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APRESENTAÇÃO

PROJETO ENSAIANDO PARA ENTRAR NA UNIVERSIDADE


JOSEANE RÜCKER

No final de maio desse ano, conversando com os alunos sobre a importância da


leitura no processo de construção da autoria no texto, lançamos um desafio para nós e
para eles: escrever um livro de ensaios. A organização dessa obra era ao mesmo tempo
uma tentativa de prepará-los para a universidade – afinal ninguém explica para os
graduandos como se escreve um artigo – mas também concretizar o rito de passagem
(fim da era escolar e início da acadêmica). As universidades esperam que seus alunos
sejam autores de suas ideias, mostrem-se autônomos, capazes de recortar e associar
informações, mas, sobretudo, posicionar-se diante delas, mas como fazer isso?
Para iniciarmos o projeto, confeccionamos um breve manual onde apresentamos a
origem do ensaio como um texto literário curto, situado entre o poético e o didático,
expondo ideias, críticas e reflexões a respeito de certo recorte. Além disso, foi
ressaltado ao aluno que esse gênero textual consistia na defesa de um ponto de vista
pessoal e subjetivo sobre um tema (humanístico, filosófico, político, social, cultural,
moral, comportamental, literário, religioso, etc.) sem que se pautasse em formalidades,
ou seja, o objetivo era apresentar uma reflexão artística sobre determinado assunto e não
construir um tratado ou documento. Idealizado por Montaigne no final do século XVI,
uma das principais características dessa tipologia é a exposição lógica e reflexiva
seguida de interpretação e julgamento pessoal. O ensaio é, portanto, problematizador e
nele deve sobressair o espírito crítico do autor e sua originalidade.
Antes de darmos início à escrita, os alunos esboçaram um projeto e, em turno
oposto, receberam orientações. Para escrever o texto, era necessário recortar o assunto,
o corpus de análise e, principalmente, levantar um questionamento que conduzisse a
argumentação. O mais difícil, sem dúvida, era explicar aos alunos que não estávamos
diante de uma forma fixa, de um trabalho escolar, mas de um texto artístico, logo não
precisávamos apresentar resultados objetivos, mas sim traçar uma teia de relações que
demonstrassem o esforço pela autoria. Entre os parâmetros norteadores do projeto
constavam: formulação do problema, objetivo do ensaio, escolha do corpus de análise,
seleção de informações e eleição do título. Nessa etapa, não raro foram os casos de
alunos que escolhiam como tema a vida do autor em vez da obra. Nos ensaios sobre
canção, por exemplo, foram mais frequentes esses equívocos. Outra situação que se
mostrou frequente era o estudante escolher toda a obra de Carlos Drummond de
Andrade, por exemplo, como corpus. Levando-se em consideração que o poeta de
Itabira escreveu mais de 40 obras, o projeto tomava feições astronômicas.
Os alunos escreveram e reescreveram seus artigos. Mergulhar no texto está longe
de ser uma tarefa fácil, pois, diferente da realização de um exercício de matemática,
literatura ou língua portuguesa, por exemplo, o processo de escrita exige uma relação
estreita com o eu, e talvez por isso essa tarefa seja por vezes tão árdua: escrever é, como
dizia Clarice Lispector, “procurar entender”. Estamos a todo o momento tentando
compreender a realidade que nos cerca e as ressonâncias da sociedade em nossa
intimidade. Escrever é organizar no contínuo do discurso o descontínuo do mundo,
como nos dizia a professora da UFRGS Nayr Tesser. Os discípulos do professor Paulo
Guedes, idealizador do processo de correção de redações da UFRGS, têm internalizado
que é tarefa do professor ensinar a ler e a escrever não como uma decodificação de
signos, mas como um processo de reflexão do conhecimento e construção de um ponto
de vista autônomo.

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É importante ressaltar, no entanto, que nesses quatro meses de trabalho não
tivemos somente momentos difíceis. Entre as reclamações em relação aos prazos de
entrega e a mudança de temas, podemos dizer que nosso objetivo foi alcançado. Ao
lermos os textos dos alunos das turmas 301 e 302, de 2010, do Colégio Leonardo da
Vinci – Beta, não encontramos somente jovens estudantes, mas futuros universitários.
No dia em que os alunos apresentaram seus ensaios para o grupo, conseguimos
enxergar, nos olhos de adolescentes de 16, 17 ou 18 anos, adultos em formação. Além
disso, era-nos muito prazeroso descobrir um pouco mais da personalidade de cada
estudante e perceber que estavam tomados por uma chama de mudança que não mede
esforços para alcançar seus objetivos – sentimento raro no universo adulto em que a
desilusão, como afirma Cecília Meireles, banha o rosto dos homens.

Boa Leitura!

CONTRACAPA

Vários dos ensaios dessa obra se igualam aos trabalhos de meus alunos da
Graduação, e alguns inclusive superam com folgas a média, indicando vocações
precoces para a carreira acadêmica.
Gostei especialmente do ensaio sobre Augusto dos Anjos e dos demais que
tratam de poesia.
Os ensaios sobre Simões Lopes Neto oscilam entre o correto rigor e a ingênua
adesão ao mito, compreensível na faixa etária e na escolaridade de teus alunos.
Problemáticos, apenas, os ensaios sobre música, em sua maioria. Na
adolescência, a paixão pelos ídolos tende a obscurecer a capacidade de análise, e foi o
que se viu em praticamente todos os que tratam do Rock. Não falo nas menções
constantes ao fraudulento e hipócrita Renato Russo, mas sim do deslumbramento e das
certezas absolutas demais. É claro que o esforço de pensar sobre uma coisa tão amada
quanto a música e os ídolos certamente terá levado a uma atitude mais crítica, e o
esforço dos alunos, neste mister, foi recompensado, pois, insisto, na faixa etária e na
escolaridade, mesmo os legionários mostraram uma capacidade de reflexão melhorada,
em relação ao que se vê nas salas de aula e nas comunidades da internet.
Sei que fui duro no parágrafo anterior, mas pude sê-lo porque os trabalhos estão bem
acima daquele estágio em que a gente deixa passar as deficiências porque
evidentemente elas não têm jeito. Os alunos mostraram que estão dispostos a enfrentar o
desafio do debate intelectual, e merecem honestidade na crítica, para poderem se
fortalecer com a busca das soluções para os problemas que lhes são apontados (ou dos
argumentos que sustentem seus posicionamentos). Além disso, eles podem
perfeitamente se valer da vacina que eu mesmo ministrei no início deste comentário, ao
dizer que não pude ler os textos com o vagar que exigem e merecem...
Mais uma vez, parabéns a TODOS os alunos/autores, porque, de fato, sem
exceção, conseguiram se constituir como sujeitos em busca de uma verdade e de uma
expressão próprias.
Paulo Seben
(Paulo Seben é doutor em Letras e professor da UFRGS)

SUMÁRIO

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DE BAUDELAIRE A MANUEL BANDEIRA
Augusto dos Anjos: leitor de Baudelaire de Alexandre do Couto e Silva
Indiretamente detalhado: o “sublime” simbolista de Guilherme Dutra de Oliveira
Nós não estamos no mundo de Matheus Vasques Niewierowski
A voz dos Raimundos Severinos de Marília Schwarzbach
Quando a poesia atenua o sofrimento de Emilia Hagemann

DE SIMÕES LOPES NETO A ZIRALDO


O Rio Grande do Sul de Simões Lopes Neto de Matheus Burg Figueiredo
Simões Lopes Neto e uma obra tipicamente gaúcha de Gabriel Carvalho Heemann
O filho do Rio Grande do Sul de Marcus Vinicius Silva de Paula
O regionalismo universal de Simões Lopes Neto de Pedro Henrique Costa Adams
Pré-Modernismo: uma fase repleta de conflitos de Pedro Henrique Pibernat de Moraes
O universo infantil em Monteiro Lobato de Andressa Coelho
Literatura Infantil: do princípio à atualidade de Otávio de Vargas Otília

DE LES DEMOISELLES D’AVIGNON AOS MUTANTES


Les Demoiselles d’Avignon e a proposta de um mundo fraturado de Francine de
Oliveira Machado
A foto: um olhar artístico para o moderno de Andielle R. Marchese
“Tupy or not tupy” na Tropicália de Gabrielle Hubner
Antropofagia e Tropicalismo: quem devora quem de Nathalia Zart do Couto
Na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer de Guilherme Raffo Wachholz
É proibido proibir: a proposta avant-garde de Os Mutantes de Camila Ponzi

DO BÊBADO E DO EQUILIBRISTA ÀS FLORES


Hoje você é quem manda: o caráter social das canções de Chico Buarque e Elis Regina
de Ana Carolina R. P. de Oliveira
Nossa vida refletindo as escolhas de nossos pais de Rayama Zaneti Santos
A música como fonte de liberdade diante da repressão de Olavo Guimarães
Consequências de um 31 de março de Átila Brito
A liberdade debaixo dos caracóis de seus cabelos de Isabella Salzano Marchese
Pra ver a banda passar de Liège Fernandes Vargas
Um caminho sem flores em busca de liberdade: as canções de Gilberto Gil e Geraldo
Vandré de Grecco Knuth Ribeiro

DA SUBVERSÃO À SOMA DOS QUADRADOS DOS CATETOS


De vem em quando, a subversão de Bruna Araújo
A gente somos inútil de Luis Carlos Fay Manfra
Cazuza – versos de uma época de Guilherme Primo
Pro dia nascer feliz de Danielle Guimarães
A televisão me deixou burro demais de Juliana Gonçalves Silveira
Geração de clones de Vitor Leão Degrazia
A sátira nas canções dos Mamonas Assassinas de Guilherme Severo Ferreira

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DE CLARICE LISPECTOR À GERAÇÃO BEAT
Os mistérios de Lispector de Camilla Zachello
Entre “le chien et le loup” em Nelson Rodrigues de Thaís Viegas Cigolini
O vestido do anjo pornográfico de Ana Paula Piva Panzenhagen
O hábito nacional da corrupção de Mariana Cunha da Rosa
A telenovela e os personagens reais de Victoria Montano Leal
Viver a vida das novelas de Tiago André Piccoli
O preconceito com o cinema brasileiro e a importância do cinema autoral de
Guilherme Barcellos Blumberg
A voz da Geração Beat de Helena Klünck

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DE BAUDELAIRE A MANUEL BANDEIRA

AUGUSTO DOS ANJOS: LEITOR DE BAUDELAIRE

Alexandre do Couto e Silva

Resumo: O poeta crítico francês Charles Baudelaire marcou, com sua presença, as
últimas décadas do século XIX, influenciando a poesia internacional de tendência
simbolista. Sua obra de destaque, Les Fleurs du mal, é considerado um marco para a
poesia simbolista e até para a poesia moderna. Um dos principais temas retomados
continuamente por Baudelaire é a morte. Os poetas brasileiros, durante o período do
simbolismo, também a descreviam constantemente. Neste sentido, propomo-nos a
discutir a influência de Baudelaire e sua obra principal na poesia brasileira de Augusto
dos Anjos.

Palavras-Chave: Baudelaire; Simbolismo; Les Fleurs du mal; Influência.

Abstract: Le poète et critique français Charles Baudelaire a marqué avec sa présence


les dernières décades du XIXe siècle. Il a exercé, dans tout le monde, une grande
influence sur la poésie de tendance symboliste. Son oeuvre, Les Fleurs du mal, est
consideré un événement marquant dans la poésie symboliste et même dans la poésie
moderne. La mort est un thème dominant dans son oeuvre. Les poètes brésiliens de la
période symboliste avaient aussi la même tendence. Dans ce sens, nous nous proposons
à examiner l’influence de Baudelaire et son ouevre principal dans la poèsie brésilienne
de Augusto dos Anjos.

Keywords: Baudelaire; Symbolisme; Les Fleurs du mal; Influence.

“Tu repentinamente como uma estaca,


invadiste o meu coração”
Charles Baudelaire

Na França, a partir de 1880, verificou-se uma resistência contra as concepções


científicas da época, representadas pela morbidez naturalista e pelo rigor parnasiano.
Nessa condição, o Simbolismo surgiu não apenas como uma oposição à lírica objetiva,
mas também como uma recusa aos valores ideológicos da burguesia, ou seja, propôs
como ideal a literatura pura, não intelectualizada, que utiliza imagens ao invés de
conceitos. Podemos afirmar que cada poema é basicamente como um enigma, podendo
ter múltiplos significados e interpretações. O subjetivismo é aspecto predominante nos
poemas simbolistas.
O leitor percebe que a poesia simbolista busca o leitor a partir do jogo sonoro
propiciado pela mistura de sons e ritmos. Através da aproximação do poema com a
música, os poetas provocam infinitas sensações, construindo a sinestesia. A
musicalidade é inserida de modo que se produzam ritmos inesperados, combinações de
rimas, associadas ao recurso da repetição. Verlaine demonstra essas características nos
seus mais célebres versos em Canção de outono, traduzido por Alphonsus de
Guimarães:

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Les sanglots longs
Des violons
De l´automne
Blessent mon coeur
D´ une langueur
Monotone.

Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.

Mesmo que nem todos conheçam o francês, percebemos os recursos que se


referem à musicalidade. O movimento sonoro pode ser interpretado como o significado
do poema como todo, dando suavidade à descrição da estação. A assonância, repetição
do som “o”, associa-se à aliteração, repetição do som “s” para dar sonoridade ao texto.
Os primeiros sinais do movimento simbolista encontram-se em pleno Romantismo,
quando Charles Baudelaire publicou sua obra máxima Les Fleurs du Mal. O poeta
demonstrou que tinha uma visão muito além do período em que vivia. Publicado no dia
25 de junho de 1857, seu livro é violentamente atacado pela crítica e recolhido poucos
dias depois sob acusação de obscenidade. Baudelaire cantava a vida e o amor falando de
morte com extrema genialidade e de modo natural. É possível notar que não há restrição
temática em seu repertório. A morbidez pode ser vista no exemplo a seguir:

“Sem cessar ao meu lado o Demônio arde em vão;


Nada em torno de mim como um ar vaporoso;
Eu degluto-o a sentir que me queima o pulmão,
Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso.
Toma, ao saber o meu amor à fantasia,
A forma da mulher, que eu mais espere e ame.
E tendo sempre um ar de pura hipocrisia,
Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame.
Ele conduz-me assim longe do olhar de Deus,
O peito a repartir-se de morna exaustão,
Pelas terras do tédio, infinitas, desertas,
Para depois jogar os torvos olhos meus
Ascorosos rasgões e feridas abertas,
E os aparelhos a sangrar da Destruição! ”
(BAUDELAIRE, 1861, p.41)

A musicalidade se evidencia na primeira e na segunda estrofes durante a


combinação fonética dos primeiros e terceiros versos e os segundos e quartos,
caracterizados como rimas alternadas. Os sentidos humanos na primeira estrofe “Eu
degluto-o e sinto-o, a queimar-me o pulmão” provocam sinestesia e convidam o leitor a
participar do texto.
O tema destruição é afirmado logo no primeiro verso com a presença do
Demônio ao lado do eu - lírico. E então é reiterado através da utilização de expressões

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como, por exemplo, “arder, queimar, eterno e criminoso”. O Demônio toma
preferencialmente a forma sedutora da mulher e incute perturbação no poeta. O amor é
abordado na segunda estrofe como “pura hipocrisia”, o que nos leva a identificá-lo
como um sentimento impuro. O texto descreve o estado físico do eu - lírico na terceira
estrofe. A destruição tratada no fim demonstra que o autor tem a sua frente uma
realidade que o faz queimar, arder e sofrer, disseminado a destruição.
O uso de palavras vulgares e mórbidas como deglutir, haurir e torvos mostra a
mentalidade complexa e genial de Baudelaire. Com um dicionário grotesco, a obra Les
Fleurs du Mal inspira e descreve sentimentos com uma clareza e uma complexidade
jamais vista. O tema da morte aproxima a poesia do autor francês da de Augusto dos
Anjos.

AUGUSTO DOS ANJOS: LEITOR DE BAUDELAIRE


No Brasil, o Simbolismo foi um movimento que ocorreu à margem do sistema
cultural dominante. As primeiras experiências foram realizadas por dois autores que não
tiveram grande renome. Os textos que verdadeiramente inauguraram o Simbolismo
foram duas obras renovadoras de Cruz e Souza (Broquéis e Missal). Cruz e Sousa
formou-se no Parnasianismo, mas conseguiu fugir da objetividade linguística e adotou
uma poesia humanístico-social, a qual se preocupava com os problemas transcendentais
do ser humano, mais tarde continuada por Augusto dos Anjos.
Augusto dos Anjos faz uso de uma poesia que até hoje é debatida se é de fato
simbolista ou parnasiana – e é claro que essa discussão não é necessária, uma vez que
aprisiona a obra do poeta a modelos. Esse debate tornou-se obsoleto com estudos mais
recentes, como o de Ferreira Gullar em Augusto dos Anjos ou a vida e morte nordestina,
que acentuam a modernidade dos versos de Eu. Eu, de Augusto dos Anjos, tem pontos
de contato com a poética baudelairiana, mas também apresenta fortes contrastes. O
contato entre a poesia de ambos é o tema, sobretudo quando cantam a putrefação dos
corpos, as misérias da carne e os vermes famintos. O contraste é definido com a
cientifização de Augusto ao descrever tais temas, enquanto Baudelaire desfrutava de um
vocabulário mais sentimental.
O autor foi ignorado por uma certa parcela da crítica, que o julgava mórbido e
vulgar. Uma das principais características da poesia de Augusto dos Anjos é a
poetização do patológico, do horrível, do repugnante – traços que muito o aproximam
da obra de Baudelaire. Vejamos, por exemplo, essa poesia cujo tom e temática
assemelham-se aos do autor francês. Composta em 1912, “Insânia de um Simples” faz
parte da obra Eu:

“Em cismas patológicas insanas,


É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;
Ser semelhante aos zoófitos e às lilianas,
Ter o destino de uma larva fria,
Deixar enfim na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!
E enquanto arremedando Éolo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,
Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho

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No silêncio de minha pequenez!”

Ao analisar este poema, percebemos que o trágico nos leva à interpretação da


morte e da sordidez humana. Notamos tais interpretações no verso “De um delta
humilde, apodrecer sozinho, No silêncio de minha pequenez!”. É incontestável o fato de
se encontrar facilmente, em Baudelaire e Augusto dos Anjos, o fúnebre e o repulsivo
como símbolos de suas estéticas. Notam-se rimas emparelhadas durante a quarta estrofe.
O autor menciona as organizações liliputianas relacionando ao livro “As
viagens de Gulliver”. Neste texto, o autor, Swift, demonstra a realidade francesa e
inglesa durante o período iluminista. Há uma possibilidade de Baudelaire ter lido este
livro e ter sido influenciado pelo autor.
A repetição de temáticas como a decomposição, a escatologia, o sangue, entre
tantas outras, demonstra fortes indícios de que Augusto dos Anjos leu Baudelaire. Não
compreendemos que a angústia que Augusto dos Anjos expressa em seus versos tenha
derivado da poesia de Baudelaire, mas acreditamos ter havido um processo de
identificação de uma possível influência.
Baudelaire influenciou e influencia vários artistas brasileiros. Durante o
período do Romantismo, a publicação de sua obra provocou o choque em toda a Paris.
Sabemos, portanto que, assim como muitos outros, Baudelaire foi um gênio ignorado.
Augusto dos Anjos percebeu isso e tentou trazer esta literatura aos olhos da população
brasileira. Ao comparamos a poesia de ambos, notamos um diálogo constante. Não
podemos negar, assim sendo, que Augusto dos Anjos foi um dos leitores de Charles
Baudelaire.

INDIRETAMENTE DETALHADO: O “SUBLIME” SIMBOLISTA

Guilherme Dutra de Oliveira

Resumo: Quando nos é permitido pensar por conta própria, chegamos a inúmeras
possibilidades e a diferentes leituras de mundo. O estudo sobre o simbolismo pressupõe
o mergulho em um mundo subconsciente, onde não vemos, sentimos ou percebemos
algo comum e destinado, mas nos é revelada uma visão única e elaborada da realidade,
reflexo do sublime da nossa própria consciência.

Palavras-chave: Simbolismo; Consciência; Subconsciente

Abstract: Lorsque nous sommes autorisés à réfléchir sur leurs propres, nous en arrivons
aux innombrables possibilités et différentes lectures du monde. L'étude à propos le
symbolisme suppose la subconsciente plongée dans un monde où nous ne pas voir,
sentir ou percevoir quelque chose commune et conçus, mais a révélé une vision unique
et établi de la réalité, réflexe du sublime de notre propre conscience.

Mots-clés: symbolisme, Conscience, Inconscient

’Descrever um objeto é
suprir ¾ da fruição de um
poema, que é feito da
felicidade de adivinhar

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pouco a pouco. Sugerir eis o
sonho”
Mallarmé

No final do século XIX, surgiu na França um movimento que viria para mudar
as tendências realistas e naturalistas de todo o mundo: o simbolismo. Este foi
representado na literatura, na pintura e nas artes em geral. O mundo subjetivo e
sugestivo daria à poesia uma nova face, um novo mundo, utilizando a musicalidade para
atingir a essência do ser humano, isto é, construindo o que chamamos de fluxo de
consciência.
O simbolismo, ao usar o “sublime”, sobrepõe-se ao tempo e ao esquecimento,
uma vez que cada leitura proporciona uma nova ideia. A concepção de “sublime”, no
contexto simbolista, é o fator que proporciona a criação do fluxo de consciência, ou
seja, a possibilidade de interação entre o leitor e a obra (autor). Essa interação
extracorpórea é caótica, nebulosa e inefável. Dominado por associações estranhas,
distante do limite físico, o simbolismo permite uma vasta compreensão dos significados
da obra. O sublime simbolista se faz dado a essa experiência de podermos, sozinhos,
adquirir uma ideia de uma obra, sem ter de recorrer a um expert ou a concepção já
pensada, o que por si mesma corrompe a obra pelo simples fato de privar-nos de uma
conclusão bruta e própria.
Agora como é feita essa abordagem ao espectador da obra sendo imparcial e
permitindo um fluxo de consciência? Vejamos o poema abaixo, em francês
primeiramente e logo a seguir traduzido.

Enivrez-vous
Il faut être toujours ivre. Tout est là: c'est l'unique question. Pour
ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et
vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais
enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte
d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous
réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent,
à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à
tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout
ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague,
l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront: "Il est l'heure de
s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps,
enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de
vertu, à votre guise."
(Charles Baudelaire)

Nota-se, na integridade do poema, ao compararmos com a versão traduzida, que


o tradutor vê-se muitas vezes entre conservar a rima ou o sentido. O simbolismo,
quando interpretado puro, ou seja, quando compreendido na mesma língua, modo ou
tempo, tem seu valor incalculavelmente exposto.

Embriague-se
É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única
questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que lhe

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quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se
sem perdão.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser.
Mas embriague-se.
E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um
fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda, a embriaguez
já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à
estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que
geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala,
pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o
relógio lhe responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser o
escravo mártir do Tempo, embriague-se; embriague-se sem
parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser".
(Charles Baudelaire, tradução: Jorge Pontual)

Como já dito anteriormente, o poema, em sua língua-mãe, conserva a ideia do


autor. Dada à tradução, ainda é possível perceber a ideia central do poema, sem que o
tradutor tenha qualquer influência na compreensão do texto. O “sublime”, ao utilizar os
modos alternados de pensamentos, sobrevive tanto à tradução quanto ao tempo.
Releiamos a seguinte frase:

É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única


questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que lhe
quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se
sem perdão.

No trecho “Para não sentir o horrível fardo do Tempo”, a palavra “tempo”


aparece em letra maiúscula tanto na versão original quanto na traduzida. Esse pequeno
artefato literário expõe uma das inúmeras faces do “sublime” simbolista. A ênfase à
palavra “tempo” é claramente reforçada, o que nos permite refletir que, no fluxo de
consciência, o “tempo” é o reflexo da subjetividade ou do inconsciente do eu - lírico.
Para continuarmos a nossa análise, é necessário reler o poema de Baudelaire a seguir:

Mas embriague-se.
E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um
fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda, a embriaguez
já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à
estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que
geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala,
pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o
relógio lhe responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser o
escravo mártir do Tempo, embriague-se; embriague-se sem
parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser.

É plausível perceber tais artifícios que provocam o fluxo de consciência: “E se


às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um fosso, na solidão triste do
seu quarto”. Nesse trecho, o autor cria uma aproximação ao desvirtuar o lugar, logo o
tempo da psique lhe dará meios para expandir o lugar em questão. Vejamos como se
formam os pensamentos:

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Você acorda, a embriaguez já diminuída ou desaparecida,
pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a
tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o
que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são.

Prendendo o leitor em seu andamento da consciência, e permitindo que o mesmo


usufrua de deleite único, proporciona-se a mutualidade extracorpórea entre o leitor e o
autor. Fazendo uso de uma das mais marcantes atribuições do simbolismo, a
Musicalidade, (enteda-se por musicalidade o ritmo ou a sincronia entre duas ou mais
palavras), percebemos que no poema "Art Poétique", de Paul Verlaine, ao afirmar "De
la musique avant toute chose...", o destaque que essa escola dá à musicalidade. A poesia
deixa de ser mera junção de palavras e passa a adquirir ritmo, fazendo com que o texto
se torne mais belo e agradável ao ouvido.
Voltando ao texto de Charles Baudelaire, podemos afirmar sobre o trecho “De
vinho, de poesia ou de virtude, como quiser", que o autor se conclui ao permitir que o
sublime, em um fluxo de consciência, dê o devido significado a “Embriague-se” e ao
que acabara de ler.
Cruz e Sousa, o idealizador do simbolismo no Brasil, aborda essa interação
extracorpórea de uma forma mais prática ou dinâmica. Eis a principal diferença, ao
compararmos com Charles Baudelaire. Leiamos o texto a seguir:

INEFÁVEL
Nada há que me domine e que me vença
Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.
Sou como um Réu de celestial sentença,
Condenado do Amor, que se recorda
Do Amor e sempre no Silêncio borda
De estrelas todo o céu em que erra e pensa.

Claros, meus olhos tornam-se mais claros


E tudo vejo dos encantos raros
E de outras mais serenas madrugadas!

Todas as vozes que procuro e chamo


Ouço-as dentro de mim porque eu as amo
Na minha alma volteando arrebatadas
Cruz e Sousa

Partindo do título, Cruz e Souza nos permite identificar o fluxo de consciência.


Inefável como aquilo que não poderia ser materializado, ou seja, “o que não pode ser
escrito”. Como começar um poema, se justo este poema não pode ser escrito? A forma
dinâmica do “sublime” apresentado em Cruz e Souza aponta essa possibilidade de fluxo
de consciência que se dá quase que de modo instantâneo, pois não consideramos lógico
ler algo que se diz ser inefável. Esse jogo entre a concordância da realidade com o que
está escrito no poema é a forma que o “sublime” encontra para ser exposto no
Simbolismo Brasileiro. O trecho “Nada há que me domine e que me vença” faz jus ao
título “inefável” (Não há nada, nada não pode ser escrito). No trecho a seguir:

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Quando a minha alma mudamente acorda...
Ela rebenta em flor, ela transborda
Nos alvoroços da emoção imensa.

Ao pensar o simbolismo como um mundo a parte das leis e das regras materiais
que conhecemos, a diferença entre os dois universos toma enormes proporções, porque
não é possível concretizar a realidade transcendente. Cultivar o sublime é a forma de
acessar a mistura entre os mundos e mergulhar no inconsciente. No simbolismo,
podemos vivenciar o caos da mente humana.

Referências
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Ed. Leitura XXI.
BALAKIAN, Anna. O Simbolismo - Col Stylus 5.

NÓS NÃO ESTAMOS NO MUNDO

Matheus Vasques Niewierowski

Resumo: Os poemas de Cruz e Souza são marcados pela musicalidade,


pelo individualismo, pelo sensualismo, e às vezes pelo desespero e pelo apaziguamento.
Uma das principais características do poeta é a obsessão pela cor branca. É certo que se
encontram inúmeras referências à cor branca, assim como à transparência,
à translucidez, à nebulosidade e aos brilhos. No aspecto influências, Cruz e Sousa sofre
influências do satanismo de Baudelaire, mas também de seu espiritualismo.

Palavras-Chave: Cruz e Sousa; Simbolismo; Broqueis, Missal, Faróis; Influência.

Abstract: His poems are recognized for its musicality, its individualism, its sensualism,
sometimes for dispair, sometimes for appeasement, and an obsession for the color
white. It's certain that numerous references to the color are found, as well as
transparency, translucity, and nebulosity of brightnesses. Other colors, which are always
present in his verses, are also used. In the aspect of simbolism influences, an amalgam
is noticable. Which converges with waters of Satanism of Baudelaire to the spiritualism
linked to not only the current aesthetic tendencies, but also to the phases in the author's
life.

Keywords: Cruz e Sousa; Simbolism; Broqueis, Missal, Faróis; Influence.

“Enche de estranhas vibrações sonoras


a tua Estrofe majestosamente
Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.”
Cruz e Sousa

12
O Simbolismo surgira como reação aos esquemas naturalistas, na Europa, por
volta de 1880. A sugestão é alvo de qualquer simbolista, que tinha também como
objetivo tentar penetrar nas camadas mais profundas da subjetividade, descendo até um
universo subconsciente dominado por associações estranhas e estremecimentos
interiores. Ainda na busca da sugestão, os simbolistas procurarão aproximar a poesia da
música. Verlaine já pregava: “A música antes de qualquer coisa”. E esta máxima é
seguida: novas combinações de rimas, repetições de certos fonemas e outros dados
técnicos garantem a sonoridade de qualquer texto simbolista. O sentimento racional do
mundo, dado pela ideologia naturalista da burguesia, se desfaz. O universo torna-se
caótico, nebuloso, inefável, incorpóreo. “Nós não estamos no mundo” – brada Rimbaud.

“Infìnitos, espíritos dispersos


inefáveis, edênicos, aéreos,
fecundai o Mistério destes versos
com a chama ideal de todos os mistérios.”
Cruz e Sousa

No Brasil, o Simbolismo teve início no ano de 1893 com a publicação de duas


obras de Cruz e Souza: Missal (prosa) e Broquéis (poesia). O movimento simbolista na
literatura brasileira teve força até o movimento modernista do começo da década de
1920. Broquéis é publicado em 1893.
Neste livro, Cruz e Souza utiliza uma linguagem erudita, fazendo todo um jogo
de palavras. Usa a cor branca para representar a espiritualidade, além de elementos
vagos. Percebemos que deseja o espírito, mas perde a espiritualidade com o elemento
material. É marcado pela influência de Baudelaire, o qual traz o mal como algo belo.
Pode-se dizer que o precursor do movimento simbolista, na França, foi o poeta
francês Charles Baudelaire com "As Flores do Mal", ainda em 1857. Mas só em 1881 a
nova manifestação é rotulada, com o nome decadentismo, e é substituída pelo
Simbolismo em manifesto publicado em 1886. Espalhando-se pela Europa, é na França,
porém, que tem seus expoentes, como Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane
Mallarmé.
Baudelaire publicou sua obra máxima As Flores do Mal. demonstrando que
tinha uma mentalidade diferente dos outros poetas. Publicado em 1857, o autor é
acusado de obscenidade. Baudelaire cantava a vida e o amor falando de morte com
extrema genialidade. É possível notar a morbidade em seus poemas, assim como Cruz e
Sousa como, por exemplo:

“Sem cessar ao meu lado o Demônio arde em vão;


Nada em torno de mim como um ar vaporoso;
Eu degluto-o a sentir que me queima o pulmão,
Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso.
Toma, ao saber o meu amor à fantasia,
A forma da mulher, que eu mais espere e ame.
E tendo sempre um ar de pura hipocrisia,
Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame.

13
Ele conduz-me assim longe do olhar de Deus,
O peito a repartir-se de morna exaustão,
Pelas terras do tédio, infinitas, desertas,
Para depois jogar os torvos olhos meus
Ascorosos rasgões e feridas abertas,
E os aparelhos a sangrar da Destruição! ”
(BAUDELAIRE, 1861 Les Fleurs du Mal)

As Flores do Mal reúnem de modo exemplar uma série de motivos da obra do


poeta: a queda; a expulsão do paraíso; o amor; o erotismo; a decadência; a morte; o
tempo; o exílio e o tédio. Não há nelas nenhum discurso filosófico. A política está
ausente por completo. Não há mais a crença no homem. Está claro no uso de um
vocabulário mórbido que Cruz e Sousa se influenciou pelo poeta francês. Cruz e Sousa
buscou na aristocratização intelectual e no espiritualismo a vingança contra o
preconceito de cor de que foi vítima. Não havia espaço na sociedade para um mulato de
vocabulário etéreo.

A VOZ DOS RAIMUNDOS SEVERINOS

Marília Schwarzbach

Resumo: Há um pouco mais de um século, nascia Carlos Drummond de Andrade,


considerado o poeta maior da língua portuguesa. Ele deixou eternamente uma marca na
nossa literatura, influenciando, se não milhões, milhares de pessoas. Este trabalho tem o
objetivo de demonstrar a função social dos seus poemas, em meio ao contexto do
opressor e violento Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial. Para tanto,
analisaremos diversas poesias suas, em especial Áporo, Sentimento do Mundo e A
Bomba.

Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade; função social; Estado Novo; Segunda


Guerra Mundial.

Abstract: It has been a bit more than a century since Carlos Drummond de Andrade
was born, one of the greatest Brazilian poets of all time. He left a mark on our literature
and influenced if not millions, thousands of people. This thesis aims to demonstrate the
social function of his poems, among the oppressive and violent context of the New State
and the Second World War. To do so, we will analyze a number of his poems focusing
on Áporo, Sentimento do Mundo and A Bomba.

Keywords: Carlos Drummond de Andrade; social function; New State; Second World
War.

“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do


Mundo”.
Carlos Drummond de
Andrade

A HISTÓRIA DE UM GAUCHE

14
Para entendermos a poesia social de Carlos Drummond de Andrade, será
necessário voltarmos um pouco à história e analisarmos a sua vida e as suas
experiências. Ele nasceu em Itabira, no Mato Dentro (Minas Gerais), em 31 de outubro
de 1902. Era descendente de uma família tradicional possuidora de vastas terras de onde
era extraído minério de ferro, o qual se referiria mais tarde em alguns de seus textos.
Mesmo criado com os rígidos costumes de Minas, ele se diferenciara, desde pequeno,
conversando com as estrelas e brincando com as pedras.
Foi colocado no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, onde não seria feliz,
sendo expulso por “insubordinação mental”. Anos depois, cursou a faculdade de
farmácia, mas seu verdadeiro talento era o de escrever. Junto aos seus amigos, dentre
eles Emílio Moura, fundou “A Revista”, que, apesar da vida breve, foi importante
veículo de afirmação do modernismo em Minas Gerais. Começou a trabalhar no jornal
como cronista. Tentava desdizer o mito de que esquecera Itabira, por isso mandava
cartas, poesias, liras e outros poemas nos quais retratava a preocupação com a terra natal
e o que ficaria dela quando acabasse a mineração.
Drummond casou com Dolores Dutra de Morais. Dois anos depois, nasce seu
primeiro filho: Carlos Flávio, que só viveu por alguns instantes. Guardou para ele uma
lembrança feliz: “O filho que eu não fiz, fez-se por si mesmo”. Um ano depois, nasce
Maria Julieta. Filha única e sua grande paixão, Maria Julieta seria sua eterna musa “um
verso meu, iluminando o meu nada”, como cita no poema A mesa. A cumplicidade
entre os dois existia desde o mais singelo olhar até a vocação. Maria Julieta tornou-se
escritora sem, no entanto, conseguir destaque, sufocada pelo sobrenome famoso que
carregava. Ela morreu de câncer aos 59 anos. Doze dias depois, a morte também levaria
Drummond.
Muito antes de poeta, Drummond era um homem simples. De caráter tímido e
reservado, com uma imensa generosidade e extremamente ligado ao seu tempo, o autor
configura-se com um dos maiores nomes da literatura brasileira. Diversas vezes em seu
texto o autor se classifica como “gauche”, termo do francês que significa “esquerdo” e
interpretado em seus textos como “torto”. Ou seja, aquele que está na periferia da
realidade e não consegue se comunicar com ela. Ele encontra assim um conflito entre o
seu “eu” e o mundo. Ele usa a poesia para superar esse conflito, sendo ela (a poesia) o
meio encontrado para comunicar-se com a realidade interior e exterior. Seu estilo e
linguagem levaram-no a popularizar a literatura em um país onde se lê pouco.

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
“Poema de sete faces”

Em seus primeiros livros, como Alguma poesia (1930), o Modernismo não


chega a ser dominante.

Mundo mundo vasto mundo


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

O poema-piada, a descontração sintática e o individualismo são constantemente


usados por Drummond. No entanto, no verso acima do Poema de Sete Faces, podemos

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notar que ele já inicia, mesmo sem mergulhar no assunto, com a sua preocupação com
os acontecimentos do mundo – aspecto que será visto mais claramente nos seus
próximos livros. O poema-piada de Drummond, nessa época, é um desabafo de um
tímido que procura disfarçar no humor os sentimentos que o amarguram e o
entristecem. Ele esconde a procura de uma expressão poética autêntica e autônoma e, ao
se voltar para o cotidiano, transcende o tempo e o espaço em busca do perene e
universal.

A MOLDURA DE UMA OBRA DE ARTE


Em 1939, estourou a Segunda Guerra Mundial, um conflito militar que
envolveu a maioria das nações do mundo. Essa guerra teve como principais causas
governos totalitários com fortes objetivos militaristas e expansionistas. Na Alemanha,
surgiu o nazismo, liderado por Hitler, movimento que pretendia expandir o território
alemão. Na Itália, estava crescendo o Partido Fascista, liderado por Benito Mussolini,
que se tornou o Duque da Itália com poderes sem limites. A Europa foi quase
completamente destruída, e milhões de pessoas morreram durante bombardeamentos.
Outras morreram vítimas do absurdo Holocausto. Os governos investiram todo seu
dinheiro em avanços militares e econômicos. Nem o Brasil que havia, primeiramente, se
declarado neutro, consegue escapar da guerra, tendo vários navios de comércio
torpedeados. É nesse contexto de mortes, desaparecimentos misteriosos e miséria que
Drummond escreve os livros Sentimento de Mundo e A Rosa do povo.
Drummond passa a analisar e criticar asperamente a realidade. Condenado pelo
passado e assombrado com o futuro, ele se detém em um presente dilacerado por este e
por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de
vista melancólico e cético. Enquanto ironiza os costumes e a sociedade, satírico em seu
amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação
estética desse modo de ser e estar. Entretanto, a tarefa de representar a realidade nem
sempre é fácil, pois a escrita literária é muitas vezes condicionada pelo ambiente social,
o que acaba inibindo o seu valor ideológico.
Carlos Drummond foi um poeta que, assim como outros escritores dessa escola
literária, se preocupou muito mais com o conteúdo de seus textos do que com a forma
pela qual ele se expressa. Com isso, há o predomínio de versos sem uma métrica
irregular e sem rimas, livre de amarras.
No poema Sentimento de Mundo, que dá nome ao livro, ele nos revela a visão
de mundo do poeta: não é alegre, mas sim preenchida pela realidade nua e crua, na qual,
por mais que sonhemos, geralmente é dura e muito desafiante. Desde a primeira estrofe,
o autor já deixa claro suas limitações de mundo com a seguinte frase: Tenho apenas
duas mãos. Mas logo em seguida ele aponta elementos auxiliares que o ajudarão a
diminuir essas deficiências de visão: escravos, lembranças e o mistério do amor.

mas estou cheio escravos,


minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.(...)

Na segunda estrofe, podemos ver claramente o pessimismo com a morte do


poeta e a destruição do céu. Na terceira estrofe, ele retrata que, apesar dos “camaradas”
terem tentado ajudá-lo, ele não conseguiu decifrar as suas palavras e pede desculpas
portanto. Para finalizar, nas duas últimas estrofes, ele pinta uma visão de futuro bem
negativo, mas bem verdadeira: mortos, lembranças, tipos de pessoas que sumiram nas

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batalhas da vida. Conclui, na estrofe cinco, que o futuro, “amanhecer” é negro, sinistro,
sintetizando, assim, o seu sentimento de mundo.
Outro poema, nem tão famoso quanto o anterior, mas tão impactante quanto, é:
A Bomba. Sob a ameaça nuclear, política e guerras, o autor não se limita a tentar corrigir
o mundo, pois sabe que não é capaz de tal feito. Ele repete cinquenta e quatro vezes a
palavra “bomba”, criando assim um jogo de sons impressionante. Cada vez que se
começa um novo verso, sente-se a sonoridade de uma explosão: “bom... bom... bom...”
construindo imagens que representam cenas de guerra. Tornaram-se marca de
Drummond a aliteração e o imaginário do som da guerra.

A ARTE DA VELA
Carlos Drummond de Andrade também presenciou o período do Estado Novo,
quando foi estabelecido um regime político autoritário e centralizado, fundado por
Getúlio Vargas. Período marcado por perseguições políticas, pela censura das
informações e, consequentemente, pelo medo por parte da população. Drummond
mostra-se contra a ditadura e aponta o terror que ela provoca nas pessoas.

Áporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

No texto acima, o poeta explora os sentidos da palavra “áporo”, ou seja: “tipo


de orquídea”, “sem saída” e “espécie de inseto”. Assim, ele cria um poema
extremamente criativo e que permite diversas leituras. O significado da expressão mais
usado por diversos autores da literatura é o segundo e, assim, ele sai do ponto comum e
vai se destacando. Estruturalmente é um soneto feito com redondilhas menores.
Na primeira vez em que se lê o texto, é impossível entender plenamente seu
sentido, sendo necessárias várias releituras. A estrutura do poema é dividida em três
partes: primeiramente ele nos apresenta uma tese, sendo ela a de um inseto que cava
com insistência, porém pacificamente sem achar saída para a sua situação atual. Logo
após ele nos nega a pacificidade do bichinho, tornando sombrio e sem saída seu
ambiente e futuro. Por fim, ele relaciona as duas teses sintetizando-as: a orquídea nasce,
ao contrário do que se poderia esperar (no poema ele fala que a orquídea nasce de forma
antieuclideana, ou seja, contra as leis do princípio da matemática) e representa a
salvação, a solução, em meio ao escuro, à noite.
Neste poema em específico, a referência ao contexto histórico está no
trecho “em país bloqueado”, no qual a terra que o inseto cava se confunde com o
próprio Brasil em meio à ditadura. E, mesmo que não fosse esperado, surge a esperança,

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algo estranho à sociedade brasileira da época, simbolizada por uma simples e frágil
orquídea. A esperança é de que o sofrimento trazido pelo Estado Novo não era algo que
fosse durar a eternidade e que seu fim já poderia ser vislumbrado. É através de palavras
de significados complicados que o poeta tenta se desvencilhar dos grilhões
estabelecidos pelo governo decadente.

A ESSÊNCIA DO MAIOR
Os textos de Drummond, como pode ser visto durante todo esse artigo,
refletem diretamente a sociedade e seus conflitos vividos naquela época. Ele foi um
homem tímido, podendo contar-se o número de vezes que encarou a câmera. Sua vida,
seus problemas e temores constam-se nos seus versos, bem como o de outras inúmeras
pessoas.
Talvez um dos maiores exemplos de sua grandiosidade está em como ele
consegue escolher de maneira brilhante o título de um de seus livros mais famosos, A
Rosa do Povo, resumindo e caracterizando a sua poesia social. Primeiramente ele
escolheu uma flor cuja beleza é universalmente aceita: a rosa. O fato de a rosa ser do
povo torna essa beleza acessível a qualquer pessoa. Estamos diante de uma literatura
que tem um linguajar simples, com o objetivo de chegar às massas populares e ajudá-las
a pensar e questionar, mas que, ao mesmo tempo, auxiliou as classes mais altas a se
conscientizar de que todos estamos inseridos em um mesmo contexto.
Como fala o crítico: “Chega a ser ironia alguém tão cético provando que há
vida após a morte! Mais do que qualquer outro gênio soube ser reconhecido enquanto
vivo e não se deixar morrer mesmo negando os convites para se tornar imortal como
membro da Academia Brasileira de Letras”. Com essa frase, resumimos a imortalidade
de Carlos Drummond de Andrade, conquistada através da sua poesia.

Referências
http://www.culturabrasil.pro.br/cda.htm
http://www.segundaguerramundial.com.br/sgm/
Vicentino, Cláudio. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Áporo
http://carlosdrummonddeandrade.com.br/
http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/index2.htm

QUANDO A POESIA ATENUA O SOFRIMENTO

Emília Lobato Hagemann

Resumo: A tuberculose foi uma doença muito temida no século XX. Manuel Bandeira
foi um poeta que viveu nessa época e sofreu os efeitos dessa enfermidade por dois
motivos: primeiro porque percebia o comportamento preconceituoso da população com
suas vítimas e segundo porque ele próprio contraiu-a muito jovem, tendo que aprender a
lidar desde cedo com os problemas que ela lhe trouxera.

Palavras-chave: preconceito; tuberculose; morte; Manuel Bandeira.

Astract: Tuberculosis was a feared illness in the twentieth century. Manuel Bandeira
was a poet who lived in this period and suffered the effects of this infirmity for two
reasons: first because he realized the biased behavior of the population with their

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victims, and second because he himself contracted it too young, having to learn how to
deal with the problems that it brought to him.

Keywords: prejudice ; tuberculosis; death; Manuel Bandeira.

Até a segunda metade do século XX, a tuberculose era uma doença temida por
todos. Sua cura ainda não era conhecida, e quem contraísse a doença estava condenado
à morte. Além disso, os tuberculosos tinham que enfrentar o preconceito das pessoas, já
que, na época, essa enfermidade era sinal de pobreza ou problema hereditário, sendo
suas vítimas isoladas do convívio social. O doente sofria por dois motivos: primeiro
porque havia o desgaste físico e segundo porque havia o desgaste moral, visto que as
pessoas que sofriam desse mal não eram consideradas “bons partidos” para realizarem
casamento, pois colocavam em risco os outros membros de sua família. Ou seja, a vida
daquele que estava doente tinha os dias contados, e sua morte, apesar de certa, era lenta,
por isso muitos poetas que eram tuberculosos escrevem sobre a presença da morte. Ao
descobrirem a moléstia, começavam a escrever para passar o tempo e minimizar o
sofrimento e encontravam na literatura uma forma de evasão.
Destacamos aqui Manuel Bandeira, poeta cuja representação da morte é tema
constante em suas obras. Esse poeta descobriu-se tuberculoso aos dezoito anos de idade
e, a partir daí, começou a escrever poemas nos quais revela, em alguns deles, o
sentimento de tristeza por saber que vai morrer e por não poder aproveitar a vida como
as outras pessoas devido à doença. Para exemplificar cito aqui “Epígrafe”.

