a voz da Antônia.

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A leitura do aluno traz algumas indicações significativas de uma leitura reflexiva. No
seu depoimento fica evidente que ele conseguiu dominar o texto escrito e a imagem, articulando-
os. O aluno foi capaz de atribuir sentidos mais amplos à história, demonstrando, inclusive, ter
compreendido claramente a questão do sonho e a associação entre a figura da Antônia e a do
grilo, como em sua fala a seguir:

Têm quase tudo em comum. O grilo é a própria Antônia, porque em toda a história ele
estava dormindo. A história foi um sonho. No começo ele queria mostrar que era mais
criança e que não era mais preciso cantar para ele dormir. Depois do sonho, ele disse
que não era mais criança, mas pediu para o grilo cantar. O grilo era a própria Antônia. O
grilo era só uma imaginação dele.

2.6 Leitura equivocada

Há exemplos de leitores que, por razões diversas, não conseguem acompanhar a


narrativa e tomam rumos bastante diferentes daquele proposto pela história original.

Aqui ela ta contando uma história para ele. Ela tá pensando no quarto dele. Aqui é que a
cuca pega ele. Depois ela cai e o menino entra num castelo. Depois ele viu a mulher
cortando cebola, tomate estas coisas. Depois a bruxa pegou e jogou repolho na cabeça
do cara de sapo. Aqui ela tá dando chá para eles dormi. Ele tá doente e tentando pegar
ele. As meninas e os meninos estão catando pimenta . Aqui eles colocando pimenta
dentro do balde. Aqui ele tá vendo os chás que eles tava dando para eles. Aqui os dois
estavam espiando. Aqui eles cataram eles de novo. Aqui eles estavam numa festa. A
cozinha começou a sair fumaça. Aqui as coisas estavam todas jogadas no chão, toda
esparramadas. Aqui é que ele estava escutando o negócio para ele fugir do castelo Aqui
eles estão fugindo. Aqui ela tá caindo dentro do poço. Aqui ela tá cantando a canção da
cuca para ele.

Observando a recontagem, nota-se que o aluno não conseguiu reproduzir o


conjunto da história. A reconstituição assinalou os quadros isoladamente, quase sem nenhuma
amarração entre eles. Muitos quadros foram esquecidos e outros abordados de modo equivocado.

3. A RISADA DO SACI

Com o livro A risada do saci, manteve-se o mesmo modo de aplicação da etapa


anterior. Exemplares do livro foram adquiridos, criando-se novamente uma situação concreta de
leitura. Entretanto, optou-se por uma alteração nos critérios da entrevista. O questionário anterior
era extenso, o que tornava o tempo de duas aulas contíguas bastante limitado para a realização
da atividade. Por esse motivo, na aplicação do presente livro, efetuamos um enxugamento do
questionário, que passou a solicitar apenas a recontagem da história em duas situações: numa
primeira vez, o aluno recontou a história sem o livro em mãos; numa segunda oportunidade,
recontou a narrativa com o livro em mãos, apoiando-se nas ilustrações.

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A risada do saci conta a história de André. Brincando sozinho no estacionamento do
prédio, André, de olhos fechados, chuta sua bola com força e esta vai parar no terreno vizinho.
André coloca uma escada no muro e vê, do outro lado, a bola saltando para cima e para baixo,
como se alguém invisível estivesse brincando com ela. Então, aparece Edmundo, o porteiro do
prédio, e faz o menino descer da escada e entrar no prédio. À noite, André não conseguia dormir,
pois a lembrança da bola saltando sozinha não lhe saia da cabeça. Nem prestou atenção ao filme
que passava na TV sobre uma briga entre um bruxo e uma bruxa. Era quase meia-noite quando
André levantou-se e foi à janela, de onde viu novamente a bola saltando no terreno baldio. Jandira
o chama para ir à escola. Pensando na bola, André nem prestou atenção nas aulas. Ao voltar,
passou diante do terreno e entrou. Viu sua bola e tentou pegá-la, mas ela começou a saltar
livremente e André tratou de ir embora. Então, uma voz lhe chamou para brincar. Era um saci, que
foi surgindo aos poucos. Os dois vão até uma casa abandonada que havia no terreno e, sem que
percebessem, são presos por uma velha bruxa. E assim, André, preso pela bruxa, passa por
várias aventuras até conseguir, com a ajuda do saci, fugir e voltar para o prédio. Passadas todas
essas situações, André acorda com Jandira a chamar-lhe, dizendo que um menino havia
entregado sua bola ao porteiro.

Aparentemente, tem-se a impressão de que a história teve uma duração de dois


dias, contudo, adentrando no texto, vê-se a possibilidade de que tudo tenha sido um sonho do
menino, ocorrido durante uma única noite. Nesse caso, o filme que passava na TV parece ter sido
um grande influenciador para as situações representadas no sonho do menino. As informações a
respeito do sonho são imprecisas, os limites entre fantasia e realidade não são definidos,
sugerindo diversas possibilidades de leitura, o que se torna um desafio para o leitor ainda em
formação.

Novamente, foi preenchido um conjunto de 18 alunos entrevistados. Alguns leitores


ainda não conseguiram ir além do plano descritivo, restringindo-se a leituras quadro a quadro. Em
geral, quando solicitados a recontar a história sem o auxílio do livro, tomaram caminhos
divergentes daquele proposto pela história, revelando equívocos de compreensão, supressão de
partes da história, confusão entre as cenas. Outra característica constante foi a busca de
elementos e situações da experiência pessoal para suprir as dificuldades de memorização e
preencher as lacunas do texto.

Aqui ele tava indo vê a bola . Aí o porteiro veio, pegou ele e a escada e levou ele para o
apartamento dele. Aqui ele viu a bola saltando. Aqui ele não tá conseguindo dormir por
causa da bola saltando. Aqui a bola ainda tá saltando. Aqui ele tá na janela vendo a bola
saltando. Aqui a mãe dele tá acordando ele para ir para a escola . Aqui é ele na escola.
Ele tá pensando na bola que saltou. Aqui ele tá entrando no prédio. Aqui ele foi atrás da
bola. Ele pegou a bola e viu o saci. Aqui ele tá rodando. Ele tá aqui na porta [...].

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No depoimento acima, vê-se que o aluno apenas pontua as ações principais da
história. Os quadros são demarcados de modo isolado, através do uso constante do advérbio aqui,
desconsiderando-se totalmente a idéia de conjunto narrativo e a necessidade de interligação entre
os diversos quadros representados.

A despeito da presença de algumas leituras ainda bastante lacunares, semelhantes


ao exemplo apontado acima, identifica-se já uma predominância de leituras que se inserem entre
os níveis parafrástico e autônomo. Provavelmente, o trabalho constante do grupo com atividades
de leitura e compreensão de texto tenha contribuído significativamente para que os alunos
obtivessem um entendimento mais acurado em relação à obra proposta.

[...] Aqui já era umas 10 horas e ele não tinha conseguido dormir pensando na bola que
tava pingando lá no terreno. Daí já era meia-noite, ele levantou e foi olhar lá no terreno e
viu a bola pingando ainda e ele não tinha conseguido dormir ainda. Era 07 horas da
manhã [...].

A passagem transcrita dá indicações claras de que o aluno conseguiu articular o


texto escrito com as ilustrações. O leitor percorre a história fazendo considerações a respeito do
tempo e do espaço. Isso se evidencia de modo explícito nas menções que ele faz sobre os
horários, algo que não é mencionado no texto escrito, mas somente nas imagens.

[...] Aí o André chegou lá na casa dele e olhou pela janela, aí o bode parou de tocar. A
bruxa e o bode começaram a brigar e o bode transformou ela em cabra. Aí ela fez “Bééé,
bééé, bééé”. Aí a Jandira falou assim: “André, André, André”. Ele tava sonhando de novo
[...].

Nesse outro relato, o aluno demonstra ter compreendido a respeito da questão do


sonho, talvez não em sua totalidade, mas isso já revela um certo nível de autonomia e facilidade
em transitar pela narrativa, estabelecendo considerações acerca dos recursos estilísticos
empregados na narrativa.

4. O PAPO DA CABRA-CABRIOLA

Nessa etapa do trabalho, outro procedimento foi adotado. Elaborou-se um roteiro de


exposição, destacando os procedimentos mais pertinentes para uma apresentação eficaz da
narrativa. Dentre os procedimentos elegidos, merecem destaque a especulação das expectativas
dos alunos, a exploração de detalhes referentes ao cenário, à marcação temporal, às
particularidades das personagens e aos recursos estilísticos e pontos-chave da narrativa. O roteiro
está posto a seguir:

840
Roteiro Cabra Cabriola

O roteiro serviu para orientar a professora da disciplina de Língua Portuguesa, que


fez a leitura do livro para todos os alunos da classe. Enquanto lia a história e mostrava as
imagens, a professora se incumbiu também de chamar a atenção dos alunos para os detalhes
mais importantes da obra, conforme destacado no roteiro. O ideal seria que o professor fizesse a
exposição da narrativa através de transparências, lendo e apontando para as ilustrações, e
fazendo as inferências necessárias para um bom entendimento do livro. No entanto, problemas
técnicos, ligados à precariedade dos recursos da escola, inviabilizaram a realização da atividade
do modo idealizado pelo grupo.