Epígrafe
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria

Nos dois primeiros versos do texto, percebemos claramente que Bandeira era
bem-nascido e sociável, ou seja, não era excluído da sociedade ou sofria qualquer tipo
de preconceito por causa de sua condição econômica até ser surpreendido pela doença.
O preconceito da população está evidente quando ele diz que era feliz até que o mau
destino (a tuberculose) o “rendeu”. Portanto, até ele descobrir a enfermidade, era tratado
normalmente por todos, mas depois foi abandonado por causa do medo do contágio e da
vergonha que tinha por ter contraído tal moléstia tão condenada moralmente pela

19
sociedade. Ao finalizar o poema, o eu - lírico relata como será a existência após a nova
experiência: a continuação do que ainda lhe resta de vida sobre as cinzas da mesma
perdida, ou seja, a “cinza fria” citada representa a morte que se aproxima. Ao longo do
texto, há uma evolução do pensamento do artista. Num primeiro momento, ele descobre
que está doente; durante o “desenvolvimento”, ele processa essa nova maneira de
encarar a vida, aceitando a solidão que o abaterá, aliada à crítica às pessoas e as
mudanças físicas pelas quais ele passará, como o emagrecimento e o abatimento. Além
disso, pensa nas medidas a serem tomadas para tratar a doença e, no fim, ele conclui
triste que terá pouco tempo para aproveitar a vida. As rimas são alternadas (ABAB),
como percebemos no segundo verso entre as palavras “vida” e “vencida”, e pobres
(palavras de mesma classe), por exemplo, em “paixão sombria” e “cinza fria”. A forma
do poema dá-se por dois quartetos (os dois primeiros versos), e por dois quintetos (os
dois últimos versos).
Outro exemplo de obra desse autor que reflete seu cotidiano, após as mudanças
trazidas pela doença, é “Pneumotórax”.

Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:


— Diga trinta e três.
— Trinta e três. . . trinta e três. . . trinta e três. . .
— Respire.

.......................................................................................................
........

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o


pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

À medida que a tuberculose avança, o poeta fica mais debilitado, como podemos
ver no trecho do texto acima, no qual ele narra as crises de tosse, febre, hemoptise, entre
outros sintomas que o acometeram. Sua rotina passou a ser repleta de médicos em busca
de um tratamento eficaz, que o fizesse ficar bom. O tango argentino não é alusão
fúnebre à morte que o acompanhou durante a vida, mas uma forma romântica e irônica
de quem, sabendo-se doente sem cura, enganava a morte dançando um tango.
Analisando o poema pela sua estrutura, encontramos recursos modernistas empregados
pelo autor. Esse é um movimento vanguardista que tem como um de seus objetivos a
liberdade de expressão, porque não podemos esquecer que, durante o século XX,
estivemos num período de Guerras Mundiais e da Guerra Fria, ou seja, o mundo vivia
uma época de tensão. Manuel Bandeira, após eliminar as características simbolistas e
parnasianas, é enquadrado no espírito modernista em que há uma junção entre a
confissão pessoal e a vida cotidiana. Nessa poesia, predomina a subjetividade e
reafirma-se o velho poder de inspiração nos moldes românticos, mas, no caso dele, há
uma síntese de subjetividade e objetividade. Bandeira faz uso de um estilo simples,

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capta a complexidade da existência e a apresenta de maneira clara e comum, reduzindo
tudo ao essencial. A maior parte da obra é construída sob forma de diálogos, o que nos
remete a uma linguagem coloquial, fazendo uso dos versos livres. Utiliza-se um recurso
de linguagem chamado onomatopeia para “tosse” (a repetição dessa palavra dá um
efeito sonoro como se estivéssemos tossindo), e a linha pontilhada representa a
respiração intermitente do paciente.
Esse poeta teve participação decisiva na consolidação da poesia modernista.
Havia correspondência com outros autores, como Mário de Andrade, poetas que
estrearam na década de 30, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes e, mais
tarde, alguns que faziam parte da Geração de 45. Dessa forma, acompanhou os
movimentos literários que se desenvolveram no final dos anos 50, em especial a poesia
concreta. Bandeira conseguia fazer uma mistura de estilos, logo modos antigos de
composição não eram descartados de suas obras, e fazia incursões às formas mais
radicais das vanguardas e, sem perder a simplicidade, era exigente e inclusivo, valendo-
se da multiplicidade de técnicas. O próprio poeta dizia que, para ser um “poeta 100%”,
o mesmo deveria saber escrever tanto em versos livres quanto em forma fixa rígida.
Podemos citar o elogio de um de seus maiores admiradores, Carlos Drummond
de Andrade: "Bandeira tinha uma variedade de interesses literários e foi um mestre em
todas as formas de poesia. Assim, através de sua poesia, podemos, inclusive, entender
melhor o percurso da própria poesia brasileira". Seus textos inspiram escritores não só
em razão de sua temática, mas também devido ao estilo sóbrio de escrever. Bandeira foi
o mais lírico dos poetas. O poeta aborda temáticas cotidianas e universais, às vezes com
uma abordagem de "poema-piada", lidando com formas e inspiração que a tradição
acadêmica considera vulgares. Mesmo assim, conhecedor da Literatura, utilizou-se, em
temas cotidianos, de formas colhidas nas tradições clássicas e medievais. Em sua obra
de estreia (e de curtíssima tiragem), estão composições poéticas rígidas, sonetos em
rimas ricas e métrica perfeita, enquanto mais tarde, como vimos nos poemas acima, o
versos são livres e com rimas.
Um aspecto que impressiona o leitor dos textos sobre a morte do autor é que ele
jamais aborda o tema de maneira sentimental ou autopiedosa. Alimentando sempre da
esperança de cura, mesmo nos períodos mais dolorosos de sua vida, jamais se deixou
assaltar pelo sentido do puramente trágico. Muito pelo contrário: ele desenvolveu uma
extraordinária produção poética, reestruturando a sua identidade e empreendendo,
assim, uma forma de diálogo com o mundo à sua volta, sem faltar nela o bom humor. O
seu poema Pneumotórax é bastante esclarecedor neste sentido. Manuel Bandeira revela
ao mundo a disciplina que fora obrigado a seguir nos treze primeiros anos de tratamento
da tuberculose, bem como o esforço que teve de despender para poder associar alguma
produtividade com a utilização limitada de suas forças físicas.
Muitos autores afirmam, neste sentido, que a presença da ironia em seus poemas
deveu-se à convivência diária do autor com o pesadelo da morte. Ele se vale da ironia,
da serenidade e, algumas vezes, deixa explícito o desejo de querer encontrar-se com ela.
Foi enfrentando diariamente a tuberculose e lutando com todas as forças para viver, que
o consagrado poeta – sem nunca deixar de ser sentimental – construiu toda a sua
produção literária, afinal, suas produções começaram após a descoberta da enfermidade.
O seu legado ao povo brasileiro representa o milagre e a vitória da saúde sobre a doença
e da vida sobre a morte. Manuel Bandeira morreu aos 82 anos de idade sem nunca se
deixar abater, deixando-nos os ensinamentos e a beleza de sua poesia.

Referências:
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.

21
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/m/meus_poemas
_preferidos_m_bandeira
http://books.google.com.br/books?id=wht-Bbct7-
kC&pg=PA209&lpg=PA209&dq=representa%C3%A7%C3%A3o+da+morte+nos+text
os+de+manuel+bandeira&source=bl&ots=SPSkjq4gtr&sig=MmIxPFrDF3_85J4ii0uaq2
A2aeo&hl=pt-
BR&ei=gw8lTOytHIW8lQfavrX9Ag&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=8&v
ed=0CDsQ6AEwBw#v=onepage&q=representa%C3%A7%C3%A3o%20da%20morte
%20nos%20textos%20de%20manuel%20bandeira&f=false
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/livrosresumos/ult2755u2.jhtm
http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20070423114706AA9ewe9
http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u352126.shtml

DE SIMÕES LOPES NETO A ZIRALDO

O RIO GRANDE DO SUL DE SIMÕES LOPES NETO

FIGUEIREDO, Matheus
Burg

Resumo: No início do século XX, surgiu um autor que foi fortemente marcado por ser
um dos mais importantes regionalistas que já tivemos em nossa história literária,
chamado Simões Lopes Neto. Tal autor foi reconhecido ao escrever Contos gauchescos.
A obra revolucionou toda a forma narrativa, a linguagem e a temática central, fazendo
com que a imagem do gaúcho mudasse e se tornasse o mais fiel possível com a
realidade. Assim, toda essa mudança fez surgir, em séculos seguintes, autores que
usaram suas temáticas em suas obras e ainda leitores que, com seus livros, levaram cada
gaúcho a ter orgulho da sua terra.

Palavras-chave: Simões Lopes Neto; Contos Gauchescos; temática regional.

Abstract: In the beginning of the twentieth century, an author emmerged as one of the
most important regionalists that we have ever had in our literary history – Simões Lopes
Neto. He became famous for writing Contos Gauchescos, revolutionizing the whole
narrative, language and thematic form, making the gaucho image change in order to
become as close as possible to reality. This shift made new authors apply his thematic in
their pieces as well as providing the readers the feeling of being proud of their own
land.

Keywords: Simões Lopes Neto; Contos Gauchescos; regional thematic.

“Gaúcho velho como eu criado a broto


Que não se enrreda nas maneias do amor
Não sei por que o coração deste matuto
Caiu no piado deste anjo encantador”.
Paixão Côrtes

22
As mudanças políticas do Brasil, durante o século XIX, como a Abolição da
Escravatura e a Proclamação da República, não provocaram alterações relevantes tanto
estruturais quanto sócio-culturais para o país. A base econômica continuou sendo a
economia cafeeira, dando hegemonia aos grandes proprietários em São Paulo e, em
Minas Gerais, havia grandes produtores de gado para objetivar a produção de leite,
formando a chamada “política do café com leite”.
No entanto, fatores como a urbanização, a imigração e o crescimento industrial
modificaram o caráter social da época e ocasionaram a formação dos grandes centros
urbanos, originando a “narrativa urbana”. Desse modo, estabeleceu-se um contraste
entre enredos urbanos como em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
Antonio de Almeida, e interioranos, absorvendo a coloquialidade e os temas da vida
nesse contexto como em O gaúcho, de José de Alencar. Assim o termo regionalismo
passou a ter contornos de textos de ficção que primavam pelo retrato pitoresco,
“recreativo, original”, do interior dentro de uma visão urbana. Entretanto, Simões Lopes
Neto consegue quebrar essa ótica da cidade, demonstrando o universo realista
gauchesco com o uso de uma linguagem essencialmente oral e com um sentido
universal em seus contos.
Nos primeiros vinte anos do século XX há, portanto, a presença de resquícios
culturais do século passado a partir da busca de novas formas de expressão e do desejo
em redescobrir uma crítica cultural. Assim, o Brasil procurava sua identidade tanto a
partir da elaboração de temáticas quanto linguísticas, variando entre a adesão aos
modelos europeus e a pesquisa de aspectos locais. Essa variação é bem descrita em
Prosa de Ficção, de Lúcia Miguel Pereira, a qual descreve que a literatura brasileira é
fruto de imitação, pois, em nossa história literária, fizemos um caminho inverso de
nosso regionalismo começando pelo universalismo clássico, passando pelo
americanismo romântico e, por fim, chegando ao brasileirismo. Sua obra retrata que,
nos fins do século passado, houve o chamado Regionalismo Puro, o qual despertou o
viver de nossa gente deixando a população livre de influências. Além disso, descreve-se
sobre o Indianismo, caracterizando-o, pelo impulso romântico da época, ao desejo de
sobrepor-se aos portugueses – outro fator étnico de nossa formação – e ainda
valorizando o caráter nacional. O eco do indianismo permaneceu vago devido ao
brasileirismo e, influenciado pelo naturalismo, acabou tornando os regionalistas mais
objetivos.
Desse modo, Lúcia Miguel Pereira relata que podemos considerar pioneiros do
regionalismo Valdomiro Silveira, Afonso Arinos e Simões Lopes Neto, os quais
retrataram, no gauchismo, uma linguagem guasca, tornando mais definido o
regionalista. Em Textos de intervenção, Antonio Candido retrata o regionalismo e a
busca pelas formas de encontro, originadas pelo contato entre europeus e os meios
americanos.
Em Prosa de ficção, Lúcia Miguel Pereira (1973) afirma que o regionalismo é
caracterizado pelos costumes, pela linguagem local e configura-se como principal
atributo do pitoresco O escritor sobrepõe “o particular ao universo; o local ao humano;
o pitoresco ao psicológico, movido menos pelo desejo de observar costumes, porque
então se confundiria com o realista” (PEREIRA, p.176). O crítico descreve que o
regionalismo deveria ser algo mais simples e espontâneo, mas acaba se transformando
em um “artificialismo quase teatral”, por isso há uma preferência pelos contos, pois,
dessa forma, acaba se dissimulando melhor, mostrando a visão do personagem e
apresentando-os como expressão de seu meio de modo instantâneo.

23
Um dos regionalistas de maior importância para a nossa história literária foi o
gaúcho João Simões Lopes Neto, nascido em Pelotas no ano de 1865. Tal autor pode ser
considerado o precursor de Guimarães Rosa, pois tratava de temas como o drama
humano e a natureza com feições universais. O narrador dos contos em sua obra Contos
gauchescos é Blau Nunes, o qual demonstra a influência de Guy de Maupassant em seus
textos, além de representar o mundo decadente do campo na passagem do século na
Semana de Arte de 1922. O regionalismo universal utiliza uma linguagem guasca.
Em Contos gauchescos, há em sua composição dezenove contos e, dentre esses,
alguns se destacaram, como Trezentas onças; Melancia-coco verde; Contrabandista;
Jogo do osso; O negro Bonifácio; Boi velho; No manantial. Assim, para narrar as
histórias do Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto cria um dos mais célebres
personagens da literatura gauchesca: o velho vaqueano Blau Nunes, caracterizado pelo
autor por ser:

Desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes,


vista aguda e ouvido fino (...) sadio, a um tempo leal e ingênuo,
impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz,
sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez
brilhando através da imaginosa e encantadora loquacidade
servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.
(GONZAGA, 2007, p.262)

Com isso, o narrador possuía duas principais características: uma delas era o
conhecimento da história por ter presenciado as narrativas diretamente ou por ter
ouvido, ou por tê-las vivenciado. Assim tanto a primeira quanto a segunda característica
propõem um principal objetivo: a tentativa de expressão do homem do campo.
A ótica de Blau Nunes em relação ao gaúcho consegue contrastar diferentes
virtudes em certos personagens. De um lado, celebra-lhe o registro do código de morais
do Rio Grande do Sul como a hombridade, a bravura, mostrando um homem que tem
apenas seu cavalo e as habilidades campeiras; por outro, mostra a honestidade, a
natureza até mesmo como senso premonitório. Isso fica bem evidenciado no conto O
negro Bonifácio, o qual descreve que haveria uma carreira entre o Tordilho do Nadico e
o picaço do major Terêncio. Em tal local, comparecem o Negro Bonifácio. Sempre
destemido, ele aposta um cesto de doces com Tudinha, “chinoca lindaça como o sol e
fresca como uma rosa” (LOPES, 1912, p.24), namorada de Nadico, que o picaço do
major Terêncio venceria. Efetuada a carreira, vence o tordilho pertencente ao Nadico e
Bonifácio. Quando vai pagar sua aposta, ela o trata com desdém, provocando uma briga
generalizada. O negro mata o Nadico e a mãe de Tudinha, mas por fim Bonifácio é
atingido e, após vários golpes, acaba morrendo. Tal conto, além de evidenciar que
houve uma relação entre o Negro Bonifácio e Tudinha, relata virtudes como a bravura,
mostrando a violência e ainda apresentando uma linguagem essencialmente oral.
Já no conto Trezentas onças, o protagonista perde dentro de uma guaiaca
trezentas onças que deveriam ser entregue ao seu patrão para o pagamento das cabeças
de gado que ele estava indo buscar em outra estância. Diante desse fato, fica
desesperado e pensa em suicídio, mas ele é tocado pelo esplendor da natureza ao ver as
três-marias no céu, o cachorro e o seu cavalo, demonstrando a natureza como senso
premonitório. Por fim, o seu dinheiro é restituído por tropeiros honestos, e tudo acaba
bem. Isso demonstra a honestidade do gaúcho, que possui outras virtudes fora a bravura.
A linguagem regionalista anterior a Simões Lopes Neto era narrada na norma
urbana culta da língua, fazendo com que tais relatos parecessem artificiais ao leitor se o

24
objetivo era retratar o homem do campo. Assim, Simões ampliou o léxico e, às vezes, a
sintaxe própria da linguagem da campanha, ainda que continuasse se submetendo à
forma da norma urbana. Com isso, ele mantinha o pitoresco sem romper com a tradição
literária.
Desse modo, Contos Gauchescos tratam de uma linguagem marcadamente
regional, a qual conta com criativas metáforas, dando a impressão de naturalidade, além
de espanholismos, arcaísmos e corruptelas. Outra marca de Simões Lopes Neto é a
oralidade, o que vem a ser uma espécie de conversa com o leitor, tornando possível que
todos os contos se estruturem como se fossem relatos feitos pelo vaqueano Blau Nunes
a um interlocutor mais jovem do que ele, podendo recorrer a eventos que aconteceram
no passado histórico do Rio Grande do Sul, em meados século XIX, como a Revolução
Farroupilha, as Guerras Platinas e a Guerra do Paraguai. O conto Melancia-coco verde
evidencia a linguagem oral utilizada por Simões:

Tu sai já; vai direito lá em casa, mas não chegues. A Talapa,


depois d'amanhã, de noite, se casa, à força, com o ilhéu... Tu
mata cavalos, boleia e monta os que precisares... arrebenta-te,
mas chega antes do casamento... Não digas a ninguém, nem lá
em casa, que me viste, nem que sabes de mim... Mas vai ao
velho Severo, mete-te lá, custe o que custar e acha jeito de dizer,
que ela ouça, que o coco verde manda novas à melancia... Ela
entende. Compreendes?... Eu sou o Coco Verde, ela é a
Melancia... Só nós sabemos isso... e tu, agora. Vai. Tu vais
adiante; logo mais eu sigo, se não morrer neste revira. Vai,
Reduzo!... Coco verde... Melancia... Não esqueças... Abaixa-
te!... abai!. (LOPES NETO, 1912, p.96).

A técnica do conto de Simões Lopes Neto provém do escritor e poeta francês


Guy de Maupassant, então o escritor mais lido no mundo, devido aos seus contos curtos,
nervosos e centrados em uma única ação: o desfecho inesperado e trágico. Simões
consegue controlar os pontos de tensão de cada relato, adiando o desfecho do texto na
busca da forma dramática. Outro autor que também usou o modelo de Guy de
Maupassant foi Monteiro Lobato. Esse autor pré-modernista, da mesma forma que
Simões, teve importância para o nosso regionalismo ao criar um personagem-símbolo
de nosso regionalismo: Jeca Tatu. Símbolo do caboclo, Jeca era doente, subnutrido, o
caipira “desengonçado”, o matuto palerma, o ser rústico, produto da interferência e da
miscigenação de raças.
O regionalismo de Simões, nos relatos de Contos gauchescos, parte de temáticas
regionais, atingindo frequentemente dimensões filosóficas universais. Assim ele
consegue ultrapassar o regionalismo superficial (documentar hábitos e peculiaridades
dos homens na campanha gaúcha) e alcançar os sentimentos humanos mais profundos.
Essa forma de narrar seria retomado no século XX por Guimarães Rosa, em Grande
Sertão: veredas, que utiliza o linguajar sertanejo com uma invenção de um novo léxico.
O romance de 1930 foi uma resposta ao colapso econômico que o Brasil
enfrentava, tanto pela queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque quanto pelos
movimentos tenentistas e a Coluna Prestes. Entretanto, tal período literário também
representou um momento decisivo na modernização do país através do governo de
Getúlio Vargas, o qual incentivou a industrialização e o ensino público.
Entre outros que seguiram a temática rural, podemos citar Cyro Martins, em
Porteira fechada, trilogia do Gaúcho a pé. A história relata a trajetória de João Guedes,

25
o qual passa dificuldades financeiras, tendo até mesmo que roubar para dar sustento a
sua família. Tal obra também pode ser relacionada ao regionalismo de Simões Lopes
Neto, retratando a imagem do gaúcho; todavia, a partir de uma ótica diferente, trata da
marginalização do Rio Grande do Sul, diferentemente da bravura do gaúcho de Simões.
Além disso, na Ficção Contemporânea de 1945 até 1970, há vários autores de
importância para tal período, mas João Guimarães Rosa foi aquele que retomou
características de Simões Lopes Neto através da diferente forma de narrar seus contos.
Esse constrói uma linguagem inovadora em Grande Sertão: veredas, utilizando uma
transfiguração estilística cujo idioma é o arcaico dos sertanejos. Além de incorporar um
linguajar sertanejo, inventa construindo um novo léxico, contendo onomatopeias,
musicalidade, aliteração e metáforas.
Com isso, apesar de décadas se passarem, Simões Lopes Neto só ganhou
seguidores que se inspiraram e se interessaram pelo seu regionalismo, pois utilizou uma
linguagem oral e um célebre personagem para narrar seus contos em Contos
gauchescos: Blau Nunes. Assim, não foi só novos autores que o seguiram, mas também
leitores principalmente do Rio Grande do Sul, que admiraram em seus contos virtudes e
a forma da linguagem, levando cada gaúcho a ter orgulho de nossa história, deixando-
nos cada vez com mais amor por nosso Estado.

Referências:
CANDIDO, Antonio. Textos de Intervenção: Seleção, apresentações e notas de
Vinicius Dantas. São Paulo: 34, 2002.
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.
LOPES NETO, Simões. Contos gauchescos & lendas do sul. Porto Alegre: L&PM
Editores, 1998.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção (de 1870 a 1920): História da Literatura
Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, 3ed.

SIMÕES LOPES NETO E UMA OBRA TIPICAMENTE GAÚCHA

Gabriel Carvalho Heemann

Resumo: A obra, Contos Gauchescos, escrita por Simões Lopes Neto em 1912, é, sem
dúvida, uma das mais destacadas da literatura. Nesse livro surge a imagem de um dos
personagens fictícios mais conhecidos pelos gaúchos que é Blau Nunes. Considerado
um registro dos valores morais do Rio Grande do Sul, Blau vê que a honra e a coragem
são os valores mais importantes para a formação da identidade. Outro aspecto de grande
relevância que elevou essa obra a símbolo do Regionalismo Brasileiro foi a linguagem
característica do Estado do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Simões Lopes Neto; Contos Gauchescos; Blau Nunes; imagem do


gaúcho; linguagem.

Abstract: The work, “Contos Gauchescos”, written by Simoes Lopes Neto in 1912, is
undoubtedly one of the most prominent of the literature. In this book there is the image
of one of the best-known fictional characters by the gauchos which is Blau

26
Nunes. Considered a record of moral values of Rio Grande do Sul, Blau sees that the
time and courage are the values most important to identity formation. Another aspect of
great importance that this work has raised as a symbol of Brazilian Regionalism was the
language characteristic of Rio Grande do Sul.

Keywords: Simões Lopes Neto; “Contos Gauchescos”; Blau Nunes; image of


“gaúcho”; language.

“A educação tem raízes amargas, mas os frutos são


doces.”
Aristóteles

O regionalismo foi iniciado no período literário chamado Romantismo. Essa


temática é apresentada em diversas obras, contudo é na obra de Simões Lopes Neto que
se edifica o marco dessa corrente literária, revolucionando o modo de se escrever. Antes
disso, o regionalismo era caracterizado por textos fictícios que abordavam algum
aspecto do mundo rural; pois, sob uma ótica urbana, ficava-se evidente o distanciamento
do narrador e do autor do homem rural, vistos que este utilizava uma linguagem local, e
aqueles narravam a história de acordo com as normas formais de escrita. Neto alterou
tudo isso em Contos Gauchescos. O autor adotou como enfoque narrativo a primeira
pessoa de um narrador gaúcho, porque assim a distância entre o homem culto e o
homem regional era praticamente inexistente. Com esse narrador, evitam-se as
diferenças culturais entre quem narra e quem é o objeto da narrativa. Neto consegue
usar seu conhecimento da língua culta e “misturá-la” à fala gaúcha, fazendo os textos
possíveis de serem compreendidos, mesmo com tantas marcas orais. É possível
identificar que:

A influência popular tem um limite; e o escrito não está obrigado


a receber e dar curso a tudo que o abuso, o capricho e a moda
inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma
grande influência a este respeito, depurando a linguagem do povo
e aperfeiçoando-lhe a razão (HOLLANDA, 1953, p.69).

É por meio de um personagem fictício, Blau Nunes, que Simões Lopes Neto
narra as histórias, e essas conservam as marcas do contar da forma oral. Por isso, os
enredos contam, além dos termos regionais, com espanholismos (mui, Bueno), arcaísmo
(escuitar, peor) e corruptelas (vancê, desgosto).
O modelo de conto é o utilizado por Guy de Maupassant, autor que se
caracteriza por apresentar textos curtos, centrados numa única ação que conduza a um
desfecho surpreendente e geralmente trágico. Simões Lopes Neto sabe contas histórias,
instigando e, ao mesmo tempo, postergando o desfecho, buscando a máxima
dramaticidade.
Contos Gauchescos é composto por dezenove contos que relatam de forma
realista o universo gauchesco. As histórias contadas por Blau Nunes abrangem um
período que se inicia na Independência até meados do século XIX, englobando a
Revolução Farroupilha, as Guerras Platinas e a Guerra do Paraguai.
Ao citar o nome de Blau, logo se faz referência a Simões Lopes Neto. Blau é,
ao mesmo tempo, protagonista e narrador de suas histórias. Inicialmente, Blau é
apresentado ao leitor por Neto: “Patrício, apresento-te o Blau, o vaqueano” (NETO,
2008, p.13). Depois é caracterizado, e explica-se o porquê de ele ser o narrador ideal:

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Eu tenho cruzado nosso Estado em caprichoso ziguezague. ”(Neto
, 2008, p.13).
Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos
os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu aprumo de
furriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro
improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré [...]
Genuíno tipo-crioulo-rio-grandense (tão modificado), era Blau o
guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e
na temeridade, precavido perspicaz, sóbrio e infatigável; e dota de
uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e
encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco
dialeto gauchesco” (NETO, 2008, p.14).

Nesse recorte, pode-se perceber que há, em Blau Nunes, características


incomuns para um homem quase centenário: possuir todos os dentes, visão aguda e
ouvido fino remetem à ideia de que o tempo não o marca, logo é um homem forte. A
vivência dos períodos importantes do Rio Grande do Sul, e o conhecimento de todo o
Estado, possibilitam contar várias histórias nas quais ele participou, testemunhou ou
apenas ouviu. É possível fazer uma comparação com o cavalo já que só é destacado o
tórax, os dentes, órgãos dos sentidos – e isso é indispensável ao animal. Um dos
atestados de boa saúde do cavalo é a dentaria, pois, se há dentes, possui uma boa saúde.
Blau Nunes é o guardião da memória coletiva, pois viveu nos tempos
históricos. O tempo presente, no qual Blau relata suas memórias, e o tempo passado,
quando ocorrem os contos, são diferentes, e esse contraste é visível no texto
“Contrabandista”. Nesse conto, conta-se a história de Jango Jorge que vai buscar, em
contrabando, o vestido de casamento de sua filha, mas é morto pelo guarda. O narrador
faz um breve resumo do contrabando no Rio Grande do Sul:

Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde antes


da tomada das Missões. (NETO, 2008, p.131).
Foi o tempo do manda-quem-pode!...E foi o tempo que o gaúcho,
o seu cavalo e seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam
estes pagos!. [...] Quem governava aqui o continente era um chefe
que chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias, mas não
garantia pelego dos sesmeiros... (NETO, 2008, p. 134).
Rompe a Guerra do Paraguai[...] O dinheiro no Brasil ficou muito
caro [...] Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e
cabelo e nas coletorias umas papeladas cheiras de benzeduras e
rabioscas. (NETO, 2008, p.134).

Esses trechos remetem a um passado que era de fácil passagem pela fronteira,
de campos abertos, espanhóis e gaúchos cruzavam-na; todavia, esse “núcleo
comunitário” sofreu uma mudança para a sociedade estamentária. Essa forma
comunitária acabou devido basicamente à introdução do gado e do cavaleiro e à
militarização da fronteira.
Nos contos, o gaúcho é mistificado, tornando-se um herói que possui uma
grande coragem e honra, e isso é evidenciado nesta passagem do conto “Trezentas
Onças”, no qual Blau pensa em cometer suicídio ao supor que poderia ser considerado

28
ladrão mesmo injustamente, pois perdera as moedas de outro do patrão que seriam
usadas para comprar gado:

Então, senti frio dentro da alma... meu patrão ia dizer que eu


havia roubado!... roubado... Pois então eu ia lá perder as onças!...
Qual! Ladrão, ladrão, é que era!... E logo uma tensão ruim entrou-
me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha
daquela suposição. (NETO, 2008, p.22).

Nesse trecho, verificamos como o empregado é fiel ao chefe, parecido em parte


com as relações de suserania e vassalagem da Idade Media. Além disso, o gaúcho é leal
também aos outros, pois, no final desse conto, uns homens entregam-lhe a sua guaica
que havia perdido. Embora o gaúcho seja muito orgulhoso, ele conhece seu lugar na
hierarquia, e obedece veemente à autoridade, como é o caso neste trecho do “Duelo de
Farrapos”: “A gente como é bicho bruto e os graúdos não dão confiança de explicar as
cousas, por isso é que não sei muitas delas.” (NETO, 2008, p151). Percebe-se que Blau
Nunes executa ordem de Bento Gonçalves mesmo não sabendo muitos fatos.
Uma característica decorrente em quase todos os contos é a violência, sendo
muitas vezes minuciosamente descrita por Blau Nunes, como acontece em “O negro
Bonifácio”. Este conto se passa numa carreira entre o tordilho do Nadico e o “picaço”
do major Terêncio. Negro Bonifácio aposta com Tudinha, para provocá-la, no “picaço”
do major. Como ele havia perdido, aproxima-se dela para pagar a aposta, mas ela não
aceita. Sentindo-se ofendido, a destrata inicia uma briga generalizada em que o negro,
depois de bater em outros gaúchos, acaba derrubado, então Tudinha mata-o:

A Tudinha já não chorava, não; entre o Nadico, morto, e a velha


Fermina, estrebuchando, a morocha mais linda que tenho visto
saltou em cima do Bonifácio, tirou-lhe da mão sem força o facão
e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponte e de
corte... por fim, espumando-se e rindo-se, desatinada – bonita
sempre!-, ajoelhou-se ao lado do copo e, pegando o facão como
quem finca uma estaca, tateou o negro sobre a bexiga, pra baixo
um pouco – vancê compreende? – e uma, duas, três, vinte,
cinquenta vezes cravou o ferro afiado, como quem espicaça uma
cruzeira numa toca... como quem quer estraçalhar uma cousa
nojenta... como quem quer reduzir a miangos uma prenda que foi
querida e na hora é odiada. [...] Em roda, a gauchada mirava, de
sobrancelha rugadas, porém quieta: ninguém apadrinhou o
defunto. (NETO, 2008, p.32).

Analisando esse trecho, constata-se como é comum as cenas de morte tanto aos
homens quando às mulheres, pois alguns assistem ao que Tudinha está fazendo e nada
fazem. Mesmo numa sociedade essencialmente machista, a atitude da mulher não é
frágil, inativa como era de costume na época. Ela não se submete silenciosamente ao
homem, e luta pela sua sobrevivência. A imagem dela não é a usual: a de se entregar ao
varão apenas após o casamento. Nesse mesmo conto, Blau Nunes revela que Tudinha
tinha se entregado ao Negro Bonifácio, por isso tanto ódio ao esfaqueá-lo e, no final, o
narrador dá o seu parecer sobre a mulher:

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Que, de qualquer forma, ela vingou-se, isso, vingou-se; mas o
resto que ela fez no corpo do negro? Foi como um perdão pedido
ao Nadico ou um despique tomado da outra, da piguancha
beiçuda?... [...] Estancieira ou peonas, é tudo a mesma cousa...
tudo é bicho carboteiro...; a mais santinha tem mais malícia que
um soro velho! (NETO, 2008, p.33).

A religião não é um tema tão presente quanto a guerra na obra, contudo é fácil
percebê-la, pois a crença do gaúcho não é parecida com, por exemplo, a dos padre que
creem em Deus e rezam por ele. A religiosidade está associada à natureza, em que os
ruídos produzidos por ela, como o latido do cachorro, podem ser a voz de Deus;
portanto, é algo muito intuitivo e só surge em determinadas situações. Isso está presente
no conto “Trezentas onças”:

- Ah! Patrício! Deus existe... No refilão daquele momento, olhei


pra diante e vi... as Três-Marias luzindo na água... o cusco
encarapitado na pedra, ao meu lado , estava me lambendo a mão...
e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho,
ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali
perto, num oco de pau!... – Patrício! não me avexo duma heresia;
mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele
que mandava aqueles bichos arredarem de mim a má tensão
(NETO, 2008, p.22).

Os Contos Gauchescos não é uma obra como as outras regionalistas, que são
geralmente uma simples análise dos hábitos e das ações da população de um região
específica, mas transcende fronteiras e se caracteriza como um regionalismo universal.
Os valores morais que aparecem nos contos têm sentido universal, envolvem questões
filosóficas que poderiam ser aplicadas a diversas sociedades.

Referências
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.
NETO, Simões Lopes. Contos Gauchescos. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2008.
DA SILVEIRA, Verli Fátima. Imaginário sobre o gaúcho no discurso literário: da
representação do mito em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, à
desmistificação em Porteira Fechada, de Cyro Martins. 2004. 332fs. Tese (Pós-
Graduação em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2004.
www.forumdaigrejacatolica.org.br/artigos/presença_de_deus_na_literatura_simoniana_
pdf
DORFMAN, Adriana. Contrabandistas na fronteira gaúcha: escalas geográficas e
representações textuais. 2009. 360fs. Tese (Pós-Graduação em Geografia) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
O FILHO DO RIO GRANDE DO SUL
Marcus Vinicius Silva de Paula

Resumo: Este artigo visa apresentar a visão que o regionalista João Simões Lopes Neto
expressa em seus textos. É notável a forma como os protagonistas de suas histórias se
mostram a partir da linguagem típica da região – essencial para caracterizá-lo como um

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regionalista. O deslumbre pela terra natal e a visão de Simões Lopes Neto sobre a figura
do gaúcho também são retratados em seus textos.

Palavras-chave: Regionalismo; Rio Grande do Sul; tragédia; pampa; Blau Nunes.

Abstract: This article aims to talk about the vision that the regionalist João Simões
Lopes Neto expresses in his texts. It is notable the way that the protagonists of his story
express themselves with the use of typical language from the region that the author was
born – which is essential to characterize him like a regionalist. The fascination for his
hometown and the vision of Simões Lopes Neto about the gaucho figure is also notable
in his pieces.

Keywords: Regionalism; Rio Grande do Sul; tragedy; pampa; Blau Nunes.

Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava
no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles
bichos brutos arredarem de mim a má tensão...
O cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente, o
meu cavalo lembrou-me a
liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe esperança.

João Simões Lopes Neto, nascido em Pelotas no ano de 1865, era descendente
de uma família da elite rural do Rio Grande do Sul. Quando completou 13 anos, foi para
o Rio de Janeiro estudar no Colégio Abílio. O autor iniciou os seus estudos no curso de
medicina que durou aproximadamente uns três anos, mas sobre isso não há muita
certeza. Quando retornou ao Sul, precisamente para Pelotas, essa estava rica e próspera
devido ao charque – base econômica da cidade. Essa cidade foi o berço onde Simões
Lopes Neto iniciou sua vida empresarial. Em sua primeira tentativa, ele criou uma
fábrica de vidros, cujos operários eram todos franceses, e os aprendizes, meninos pobres
da região. Ele também participou da montagem de uma destilaria, trazendo diversos
homens ricos e os convencendo a serem acionistas. As indústrias fracassaram, pois,
nessa época, houve uma guerra civil (1890) que abalou duramente a economia local.
Mas, mesmo assim, dez anos depois e com a herança recebida de seu pai e de
seu avô, Catão Bonifácio Simões Lopes, João Simões Lopes fundou uma fábrica de
cigarros. O fumo e o cigarro produzidos receberam o nome de marca de Diabo. Mas a
escolha do nome acabou criando tumultos com a igreja, impossibilitando o
funcionamento da empresa. Nas aventuras de Simões Lopes Neto, ele criou uma firma
de moer e queimar café, inventou uma fórmula à base de tabaco, com finalidade de
combater sarna e carrapatos, a Tabacaina, que se manteve por dez anos no mercado. Ele
também fundou a Empresa de Mineração do Taió. A mineradora visava às lendárias
minas de prata, localizadas em Santa Catarina. Contudo, essa também não deu certo, e
ele percebeu que não tinha a vocação para o empreendedorismo.
Com todos esses fracassos, o esperado concretizou-se, e Simões Neto acabou
ficando pobre e começou a se sustentar de atividades jornalísticas. Ninguém percebeu a
sua importância na literária, e ele morreu aos 51 anos por causa de uma úlcera
perfurada.

SIMÕES LOPES NETO E A LITERATURA BRASILEIRA

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Segundo estudiosos e críticos da literatura brasileira, tais como Lúcia Helena e
Antônio Cândido, João Simões Lopes Neto foi o maior escritor do regionalismo sul-rio-
grandense, pois, em suas obras literárias, ele procurou a valorização da tradição e da
história do gaúcho. Como grande parte dos escritores e artistas plásticos, ele somente foi
reconhecido como um grande autor anos após sua morte, para ser mais preciso, no ano
de 1949. Entre os textos, podemos citar:

*Cancioneiro Guasca (1910)


*Contos Gauchescos (1912)
*Lendas do Sul (1913)
*Casos do Romualdo (1914)

Em uma de suas obras – Contos Gauchescos – percebem-se alguns traços do


autor, tais como a fixação no mundo gauchesco, a forma narrativa presente no texto, a
forma como o autor se dirige á paisagem do Rio Grande do Sul e, o mais importante,
pois é com isso que o caracterizamos de regionalista, a forma de falar, pois a linguagem
é tipicamente regional.

TREZENTAS ONÇAS
O conto “Trezentas Onças” trata de um tropeiro e seu cachorro, em que o
homem fora encarregado de levar trezentas onças de ouro como pagamento pelo gado
que o patrão havia adquirido. Contudo, no caminho, o tropeiro resolve descansar na
beira de um rio e acaba por banhar-se. Depois ele segue viagem e percebe que o
cachorrinho estava muito agitado, latindo e querendo voltar para o rio, mas ele não se
importa e continua. Quando chega à estância onde iria passar a noite, ele percebe que
havia esquecido a sua guaiaca em cima de uma pedra no rio e, junto com ela, as
trezentas onças de ouro. Ele se desespera e volta correndo para o rio, mas, chegando lá,
percebe que sua guaiaca não se encontrava mais no local onde havia esquecido. Mais
desesperado ainda, ele pensa até em se matar, pois o que o patrão pensaria se soubesse
que ele havia perdido tal quantia de seu dinheiro? Ele pensa, portanto, em seus filhos e
resolve que não vale a pena. Voltando para a estância, ele vai ao local onde o estancieiro
mora e percebe que lá estava a sua guaiaca com as trezentas onças.

Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro,


com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui
neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da
Coronilha, onde devia pousar.

Esse conto é interessante porque ele relata a figura gaúcha com muita
coerência. O exemplo é esse homem que estava encarregado de levar as trezentas onças
de seu patrão, pois, no momento em que ele percebeu que havia perdido o dinheiro, ele
preferiu a morte à desonra. Não estamos, portanto, do gaúcho ladrão e sem caráter
pintado nas pampas antes do Romantismo.

O NEGRO BONIFÁCIO
Tudinha era filha de Siá Fermina, e diziam que seu pai era o capitão
Pereirinha. Ela e a mãe haviam ido às carreiras. Também foram os quatro namorados de
Tudinha, sendo um deles o Nadico. Apareceu lá o negro Bonifácio, que começou a
pastorear Tudinha e a convidou para uma aposta. Ela aceitou. Se ganhasse, receberia
uma libra de doces. A tordilha em que ela apostara venceu. No meio da comemoração,

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apareceu o negro, trazendo os doces, e Tudinha mandou que ele desse os doces à mãe
dela. O negro insistiu. Nadico pegou os doces e os jogou na cara do muçum. Começou
a confusão. O negro, Nadico, os outros namorados de Tudinha e os que tinham contas a
ajustar com aquele negro atrevido brigaram. O negro foi ferido. Nadico teve a barriga
aberta, depois morreu –Tudinha agarrou-se a ele. Fermina jogou água quente no negro e
este, depois de urrar, atravessou-a com o facão. Ao mesmo tempo, um bolaço atirado
por um homem acertou a cabeça do negro, que caiu. Tudinha, que não chorava mais
pelo Nadico morto e pela mãe Fermina, estava estrebuchando, com muita raiva, e saltou
sobre Bonifácio, tirou-lhe o facão e vazou os olhos dele.
Depois cravou o facão debaixo da bexiga. De vinte, cinquenta vezes cravou o
ferro afiado como quem espigaça uma cobra cruzeira, numa toca, como quem quer
reduzir a mingos uma prenda que foi querida e, na hora, é odiada.

Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado! ... mas, taura,


isso era, também!
Mas o rebenqueador, o rebenqueador... eram os olhos!...

Este conto chama a nossa atenção devido ao fato de que o negro Bonifácio não
recuava um passo que fosse, mesmo lutando contra um número superior de adversários,
e ainda conseguia matar todos e assim proteger seu orgulho como homem. Aqui o
gaúcho é, portanto, um arsenal de virilidade.

MELANCIA – COCO VERDE


Quando começa um conflito com os castelhanos, o cadete Costinha é um
dos primeiros a se apresentar ao comandante das armas para servir. Junto dele, como
companheiro e ordenança, vai Reduzo, com quem Costinha havia se criado. O problema
é que Costinha era apaixonado por sia Talapa, filha de um fazendeiro da região. O pai
da moça, no entanto, não queria de jeito nenhum o casamento dos dois, e encasquetou
que ela iria se casar com um sobrinho dele, primo dela, descrito por Blau Nunes como
'um ilhéu mui comedor de verduras'. Mesmo assim, Costinha e sia Talapa combinam
que vão se casar um com o outro, nem que para isso ela tenha que fugir de casa na
garupa do cavalo do namorado. Contudo, nessa época, surge a tal questão com os
castelhanos, e Costinha tem de se afastar da moça. Combinam que, para recado, ou
carta, ou aviso, ela teria o nome de Melancia, e ele, de Coco Verde. Desse trato, apenas
os dois sabiam. Despedem-se e apenas Reduzo vê o beijo que Costinha dá na moça na
hora da despedida. Quando Severo tem notícia de que as tropas andam distantes e
entreveradas com os castelhanos, manda chamar o tal ilhéu para que se realizasse o
casamento. Informado sobre a cerimônia por um rapaz que chegava ao local onde
estava, Costinha, para não desertar em meio à batalha, incumbe Reduzo de chegar a
tempo e informar a sia Talapa que Coco Verde mandara lembranças à Melancia.
Chegando antes do casamento, Reduzo declama o verso que Costinha havia
enviado, e a moça cai para trás aos gritos. Começa uma confusão, e o casamento não se
realiza.
Dois dias depois, chega Costinha, que vai pedir a mão de sia Talapa em
casamento. O velho Severo termina aceitando, e Reduzo torna-se o capaz da fazenda do
casal.

Eu venho de lá bem longe,


Da banda do Pau Fincado,
Melancia, Coco verde

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manda muito recado!
Na polvadeira da estrada
O teu amor vem da guerra...
Melancia desbotada!...
Coco Verde está na terra!

PRÉ-MODERNISNO E SIMÕES LOPES NETO


O pré-modernismo foi um período que marcou a transição entre parnasianismo e
simbolismo, seguido pelas inovações do Modernismo. Os primeiros 20 anos do século
XX foram marcados tanto por resquícios do século XIX quanto pela busca de novas
propostas ou pela necessidade de uma forma nova de se expressar. No pré-modernismo,
nomeado dessa forma pelo crítico Alceu de Amoroso Lima, nos anos de 1950, pode se
identificar como:

Parnasianos = que tem como principais autores Olavo Bilac e Coelho Neto.
Simbolistas = criado na França, como oposição ao Realismo, ao Naturalismo e ao
Positivismo.
Realistas = se destacaram nessa área os autores conhecidos como Monteiro Lobato,
Lima Barreto e o Simões Lopes Neto.
Intérpretes do Brasil = grupos integrado por Euclides da Cunha e Graça Aranha.

O REGIONALISMO PRESENTE EM SIMÕES LOPES NETO


O termo regionalismo foi criado em correspondência aos autores que faziam uso
de um jogo linguístico diferenciado. Eles criaram uma nova forma de dialeto nos seus
textos, usando as particularidades linguísticas de uma determinada região geográfica
decorrente da forma que as pessoas realmente se expressavam um espaço. Simões
Lopes Neto resolveu não usar a norma urbana culta, pois assim soaria artificial a
linguagem e não demonstraria a figura real do gaúcho. Então ele acabou criando uma
nova forma de se expressar em seus textos, conhecido como regionalismo. E foi assim
que seu famoso personagem, Blau Nunes, nasceu.
Ele é o personagem principal em “Contos Gauchescos”, pois narra as histórias
que havia presenciado em sua jornada pelos pampas gaúchos. Devido à expressão de
Blau Nunes, percebe-se na linguagem uma característica diferenciada, marca de uma
região especifica, ou seja, uma forma regional. Nela se percebem várias misturas de
dialetos de diferentes lugares, tais como espanholismo (despacito, entrevero, etc.),
arcaísmos (escuitar, peor, etc.), corruptelas (vancê, desgoto, etc.), e também se percebe
uma grande quantidade de termos específicos da região (china, chiru, etc.), sem contar
algumas variantes do próprio Simões Lopes Neto.
Para criar a aproximação do leitor, em “Contos Gauchescos”, Simões cria um
narrador Blau Nunes, o qual narra suas histórias para alguém: um homem mais jovem,
supostamente o próprio autor. Como Blau tem diante de si um ouvinte, ele nos permite
indagações, assertivas, reticências e silêncios, criando uma técnica inconfundível, a qual
muito depois seria retomada por João Guimarães Rosa em “Grande sertão: vereadas”.
Um exemplo desse tipo de linguagem, conforme Augusto Mayer, parece
reconstituir “o timbre familiar das vozes”:

Era um chinocão de agalhas!* (...) Seiúda, enquartada, de boas


cores, olhos terneiros(...) e com uma trança macota*, ondeada,
negra, lustrosa, que caía meio desfeita pelas costas, até o garrão!

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O pré-modernismo foi escolhido em nossa pesquisa, porque nos identificamos
com a figura gaucha retratada nos contos do autor. Além disso, Blau Nunes é um
excelente contador de histórias, lembra, muitas vezes, a figura do avô querido de nossas
famílias. No nosso caso, um avô ex-militar que, sempre que podia, contava histórias,
talvez não tão trágicas quanto as que Blau presencia, mas outras que também ficam
marcadas para sempre em nossas lembranças.

Referências
* Wikipédia
* Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto.
* Curso de Literatura Brasileira de Sergius Gonzaga.

O REGIONALISMO UNIVERSAL DE SIMÕES LOPES NETO

Pedro Henrique Costa Adams

Resumo: Simões Lopes Neto foi um dos maiores escritores brasileiros e foi também,
segundo os críticos, o que melhor representou o Regionalismo no Brasil. Entretanto, o
Regionalismo em sua obra é aliado a um forte sentimento universal, o qual permite a
qualquer leitor – interior ou exterior à região, conhecedor ou desconhecedor das
tradições – comover-se e entender o que cada parte da obra propõe.