O grupo encarregou-se de realizar as entrevistas, que novamente compreenderam


um conjunto de 18 alunos. Uma vez que não foi possível entrevistar todos os alunos no mesmo
dia, algumas delas foram coletadas em momento relativamente distante do dia da exposição do
livro, daí o fato de alguns alunos terem optado por entrar em contato com o livro novamente no ato
da entrevista, relendo ou simplesmente relembrando alguns aspectos mais expressivos. Os itens
da entrevistas foram semelhantes às demais já realizadas, merecendo destaque a recontagem da
história através das ilustrações. Com a análise dos resultados obtidos, foi possível confirmar o
quadro tipológico, encontrando-se relatos que se enquadram em cada um dos níveis já
comentados anteriormente.

O livro O papo da Cabra-cabriola conta a história de Aninha que, em companhia de


seu avô, lia a estória da cabra-cabriola. Após embarcar nessa viagem ficcional, Aninha fica
pensando como eram bobas as crianças da história, deixando-se enganar pela cabra que as
devorou. E assim, enquanto o avô cochila no sofá, ela se deixa levar pela sua imaginação e
começa a viver ela própria as aventuras que lera no livro sobre a cabra-cabriola. A cabra bate em
sua porta, telefona, torna a bater na porta, mas Aninha é muito esperta, não se deixa enganar,
mantém a porta fechada até o final, fazendo a cabra desistir da tentativa de devorá-la. Nesse misto
de fantasia e realidade, Aninha, influenciada pela leitura, aventura-se com a cabra até sua mãe
chegar do trabalho.

Os limites entre fantasia e realidade não são bem definidos; a passagem de um


cenário para outro não é marcada de modo nítido. O imaginário se funde com o real, sugerindo
diversas possibilidades de combinação de sentido, o que se torna um complicador para o leitor
desse estágio escolar. Uma vez mais, é a ilustração que exprime de modo mais claro o efeito
visado pela obra em questão. Desse modo, as imagens servem como âncoras para os jovens
leitores, auxiliando na compreensão da narrativa.

841
Obteve-se um conjunto notável de depoimentos que se destacaram pelo êxito obtido
na recontagem da história. Possivelmente, o trabalho constante do grupo com atividades de leitura
e compreensão de texto e o suporte dado pela professora na apresentação do livro tenham sido os
fatores que mais contribuíram para que os alunos obtivessem uma compreensão mais acurada.

O relato abaixo é exemplo de uma leitura mais consistente, evidenciando domínio


das estruturas narrativas do texto literário, bem como uma articulação adequada entre os recursos
verbais e visuais.

Aí ela foi para a casa dos meninos, bateu na porta e falou os versinhos, eles abriram a
porta e foram comidos. Depois acabou a história, era o avô de Aninha que estava
contando a história. Aí o avô dela dormiu no sofá. Aí ela escutou um ronco de motor,
olhou pela janela e viu um carro andando sozinho, mas só que tinha alguém no banco de
trás. Era uma senhora que bateu na porta, mas a Aninha sabia que era a Cabra Cabriola.
Aí ela não abriu a porta. A Cabra saiu muito brava, muito tiririca, ela ligou na casa da
Aninha [...]. Aí ela falou assim que sabia a história e que ela era a Cabra Cabriola. Daí a
Cabra ficou brava e soltou fogo por todos os lados. Daí o avô dela acordou, disse que
alguém tinha tocado a campainha. Aí era a mãe dela e a mãe dela perguntou se ela
adivinhava o quê que ela trouxe. Aí ela falou que sabia e falou:  A roupa bem limpinha,
a cana bem docinha e farinha para fazer empadinha. Mas só que a mãe dela tinha trazido
uma barra de chocolate. Ela deu um beijo na mãe, pegou a barra de chocolate e saiu
cabriolando.

Em seu depoimento, o aluno demonstra ter compreendido de modo eficaz o jogo


entre fantasia e realidade efetivado na narrativa. Seu trânsito pelos meandros do livro se torna
mais ágil, apoiando-se ora no texto escrito ora na ilustração. Além disso, o leitor revela
desenvoltura nas marcações temporais e espaciais, situando as ações e determinando as
mudanças de cenários.

Obviamente, a despeito do trabalho realizado pelo grupo ao longo do ano e do


suporte dado pela professora, ainda encontramos, nesse estágio da atividade, diversos relatos que
ainda permaneceram em níveis bem inferiores, restritos ao plano da descrição pontual. De um
modo geral, isso se deve mais propriamente a dificuldades particulares dos alunos, talvez mesmo
pelo falta de interesse, ou por deficiências decorrentes do processo de alfabetização.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em termos de metodologia, algumas considerações gerais podem sintetizar a


avaliação processual da pesquisa:

a) O percurso trilhado para se observar as impressões de leitura dos alunos mostra


que se chegou a um desenho bastante próximo do ideal para se observar o nível
de percepção dos alunos acerca dos livros, garantindo, até certo ponto, a
fidedignidade das constatações delineadas ao longo do processo;