Palavras-chave: regionalismo, universalismo.

Abstract: Simões Lopes Neto was one of the greatest Brazilian writers. He was also,
according to a significant number of specialists, the one who represented best
Regionalism in Brazil. However, the regionalism in his work is combined to a strong
universal feeling, which allows any reader – in or outsider to the region, with some or
any knowledge at all about the region’s tradition – to get touched and understand what
every piece of his work purposes.

Keywords: regionalism, universalism.

Atende pelo nome de regionalismo o problema, que


para certos cosmopolitas que estão no lado vencedor
da vida nem problema é ao passo que para muitos
dos perdedores, sejam eles provincianos mentais ou
não, é tema que vem ao caso. ”(Luís Augusto
Fischer, Conversa Urgente Sobre Uma Velharia)

O regionalismo, na literatura, é marcado por estilos específicos de autores


vindos de diferentes confins territoriais e culturais que marcam em seus textos as
tradições locais – sendo estas nem sempre delimitadas por fronteiras políticas. Um
exemplo disso é a comparação feita por Luís Augusto Fischer em sua “Conversa
urgente sobre uma Velharia”: a América Espanhola inteira divide o mesmo idioma,
entretanto, as tradições nacionais diferem devido aos diferentes históricos de cada país;
enquanto que, no Brasil, as barreiras que dividem as tradições não são fronteiras pátrias,
portanto há diversos estilos regionalistas dentro do mesmo país.

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Aqui o regionalismo foi explorado por alguns célebres escritores, tais como
José de Alencar, Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Simões Lopes Neto. Entretanto
será a marcante característica da universalidade semântica da obra deste último que o
tema que merece atenção neste ensaio.
Descendente de uma família elitista rural do Rio Grande do Sul, o pelotense
João Simões Lopes Neto conseguiu com êxito captar o mundo que o subjugava na
época. Tendo como cidade natal a que há muito foi o núcleo econômico da pecuária,
mas que estava em decadência, escreve suas histórias sempre relembrando um passado,
de modo quiçá nostálgico, segundo Sergius Gonzaga.
Quem narra todos os seus contos é um velho vaqueiro, chamado Blau Nunes.
Este nem sempre é personagem das histórias que conta, podendo por vezes aparecer
presenciando um fato ou apenas ouvindo um relato.
A posição de Blau Nunes em relação ao gaúcho é dupla. Por um lado, a
hombridade, a bravura e a honestidade são louvadas, a exemplo do conto Trezentas
onças – no qual Blau perde uma bolsa cheia de moedas de ouro a ele confiada pelo
patrão e cogita a possibilidade de matar-se a ser considerado ladrão. Por outro, o
narrador-protagonista é um gaudério por essência, conhecedor do punhal, do cavalo, das
charqueadas; portanto olha para os que têm pompa com certa desconfiança –
expressando novamente a nostalgia de uma época em que a hierarquia social era
totalmente hierarquizada.

“Simões Lopes Neto resolveu o problema fazendo


largo uso do léxico e eventualmente da sintaxe
próprios da linguagem da campanha, mas
submetendo-os à morfologia da referida norma
urbana culta. “Assim, ele pôde manter a “cor local”
sem romper com a tradição literária brasileira.” (J.
H. Dacanal)

Neto domina perfeitamente a técnica do conto, a ponto de ter sua obra


comparada ao modelo contista de Guy de Maupassant, um dos mais lidos escritores da
época. Maupassant apresenta textos com pouca extensão, centralização em uma ação
apenas que conduz o leitor a um desfecho inesperado, frequentemente trágico.
Percebemos que apesar da característica regional da obra do autor, ele já abrange um
estilo universal na estrutura do conto, o de preparação do leitor para um clímax final –
estilo também bastante explorado por Edgar Alan Poe.
Além dos traços universais na estrutura, são marcantes também os aspectos
sentimentais, os quais movem muitos dos contos, como em “Contrabandista”, conto no
qual o pai se arrisca atravessando a fronteira para buscar um vestido de noiva para a
filha e aparece morto no dia do casamento – a cena em que a família espera o patriarca e
seus homens é incrivelmente tocante, e não se precisa ser interno às tradições gaúchas
para comover-se.
Entretanto não há conto que mais comova que “O Boi Velho”. No conto, Blau
Nunes conta-nos sobre a relação afetiva que o boi, Cabiúna, que levava a carreta na qual
as crianças passeavam pela estância, e esse atendia pelo nome e parecia demonstrar
prazer em fazer o que a vida inteira fez. De certo modo, o leitor sente-se apegado ao
animal, para que, no fim, o animal seja morto friamente por um peão que o julgou velho
demais.

“O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o

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cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou
a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue
do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho,
quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo,
algum pregaço de picana, mal dado por não estar
ainda arrumado... – pois vancê creia! – soprando o
sangue em borbotões, já meio roncando na
respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns
passos mais, encostou o corpo ao comprido no
cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinha, no
lugar da canga... e ficou arrumado, esperando... e
ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a
brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...
E ajoelhou... e caiu... e morreu...” (NETO, Simões
Lopes, O Boi Velho)

O sentimento de pena que temos do boi é universal, entretanto a narração


do peão Blau Nunes constrói o regionalismo na obra do autor. É esse o paralelo que
deve ser feito entre as duas características que, à primeira vista, são antagônicas –
afinal, algo universal nos traz imagens sem nenhum limite, enquanto que algo regional
nos limita a um espaço.
Para ilustrar um pouco mais o tema, analisaremos o conto “Jogo do Osso”.
Neste, Chico Ruivo participava do tal jogo que dá nome ao conto e aposta com Osoro
tudo que tinha, até mesmo, por fim, a mulher. Esta, quando entregue ao novo ‘dono’,
tenta vingar-se do ex-marido, que a havia jogado e perdido, dançando com o homem e
insinuando-se ao máximo. Então, Chico Ruivo, que tudo perdera – inclusive a mulher –,
mata os dois bailarinos que o provocavam com um só golpe que atravessa os dois
corpos, conta Blau Nunes.

“Vancê compr’ende? Do mesmo talho varou os dois


corações, espetou-os no mesmo feno, matou-os
da mesma morte, fazendo os dois sangues, num de
cada peito, correrem juntos num só derrame... que
foi lastrando pelo chão duro, de cupim socado,
lastrando... até os dois corpos baterem na parede,
sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois
tombarem por cima do balcão, onde estava
encostado o tocador, que parou um rasgado bonito e
ficou olhando fixe para aquela parelha de dançarmos
morrentes e farristas ainda!...” (Neto, Simões Lopes.
O Jogo Do Osso)

Não é necessário conhecermos as tradições regionais – como o funcionamento


do tal jogo, por exemplo – para compreendermos a dimensão reflexiva do conto. O
sentimento de raiva provindo da humilhação que Chico sofrera é comum a todos em
qualquer parte do mundo, mas fora retratado, naquelas circunstâncias, na campanha
gaúcha no século XIX por Simões Lopes Neto, com a linguagem campeira do bravo e
velho Blau Nunes.

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Simões Lopes Neto inova. Retrata com excelência as peculiaridades locais da
sua terra em uma época, para ele, louvável, sem que sua obra fosse considerada
folclórica. Consegue também tratar de temas que mexem com o sentimental do leitor,
por mais que ele não tenha a menor intimidade com a realidade retratada. O um exímio
contista foi um pelotense que fez por merecer o reconhecimento internacional que
adquiriu com o seu inédito Regionalismo Universal.

Referências
Curso de Literatura Brasileira, Sergius Gonzaga.
Jogo Do Osso, Simões Lopes Neto.
O Boi Velho, Simões Lopes Neto.
Conversa Urgente Sobre Uma Velharia, Luís Augusto Fischer.

PRÉ-MODERNISMO: UMA FASE REPLETA DE CONFLITOS

Pedro Henrique Pibernat de


Moraes.

Resumo: O Pré-Modernismo foi um período literário que, apesar de ter sido curto, teve
extrema importância para a literatura brasileira. Nessa época, inúmeras obras relataram
de forma um tanto quanto fiel os conflitos ocorridos. Um bom exemplo é a obra, de
Lima Barreto, ‘’Triste Fim de Policarpo Quaresma’’. Proponho nesse ensaio ter como
enfoque esse livro que teve uma enorme importância para a literatura e debateu qual o
principal conflito abordado em seu texto. Também gostaria de analisar a relação do forte
sentimento de nacionalismo que pode ser notado no personagem principal (Policarpo
Quaresma) e a situação política e econômica que o Brasil enfrentava.

Palavras-chave: Pré-Modernismo; Triste Fim de Policarpo Quaresma; conflitos;


Revolta da Armada.

Abstract: The Pre-Modernism was a literary period that was short. However, it was
extremely important for the Brazilian literature. During this period, numerous works
have reported so much as true conflicts in the same season. A good example of this is
the work of Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. I propose to focus on the
approach that this work had a tremendous strain to the literature and also to discuss
what the main conflict in this work is all about. I would also like to examine the
relationships between the strong sense of nationalism that can be noticed in the main
character (Policarpo Quaresma) with the work mentioned above, as well as the political
and economical situation that Brazil was facing at that time.

Keywords: Pré-modernism; Triste Fim de Policarpo Quaresma; conflicts; Revolta da


Armada.

Tendo o seu início demarcado no ano de 1902, o Pré-Modernismo foi um


período literário que serviu como uma ponte que unia o Parnasianismo e o Simbolismo.
Recebem esses nomes todas aquelas obras escritas entre os anos de 1902 e 1922.
Portanto, antecedem o Modernismo. O Pré-Modernismo não pode ser considerado um
movimento literário e nem uma escola como as demais, e sim uma fase ou período que

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une propostas e autores distintos, pois não foi constituído a partir de uma ação
organizada.
Talvez por ter sido um período muito curto, foram poucos os autores e as
obras publicadas. Por isso, quase todos tiverem uma grande importância. Os principais
autores dessa fase com suas respectivas obras foram: Euclides da Cunha, Os Sertões;
Graça Aranha, Canaã; Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma; Monteiro
Lobato, Cidades Mortas, e Augusto dos Anjos que, segundo alguns autores, traziam
elementos do Pré-Modernismo, Simbolismo, Parnasianismo e Naturalismo.
O que demarcou o final do Pré-Modernismo e, respectivamente, o início do
Modernismo, foi a Semana da Arte Moderna de 1922. Evento ocorrido em São Paulo,
construiu-se como um processo de renovação da linguagem. Ela provocou um enorme
impacto na literatura, na música, na poesia, na escultura e na pintura. Após esse evento,
houve inúmeras mudanças nessas formas de arte.
Nas obras do Pré-Modernismo, pode-se observar que, na maioria delas, são
abordados conflitos ocorridos no Brasil. Em ‘’Os Sertões’’, é tratada a revolta ocorrida
em Canudos. Também na obra que servirá de fio condutor para esse debate, ‘’Triste fim
de Policarpo Quaresma’’, tem-se analisada a ‘’Revolta da Armada’’ – ocorrida no Rio
de Janeiro, foi um movimento organizado pela marinha e apoiada pela oposição
monarquista (elite cafeicultora) contra o governo do marechal Floriano Peixoto. Para
evitar uma guerra civil, o marechal Deodoro renunciou à Presidência da República.
Após a renúncia, o vice-presidente Floriano Peixoto assumiu o cargo e, em 1892,
assumiu a Presidência da República. A oposição acusou, então, Floriano de manter-se
ilegalmente à frente da nação.
Houve também uma segunda Revolta da Armada quando, em 6 de setembro
de 1893, um grupo de altos oficiais da Marinha exigiu a imediata convocação dos
eleitores para a escolha dos governantes. Entre os revoltosos, estavam os almirantes
Saldanha da Gama, Eduardo Wandenkolk e Custódio de Melo, ex-ministro da Marinha
e candidato declarado à sucessão de Floriano. Sua adesão refletia o descontentamento
da Armada com o pequeno prestígio político da Marinha em comparação ao do
Exército. No movimento se encontravam também jovens oficiais e muitos
monarquistas. A revolta teve pouco apoio político e popular na cidade do Rio de
Janeiro, onde diversas unidades encouraçadas trocaram tiros com a artilharia dos fortes
em poder do Exército. Houve sangrenta batalha na Ponta da Armação, em Niterói, área
guarnecida por aproximadamente 3.000 governistas, os quais eram compostos, entre
outros, por batalhões da Guarda Nacional. A capital do Estado do Rio de Janeiro, então
em Niterói, foi transferida para a cidade de Petrópolis em 1894, de onde só retornou em
1903. Sem chance de vitória na Baía da Guanabara, os revoltosos dirigiram-se para o sul
do país. Alguns efetivos desembarcam na cidade de Desterro (atual Florianópolis) e
tentaram, inutilmente, articular-se com os federalistas gaúchos.
O presidente da República, apoiado pelo Exército brasileiro e pelo Partido
Republicano Paulista, conteve o movimento em março de 1894 e fez adquirir, às
pressas, no exterior, novos navios de guerra – a chamada "frota de papel". A frota,
adquirida nos Estados Unidos, denominada pelos governistas como "Esquadra Flint",
viajou do porto de Nova York até a Baía de Guanabara tripulada por mercenários
estadunidenses. De acordo com Joaquim Nabuco, as tropas contratadas para auxiliar o
governo federal eram "a pior escória de filibusteiros americanos". A partir disso,
sabesse que essa revolta foi de grande importância na história do Brasil.
O livro Triste fim de Policarpo Quaresma é dividido em três partes. Faremos
uma análise do seguinte trecho retirado da primeira parte dessa obra e também das
principais características da mesma:

39
De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera
muito tempo a meditar qual seria a expressão poética musical
característica da alma nacional. Consultou historiadores,
cronistas e filósofos e adquiriu certeza de que era a modinha
acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve
dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente
brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a
quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor da cidade
e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e
tirar dela um forte motivo original de arte. (Lima Barreto,
1916);

Na primeira parte, temos inúmeras características do personagem principal


desde tipos de alimentos e bebidas tipicamente brasileiros até plantas nativas em seu
jardim. Ele também tinha um interesse muito grande pela música e pelo folclore do
Brasil. Esses são alguns dos fatores que serviram para destacar o grau de nacionalismo
apresentado por Policarpo. Sem falar nas ações que exaltavam ainda mais o seu
nacionalismo extremado como, por exemplo, quando ele resolve estudar violão,
instrumento de má fama na época, pois era associado a malandros como Ricardo
Coração dos Outros, já que descobre que a modinha, estilo tipicamente brasileiro, era
tocada com esse instrumento. Esse regionalismo era muito presente em grande parte das
obras escritas nesse período e tornou-se uma das principais características dessa fase. A
segunda parte mostra o Major Quaresma desiludido com as incompreensões, o que o faz
se retirar para o campo onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no
combate às saúvas. Nesta parte, dedicada à Agricultura Brasileira, vemos Quaresma
refugiar-se num sítio que comprou, em Curuzu, e tem por intenção provar que o solo
brasileiro é o mais fértil do mundo. Dedica-se, portanto, a estudar tudo o que se refere à
agricultura.
A terceira parte desse livro é a mais importante para nossa análise, pois é nela
que é retratada a Revolta da Armada anteriormente explicada. Nela, encontra-se um
Policarpo Quaresma que apoia Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os
interesses pessoais que movem as pessoas, desnudando o tiranete grotesco em que se
convertera o "Marechal de Ferro". Quaresma larga seus projetos agrícolas ao saber que
estava ocorrendo a Revolta da Armada, quando marinheiros se rebelaram contra o
presidente Floriano Peixoto. Na filosofia do protagonista, sua pátria só seria grande
quando a autoridade fosse respeitada. Em defesa desse ideal, volta para a Capital para
alistar-se nas tropas de defesa do regime. Enfim, a revolta é sufocada. Quaresma é
transferido para a Ilha das Cobras, onde trabalhará como carcereiro. É então que
presencia uma cena que lhe é chocante. Um juiz aparece por lá e distribui as
condenações sem julgamento ou qualquer outro tipo de análise. Indignado, pois
acreditava que sua pátria, compreende que, para ser perfeita, a pátria teria de estar
sustentada em fortes ideais de justiça. Escreve uma carta para o presidente, pedindo,
portanto, a reparação de tal erro.
Infelizmente, o herói não foi interpretado adequadamente, o que mostra certa
falha dos governantes. Por causa de tal pedido, é preso e condenado à morte, pois fora
visto como um traidor. Há nesse ponto uma ironia, pois justo o único personagem que
se preocupou com o seu país foi considerado traidor, enquanto outros, que se
aproveitaram do conflito para conseguir vantagens políticas, como Armando Borges,
Genelício e Bustamante, saíram-se vitoriosos.

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No final, tal qual Dom Quixote, Quaresma acorda, recobra a razão. Percebe
que a pátria, por que sempre lutara, era uma ilusão, nunca existira. Num momento
pungente, tocante, descobre que passara toda a sua vida numa inutilidade.

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele
feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de
estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de
contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua
mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na
velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como
ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de
gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara,
não amara -- todo esse lado da existência que parece fugir um
pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele
não experimentara’’. (Lima Barreto; 1916)

Vale a pena ressaltar que no texto não fica explícita a morte de Policarpo.
Apenas se pode presumir que ele morre, pois a obra acaba no momento em que ele vai
dormir após o que teria sido o último dia de sua vida. Sendo ele, teoricamente,
executado na manhã do dia posterior.
Lima Barreto foi um autor pré-modernista que nasceu no ano de 1881 e morreu
em 1922 com 41 anos. Ele foi considerado Pré-Modernista segundo as características de
suas obras, que eram encontradas também em obras modernistas, como a sua temática
social que normalmente privilegiava os pobres, os arruinados e os boêmios. Em seu
texto, verificamos que a linguagem toma contornos mais coloquiais, o que acabou sendo
uma das preocupações centrais dos escritores modernistas.

Referencias
Livro: GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira: Leitura XXI, 2004.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Modernismo
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/quaresma.html

O UNIVERSO INFANTIL EM MONTEIRO LOBATO

Andressa Coelho

Resumo: Tomaremos como ponto de partida o período literário chamado Pré-


Modernismo. Partindo desse contexto, falaremos sobre Monteiro Lobato, um dos
maiores escritores da literatura infantil dessa fase. A fim de entender a influência do
período em seus contos infantis, trabalharemos com dois contos distintos do Livro
Histórias de Tia Nastácia, construindo um ponto de vista analítico sobre a história de
João e Maria.

Palavras-chave: Pré-Modernismo, Monteiro Lobato, Histórias de Tia Nastácia, João e


Maria.

Abstract: We will talk about the literary period called Pre Modernism as a starting
point. From this topic we will discuss about Monteiro Lobato who is considered one of
the greatest writers for children of that period. In order to undestand the influence of Pre

41
Modernism in his fairy tales, we will discuss two different tales of the book called
Histórias de Tia Nastácia, with a more precise analysis of the story of Hansel and
Gretel.

Keywords: Pre-Modernism, Monteiro Lobato, Nastasia Stories Aunt, John and Mary.

"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos


que veem normalmente as coisas e em consequência
fazem arte pura. (...) A outra espécie é formada dos
que veem anormalmente a natureza e a interpretam à
luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de
escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos
da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do
sadismo de todos os períodos da decadência (...)"
Num artigo publicado em 1917, Monteiro
Lobato reagiu assim à exposição de Anita Malfatti,
no jornal O Estado de São Paulo.

Fase de transição entre o parnasianismo e simbolismo e em direção ao grande


movimento modernista, podemos nomear como Pré-modernismo um período literário
brasileiro caracterizado por mudanças, sobretudo do Brasil rural para o urbano.
Para os autores, a transição de “resquícios culturais do século XIX” para uma
nova realidade que se desenhava fez com que o período histórico brasileiro interferisse
na produção literária da época. As agitações sociais, como a Revolta de Canudos,
acompanhadas do famoso fanatismo religioso do Padre Cícero e de Antônio
Conselheiro; as Revoltas da Chibata e da Vacina; o banditismo social e a Guerra do
Contestado são apenas alguns conflitos que esboçam esse contexto.

Desenvolve-se um estilo mundano, meio


jornalístico, meio sofisticado, aquele “sorriso da
sociedade” como entendia a literatura de Afrânio
Peixoto em um texto de literária brasileira que vale a
pena escrever como índice da forma mentis: A
literatura é como o sorriso da sociedade. Quando ela
está feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz as
nas artes, e na arte literária, com ficção e com
poesias, as mais graciosas expressões da
imaginação. Se há apreensão ou sofrimento, o
espírito se concentra grave, preocupado, e então,
história, ensaios morais e científicos, sociológicos e
políticos, são-lhe a preferência imposta pela
utilidade imediata.

Embora a quantidade de autores representantes seja pequena, conta com nomes


de grande valor para a literatura brasileira. Muitos autores romperam com a temática
dos períodos anteriores e não avançaram o suficiente para serem considerados

42
modernos, construindo textos, portanto, que possuem um ar de conservadorismo
associado a propostas realmente inovadoras.
Como principais pré-modernistas, podemos citar Monteiro Lobato, Euclides da
Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Valdomiro Silveira, Augusto dos Anjos, entre
outros. Contudo, apesar de citarmos incríveis autores, trabalharemos com o famoso
Monteiro Lobato, um dos escritores brasileiros com maior prestígios na literatura
infantil.

MONTEIRO LOBATO
José Bento Renato Monteiro Lobato, nascido em Taubaté, em 18 de abril de
1882, morreu na capital paulista em 4 de julho de 1948. Autor de importantes traduções
e editor de livros inéditos, teve grande destaque na era pré-modernista.
Em sua adolescência, Lobato tinha um grande talento para o desenho,
atuando como caricaturista por pouco tempo. Sonhava com a faculdade de Belas Artes,
mas, devido à imposição de seu avô Visconde, fez faculdade de Direito.
Sua marca pessoal é a sua irreverência e a fidelidade a seus preceitos.
Exemplo disso foi quando Monteiro fez uma crítica aos clichês paisagísticos de
Bernardo Guimarães, afirmando que as histórias do autor romântico eram por demais
idealistas ao retratar o interior do país. Lobato ressalta que Guimarães não descreve os
lugares e a natureza como são vistos, com vinco energético, com impressões pessoais,
mas falsifica a natureza em suas descrições e falta nos detalhes como se fosse um cego
descrevesse uma paisagem que apenas fora narrada sem vida.
Monteiro Lobato alcançou fama em meados de 1917, exercendo na cultura
nacional um importante papel entre os contistas regionalistas. Empenhou-se pelo
progresso social e mental das pessoas.
Suas primeiras obras narrativas foram “Urupês”, “Cidade Mortas” e
“Negrinha”, as quais são uma coletânea de contos. “Urupês” relata um pouco sobre a
preocupação de desenlaces deprimentes e chocantes. Era para ser intitulado “Dez
Histórias Trágicas”, mas foi alterado para “Urupês”. Já em “Cidade Mortas”, é uma
tentativa de reprodução de cenas e pessoas vistas no vilarejo do Vale do Paraíba,
tornando-se uma sátira local. Por fim, “Negrinha” é um livro heterogêneo que toma nos
costumes sentimentos polêmicos da vontade de doutrinar e reformar.
Logo em seguida, os livros de ficção científica à Marvel e à Dursley,
polemizam a economia e a sociedade que surgiria, por fim, na fusão de fantasia e
pedagogia que se apresentará em sua produção infantil.
Seu trabalho na literatura infantil foi muito valorizado e continua sendo até os
dias de hoje. A metade de sua produção está focalizada para esse público, sendo a outra
metade referente a artigos, prefácios, contos, um romance e um livro tratando da
importância de produtos como o ferro e o petróleo.

HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA


Das muitas obras escritas pelo autor, destacamos “Histórias de Tia
Nastácia”, um livro infantil, publicado em 1937, onde analisaremos dois contos:
“Histórias de Tia Nastácia” e “João e Maria”.
Referente à obra em geral, destacamos como uma de suas características o
fato de haver pequenas histórias formando episódios. Entre os 44 contos encontrados,
concluímos que entre eles apenas 27 acabam com um ponto final, 10 deles sem
pontuação e 07 terminam com reticência. Palavras simples, de fácil entendimento e do
cotidiano são expressos pelo autor com o intuito de ensinar temas complicados, como a
política e a cultura de um povo, por exemplo.

43
Histórias de Tia Nastácia, o primeiro conto analisado, pode ser entendido
como uma introdução da bela obra onde os personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo
fazem parte. Damos início à curiosidade de Pedrinho em saber o significado da palavra
folclore e, em seguida, a explicação de Dona Benta à boneca Emília:

- Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer
dizer sabedoria, ciência. Folclore são coisas que o povo sabe por
boca, de um contar para o outro, de pais a filhos – os contos, as
histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria
popular etc...

Ao descobrirem o significado da palavra, Pedrinho resolve pedir para a tia


Nastácia contar suas histórias, seus folclores, pois ela “é o povo”, mulher esperta, sábia
e conhece centenas de casos curiosos e incríveis.

Então, Monteiro termina o capítulo com a seguinte frase:

Foi assim que nasceram as História de Tia Nastácia - com o


objetivo dar imaginação ao público infantil e explicar como foi
o começo das histórias referidas durante o livro.

Seguindo a nossa analise, o conto “João e Maria” é uma das histórias


contadas pela negra Nastácia. Monteiro não deixou a imaginação de lado e, mesmo com
diferenças na obra, não fugiu do principio “João e Maria”, escrito pelos irmãos Grimm.
Mesmo encontrando diversas diferenças, o contexto não deixou de ser o mesmo.

ANÁLISE
A Clássica história de João e Maria é coberta de detalhes que enriquecem a
obra. Apesar de os dois contos terem um mesmo contexto, apresenta certas diferenças.
Na história dos irmãos Grimm, há uma madrasta que influencia o pai de João e Maria a
deixá-los na floresta devido à falta de alimento para todos. No conto de Monteiro, não
encontramos nenhuma madrasta e sim um casal que, devido à quantidade de filhos para
criar e às dificuldades enfrentadas, decidem aliviar a família a colocar os dois filhos
escolhidos para fora.
Em relação ao abandono das crianças, ocorre de forma diferente, pois, no
conto tradicional, há duas tentativas de abandono: com a descoberta das crianças e a
busca de proteção do irmão. Contudo, Monteiro faz um breve abandono do pai que
apenas os deixa na floresta e corre em direção a sua casa, pretendendo fazer que com se
percam.
A história segue com o encontro de João e Maria em uma casa de doces, onde
morava uma bruxa. Apesar de pequenas diferenças, o contexto começa a mudar
verdadeiramente a partir da fuga das crianças da casa da bruxa.
Essa fuga ocorre de duas formas completamente inusitadas. Enquanto no
primeiro conto analisado sabe-se que as crianças conseguem se livrar e partem para a
casa, depois de encontrar preciosas joias, voltam ao lar. A segunda história toma outro
rumo. Lobato descreve o encontro de João e Maria com a figura de Nossa Senhora, a
qual os aconselha e guia-os à salvação com a proteção de três cães fiéis.
E não acaba por aí. Anos depois, João e Maria continuam morando juntos na
casa da falecida bruxa. Enquanto João segue com os seus fies guardiões, Maria se

44
apaixona por um garoto da vizinhança que resolve dar cabo de João. Assim, Maria sai
de cena, e João se torna a figura principal em meio a princesas.

ANÁLISE DA OBRA “JOÃO E MARIA”


Tendo base de que o princípio entre as duas histórias são iguais, podemos fazer
uma análise geral do tema “João e Maria”. Devido à época que se encontrava a
primeira, a fome se torna o eixo da maior parte dessas histórias e até mesmo da
humanidade. Muitas guerras e muitos movimentos ocorreram devido à escassez de
alimento da população. Está é uma das narrativas que pais se livram dos filhos, e os
sacrificam para ficar com o pouco de alimento que abastece a família. Atitudes assim
eram comuns na sociedade europeia do período. Por isso, a insistência deste tema
tornou-se constante nas histórias infantis dessa época, como é o caso de O pequeno
Polegar.
Analisando de outra forma, é necessário se focar no difícil papel que as crianças
encaram o momento de desgarrar-se dos pais e seguir por si próprias. É necessário se
focar no funcionamento do bebê para compreender melhor o fato de os pais se livrarem
de seus filhos e da tarefa de os alimentarem. João poderia ser também um bom exemplo
de anorexia infantil, no qual a criança ignora e testa a vontade da mãe de lhe oferecer
alimento. Segundo o livro Fadas do Divâ: psicanálise nas histórias infantis, os dois
irmãos representam a separação entre o desejo da mãe que quer alimentar e a vontade
do filho.
Contudo, Monteiro provavelmente devido à época em que escrevia, podia ser
mais livre, esboçando enredos com mais imaginação e personificação. Além de fazer
com que as crianças entendessem o contexto e o princípio da história, introduziu bruxas,
fadas, monstros e magia, encantando os pequenos leitores.

Referências
http://pt.wikipedia.org/wiki/João_e_Maria
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pré-Modernismo
http://www.coladaweb.com/literatura/pre-modernismo
http://www.virtualpsy.org/infantil/infancia.html
http://www.graudez.com.br/litinf/autores/grimm/grimm.htm
http://www.scribd.com/doc/7087293/Irmaos-Grimm-JoAo-e-Maria
http://glauberataide.blogspot.com/2009/01/psicanalise-dos-contos-de-fadas.html
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira, 40 Edição – São Paulo,
Cultrix.
CORSO, Diana Lichtenstein. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis/ Diana
Lichtenstein Corso, Mário Corso. - Porto Alegre: Artmed, 2006.
LOBATO, Monteiro, 1882-1948. Histórias de Tia Nastácia/ Monteiro Lobato;
ilustrações Cláudio Martins. – São Paulo; Globo, 2009.

LITERATURA INFANTIL: DO PRINCÍPIO À ATUALIDADE

Otávio de Vargas Otília

Resumo: Este ensaio tem como objetivo a análise do desenvolvimento da literatura


infantil, com ênfase em Monteiro Lobato e, principalmente, Ziraldo Alves Pinto. Com
relação a este, dedico maior importância a sua obra capital: O Menino Maluquinho. O
personagem desse autor é considerado o símbolo do “menino brasileiro”, devido a sua

45
identificação com as crianças – alegres e sapecas. Suas histórias e aventuras descrevem
liricamente as atividades comuns do estágio mais inocente e ingênuo da vida: a infância.

Palavras-chave: Menino Maluquinho; Ziraldo; literatura infantil; Monteiro Lobato.

Abstract: This essay aims to analyze the development of children's literature,


emphasizing Monteiro Lobato and, mainly, Ziraldo Alves Pinto. I will dedicate more
focus on his main work: O Menino Maluquinho. The character of this author is
considered the symbol of the "Brazilian child”, due to his identification with children –
happy and frolic. Their stories and adventures describe lyrically the common activities
of the most innocent and naive stage of life: the childhood.

Keywords: Menino Maluquinho; Ziraldo Alves Pinto; literature; Monteiro Lobato.

“Quando rever é reviver


Preciso reviver, eu bem sei,
mesmo que só na lembrança,
voltar à minha antiga casa,
rever a minha infância
e todos os momentos felizes que lá passei.”
Clarice Pacheco

Com o objetivo de melhor transmitir as histórias às crianças, a literatura


infantil faz uso de jovens personagens, responsáveis pela representação de modelos de
infância e pelo debate de fatos significativos em seus cotidianos, interagindo com os
pequenos leitores. A utilização de tais personagens iniciou-se no século XIX, momento
em que as histórias passam a ser centradas nas crianças, como Alice e Pinóquio, o que
ocasionou a elevação do grau de interesses dos leitores pelo assunto e pelas respectivas
valorizações.
Na passagem do século XIX para o século XX, iniciou-se a literatura infantil
no Brasil, ainda que quase “primitiva”. Essas obras não visavam a entreter as crianças,
mas sim a “educá-las”. Elas traziam mensagens que visavam à exortação ao trabalho, ao
estudo, à obediência, à disciplina, à caridade e à honestidade e até ao civilismo e
patriotismo. Podem-se citar como exemplos as obras: Contos pátrios, de Olavo Bilac e
Coelho Neto, e Contos Infantis, de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira.
No entanto, foi apenas em 1921 que a literatura infantil ganhou grande
destaque com José Bento Monteiro Lobato. Foi nesse ano que o autor publicou suas
primeiras histórias infantis, tendo como prima A menina do Nariz Arrebitado, – mais
tarde reelaboradas –, as quais misturam a realidade com a fantasia em doses sábias,
utilizando uma linguagem objetiva junto a um humor dinâmico – características que
conquistaram de fato o leitor jovem. A maioria de suas histórias retrata o Sítio do Pica-
Pau Amarelo e seus habitantes – Dona Benta, Pedrinho, Narizinho, Emília, Rabicó, tia
Anastácia e outros -, obras que utilizam referenciais próximos das crianças, tais como
costumes interioranos (riachos, matos, animais) e seres do folclore brasileiro (sacis,
cucas, caiporas e mulas-sem-cabeça). Há também características que as diferenciaram
da literatura infantil da época: a ausência de moralismo adulto – os outros escritores
procuravam subordinar a inventividade e a liberdade das crianças aos valores mais
repressivos da família patriarcal – e a linguagem coloquial e acessível, sem, contudo,
chegar à simplicidade estilística que caracteriza boa parte das obras do gênero

46
atualmente.

“Pedrinho chegou e fez como fora previsto. Parou e – pá! –


machada. Mas fez aquilo por fazer, pela força do hábito, porque já
não tinha a menor esperança de encontrar pau vivente nenhum.
Com imensa surpresa sua, porém, o tronco gemeu – ai! ai! ai! – o
que o fez dar um pulo para trás como se tivesse pisado cobra.”

Lobato teve problemas financeiros na década de 30, o que o forçou a utilizar a


escrita como fonte do “pão de cada dia”. Para tal, criou obras com objetivos
pedagógicos, desde conteúdos escolares até adequação de clássicos para os pequenos –
Emília no País da Gramática e D. Quixote das crianças são bons exemplos.
A literatura infantil de Monteiro Lobato exerceu por pelo menos cinquenta
anos a insubstituível função de despertar o gosto pela leitura em milhões de crianças
brasileiras. Sobrevivendo ou não ao seu envelhecimento, ela será lembrada para sempre
por suas incríveis façanhas.
A partir do sucesso de Lobato, muitos escritores se inspiraram nele e se
dedicaram ao gênero literário. Um dos primeiros foi Viriato Correia com sua obra
Cazuza, 1938. A história retrata o cotidiano escolar de Cazuza durante a passagem dos
séculos XIX e XX, criticando, assim, o patriotismo cego, o militarismo e a instituição
escola, Durante a década de 40, época em que as crianças, em sua maioria, viviam na
cidade, foi utilizado o mundo rural como “plano de fundo” para as obras infantis.
Francisco Marins foi o grande represente desse período, cujas principais obras foram
Nas terras do rei Café e os livros que vieram em sequência: Os segredos de Taquara-
Poca, O coleira preta e Gafanhotos em Taquara-Poca.
Já, nos anos 50, certos aspectos mudaram. Houve variação dos temas, desde
obras ambientadas na Amazônia – com o escritor Jerônimo Monteiro, como em Corumi,
o menino selvagem (1956) – até pequenas peças infantis – escritas e dirigidas por Maria
Clara Machado, podendo-se citar O tablado (1953) e O rapto das cebolinhas (1953).
Ao final da década de 60, surgiram João Carlos Marinho e José Mauro de
Vasconcelos. Aquele escreveu obras em ritmo de suspense, histórias policiais
protagonizadas por crianças, das quais O gênio do crime (1969) foi uma das primeiras.
Este, no entanto, foi autor de um livro de grande sucesso, O Meu Pé de Laranja Lima
(1968), em que é apresentado um Brasil urbano com seus impasses e crises, também
tendo como personagem principal uma criança.
O “boom” da literatura infantil ocorreu na década seguinte, devido ao
crescimento gigantesco de instituições e programas voltados ao auxilio à leitura e à
discussão da literatura infantil. Em questões humorísticas, destaca-se Edy Lima, com
suas histórias mirabolantes, inusitadas e divertidas. Quanto às desigualdades sociais,
Odette de Barros Mott foi excepcional. Publicou, em 1970, Justino, o retirante – obra
na qual é retratada a vida de um menino que perdera o pai e cuja mãe abandonara a terra
natal. Na história da literatura infanto-juvenil, sobressaem Ana Maria Machado e Ruth
Rocha. Conta, a primeira, com mais de cem livros publicados no Brasil e em dezessete
outros países. Seus livros são repletos de beleza, lucidez, inteligência, audácia, sempre
respeitando a esperteza das crianças. A segunda escreveu mais de 120 livros com a
venda de um milhão de cópias. A autora transpassa o texto humor, crítica, sem
esquecer-se de discutir com o leitor as questões de poder.
Foi, em 1980, todavia, que surgiu o principal sucessor de Monteiro Lobato na
literatura infantil: Ziraldo Alves Pinto, com a criação do personagem Menino
Maluquinho. Mineiro de origem, seu nome surgiu a partir de fragmentos dos de seus

47
pais: “Zi-”, de Zizinha, “-raldo” de Geraldo. Fascinado pelo desenho desde menino, sua
outra paixão era a leitura. Lera desde Monteiro Lobato até Clemente Luz, o que o fez
encontrar o seu futuro: o “gibi”. Entretanto, devido à diversidade de sua obra, não é
possível limitá-lo apenas às artes gráficas. É um artista que tem, ao longo dos anos,
desenvolvido várias facetas de seu talento. Ziraldo é também pintor, cartunista,
jornalista, teatrólogo, chargista e caricaturista.
Ziraldo formara-se na Faculdade de Direito em 1957, mas acabou por não
seguir a carreira. Entrou no ramo da imprensa em 1954, quando participou da revista
Era Uma Vez. Trabalhou em vários jornais e assemelhados de Minas Gerais e foi
responsável por muitos cartazes de filmes, tais como Os Fuzis, Os Cafajestes, Selva
Trágica, Os Mendigos. Mas foi no Rio de Janeiro onde se consagrou um dos maiores,
mais respeitados e conhecidos artistas gráficos nacional e internacionalmente.
Nos anos 60, os cartuns e as charges políticas de Ziraldo na revista O Cruzeiro
e no Jornal do Brasil tornaram-se popularíssimos, dos quais os personagens Jeremias e
Supermãe são bons exemplos de tal feito. Foi também nesse período que ele realizou
seu sonho de infância: ser autor de histórias em quadrinhos. Ziraldo publicou a primeira
revista brasileira do gênero feita por um só autor. Ela se chamou A Turma do Pererê,
conjunto de histórias protagonizadas por uma turma, que compreendia um pequeno
índio e animais do universo folclórico brasileiro, chefiada pelo sempre esperto saci-
pererê.
Com a chegada da ditadura militar, A Turma do Pererê foi censurada devido o
seu teor nacionalista. Porém, a força dos personagens era tão forte que resistiu aos anos
opressores e foi republicado, em 1975, pela Editora Abril. Atualmente, as melhores
histórias estão sendo reeditadas pela Editora Salamandra.
Quando foi editado o AI-5, durante a Revolução Militar, muita gente contrária
ao regime procurou se esconder para escapar à prisão. Ziraldo passou a noite ajudando a
esconder os amigos e não se preocupou consigo mesmo. No dia seguinte à edição do
famigerado ato, foi preso em sua residência e levado para o Forte de Copacabana por ser
considerado um elemento perigoso.
Em 1968, Ziraldo teve seu talento reconhecido internacionalmente com a
publicação de suas produções na revista Graphis, uma espécie de “pantheon” das artes
gráficas. Teve ainda trabalhos publicados nas revistas internacionais
Penthouse e Private Eye, da Inglaterra, Plexus e Planète, da França, e Mad, dos Estados
Unidos. No ano de 1969, ganhou o Oscar Internacional de Humor no 32.º Salão
Internacional de Caricaturas de Bruxelas e o Merghantealler, prêmio máximo da
imprensa livre da América Latina, patrocinado pela Associação Internacional de
Imprensa e recebido em Caracas, Venezuela. Foi convidado a desenhar o cartaz anual
do Unicef, honra concedida pela primeira vez a um artista latino. Foi ainda naquele ano
que publicou seu primeiro livro infantil, FLICTS, que relata a história de uma cor que
não encontrava seu lugar no mundo. Nesse livro, usou o máximo de cores e o mínimo
de palavras. A embaixada dos Estados Unidos no Brasil presenteou com um exemplar
desse livro os astronautas americanos que pisaram na Lua pela primeira vez quando
estes visitaram o Brasil. Neil Armstrong leu o livro e, comovido, escreveu ao autor:
“The moon is FLICTS”.
Em 1980, Ziraldo recebeu sua maior consagração como autor infantil, na
Bienal do Livro de São Paulo, com o lançamento de O Menino Maluquinho. Esse livro
se transformou no maior sucesso editorial da feira e ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro, em São Paulo. Foi adaptado para o teatro, o cinema e para a web e
teve uma versão para ópera infantil, feita pelo maestro Ernani Aguiar. O Menino

48
Maluquinho virou um verdadeiro símbolo do menino nacional. Em 1989, começaram a
ser publicadas a revista e as tirinhas em quadrinhos desse personagem.
O livro O Menino Maluquinho conta com mais de 2,5 milhões de exemplares
vendidos, o que o tornou a obra mais consumida pelo editorial brasileiro. Ziraldo foi o
único autor capaz de fazer isso com apenas um único título. Para muitos, o personagem
é considerado a representação do “menino brasileiro”, devido às suas características que
se assemelham, em pelo menos uma delas, às de qualquer criança. Podem-se citar
exemplos delas como: “sapeca”, vivaz, guloso por doces, inquieto, “endiabrado”,
sonhador.
A história consiste em conflitos cotidianos de um menino, quase hiperativo e
espontâneo, como a separação dos pais, dos quais o garoto sai vencedor, vindo a tornar-
se um adulto perfeito. O livro é extraordinário para crianças de todas as idades, e
aquelas que já são adultas recomendam aos filhos, criando, assim, um ciclo infinito. A
infantilização da criança é um fenômeno recorrente na literatura nacional, porém
Ziraldo não a vê como frágil e desprotegida, ou seja, é contrário a essas tendências. Em
seus livros, ele proclama o respeito ao relacionamento criança-adulto através de uma
visão libertária e renovadora.
Os quadrinhos podem ser divididos em duas partes complementares entre si: o
desenho em preto e branco e prosa poética. Os desenhos ziraldianos são narrativos e
inseparáveis das falas verbais e, segundo o próprio Ziraldo, “o desenho é o sentido
literal, e o código escrito, o sentido metafórico”. A ilustração não é apenas um enfeite,
mas também, se boa, auxilia as crianças no gosto pela leitura. A linguagem é baseada
em jogos de palavras e de sentidos, pois, desse modo, o narrador induz o leitor a ir além
das palavras, a ler as imagens por trás delas, tornando, então, a leitura prazerosa, como
se fosse um jogo. Ela é também descontraída, simples e coloquial, aproximando-se da
oralidade, porém sem chegar à infantilidade, tanto na fala do personagem quanto na do
narrador, conforme transcrito abaixo:

Um dia no fim de ano


o menino maluquinho
chegou em casa com uma bomba:
"Mamãe, tou aí com uma bomba! (Ziraldo, 1980, p.4)

A poesia da narração é feita através sons e encantos fonéticos, sempre cheia de


ações e musicalidade. Isso torna a leitura mais agradável e prazerosa de ser feita. Assim
vista no trecho:

E quando vinha São João


o mais luminoso balão
que todo mundo apontava
era o gordo balãozinho
do menino maluquinho... (ZIRALDO, 2005, p.50)

Considerações finais
Ziraldo quis transmitir em sua obra a necessidade de a criança ser tomada
como centro de preocupações da sociedade para se obter uma sociedade mais justa,
ativa e próspera. Os valores, as ações e interações sociais do personagem Menino
Maluquinho mostram ao leitor ser necessário à vida adulta e equilibrada ter-se uma
infância feliz e proveitosa.

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Com o objetivo de conquistar as crianças, o autor utilizou humor cheio de
molecagem e naturalidade, embora houvesse momentos de críticas leves à sociedade.
No desenrolar das histórias, é possível verificar a valorização da amizade, do afeto e da
família, sem se olvidar do respeito às individualidades e do estímulo à participação
social.
O Menino Maluquinho é a representação da criança brasileira, e sua acepção
está associada a diversos aspectos da identidade nacional: comportamento afetivo e
descontraído; realizações de brincadeiras; festas e esportes nacionais. A utilização de
lendas, mitos e ditos populares da nossa cultura foi recurso explorado por Ziraldo para
caracterização do personagem. O crescimento feliz, alcançado pelo infante, corresponde
ao desejo individual de todo ser humano.

Referências
DA SILVA, Rosane Maria. O personagem Menino Maluquinho: do livro às recriações
na mídia. 2008. 144fs. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de
Marília, Marília. 2001.
WWW.ziraldo.com.br/
WWW.scribd.com/doc/7173675/Ziraldo-O-Menino-Maluquinho-Ilustrado

DE SIMÕES LOPES NETO A ZIRALDO

LES DEMOISELLES D'AVIGNON E A PROPOSTA DE UM MUNDO


FRATURADO

Francine de Oliveira Machado

Resumo: A pesquisa que segue se propõe a compreender alguns movimentos de épocas


em que conceitos e padrões tradicionais são rompidos para o surgimento de novos.
Buscamos, no Cubismo, esse entendimento.

Palavras-chave: movimento; conceito; arte; influência; cores.

Abstract: The following research aims to understand some old movements in which
traditional standard patterns are disrupted for the appearance of new ones. We have
searched this understanding in Cubism.

Keywords: movement, concept, art, influences, colors.

‘Uma arte que trata primordialmente de formas, e


quando uma forma é realizada, ela aí está para
viver sua própria vida. ’ (Pablo Picasso)

Esse trabalho propõe-se a compreender o movimento cubista e responder à


seguinte questão que nos instiga: Por que, em determinados momentos da história, as
pessoas pensam em romper conceitos e padrões que consideram ultrapassados? Por que

50
há essa necessidade? Inspirados por essas questões, decidimos pesquisar e entender a
proposta do Cubismo e sua influência no século XX.
O movimento cubista surge com o francês Paul Cézanne. Seus principais focos
de resistência foram as artes decorativas e a arquitetura do século XX. Apesar de ser
considerado um ato de percepção individual, o movimento possuía coerência. Era
inspirado na arte africana (sua "racionalidade") e no princípio de "realização do motivo"
de Cézanne. Este introduziu também nas suas obras a distorção das formas e os
formatos bidimensionais. O principal representante desse movimento foi o famoso
Pablo Picasso. Seus quadros retratam formatos geométricos a partir de uma sensação de
pintura escultural e superposição de partes de um objeto sob um mesmo plano.
Uma das obras mais conhecidas de Picasso é o mural Guernica, em exposição
no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid. O mural retrata, de
maneira muito peculiar, a cidade basca de Guernica após bombardeio pelos aviões da
Luftwaffe de Adolf Hitler. Esta grande tela incorpora para muitos a desumanidade, a
brutalidade e a desesperança da guerra.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Picasso continuou vivendo em Paris no
decorrer da ocupação alemã. Tendo fama de simpatizante comunista, era alvo de
controles frequentes dos alemães. Durante uma revista do seu apartamento parisiense,
um oficial nazista observou uma fotografia do mural Guernica na parede e, apontando
para a imagem, perguntou: ‘Foi você quem fez isso?’ E Picasso respondeu, após um
segundo de reflexão, ‘Não, vocês o fizeram.’
As pinturas de Picasso destacam formas geométricas como meio de expressão:
cones, cilindros, esferas, pirâmides onde os objetos são vistos pelo espectador por
ângulos diferentes. A visão cubista tem a função de ilustrar, na arte, a decomposição, a
fragmentação e a recomposição da realidade através das estruturas geométricas.

O nome deste quadro é "Les Demoiselles d'Avignon". É considerado um


quadro pré-cubista, ou o marco do início do Cubismo, evidenciando também o impacto
da arte africana sobre Picasso e a importancia desta para a própria caracterização do
Cubismo. Na época em que pintou este quadro, Picasso tinha completa noção de que
este era o quadro mais importante que havia pintado até então. Para a obra definitiva,
Picasso passou meses a fazer esboços e, durante o trabalho, fez inúmeras modificações.
Quando concluiu a obra, havia concebido a maior tela que alguma vez pintou.
Esta obra representa, para além de uma obra-prima do cubismo mundial, a
violação de tradições e convenções visuais naturalistas ocidentais ao apresentar cinco
aleivosas (prostitutas), representadas de forma cubista, como se nota na mulher nua
sentada à direita, vista simultaneamente de frente e de costas (WIKIPÉDIA). Os rostos
das personagens refletem o início do "Período Negro" na obra de Pablo Picasso –
quando este sofre uma forte influência do primitivismo, assemelhando-se a máscaras e

51
esculturas africanas. A estética geométrica e visual delimitou contornos quanto ao
futuro do cubismo.
Assim, compreendemos que esses movimentos surgem para romper padrões
antigos em que os artistas buscam, constantemente, novas formas de expressão e, para
isso, utilizam recursos diferentes e rompem com o tradicional fazendo uso de cores
vivas, figuras deformadas, cubos e cenas sem lógica.
Isso responde parte do nosso questionamento do porquê de as pessoas
pensarem em romper conceitos e padrões pré-estabelecidos. A pesquisa nos remete a
compreender os fatos históricos que mudaram a face da humanidade. O Cubismo foi,
entre tantos outros, um movimento destinado a romper as formas existentes. Esses
movimentos agrediam as formas tradicionais da arte.
No Brasil, foi somente a partir da Semana da Arte em 1922, que teve início,
formal, o movimento modernista. Seus objetivos primordiais eram romper com as
tradições acadêmicas, atualizar as artes e a literatura brasileiras em relação aos
movimentos de vanguardas europeias e, dessa forma, encontrar uma linguagem
autenticamente nacional. Essa mudança foi se inserindo em um longo processo de
descontentamento com o passado em que os pintores procuraram uma maior liberdade
técnica e expressiva, sobretudo quando se dedicaram à paisagem, a costumes e a tipos
populares.
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e Graça Aranha,
todos participantes das explosivas apresentações da Semana de 1922, conheceram, na
Europa, os movimentos vanguardistas e, quando voltaram ao país, estavam convencidos
da necessidade de promover uma revolução estética.
Foi nesse momento que surgiram vários grupos e movimentos opondo-se a
princípios básicos tradicionais. O escritor Oswald de Andrade e a artista plástica Tarsila
do Amaral lançam, em 1925, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o qual enfatiza a
necessidade de criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro.
Em 1928, os artistas levam ao extremo essas ideias com o Manifesto
Antropofágico, o qual propõe ‘devorar’ influências estrangeiras para impor o caráter
brasileiro à arte e à literatura. Tarsila do Amaral tornou-se fundamental para o
movimento. Sua pintura é baseada em cores puras e formas definidas. Frutas e plantas
tropicais são estilizadas geometricamente numa certa relação com o Cubismo.
Dessa forma, a influência europeia chega ao Brasil num movimento de
coragem e audácia em que a arte, em formas geométricas, decompõe a realidade. Tarsila
do Amaral foi um marco na arte Brasileira. Suas pinturas com colorido muito brasileiro
do casario, da paisagem, dos temas da vida rural ou da cidade grande dos anos 20 em
São Paulo chamaram a atenção de toda a sociedade. Tarsila integrava a vanguarda
intelectual e artística da época. Em Paris, estudou e frequentou ateliês dos pintores
cubistas. Ela apresenta as lições do Cubismo filtradas sob um olhar feminino.

(fig. 1)

52
(fig. 2)

A figura 1 se chama ‘A cuca’. Tarsila pintou este quadro no começo de 1924 e


escreveu à sua filha dizendo que estava fazendo uns quadros "bem brasileiros",
descrevendo-a como "um bicho esquisito, no meio do mato, com um sapo, um tatu, e
outro bicho inventado". Este quadro é também considerado um prenúncio da
Antropofagia na obra de Tarsila e foi doado por ela ao Museu de Grenoble na França.
A figura 2 se chama ‘Antropofagia’, Nesta tela temos a junção do "Abaporu"
com "A Negra". Este aparece invertido em relação ao quadro original. Trata-se de uma
das telas mais significativas de Tarsila. O colecionador Eduardo Costantini, dono do
"Abaporu", está muito interessado no quadro e já ofereceu uma soma muito alta por ele
(que foi recusada pelos atuais donos).
Assim, entendemos que essa corrente artística, que surgiu na França e que se
desenvolveu no Brasil durante a década seguinte, marcou, radicalmente, a pintura
daquela época. Padrões e conceitos da arte e da literatura foram rompidos, e isso
ocorreu porque um grupo de pessoas se propôs a coordenar a propagação e a
consolidação de novas ideias.
Atualmente, não diferente, a arte, a literatura e outros conceitos são
modificados e transformados pela necessidade que se apresenta e pelas novas tendências
de uma sociedade diferente: a sociedade do século XXI. Por isso, em cada época, as
transformações acontecem não só no viés estético, mas nos diferentes aspectos da
sociedade, criando, assim, uma nova identidade mundial. Dessa forma, a história se
renova porque outras pessoas se rebelam e buscam padrões inovadores.

Referências
http://www.pitoresco.com/art_data/cubismo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Renascimento
http://books.google.com.br/books?id=CGdSa1dk88kC&printsec=frontcover&dq=moder
nismo&hl=pt-
BR&ei=dt4sTPGHMMGqlAeg5KWeCQ&sa=X&oi=book_result&ct=book-
thumbnail&resnum=1&ved=0CCkQ6wEwAA#v=onepage&q&f=false Acesso em:
28/06/2010 às 20h
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tarsila_do_Amaral http://www.pinturabrasileira.com

A FOTO: UM OLHAR ARTÍSTICO PARA O MODERNO

Andiele R. Marchese

Resumo: A fotografia, ao longo de sua história, teve de enfrentar diversos obstáculos


para se consolidar como arte propriamente dita. Ela possuiu diversas formas e assumiu
estilos diferentes. Foi quebrando barreiras de padrões pré-estabelecidos, o que a
caracteriza como uma forma artística moderna. Permitiu-se dar ao mundo uma nova

53
proposta de visão sobre o cotidiano, dos objetos e das pessoas que nos cercam
diariamente.

Palavras-chave: Fotografia; Arte fotográfica; Modernismo; Modernismo no Brasil.

Abstract: The photography, throughout its history, had to face several obstacles to be
consolidated like art. It has had several forms and has taken different styles. Its
characterization as an artistic modern form was due to the barriers break down of
established standards. It has allowed the world to see a new vision of everyday life, as
well as objects and people that surround us.

Keywords: Photograph; photographic art; modernism; modernism in Brazil

O que vai ficar na fotografia


São os laços invisíveis que havia
As cores, figuras, motivos
O sol passando sobre os amigos
Histórias, bebidas, sorrisos
E afeto em frente ao mar.
(Fotografia – Leoni)

A invenção da fotografia foi atribuída ao francês Nicéphore Niépce por volta


de 1824. Isso ocorreu quando a França ainda vivia um período de instabilidade política,
em meados do século XIX, consequência da Revolução Francesa e do Império
Napoleônico. Neste período, surgia uma nova profissão, a de fotógrafo, que mais tarde
seria reconhecida como arte. A fotografia trazia consigo a veracidade e dava às pessoas
uma nova forma, mais ampla, de compreensão do mundo.
A fotografia, logo no seu surgimento, não agradou aos artistas, pois eles
consideravam suas obras um processo de estudos, aplicação de inteligência e reflexão,
enquanto a fotografia era um processo mecânico, sem necessidade de conhecimento
profundo para a técnica. Uma fuga do real sentido da arte. Todavia, os fotógrafos do
momento, com o intuito de escaparem desse mau julgamento e com a tentativa de se
aproximarem do reconhecimento artístico, encontraram na imitação da pintura a solução
de seus problemas. Esse movimento artístico – pictorialismo –, portanto, causou um
atraso no desenvolvimento da fotografia, pois, ao passo que tentavam se aproximar da
pintura (utilizando novas técnicas com variáveis recursos: químicos, uso do pincel e da
espátula, a manipulação dos negativos, suprindo ou acrescentando detalhes), cada vez
mais as críticas surgiam. Por outro lado, os fotógrafos mais interessados na simples
documentação do cotidiano continuaram trabalhando sem a utilização dessas técnicas,
determinado as bases da fotografia moderna. Os críticos dos séculos XIX e XX
duvidavam sobre o caráter artístico dela e tinham receio que a novidade substituísse as
tradicionais formas de representação. “De hoje em diante, a pintura está morta”, afirma
PAUL DELAROCHE, em 1939, com tom dramático.
A fotografia era considerada como representação fiel da realidade, e sem que o
artista precisasse mostrar seu parecer sobre o que era representado, pois, pela primeira
vez, uma imagem do mundo exterior formava-se automaticamente sem obrigação de
uma invenção. Ela era a produção que melhor representava a realidade. Os artistas
tinham medo de que quanto mais fidedigna fosse a reprodução, mais admirada seria, e
maior seria o valor das artes, logo a pintura seria desvalorizado. Os mais tradicionais

54
menosprezavam a fotografia porque a viam apenas como um produto industrial, visto
que a arte deveria ser expressão, deveria ser a representação de algo com a subjetividade
pessoal, enquanto a fotografia era algo pronto, frio, não comovido. “A fotografia é
melhor que o desenho, mas não é preciso dizê-lo”, segundo DEMACHY PUYO, em
1906.
Como entender que a fotografia viesse para ficar a não ser em substituição ao
antigo? Com medo de se tornar segundo plano, a pintura procurou outras formas de
interpretação e passou a se aproximar da fotografia, porém usou as limitações da câmara
fotográfica, fazendo uso da falta de movimento e intentando equilibrar a concorrência.
Uma das causas para que a aceitação da fotografia como arte tenha sido um
processo demorado é o fato de que, sendo um produto de fácil acesso, o qual qualquer
um poderia aprender a utilizar, ela foi perdendo seu valor, tornando-se, na visão geral,
apenas um produto. Como poderia aceitar algo como arte quando qualquer um poderia
ser artista? Embora a fotografia registre a realidade com perfeição, a visão da câmera é
diferente da do olho humano, pois o filme fotográfico possui uma sensibilidade
cromática própria, ou seja, a câmera percebe as cores de uma maneira diferente. Sendo
assim, uma foto pode surpreender ao captar mais do que se pretendia, ou também
decepcionar ao não conseguir captar aquilo que o olho humano teria percebido. Essas
limitações são, na realidade, pontos de partida para a conscientização da criação
artística, pois, depende de quem tira a foto. É necessário captar com a câmera aqueles
pormenores que ele quer mostrar, não se deixando dominar pela imagem
mecanicamente obtida. Isso se diferencia de um trabalho artístico, de um olhar amador
que não consegue refletir sobre nenhum recorte da realidade. Uma foto pode ser um
retrato de um simples churrasco entre família ou de um aniversário, e talvez não haja
nada de artístico nesse recorte.
Por ter uma leitura diferente das artes plásticas, dotada de uma linguagem
própria, o seu entendimento inicialmente pode não ter sido compreendido por causa da
incapacidade de interpretação da foto. Ler uma fotografia implica a reconstrução do
tempo e do espaço onde ela foi gerada: percepção, identificação e interpretação. A
leitura da fotografia exige a necessidade de se referir à linguagem da imagem. Precisam-
se reconhecer seus elementos. Uma foto que desconhece os fatos ou objetos mostrados é
tão ilegível quanto um texto escrito em um idioma desconhecido, e por isso não há uma
linguagem universal. Não há imagem que possa ser interpretada da mesma maneira por
diferentes povos. A própria história do indivíduo, aquilo pelo qual ele passou, interfere
na sua interpretação. E por esse motivo, a fotografia é uma forma artística. Ela faz, a
cada um que a lê, um convite a uma nova reflexão.
A fotografia possui uma característica específica: ela sempre é a imagem de
algo que existe, e isso se difere da pintura, pois essa pode muito bem simular a realidade
sem nunca tê-la visto. A fotografia jamais se desprende da realidade e é por isso que
nunca existe sem ter existido um processo histórico que a gerou. Contudo, podemos
também pensar que ”A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”, conforme
Pablo Picasso.

A fotografia como documento


Além de arte, a fotografia pode ser considerada documento. Este, seja de que
material for, requer uma série de leituras. O fotógrafo mostra não somente um recorte
específico e real de algum momento, mas também sua perspectiva, portanto ele pode
mudar as características da realidade para mostrar o seu ponto de vista. Desse modo, se
o pesquisador utilizar uma fotografia como documento, sem estudar as “entrelinhas”,

55
poderá chegar a conclusões equivocadas sobre, por exemplo, um costume da época.

”A primeira coisa a mostrar em relação ao conteúdo da fotografia


é o momento histórico que ela está retratando: fazer um
movimento em direção ao contexto da imagem (...). Há outro tipo
de movimento de aproximação de conteúdo, que é de comparação
daquela foto que interessa com outras fotografias que tenham
relação com ela." (LISSOVSKY, MAURÍCIO. ”A fotografia
como documento histórico” In fotografia; Ciclo de Palestras
sobre fotografia. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1983.p.117-126.)

Mas não somente a fotografia pode ser alterada, qualquer documento, seja ele
velho ou novo, seja ele manuscrito, filmado ou fotografado, todos podem igualmente ser
montados, contendo verdades e inverdades. Apenas com uma fonte crítica, com estudos
e pesquisas poderá se chegar à conclusão sobre a veracidade de um documento.
Portanto, a fotografia possui variadas faces que comprovam seu caráter
artístico. As vanguardas europeias utilizaram as artes visuais (fotografia e cinema) como
principais características de suas propostas. A fotografia nada mais é do que uma nova
forma artística, que rompe as estruturas até então conhecidas como arte, revolucionando
as possibilidades de expressão e linguagem naquele momento. Enquanto o modernismo
europeu, radical e revolucionário, modificava as tradicionais formas artísticas; no
Brasil, o movimento teve outro objetivo.
O Modernismo Brasileiro surgia com a intenção maior de construção de um
imaginário nacional, visando ao enaltecimento do homem brasileiro. Não estava
preocupado com grandes rupturas no meio artístico e cultural, o que justifica a não
adesão das vanguardas europeias radicais, fotografia e cinema. Podemos vislumbrar
esse aspecto no seguinte trecho:

“Compromissados com a remodelação da inteligência nacional –


o que, no campo da arte, significava rever tanto a arte
conservadora da Escola Nacional quanto naturalismo alternativo –
, os modernistas não podiam simplesmente aderir às vertentes
mais radicais das vanguardas que chegavam a pregar a própria
superação do estatuto da arte na sociedade ocidental. Nem mesmo
ao cubismo, pois, em suas bases, aquele movimento negava a
noção vigente da arte como representação da realidade exterior –
um dado primordial para o Modernismo, já que ele estava
intrinsecamente comprometido em dar continuidade à
constituição de uma iconografia tipicamente brasileira.”
(CHIARELLI, ‘Entre Almeida Jr. e Picasso’, in Arte
Internacional Brasileira, p.45)

Tanto foi um movimento diferenciado da Europa que, na Semana de Arte


Moderna, as artes visuais, consideradas para o resto do mundo inovadoras, não foram
aderidas às obras expostas. De acordo com a estudiosa Annateresa Fabris, deve-se
destacar a ideia de modernidade que vigorava no grupo modernista, a qual denota muito
mais um desejo de atualização do que propriamente uma visão profunda dos conceitos
de arte e de obra de arte. A concepção brasileira era não-radical, e sim visava à
retrospectiva da volta à ordem, normalizando os “excessos” cometidos no início do
século e restaurando o verdadeiro sentido da arte.

56
Para recuperar esse sentido, os artistas se preocuparam em elaborar uma
proposta moderna para evitar que a fotografia se tornasse arte e destruísse a noção da
arte como representação criativa da realidade. Eles criticavam a pintura fotográfica da
mesma maneira.
Embora a fotografia quase não existisse no meio moderno brasileiro, essa
chamou a atenção de alguns modernistas como Mário de Andrade e Jorge Lima. Este,
poeta e pintor, utilizou a fotografia para a elaboração de fotomontagens surrealistas,
recebendo críticas favoráveis de Mário Andrade. Com a divulgação desses trabalhos, a
fotografia começava a encontrar o seu lugar na arte. Isso aconteceu depois da Semana
de 1922.
A fotografia moderna deixava de ser uma simples representação da realidade e
começava a querer mostrar um ar artístico. Dessa maneira, os fotógrafos, ao
fotografarem algo, distorciam a imagem obtida para que quem a lesse não tivesse a
mesma visão que eles. Formava-se uma fotografia cubista, entre outros métodos, para
produzir uma imagem livre da sensação de que o leitor pegava para si uma visão que
não era sua. As fotos revelavam muitas vezes reflexos do fotógrafo, além disso,
distorciam as lentes, desfocavam o assunto ou alteravam o tempo de exposição. Análise
das fotos a seguir:

O Embarque, de Yalenti (1945) [foto 1]

Nesta foto vê-se a silhueta de um homem numa estação de trem. Observa-se


uma contraluz muito intensa (uma técnica utilizada na fotografia para confundir a
visualização do leitor) a qual não nos permite perceber e compreender o espaço
apresentado. Ao contrário, contrapõe-se à materialidade da foto. Somos constantemente
instigados a descobri-la devido à grande superfície negra que domina a foto. Desse
modo, os diversos elementos da cena tornam-se ambíguos, construindo uma dupla
referência da realidade. As formas tornam-se independentes na descrição da imagem.

57
A escada ao sol, de Thomaz Farkas [foto 2]

O Artista utiliza diversos ângulos incomuns, enquadramentos inusitados que


criam no leitor certo estímulo para a compreensão da imagem. Farkas estrutura a foto a
partir de uma escada. O ângulo tomado confunde nosso equilíbrio visual. Tudo está
invertido, literalmente se desce a escada para cima. Os passantes se confundem com as
sobras, andam sobre um plano inclinado, ignora-se a lei da gravidade. A foto se
transforma numa vertigem surreal.
A fotografia aos poucos foi encontrando espaço no Brasil; os críticos, embora
não a aceitassem como arte, passaram a utilizar termos como “fotográfico” para
caracterizar algumas obras pejorativamente ou de uma forma positiva.

“Livro simples, sem esparramo de adjetivos, sem pompas [...] Os


tipos são fotograficamente montados e de tudo resulta a
montagem fotográfica do avacalhamento moral e social da família
carioca. Documento, enfim [...]”. (Crítica de Monteiro Lobato
sobre a obra ‘Turbilhão’ de Coelho Neto).
“[...] Por isso os seus quadros, duma verdade que às vezes excede
os limites da arte para quase decair na reprodução da placa
fotográfica, assustam os que não conhecem a pujança do nosso
meio, ferindo-lhe a retina pela crueza dos tons, esses quadros
encantam a quem conhece a nossa paisagem, tão exata é a
observação, tão sincera é a arte de Parreiras [...]”. (Crítica
publicada no jornal O Estado de São Paulo).

Isso comprova a presença crescente e inevitável da fotografia na sociedade.


Aos poucos, desde seu surgimento, foi consolidando espaços e quebrando barreiras pré-
estabelecidas que a caracterizam como uma arte moderna, capaz de surpreender todos.
Todavia, a sociedade estava tão congelada em sua confortadora e conhecida arte que
não enxergava, ou até mesmo não queria, aceitar o seu potencial.

Referências
COSTA, Helouise. RODRIGUES, Renato da Silva. A fotografia moderna no Brasil.
2004.

58
MENDES, Ricardo. Fotografia e modernismo: um breve ensaio sobre ideias fora de
lugar. 1996.
PEREIRA, Rodrigo. Subversão da fotografia: cubismo. s/data.
SOARES, Carolina. A fotografia e o modernismo de 1922. s/data.

“TUPY OR NOT TUPY” NA TROPICÁLIA

Gabrielle Hubner

Resumo: Este artigo procura analisar as tendências do Manifesto Antropófago proposto


por Oswald de Andrade, em 1928, e suas influências em movimentos posteriores, com
ênfase no Tropicalismo, iniciado em 1967, cujo principal nome fora Caetano Veloso.
Em ambos os movimentos, o canibalismo cultural se faz presente a fim de aglutinar
valores para então se formar uma nova ideia, tendência, identidade. Separadas por um
período de tempo de aproximadamente quarenta anos, as duas mentalidades
provenientes do hibridismo entre costumes influenciam nossa vida cultural até os dias
de hoje.

Palavras-chave: antropofagia; tropicalismo; Oswald de Andrade

Abstract: This article analyzes the trends of the “Manifesto Antropófago” proposed by
Oswald de Andrade in 1928, and its influence on posterior movements, emphasizing the
“Tropicalismo”, which began in 1967 and whose main character was Caetano Veloso.
In both movements, the cultural cannibalism is presented to agglomerate values to form
a new identity, or a new mentality. Separated by a period of about forty years, the two
mentalities that present the idea of hybridisation between behavior, influences our
cultural life until the present day.

Keywords: anthropophagy; “tropicalismo”; Oswald de Andrade

“O que atropelava a verdade era a roupa, o


impermeável entre o mundo interior e o mundo
exterior. A reação contra o homem vestido. O
cinema americano informará.”
Oswald de Andrade (1928)

Nas primeiras décadas do século XX, surgem, no mundo, e posteriormente no


Brasil, os movimentos da modernidade artística, que são conhecidos como Vanguardas.
O Futurismo, o Cubismo, o Surrealismo e o Dadaísmo se fazem presentes neste
contexto – cada um com suas peculiaridades, mas todos com o objetivo comum da
quebra da tradição (como está sugerido em seu próprio nome), tanto na temática quanto
na forma.
Oswald de Andrade se destaca na primeira fase do cenário modernista do
Brasil. Em meados de 1912, o artista retorna da Europa trazendo consigo muitas ideias
destas vanguardas, principalmente as futuristas, e passa a divulgá-las entre os
intelectuais da época. Anos depois, culmina-se a síntese dessas ideias na Semana de

59
Arte Moderna, em 1922, reunindo grandes nomes relacionados a todos os segmentos da
arte, como Mário de Andrade, Graça Aranha, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Villa-
Lobos. A semana chocou a sociedade da época com suas ideias inovadoras e com as
propostas de ruptura daquilo que era convencional, a fim de “liquidar o passado e
limpar o terreno para o futuro”.
Mesmo que as ideias dos modernistas da Semana de Arte de 22 estivessem
confusas quanto ao desenvolvimento das novas concepções, não trazendo uma
abrangência muito grande entre a sociedade brasileira da época, a rebelião provocada
destruiu a imobilidade cultural que se fazia presente, e três segmentos básicos foram
instaurados nas mentes dos modernistas de São Paulo durante os anos seguintes: a
desintegração da linguagem tradicional, a adoção das conquistas das vanguardas, e a
busca da expressão nacional.
É neste último que se foca a antropofagia de Oswald de Andrade, como a
forma de conciliar a cultura estrangeira com a brasileira, criando-se, assim, a identidade
nacional. É importante ressaltar que a ideia desta expressão nacional só se faz presente
no grupo modernista a partir de 1924, pois até então a ruptura se dava principalmente
com a estética textual, e não seu com seu conteúdo:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro (ANDRADE, Oswald de, Pronominais).

A brasilidade proposta por Oswald vai além das regras ortográficas,


sobrepõem-se a elas. Os costumes da nação (como, por exemplo, o uso incorreto da
próclise em situações informais) aliados às tendências internacionais (tanto de
vanguardas quanto de tradições) é que definem o brasileiro. A literatura oswaldiana ao
procurar expressar essa definição do nacional, cria a ideologia antropofágica.
Em 1928, Oswald de Andrade publica o Manifesto Antropofágico, inspirado no
quadro Abaporu (“O Comedor de Gente”), que lhe é dado de presente por Tarsila do
Amaral. Neste momento, Oswald percebia que os efeitos da Semana de Arte Moderna
de 1922 ou do Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) não estavam mais se fazendo
sentir e acreditava que devia assumir uma posição crítica mais radical. A ideia central
do manifesto baseia-se nos ritos antropofágicos dos índios brasileiros, que devoravam o
guerreiro, valente e nobre de outra tribo, para tomarem para si as virtudes deste. Assim
como era feito pelos índios, deveria ser feito pelos artistas modernos: a cultura
estrangeira deveria ser digerida e aproveitar-se-ia o que se julgasse útil para se
acrescentar ao primitivismo brasileiro, e assim chegar-se à verdadeira cultura do país.
Esta foi a saída encontrada por Oswald de Andrade, a qual conseguiu combinar
os valores das principais temáticas da época que eram opostas: por um lado, havia-se
uma cópia das ideias europeias; por outro, um nacionalismo exagerado e antieuropeu.
Sendo assim, a expressão nacional não necessitava ser ariana, e sim uma mistura, pois
não há rejeição nem imitação das artes das grandes metrópoles, mas sua devoração:
“Nunca fomos catequizados. (...). Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do
Pará.”

60
Oswald de Andrade rediscute a raça e quebra com a ideia da mistura como um
elemento negativo, pelo contrário, o exalta. Inserindo o ritual canibal seletivo dos índios
Tupinambá em seu movimento antropófago, Oswald difere deste de uma maneira
singular, ampliando as possibilidades de devoração numa apologia a toda diferença: “Só
me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”, ultrapassando a
concepção que limita o canibalismo à digestão de objetos com qualidades desejáveis.
Em seu manifesto, ele amplia a ideia da constituição da brasilidade através da devoração
de toda e qualquer fuga do padrão.

A interpretação equivocada segue aquela dos cronistas que


comparavam o ritual antropofágico à comunhão cristã, na qual
se devora um ser superior, o corpo de Cristo transubstanciado na
hóstia para a conversão do crente em um ser melhor. Trazendo
essa vertente (não se poderia devorar o covarde) para a metáfora
canibal, definiu-se que não seria passível de devoração o que se
considera inferior: como a língua criada pelo carcamano, a
música sertaneja, a literatura de massa etc, e como a cultura
europeia contém tradicionalmente maior valor agregado,
termina-se propondo sua devoração como preferencial.
(ALMEIDA, 2002, p.124).

Apesar do conceito de antropofagia ter sido gerado a partir do ritual indígena, o


projeto oswaldiano visava a digerir toda alteridade que se fazia presente e se faz como
meio de inclusão de toda a diversidade. O bárbaro tecnizado, expressão de Keyserling
incorporada por Oswald em seu projeto cultural, devora o que é diferente para adquirir
seu poder, seu conhecimento e sua técnica.
Além do lançamento do Manifesto Antropófago, foi criado o Clube da
Antropofagia, local onde modernistas da época se reuniam. Na sequência destes
acontecimentos, foi lançada a Revista de Antropofagia, sob a direção de Antônio de
Alcântara Machado e de Raul Bopp:

Revista de Antropofagia, “de antropofagia”:


A descida antropofágica não é uma revolução literária.
Nem social. Nem política. Nem religiosa. Ela é tudo isso ao
mesmo tempo. Dá ao homem o sentido verdadeiro da vida, cujo
segredo está - o que os sábios ignoram - na transformação do
tabu em totem.
Por isso aconselhamos: “absorver sempre e diretamente o tabu”.
(1929)

“Tupy or not tupy, that is the question” foi uma questão presente no Manifesto,
a qual explicitava a multiplicidade da época. Índios, negros e descendentes de europeus
constituintes da nação brasileira se deparavam com essa pergunta e não acreditavam que
houvesse uma mediação possível: ou era-se europeu, ou era-se selvagem. Oswald,
propondo uma resposta para essa questão, obteve dificuldade na assimilação do
proposto por uma sociedade que via o problema frequentemente posto em termos de
civilização versus barbárie.

61
Além disso, um elemento que aparece na Antropofagia como típico do
brasileiro é o humor. Segundo Oswald, “a alegria é a prova dos nove”. Isto deve ser
acrescentado na formação da identidade nacional, assim como a ideia de uma insistência
radical no caráter indígena das raízes brasileiras e a construção de uma sociedade
alternativa, centrada no matriarcado e no anarquismo (uma difusa utopia brasileira,
segundo Sergius Gonzaga).
Curiosamente, Oswald de Andrade não publicou nada além do Manifesto e dos
artigos na Revista de Antropofagia, no que se diz respeito ao canibalismo assim
proposto. Raul Bopp, com Cobra Norato (1929), transformou as ideias de Oswald em
poesia, e Mário de Andrade já previamente havia publicado o romance Macunaíma
(1927), o qual carrega o sentimento nacionalista do Manifesto, sendo estas duas obras as
principais manifestações literárias que correspondem às ideias levantadas pelo
movimento.
Cerca de quarenta anos depois, em 1967, o Tropicalismo retoma as posturas de
Oswald de Andrade, no que diz respeito ao hibridismo antropofágico. A crítica musical
que passa a intervir no cenário cultural brasileiro a partir de 1930 toma novos contornos.
Com o passar do tempo, vê-se a necessidade da síntese das tendências propostas até
então por outros músicos. É assim que se fazem presentes os compositores Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Capinam, os maestros de
formação erudita Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Júlio Medaglia, o grupo Os
Mutantes, a cantora Gal Costa e o artista plástico Rogério Duarte, entre tantos outros.
“Pode-se afirmar que o tropicalismo vivenciou o desejo antropofágico
preconizado por Oswald de Andrade de uma maneira nietzschianamente radical”,
porque ela ressalta contrastes da cultura brasileira e produz superações. Na década de
60, as discussões em pauta giravam em torno de temas como oposições entre o arcaico e
o moderno, a cultura de elite e a cultura do povo, o europeu e o bárbaro. São esses
temas que o Tropicalismo busca conciliar, de forma antropofágica, a fim de criar uma
corrente.
Havia, em sua proposta estética, a absorção de distintos gêneros musicais,
como samba, bolero, frevo, música de vanguarda e o pop-rock nacional e internacional,
incorporando a utilização da guitarra elétrica.

A tropicália como estética reafirma a força estranha da música


popular como lugar de afirmação do outro, de devoração do
outro, caldeirão multicultural que busca, através da alegoria das
“imagens primitivas do Brasil”, inseri-lo no cosmopolitismo do
pobre, para usar uma expressão do crítico Silviano Santiago. A
alegoria como caminho necessário para transformar a falta e a
dor em alegria, o luto em luta, negando a busca da nacionalidade
como valor essencialista e substantivo, e a arte como
instrumento de conscientização das massas e guerra contra a
ditadura militar. (DINIZ, 2002, p.3).

Nesse cenário, Caetano Veloso faz-se presente como um grande nome: o


principal mediador dos diálogos entre a Bossa Nova e o Tropicalismo, criando, assim,
as tendências da MPB nos anos 60. “A sua presença, marcada por uma voz que é uma
máquina de desejos e devoração, desempenha um papel dramático, um lugar na cena
cultural e uma força performática incomparáveis.”:

62
Quem sou eu? Sou o “Rei da Vela”, de Oswald de Andrade,
montado pelo Grupo Oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou
solteiro, sou baiano e estrangeiro. Adoro meu pai, minha mãe e
meus irmãos, mas não tenho família. Eu sou Caetano Veloso.
Meu coração é do tamanho de um trem (VELOSO, Caetano.
Alegria, alegria. 1977 p.24).

O movimento de caráter libertário por excelência encontrou, no regime militar,


barreiras para seu progresso e teve seu fim em 1968 com a prisão de Gilberto Gil e
Caetano Veloso. O Brasil não foi mais o mesmo após a Tropicália: a transformação ali
instaurada passava muito além da música: abrangia mudanças também na moral e no
comportamento da sociedade, o que acabou produzindo uma transformação também do
vestuário e dos costumes da época.

ANTROPOFAGIA E TROPICALISMO: QUEM DEVORA QUEM

Nathalia Zart do Couto

Resumo: Esse artigo procura analisar o movimento Tropicalista que começa na década
de 60, relatando a História dos Festivais, e, além disso, apontar como a ideologia desse
movimento se contrapõe à musica de protesto e como ele se relaciona à antropofagia de
Oswald de Andrade. A atividade tem o objetivo de mostrar os acontecimentos das
décadas de 60 e 70 e delinear como elas se relacionam com os cantores de músicas de
protesto e com os tropicalistas.

Palavras-chave: Tropicalismo, Antropofagia, Música de protesto, Ditadura Militar

Abstract: This article analyzes the Tropicalia movement that began in the 60s, telling
the history of festivals. It also aims to show how the ideology of this movement is
opposed to the music of protest and how it relates to cannibalism of Oswald de
Andrade. It will also show the 1960s and 1970s events as well as to show how they
relate to “tropicalistas” and to singers who have used songs to protest.

Keywords: tropical, Anthropophagi, Music and protest the military dictatorship


"Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um
direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia.
Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o
nascimento da lógica entre nós.”
(Manifesto Antropófago - Oswald de Andrade)

A HISTÓRIA DOS FESTIVAIS


A história dos festivais começa na década de 60, período em que o Brasil vive
grande agitação cultural e se encontra em meio à ditadura militar. Esses festivais eram
como uma resposta à política repressora da época.
O Primeiro Festival de Música no Brasil foi produzido pela TV Excelsior, no
ano de 1965, e o gênero das músicas tocadas na época, e consequentemente no Festival,
era a Canção de Protesto (ou MPB), que tinha o objetivo de protestar contra a ditadura
militar, contra a falta de liberdade e contra a invasão da cultura norte-americana no
Brasil. Esse gênero musical era como o porta-voz dos estudantes brasileiros. Nesse

63
festival pioneiro, as canções vencedoras foram “Arrastão’’, de Edu Lobo e Vinicius de
Moraes, em primeiro lugar, e em segundo, “Valsa do Amor Que Não Vem’’ de Baden
Powell e Vinicius de Moraes. No ano seguinte, a emissora fez um segundo Festival de
Música Nacional que possuía os mesmos moldes do primeiro e teve como vencedor
"Porta-estandarte", de Geraldo Vandré e Fernando Lona, interpretada por Tuca e Airto
Moreira.
Na mesma época em que ocorreu esse primeiro encontro de música, a emissora
Record fez também seu próprio Festival de Música Nacional, com a Canção de Protesto
ainda como gênero mais notável no Brasil. Esse estilo musical, porém, estava prestes a
ser repensado, pois, no ano seguinte, em outra grande festa de música feita por essa
emissora, que seria conhecida como “Festival da Virada”, iria ser apresentado para o
Brasil o Tropicalismo, gênero musical que se contrapõe à MPB, procurando fazer uma
música não engajada ideologicamente e falando do tema da liberdade, sob o ponto de
vista da questão existencialista. Esse festival teve como grande novidade as músicas
“Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil.
Em 1968, em outro festival de música, que desta vez fora produzido pela Rede
Globo, acontecia mais uma vez um impacto na história cultural brasileira, pois, nesse
festival, Caetano Veloso e Gil surpreenderam novamente a plateia:
Caetano, junto com Os Mutantes, cantou a música "É proibido proibir", que
possui inspiração no grito de guerra dos estudantes franceses, que fora criado em maio
de 1968. Gil cantou "Questão de Ordem".
Gilberto Gil não seria tão rejeitado pelo público naquela noite quanto Caetano,
que, junto com Os Mutantes, foi rechaçado pela plateia. Assim que Caetano Veloso, que
estava no palco vestindo roupas de plástico e acessórios exóticos e dançando de forma
sensual, junto com sua banda, começou a cantar a música “È proibido proibir”, a plateia
respondeu com ovos e vaias. Muitos espectadores que lá estavam assistindo ao festival
sentiram-se ofendidos e viraram-se de costas para o palco. Como resposta ao público,
Os Mutantes viraram-se de costas também sem parar de tocar. Gilberto Gil foi atingido
por um pedaço de madeira, e Caetano fez um longo discurso sobre as atitudes
contraditórias da juventude no Brasil, depois de não conseguir terminar de cantar sua
música “É proibido proibir”.
Nos anos seguintes, ocorreram outros festivais, mas não suscitaram a energia
dos festivais anteriores.

DISCURSO DE CAETANO
Abaixo, transcrevemos o discurso de Caetano:
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?
Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de
música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano
passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar
amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão
entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem
Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem
de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor
Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa
coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto
Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!
Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que
juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão
ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a

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quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem?
Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês
não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por
falar nisso, viva Cacilda Becker!
Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva
aqui, não tem nada a ver com vocês.
O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música
brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com
arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano
passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar
por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é
que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso!
Eu quero dizer ao júri: me desclassifiquem. Eu não tenho nada a
ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está
comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a
imbecilidade que reina
no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no
festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que
desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu
falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como
é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas
e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em política,
forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem
junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a
vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente.
Deus está solto!
Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram?
Qualificaram a melodia de Gilberto Gil?
Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que
eu quero ver.
Chega!

DÉCADA DE 60, DÉCADA ONDE TUDO COMEÇOU


A década de 60 e 70 foi marcada por um período de grande censura aos meios
de comunicação e pelo golpe militar implantado em 64. Políticos que se opunham ao
regime perderam seus mandatos, foram fechados os diretórios estudantis e todos os
meios de protestos eram violentamente reprimidos. Na educação há uma reforma do
ensino orientada pelos Estados Unidos. Na política, governadores e prefeitos são
escolhidos pelos militares, e a imprensa só fala das benesses capitalistas e do milagre
brasileiro. O comunismo vira o grande vilão, e todas as mazelas que acontecem no país
são de sua responsabilidade. Segmentos sociais, principalmente estudantes, rebelam-se
e entram na guerrilha armada. Até os dias de hoje, o país ressente-se deste período, pois
muitas mortes e torturas não foram esclarecidas.
Paralelamente, em relação ao feminismo, um período de liberdade sexual
feminina explode no mundo com grande reflexo no Brasil. Palavras de ordem como
“abaixo o soutien”, sustentam esse movimento. A guerra do Vietnã suscita protesto
mundial, surgindo daí o movimento hippie que respinga na nossa cultura. “Faça amor,
não faça guerra”, e muita maconha engrossa esse movimento.

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A MPB e seus ícones da época, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, são
substituídos nas paradas de sucesso pelos “tropicalistas” Caetano Veloso e Gilberto Gil,
entre outros baianos.

CAETANO VELOSO
Caetano Veloso nasceu em sete de agosto de 1942 na Cidade de Santo Amaro
da Purificação e, no período de sua infância, sofreu influência das músicas de apelo
regional, como sambas de roda. Depois, na sua adolescência, na época em que foi
estudar ao lado de sua irmã, Maria Bethânia, em Salvador, aprendeu a tocar violão.
Nesse período conheceu Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé, e juntos começaram a fazer
shows. É nessa época que começa a participar de espetáculos semi-amadores.
No seu início de carreira, Caetano interpretava canções de Bossa Nova, com
influência de João Gilberto, depois, na década de 60, seu nome ficou associado com o
movimento hippie por causa das canções do movimento Tropicalista. Seu primeiro
trabalho no ramo musical foi fazer a trilha sonora de uma peça chamada "Boca de
ouro", de Nelson Rodrigues.
Em 1965, foi convidado para gravar seu primeiro disco compacto, com
"Cavaleiro" e "Samba em Paz", e, logo depois, também participou do musical "Arena
canta Bahia" e teve canções inclusas na trilha do curta-metragem “Viramundo”, dirigido
por Geraldo Sarno. Nos dois anos seguintes, gravou seu primeiro LP, "Domingo", junto
com Gal Costa, que possui um gênero totalmente bossa-novista, e nele está a primeira
música com mais ibope de sua carreira, a canção "Coração Vagabundo", que não teve
um sucesso estrondoso, mas garantiu a ele e a Gal um bom reconhecimento.
Ainda na metade da década de sessenta, houve o III Festival de Música Popular
Brasileira da TV Record, e ele, juntamente com Gil, enlouqueceu o público do festival
com suas respectivas músicas "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque".
Em julho de 1968, lançou seu álbum Tropicália, disco que contou com as
participações de outros nomes consagrados do movimento, como Nara Leão, Os
Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam, Tom Zé, Gil e Gal, que ficou
marcado como o inicio do Tropicalismo. No Terceiro Festival Internacional da Canção,
chegou a ser vaiado pelo público por causa da música "É Proibido Proibir" que possui
refrão inspirado no movimento de estudantes franceses e que foi desclassificada.
Caetano foi preso em 1969 pela ditadura militar e exilado na Inglaterra, onde
lançou discos e compôs canções como "London, London" e "Como Dois e Dois". Em
1972, voltou ao Brasil gerando polêmica, pois a esquerda o acusava de ter se alienado
da política, o que Caetano respondia com vaias, mas sem deixar de se apresentar em
diversas cidades. Além de ser músico, Caetano trabalhou como crítico cinematográfico
e no jornal Diário de Noticias, dirigido pelo diretor Glauber Rocha. Tanto na música
como em seu trabalho de crítico, o artista firmava-se sendo respeitado e ouvido pela
mídia e crítica especializada.

MOVIMENTO TROPICALISTA E ANTROPÓFAGO CONTRAPONDO-SE À CANÇÃO DE


PROTESTO
O Tropicalismo, que foi um movimento vanguardista brasileiro, acabou se
consagrando como ponto de ruptura comportamental, político-ideológico e estético.
Esse movimento, que usa o deboche, a irreverência e a improvisação para revolucionar
o estilo musical brasileiro, que era até então dominado pela Bossa Nova, é apresentando
como contracultura brasileira e, outras vezes, como arte ligada à Antropofagia, pois usa
ideias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade com o “humor na forma
crítica e traço distintivo do caráter brasileiro”. O movimento vanguardista afirma que os

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brasileiros não precisam rejeitar os produtos culturais e ideológicos norte-americanos,
mas sim aceitar que a cultura estrangeira já está englobada a nossa. Essa fusão se
transformou em algo que é a nossa real cultura e está anexada à cultura dos Estados
Unidos.
Como exemplo de Antropofagia há o quadro “Abaporu”, de Tarsila do Amaral,
que significa “O Comedor de Gente”, que, para os tropicalistas e antropofagistas,
significaria que a cultura brasileira conseguiria engolir e transformar as culturas
estrangeiras. Diziam eles: “Nunca fomos catequizados, fizemos Cristo nascer na Bahia”.
Até o surgimento da música Tropicalista, a Canção de Protesto era o gênero
dominante no Brasil e tinha seu marco inicial com o lançamento do álbum Chega de
Saudade, do cantor e compositor João Gilberto. Esse tipo de música começou com o
golpe militar e visava a algo que até então era ignorado pelos intelectuais: a
conscientização do “povo” através da ideia de uma “cultura nacional popular” como
base de um projeto político efetivo. Os cantores da MPB põem o foco da canção
popular entre a cultura e o poder, e acham, na aceitação popular, um local perfeito para
a difusão deste novo discurso. Eles não aceitam a cultura americana que influencia o
povo brasileiro e culpam tal influência pelo não desenvolvimento do país, defendendo a
concepção de criação da nossa própria cultura, com o que é típico do Brasil. Diz-se
nessa época que fora da arte política não há arte popular.

ANÁLISE DE MÚSICAS TROPICALISTAS


Ao analisar algumas músicas de Caetano Veloso, procurei desvendar o que
havia nas entrelinhas de suas letras, conforme vou expor abaixo:

“Alegria, Alegria”
Caetano Veloso

“Caminhando contra o vento


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...”

Caminhando contra o vento apresenta a procura por liberdade, demonstrando


que os homens deveriam libertar-se de amarras. “Sem lenço, sem documento” transmite
a idéia de despreocupação com as regras, carpe diem, ou seja, é necessário vivenciar
somente o momento presente.

“Ela pensa em casamento


E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou...
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou...”

Afirmando, na primeira frase dessa parte da música, que as mulheres pensam


em se casar, Caetano debocha a escolha e critica o modelo de vida da época (das
mulheres ter o casamento como ambição desde pequenas). Ao afirmar que ele não vai à

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escola, o eu - lírico de Caetano mostra sua despreocupação em seguir as regras de uma
identidade puramente brasileira.
Caetano Veloso diz que toma uma coca-cola, produto tipicamente americano, e
com isso demonstra que aceita as influências estrangeiras e que deseja ser feliz,
usufruindo de tudo. O eu - lírico lembra, quase como uma ironia, que as mulheres, em
meio à balbúrdia do mundo, naquele momento, pensavam somente em se casar, ou seja,
estão completamente alienadas ao processo social.

“É proibido proibir”
Caetano Veloso

“E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir...
E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir... ”

Quando Caetano diz que é proibido proibir, homenageia o movimento de maio


de 1968, dos estudantes franceses, cujo lema era justamente esse. Nessa canção, o
artista faz apologia à liberdade de expressão sexual. Segundo Ébano Piacentini, da
Folha Online: “Em discursos nas ruas e nas universidades, em cartazes e muros, os
estudantes franceses deixaram as salas de aula e se mobilizaram para dar a seus
professores, pais e avós, e às instituições e ao governo "lições" sobre os "novos tempos,
a liberdade e a rebeldia". Caetano Veloso, imbuído desses ideais, diz não ao não,
portanto diz sim a toda manifestação livre do homem.

“Me dê um beijo meu amor


Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estátuas, as estantes
As vidraças, louças
Livros, sim...”

O eu - lírico da canção fala “amor me dê um beijo”, contrapondo-se aos


automóveis que ardem em chamas, como fizeram os estudantes franceses e como
poderiam fazer os estudantes brasileiros. Derrubar as prateleiras, ou seja, desarranjar
tudo o que é muito certinho e opressor era necessário se o objetivo era promover
mudanças. Apenas sim aos livros.

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Referências
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira.Leitura XXI.
VENTURA, Zuenir. 1968 O Ano que Não Acabou: A Aventura de Uma Geração.

NA SALA DE JANTAR, OCUPADAS EM NASCER E MORRER


Guilherme Raffo Wachholz

Resumo: É reconhecido internacionalmente. Após 40 anos de seu auge, o Tropicalismo


foi um dos mais audaciosos movimentos de vanguarda que já existiu. A inovadora onda
musical de Caetano Veloso e Gilberto Gil é vista mundo afora como decisiva para a
formação da atual influência vanguardista mundial e culmina em fantásticos discos com
uma verdadeira “Geleia Geral” de gêneros trazendo o protesto misturado à cafonice e ao
moderno estético, não compreendido na época. Caberá, aqui, com base na história do
surgimento tropicalista, analisarmos suas características e influências, provando
também, a partir de letras do álbum Tropicália ou Panis et Circenses, a aplicação de
fatos que levaram a Tropicália a ser revolucionária para a história mundial.