842
b) As diversas situações de leitura propostas, por sua vez, mostraram-se de algum
modo exeqüíveis em sala de aula. Mesmo que tenham sido levadas adiante por
um professor e por um grupo de pesquisadores, é importante frisar que podem
ser reproduzidas sem a presença dos pesquisadores. Além disso, todas as
atividades levaram em conta a carência de materiais (no caso, livros) para o
trabalho, algo comum às escolas públicas, principalmente;

c) A recepção das atividades pelos alunos mostra, por outro lado, que é possível
um trabalho sistemático com a leitura literária em sala de aula. Além disso, a
recorrência de histórias complexas, com entrelaçamento bastante grande entre
realidade e sonho, não desestimularam os alunos, contrariando o estereótipo da
necessidade de facilitação para o trabalho com textos literários em sala de aula.

d) Também mostrou-se visível, de uma história para outra, a melhoria do


entendimento acerca das narrativas, graças à insistência em um mesmo perfil
temático e imagético: temas que imbricam o mistério e o sonho, com ilustrações
altamente sugestivas. Isso faz crer que o professor pode, em determinado
momento, insistir no trabalho com textos de estruturação narrativa e temática
semelhante;

e) Por vago e discutível que ainda se mostre, o quadro de níveis de leitura proposto
pode se tornar útil ao professor, não para isolar o aluno num ou noutro patamar,
mas como instrumento de avaliação e melhoria do seu próprio modo de
enfrentamento dos livros em sala de aula;

f) A observação de leitura proposta, por seu turno, ao operar basicamente no


plano das articulações externas do texto (entre texto verbal e imagens), não
dificulta a fruição do aluno. Pelo contrário, os leitores indicados como autônomos
parecem ter um campo bem maior para a fruição em comparação com alunos
que tiveram maior dificuldade para a leitura.

Em termos de sugestões ao professor, além da instrumentação já esboçada, são


possíveis algumas considerações:

a) Exploração das expectativas dos alunos: apresentação da capa do livro e


verificação das expectativas dos alunos, sugerindo-se inferências e deduções
que podem ser feitas a partir do título e da ilustração da capa;

b) Exploração do cenário: definição, a partir das ilustrações, dos espaços onde


acontecem as ações, enfatizando o(s) contexto(s) da trama;

843
c) Exploração da marcação temporal: atenção para com detalhes da ilustração
responsáveis pela demarcação da passagem temporal. Estímulo ao
estabelecimento de relações entre diferentes quadros, visando explicitar o modo
como o tempo é apresentado: notações sobre dia e noite, avanços e recuos
temporais, sonho e realidade etc.;

d) Exploração das personagens: afora a observação das personagens a partir da


história como um todo, pode-se estimular a análise das personagens a partir de
seus traços na ilustração. Tal exercício também ajuda o leitor iniciante a
perceber o caminho próprio da imagem na história;

e) Exploração de pontos-chave: destaque para as situações-chave da narrativa


(desequilíbrio e reequilíbrio, por exemplo), bem como a recuperação da história
a partir de imagens distribuídas ao longo do texto. As páginas centrais
costumam fixar momentos relevantes da narrativa;

f) Exploração de detalhes: ao lado da articulação das ações maiores do texto, o


professor pode destacar detalhes de ilustração, mesmo que estes últimos se
mostrem secundários à trama principal. Tal exercício serve, inclusive para que o
aluno seja convidado continuamente a reelaborar sua compreensão sobre o
conjunto da história.

O presente texto procurou reportar uma experiência de leitura de imagens nos livros
de ficção para jovens. A sistemática adotada levou ao esboço de um quadro composto por
diversos perfis de leitura. Este quadro, por seu turno, não tem por objetivo ‘enquadrar’ ou
sentenciar as impressões dos leitores acerca das obras, mas sim lançar um pouco mais de luz
sobre o papel da ilustração na composição de sentido da narrativa pelo jovem leitor. A principal
contribuição oferecida pela pesquisa, no entanto, parece estar menos nas proposições feitas aos
professores do que no procedimental desenvolvido para se chegar ao quadro proposto.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERQUEIRA CESAR, J. C.; ALEXANDRINO, H. Algodão-doce. São Paulo: FTD, s/d.


CHAMLIAN, R.; ALEXANDRINO, H. A risada do saci. 6.ed. São Paulo:Ática, 2003.
______. A Cuca vem pegar. 4. ed. São Paulo: Ática, 2003.
______. O papo da Cabra-cabriola. São Paulo:Ática, 2003.
FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
ZANCHETTA Jr., Juvenal. Características da leitura de imagens por alunos dos primeiros anos do
Ensino Fundamental. Cadernos dos Núcleos de Ensino, Unesp, v. 1, 2004.

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