Palavras-Chave: Tropicália, história da MPB, protesto.

Abstract: Tropicalismo was one of the most vanguard movements that ever existed and
it has been considered so even after 40 years of its peak. The new musical wave of
Caetano Veloso e Gilberto Gil is viewed worldwide as crucial for the formation of the
current vanguard influence. It resulted on fantastics albums with a true “Geléia Geral”
of genera, bringing the protest mixed to the geekiness and to the modern aesthetic that
were misunderstood at the time. Based on the history of the tropicalist emergence, our
point will be to analyze its characteristics and influences, proving the facts that led this
movement to be considered revolutionary to world history through the lyrics of the
album Tropicália ou Panis et Circenses.

Keywords: Tropicália, history of MPB, protest.

“Botei todos os fracassos nas


paradas de sucesso” Caetano Veloso

FINAL DOS ANOS 60


Até então, a Canção Brasileira passava por um processo chamado por alguns
especialistas de Moderna Música Popular Brasileira (MMPB), associado à decadência
pós-Bossa Nova, ao nacionalismo e a movimentos socialistas. O golpe militar de 64 e a
instalação da ditadura acabaram por reprimir todos os meios artísticos e expressionistas
da sociedade, desde a música até a dramaturgia, fazendo com que a Canção Brasileira
entrasse em acentuado declínio. A MPB acabou então por ser dividida indiretamente.
Herdeiros e representantes da Bossa Nova passaram a utilizar os elementos do jazz e do
samba, como podemos ver na música de Chico Buarque, conhecida como “Canção de
Protesto” e predominante no gosto de estudantes universitários, e se recusaram a utilizar
elementos estrangeiros a fim de preservar a “brasilidade” da nação e firmar a música
como instrumento contra a ditadura. A Jovem Guarda ou iê-iê-iê, por sua vez, não
possuía caráter político, propondo uma forte influência do rock inglês, representado

69
pelo hoje vangloriado Roberto Carlos e artistas como Erasmo Carlos, Vanusa e
Wanderleia.
Mas foi no III Festival da Música Popular Brasileira, realizado em São Paulo no
ano de 1967, e transmitido pela TV Record, que Caetano Veloso, embalado pela
sensível marchinha “Alegria, alegria”, e Gilberto Gil, pela incrível “Domingo no
Parque”, que a nova MPB surgiu. O público, formado em sua grande maioria por
universitários e então simpatizantes de partidos de esquerda, ficou subvertido diante da
ousadia que lhe pairava a frente. Transpondo de vários elementos estrangeiros, com uma
verdadeira junção de rock, corais, berimbau, sons eletrônicos, instrumentos eruditos e
ruídos externos mesclados a letras e arranjos que espelhavam o próprio
subdesenvolvimento no qual vivia o povo, é que o culto do esteticismo, considerado por
aqueles artistas como a própria forma de revolução, fez com que os juízes do festival e
intelectuais do meio artístico se confundissem com a complexidade do que ouviam e
viam. Não estava presente na música daqueles jovens artistas a característica postura
militante da época, mas uma nova tendência esteticista antropofágica e pop influenciada
pelo estrangeirismo e pela aceitação da realidade brasileira. Começava ali pouco mais
tarde o movimento denominado Tropicalismo – nome derivado da canção “Tropicália”,
de Caetano, movimento que teria também como colaboradores e divulgadores Maria
Bethânia, Os Mutantes, Nara Leão, Torquato Neto, Gal Costa, o maestro Rogério
Duprat e até o poeta Augusto de Campos.
Segundo Gil, durante um debate realizado com Caetano Veloso, Augusto de
Campos, Décio Pignatari e jornalistas, a essência de um novo movimento durante o
festival não estava definida:

O rótulo ‘Tropicalismo’ não nos interessa como não interessou a João


Gilberto a denominação de Bossa Nova. A palavra Tropicalismo é boa
e não nos ofende. Mas ninguém pelo rótulo sente o gosto da cachaça.
(GIL, 1968)

O choque causado no festival rendeu o prêmio de 4º e 2º lugar a Caetano Veloso


e Gilberto Gil respectivamente. Durante os dias que transcorreram, inúmeras críticas e
opiniões de nacionalistas, principalmente adeptos à Canção de Protesto, acusavam a
atitude de Caetano e Gil como ambígua e superficial, devido a então troca de foco do
protesto pelo então interpretado “protesto contra o Protesto”. Mas, por outro lado, na
proporção que surgia tal crítica agressiva contra o Tropicalismo, apareciam também
pessoas adeptas a ele, as quais faziam congratulações pelo seu princípio de
modernização da música brasileira no enxertar de influências estrangeiras e no
sentimento de fazer “música pela música”, como se fazia “arte pela arte”.
Caetano disse que, na época, crescia dentro dele um instinto de mostrar o estado
real brasileiro e revelar a verdadeira situação em que o país se encontrava sem a
cegueira nacionalista que varria o país. Para isso era preciso realizar mudanças em sua
música.

Nosso impulso nasceu da percepção da realidade musical brasileira.


Antes de ‘Alegria, alegria’, eu fazia música que não gostava, como
‘Bom Dia’. Tudo limitava nossa possibilidade de se aproximar do real.
Fiquei parado um ano para depois surgir com ‘Alegria, alegria’, já com
uma visão modificada. Fomos levados a remexer a cultura vigente
consumida pelo povo brasileiro. Queremos atingir a vivência real do
brasileiro através da música.

70
(CAETANO, 1968)

No ano seguinte, 1968, ainda em meio ao alvoroço, foi lançado então o disco
que impulsionaria o Tropicalismo para seu auge, marcando definitivamente a sua
passagem pela história da música e da vanguarda mundial. Tropicália ou Panis et
Circenses é considerado um dos melhores álbuns de todos os tempos. Com participação
de todos os representantes do movimento, ele causou uma revolução nos padrões
culturais e sociais, ultrapassando limites da mesmice vigente da época ao instalar o
poder da imagem, unindo e desunindo contribuições do passado brasileiro ao que era
moda atual em outros países. Composições geniais de Caetano Veloso e Gilberto Gil,
vocais afinados e leves influenciados pelo samba e a Bossa Nova como os de Nara
Leão, o rock psicodélico d’Os Mutantes, o braço poético de Torquato Neto nas letras e
nos arranjos, instrumentais com todos os gêneros e instrumentos que doavam espaços a
sons ambientes e externos, faziam com que o álbum tomasse uma dimensão musical
inovadora. Tal ruptura tornou mais ousado o contato com o experimentalismo,
embalando artistas de diferentes estilos.
É claramente possível ver a utilização do estrangeirismo usado em Tropicália ou
Panis et Circenses, a partir do uso de termos ingleses nas letras, seguindo a tentativa de
convencer ou reforçar sua importância, como em Baby, interpretada por Gal Costa:

Você precisa aprender inglês


Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais, e o que eu não sei mais
Não sei comigo vai tudo azul
[...]
Não sei leia na minha camisa
Baby, baby, I love you

A canção, composta por Caetano Veloso, é embalada por batidas típicas de


samba e orquestras que guiam a voz suave da cantora. O tom romântico do som marca
também o princípio tropicalista de que, na música, não se precisava falar somente sobre
repressão e ditadura, mas também de amor e temas cotidianos. Além disso, na estrofe
final, é possível notar Caetano recitando frases em inglês ao fundo. É a música mais
conhecida do disco, além de ser uma das mais tocadas nas rádios da época.
A influência estrangeira sobre a sonoridade é pregada nitidamente ainda em
Panis et Circenses, faixa-título do álbum. Tendo por intérpretes “Os Mutantes”, o toque
rock-Beatlemaníaco rege a canção do início ao fim, com a utilização de guitarras, baixo,
bateria e a clássica gaita de boca, além de outros inúmeros instrumentos como sino,
flauta, trompete, corais, teclados e sons de vozes no que parece uma reunião numa sala
de jantar, como trata a letra da música. É notória também a repentina variação no tempo
das batidas por minuto no final da música, característica estética tropicalista. A letra,
escrita em parceria de Caetano Veloso com Gilberto Gil, sugere uma crítica aos
nacionalistas radicais ligados à Canção de Protesto:

“Eu quis cantar


Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”

71
Até então, o conflito devido ao novo movimento esteticista não havia tomado
proporções agressivas por parte dos que o rejeitavam – ao contrário do que ocorreria no
III Festival Internacional da Canção, no final de 68, exibido dessa vez pela Rede Globo.
Apesar de vários tropicalistas como “Os Mutantes” e Gilberto Gil terem se apresentado
anteriormente e por terem sido recebidos com vaias e gritos de fúria, nada se comparou
à “calorosa” recepção da apresentação de Caetano Veloso, com a pretensiosa “É
proibido proibir”. Foi em uma dessas noites que o conflito entre tropicalistas e
nacionalistas ferrenhos tomara um rumo diferente que os artistas passaram a confrontar-
se frente a frente. Na medida em que as vaias ecoavam e pedaços de comida e outros
objetos eram jogados no palco pela plateia, os tropicalistas respondiam com ousada
semelhança, seja devolvendo a podridão jogada a eles no palco, seja virando as costas
quando eram insultados pela fileira da frente.
Vestido de uma maneira exótica, chocando mais ainda os presentes no local,
Caetano Veloso mal começara a soltar a voz quando uma vaia da multidão inundou o
Teatro da Universidade Católica de São Paulo. E Augusto de Campos explica o porquê:

“- É verdade que Caetano e Gil foram além do fato musical. E


resolveram levar a sua “provocação” ao campo do comportamento
físico. Até a roupa tem uma linguagem, é um sistema de signos e tem,
ou pode ter, uma mensagem crítica. Caetano, coerentemente com a
letra de sua música, quis despertar, ao vivo, a consciência da sociedade
repressiva que nos submete ao desafiar os tabus e os preconceitos do
público com as suas roupas charinizantes e a intervenção insólita do
solo de uivos do americano”.
(CAMPOS, 1968, p.2)

Apesar de humilhado pela multidão, Caetano continuava a interpretar a música,


fazendo suas características “danças” na qual simulavam relações sexuais, causando a
quase infinita fúria dos que a assistiam. O bate-bola acabou quando as vaias tomaram tal
proporção que a voz de Caetano se tornara indistinguível diante do excesso de barulho
que se resumira o momento. Enraivecido por tal despeito, e ainda embalado pelo
instrumental de “É proibido proibir”, o jovem revolucionário proferiu sua fúria em um
discurso tomado por uma fúria crítica à plateia. Nacionalistas tentaram acabar com seu
show.
Nos anos 80, Gal Costa, que interpretara “Divino, maravilhoso” naquela noite,
relembrou o desafio que foi cantar naquela noite e a mistura de sensações que esse ato
corriqueiro lhe provocava.

Cantei com toda a fúria e força que haviam em mim. Metade da platéia
se levantou para vaiar. [...] Foi a primeira vez que senti o que era
dominar uma plateia, e uma platéia enfurecida. Naquele tempo de
polarização política, a música era a única forma de expressão. [...]
Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí
mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa.
(COSTA, 1982)

Após a saída de Caetano Veloso e sua desqualificação do festival, o Tropicalismo


estaria na beira de seu fim como um movimento em si, embora suas influências

72
ficassem marcadas durante longo tempo. A prisão de Caetano e Gil por militares e seus
respectivos exílios em 1969, acusados de desrespeitar o hino e a bandeira nacional,
mostrou que eles jamais foram a favor da ditadura, nem alienados a ela, conforme eram
constantemente acusados. Ao contrário, a postura política de ambos estava também
presente na sua música (embora esta não tivesse um assunto predominante), acobertadas
pelo seu estético revolucionário.
Durante o tempo em que fora divulgado, a estrutura tropicalista sofreu influências
de movimentos artísticos literários e poéticos que vinham acompanhando a época desde
pouco tempo, como a Antropofagia, movimento ocorrido entre os anos 20 e 30, em que
a mistura canibal deglutida de características nacionais e internacionais ingerida era
regurgitada. É a mistura entre o estilo e o cafona, o moderno e o antigo, o desenvolvido
e o subdesenvolvido, o culto e o ignorante, homogeneizando tudo em algo novo e
original. Explica o conceito Oswald de Andrade:

Uma visão brasileira do mundo sob a espécie da devoração, para uma


assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reelaboração em
termos e circunstâncias nacionais, alegorizando nesse sentido o
canibalismo de nossos selvagens. Não se trata aqui de um novo
‘Indianismo’, pretendido pelo grupo ‘Verde-Amarelo’, de 1926
(depois ‘Anta’), que combateu, mas na verdade diluiu os
experimentos oswaldianos, transformando-os numa literatura de
calungas em tecnicolor, classificada por O.A. de ‘macumba para
turistas’. O índio oswaldiano não é, ele próprio o diz, o ‘índio de lata
de bolacha’ sentimentalmente idealizado pelo nosso Romantismo,
mas o ‘canibal’ de Montaigne (Des Cannibales),
a exercer sua crítica desabusada sobre as imposturas do civilizado.
(ANDRADE, 1930)

A Antropofagia tropicalista misturou-se ao conceito não só do erudito, mas


também do popular, devido então à postura esteticista que assumia, obtendo toques de
lembrança da Pop Art que ocorria na época. Sua forma revolucionária também sofreu
influências concretistas, manifestado na despreocupação com o tema de suas obras e a
criação de outra maneira de ver a linguagem. Augusto de Campos, poeta concretista e
amigo de Caetano, teve relevante acompanhamento junto ao tempo em que o
Tropicalismo se popularizava, defendendo movimento em entrevistas e artigos literários
que publicava em jornais da época.
Até hoje vários artistas atuais se dizem influenciados direta ou indiretamente pela
Tropicália, a qual só mais tarde teve sua atitude de vanguarda corretamente interpretada.
Aos protestantes da época, o furor nacionalista diante da ditadura fez com que o espelho
da realidade subdesenvolvida do país mostrado pelos tropicalistas os interpretasse de
forma equivocada, supérflua e cega. Era associado até mesmo o uso de drogas pesadas
como LSD ao movimento, fato que nunca foi verdadeiro (VELOSO, 1978, p.2). A
intenção do Tropicalismo sempre foi a mistura de sons junto à representação da
realidade na qual o país vivia, falando não somente da ditadura, mas também sobre
temas cotidianos, tão importantes quanto a liberdade que o Brasil precisava conquistar.

REFERÊNCIAS
BOAL, Augusto. Símbolo da Mais Burra Alienação. 1968. Publicado em Folha da
Tarde.

73
FRANCIS, Paulo. Tropicalistas Eram Cheios de Empáfia e Pretensão. 1993. Publicado
em O Estado de São Paulo.
VIANNA, Hermano. A Epifania Tropicalista. 1999. Publicado em Folha de São Paulo.
CÍCERO, Antônio. O Tropicalismo e a MPB. 2004.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993.
FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegria, Alegoria. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996.
BASUALDO, Carlos. Tropicália: Vanguarda, cultura popular e indústria cultural no
Brasil (1967-1972). 1993.
CAMPOS, Augusto de. A Explosão de “Alegria, alegria”. 1967. Publicado em O Estado
de São Paulo.
O Trópico Entrópico de TropicáliaMário Chamie.
Publicado em O Estado de São Paulo, 4 de abril de 1968.
CHAMIE, Mário. O Trópico Entrópico de Tropicália. 1968. Publicado em O Estado de
São Paulo.
OLIVEIRA, Adones de. Uma Noite Tropicalista. 1968. Publicado em Folha de São
Paulo.

É PROIBIDO PROIBIR: A PROPOSTA AVANT-GARDE DE OS MUTANTES


Camila Gonçalves Dias Ponzi

Resumo: Este artigo procura analisar historicamente a música vanguardista brasileira,


destacando uma das bandas mais marcantes da época, Os Mutantes. Considerados um
dos pioneiros do rock brasileiro com suas músicas críticas com valores sociais, os
artistas marcaram a história do rock nacional e inspiraram muitas outras bandas que
apareceram nos anos seguintes até os dias de hoje.

Palavras-chave: Vanguardas; Rita Lee; Modernismo; Rock Brasileiro

Abstract: This article focuses on the Brazilian vanguardist music, standing out one of
the most outstanding bands of the time: Os Mutantes. They are considered one of the
pioneers of Brazilian rock. They have marked the history of the national through their
critical songs containing social values. They have also inspired many other rock bands
that appeared later on.

Keywords: Vanguards; Rita Lee; Modernism; Brazilian rock

"É incontestável que a arte deve conter valor social;


como poderoso meio de comunicação que é, deve
ser dirigida e em termos compreensíveis à percepção
da humanidade".
(Rockwell Kent, ano)

A vanguarda
Desde o final do século XX, a sociedade vinha sofrendo diversas modificações e
rupturas. Essas mudanças eram de cunho social, político, artístico e econômico,
atingindo o mundo todo. Nesse período, a Europa estava em clima de contentamento
diante dos progressos industriais, avanços tecnológicos, descobertas científicas e
médicos. Ao mesmo tempo, a disputa pelos mercados financeiros ocasionou a I Guerra
Mundial.

74
Diante desse cenário em que se encontrava, a Europa estava propícia ao
surgimento de novas concepções artísticas sobre a realidade. Surgiram diversas
tendências de arte, principalmente ocasionadas pela situação em que a população se
encontrava: de um lado, a burguesia eufórica com o desenvolvimento industrial e, de
outro lado, a queda da bolsa de Nova Iorque em 1929. Com isso, intensificou-se
também o desemprego nas classes mais pobres.
No Brasil, vivenciava-se o ano do centenário da sua independência, e os jovens
modernistas pretendiam redescobrir o Brasil, libertando-o das amarras que o prendiam
aos padrões estrangeiros. A vanguarda instalara-se. Foi na Semana da Arte Moderna, no
ano de 1922 em São Paulo, que diversos artistas expuseram suas obras, contando com a
participação de músicos, artistas plásticos, arquitetos e escritores.

1. A música
Na música, temos como deflagrador o alemão Hans Joachim Koellreuter. Flautista,
maestro e compositor, foi ele quem trouxe o dodecafonismo (método de composição da
vanguarda) para o Brasil. Koellreuter lecionou durante dois anos no Conservatório de
Música do Rio de Janeiro, onde teve como alunos importantes músicos como Tom
Jobim, Moacyr Santos e Severino Araújo. Liderou um movimento em reação à política
centralizadora de Getúlio Vargas, em 1939, chamado Movimento Música Viva.
Adotava métodos revolucionários de ensino e defendia uma música com
comprometimento social que refletisse a sociedade e os pensamentos contemporâneos.
Na segunda metade da década de 60, o Tropicalismo abriu caminhos para a Música
Popular Brasileira para a experimentação, a qual passou a apresentar diversos estilos,
desde a Bossa Nova até o Rock. Uma das bandas mais marcantes da época foram Os
Mutantes, formado por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Inovadores no seu
estilo musical, os artistas apresentavam um rock anárquico e experimental que
misturava desde psicodelia, Beatles, música concreta, música erudita até samba.
Juntamente com os seus colegas tropicalistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom
Zé e Nara Leão, Os Mutantes modificaram o cenário musical brasileiro da época.

2. Os Mutantes

A BANDA
Tudo começou em 1964, quando os irmãos Arnaldo Baptista e Cláudio César
Baptista, juntamente com Raphael Vilardi e Roberto Loyola, formaram a banda durante
a adolescência chamada de Wooden Faces. Contudo, esse projeto não durou muito e
logo depois eles montaram uma nova banda e convidaram Rita Lee para participar,
chamada de Teenagers Singers. Mais um irmão Baptista, Sérgio, se juntou à banda, que
foi rebatizada como Sie Sided Rockers, depois O Conjunto e O´Seis. Houve mais uma
troca de nome com a saída de Raphael Vilardi e Roberto Loyola, dessa vez definitiva, e
o conjunto passou a se chamar Os Mutantes. Em 1966, começaram a fazer participações
em populares programas de TV da época, tais com Astros do Disco, Jovem Guarda, O
Pequeno Mundo de Ronnie Von. Em 1967, convidados por Chiquinho de Moraes,
passaram a se apresentar fixamente no programa Quadrado e Redondo na Rede
Bandeirantes. Isso permitiu que conhecessem o maestro Rogério Duprat, que
apadrinhou o trio. Cantaram com Nana Caymmi e Gilberto Gil e, dessa forma, se
aproximaram do movimento Tropicalista.
Em 1968 gravaram seu primeiro disco, nomeado Os Mutantes. O trabalho
contava com a participação de Caetano Veloso na música Trem Fantasma e com uma
faixa composta especialmente para o grupo de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em

75
setembro do mesmo ano, participaram do III Festival Internacional da Canção, da
Globo, tocando como banda de apoio de Caetano Veloso. Tocaram a música É proibido
proibir que foi recebida com vaias pela plateia lotada. Em resposta às vaias, os
Mutantes continuaram tocando, mas de costas para o público que se enfureceu, atirando
ovos, pedaços de madeira e tomates no palco.
No ano seguinte, realizaram o primeiro show internacional na França e, voltando
ao Brasil, lançaram o seu segundo disco, Mutantes. Esse disco já contava com a
presença de Ronaldo Leme (Dinho) e Arnadolpho Lima (Liminha), novos integrantes da
banda. Ainda no ano de 1969, os Mutantes realizaram um show na boate carioca Sucata,
junto com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Foi nesse show que ocorreu o episódio da
bandeira que fora pendurada durante o show e continha a frase “Seja Marginal, Seja
Herói” juntamente com a foto de Cara-de-Cavalo, um famoso traficante da época,
assassinado violentamente pela polícia. Alegam também que Caetano, durante a mesma
apresentação, cantou o Hino Nacional com versos inseridos ofendendo as Forças
Armadas. Caetano Veloso e Gilberto foram presos e mais tarde exilados. Esse episódio
ficou marcado como o fim do movimento vanguardista.
No ano de 1970, lançaram o álbum A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado.
Esse é considerado um dos mais importantes da carreira, pois é nele que tentam se
distanciar do tropicalismo e se firmar de vez no rock. No final desse ano, voltam à
França para algumas apresentação e, à convite de um produtor musical francês, gravam
um álbum só com faixas em inglês, que só seria lançado anos depois, em 1999,
chamado de Tecnicolor. Em 1971, lançaram outro álbum, Jardim Elétrico e, no ano
seguinte, lançam o álbum que marcou a transição para o rock progressivo, Mutantes e
Seus Cometas no País dos Baurets em homenagem a um amigo da banda, Tim Maia,
pois chamava de baurets os cigarros de maconha que fumava.
Paralelamente aos trabalhos da banda, Rita Lee vinha gravando discos solos, o
que alimentou os rumores de que iria sair da banda. Este fato se concretizou após o
lançamento do último álbum. Mesmo com a saída de Rita Lee, que se firmava como
uma grande cantora da MPB, Arnaldo Baptista continua com Os Mutantes por mais um
disco – O A e Z (gravado em 1973 e lançado em 1992), que marcou de vez a adesão ao
rock progressivo. Já Sérgio Dias tentou levar a frente Os Mutantes, agora progressivo,
lançando o álbum Tudo Foi Feito Pelo Sol (1974) e Ao Vivo, mas não obteve sucesso
em ambos, o que pôs fim à banda.
Em 2006 foram homenageados no Tropicália - A Revolution in Brazilian
Culture, em Londres. Zélia Duncan assumiu o lugar de Rita Lee, que alegou
compromisso na data marcada, e cantou junto com o resto da formação original. O show
foi gravado em CD e DVD e, logo após o show, Os Mutantes seguiram em uma turnê
pelos Estados Unidos. Em 2007, tocaram no 435º aniversário de São Paulo e, naquele
mesmo ano, saíram em turnê pelo Brasil. No mesmo ano, Zélia e Arnaldo saíram da
banda, permanecendo Sérgio e Liminha. Mais tarde, em 2008, lançaram a última canção
da banda, Mutantes Depois.

Análise das canções

As canções do grupo eram irreverentes. Faziam críticas, em forma de deboche, à


sociedade, ao governo, ao Tropicalismo. Uma das músicas em que percebemos
claramente a crítica ao controladorismo do governo é em É Proibido Proibir. Essa
canção mostra a revolta contra o governo, “simulando” uma cena de greve. Também faz
apologia a qualquer tipo de liberdade do ser humano: sexual, de expressão. Também

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podemos levar como referência a um movimento estudantil francês, que tinha essa frase
como lema.

Eles estão nos esperando


Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim
E eu digo sim
E eu digo não ao não
E eu digo
É proibido proibir
É proibido proibir…

A crítica à sociedade é explicita na música Panis et Circenses, pois fala sobre a


alienação da população perante o mundo ao seu redor. Expressão vinda do latim que
significa Pão e Circo, a canção aponta o controladorismo do governo militar da época.
Levando ao sentido literal da expressão, o grupo faz referência à televisão como forma
de entretenimento (como o Circo), ou seja, uma forma de manipulação do governo. O
deboche aos costumes da sociedade também é bem presente na música.

Referências
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Editora Leitura XXI.
http://cliquemusic.uol.com.br/generos/ver/vanguarda
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_de_vanguarda
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vanguarda
http://www.pitoresco.com.br/art_data/vanguardas_euro/index.htm
http://www.osmutantes.com/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Mutantes
http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/movimento.php
http://analisedeletras.com.br/mutantes/panis-et-circenses/
http://www.vagalume.com.br/os-mutantes/

DO BÊBADO E DO EQUILIBRISTA ÀS FLORES

HOJE VOCÊ É QUEM MANDA:


O CARÁTER SOCIAL DAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE E ELIS
REGINA

Ana Carolina R. P. de Oliveira

Resumo: As décadas de 60 e 70 foram de intensa manifestação cultural. Estudaremos as


relações dos acontecimentos desse período, como a ditadura militar, nas canções da
época, chamadas de Canções de Protesto, de Chico Buarque e Elis Regina.

Palavras-chave: Chico Buarque; Elis Regina; músicas; protesto; ditadura

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Abstract: The 60s and 70s were a period with intense cultural events. We will study the
connection of the events of this period, as the military dictatorship as well as Chico
Buarque’s and Elis Regina’s songs of protest during that period.

Keywords: Chico Buarque; Elis Regina; songs; protest; dictatorship

As “imagens de “modernidade”, “liberdade”, ‘justiça social” e


as ideologias socialmente emancipatórias como um todo
impregnaram as canções de MPB sobretudo na fase mais
autoritária do Regime Militar, situada entre 1969 e 1975.
(Marcos Napolitano)

1. A DITADURA MILITAR, CHICO BUARQUE DE HOLLANDA E ELIS REGINA


As décadas de 60 e 70 representaram uma revolução cultural no Brasil e no
restante do mundo. Esse período foi marcado por inúmeras manifestações culturais,
como aquelas que defendiam a liberdade sexual e, engajado nisso, a luta a favor dos
direitos dos homossexuais e negros. Também vemos o surgimento do movimento
hippie, denominado de contracultura, por promover protestos contrários à ordem
vigente, no caso a americana, que vivia o período da Guerra do Vietnã. Esses ideais de
liberdade influenciaram o surgimento de novas expressões culturais e sociais no Brasil,
refletidas, principalmente, na música.
No início da década de 60, muitos artistas brasileiros já viam na canção uma
função além da social – a política. Esses foram os germes da música de protesto, aquela
que vai contestar acontecimentos e condutas considerados prejudiciais ao país como um
todo. Mas é durante a ditadura militar, instaurada em 1964, que as músicas de protesto
ganham maior destaque.
O golpe de 1964 implantou a ditadura no Brasil, regime imposto e comandado
pelo militares que teve diversos efeitos no nosso país. Os primeiros anos foram de
consolidação do regime, o qual trouxe inúmeras repressões a tudo aquilo que podia ser
considerado ameaçador ou oposto às ideologias do governo.
Nesse contexto, incontáveis artistas da época foram exilados ou tiveram suas
obras censuradas e proibidas no país. A música, então, passou não só a falar de assuntos
banais do cotidiano, mas também passou a ter um envolvimento político.

A chamada canção de protesto, escrita por dezenas de


compositores durante os anos 60, num primeiro momento,
representava uma possível intervenção política do artista na
realidade social do país, contribuindo assim para a
transformação desta numa sociedade mais justa. (CONTIER,
1998, p. 1)

Mesmo considerando o caráter repressivo do governo ditatorial, diversos artistas


continuaram as suas experiências musicais, contudo acrescentaram conteúdo político, o
qual criticava a situação vigente. Entre os inúmeros artistas que se destacaram nessa
época, iremos analisar as criações de dois principais: Chico Buarque e Elis Regina. É
importante deixar claro que diversos outros artistas tiveram relevância nesse período,
como Tom Jobim, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, e todos se envolveram na
mesma causa.
Chico Buarque de Holanda iniciou sua carreira em 1960, quando lançou a
canção “A banda”. Porém sua fama atingiu o ápice em 1966/1967, com o lançamento da

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obra “Chico Buarque de Hollanda”. Além de canções, também produziu na área da
literatura, do cinema e do teatro. Suas músicas sempre tiveram, em menor ou maior
escala, um foco político, o que fazia com que fossem constantemente censuradas
durante o período ditatorial. Tendo em vista a grande repressão da ditadura militar,
Chico Buarque se autoexila na Itália. No mesmo período, na década de 60, surge uma
das maiores cantoras brasileiras – Elis Regina. Aos dezesseis anos de idade já havia
lançado o primeiro álbum, “Viva a brotolândia”. Sua carreira aprimorou-se na década
de 70 e podemos ver isso, principalmente, nos seus discos lançados, de grande
refinamento vocal e qualidade. Assim como Chico Buarque, Elis mostrou-se contrária à
ditadura militar mesmo nos seus anos mais difíceis, em que artistas eram presos,
exilados ou até mesmo torturados. Elis Regina sempre participou de movimentos e
manifestações políticas, nas quais deixava claro o seu descontentamento com o governo
da época. Apesar da morte prematura, aos 36 anos de idade, deixou uma vasta obra na
música brasileira.

2. A FUNÇÃO SOCIAL DAS CANÇÕES DE PROTESTO


Muitas das músicas de ambos os artistas, que agora caracterizamos como
“canções de protesto”, foram censuradas e criticadas. Elas se mostraram como uma
forma de arte de resistência cultural e política. Com isso, podemos analisar diversas
músicas que retratam a situação vivida durante o regime militar, como Cálice, de Chico
Buarque e Gilberto Gil, no qual vemos nitidamente a denúncia social.
Essa música é uma das mais marcantes da época da ditadura militar por revelar o
sentimento dos artistas da época, isto é, mesmo com a repressão, a censura, eles ainda
mantinham seus ideais, como no trecho: “Mesmo calada a boca, resta o peito.”
É evidente que, apesar de serem submetidos ao silêncio, os ideais e os princípios
de liberdade e de justiça permaneciam na cabeça. Ao longo da canção também é
marcante que, para os artistas, eram décadas difíceis, sobretudo devido aos abusos da
ditadura, a qual os mantinha calados, sem poderem, de fato, exercerem toda a sua arte e
liberdade:

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado.

Além disso, no início da música, ao falar “Pai, afasta de mim esse cálice.”,
percebemos que o compositor faz uma alusão a “cale-se”, ao silêncio a que eram
impostos os artistas. Chico Buarque soube deixar registrado nas letras de suas músicas a
realidade vivenciada por ele e por diversas outras pessoas durante os anos 60 e 70, em
que não podiam se expressar por correrem o risco de serem considerados contra a
ditadura – o que podia levar os artistas a severas punições.
Outra música muito importante e marcante dos anos 60 e 70 é “Apesar de você”,
também de Chico Buarque, a qual retrata o governo da época do regime ditatorial, com
suas manipulações e farsas. Como em “Cálice”, vemos que nessa canção Chico Buarque
revela, novamente, o silêncio a que era submetida a população. As duas canções
expõem uma importante função no passado e no presente: naquela época, mostrava o
quanto era necessário tentar impor o que se pensava, mesmo considerando que isso
podia ser censurado, afinal, é através das manifestações do povo que o país evolui como
um todo. Atualmente, essas obras não perdem o seu valor, até porque mostram os fatos
e atos cometidos durante a ditadura, revelando o modo de vida da época àqueles que não

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passaram pelo período. Chico Buarque sempre retratou esses aspectos da vida brasileira
envolvendo a censura e a repressão pela qual passava. Colocar isso em suas músicas
sempre foi a sua forma de protesto. Vejamos um trecho da música “Apesar de você”,
lançada no período mais intenso da ditadura militar, no qual Chico Buarque revela a
verdadeira face dos acontecimentos daqueles anos:

Hoje você é quem manda


Falou tá falado
Não tem discussão.

Essa passagem mostra a real situação dos brasileiros: não se podia contestar nada
imposto pelo governo. Muitas das ações da população não correspondiam ao que
verdadeiramente pensavam, pois a maioria dos comportamentos era, de alguma forma,
ditado pelos grandes governantes.
Apesar dessa insatisfação, vemos que ainda há uma esperança de liberdade e,
consequentemente, felicidade:

“Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar (…)
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido”

É nítido o desejo de libertação, a vontade de falar sem restrições e se expressar


sem medo de ser julgado. Além disso, a esperança do autor mostra que, num futuro
próximo, todos os que foram calados, que sofreram com a falta de liberdade de
expressão, poderão revelar verdadeiramente o que pensam. A música é uma luta contra
o governo, um desabafo, mas também uma revelação de que, em situações próximas,
tudo melhorará, e os governantes pagarão àqueles que sofreram tantas atrocidades e
absurdos. Essa ideia de esperança também é encontrada na música “Como nossos pais”
de Elis Regina e Belchior.
“Como nossos pais” é mais uma canção que retrata a ideologia do período
ditatorial. Novamente as proibições são abordadas e também os sentimentos daqueles
que tanto queriam revelar suas ideias, seus desejos e conhecimentos. Vejamos um
trecho no qual há a crítica a todas as condenações feitas:

Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina


Eles venceram, e o sinal está fechado prá nós que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua.

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Todavia, apesar de todas as contestações a respeito da ditadura e de seus
mecanismos, a esperança é o que impulsiona o desejo de dias melhores: “Mas é você
que ama o passado e que não vê (…) Que o novo sempre vem.”
A ideia de “dias melhores” é recorrente nas canções de protesto contra a
ditadura, e as músicas contribuíram muito para isso, no sentido em que elas mantiveram
a palavra circulando, pois as ideias passaram adiante para todos aqueles que se
identificavam com elas.
Já na década final da ditadura, Elis Regina lança uma música retratando esse
período: “O bêbado e a equilibrista”, dos compositores João Bosco e Aldir Blanc. Essa
canção evidencia toda a situação que ainda está por vir, isto é, a democracia, e critica as
práticas adotadas durante a ditadura, como todos os desaparecidos e mortos, segundo o
trecho:

“A nossa Pátria
Mãe gentil
Choram Marias
E Clarisses
No solo do Brasil...”

Esse fragmento se refere principalmente à morte de um jornalista (Vladimir


Herzog) e de um metalúrgico (Manuel Fiel Filho), contrários à ditadura, no momento
em que cita os nomes de suas esposas (Maria e Clarisse). Ao chegarmos ao final da
ditadura, os governantes passaram a ser ameaçados pela democracia, o que podemos
perceber a seguir:

Mas sei que uma dor assim pungente


Não há de ser inutilmente a esperança…
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar...
Asas!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar...

A canção refere-se à “equilibrista”, aquela que representa um fio de esperança na


chegada da democracia, ao passo de que a ditadura vai perdendo os seus poderes. O
“bêbado”, no caso, relaciona-se com a classe artística, também obrigada a andar sob um
“fio” para poder exercer sua arte. Assim, o “bêbado”, que defende os ideais de
liberdade, encontra-se rodeado de restrições, porém, na imagem da “equilibrista”,
consegue alimentar a expectativa de dias melhores e, consequentemente, mais
democráticos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As canções de protesto têm uma imensa importância por deixarem registradas as
situações vivenciadas não só durante a ditadura, mas também em diversos outros
períodos da história do Brasil e do mundo. Assim, o regime militar serviu de incentivo
para diversos artistas. Segundo Arnaldo Daraya Contier (1998, p. 2): “Em muitos
momentos, os textos das canções transformaram-se em verdadeiros manifestos
políticos”. Esse engajamento da música com a política não foi exclusividade de Chico

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Buarque e Elis Regina. Muitos outros artistas tiveram grande importância, como
Geraldo Vandré, com a famosa “Para não dizer que não falei das flores”, e Caetano
Veloso, com “Alegria, alegria” e “Podres poderes”.
Essa concepção de vincular política à arte foi muito importante no momento em
que o povo deveria se conscientizar da realidade do Brasil. Contribuíram, também, para
essa disseminação de músicas, os Festivais de Canção. Lançados em outubro de 1966,
os Festivais de Canção difundiram diversas músicas brasileiras e de inúmeros gêneros.
Exibidos por emissoras de TV entre 1966 e 1968, contribuíram muito para a cultura
musical brasileira, nesta época dominada pela MPB (Música Popular Brasileira).
Os Festivais atingiram seu maior sucesso em 1967, coincidindo com a época de
grande repressão do governo militar no país. Entretanto, inúmeros artistas, como
Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil continuaram lançando suas músicas,
sobretudo aquelas que defendiam um país contrário à ditadura. Além do importante
papel de propagar essas canções pelo país, os Festivais tiveram outra grande função:
consolidar a MPB e abrir espaço para os primeiros passos do Tropicalismo.
Os Festivais de Canção podem ser considerados uma marca da música brasileira.
Eles são a representação de ideias, posições sociais e políticas de uma época com
grande agitação popular. Eles mostraram, além de tudo, o que os nossos cantores eram
capazes quando queriam defender seus projetos e pensamentos. Mesmo com a ditadura
militar e sua enorme repreensão, os artistas não se intimidaram: continuaram lançando
suas músicas – de protestos ou não.

Referências
CONTIER, Arnaldo. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e popular na canção de
protesto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 13-52, 1998.
NAPOLITANO, Marcos. A música popular brasileira (MPB) dos anos 70: resistência
política e consumo cultural. São Paulo, p.1-12.
BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70. 1.ed. Rio de Janeiro:
SENAC, 2006

NOSSA VIDA REFLETINDO AS ESCOLHAS DE NOSSOS PAIS

Rayama Zaneti Santos

Resumo: Durante a segunda metade dos anos de 1960, os anos 1970 e a primeira
metade dos anos 1980, no Brasil, as canções refletiam a repressão, a injustiça e os
demais sentimentos de insatisfação sentidos pelas pessoas naquela época – período
ditatorial do país. Todos esses sentimentos afetaram muito a percepção dos indivíduos.
Para se protegerem, eles rechaçaram em muitos momentos os valores que receberam de
seus pais, pois a rejeição ao regime anterior, em que foram educados, foi ao extremo. O
problema é que essa rejeição refletiu na geração seguinte a nossa. Os adolescentes de
hoje, ou seja, nós mesmos, temos muita dificuldades em lidar com limites, pois toda
repressão que nossos pais sentiram durante a ditadura fizeram com que eles nos
deixassem muito livres. O fato é que eles não se deram conta de que são necessários, ao
menos, alguns limites e valores para nortearmos nossas ações.

Palavras-chave: Ditadura; Freud; repressão; projeção.

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Abstract: During the second half of the 1960s, the 1970s and the first half of the 1980s
in Brazil, the songs reflected repression, injustice and other feelings of dissatisfaction
felt by people at the time, the country’s dictatorial period. All these feelings affected the
perception of these individuals. In order to protect themselves, they rejected the values
they received from their parents because the rejection of the previous regime, the one
they were brought up in, went to extreme. The problem is that this rejection reflected in
the generation following ours. Today’s teens, that is, ourselves, have great difficulty in
dealing with limits, for all repression that our parents felt during the dictatorship made
them educate us with more freedom. The fact is that they realized they needed at least
some limits and values to guide our actions and our lives.

Keywords: Dictatorship; Freud; repression; projection.

A década de 1960 representou, no início, a realização de projetos culturais e


ideológicos alternativos lançados na década de 1950. Pode-se dizer que a década de
1960 se divide em duas partes. A primeira, de 1960 a 1965, é marcada por um sabor de
inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais – e na política aparece um
evidente idealismo e entusiasmo no espírito de luta do povo. A segunda, de 1966 a
1968, de tom mais ácido, revela as experiências com drogas, a perda da inocência, a
revolução sexual e os protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos
governos.
Foi nesta época que houve o início de uma grande revolução comportamental
com o surgimento do feminismo, de movimentos civis em favor dos negros e
homossexuais, o racionalismo e o movimento hippie, com seus protestos contrários à
Guerra Fria e à Guerra do Vietnã. Além da ocorrência da Revolução Cubana,
movimento de caráter comunista, em que Fidel Castro assume o poder de Cuba.
É durante esse período da história mundial que ocorre o Golpe Militar de 1964
no Brasil, assim como em tantos outros lugares, dando início a uma ditadura militar que
permaneceu vigente durante 21 anos no país. Num momento em que o mundo vivia a
Guerra Fria, edificava-se a disputa entre capitalistas (Estados Unidos) e socialistas
(União Soviética), e os militares aproveitaram para usar como estopim a política
socioeconômica demasiada esquerdista de João Goulart, até então presidente do Brasil,
para justificar o golpe.
Em 1967, três anos após o golpe, Chico Buarque de Holanda lançou a música
Roda Viva como uma forma de protestar contra a ditadura. A primeira estrofe da canção
deixa muito clara as suas intenções:

Tem dias que a gente se sente


Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá...

As demais estrofes não deixam por menos, mas dois versos dessa primeira
estrofe, “... A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar...”, mostram o quão
reprimidos os jovens se sentiram durante a ditadura. Com versos de rimas alternadas, a
música tem um ritmo de roda, que seria a rotina, sempre circular, repetitiva, às vezes até

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tautológica, além de se tornar crescente ao se direcionar ao fim, dando-nos uma ideia de
aceleração. E a roda é viva, isto é, onipresente, logo nós não podemos escapar dela tal
qual a Roda da Fortuna grega.
Sua Estupidez é outra canção deste período. Composta por Roberto Carlos e
Erasmo Carlos. Essa melodia foi lançada em 1969 e também é uma forma de protesto
contra a ditadura. A estrofe em que isso se mostra mais evidente é:

Quantas vezes eu tentei falar


Que no mundo não há mais lugar
Pra quem toma decisões na vida
Sem pensar
Conte ao menos até três
Se precisar conte outra vez
Mas pense outra vez...

Fogo sobre a Terra também entra na categoria de músicas que iam contra aos
desmandos ocorridos durante a ditadura. Essa canção é muito interessante, pois sua
reflexão sobre as emoções que as pessoas sentiam em 1974, ano de sua gravação por
Toquinho, deixam clara as insatisfações daquele período.

A gente às vezes tem vontade de ser


Um rio cheio pra poder transbordar
Uma explosão capaz de tudo romper
Um vendaval capaz de tudo arrasar

Mas outras vezes tem vontade de ter


Um canto escuro onde poder se ocultar
Um labirinto onde poder se perder
E onde poder fazer o tempo parar

Oh, dor de saber que na vida


É melhor de saída
Ser um bom perdedor
Amor, minha fonte perdida
Vem curar a ferida
De mais um sonhador

Essas músicas, assim como várias outras, influenciaram muito todos aqueles que
nasceram no período próximo ao golpe e que, aproximadamente 20 anos depois, sob
essas e outras influências posteriores, escolheram se manifestar explicitamente contra a
ditadura. Toda essa geração de jovens, que exigia uma maior liberdade de expressão,
hoje são nossos pais.
No início do século XX, o médico neurologista Sigmund Freud, estudioso
criador do termo psicanálise para designar um método para investigar os processos
inconscientes e inacessíveis de outro modo, publicou A Interpretação dos Sonhos, sua
obra mais conhecida. Sigmund Freud procurou uma explicação à forma de operar do
inconsciente. A imagem que escolheu, para uma parte da análise, foi à do ‘iceberg’, cujo
consciente corresponde à parte visível, e o inconsciente corresponde à parte não visível,
ou seja, aquela submersa do ‘iceberg’. Em outro trecho da análise, passou a adotar os
conceitos de id, ego e superego.

84
O id representa os processos primitivos do pensamento e constitui, segundo
Freud, o reservatório das pulsões. É ele o responsável pelas demandas mais primitivas e
perversas que nós temos. O ego, como um grande mediador, permanece entre ambos,
alternando nossas necessidades primitivas e nossas crenças éticas e morais. É a instância
na qual se inclui a consciência. Um eu saudável proporciona a habilidade para adaptar-
se à realidade e interagir com o mundo exterior de uma maneira que seja equilibrada e
mais cômoda para o id e o superego. O superego, por sua vez, é aquele que contra-age
ao id, representa os pensamentos morais e éticos internalizados, ou seja, a consciência
moral dos indivíduos.
Nessas instâncias da mente, Freud estudou as defesas pelas quais o ego pode
valer-se e a estas deu a denominação de Mecanismos de Defesa. Dentre elas, a projeção
é aquela que se manifesta quando o ego não aceita reconhecer um impulso inaceitável
do id e o atribui a outra pessoa. Muitos jovens que se tornaram os pais de hoje não
conseguiram lidar com os ‘tempos’ da ditadura e acabaram utilizando a projeção para
proteger a si mesmos. Nós, filhos deles, acabamos por ser o alvo dessas projeções.
O comportamento dos jovens se deve ao modo como foram criados e educados
quando crianças, o que é responsabilidade primeira dos pais. Esse fato se aplica a
qualquer pessoa, e como vemos há uma incrível quantidade de indivíduos,
principalmente os adolescentes, confundindo a liberdade com a libertinagem a qual
estão tão acostumados, e não podemos responsabilizar apenas eles por isso. Os pais
desses jovens não podem atribuir isso somente aos filhos, às influências ou a qualquer
outra desculpa em que possam pensar, pois também é responsabilidade deles.
O que vemos hoje na sociedade é um conjunto de valores distorcidos. A geração
de jovens do final da ditadura, em sua maioria, rompeu com os valores que lhe foram
passados ainda como uma forma de protestar contra aquele regime e projetou em seus
filhos a liberdade da qual foi privada, mas sem tomar o cuidado de manter certo
controle. Ao rechaçar totalmente o período ditatorial, nossos pais não mantiveram esses
valores que receberam de seus pais nem passaram eles adiante. É necessário um
estreitamento nas relações dos pais, mas como pais não como amigos, pois é esse
vínculo, afetuoso e normativo, que auxilia de maneira decisiva na manutenção desses
valores.
Na continuação de seus estudos, Freud elaborou o conceito do Complexo de
Édipo a partir de três livros: Édipo Rei (Sófocles), Hamlet (William Shakespeare) e Os
Irmãos Karamazov (Fiódor Dostoiévsk). Na obra de Sófocles, que foi a base do
conceito, Édipo matou seu pai Laio e desposou a própria madrasta, Jocasta. Após
descobrir que Jocasta era sua mãe, ele fura os próprios olhos, e Jocasta comete suicídio.
O Complexo de Édipo caracteriza-se por sentimentos contraditórios de amor e
hostilidade. Metaforicamente, este conceito é visto como amor à mãe e ódio ao pai,
porque o mundo infantil resume-se a estas figuras parentais ou aos representantes delas.
Uma vez que o ser humano não pode ser concebido sem um pai ou uma mãe (ainda que
nunca venha a conhecer uma destas partes ou as duas), a relação que existe nesta tríade
é, segundo a psicanálise, a essência do conflito do homem.
A ideia central do conceito inicia-se na ilusão de que o bebê tem de possuir
proteção e amor total, reforçado pelos cuidados intensivos que o recém nascido recebe
por sua condição frágil. Esta proteção é relacionada, de maneira mais significativa, à
figura materna. Em torno dos três anos, a criança começa a entrar em contato com
algumas situações em que sofre interdições, facilmente exemplificadas pelas proibições
que começam a acontecer nesta idade. A criança não pode mais fazer certas coisas
porque já está maior. Neste momento, a criança começa a perceber que não é o centro

85
do mundo e precisa renunciar ao mundo organizado em que se encontra e também à sua
ilusão de proteção e amor total.
Nos estudos de Sigmund Freud, Hamlet complementou o que faltava em Édipo
Rei, ou seja, lhe entregou aquela intenção de explicar um desejo que não coloca o
sujeito necessariamente na ação, mas, ao contrário, o impede. Assim, embora Freud
tenha dado o nome de Complexo de Édipo, talvez como um modo de ser fiel àquilo que
mais precocemente foi concebido na história cultural da humanidade, é Hamlet que se
encontra mais consistente em suas ideias. Após essas análises, Freud conclui que
"Hamlet encontra-se impossibilitado de realizar a vingança da morte do pai, tendo em
vista que o assassinato deste, na verdade, atualiza seus desejos infantis reprimidos, ou
seja, matar o pai e ficar com sua mulher."
O complexo de Édipo é muito importante porque caracteriza a diferenciação do
sujeito em relação aos pais. A criança começa a perceber que os pais pertencem a uma
realidade cultural e que não podem se dedicar somente a ela, pois possuem outros
compromissos. A figura do pai representa a inserção da criança na cultura; é a ordem
cultural. A criança também começa a dirigir sentimentos hostis ao pai em função de
perceber que este pertence à mãe.
Estes sentimentos são contraditórios porque a criança também ama esta figura
que hostiliza. A diferenciação do sujeito é permeada pela identificação da criança com
um dos pais. Na identificação positiva, o menino identifica-se com o pai, e a menina,
com a mãe. O menino tem o desejo de ser forte como o pai e, ao mesmo tempo, tem
“ódio” pelo ciúme da mãe. A menina é hostil à mãe porque ela possui o pai e ao mesmo
tempo quer se parecer com ela para competir e tem medo de perder o amor da mãe, que
foi sempre tão acolhedora. Na identificação negativa, o medo de perder aquele a quem
hostilizamos faz com que a identificação aconteça com a figura de sexo oposto, e isto
pode gerar comportamentos homossexuais. Nesta fase, a repressão ao ódio e à vontade
de permanecer em “berço esplêndido” é muito forte, e a criança desenvolve mecanismos
mais racionais para sua inserção cultural.
Com o aparecimento do Complexo de Édipo, a criança sai do reinado dos
impulsos e dos instintos e passa para um plano mais racional. A pessoa que não
consegue fazer a passagem da ilusão de superproteção para a cultura pode vir a se
psicotizar. Segundo Freud, o desenvolvimento psicossexual se divide em quatro fases:
Oral, Anal, Fálica e Genital. O momento culminante e o declínio do Complexo de Édipo
ocorre na Fase Fálica, que é caracterizada por uma unificação das pulsões parciais sob o
predomínio dos órgãos genitais.
O conceito de Complexo de Édipo é fundamental para a psicanálise, entendido
por esta como sendo universal e, portanto, característico de todos os seres humanos. A
formação de nossa personalidade se dá até os cinco anos, então os preceitos básicos
devem ser passados desde cedo pelos pais às crianças. Estudos recentes comprovam que
os primeiros anos da criança deixam rotas neurológicas traçadas em seu cérebro e que,
durante seu amadurecimento, torna-se bem mais difícil corrigir essas rotas, uma vez que
estas estão mais enraizadas no sujeito. Talvez, se juntarmos as recentes descobertas
científicas com as análises de Freud sobre a psique, possamos realmente desvendar o
porquê de estarmos nessa situação.

Referências:
BRITANNICA, ENCYCLOPAEDIA DO BRASIL Publicações Ltda.
CARVALHO, UYRATAN . Psicanálise I . Isbn.RJ.2000
CHEMAMA, ROLAND. Dicionário de Psicanálise Larousse, Artes Médicas, RS-1995
ENCARTA, ENCICLOPÉDIA - 1993-1999 Microsoft Corporation.

86
FENICHEL, OTTO, Teoria Psicanalítica das Neuroses, Atheneu, SP-2000
FREUD, SIGMUND. Obras Psicológicas Completas versão 2.0
GREENSON, R.R., A Técnica e a Prática da Psicanálise. Imago. RJ. 1981
HANNS, LUIZ – Dicionário Comentado do Alemão de Freud, Imago, RJ-1996.
HENRY EY. Manual de Psiquiatria. 5º Edição. Masson/Atheneu
INTERNET-http://www.ebp.org.Br
KAUFMANN, PIERRE – Primeiro Grande Dicionário Lacaniano, Jorge Zahar Editor,
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LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, SP-2000
NASIO, J-D - Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott,
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NASIO, J-DAVID, Os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-
1995.
NICOLA ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia – Martins Fontes, SP-2000
ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-
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ZIMERMAN, DAVID E. – Fundamentos Psicanalíticos, Artmed, RS-1999.
ZIMERMAN, DAVID E. – Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise, Artmed, RS-
2001.

A MÚSICA COMO FONTE DE LIBERDADE DIANTE DA REPRESSÃO

Olavo
Guimarães

Resumo: Durante a década de 70, nosso país vivenciou um dos períodos mais duros de
sua história, a ditadura militar. Este período ficou marcado pela falta de democracia,
desrespeito aos direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos
que não eram a favor do regime militar. Grande parcela da população era contra tal
regime, porém pouquíssimos se manifestavam com medo das conseqüências.
Analisando uma música, falaremos sobre como Caetano Veloso conseguiu inserir,
diante de tanta opressão, suas ideias rebeldes em suas obras.

Palavras-chave: Música; Brasil; Ditadura Militar; Caetano Veloso.

Abstract: During the 70s, Brazil experienced one of the toughest periods in its history:
the military dictatorship. This period was marked by a lack of democracy, disrespect for
constitutional rights, censorship, political persecution and repression for those who were
against the military regime. Large portion of the population was against such a regime,
but very few demonstrated it because of fear of consequences. Analyzing a song, we
will talk about how the musician Caetano Veloso was able to interpolate his rebellious
ideas in his works toward so much reppression.

Keywords: Music; Brazil; Military Dictatorship; Caetano Veloso.

1. CONTEXTO HISTÓRICO
Para obter-se um bom entendimento das músicas em questão, é fundamental
conhecermos e avaliarmos o contexto histórico no qual elas foram produzidas. Por isso,
analisaremos brevemente o período em que as canções foram compostas.

87
A crise política começou a se instaurar em 1961, quando Jânio Quadros
renunciou ao cargo de presidente, e seu vice, João Goulart, sucessor legal, estava
viajando. Os ministros militares, articulados com os dois grandes partidos
conservadores, UDN e PSD, tentaram barrar o retorno de Jango ao país impondo ao
Congresso a aprovação de um veto à sua posse. O grande motivo desse temor se dava,
obviamente, pelo conhecimento do histórico político de Goulart, esquerdista nato. Foi
preciso uma grande campanha, liderada por Leonel Brizola para que o sucessor legal
assumisse sua função. Tal fato mostra que, desde o início, João Goulart, vulgo Jango,
sofria forte oposição. Jango teve seu governo caracterizado por uma série de medidas de
esquerda que propunham reformas educacionais, agrárias, tributárias, eleitorais e
urbanas, as chamadas reformas de base. Concomitantemente, dava-se o auge da Guerra
Fria e do comunismo russo, o que contribuiu para o surgimento de rumores de que
Jango era comunista.
As tensões sociais aumentavam a cada dia, então, no dia 31 de Março de
1964, os militares assumiram o poder. Os ministros militares logo decretaram um Ato
Institucional que estabelecia eleições indiretas para presidente, dava-lhes liberdade para
decretar estado de sítio e cassar direitos políticos por até dez anos. Quatro dias depois,
Castelo Branco, chefe do Estado Maior do Exército e coordenador da conspiração
contra Goulart, assumiu o governo. Suas principais medidas foram a anulação de atos
do governo anterior, a repressão àqueles que eram contrários ao regime, a cassação do
direito político de 378 pessoas e a demissão de dez mil funcionários públicos. A
ditadura compreendeu também os governos de Arthur da Costa e Silva (1967-1969),
Emílio Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista Figueiredo
(1979-1985). Para garantir seu poder, o governo militar alterou a Constituição,
decretando Atos Institucionais, cujo mais duro e repressivo foi o número 5 (AI-5), que
ocorreu no governo de Costa e Silva. Este ato foi responsável, inclusive, pela prisão e
pelo exílio de Caetano Veloso. Tal ato foi visto pela juventude daquela época como o
fim dos meios de resistência pacífica à ditadura, iniciando-se assim várias revoltas
armadas.
O governo de Médici é conhecido por “milagre econômico”, porém se deu em
condições de extremo autoritarismo e intolerância a qualquer tipo de contestação, sendo
considerado o pior governo do regime neste aspecto e lhe rendendo o apelido de “anos
de chumbo”. Devido a essa rígida repressão, a imprensa e as manifestações artísticas e
culturais foram severamente censuradas. Os jornais e as grandes fontes de mídia, em
geral, eram todas vigiadas por agentes que, caso vissem algo subversivo, proibiam a
publicação, substituindo, muitas vezes, os espaços reflexivos por receitas culinárias. Já
os artistas, para driblar tal controle, não podiam exprimir de maneira clara seus ideais
revolucionários, fazendo uso da ambiguidade e da metáfora, o que analisaremos
detalhadamente adiante, usando como corpus algumas músicas.
O processo de abertura política só iniciou em 1974, quando o atual general,
Ernesto Geisel, declarou um “gradual, mas seguro, aperfeiçoamento democrático”. Essa
lenta abertura foi consolidada pela extinção do AI-5, que entrou em vigor em janeiro de
1979.
Um mês depois, João Figueiredo assume a presidência, na qual sua primeira
medida foi a Lei da Anistia, aprovada após intensa campanha popular. Foi um
importante passo para a redemocratização, pois permitiu a volta de inúmeros brasileiros
exilados. Outra lei importante concedida por Figueiredo foi a que restabeleceu o
pluripartidarismo, em que os antigos partidos voltaram a funcionar normalmente, e
novos foram criados. Vale frisar que, apesar de a repressão estar desaparecendo

88
gradualmente, alguns militares de linha dura continuavam agindo clandestinamente e
efetuando atentados.
Em 1982, o povo volta a escolher seus governadores, no entanto, com algumas
restrições, como a cédula eleitoral sem o nome dos partidos. Em 1985, Tancredo Neves,
do partido democrático, é eleito pelo Colégio Eleitoral, marcando o fim do regime
militar. Porém, logo após sua vitória, Tancredo sofre problemas de saúde e acaba
falecendo, assumindo seu vice-presidente, José Sarney. O processo de normalização
democrática só teve fim mesmo com a eleição direta de Fernando Collor de Melo, em
1989.
Durante todo esse período de repressão e revolta, aconteciam em vários setores
artísticos inúmeros manifestos a favor da liberdade de expressão e da redemocratização,
tendo como principal público os jovens estudantes.

2. CORPUS: ANÁLISE DA CANÇÃO “TROPICÁLIA” (1968)


Ao ler as letras do músico Caetano Veloso, notamos que, a grande maioria,
está relacionada à realidade social, política e cultural que o autor vivencia. Não podendo
analisar vasto repertório, escolhemos a música “Tropicália” para interpretar, devido à
sua grande representatividade.
Nesta canção, composta em pleno governo ditatorial, há uma série de
metáforas usadas pelo autor como forma de “maquiar” seus ideais, caso contrário,
sofreria censura e perseguição. A música é composta do início ao fim de protestos
enrustidos por períodos metafóricos, os quais serão analisados os principais.
No início da canção, “sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés, caminhões”,
simboliza o povo impotente sendo pisoteado e esmagado pelo poder maior, no caso, a
repressão daquela época.
Na segunda estrofe, fala-se sobre um carnaval no Planalto Central, em que
Carnaval significa situação anárquica, sem regras, e o Planalto Central simboliza o
poder. Os homens do poder agem sem regras. O autor utiliza o sujeito na primeira
pessoa nesta parte, talvez para mostrar sua proximidade com os acontecimentos, talvez
para imitar os ditadores: “Eu oriento o carnaval... no planalto central”.
Aparece então o primeiro refrão: “viva a bossa, sá, sá, sá, viva a
palhoça,çá,çá”. Nota-se uma semelhança entre a palavra palhoça e palhaço. Este
representaria a situação do povo, feito de bobo. O eco dos fonemas /s/a/ podem
representar uma risada irônica dos que estão no poder.
Na próxima estrofe, Caetano descreve um monumento, o qual representaria o
Planalto Central, sede do governo federal. De acordo com o autor, o monumento não
tem portas, e a entrada é uma rua antiga, estreita e torta. Já que não tem portas, é
impossível a entrada, e qualquer forma de protesto para chegar lá passa pelo
enfrentamento de um caminho tortuoso, cheio de obstáculos.
Nesta parte da música, temos uma das metáforas mais bem trabalhadas,
imperceptível e, por isso, livre da censura: “e no joelho uma criança sorridente, feia e
morta estende a mão”. Se olharmos no mapa, veremos que a única região de nosso país
que se assemelha a um joelho é o Nordeste, logo onde mais tem crianças morrendo de
fome, estendendo suas mãos em pedido de esmolas, completamente abandonadas pelo
governo.
Logo após citar a morte, aparece o segundo refrão: “viva a mata, tá, tá, viva a
mulata, tá, tá, tá”. A mata, além da vegetação, se assemelha a “matar” numa época em
que ocorria uma matança sem medida de pessoas. A repetição da sílaba “tá” bem lembra
o som de uma metralhadora, símbolo do homicídio repressivo.

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Mais adiante, já no terceiro refrão, temos: “viva Maria, iá, iá, viva a Bahia, iá,
iá, iá, iá”. A Maria, nome popular brasileiro, e a Bahia, estado característico de nosso
povo e de nossa cultura, representam o sofrimento da população. Genialmente, o autor
repete as sílabas “iá” – repetição esta que, quando proferida, nos dá a impressão de “ai”,
interjeição que sinaliza a dor.
Na quarta estrofe, temos uma crítica direta ao presidente: “No pulso esquerdo,
o bang-bang” simboliza o poder do governante efetuado por meio da violência. Logo
após, é criticada a falta de remorsos e de sensibilidade social do homem em questão:
“em suas veias corre muito pouco sangue”, ele tem pouco sangue, ele é menos humano,
menos emotivo. Contudo, o artista salienta que o coração egoísta do ditador balança a
um samba de tamborim, ou seja, com felicidade, por estar no comando. Caetano finaliza
a estrofe dizendo que o tal homem põe os olhos grandes sobre ele, mostrando ser alvo
de atenção e perseguição do governo. Quando ele vira foco do homem, a canção vai
para o refrão, que é bem mais animado que as estrofes em letra e ritmo. Há uma
metáfora por trás desse fim de estrofe: quando o tirano começa a perceber as críticas
contidas no trecho e põe os olhos sobre ele, numa simulação de alegria e contentamento,
a canção vai para o animado refrão. Essa passagem demonstra exatamente o
comportamento do povo, que tinha que agir dissimuladamente para não ser pego pelos
militares.
O quarto refrão, no mesmo estilo dos anteriores, repete as sílabas finais de
Ipanema e Iracema, formando o adjetivo “má”, que caracteriza a governança repressora
e autoritária da ditadura.
Como vimos, o autor consegue expressar seus ideais diante da repressão,
utilizando-se de um disfarce linguístico proporcionado pelas metáforas. Nota-se também
uma preferência pelos períodos curtos, restringindo assim seus possíveis significados,
defendendo-o da censura. Várias de suas músicas foram publicadas e influenciaram os
jovens a se revoltar e buscar a liberdade de expressão. Porém, mesmo não usando
mensagens explícitas, Caetano Veloso e seu amigo e compositor Gilberto Gil foram
presos no fim do ano de 1968. No ano de 1969, eles foram mandados para o exílio em
Londres, só voltando em 1972 com a aprovação da Lei da Anistia. Caetano Veloso
continua vivo, compondo músicas, e é considerado um dos principais nomes da música
popular brasileira – MPB.

Referências
SUA PESQUISA, disponível em: http://www.suapesquisa.com/ditadura/, consultado em
26/06/2010.
TROPICÁLIA, disponível em: http://tropicalia.uol.com.br/site/, consultado em
29/06/2010.
MARIA DE MORAES DA SILVA, Márcia. A polifonia nas letras das canções de
Caetano Veloso. Trabalho acadêmico, publicado em dez/2005, disponível em:
http://www.unipinhal.edu.br/home/index. php.
VAGALUME, disponível em www.vagalume.com.br, consultado em 29/07/2010.

CONSEQUÊNCIAS DE UM 31 DE MARÇO

Átila Brito

90
Resumo: No dia 31 de Março de 1964, iniciou-se um período de ditadura no nosso país.
O abuso de poder e o uso excessivo de violência causaram a revolta em um povo que
não podia expressar seus sentimentos. Aqueles que ousavam eram torturados ou
simplesmente desapareciam do mapa. Nessa época, muitos músicos se destacaram por
ter essa coragem que faltava a todos: enfrentar o governo. Francisco Buarque de
Holanda é, sem dúvida, um dos mais ativos compositores que contestaram essa tirania.
A censura da década era bastante rígida, proibindo qualquer manifestação contra o
Estado. Chico Buarque teve êxito em burlar tais regras ao criar músicas que passassem
mensagens subliminares de maneira extremamente criativas. A análise dessa figura é
essencial para se conheça melhor o passado do nosso país.

Palavras-Chave: Chico Buarque; Ditadura; Censura; Música.

Abstract: On March 31st 1964 the dictatorship period began in our country. The abuse
of power and excessive use of violence caused outrage in people who could not express
their feelings. Those who dared the dictators were tortured or were simply vanished. At
that time, many writers stood out for having the courage nobody had: to confront the
government. Francisco Buarque de Holanda is undoubtly one of the most active
composers who challenged this tyranny. The censorship of that decade was quite rigid,
forbidding any demonstration against the state. Chico Buarque succeeded in
circumventing such rules when creating music that passed subliminal messages in a
most creative way. The analysis of this figure is essential for a better understanding of
the past of our country.

Keywords: Chico Buarque; Dictatorship; Censorship; Music.

“Hoje na solidão ainda custo a entender como o


amor foi tão injusto para quem só lhe foi dedicação”
Chico Buarque.

Após a renúncia de Jânio Quadros, segundo a Constituição, João Goulart deveria


assumir o governo. No entanto, os militares eram claramente contrários à sua posse,
pois o viam como uma ameaça para o país, devido as suas ligações com políticos de
esquerda. Não havendo unanimidade no veto a Jango, este assumiu o poder.
Com o objetivo de dar fim aos problemas estruturais do país, lançou-se o Plano
Trienal, em que as medidas adotadas previam maior intervenção do Estado na
economia. Esta proposta foi rejeitada pelos congressistas, dando continuidade à crise
econômica. João Goulart procurou fortalecer-se, participando de manifestações e
comícios com discursos que defendiam a reforma da Constituição. Após anunciar que
tinha assinado um decreto sem a aprovação do congresso, a oposição contra ele se
tornou insustentável.

Até quando as forças responsáveis deste país, as que encarnam


os ideais e os princípios da democracia, assistirão passivamente
ao sistemático, obstinado e agora já claramente declarado
empenho capitaneado pelo presidente de República de destruir
as instituições democráticas? (FOLHA DE S. PAULO, 1964)

Com o término da Segunda Guerra Mundial, viu-se o mundo dividido em duas


ideologias: o capitalismo, representado pelos EUA, e o socialismo, defendido pela

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União Soviética. Este período conhecido como Guerra Fria teve influência direta ou
indireta nos acontecimentos do mundo até o fim da URSS. Cuba e China passaram a
financiar grupos de esquerda na América Latina para implantar o comunismo na região.
Logo, os Estados Unidos, que consideravam a América área de sua influência, passaram
a apoiar e financiar uma série de golpes militares para conter o avanço comunista.
No dia 31 de Março de 1964, tropas das forças armadas marcharam rumo ao Rio
de Janeiro com o objetivo de depor Goulart do governo para evitar a implantação de um
regime totalitário comunista no Brasil. O golpe de estado foi comemorado por milhões
de pessoas que saíram às ruas para celebrar a deposição do presidente. A repressão se
instalou imediatamente após o início da ditadura. Muitas instituições foram reprimidas e
fechadas, seus dirigentes presos, e suas famílias, vigiadas. Todos contrários ao Estado
eram considerados inimigos, podendo ser passíveis de punição.

No Brasil há forças revolucionárias convencidas de que o dever


de todo o revolucionário é fazer a revolução. São estas forças
que se preparam em meu país e que jamais me condenariam
como faz o Comitê Central só porque empreendi uma viagem a
Cuba e me solidarizei com a OLAS e com a revolução cubana.
A experiência da revolução cubana ensinou, comprovando o
acerto da teoria marxista-leninista, que a única maneira de
resolver os problemas do povo é a conquista do poder pela
violência das massas, a destruição do aparelho burocrático e
militar do Estado a serviço das classes dominantes e do
imperialismo e a sua substituição pelo povo armado!
(CARLOS MARIGHELA, 1967)

Para os militares, vigiar a cena musical garantia a desmobilização política da


sociedade. Artistas da Música Popular Brasileira conspiravam para desestabilizar o
regime, de acordo com o governo. Foi uma época em que a música de protesto se tornou
a resistência ao autoritarismo – uma forma de alguém conseguir mostrar sua opinião em
relação à ditadura.
Nasce no dia 19 de junho de 1944, Francisco Buarque de Holanda, natural do Rio
de Janeiro, sofisticado criador de melodias bruscas. É intérprete, sambista, escritor,
compositor e teatrólogo. Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e de Maria
Amélia Cesário Alvim sempre revelou interesse pela música. Morou com sua família
alguns anos na Itália, quando seu pai fora convidado a lecionar na Universidade de
Roma, mas logo voltara ao Brasil. Chico Buarque, na sua adolescência, escrevia para o
jornal da escola, o que lhe aguçou a sensibilidade crítica. Ironicamente, sua primeira
aparição na imprensa não fora cultural, e sim policial, já que furtou um carro para
passear na madrugada paulista. Ingressou no curso de arquitetura na Universidade de
São Paulo, mas não chegou a concluí-la. Então começou a se dedicar à carreira artística.
Os Festivais de Canções organizados por emissoras de televisão revelavam ídolos de
uma juventude que se manifestava contra a repressão política do governo militar. E com
Chico não foi diferente, mostrou-se ao público quando ganhou o Festival de Música
Popular Brasileira, com a letra e melodia de “A Banda”. Suas primeiras músicas
demonstravam seu lirismo, como Ela e sua Janela, influenciado por João Gilberto.
Tornou-se cronista da vida brasileira quando o nosso país não inspirava tanta poesia. A
partir do final de 1968, foi instituído o AI-5, em que artistas e intelectuais passaram a
ser perseguidos. Com o endurecimento do regime, Chico Buarque se exilou na Itália.
Ao voltar para o Brasil, afasta-se do samba tradicional variando mais as composições e

92
revelando novas influências, como suas músicas “Cálice” e “Apesar de Você”, que
foram censuradas.

Pai! Afasta de mim esse Cálice


Pai! Afasta de mim esse Cálice
Pai! Afasta de mim esse Cálice
De vinho tinto de sangue
(CHICO BUARQUE, 1973)

“Cálice” é uma música escrita e interpretada por Francisco de Holanda e


Gilberto Gil que demonstra a grande criatividade do artista em conseguir burlar a
censura por algum tempo. O duplo sentido nas letras de Chico Buarque é bastante
presente e capaz de cativar qualquer um que as escute. A melodia triste não é representa
por inteiro a melancolia que se vivia na época. Escuta-se um raivoso “Cale-se” ao longo
da canção. Essa é a forma de extravasar a insatisfação que cala no peito frente a tanta
força bruta.

Hoje você é quem manda


Falou, ta falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
(CHICO BUARQUE, 1970)

“Apesar de Você” sofre, no auge do seu sucesso, a proibição da sua execução.


Este fato teve um impacto negativo no relacionamento entre Chico e os censores. Essa
canção tem presente a metáfora, a possibilidade de uma interpretação não apenas literal,
porém mais profunda, o que ela verdadeiramente almeja transmitir. Ela critica a falta de
liberdade e a triste realidade em que os brasileiros têm de aceitar calados todas as
medidas que lhes são impostas. A canção passa uma ideia de esperança de que tudo irá
melhorar, e os culpados por tamanho sofrimento irão pagar por seus crimes.
Como suas músicas somente por conter a sua assinatura estavam sendo
rejeitadas, pois já era bastante conhecido pelos censores, Francisco de Holanda faz
nascer Julinho de Adelaide. A saída para escapar da censura foi a criação de um
heterônimo e deu certo. “Acorda amor”, “Jorge maravilha” e “Milagre brasileiro”
passam sem problemas. Muito pouco se sabia sobre Adelaide, nenhuma foto (alegava
ter uma cicatriz enorme e deselegante no rosto que o constrangia), nenhuma entrevista.
Julinho chegou a dar uma entrevista para o jornal Última Hora sobre sua carreira em
ascensão. O público só tomaria conhecimento da verdade por meio de uma reportagem
publicada em 1975 pelo Jornal do Brasil.

Acorda Amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

93
(CHICO BUARQUE, 1974)

“Acorda Amor” demonstra novamente o duplo sentido das letras de Chico.


Retrata a insegurança da população já que diversas pessoas sumiram após terem sido
arrancadas de suas casas. A falta de confiança era tão grande que as pessoas tinham
mais medo dos policiais (que sequestravam, torturavam e matavam) do que dos ladrões.
A ironia do compositor nessa canção é notória quando os agentes da repressão chegam a
casa, chamando os ladrões para que os salvem.
Suas músicas, em alguns casos, assumiam a função de tentar transmitir notícias
que os meios de comunicação não conseguiam transmitir por causa da censura, como,
por exemplo, “Angélica”.

Quem é essa mulher


Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
(CHICO BUARQUE, 1977)

“Angélica” relata o que era bastante comum acontecer durante a ditadura: um


filho simplesmente sumir do cenário. A canção mostra o sofrimento da mãe, presente no
trecho “só queria embalar meu filho”, sua insistência em descobrir o que acontecera e
uma sugestão quase certa de que este já se encontrava no fundo do mar, não podendo
cantar mais.
Algumas de suas composições apelavam para a resistência e apontavam para a
esperança como em “Até o fim”.

Não sou ladrão, eu não sou bom de bola


Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
(CHICO BUARQUE, 1978)

Essa canção conta a história de um garoto que, mesmo que desse tudo errado em
sua vida desde o início, vai até o fim. O verso “Mas vou até o fim”, repetido no final de
toda estrofe, mostra a insistência em continuar lutando e o desejo e a certeza de que se
vai chegar ao fim daquela situação que se está vivendo.
Na década de 80, Chico Buarque compõe o samba “Vai Passar”, que, no ano
seguinte, se torna uma referência na campanha pelas Diretas Já, da qual participa
ativamente.

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
(CHICO BUARQUE, 1983)

94
A letra fala por si só quando o compositor comenta o fim da ditadura de forma
alegórica. Nesta canção ele utiliza metáforas para expressar a transição de um novo
governo e fala também do desconhecimento das novas gerações referente aos
acontecimentos do pós-64.
No último ano da ditadura, surgiu o movimento das Diretas Já, que mobilizou
toda a população em defesa de Eleições Diretas para a escolha do próximo presidente da
República. O governo, porém, resistiu e conseguiu barrar a Lei Dante de Oliveira.
Desse modo, o sucessor de Figueiredo foi escolhido indiretamente pelo Colégio
Eleitoral, formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
A canção registra um ponto de vista expresso através de sentimentos e emoções.
Esse registro por meio dos sentidos e das sensações aproxima o relato daquilo que se
viveu. Por intermédio das músicas de Chico Buarque, é possível perceber os
sentimentos de uma identidade coletiva e censurada aparente nas suas composições.

Referências
http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/historia-regime-militar.jhtm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-1985)#O_golpe
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Goulart
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ditadura_militar_no_Brasil_(1964-
1985)#O_golpe_contra_o_governo_de_Jo.C3.A3o_Goulart
http://pt.wikipedia.org/wiki/Golpe_de_Estado_no_Brasil_em_1964
http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/historia-regime-militar.jhtm
http://www.chicobuarque.com.br/sanatorio/abre_julinho.htm
http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/1008951
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/
http://www.paralerepensar.com.br/chicobuarque.htm
http://www.millarch.org/artigo/cancoes-de-protestos-mas-com-ingenuidade
http://pt.wikipedia.org/wiki/Apesar_de_voc%C3%AA
http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_no_Brasil
http://www.suapesquisa.com/ditadura/

A LIBERDADE DEBAIXO DOS CARACÓIS DOS SEUS CABELOS

Isabella Salzano Marchese

Resumo: Caetano Veloso tem seu nome marcado na música popular brasileira (MPB)
desde a década de 60 – quando foi o principal nome de um movimento artístico que teve
importância crucial para a nossa cultura: o Tropicalismo. Em dezembro de 1968,
Caetano foi preso pela acusação de ter desrespeitado o Hino Nacional e a bandeira
brasileira e, em fevereiro de 1969, foi mandado para o exílio na Inglaterra e só retornou
definitivamente ao Brasil em janeiro de 1972 após passar três anos exilado.

Palavras-chave: Música popular brasileira (MPB); Tropicalismo; exílio.

Abstract: Caetano Veloso has had his name stamped on Brazilian popular music
(MPB) since the '60s, when he was the main name of an artistic movement that was
crucial to our culture: tropicalismo. In December 1968, Caetano was arrested for an

95
alleged contempt of the National Anthem and the Brazilian flag and in February 1969,
was sent into exile in England and only returned permanently to Brazil in January 1972
after spending three years in exile.

Keywords: Brazilian popular music (MPB); tropicalismo; exile.

"Democracia racial" rima com "homem cordial". Não é


uma solução. Mas vou pôr isso na letra de uma música.
– Caetano Veloso

A trajetória de Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso, mais conhecido por


Caetano Veloso, inicia-se no dia 7 de agosto de 1942 em Santo Amaro da Purificação,
pequena cidade do Recôncavo Baiano, próxima de Salvador. Aos 21 anos, ingressou na
faculdade de filosofia, onde foi apresentado a Gilberto Gil, de quem já era fã. Porém,
em 1965, abandonou a faculdade e seguiu sua irmã, Maria Bethânia, rumo ao Rio de
Janeiro. Caetano iniciou sua carreira interpretando canções de Bossa Nova, influenciado
por João Gilberto. Participou, na juventude, de espetáculos semiamadores ao lado de
Tom Zé, da irmã Maria Bethânia e do parceiro Gilberto Gil, integrando o elenco de
“Nós, por exemplo,”, que acabará influenciando a concepção de espetáculos de estrutura
semelhante que virão a ser feitos no Rio de Janeiro e em São Paulo pouco depois.
Caetano foi lançado no cenário musical nacional pela irmã, a já conhecida
cantora Maria Bethânia. Em 1965, lançou a gravação do primeiro compacto simples
com "Cavaleiro" e "Samba em paz", ambas de sua autoria.
O primeiro LP gravado, em parceria com Gal Costa, foi Domingo, que contou
com uma sonoridade totalmente bossa-novista, e a ele pertence o primeiro êxito popular
da carreira, a canção Coração vagabundo.

Tropicalismo
Caetano Veloso foi o principal nome do Tropicalismo, movimento de
vanguarda que abalou nossas estruturas musicais e culturais com consequências
notáveis até hoje. O movimento aplicou e atualizou, num contexto de massa, a filosofia
antropofágica do modernista Oswald de Andrade, que propôs o reprocessamento de
informações estrangeiras para a criação de uma arte brasileira e original. O tropicalismo
estabeleceu também uma ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura (a de
bom e a de mau gosto). Público, crítica e artistas, entre tropicalistas e esquerdistas
engajados, se dividem. Na imprensa, o poeta Augusto de Campos saúda o grupo baiano
que o promove. Quanto a Caetano, "eu organizo o movimento", canta ele, na canção -
manifesto "Tropicália". Nas letras, os tropicalistas procuram revelar um Brasil
simultaneamente primitivista e moderno, fazendo referências a ídolos da cultura de
massas e a elementos de mau gosto da cultura popular. Em novembro de 1967, "Alegria,
alegria" é lançada em compacto simples, e um “happening” ocorre em Salvador e
repercute nas revistas de todo o país: o seu casamento pop-tropicalista com a baiana
Dedé Gadelha (ela de minissaia).
Em setembro de 1968, ao apresentar sua "É proibido proibir" na eliminatória
paulista do 3º Festival Internacional da Canção, foi vaiado. Acusado de alienado,
revidou o ataque, tachando a esquerda de burguesa e ignorante. Vestido com roupa de
plástico, ele lança de improviso um histórico discurso contra a plateia e o júri. "Vocês

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não estão entendendo nada", grita. A canção é desclassificada, mas também foi lançada
em compacto simples. Caetano lançou um compacto duplo que continha a gravação do
samba "A voz do morto" que foi censurado pela ditadura militar e recolhido das lojas.

Exílio
Desde o início de sua carreira, Caetano Veloso sempre demonstrou uma
posição política ativa e esquerdista, ganhando por isso a inimizade do regime militar
instituído no Brasil entre 1964-1985. Por esse motivo, as canções foram frequentemente
censuradas neste período, e algumas até banidas.
O Ato Institucional nº. 5, que acirrou a ditadura militar e cerceou a liberdade
artística no Brasil, tinha sido editado havia somente duas semanas. É nesse momento
que Caetano, juntamente com Gilberto Gil, no dia 27 de dezembro de 1968, é preso em
São Paulo sob o pretexto de ter desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira.
Caetano Veloso é levado para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio de
Janeiro, e tem sua cabeça raspada. No ano seguinte, no dia 19 de fevereiro, quarta-feira
de cinzas, Caetano e Gil são soltos e seguem para Salvador, onde têm de se manter em
regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Após dois
shows de despedida, dias 20 e 21 de julho, Caetano e Gil partem, com suas mulheres,
rumo ao exílio na Inglaterra. O espetáculo, precariamente gravado, se transformará no
disco “Barra 69”.
O disco Caetano Veloso (1969) foi lançado pouco depois da partida para
Londres. O álbum é o único de toda a discografia do artista que não traz uma foto sua na
capa que é toda branca. Não podia ter a foto, pois de que jeito se explicaria o pouco
cabelo de Caetano? No repertório do disco, havia seis canções escritas em inglês.
A gravação de "Asa branca" exprime a profunda tristeza que Caetano vivia por
estar longe do Brasil. "I don't want to stay here / I wanna to go back to Bahia", dizia
uma canção de sucesso da época, "Quero voltar pra Bahia", de Paulo Diniz, feita para
ele. Durante o período que Caetano estava exilado, fez shows na Inglaterra e em outros
países da Europa. Lançou dois discos com canções inéditas e tornou-se correspondente
de O Pasquim.
Em 1971, o cantor conseguiu um visto de um mês para voltar ao Brasil e
acompanhar a missa pelos 40 anos de casamento de seus pais. No Rio de Janeiro,
militares o interrogam e pedem que ele faça uma canção elogiando a rodovia
Transamazônica. Caetano recusou-se a atender ao pedido e teve de voltar para Londres,
onde retornou um ano depois. O Brasil estava, no período do governo mais ditatorial do
regime militar, o do presidente Garrastazu Médici.
O primeiro disco "inglês" de Caetano sai no mercado brasileiro pela Philips.
Em agosto, Caetano volta ao Brasil e visita a família na Bahia. Apresenta-se na TV
Globo e na TV Tupi. Participa, com Gal Costa, de um programa especial com João
Gilberto: um encontro histórico. Aproveita ainda para deixar gravado um frevo novo
para o Carnaval do ano seguinte, "Chuva, suor e cerveja". No segundo semestre de
1971, Caetano grava e lança outro LP em Londres pelo selo Famous, da Paramount
Records. Em dezembro, ocorre o lançamento do compacto duplo "O carnaval de
Caetano", com cinco músicas, entre elas "Chuva, suor e cerveja", que fará um grande
sucesso no carnaval seguinte.
Caetano Veloso e Gilberto Gil só retornaram definitivamente ao Brasil em
fevereiro de 1972 após passarem três anos exilados na Inglaterra. Os dois marcaram o
retorno para março, com um show no Teatro Municipal, do Rio de Janeiro. Não
seguiam um roteiro e nem tinham tempo de duração estabelecido. Tudo iria depender da
reação do público. Dos quatro mil ingressos disponíveis, 3.500 já haviam sido

97
reservados antes da abertura das bilheterias. Um outro show, individual, de Caetano,
estreara no Tuca, em São Paulo, e percorrera outras grandes cidades do país. Nele, com
novo visual, meio hippie, o cantor encarava o público de brincos de argolas, tamancos,
batom e tomara-que-caia. Caetano Veloso e Jorge Mautner foram os primeiros
andróginos da Música Popular Brasileira. Em maio, Caetano e Gil lançam um compacto
simples, com "Cada macaco no seu galho", de Riachão, e "Chiclete com banana", de
Gordurinha e Almira Castilho.

Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos

“Um dia a areia branca


Seus pés irão tocar
E vai molhar seus cabelos
A água azul do mar
Janelas e portas vão se abrir
Pra ver você chegar
E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante
As luzes e o colorido
Que você vê agora
Nas ruas por onde anda
Na casa onde mora
Você olha tudo e nada
Lhe faz ficar contente
Você só deseja agora
Voltar pra sua gente
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante
Você anda pela tarde
E o seu olhar tristonho
Deixa sangrar no peito
Uma saudade, um sonho
Um dia vou ver você
Chegando num sorriso
Pisando a areia branca
Que é seu paraíso
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante.

Esta música é uma homenagem a Caetano Veloso feita por Roberto Carlos e
Erasmo Carlos. Foi composta como um ato solidário a Caetano, que se encontrava no
exílio, em Londres. Caetano Veloso já havia composto para Roberto algumas músicas

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que se tornaram clássicos. Com o amigo em desgraça, Roberto Carlos resolveu fazer
algo para homenageá-lo. Contudo, Roberto nunca tivera problemas com a censura,
muito menos com a repressão militar. Para fazer um texto que fosse engajado
politicamente, e romântico ao mesmo tempo, decidiu não citar em nenhum momento o
nome do Caetano, mas enfatizar sua marca registrada naquela época: seus enormes
cabelos encaracolados (antes de serem raspados). A letra é bem simples e não foge às
suas características. O interessante está justamente no inusitado: o clima romântico da
melodia nos faz imaginar que é a saudade de uma pessoa apaixonada pela ausência da
outra, e não o protesto de um amigo solidário. Na estrutura da letra, Roberto procurou
colocar justamente aquilo que Caetano possivelmente mais sentia: saudade na fria
Londres do mar da Bahia – o que só ajudou a fixar a marca dos famosos caracóis de
Caetano. Nos caracóis de Caetano Veloso, enovelam-se a história de um povo que lutou
pela liberdade.

Referências
http://oficinadegerencia.blogspot.com/2009/01/caetano-veloso-voltou-ao-brasil-aps-
2.html>
http://www.caetanoveloso.com.br/sec_biografia.php?language=pt_BR&page=7&ordem
=DESC>
http://www.google.com.br/#q=historia+de+caetano+veloso&hl=pt-
BR&prmd=o&tbs=tl:1&tbo=u&ei=-
dgsTMDMC4P58AaOz8z6DQ&sa=X&oi=timeline_result&ct=title&resnum=11&ved=
0CFYQ5wIwCg&fp=f839ae46969bf296>
http://pt.wikipedia.org/wiki/Caetano_Veloso>
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Ed. Leitura XXI: Porto Alegre,
2004.

PRA VER A BANDA PASSAR


Liège Fernandes Vargas

Resumo: Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque, é até
hoje uma grande representação da música popular brasileira. Influenciado pela Bossa
Nova cantada por João Gilberto, tornou-se um dos mais respeitados e admirados
cantores do país. Na época da ditadura militar no Brasil, um dos períodos mais
marcantes de sua carreira, compôs diversas músicas que movimentaram boa parte da
sociedade. Por tais motivos, analisarei neste artigo qual a relação da música do
compositor e de outros cantores com a ditadura brasileira.

Palavras-chave: Chico Buarque; ditadura militar; música.

Abstract: Francisco Buarque de Hollanda, better known as Chico Buarque, is a great


representation of Brazilian popular music today. Influenced by Bossa Nova sung by
Joao Gilberto, he became one of the most respected and admired singers of the country.
At the time of military dictatorship in Brazil, which is considered one of the most
remarkable periods of his career, he composed several songs that touched much of our
society. This article will analyze what the relationship of the composer's music is like
compared to other performers during Brazilian dictatorship.

Keywords: Chico Buarque; military dictatorship; music

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Chico Buarque, nascido em 19 de junho de 1944 no Rio de Janeiro, mudou-se,
aos dois anos, para São Paulo com sua família. Filho de Sérgio Buarque de Hollanda,
jornalista brasileiro, e de Maria Amélia Cesário de Hollanda, pianista e pintora, mudou-
se novamente, em 1953, para Itália, devido a uma oferta de trabalho ao seu pai. Foi
nesse período que Chico teve seu primeiro contato com a música. Quando retornou ao
Brasil, chegou a cursar dois anos Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo, mas desistiu para dedicar-se à carreira musical. Em
1961, lança sua primeira música, “Canção dos Olhos”.
No ano de 1966, Chico se revela ao público quando ganha o “Festival Nacional
de Música Popular Brasileira”, com a música “A Banda”. Esse festival iniciou em 1965
quando os compositores começaram a compor músicas de caráter social devido aos
acontecimentos de 1964, ou seja, ano em que o regime militar principia no Brasil. Os
festivais aconteciam ano a ano e premiavam as músicas de maior sucesso.

“Estava à toa na vida


O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor”

Na música “A Banda”, percebe-se um certo tom de alegria ou busca dela.


Como sabemos, naquela época, quando a banda chegava à cidade, era uma grande
motivo de euforia. Na segunda estrofe, temos essa afirmação, pois, quando a banda
passa pela cidade, até as pessoas sofridas esquecem da dor. A própria batidada de fundo
da música nos dá a impressão de uma banda tocando.
Com o passar dos anos, Chico começou a compôr músicas para teatros, filmes,
novelas. Por exemplo, em 2009, ele cantou a música de abertura da novela “Viver a
Vida” apresentada pela Rede Globo.

“Tem dias que eu fico pensando na vida


E sinceramente não vejo saída.
Como é, por exemplo, que dá pra entender:
A gente mal nasce, começa a morrer.
Depois da chegada vem sempre a partida,
Porque não há nada sem separação.
Sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão”.

A música “Seilá... a vida é uma grande ilusão” faz-nos refletir sobre quanto a
vida passa rápido, ou seja, quando menos esperamos ela chega ao fim. Essa canção foi
usada como tema de abertura da novela devido às diferentes formas de viver a vida que
nela apareceram. Por exemplo, a personagem Luciana, vivenciada pela atriz Alinne
Moraes, sofreu um acidente de ônibus e ficou tetraplégica tendo que aprendar a viver
com suas dificuldades motoras.
Além de cantor, Chico escreve livros como, por exemplo, Benjamin, obra que
virou filme no ano de 2003. Nela ele retoma e aumenta o universo imaginário de seu
livro anterior, Estorvo, seu primeiro romance. Benjamin narra a história de um ex-

100
modelo fotográfico que, como uma câmara invisível, vê o mundo desfilar diante de seus
olhos sob uma atmosfera opressiva.
Chico Buarque nunca se importou que suas músicas fossem ter versões
“definitivas” nas vozes de seus amigos e familiares. Elis Regina, Tom Jobim, Nara Leão
são alguns dos cantores que já usaram suas melodias para alcançarem sucesso. O seu
reconhecimento fora do país também foi inevitavél. Na metade do século 60, foi
excurcionar na Europa e ganhou o festival de teatro universitário de Nancy, na França.
Em meados da década de 60, Chico teve seu primeiro problema com a censura
do regime militar. A música “Tamandaré”, que fazia parte de seu show de enorme
sucesso, “Meu Refrão”, foi proibida, após seis meses em cartaz, por conter frases
ofensivas ao patrono da Marinha.

"Seu Marquês", "Seu" Almirante


Do semblante meio contrariado
Que fazes parado
No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado
"Seu Marquês", "Seu" Almirante
Sei que antigamente era bem diferente
Desculpe a liberdade
E o samba sem maldade
Deste Zé qualquer
Perdão Marquês de Tamandaré
Perdão Marquês de Tamandaré
Pois é, Tamandaré
A maré não tá boa
Vai virar a canoa
E este mar não dá pé, Tamandaré
Cadê as batalhas
Cadê as medalhas
Cadê a nobreza
Cadê a marquesa, cadê
Não diga que o vento levou
Teu amor até”

Percebemos a mensagem indireta de Chico ao patrono da Marinha quando diz


que ele está parado em uma nota de cruzeiro rasgado enquanto a maré não está boa, ou
seja, os problemas estão acontecendo no país, e ele está ali, parado, como imagem de
uma nota de dinheiro.
Em 1969, Chico parte para um autoexílio na Itália, onde permanece por quinze
meses. No início, sofre um pouco pela falta de dinheiro, mas em seguida fecha um
contrato para o lançamento de seu novo disco.
Voltando ao Brasil, Chico enfrenta um Brasil diferente, pois a ditadura está no
seu apogeu. A ditadura militar, ou regime militar, foi uma forma de governo em que o
poder político era controlado pelos militares. Ela entrou em vigor no país com um golpe
militar em 1964, apoiado pela classe média, pela elite e pela Igreja, ou seja, aqueles que
temiam o avanço do comunismo.
Chico, então, lança a música “Apesar de você” como crítica ao regime. No
começo, a canção se torna uma espécie de hino aos opositores, mas, após cem mil
cópias vendidas, ela é censurada. O motivo da censura era que, sem dúvida, o “você” da
música referia-se a Emílio Garrastazu Médici, atual presidente do país.

101
“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão”

Logo no início da primeira estrofe, percebemos que Chico se refere a alguém


importante, alguém que tem o poder. Quando ele fala em Estado, confirmamos que só
pode estar se referindo ao presidente, pois é este quem está realmente acima dos outros
e tem poder supremo.
Não foi somente com essa canção que Chico mostrou sua oposição. Na época,
ele já se tornava um símbolo da luta contra a ditadura. Com a música “Construção”, por
exemplo, ele dava tons à vida difícil das camadas populares brasileiras.
Em 1971, os censores, já cansados da revolução que Chico estava fazendo com
suas músicas, tornaram-nas sistemanticamente proibidas. Foi assim com “Minha
História”, com “Tanto Mar”, com “Atrás da Porta” e com “Cálice”. Mas não foi apenas
Chico o grande opositor da época, foram diversos cantores que usaram as letras das
canções como manifestação ao regime.
Um ótimo exemplo é o Tropicalismo – movimento que surgiu no final da
década de 60 e que contou com diferentes formas de manifestação. A principal foi a
música que teve como principais representantes Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
Costa, Torquato Neto, Os Mutantes, Tom Zé e, como inspiração, Carmem Miranda.
O movimento, que contou com boa parte da sociedade, teve definação no III
Festival de Música Popular Brasileira, no qual Caetano Veloso e Gilberto Gil cantaram,
respectivamente, “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”. Logo, no ano seguinte, é
lançado o disco “Tropicália”, confirmando o manifesto do grupo.

“Caminhando contra o vento


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou...
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou...”
Trecho de “Alegria, Alegria”.

Na letra da música, Caetano tenta incentivar os descontentes a andarem em


sentido contrário, isso quer dizer, contra a ditadura. Por exemplo, “Sem lenço e sem
documento” seria sair de casa sem levar nenhum documento de identidade, norma
obrigatória em período de repressão.

102
“A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi prá Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi prá lá
Pra Ribeira, foi namorar...
O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio...”
Trecho de “Domingo no Parque”.

A música “Domingo no Parque” é escrita como uma canção narrativa, na qual


há dois personagens amigos: João e José. Este o rei da brincadeira; esse o rei da
confusão. A letra da música delineia um acontecimento trágico que se dá devido a um
desvio de rotina: João, ao invés de ir brigar, vai ao parque namorar. José também vai ao
parque, contudo lá avista os dois. Ele, apaixonado pela mesma menina de João, termina
matando os dois.
Além do manifesto na música, houve também no teatro, no cinema e nas artes
plásticas processos semelhantes. Por exemplo, a peça “Navalha na Carne”, de Plínio
Marcos, obra que se passa em um quarto de bordel, onde a prostituta Neusa Sueli, o
cafetão Vado e o homossexual Veludo, empregado do estabelecimento, encarnam a
existência subumana e marginalizada, foi censurada em seguida que estreiou. Diferentes
atitudes nos mostram o quanto insatisfeito estava a elite intelectual brasileira com o seu
país.
A época da ditadura foi uma das mais importantes da história do nosso país, e
até hoje visualisamos rumores desse processo. Milhares de pessoas foram torturadas e
desapareceram, e muitos corpos até hoje não foram encontrados. Ao ouvirmos canções
daquela época, percebemos que a música atual se diferencia muito da tecida por esses
compositores engajados. Nós, jovens, que pouco convivemos com as músicas destes
cantores, não damos muito valor à nossa história. É muito estranho pensar que essa luta
propiciou a liberdade que vivenciamos hoje. É necessário desenvolver a criticidade e
ficar mais atentos ao escutarmos canções como funks que só visam promover o balanço
do corpo, mas não o arejamento da mente.

Referências
http://www.samba-choro.com.br/artistas/chicobuarque
http://www.chicobuarque.com.br/vida/vida.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropic%C3%A1lia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Regime_militar_no_Brasil_(1964-1985)
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/
http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/movimento.php

UM CAMINHO SEM FLORES EM BUSCA DE LIBERDADE: AS CANÇÕES


DE GILBERTO GIL E GERALDO VANDRÉ

103
Grecco Knuth
Ribeiro

Resumo: Durante a ditadura militar, presenciamos uma época totalmente drástica, com
muitos conflitos e com muitos protestos da população brasileira – os jovens queriam ser
“livres de novo”. Esses protestos entre 1964-1985 foram marcados por canções que
pudessem expressar o sentimento brasileiro diante dos militares sem que eles
percebessem, pois, se os protestantes fossem pegos, poderiam morrer ou seriam banidos
do país como aconteceu com muitos cantores famosos, e que depois se tornaram ídolos
para a população, tal como Geraldo Vandré, Gilberto Gil entre outros que entraram para
nossa história literária. Muitas dessas músicas que não foram percebidas pelos ditadores
e chegaram a nossa população se tornaram praticamente hinos, que foram eternizadas
por todos nós, brasileiros. As canções também nos influenciaram em nosso modo de ser.
O brasileiro é um guerreiro que luta pelos ideias da nossa sociedade e não tem medo de
se expressar.

Palavras- chave: Sentimentos, canções, protestos.

Abstract: During the military dictatorship in Brazil we witnessed a totally drastic time,
with many conflicts and several protests from the population in order to become "free
again”. The protests between 1964 and 1985 were marked by songs that could express
the feeling Brazilian were having towards the dictators without their consciousness. If
the demonstrators had been caught, they could die or be banished from the country. This
happened to many famous singers, such as Chico Buarque, Gilberto Gil, Raul Seixas
and others who became part of our literary history. Many of the songs that were
perceived by dictators and reached the population became practically anthems and, in
addition to that, they also influenced us in our way of being.

Keywords: Feelings, canes, protests.

1. O começo da ditadura militar:


Com o Golpe Militar de 1964, Castello Branco, general militar, foi eleito pelo
Congresso Nacional presidente da República em 15 de abril de 1964. Em seu
pronunciamento, declarou defender a democracia e tinha como objetivo melhorar o
futuro, dando esperança e prometendo à população uma vida mais tranquila. Devido ao
Estado de corrupção existente, acabou encerrando o governo do presidente João
Belchior Marques Goulart.
Quando os militares assumiram o poder, fizeram mudanças drásticas no nosso
país, o que acabou criando uma época de muita luta e ao mesmo tempo de muito
sofrimento da população brasileira. Além disso,os ditadores limitam nossas liberdades
(como as de expressão, imprensa e organização) naquela época.Tornaram-se comuns os
interrogatórios, prisões e tortura daqueles considerados opositores políticos do regime
militar, especialmente os que são considerados simpatizantes de idéias comunistas,
incluindo-se muitos estudantes, jornalistas e professores.
Nos últimos anos do governo militar, o Brasil apresentou vários problemas. A
inflação era alta, e a recessão também. Enquanto isso, a oposição ganhou terreno com o
surgimento de novos partidos e com o fortalecimento dos sindicatos e dos rebeldes que
lutavam bravamente. Em 1984, políticos de oposição, artistas, cantores, jogadores de
futebol e milhões de brasileiros participaram do movimento das “Diretas Já”. O

104
movimento era favorável à aprovação da Emenda Dante de Oliveira que garantiria
eleições diretas para presidente naquele ano. Para a decepção do povo, a emenda não foi
aprovada pela Câmara dos Deputados que eram a favor dos militares nesta época.

2. Gilberto Gil e Geraldo Vandré: heróis ou bandidos ?


Gilberto Gil nasceu no bairro do Tororó, em Salvador, na Bahia, em 1968. Gil e
outros cantores, cuja importância no Brasil era, de certa forma, comparável à de John
Lennon e Paul McCartney na Europa, foram presos pelo regime militar brasileiro
instaurado após 1964 devido a supostas atividades subversivas de que foram acusados.
Ambos se exilaram por ocasião do AI-5 (Ato Institucional 5) do governo militar em
vigência no Brasil a partir de 1969 em Londres.Gil foi um cantor que, em suas músicas,
tentava expressar a repressão durante a ditadura militar. Para a maioria das pessoas, era
considerado um libertador, porque mostrava a todos os ditadores o sentimento da
população diante do absurdos que acontecia nas ruas.
O compositor acabou sendo preso e fazendo muitas canções para debochar dos
comandantes que o mandaram para fora do país.Uma das suas músicas para demonstrar
aos jovens rebeldes o que estava acontecendo no nosso país é a canção”Aquele
Abraço”, escrita logo após ter voltado para o Estado do Rio de Janeiro. Gilberto Gil
lançou a música para todo povo, apresentando muitas críticas sociais para Realengo
(onde foi preso) e , ao mesmo tempo, contemplando a maravilhosa cidade (RJ).

Análise da música: “Aquele abraço”


Nesse trecho, Gil conta sua admiração pelo Rio de Janeiro.

“O Rio de Janeiro
Continua lindo
O Rio de Janeiro
Continua sendo
O Rio de Janeiro”

Já, no trecho a seguir, mostra o desgosto pelo lugar onde foi preso e por quem foi
preso.

“Fevereiro e março...
Alô, alô, Realengo
Aquele Abraço!”

Um dos principais cantores revolucionários desse período foi Geraldo Vandré –


nascido na Paraíba (João Pessoa, 12 de setembro de 1935). Vandré foi um cantor e
compositor brasileiro.Ele fez muito sucesso com as músicas que exprimiam a oposição
ao regime militar imposto em 1964, fazendo canções como "Porta Estandarte" ou com
mais apelo à luta de classes como "Aroeira”. Geraldo era tão determinado a apoiar o
povo brasileiro que acabou sofrendo muito na mão dos políticos. O compositor foi
preso, maltratado e, consequentemente, ficou louco. Antes disso, em 1968, ao defender
"Para não dizer que não falei de flores", criou um dos hinos mais impressionantes da
resistência ao regime militar, no qual auxiliava os jovens a terem mais força para lutar e
para conquistar seus objetivos (derrubar o poder militar). E até hoje essa música é
passada de geração em geração para mostrar principalmente aos estudantes que todos
juntos podem ser mais fortes que tudo e devem sempre lutar .

105
Análise da música: “Pra não dizer que não falei das flores”
Geraldo Vandré incentiva os estudantes a seguir em frente e ir à luta.

“Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção...”

3.Sacrifício com resultado:


Após anos de lutas, o Brasil apresenta vários problemas. A inflação é alta, e a
recessão também. Enquanto isso, a oposição ganha terreno com o surgimento de novos
partidos e com o fortalecimento dos sindicatos.
No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheria o deputado
Tancredo Neves, o qual concorreu com Paulo Maluf como novo presidente da
República. Ele fazia parte da Aliança Democrática com o grupo de oposição formado
pelo PMDB e pela Frente Liberal. Era o fim do regime militar, porém Tancredo Neves
ficou doente antes de assumir e acabou falecendo. Assumiu o vice-presidente José
Sarney. Em 1988 foi aprovada uma nova constituição para o Brasil. A Constituição de
1988 apagou os rastros da ditadura militar e estabeleceu princípios democráticos no
país.
Tanto Gilberto Gil como Geraldo Vandré foram líderes da nossa história e
apoiaram-nos sempre, fazendo canções para mover o povo brasileiro e nunca nos
deixaram na mão. Até hoje são considerados heróis e vão continuar sendo vistos dessa
forma por muitas gerações, sobretudo porque vivemos em um tempo sem heróis.
Massacrados pelo trabalho, não encontramos tempo para promover mudanças.

Referências
SUA PESQUISA, disponível em: http://www.suapesquisa.com/ditadura/, consultado em
28/06/2010.
CULTURA BRASIL, disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm,
consultado em 28/06/2010
CLIQUEMUSIC, disponível em: http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/ver/gilberto-gil,
consultado em 28/06/2010
VAGALUME, disponível em www.vagalume.com.br, consultado em 29/07/2010.

DA SUBVERSÃO À SOMA DOS QUADRADOS DOS CATETOS

DE VEZ EM QUANDO, A SUBVERSÃO


Bruna Araújo

Resumo: Desde o início da década de 80, o rock emergiu tentando abrir espaço em um
período pertencente, basicamente, à MPB. Os jovens buscavam uma música que

106
expressasse mais claramente o seu sentimento e, desta forma, o rock renasceu e foi
rejuvenescido como o gênero musical dominante dos anos 80. Durante esse tempo, o
rock brasileiro veio sob a influência de várias tendências da canção internacional
diversificada. O New wave, o punk e o pop do final da década de 70 tiveram um forte
efeito no rock que estava sendo formada no Brasil. Naturalmente, os jovens se
inspiravam nesse novo som forte e nos sentimentos que o mesmo evocava neles. Desta
forma, a proposta deste ensaio é discutir a relação da música e sua influência perante os
jovens da época. Vou considerar a influência desse gênero musical sobre os jovens e irei
focar o estudo na banda IRA!. O estilo dessa banda foi tão combativo que seu nome fora
inspirado no Exército Republicano Irlandês. Essa história e o fato de um dos álbuns da
banda IRA! ter se chamado “Mudança de Comportamento” destaca perfeitamente a
influência do rock neste período.

Palavras-Chave: Rock; anos 80; juventude; banda IRA!; influências.

Abstract: Since the beginning of the 1980s, rock emerged trying to open a space in the
period belonging basicaly to Brazilian pop music. The young people were looking for a
type of music that could express their fellings more clearly, so the rock was reborn and
rejuvenated as the dominant music genre of the 1980s. During this time, Brazilian rock
music came under the influence of many diverse international music trends: New wave,
punk and pop music from the late 1970s, all had a strong effect on the rock music being
made in Brazil. Naturaly, the youth of Brazil were inspired by this strong new sound
and the feelings it evoked in them. So, the purpose of this essay is to discuss the
relationship between the music and the youth of the period. I will consider the influence
this type of music had on young people and will focus the study in particular on the
IRA! Band. This band's style was so combative it is said that their name inspired
naming of the Irish Republican Army. This story and the fact that one of the IRA!
Band's albums was called “Mudança de Comportamento” highlights perfectly the ideas
about the influence of rock music on young people.

Keywords: Rock; 80s; young people; IRA! band; Influences.

Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar nos
sonhos que se têm ou que os seus planos nunca vão dar certo ou
que você nunca vais ser alguém...
Renato Russo

O Brasil que conhecemos passara por diversos movimentos musicais incríveis


no passado, como, por exemplo, a Bossa Nova e a Tropicália. No início dos anos 80,
mediante a presença significativa da MPB, o rock, também considerado por muitos
como pop rock, renasce, ganhando um novo estilo a partir de certas transformações
oriundas de tendências já expressivas na música internacional. Caracterizado por ser
diversificado, este ganha influências do new wave ao gótico, passando pelo rock
alternativo até o eletrônico e o pop rock. Ainda assim, em alguns casos, ganha
referência de ritmos singulares, como o reggae e a soul music. O novo rock ganha até
mesmo um apelido, o BRock, denominação construída por Nelson Motta – importante
jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical e letrista brasileiro.

107
Tudo inicia com a vontade consistente de uma grande massa de jovens da época
que almejava um rock que mostrasse os temas como amor, diversão, trabalho e família
de forma mais clara. Muitos desses jovens aderiram a essa nova percepção estética não
apenas escutando e apreciando as canções, mas sim expressando todos os sentimentos
através de seus visuais e comportamentos.
Cabelos armados, estilo mullet 1 ou ainda bastante curtos para o sexo feminino,
roupas coloridas e extravagantes e a unissexualidade de todo esse conjunto, herança
direta do Glam Rock, são apenas representações exteriores de toda a rebeldia dos jovens
das bandas e da sociedade que queria romper de vez com o sistema que lhes era
imposto.

No início dos anos 70, no fim do sonho que foi anunciado por
Lennon e a excessiva glamourização do "Star Sistem", os ídolos
do rock estavam cada vez mais próximos de um ideal
hollywoodiano. O passo adiante foi ambíguo e, numa afetação,
"dandi" muita gente "escorregou no quiabo", e a vanguarda era
ditada com muito cílio postiço e salto carrapeta. Eram tempos
andróginos, cheios de glamour. Eram tempos de Glam Rock.
(Glam Rock por Cláudio Vigo)

No entanto, não foi só o visual do jovem que mudou. Logo no início daquela
década, ocorreu um incrível avanço tecnológico que possibilitou uma melhor
comunicação entre pessoas de diversos lugares do mundo, aproximando culturas que
aparentemente pareciam tão distantes e difíceis de compreender. Dessa forma, as
revoluções tecnológicas ajudaram o pop-rock/rock a tomar espaço no mundo, tornando-
se um fenômeno global e dominante. Se formos analisar o porquê da mudança de
comportamento desses jovens rebeldes, não é de se espantar a aversão que os mesmos
tinham à política corrupta da época. Bandas do Brasil inteiro sacudiram o país de norte a
sul, propagando suas músicas com palavras raivosas e sinceras, traduzindo um real
sentimento do jovem, justamente por escancarar a realidade.
No Rio de Janeiro, surgiram o Paralamas do Sucesso, com uma mistura de rock
com reggae e ritmos africanos; o Kid Abelha apresentou-se com influências do pop, do
new wave e da jovem guarda; o Barão Vermelho construía um rock mais tradicional,
aliado às letras poéticas do vocalista Cazuza. No início da banda, começo da década,
suas influências diretas eram o blues e o rock'n roll clássico dos Rolling Stones.
Em São Paulo, o Ultraje a Rigor, com o puro rock’n roll, RPM, com mescla de
teclados, sintetizadores, guitarras e baterias eletrônicas, tornou-se o maior fenômeno de
vendas das bandas dos anos 80. O IRA! e os Titãs foram influenciados pelo punk e pelo
rock mais pesado.

“Curiosidade que liga as duas bandas: O grupo começou 1985


com um novo baterista. Charles Gavin (IRA!) assumiu as
baquetas no lugar de André Jung (Titãs)”. (História da banda
Titãs, por Hérica Marmo e Luiz André Alzer)

No Rio Grande do Sul, os Engenheiros do Hawai, que se destacaram por críticas


ao sistema governante da época, e o Nenhum de Nós, com influências de rock inglês,
1
Mullet é um corte de cabelo repicado na franja e nas laterais, curto, embora comprido atrás. Foi muito
usado na década de 80, inclusive por atores como Patrick Swayze e Bono Vox.

108
música folk americana e elementos da música regional gaúcha, falávamos do que
deixávamos de sentir ou fazer.
Em Brasília, o Aborto elétrico, banda de punk rock que tinha em sua gênese
musical a crítica ao sistema e a ordem social e econômica do país, logo depois de seu
fim teve suas músicas divididas e gravadas por Legião Urbana e Capital Inicial –
bandas que depois se tornaram famosas. E como deixar de falar especialmente no
Legião Urbana que, como citado no artigo, foi:

A banda Legião Urbana é a terceira melhor banda de todos os


tempos; a banda foi iniciada no ano de 1982 até 1996; é uma das
melhores e mais conhecidas bandas de rock brasileiro, batendo
o maior recorde de qualquer outra banda, vendendo 200 mil
cópias por mês. No ano de 14 de janeiro de 1995, a banda fez
seu último show, finalizando suas carreiras como músicos; no
dia 20 de setembro do ano de 1996 foi lançado o livro da banda,
e esse foi definitivamente a última participação dos músicos
juntos dentro de uma só produção. A banda Legião Urbana
gravou 13 CDs que foram estouros em venda, e hoje ainda são
muito ouvidas as músicas da banda. Afinal de contas 14 anos de
sucesso não se apaga de uma hora para outra. (Banda Legião
Urbana – Rock Brasileiro, por Natália Luís)

Na Bahia, surgiu a banda Camisa de Vênus, sob nítida influência de Raul Seixas
e também do punk rock inglês. Essas bandas dos anos 80, assim como outras de outros
períodos, não fugiam muito às temáticas usuais, como as relacionadas ao amor e às
questões sociais. A diferença das bandas dos anos 80 para as outras é que as desse
movimento conseguiam “balancear” esses assuntos, sem torná-los carregadas demais, e
ainda assim podiam fazer com que as pessoas os ouvissem, principalmente pelo tom
irônico usado pelos integrantes.

A IRA! DO ROCK ANOS 80 SACODE O BRASIL


Dentre as bandas revolucionárias dos anos 80, uma destacou-se em São Paulo e
no Brasil pela demonstração explícita do que queria de seu país naquele final dos anos
70, outono da ditadura militar: O IRA!
Edgard Scandurra, guitarrista, frequentava shows na periferia da cidade.
Apaixonado pelo punk rock, cria a banda Subúrbio junto de seu amigo Dino logo após
se unir a Marcos Valadão Rodolfo, de apelido Nasi, muito provavelmente pelo tamanho
de seu nariz. Estava formado o IRA!, que em seu nome expressava o sentimento dos
jovens diante da sociedade de seu tempo.
Seu primeiro disco Mudança de Comportamento foi gravado em apenas nove
dias, trabalho cujo título faz jus às transformações pelas quais os jovens da época
passavam naquela fase. O hit “Ninguém Precisa da Guerra” fora rotulado de ingênuo e
sincero, o que não se podia dizer daqueles jovens que entendiam exatamente o que
estava ocorrendo em seu país.

“Ninguém Precisa da Guerra”

Como se fosse fácil entender


Uma pessoa tão cheia de vida
Já não sei se me entende

109
Já não sei se te entendo
Não quero nada!
Você espera algo?
Não fuja do bom humor
De pessoas tolas
Como se fosse fácil entender
Que preciso de paz
Não preciso da guerra
O jovem pode levantar
Cedo com um sorriso toda manhã

(Banda Ira! – Composição: Edgar Scandurra)

A letra, embora simples e sem malícia como as canções de funk atual,


representava exatamente o sentimento de revolta e a vontade dos jovens por mudança e
melhoras. Embora não tenha havido guerras em nosso país durante os anos 80, as ações
das grandes potências mundiais acabavam por refletir em todo o mundo e, desta forma,
abalavam também aqueles que não faziam parte ativamente destes momentos
turbulentos. Jovens morriam em guerras todos os dias e, injustamente, a grande maioria
não lutava por um ideal, mas sim por ideias falsas de uma política corrupta e impetuosa.
O IRA! e as bandas da época foram contra essa política e queriam que a
sociedade e principalmente os jovens estivessem livres deste sistema. De certa forma, a
música dava força para estes jovens, como um alicerce, um porto seguro, afinal essa é,
sem dúvida, a forma de expressão mais livre, sem restrições, e paralelamente um das
mais eficazes para representar a vida das pessoas. O rock sempre foi visto como a forma
perfeita para demonstrar a indignação de uma massa de pessoas, pois, com batidas
fortes, conseguia prender o mundo. O IRA! simplesmente conectou-se perfeitamente a
esse som incrível, ganhando seguidores por todo o Brasil.
Podemos observar na música “Coração” que os jovens estavam com medo das
decisões do governo para com eles e do futuro que eles tomariam. Ao mesmo tempo em
que queriam ser ouvidos como adultos, desejavam também curtir o tempo que lhes fora
dado como jovens. Almejavam chegar ao coração do governo, a parte que para eles não
era corrupta, onde encontrariam aqueles que poderiam entendê-los. Precisavam de um
tempo para pensar, decidir sobre quais decisões tomar, afinal ser jovem e ao mesmo
tempo ter as responsabilidades de um adulto não era e não é fácil.

Dentro de mim uma dúvida


O medo da vida que possa levar
Um tempo eu peço pra pensar
Preciso chegar ao coração
Da vida que eu possa levar
Um tempo eu peço pra pensar
Ao coração da nação...
Quero desfrutar por ser jovem
Das coisas que me são proibidas
Preciso de um tempo pra pensar
Preciso chegar ao coração
Da vida que eu possa levar
Um tempo eu peço pra pensar
Quero desfrutar por ser jovem...coração

110
Na música, “Sonhar com quê?”, já podemos analisar temáticas tais quais a
decepção, o cansaço, a agonia e o descontentamento dos jovens da época, que pensavam
na vida como uma rotina que não os levaria a nada – cheia de problemas e fatos sem
valor. Observando cada ação apontada na letra, podemos compreender o porquê de a
música ser um refúgio para eles. A canção cria um espaço de refúgio, é onde conseguem
manifestar as frustrações e os medos que os infligiam.

Quando escurece, os jovens se encontram, conversam sobre o


dia, tristezas, bebidas, noites em vão, voltam para casa e não
tentam fugir, a tv está alta, não conseguem dormir trabalho,
cansaço, o fim do mês, revistas, modelos, sonhar com quê?
Quando amanhece, os jovens dispersam, conversam sobre a
noite, saudades, momentos, horas sem fim, voltam para casa e
não tentam fugir, a comida está fria, não conseguem engolir
família, desprezo, rapaz ruim, novela, dinheiro, sonhar com quê?
trabalho, cansaço, o fim do mês, revistas, modelos, sonhar com
quê?
família,desprezo,sonhar com quê?

A banda deixava claro sua contrariedade e destacava o descaso do governo pelo


povo. A busca por mudanças era maior entre os jovens e estudantes, logo era natural
que suas letras os alcançassem e tocassem os seus corações. Isso pode ser visto em “Às
Vezes, De Vez Em Quando”, que dizia:

De vez em quando, eu acho tudo uma piada


De vez em quando, eu levo tudo muito a sério
De vez em quando, eu preciso agredir
De vez em quando, eu só quero paz e amor
De vez em quando, eu amo a subversão
De vez em quando,
Ás vezes,
De vez em quando...

De vez em quando, eles queriam..., mas queriam “Sempre mais” como na


música do álbum Acústico MTV, e eles desejavam para sempre, para sempre um país
melhor, com novas chances, igualdades, verdades e vida. Eram irônicos e verdadeiros, e
quando dizem “de vez em quando”, repetidamente, demonstram o quanto pensavam nos
problemas que viviam e não conseguiam alienar-se.
Mas como este querer influenciado pela música mudou uma época? A música
sempre exerceu um papel muito importante na vida, sobretudo na dos jovens. Nos dias
de hoje, é raro vermos um adolescente pelas ruas sem um fone no ouvido. Seja tocando
o violão no quarto, com os colegas no “recreio” ou em uma banda de garagem, a música
alivia e alimenta a alma. É uma fuga aos momentos difíceis, um grito de revolta e crítica
que alcança muitos ao mesmo tempo. As canções possibilitam que as pessoas se
expressem, dando-lhes coragem de dizer aquilo que pensam. O rock barulhento e
provocante dos anos 80 cumpriu este papel.
A juventude dos anos 80 passou, desta forma, a valorizar a música tocada no
Brasil através de muito rock, deixando um pouco de lado as influências estrangeiras. A
música tornou-se realista, objetiva e nacionalista.

111
Assim nasceram, infligiram, refletiram e viveram as bandas dos anos 80, quase
únicas, trocando integrantes, uns de uma banda tocando em outras, ou tocando
realmente juntas em prol de um ideal, de um foco. Assim, independente se estamos nos
anos de 1980, 1990 e 2000, como o IRA!, as bandas dos anos 80 continuam
“Envelhecendo na Cidade” (título de música da Banda).

Referências
Disco “Mudança de Comportamento”, ano de 1984, Banda Paulista IRA!.
ANAZ, Sílvio. How Stuff Works – “Como funcionam os Anos 80”. Setembro de 2007.
Artigo “Bandas 80”, site IG.
VIANNA, Hermano. Rock Brasileiro, História. Rio de Janeiro, RJ. Outubro. 2006.
VIGO, Cláudio. Glam Rock. Abril. 2001.
Wikiepédia - enciclopédia multilíngue online.

A GENTE SOMOS INÚTIL

Luis Carlos Fay Manfra

Resumo: Na década de 1980, houve uma mudança cultural muito brusca não só no
Brasil, mas no mundo todo. No Brasil, em especial, ocorreram fatos importantes na
política e na economia. A cena musical brasileira desta época teve grande influência
nesses eventos e apresentou uma tomada crítica muito forte. Os jovens se desprenderam
do modo de pensar de seus pais e passaram a ter suas próprias opiniões.

Palavras-chave: crítica, ironia, indignação, rebeldia.

Abstract: In the 1980s there was a huge cultural shift not only in Brazil but worldwide.
In Brazil, in particular, there were important facts in politics and economy. The musical
scene of that period had a great influence on these events and a strong critical sense.
Young people came off the thinking of their parents and started having their own
opinions.

Keywords: critique, irony, anger, rebellion.

Na década de 1960, foi instalada no Brasil a ditadura militar que suprimiu


liberdades básicas do povo, passando a perseguir intelectuais e profissionais liberais que
se mostravam contrários ao regime. Na metade dessa mesma década, surgiu um
movimento musical denominado Jovem Guarda, que mesclava música, comportamento
e moda e que, apesar de ter surgida na mesma década de um acontecimento que gerou
grandes injustiças e revolta da sociedade, não possuía cunho político, difundindo
músicas ingênuas e bem comportadas.
A Jovem Guarda, que tratava de assuntos mais singelos e românticos, precedeu
e serviu de inspiração ao BRock, nome dado à cena do pop rock brasileiro dos anos
1980 como movimento que demonstrava um claro descontentamento com a política e a
situação social do país.
O rock tornou-se um poderoso elemento na cultura de massa, modificando
comportamentos sociais e universalizando o conceito de arte. Foi um modo de
resistência à forte repressão dos direitos civis da época, sobrevivendo sufocado por uma
“ira contida”.

112
Bandas com perfil rebelde mexeram com o país de norte a sul, rompendo de
vez com o sistema imposto aos filhos da Revolução. Palavras raivosas foram ditas de
maneira crua e sem filosofias ou compromissos, e por isso mesmo traduziam um real
sentimento: escancarar a realidade. Um mar de verdades certeiras influenciou os jovens
que passaram a compor e a cantar em seu próprio idioma o ritmo de que mais gostavam,
o Rock n’ Roll, trazendo de volta ao topo das paradas nacionais a língua portuguesa.
As letras falavam, na maioria das vezes, sobre amores perdidos ou bem
sucedidos, mas não deixavam de abordar temáticas sociais. O grande diferencial das
bandas deste período era a capacidade de falar sobre estes assuntos sem deixar a música
tomar um peso emocional ou político exagerados. Essa era a capacidade que seus
integrantes tinham de falar a respeito de quase tudo com tom de ironia – outra
característica marcante do movimento.
O BRock, embora possuísse uma identidade nacional muito forte, tinha muitas
influências do Rock internacional. O visual da época, colorido e extravagante, era
espelhado na cena musical americana, de nomes como Marc Bolan e David Bowie.
Nessa década surgiram muitas bandas que fazem sucesso até hoje. Influenciadas pelos
hits de Rolling Stones, Kiss, The Cure e outros, surgiram grupos como: Paralamas do
Sucesso, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Ira!, Titãs e Legião Urbana.
Embora com letras marcantes, nem todas essas bandas procediam da mesma
forma em relação ao modo de expressar suas críticas. Algumas bandas, como o Ultraje a
Rigor, usavam o humor e a ironia para abordar os problemas da época, e outras, como
Legião Urbana e Barão Vermelho, abordavam as mesmas questões e questionavam a
situação do país de forma mais séria.
Músicas como “Inútil”, citada pelo político Ulisses Guimarães na época das
“Diretas Já”, viraram hinos da juventude bem humorada e cansada dos tempos difíceis
da ditadura, tanto pelo aspecto econômico quanto por outros problemas que cresceram
no país durante os anos 1980. A letra diz:

A gente não sabemos


Escolher presidente
A gente não sabemos
Tomar conta da gente
A gente não sabemos
Nem escovar os dente
Tem gringo pensando
Que nós é indigente...
Inútil!
A gente somos inútil
Inútil!
A gente somos inútil [...]
(Inútil – Ultraje a rigor)

A banda expõe a indignação do povo quanto ao pensamento dos políticos


da época. O modo errado de falar, a suposta incapacidade da população de tomar
decisões e o refrão, que traz uma ironia explícita, são artifícios usados na letra para
tornar a mensagem muito clara. É uma crítica aos políticos que votaram contra a
proposta da Emenda Constitucional, que traria o voto direto, e que foi rejeitada em um
primeiro momento. Ainda nessa mesma questão, o Barão Vermelho teve um de seus
melhores momentos quando Cazuza cantou, abraçado à bandeira brasileira, “Pro dia

113
nascer feliz”. Era o dia da votação que elegeria Tancredo Neves Presidente da
República.
Ao contrário dos jovens da década anterior, que cresciam tendo aulas de
“moral e cívica”, os jovens protestavam a seu jeito:

“indecente é você ter que ficar despido de cultura”, “as ilusões


estão todas perdidas”, “os meus sonhos foram todos vendidos
tão barato que eu nem acredito”, “meu partido é um coração
partido”, “minha metralhadora cheia de mágoas”, “meu cartão
de crédito é uma navalha”, “ideologia, eu quero uma pra viver”,
“ninguém respeita a constituição, mas todos acreditam no futuro
da nação”.

Outros apenas experimentavam o inédito prazer de comprar um disco e


gostar de uma banda da qual seus pais não gostavam e que tivesse suas caras. Sua
rebeldia era mais ingênua e era uma forma de criar sua própria identidade, querendo
negar o preceito de que seus ídolos ainda seriam os mesmos do passado e que viveriam
como seus pais. Queriam se sentir capazes de produzir algo de valor.
O Rock dos anos de 1980 tinha uma ligação muito forte com a conjuntura
política, e os jovens cantavam sem medo, olhando nos olhos do público, irreverentes e
largados. Essa indústria musical foi dominada pelos jovens, o que provocou diversas
mudanças no pensamento das pessoas e alguns aspectos da sociedade: a nova
constituição, os novos valores expostos nas letras das músicas de bandas como Titãs e
Barão Vermelho, a casualidade explícita da Blitz, a vida bandida de Lobão e a paz e o
amor, pregados por Renato Russo, contrastavam com um forte senso crítico do mesmo.
As composições do BRock funcionaram para essa geração como grande
canal para a formação de uma ideologia de pensamento livre que atingiu um novo
tempo democrático. Apesar de ter sido muito bem contextualizado, o BRock levantou
questões e pautou pensamentos que até os dias de hoje se aplicam à realidade do país.
Mesmo tendo ocorrido há três décadas, as ideias e os protestos gerados nesse
movimento continuam válidos. Ainda depois de trinta anos de democracia, as frases
geniais de artistas conceituados até hoje como Renato Russo e Cazuza ainda
proporcionam a mesma indignação que nos anos de 1980.
A letra de “Que país é esse?”, do Legião Urbana, talvez seja a que melhor
reflete essa concepção. Ela diz:

Nas favelas, no senado


Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
No Amazonas, no Araguaia, na Baixada fluminense
No Mato grosso, nas Gerais e no Nordeste tudo em paz
Na morte eu descanso mas o sangue anda solto
Manchando os papéis, documentos fiéis
Ao descanso do patrão
Que país é esse?
Que país é esse?

114
Que país é esse?
Que país é esse?
Terceiro Mundo se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão.
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
(Que país é esse? – Legião Urbana)

Essa música mostra melhor que qualquer outra que a crítica feita naquele
período transcende o tempo e continua surtindo efeito em adultos e jovens do Brasil. A
corrupção, problema enfrentado ainda nos dias de hoje, é referida em diversos trechos
da letra. Uma falsa esperança é sempre vendida ao povo, escondendo a verdadeira
realidade do cenário político, como aparece no trecho: “Ninguém respeita a
Constituição / Mas todos acreditam no futuro da Nação.” E, em tempos de eleições,
vemos que todos acham graça das atrapalhadas de nossos políticos e não vergonha.

Referências
http://pt.wikipedia.org
http://musicapoesiabrasileira.blogspot.com
http://brasilrock80.blogspot.com

CAZUZA – VERSOS DE UMA ÉPOCA

Guilherme Primo

Resumo: Através deste ensaio, apresentaremos estudo sobre as reflexões promovidas


pelas músicas de Cazuza nos anos 80.

Palavras chave: Cazuza; músicas; anos 80;

Abstract: Through this essay, we will present reflections on the study fostered by
Cazuza's music in the 1980s.

Keywords: Cazuza; music; 80s;

"Artista e censura são incompatíveis.


O artista tem é que cantar, escrever,
compor, pintar. Sei lá, acho que o
papel do artista é muito ligado ao
plano etéreo, ao plano da fantasia, ao

115
plano da poesia". (CAZUZA, 1985).

Nasce, em 1958, um símbolo da música nacional, conhecido como Cazuza.


Batizado Agenor de Miranda Araújo Neto, de mãe costureira e pai produtor da Som
Livre, sempre conviveu com o mundo artístico, devido ao fato de que muitos artistas
frequentavam sua casa em visitas a seu pai. Desde pequeno, Cazuza começou a compor
poemas e letras e, depois de prontos, mostrava-os à avó. Anos depois, quando entrou
para um curso de teatro, percebeu que seguiria o caminho da arte, da canção e dos
poemas.
Sem dúvida alguma este é um cidadão brasileiro que faz falta nos tempos de
hoje, pois sempre houve uma grande diferença entre Cazuza e os outros artistas de sua
época: podíamos ter a certeza de que alguém gritaria em prol dos nossos direitos,
clamando por liberdade, já que esta era uma ideologia que fazia parte do seu DNA. Suas
músicas geralmente eram voltadas ao tom do protesto, não necessariamente sobre a
política, mas tratavam muito do modo como as pessoas viviam e, com a extrema perícia
de um grande poeta, quase todas elas agradavam ao público e, de certa forma,
ampliavam suas mentes.
Podemos começar falando de um grande sucesso de Cazuza, a música
“Brasil”, composta por ele, Nilo Roméro e George Israel. Certamente um dos hinos da
sociedade de 80, a letra é um sopro nos ouvidos dos políticos da época para que
soubessem que seus atos estavam sendo vistos pela população e que a mesma não ia
aceitar atitudes como a corrupção e o suborno sem que antes protestassem e pedissem
por dignidade e honestidade. Podemos perceber claramente na frase “Não me
subornaram; Será que é o meu fim?” a ideia apresentada. Não que ele quisesse denegrir
a imagem do país, muito pelo contrário, amava a pátria, mas achava que o deboche era
uma característica natural do brasileiro, e assim mostrava o seu bom-humor conhecido
mundialmente. Dissecando alguns outros versos, notamos o poder da música de Cazuza,
evidenciando o lado obscuro do Brasil com uma certa ironia.

Brasil!
Mostra a tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...
Grande pátria
Desimportante
Em nenhum instante
Eu vou te trair
Não, não vou te trair...
(Cazuza, Nilo Roméro e George Israel; 1987)

A letra mostra a indignação do autor frente aos fatos que ocorriam no Brasil
naquela época em que a corrupção tomava conta e, mais ainda, o desinteresse do
governo em relação ao povo era aparente – nada muito diferente da realidade atual.
Continuando no contexto da política, Cazuza escreveu, ainda em 1987, a música
“Ideologia”, talvez uma das mais fortes letras de repreensão aos políticos brasileiros e
ao Brasil em si. Podíamos ver, em suas entrevistas, que pelo menos uma de suas frases

116
mostrava um ideal, um valor defendido por ele. Socialista por vocação, o compositor
achava que este estava no meio, entre o comunismo ditatorial e o capitalismo. Mas o
grande erro de Cazuza, ou talvez uma de suas tentativas de acertar, foi achar que
mudaria, de alguma forma, o Brasil, pensamento expresso em um dos versos da canção:
“Pois aquele garoto, que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo, em cima do muro...”.
Como conseguir progredir em um país onde os seus representantes não estão ali com o
intuito de ajudar no desenvolvimento, mas fazendo o papel de inimigos da nação?

Meus Heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder!
Ideologia!
Eu quero uma prá viver
Ideologia!
Eu quero uma prá viver...

Segundo Cazuza, o rock nasceu para “desabar as estruturas” que, talvez em sua
concepção, eram muito “certinhas” e premeditadas. A sociedade deveria ser mais livre
para agir e pensar, sem opressão, censura e preconceitos. Cada cidadão poderia
expressar e defender seus ideais. O compositor buscava incessantemente em suas
músicas mostrar isso ao povo e àqueles que saíssem às ruas e colocassem seu valor à
mostra para quem quisesse ver. Os brasileiros não podiam mais ficar parados. Agir era
uma constante que deveria tomar conta de nós.

"Ideologia fala da minha geração sem ideologia, compactada


entre os anos 60 e os dias de hoje. Eu fui criado em plena
ditadura, quando não se podia dizer isso ou aquilo, em que tudo
era proibido. Uma geração muito desunida. Nos anos 60, as
pessoas se uniam pela ideologia. 'Eu sou da esquerda, você é de
esquerda? Então a gente é amigo! '. A minha geração se uniu pela
droga: ele é careta e ele é doidão. Droga não é ideologia, é uma
opção pessoal. A garotada teve a sorte de pegar a coisa pronta e aí
pode decidir o que fazer pelo país, embora do jeito que o Brasil
está, haja muita desesperança". (CAZUZA, janeiro/1988)

Saindo do campo político e adentrando o caminho das desilusões amorosas,


Cazuza mostrava uma de suas especialidades: o amor. Esse sempre fora um campo
muito explorado por ele, que até se considerava “um pouco cafona” e, de certa forma,
“brega” com as palavras que fazia uso. Sua vida era feita de amores. E dos mais
diversos tipos. Amava os amigos, a família, a vida boêmia e a solidão. Ele gostava de
ficar sozinho, escutando música ou simplesmente em silêncio. Um de seus maiores
sucessos, “Exagerado”, mostra o seu lado “dor-de-cotovelo”, ao qual ele mesmo se
referia.

Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado
Eu nunca mais vou respirar

117
Se você não me notar
Eu posso até morrer de fome
Se você não me amar...

“O que fica mesmo pras pessoas que consomem meu trabalho é a


mensagem romântica que está no que escrevo. O meu trabalho
tem muito essa coisa de cutucar a dor de amor. É o lado meio
dark do amor que as pessoas curtem em mim.” (CAZUZA, 1987).

Cazuza nunca escondeu sua sexualidade em frente às câmeras e, durante suas


entrevistas, suas afirmações sempre foram polêmicas. Cazuza era, talvez, uma
“polêmica em pessoa” por assim dizer. E, por ironia do destino, morreu de amor. A
AIDS entrou em sua vida como quem pede um lugar para sentar casualmente. Ficou por
ali, instalada, absorvendo o poeta e seus fãs. Sua agonia serviu para que os jovens
brasileiros vissem o quão forte era a doença e como se manifestava rapidamente.
Ninguém estava imune.
O grande músico Cazuza soube definir o que era a vida para si. Queria
disseminar as suas conquistas e sua energia para as pessoas. Sempre andou de mãos
dadas com a liberdade, que era quase sua irmã. Não queria parecer o tipo humilde. Sabia
que era bom no que fazia e não se sentia acanhado com elogios; vivia deles. Sua
rebeldia era uma forma de viver genuinamente, sem as amarras de um mundo mecânico
e alienado. Um artista que será lembrado sempre como a voz dos jovens e o coração do
povo, que sabia de seus defeitos, mas não queria tomar conhecimento dos seus limites.
Viveu pouco, mas foi um dos poucos que souberam viver. Grande poeta e compositor,
marcou uma geração com seus versos. Este é Cazuza.

PRO DIA NASCER FELIZ

Danielle
Guimarães

Resumo: Cazuza foi um poeta romântico da música brasileira, relacionado ao público


jovem, que se destacou no Brasil e acabou fazendo muito sucesso. Declarou-se à mídia
usuário de drogas e homossexual, tornando-se o símbolo de rebeldia dos jovens da
época e estourando como principal ícone do rock nacional do século XX. Escrevia letras
incríveis e extremamente românticas falando de amores, dores e seus prazeres, tendo
suas letras cantadas por alguns dos importantes cantores da MPB da época, como
Caetano Veloso e Gal Costa. Outro motivo que o levou ao grande sucesso foi mostrar
nas canções o que pensava do quadro social em que se encontrava o país e como
interpretava sua vida de classe média na capital do Rio de Janeiro, sendo, muitas vezes,
reprimido pelas gravadoras devido às letras muito “fortes”. No auge de seu sucesso,
Cazuza assume ter AIDS, e tempos depois, morre, deixando muitos fãs e seu trabalho
marcado na história da música brasileira.

Palavras-chave: Rock Nacional; Cazuza; Barão Vermelho;

Abstract: Cazuza was a romantic poet of Brazilian music. His songs were focused to
the young public. He became famous and was very successful in the country during his
life. He admitted publically that he used to do drugs and that he was a homosexual. This
made him become the symbol of yourth rebellion of that period as well as the main icon

118
of national rock in the twentieth century. He used to write romantic song, usually
talking about love, sorrow and life pleasures. Some of his lyrics were sung by some of
the most important Brazilian pop singers of that time. Another reason for his great
success was they way he interpreted his middle-class life in Rio de Janeiro through his
strong lyrics. He died of AIDS at his highest success. His work marked the history of
Brazilian music.

Keywords: National Rock; Cazuza; Barão Vermelho.

O rock surgiu nos Estados Unidos nos anos de 1950. Inovador e diferente de
tudo que já tinha ocorrido na música, o rock unia um ritmo rápido com a música negra
do sul dos EUA e o country. Uma das características mais importantes do rock é o
acompanhamento de guitarra elétrica, bateria e baixo.
O primeiro sucesso no cenário do rock brasileiro apareceu na voz de uma
cantora: Celly Campello, que estourou nas rádios com os sucessos “Banho de Lua” e
“Estúpido Cupido” no começo da década de 1960. Em meados desta década, surge a
Jovem Guarda com cantores como, por exemplo, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e
Wanderléa. Com letras românticas e ritmo acelerado, o rock começa a fazer sucesso
entre os jovens.
Na década de 1970, surgem Raul Seixas e o grupo “Secos e Molhados”. Na
década seguinte, com temas mais urbanos e falando da vida cotidiana, aparecem várias
bandas, dentre elas a Barão Vermelho.
Agenor de Miranda Araújo Neto, nascido em julho de 1958, no bairro Ipanema
da cidade do Rio de Janeiro, era filho de João Araújo e de Lucinha Araújo. Por
insistência de sua avó materna, Alice (com quem passou grande parte da sua infância e
se apegou muito) recebeu o nome de Agenor, mas, desde pequeno, não atendia pelo
nome de batismo, era mais conhecido como Cazuza. Na sua infância, estudou no
colégio Santo Inácio. Foi um menino quieto e solitário, o que mudou com o tempo,
sendo, na sua juventude, um gênio romântico e rebelde. Cazuza cresceu com muita
liberdade, e, nesse momento, já vivia na sua trinômia de “sexo, drogas e rock and roll”,
o que provocou muitas dificuldades para os seus pais. Finalmente terminou o ginásio,
decidido a prestar vestibular para comunicação, apenas porque seu pai lhe prometera um
carro, mas, em alguns dias de aula, desistiu da carreira, pois não era o que ele realmente
queria.
Isso fez com que seu pai o empregasse na gravadora “Som Livre”, da qual era
presidente, com o pretexto de não querer seu filho na “vagabundagem”. Cazuza
trabalhou fazendo a primeira triagem de fitas de cantores novos. Na assessoria de
imprensa, foi divulgador de artistas, fez curso de fotografia em São Francisco, contudo
nada o satisfazia. Então, ele decide fazer um curso de teatro, onde atua na peça
“Paraquedas do coração" no Circo Voador no Rio. Na apresentação, ele canta pela
primeira vez em público e gosta muito da nova experiência. Antes era cercado pela
música, porém nunca tinha percebido que esse poderia ser seu futuro. Através de seu
pai, conviveu com inúmeros cantores importantes da MPB, como: Caetano Veloso, Elis
Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, João Gilberto, Novos Baianos, entre outros. Cazuza
sempre gostou de MPB e escrevia muitos versos românticos, contudo os compartilhava
apenas com sua avó Alice.
Em 1981, o cantor Leo Jaime é convidado para ser vocalista de uma banda
chamada Barão Vermelho, mas ele recusa a proposta e indica Cazuza aos meninos. A
banda era inicialmente composta por Frejat (guitarra), Dé Palmeiras (baixo), Guto Goffi
(bateria) e Maurício Barros (teclado). Os ensaios aconteciam na casa de um deles no

119
bairro de Rio Comprido, onde um dia apareceu Cazuza, com uma voz berrada, típica do
rock de garagem, exatamente o que a Barão Vermelho estava procurando. Formou-se
então a banda.
Tempos depois, Cazuza decide mostrar aos integrantes da banda as letras que
escrevia há muito tempo. Os que antes apenas tocavam couvers passaram a gravar suas
próprias letras com um repertório incrível e, a partir de então, Cazuza e Frejat passam a
juntar suas ideias compondo músicas.
Eles gravaram uma fita demo de suas canções, a qual chega aos ouvidos do
produtor, Ezequiel Neves, que convence o diretor artístico da “Som Livre”, Guto Graça
Mello, a gravar a banda. Juntos convencem o João Araújo a apostar no filho e lançar a
banda (que se preocupava com o filho e temia que fosse mais uma experiência sem
futuro de Cazuza). Convencido de ter de confiar no filho, a Barão Vermelho gravou seu
primeiro CD. Em dois dias, fica pronto um álbum cujo os principais sucessos eram
"Bilhetinho Azul", "Ponto Fraco", "Down Em Mim" e a obra-prima "Todo Amor Que
Houver Nessa Vida”

“Eu quero a sorte de um amor tranquilo


Com sabor de fruta mordida
Nós na batida, no embalo da rede
Matando a sede na saliva
Ser teu pão, ser tua comida
Todo amor que houver nessa vida
E algum trocado pra dar garantia"

Nesta letra, Cazuza descreve, de forma muito romântica, a sua idealizaçao de


amor, dizendo ser esse tranquilo ao descrever a cena de amor na rede, com duas pessoas
se beijando, aproveitando o momento. Na sequência da música:

“E ser artista no nosso convívio


Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia”
(Todo Amor Que Houver Nessa Vida / Cazuza)

Neste trecho Cazuza deixa entender que dedica a música a alguém que é artista
como ele, sem dizer o sexo da pessoa em nenhum momento. Não se sabe realmente para
quem ele está cantando, mas parece ser para o Frejat. É sabido que Cazuza viveu com
ele um romance. Ele também é artista como Cazuza, e os dois passam horas juntos para
“transformar o tédio em melodia”. Porém, existem aqueles que acreditam que a letra
seja para Ney Mato Grosso, por ele ter sido um dos grandes amores de Cazuza.
Entre outras músicas com o ritmo de rock clássico, há uma mistura de blues. A
banda teve uma ótima recepção no meio artístico. Caetano Velloso chega a incluir
“Todo Amor Que Houver Nessa Vida” no repertório de um show e ainda critica as
rádios por não tocarem as músicas do grupo. Apesar das críticas e da boa recepção do
público, eles venderam apenas 7 mil cópias.
Após a gravação, ficaram reconhecidos e fizeram alguns shows no Rio de
Janeiro e São Paulo, lançando, em 1983, o segundo álbum da banda, com o nome de
Barão Vermelho 2. Este álbum vendeu 15 mil cópias e afirmou, principalmente para os
críticos, o estilo de letra que Cazuza escrevia, o qual consistia em temáticas como amor,
dor e prazer, chegando a ser chamado como cantor de “dor-de-cotovelo”. As faixas mais

120
conhecidas eram "Vem comigo", "Carne de pescoço", "Carente profissional" e "Pro dia
nascer feliz". Esta última chega a ser gravada por Ney Mato Grosso, vindo a ser a
primeira música escrita por Cazuza, juntamente com Frejat, por um grande nome da
MPB, o que causou um grande salto na carreira da banda.
Conquistaram o grande público quando chegaram ao sucesso do cinema com a
canção “Bete Balanço” no filme “Bete Balanço” de Lael Rodrigues. Essa canção
integrou o terceiro disco da banda, lançado em 1984. O disco chamava-se “Maior
Abandonado”, que conquistou disco de ouro, registrando outras composições como
"Maior Abandonado" e "Por Que a Gente é Assim?", atingindo uma marca de venda de
60 mil cópias. Músicas essas que deram o reconhecimento da letra de Cazuza como as
letras de um “poeta do rock brasileiro”, e era isso que diferenciava o compositor dos
outros roqueiros da época. Em “Por Que a Gente é Assim”, aparecem os trechos
poéticos que consolidaram o rótulo de romântico a Cazuza.
Como o próprio nome diz, nesta música, Cazuza se questiona “Por Que a
Gente é Assim?”, ou seja, por que nos prendemos a certas idealizações amorosas. No
trecho:

“Agora fica comigo


E não desgruda de mim,
Vê se ao menos me engole
Mas, não me mastigue assim”

Cazuza subentende que, quando amamos alguém, somos capazes de fazer tudo
apenas para tê-lo a ponto de não nos importarmos se o amor é correspondido (“vê se ao
menos me engole”). E essa ideia é ressaltada no seguinte trecho:

“Você tem exatamente


Três mil horas pra parar de me beijar
Hum, meu bem, você tem tudo, tudo
Pra me conquistar
Mas você tem apenas um segundo
Um segundo pra aprender a me amar
Você tem a vida inteira, baby, a vida inteira
Pra me devorar
Pra me devorar!”
(Por Que a Gente é Assim? / Cazuza)

Essas letras do terceiro álbum da banda fizeram aparecer mais ainda a


personalidade rebelde de Cazuza e seu temperamento inquieto, o qual se juntou com
uma agenda carregada da banda e acabou gerando desentendimento entre os integrantes.
Em 1985, a Barão Vermelho se apresentou na primeira edição do Rock in Rio (o maior e
mais importante festival de música da América do Sul). A apresentação da banda no
quinto dia coincidiu com a eleição do presidente Tancredo Neves, ou seja, com o fim da
Ditadura Militar. Cazuza anuncia esse fato ao público presente e, para comemorar,
cantou "Pro Dia Nascer Feliz":

“Pro dia nascer feliz


Essa é a vida que eu quis
O mundo inteiro acordar e a gente dormir
Todo dia é dia e tudo em nome do amor

121
Essa é a vida que eu quis
Procurando vaga uma hora aqui, a outra ali
No vai-e-vem dos teus quadris
Nadando contra a corrente só pra exercitar
Todo o músculo que sente
Me dê de presente o teu bis
Pro dia nascer feliz...”

A letra apresenta a ideia de que, com o fim da ditaduta militar, a população


brasileira ficaria muito mais feliz (“pro dia nascer feliz”). Cazuza lutava contra a
ditadura. Ele era a favor de um país totalmente livre e sem repressões e mostrva sua
felicidade com a eleição de Tancredo quando canta que “essa é a vida que eu quis”.
Orgulhava-se por ter “lutado” contra esse governo quando diz, em sua letra, “nadando
contra a corrente, só pra exercitar”. O compositor usa rimas emparelhadas (feliz e quis)
e rimas alternadas (quis e quadris), que são rimas ricas e deixam a letra ainda mais
bonita.
Em julho de 1985, Cazuza deixa a banda Barão Vermelho com pretexto de
poder escrever o que realmente queria, sem amarras. Viveu sua carreira em um período
de Ditadura Militar e era uma menino que gostava muito de expressar suas ideias
através de suas canções e mostrar ao público o que realmente o país vinha passando.
Tempos depois da saída de Cazuza da banda, ele continuava em harmonia com os
garotos da Barão e ainda afirmava, em alguns depoimentos, que “fora melhor para os
dois lados”; citando que sua parceria com Frejat não havia terminado e sim ficado
ainda melhor.
Em 1985, Cazuza é internado no hospital com suspeita de pneumonia. Exige
fazer um teste de HIV, que dá negativo. No mesmo ano, ele lança seu primeiro álbum
solo, chamado “Exagerado”. A faixa título, “Exagerado”, foi escrita juntamente com o
cantor Leoni e se torna um dos maiores sucessos da música brasileira, vindo a ser a
marca registrada do cantor. O álbum traz outras faixas que se destacaram, como
“Codinome Beija-flor” e “Só as Mães São Felizes” , sendo, essa última, censurada.
Em uma bibliografia da vida de Cazuza escrita por ele mesmo, ele cita que não
enviava as letras originais para a censura, lembrando da fala de seu produtor: “Vá com
calma, estamos em 1982, a barra está heavy. Diga tudo que passar pela tua cabeça, mas
quer você queira, ou não queira, vou mandar para a censura letras diferentes, bem
inofensivas. Eles liberam depois você canta e grava o que quiser cantar”.

“Você nunca varou


A Duvivier às 5
Nem levou um susto Saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
Nunca viu Lou Reed
"Walking on the wild side"
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas
Você nunca ouviu falar em maldição

122
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela
Você nunca sonhou
Ser currada por animais”
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu teu melhor amigo
Nem quis comer a tua mãe?
Só as mães são felizes...

Na música “Só as Mães São Felizes”, Cazuza acaba mandando à censura a letra
certa, que é imediatamente cortada. A letra produz cenas fortes e, através delas, Cazuza
queria mostrar às pessoas uma espécie de “preconceito” dele: o que não admitia que as
mães fossem exaltadas. Ele dizia que a sua letra expressava: “o preconceito com o fato
de não permitir a nenhuma mãe do mundo encarar as barras que eu encarava. Era como
se eu dissesse que as mães são para serem colocadas num altar, para serem veneradas”.
Ainda diz que “não entenderam que era uma letra moralista pós-Nelson Rodrigues”.
Essa letra de Cazuza não tem nenhuma relação com Lucinha, sua mãe, e sim com
“gente que barbariza, que são anjos e demônios ao mesmo tempo”, nas palavras do
poeta. Ele passa para os seus ouvintes, através de metáforas, a mãe intocável bem
diferenciada da mulher. Na letra, percebe-se a sensibilidade de Cazuza querendo dar
ideia sublime de que a mãe é representada pelo anjo, e a mulher, pelo demônio, porém
juntos são uma pessoa só.
Em 1986, gravou o segundo álbum, denominado “Só Se For A Dois”, com
faixas de sucesso como: "Só Se For A Dois", "O Nosso Amor A Gente Inventa",
"Solidão Que Nada" e "Ritual". No próximo ano, fica doente e é confirmado que ele era
portador do Vírus HIV. É levado pelos pais aos Estados Unidos, onde ficaria internado
dois meses em um hospital tentando curar sua doença. Volta ao Brasil no final do ano e
inicia a gravação de mais um disco: “Ideologia”. Lançado em 1988, inclui as faixas
"Ideologia", "Brasil" e "Faz Parte Do Meu Show”. Neste álbum, o Cazuza escreve
músicas muito boas e de incrível sucesso no Brasil inteiro, principalmente a música
“Brasil”. Essa letra passa a ideia de um país hipócrita, logo se alguém quiser sair
ganhando é preciso ser mais esperto que os outros, passar por cima do resto da
sociedade, tirar vantagem em cima dos excluídos e dos tolos que seriam as pessoas
honestas. É um “grito de socorro” dado pelo poeta Cazuza. É como se ele disesse:
Brasil? Mostra tua cara, mostra tua realidade, acabem com essas corrupções, com essa
hipócrisia, com os roubos, com essa pobreza e pessoas de grande ego, parem de se
iludir, prendam os criminosos que estão distruindo o nosso país, ”quem é que paga pra a
gente ficar assim?”. Mas ao mesmo tempo quer a mudança do país e diz que, acima de
tudo, ama a pátria: “grande pátria desimportante, em nenhum instante eu vou te trair”.

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Não me convidaram
Pra esta festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer...
Não me ofereceram
Nem um cigarro
Fiquei na porta
Estacionando os carros
Não me elegeram
Chefe de nada
O meu cartão de crédito
É uma navalha...
Brasil!
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...
Não me convidaram
Pra essa festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer...
Não me sortearam
A garota do Fantástico
Não me subornaram
Será que é o meu fim?
Ver TV a cores
Na taba de um índio
Programada
Prá só dizer "sim, sim"
Brasil!
Mostra a tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...

124
Grande pátria
Desimportante
Em nenhum instante
Eu vou te trair
Não, não vou te trair...
Brasil!
Mostra a tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim...
Confia em mim
Brasil!!
(Brasil / Cazuza)

Em fevereiro de 1989, Cazuza declara publicamente que está com AIDS. Ele
comparece na cerimônia do Prêmio Sharp de cadeira de rodas, onde recebe os prêmios
de melhor canção para "Brasil" e melhor álbum para “Ideologia”. No mesmo ano, grava
o álbum “Burguesia”, no qual percebemos uma voz fraca. É um álbum duplo, sendo o
primeiro disco com canções de rock brasileiro, e o segundo com canções de MPB. É o
último disco gravado por Cazuza e vendeu 250 mil cópias e ainda recebeu o Prêmio
Sharp de melhor canção com "Cobaias de Deus":

Se você quer saber como eu me sinto


Vá a um laboratório ou um labirinto
Seja atropelado por esse trem da morte
Vá ver as cobaias de Deus
Andando na rua pedindo perdão
Vá a uma igreja qualquer
Pois lá se desfazem em sermão
Me sinto uma cobaia, um rato enorme
Nas mãos de Deus mulher
De um Deus de saia
Cagando e andando
Vou ver o ET
Ou vir num cantor de blues
Em outra encarnação
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus
Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco
Desse hospital maquiavélico
Meu pai e minha mãe, eu estou com medo
Porque eles vão deixar a sorte me levar
Você vai me ajudar, traga a garrafa
Estou desmilingüido, cara de boi lavado
Traga uma corda, irmão (irmão, acorda!)

125
Nós, as cobaias, vivemos muito sós
Por isso, Deus, tem pena, e nos põe na cadeia
E nos faz cantar, dentro de uma cadeia
E nos põe numa clínica, e nos faz voar
Nós, as cobaias de Deus
Nós somos cobaias de Deus
Nós somos as cobaias de Deus
Nós as cobaias...

Nessa música, Cazuza demonstra claramente que sente sua vida chegar ao fim,
e que a decisão de seu futuro está apenas nas mãos de Deus. Chega até a fazer um apelo
nos trechos “Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco desse hospital maquiavélico” e
“Você vai me ajudar, traga a garrafa, estou desmilinguido, cara de boi lavado, traga uma
corda, irmão!” demostrando que não suportava mais viver naquela “espera”. De uma
coisa todos sabiam a respeito de Cazuza: esse apelo não estava relacionado ao medo,
pois ele não temia a morte, apenas a classificava como uma parte do ciclo da vida.
Cada vez mais Cazuza se mostrava um romântico. Os artistas românticos
procuraram se libertar em favor da livre expressão da personalidade e era exatamente
isso que Cazuza fazia, pois valorizava os sentimentos e, acima de tudo, era nacionalista,
tal quais os românticos do século XIX. Além de viver do trinômio sexo, drogas e
rock’n’roll (prova da sua vontade de liberdade de expressão), vivia também de outro
trinômio demais romântico: lutar pela igualdade, fraternidade e liberdade.

Referências
http://www.cazuza.com.br/sec_biografia.php?language=pt_BR&page=4
http://www.mpbnet.com.br/musicos/cazuza/
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list. php?language=pt_BR
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cazuza
http://www.historiadaarte.com.br/arteromantica.html

A TELEVISÃO ME DEIXOU BURRO DEMAIS

Juliana Gonçalves Silveira

Resumo: Este artigo tem o objetivo expor de as reflexões sobre a polêmica banda dos
anos 70: Titãs. Considerando a música a expressão de uma sociedade, essa análise
observará e refletirá sobre as canções da banda a partir do contexto histórico a que
pertenceram.

Palavras-chave: Titãs; ditadura.

Abstract: This article focuses on transmiting the ideas and the reflexions about the
controversy band from the 70s: Titãs. Considering that the music is the way of
expression of a society, this analysis will observe Titãs’s lyrics into the context that they
were written and what the result was like.

Keywords: Titãs; dictatorship.

126
No auge da ditadura, nos anos 70, um colégio em São Paulo resistia às normas
da época. Nesse colégio se formara a banda Titãs Iê Iê, que subia ao palco com Arnaldo
Antunes, Sérgio Britto, Paulo Miklos, Marcelo Fromer, Nando Reis, Ciro Pessoa e Tony
Belotto, como uma brincadeira para descontrair os espectadores que iam assistir a
pessoas com muito mais experiência.
No ano seguinte, a brincadeira foi tomada com mais seriedade, e a banda se
apresentou no Sesc Pompeia na sua estreia oficial, com repertório próprio e
devidamente ensaiados. Neste ano mais dois músicos começaram a fazer parte do
grupo: André Jung e Branco Mello. A banda chamava atenção: eram nove integrantes
no palco, com cabelos chamativos e roupas extravagantes. Além disso, as músicas eram
criativas e misturavam diversas influências. No primeiro álbum dos Titãs, a banda
lançou a música Sonífera Ilha, que foi uma das mais tocadas no ano fazendo o sucesso
da banda invadir outros Estados do Brasil. Esse álbum foi lançado em 1984, no período
da ditadura, portanto destacamos duas músicas:

Não posso mais viver assim


no seu ladinho
Por isso colo o meu ouvido
No radinho de pilha
Prá te sintonizar
Sozinha, numa ilha...
(Sonífera Ilha, Branco Mello / Marcelo Fromer / Tony
Bellotto / Ciro Pessoa / Carlos Barmack, 1984)

‘Pode ser que eu vá viajar nesse navio


Não sei, não sei, não sei
Pode ser, pode ser, pode ser
Não sei
Cenas de terror e tensão
Fuga na terra, ira no céu
Televisão
O futuro será’
(Babi índio, Branco Mello / Ciro Pessoa, 1984)

As duas músicas retratam a fuga. A primeira letra, além de ser de caráter


romântico, descreve uma ilha idealizada. Já a segunda relata o desejo de fugir de um
lugar onde as cenas são de terror e tensão: o Brasil no período em que estava sob o
controle de ditadores.
No ano seguinte, em 1985, a banda lançou o seu segundo LP, Televisão, e a
música que mais obteve sucesso foi a que deu nome ao cd:

A Televisão
Me deixou burro
Muito burro demais
Oi! Oi! Oi!
Agora todas coisas
Que eu penso
Me parecem iguais
Oi! Oi! Oi!...

127
(Televisão, Marcelo Fromer/ Tony Bellotto/ Arnaldo
Antunes)

A música Televisão retrata o período de ‘democratização’ do Brasil e critica a


censura da época recentemente vivida. Durante a sua trajetória, neste mesmo ano, a
banda sofreu um abalo: Tony Bellotto e Arnaldo Antunes são presos por porte de drogas
– fato que serviu de inspiração para Bellotto compor a música Polícia, do disco Cabeça
de Dinossauro, que veio a ser lançado em 1986.

Dizem prá você


Obedecer!
Dizem prá você
Responder!
Dizem prá você
Cooperar!
Dizem prá você
Respeitar!...
Polícia!
Para quem precisa
Polícia!
Para quem precisa
De polícia...
(Polícia, Tony Bellotto)

Cabeça de Dinossauro é o terceiro disco lançado e é considerado por muitos


‘um soco no estômago da hipocrisia’, visto que suas letras apresentam construções
críticas e contundentes. O LP emplacou com Polícia, Igreja, Bichos Escrotos e Homem
Primata. O disco é um dos mais polêmicos. Além disso, naquele ano, ficou no topo das
listas mais consagradas. Este trabalho é apontado até hoje como um dos discos mais
importantes da história do rock brasileiro.
Jesus não tem dentes no país dos banguelas é de 1987 e é a continuação das
músicas do álbum anterior, com o mesmo estilo musical. Depois desse episódio, os
Titãs se lançaram para o exterior e, por causa disso, os CDs seguintes são misturas de
canções novas e antigas da banda, porque os novos ouvintes não conheciam suas
primeiras músicas, e os brasileiros queriam ouvir novas produções.
Um novo disco é lançado em 1989, Õ Blesq Blom. Neste a banda lança duas
músicas muito famosas: O pulso e Flores:

Olhei até ficar cansado


De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro
Os punhos e os pulsos cortados
E o resto do meu corpo inteiro
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo
(Flores, Tony Bellotto / Sérgio Britto / Charles Gavin /
Paulo Miklos)

128
Essa música parece apresentar um tom romântico de um relacionamento
recentemente acabado; contudo, a letra da música na verdade retrata o sentimento de um
defunto em seu velório. Ressalta-se, nessa canção, o poder do artista de conseguir
‘maquiar’ e transformar um ato tão triste em uma imagem bela e quase sem vestígios.
Para exemplificar melhor, também trago uma letra de uma canção interpretada por Tim
Maia:

Não sei por que você se foi


Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar... (...)
Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato
Não quero ver prá não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você...
(Gostava Tanto de Você, Edson Trindade)

A canção acima apresenta também caráter romântico, mas sabemos que a letra
foi escrita em um momento muito difícil, pois o compositor perdera a filha. Note a sutil
menção de morte neste trecho:

Você marcou na minha vida


Viveu, morreu
Na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão
Que em minha porta bate...
(Gostava Tanto de Você, Edson Trindade)

Com o vídeo clipe da música Flores, a banda ganhou um prêmio inédito no


Brasil: MTV Video Music Awards no período em que a emissora ainda nem tinha a filial
no país. Depois de lançar os discos Tudo ao mesmo tempo agora (1991) e Titanomaquia
(1993), a banda tirou férias, em 1994, para poder desenvolver seus planos paralelos. Em
1995, a banda voltou com o disco Domingo, onde foram gravadas Domingo, Tudo o que
você quiser e Eu não aguento (primeira música gravada que não foi escrita por algum
membro da banda).
Acústico e Volume dois são discos marcados pelo caráter antes citado: a
miscigenação de músicas antigas e novas. As dez mais é o trabalho em que foram
gravadas várias músicas selecionadas de outros artistas consagrados: Tim Maia, Raul
Seixas e até Mamonas Assassinas. Em 2001, foi lançada A melhor música de todos os
tempos da última semana.

Quinze minutos de fama


Mais um pros comerciais
Quinze minutos de fama

129
Depois descanse em paz.
O gênio da última hora
É o idiota do ano seguinte
O último novo rico
É o mais novo pedinte.
A melhor banda de todos os tempos da última semana
O melhor disco brasileiro de música americana.
O melhor disco dos últimos anos de sucessos do passado
(A melhor banda de todos os tempos da última semana,
Branco Mello/ Sérgio Britto)

Essa canção satiriza as bandas de momento que surgem, fazem hits e depois
desaparecem. Os artistas demonstram a fugacidade do mercado e discutem a função do
artista. A banda sempre obteve e obtém sucesso e audiência, porque sempre lança boas e
novas polêmicas em suas letras. Um exemplo muito atual é a música de abertura da
novela Cama de Gato, que causou frisson porque muitos acharam que ela contém
mensagens satânicas.
A banda preza por lançar músicas quase sempre de sua autoria, mantendo o
estilo musical a que visaram e nunca esquecendo a mensagem de liberdade de
expressão. Com pouco mais de 26 anos de carreira e 150 músicas gravadas, a banda
sempre será lembrada como uma das mais importantes e influentes do rock brasileiro.

Referências
http://letras.terra.com.br/titas
http://www.letras.com.br/biografia/titas
http://www.hist.puc.cl/iaspm/lahabana/articulosPDF/HeromVargas.pdf

GERAÇÃO DE CLONES

Vitor Leão Degrazia

Resumo: Em busca da adequação no mundo de hoje, nos submetemos a pensar, agir e


degustar as mesmas coisas que a grande maioria. Renato Russo, compositor, poeta e
pensador brasileiro, traz em suas músicas, principalmente, pensamentos sobre essa
geração de clones criada a partir dos anos 90 e que vem seguindo até hoje. A busca
incansável pela perfeição criada pela mídia, repassada e modificadas de pessoas por
pessoas, nos torna clones inconfundíveis. Neste ensaio escreverei sobre Renato Russo,
sua biografia, e os ideais que nos fazem refletir sobre o mundo atual e como as pessoas
agem e mudam no decorrer das décadas se adequando à grande massa e esquecendo-se
de seus próprios princípios.

Palavras-chave: Adequação; clones; reflexão; princípios.

Abstract: In order to fit today’s world we think, act and enjoy the same things that the
vast majority does. Renato Russo, a Brazilian composer, poet and thinker brings in his
songs thoughts about this generation of clones created from the '90s and who have been
following until now. The unsparing question for perfection created by the media which
people have passed on makes us unmistakable clones. In this essay I will write about
Renato Russo, his biography, and thoughts that have made us reflect on the current

130
world and how people act and change the course of decades by adjusting the large mass
and forgetting their own principles.

Keywords: Appropriateness; clones; reflection; principles.

Não queremos ser diferentes, e sim que todo mundo


tenha o direito de ser como é. Eu não preciso me sentir
mal porque não sou igual ao garoto que está no anúncio
do iogurte. É você ser sexy, charmoso, com uma certa
plasticidade corpórea. Cria-se uma geração de clones.
Estes são os anos 90.

Renato Brasileiro
Renato Manfredini Júnior, nascido no Rio de Janeiro dia 27 de março do ano
de 1960, viveu até 1996 no dia 11 de outubro. Conhecido como Renato Russo, foi um
cantor, compositor e talvez o maior ídolo do rock brasileiro na década de 80 e 90.
Renato Russo não foi apenas um vocalista de uma banda de rock, foi e sempre será um
ídolo de milhões de pessoas, que, até hoje, mesmo depois de nove anos de sua morte,
engrandecem sua música.
Por volta de 1975, surge o movimento punk nos Estados Unidos, o qual se
caracteriza por um rock simples, de poucos acordes, sem muitos solos de guitarras,
características do heavy metal. Foi nessa época que surgiu sua primeira banda, o Aborto
Elétrico. Depois de várias formações, o Aborto Elétrico se desfez por causa da música
Química, feita por Renato. Quando Renato mostrou a música para outro integrante da
banda, este disse que a música era horrível e teria dito para Renato que ele perdera a
habilidade para fazer músicas. Após a separação do Aborto Elétrico, que durou apenas
três anos (1979-1982), Renato Russo decide tocar sozinho, fazendo shows com um
violão de 12 cordas, intitulando-se “O Trovador Solitário”. Dessa época, nascem
músicas com um estilo mais folk, como Faroeste Caboclo (considerada por este que
escreve esta biografia a melhor canção já feita por um brasileiro), Eduardo e Mônica,
Dado Viciado, Música Urbana 2, entre outras.
Cansado de tocar sozinho, Renato forma a banda Legião Urbana, cuja
formação foi muito complicada devido à sucessiva troca de integrantes. Já formada, a
banda decide tocar hardcore, música fácil, com energia contagiante e de poucos
acordes. Desse tempo, surgem Petróleo do Futuro, Teorema e Perdidos no Espaço,
entre outras.
Tudo estava dando certo, até que Renato Russo tenta se suicidar depois de uma
briga com a gravadora por causa da música Geração Coca-Cola. Ele cortou seus
próprios pulsos e ficou incapaz de tocar baixo. Com isso, a gravadora colocou outro em
seu lugar, deixando Renato Russo livre para os vocais.
A banda entra em estúdio para gravar o disco “Dois”, que deveria ser duplo e
se chamar “Mitologia e Intuição”. Este disco torna-se rapidamente um grande sucesso e
é considerado, por muitos, um dos maiores discos de rock nacional na história. Músicas
como Tempo Perdido, Índios, Metrópole e Quase Sem Querer se tornam “hits”. Mas o
maior sucesso deste disco e um dos maiores sucessos da Legião foi Eduardo e Mônica,
uma música que conta a história de dois jovens que se apaixonam apesar dos estilos
diferentes de vida.
Em 1989, é lançado um disco histórico: “As Quatro Estações”, em que todas as
músicas fazem sucesso. Esse disco é o de maior índice de venda da banda, com quase

131
dois milhões de cópias vendidas. Dentre essas músicas, sem dúvida o destaque é Pais e
Filhos, que faz grande sucesso, transformando-se em um dos maiores sucessos da
banda. Um ano depois ocorre uma grande mudança na banda. Renato Russo assume
publicamente ser homossexual e descobre ser portador do vírus da AIDS. O compositor
conhece, também, a maior paixão de sua vida, o americano Scott, que lhe vicia em
heroína.
Em 1993, Renato Russo se interna em uma clínica e se livra do vício das
drogas e da bebida. Essa mudança pode ser notada no disco “O Descobrimento do
Brasil”, que fala de esperança e é, sem dúvida, o disco mais alegre da Legião. Fraco e
com 20 quilos abaixo do peso, Renato falece de complicações da AIDS em 11 de
outubro de 1996 – um dos dias mais tristes da história da música nacional.

Um mosaico de reflexões
Renato Russo expõe em suas músicas reflexões acerca de diferentes temas. Ele
aborda em suas canções desde uma história fictícia até a realidade no mundo de hoje,
criticando e defendendo alguns atos do ser humano. Uma música que retrata bem as
ideias de Renato é a “Geração Coca-Cola” na qual percebemos a raiva e a indignação do
compositor diante do processo de massificação.

“Quando nascemos fomos programados


Pra comer o que vocês nos empurraram
com os enlatados dos USA
das nove às seis
desde pequenos nós comemos lixo
comercial e industrial
mas agora chegou a nossa vez
vamos cuspir de volta todo o lixo
em cima de vocês!
Somos filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim, que deve ser?
Vamos fazer nosso dever de casa
Aí então, vocês vão ver!
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema
Com as suas leis”!
(Renato Russo, 1985, “Geração Coca-Cola”).

Ao fazer repentinos comerciais de produtos, percebemos que, por um lado, há


aqueles que programam a população a degustar de tal alimento ou bebida; por outro, há
aqueles que consomem os produtos sem pensar. A partir dessa percepção, verificamos
que cada vez mais o direito de escolha está sumindo.
Pensar por si só hoje em dia, sem influências e de acordo com o que você
realmente acha correto, está se tornando cada vez mais raro – como Renato cita em sua
música “L’Aventura”. Novos padrões de estética e beleza são impostos a você e mais do

132
que nunca as pessoas se limitam inconscientemente aos modelos criados. Renato expõe
esse pensamento dizendo que não precisa de modelos nem heróis na música “Comédia
Romântica”.
É claro que o contato de um ser humano com outro e a troca de
informações e pensamentos é inevitável, mas o ponto em que o modelo ideal de homem,
ou mulher chegou, é curioso. Nós deixamos de lado nossos princípios por achar que
pensar diferente da grande massa nos torna estranhos, muitas vezes preferindo agir de
uma maneira errada, mesmo sabendo que esta não está certa para nos adequarmos à
“normalidade” que é imposta ao ser humano ao nascer. Renato Russo, ao assumir que
era gay, dá um bom exemplo à sociedade, que discrimina os homossexuais por serem
diferentes e terem pensamentos opostos ao seu. Algumas pessoas até usam esse
preconceito como forma de autoafirmação, pois fugir da normalidade de ser um
verdadeiro “machão” é um pecado para eles. Renato disse uma frase que nos faz refletir
sobre isso.

"Se um ator faz o papel de um assassino, ninguém vai achar que


ele é um assassino. Agora, se um ator faz papel de gay, todo
mundo vai achar que ele é. Tem alguma coisa errada... Isso me
interessa profundamente. A humanidade é desumana, mas acho
que ainda temos uma chance."
(Renato Russo)

Renato acreditava na mudança, por isso passava suas reflexões ao público em


forma de música ou poesia. Ele sempre defendeu seus princípios, mas como a busca por
um mundo melhor nunca foi significativa, muito pelo contrário, cada vez mais as
pessoas se afundam, deixando de lado seus ideais. Renato deixou se levar pelas drogas,
buscando nelas o conforto e esquecendo o mundo doentio em que viviam.

“Se o mundo é mesmo parecido com o que vejo, prefiro acreditar


no mundo do meu jeito”... (Renato Russo, ‘Eu era um lobisomem
Juvenil’).

O padrão de beleza criado pela mídia é perturbador, e parece que daqui a pouco
o mundo vai engolir todas as pessoas que estão fora desse padrão, assim como
aconteceu com os dinossauros que foram devastados por um meteoro. Em propagandas
que idealizam certo modo de vida, ou querem vender algum produto, é difícil achar uma
pessoa acima do peso, ou dita feia. O estético para o ser humano ultrapassa qualquer
valor sentimental. Idealizações de famílias perfeitas, corretas perante aquilo que o
sistema impõe, fazem parte do projeto de vida de todos.
A maioria das pessoas não enxerga tal manipulação da mídia ou do sistema.
Aquelas que enxergam, e mesmo assim seguem o modelo ideal de vida, devem
certamente ter se perguntando: Vale a pena ir contra os padrões, ou devo seguir o fluxo?
Diferentemente do que Renato Russo fez, tentando mudar o pensamento das pessoas,
esses indivíduos preferiram se adequar ao que foi imposto.
Viver em uma sociedade “linha de montagem” pode ser mais confortável, mas
limita o ser humano, seus pensamentos e seu modo de agir. Manter uma vida seguindo
os modelos tradicionais é, com certeza, mais seguro. Ser ímpar de uma sociedade como
Renato Russo nos torna especiais e privilegiados diante do mundo.

133
Referências
http://www.renatorusso.com.br/
http://www.pensador.info/autor/renato_russo/
http://renatorusso.letrasdemusicas.com.br/

A SÁTIRA NAS CANÇÕES DOS MAMONAS ASSASSINAS

Guilherme Severo Ferreira

Resumo: Neste ensaio, apresentaremos e argumentaremos sobre a sátira nas canções do


grupo Mamonas Assassinas que construiu um estilo inovador de fazer música. Também
irei falar sobre seu estilo de vida e a construção das suas letras, as quais praticamente
eram compostas por ironias, sobretudo em relação ao governo. O grupo via no deboche
uma forma engraçada de expor os problemas do nosso cotidiano.

Palavras-chave: Ironia; Diversão; Música; Humor.

Abstract: The aim of this essay is to present and discuss the satire of Mamonas
Assassinas’s songs which marked an innovative and successful style of making music. I
will also talk about their life style and lyrics, which practically consists of ironies
related to politics and the Brazilian government of that time. Irony was a resource used
by the band in their songs to expose our everyday problems.

Keywords: Irony; fun; music; humor.

A banda “Mamonas Assassinas” foi uma das maiores da história da música


brasileira. Apesar de a carreira ter durado menos de um ano, acabou fazendo muito
sucesso com seu estilo novo e alternativo de fazer canção, conquistando todo o país com
o seu rock cômico. Além de suas letras e músicas diferentes, eles inventaram um estilo
novo e totalmente inusitado sem se importar com o modo de se vestir, fantasiando-se,
muitas vezes de presidiário ou até de bichos de pelúcia.
O que mais chama a atenção na história da banda foi o seu jeito de fazer canção.
Suas letras muitas vezes simples ou de aparente baixo nível sempre chamaram a atenção
de todos e encantaram o gosto popular. Eles encontraram na música o meio de mostrar
suas ideias humorísticas sobre o Brasil – atitude pioneira entre a classe artística musical
brasileira.
No início da carreira da banda, eles faziam covers de outras bandas como Legião
Urbana, Titãs, ou de algumas internacionais como Guns n’Roses. Contudo, perceberam
que as canções feitas por eles mesmos faziam muito mais sucesso, sempre divertindo os
espectadores da plateia, porque esses achavam engraçado o seu jeito de fazerem canção.
Foi assim, de um jeito engraçado, que conheceram o vocalista Dinho da banda, em um
show em um barzinho. O público pediu para eles tocarem uma música da banda Guns
n’Roses, contudo, como não sabiam cantar, pediram ajuda de alguém da plateia. Dinho,
sem hesitar, foi cantar, divertindo todos com seu jeito diferente e acabando por ser
convidado a entrar na banda “Utopia” – primeiro nome dos Mamonas.
Um outro fato muito peculiar do início da banda é que há dois irmãos nela
mostrando mais união ainda. No começo, Samuel Reoli, irmão de Sérgio Reoli
(baterista), não se interessava muito por música, mas depois de algum tempo resolveu

134
começar a tocar baixo, entrando para a banda de seu irmão. O Bento Hinoto entrou na
banda graças a seu irmão, que trabalhava com Sérgio Reoli na Olivetti, e, sabendo que
Sérgio tocava bateria, resolveu apresentar seu irmão guitarrista.
No entanto, as letras de suas músicas não eram apenas “baixarias” como eles
falavam. Eles muitas vezes faziam uma crítica ao governo atual do país e da política
daquela época no Brasil. Observando as letras, percebemos que eles tinham vocabulário
rico e conhecimento sobre o que ocorria na atualidade da época, mas o grupo opta
exatamente pela sátira humorística.
Uma característica da banda também foi sempre usar frases e palavras coloquiais
da geração dos anos 90, como abreviações de palavras ou gírias da época. Podemos ver
essas colocações em praticamente todas as músicas do grupo. Percebemos esse aspecto
na canção “Chopis Centis”, a qual podemos notar a utilização já no nome da música da
palavra em tom debochado. A inserção de uma linguagem coloquial na canção
aparecerá também em “a gente fomos no shopping”, usando a formação da frase
completamente errada para provocar o riso.
Não só na música citada acima, mas em muitas outras podemos notar a
utilização de outras línguas e suas letras. Eles usavam o inglês e, em outras canções, o
espanhol – como podemos ver em “Pelados em Santos”. Ainda mais sobre essa música,
eles fizeram a versão em espanhol, “Desnudos em Cancun”, que também fez muito
sucesso. Outra música em língua estrangeira foi “Débil Mental” a qual ficou mais
conhecida na sua versão em português mesmo, mas considerada por muitos uma das
canções mais interessantes da banda, pois da ênfase ao andamento sonoro dos
instrumentos.
A banda nunca se importou muito com a formação bem comportada da canção, e
um exemplo é a mistura de línguas, as muitas frases coloquiais e o uso do português
incorreto. Outro aspecto que podemos observar na formação das suas letras são as
rimas. Em praticamente todos os versos, eles usam rimas, mas não as usam
corretamente. Há mistura de rimas alternadas, rimas interpoladas, demonstrando a
despreocupação com quaisquer projetos formais.
Em uma das músicas que fez mais sucesso da banda, senão a que mais fez,
podemos ver um exemplo clássico importantíssimo da literatura, o romantismo. Na letra
da famosa música “Pelados em Santos”, podemos notar de um jeito diferente da banda
escrever, com elogio e palavras cultas na tentativa de conquistar uma mulher – o que
não deixa de ser a retomada de uma antiga proposta estética. Em muitos versos,
notamos que eles falam do corpo e da beleza da mulher, como estão apaixonados e
como se deve fazer para conquistar o coração da dama. Em outros versos já mostram
um pouco do que têm para tentar conquistá-la, como a Brasília amarela que estava
sempre de portas abertas para a sua amada, viagens para o Paraguai e compras são
algumas das ofertas à amada.
Apesar de ter feito muito sucesso, essa música foi uma exceção ao estilo da
banda. As demais canções, como “Uma Arlinda mulher”, de uma forma nada
respeitável, o sujeito lírico esculacha o corpo e a mentalidade de uma pobre mulher.
Não só nesta música, como em muitas outras, podemos observar que a banda está longe
de um estilo romântico.
As mulheres são simplesmente mais um item entre tantos que serviam para
provocar o riso em suas letras. Contudo, a transformação de algo simples que eles viam
na rua rapidamente tomava nuances de humor e tema para suas composições.
O que pode ser notado também é que, muitas vezes, eles colocavam o que vinha
em suas cabeças na música para algumas rimas darem certo, sem simplesmente escolher

135
um assunto, portanto misturavam os assuntos para ver como ficavam sem hesitar. Um
exemplo desse processo é a música “Uma Arlinda mulher” em terceiro verso:

Você e uma besta mitológica


Com cabelo pixa im parecida com a Medusa
Eu disse isso
Pra rimar com a soma dos quadrados dos catetos
Que é igual a porra da hipotenusa

O que também merece destaque são eles falarem com o público ou com alguém
no meio da música, construindo um típico aviso ou produzindo um deboche sobre
alguém. Mas com quem eles mais falavam, seja no início, no meio ou no final das
músicas é com o produtor de seu único CD, o Rick Bonadio, que foi apelidado pela
banda de “Creuzebek” e conhecido por todos assim. Muito amigo da banda, sempre
faziam brincadeiras até nas canções, como no início delas, dando o aviso para
começarem a tocar, ou no final, quando o Creuzebek os ignorava e continuava com a
música até o vocalista Dinho ficar com falta de ar.
A banda “Mamonas Assassinas” sempre quis levar para o seu público o
divertimento através da música. Eles se divertiram muito fazendo música e produziam o
riso – que mal havia nisso. Não duvido que se não tivesse ocorrido o trágico acidente
com o seu avião, eles estariam ainda por aí, fazendo shows por todo o mundo e pelo
Brasil ainda levando seus fãs à loucura. Antes do acidente, eles já tinham agendado
shows para a Europa e por toda a América Latina.
O que levou a banda a fazer muito sucesso foi também a alternância de estilos
musicais. Eles não tocavam só uma forma de rock clássico, mas sim misturavam estilos,
como rock metal em “Debil mental”, alguns MPB, um pouco de reggae, etc.
A banda “Mamonas Assassinas” apresentou para os fãs e para o povo brasileiro
um conceito diferente de música, mostrando que a partir do riso da sátira era possível
sim questionar os padrões de uma época. Não podemos ignorar que, no enterro dos
membros da banda, compareceram aproximadamente 65 mil pessoas com apenas um
ano de existência do grupo. É arte também apaixonar as massas.

DE CLARICE LISPECTOR À GERAÇÃO BEAT

OS MISTÉRIOS DE LISPECTOR
Camilla Zachello

Resumo: O século XX foi uma época revolucionária, marcada por conquistas


tecnológicas, desenvolvimento econômico, artístico e cultural. Após a Segunda Guerra
Mundial, a linguagem adquire uma nova face, caracterizando-se por traços psicológicos
com Clarice Lispector e pela volta do regionalismo com Guimarães Rosa. A Geração de
45, período literário em que se incluem estes escritores, foi influenciada pelo cenário
sócio-político do Brasil, que vivia o fim da Era Vargas, a Ditadura Militar e o contexto
da Guerra Fria. Lispector exprimia, através de seus textos, o paradoxo, o momento
interior e o subjetivismo do ser humano, enquanto Guimarães buscou no sertão
brasileiro a inspiração para suas obras. Sendo a linguagem rebuscada de Clarice um

136
aspecto inovador e inigualável, propomo-nos a desvendar seus mistérios, utilizando o
romance A Hora da Estrela como objeto de estudo.

Palavras-chave: Lispector; linguagem; A Hora da Estrela;

Abstract: The twentieth century was a revolutionary period, marked by technological


achievements, as well as economical, artistical and cultural developments. After the
Second World War, the language would acquire a new face, characterized by Clarice
Lispector’s psychological aspects and by the return of regionalism with Guimarães
Rosa. The 1945 Generation, literary period where these writers are included, was
influenced by the Brazilian social-politic scene, that was living the end of Vargas’ Era,
Military Dictatorship and the Cold War context. Lispector expressed, through her texts,
the paradox, the inner moment and the subjectivism of human being, while Guimarães
searched the inspiration for his works in the Brazilian backcountry. Being Clarice’s
language an innovator and unapproachable aspect, we propound to unravel here
mysteries, using the romance A Hora da Estrela as an object of study.

Keywords: Lispector; language; A Hora da Estrela.

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas


tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também
sou o escuro da noite.
Clarice Lispector

Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, e transferiu-


se com a família, aos dois meses de idade, para o Nordeste brasileiro. Quando
completou doze anos, mudou-se para o Rio de Janeiro. Perdeu a mãe muito cedo e, em
1942, começou a trabalhar como jornalista. No ano seguinte se casou com o colega e
diplomata Maury Gurgel Valente. Seu primeiro romance intitula-se Perto do Coração
Selvagem e foi publicado quando ainda tinha dezessete anos em 1944. Antes de 1945,
quando terminou a Segunda Guerra Mundial, Clarice já estava na Europa, em Nápoles,
com o marido. Morou também na Suíça, na Inglaterra, nos Estados Unidos, e voltou
divorciada para o Brasil na década de 60. Publicou também contos, unanimemente
elogiados; crônicas e livros infantis (escritos a pedido do filho).
Hoje em dia sua obra é traduzida e admirada em todo o mundo. A linguagem
complexa, sofisticada e subjetiva dá aos seus textos uma singularidade dificilmente
encontrada na ficção contemporânea. As principais obras de Clarice são os romances:
Perto do coração selvagem (1944); O lustre (1946); A cidade sitiada (1949); A maçã
no escuro (1961); A paixão de G.H. (1946); Uma aprendizagem ou o Livro dos
prazeres (1969); Água viva (1973); A hora da estrela (1977) e os contos: Laços de
Família (1960); A legião estrangeira (1964); Felicidade clandestina (1971); A via-
crúcis do corpo (1974).
A constante busca pela interiorização e a procura da própria identidade são
temáticas que atingem a essência do ser humano. A utilização constante do monólogo
interior, isto é, de um discurso não pronunciado que ocorre apenas na mente dos
personagens, dimensiona o fluxo de consciência, fazendo com que o leitor seja capaz de
conhecer conteúdos sutis e profundos da alma do personagem em questão. Esse recurso
permite que analisemos o tempo interior – tão em descompasso com o tempo real.
Se os livros de Clarice utilizassem outra forma de linguagem, não seria possível
uma análise profunda dos pensamentos dos personagens, já que, no monólogo interior,

137
somos introduzidos diretamente à vida destes, sem interferência ou comentário do autor.
Segundo Dujardin, escritor francês e precursor dessa técnica, o monólogo interior difere
do tradicional pelo fato de ser uma expressão do íntimo, do mais próximo do
inconsciente, desprovido de qualquer organização lógica.
Percebemos, em “A Hora da Estrela”, a existência de vários tempos que são
tangentes entre si. Na passagem a seguir, Rodrigo S.M. descreve o tempo presente,
comum a ele e à personagem principal:

Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre


mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e
eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a
eternidade é o estado das coisas neste momento. (Lispector,
1977, p.18)

Henri Bergson, filósofo francês, define de maneira precisa a relação do tempo


contínuo, afirmando que o tempo nunca é exterior ao homem, sendo, portanto, sempre
presente. Enquanto recordamos o passado, vivenciamos o presente. O tempo nunca
para. Na obra de Clarice, essa temática não é sutil. O narrador, a escritora e a
personagem principal parecem presenciar o mesmo momento, porém em realidades
diferentes.
A Hora da Estrela foi publicado em 1977, pouco antes da morte de Clarice,
sendo este, portanto, seu último livro. A obra é a única que enfatiza a realidade objetiva
e tem intenção social. Para entendermos o porquê dessa mudança, é necessária a
compreensão do período histórico e das circunstâncias da vida da autora. A década de
70 foi marcada por contrastes, abrangendo o apogeu e o declínio do golpe militar e a
imigração de milhares de nordestinos para a região sudeste, em busca de emprego e
melhores condições de vida. Nessa época, a escritora sofria de câncer, doença que a
levou à morte. Talvez, motivada por tais fatos, Clarice tenha resolvido escrever um
romance de abrangência social, trazendo como personagem principal uma alagoana.
A história inicia com uma discussão de como Rodrigo S.M., narrador fictício
criado por Lispector, faria para escrever o romance. Após longa análise sobre o estilo e
a estrutura do texto, Rodrigo opta pela simplicidade. Resolvido o conflito, Rodrigo
começa a contar a história de Macabéa, personagem protagonista que, assim como os
nordestinos na década de 70, migrou de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde trabalhava
como datilógrafa e morava com mais quatro colegas de quarto, balconistas das Lojas
Americanas. Macabéa tem apenas dezenove anos e é descrita como indiferente para a
sociedade, pois ninguém a repara ou se importa com sua presença. Ela é feia, raquítica,
solitária, tem péssimos hábitos de higiene, adora ouvir a Rádio Relógio, coleciona
anúncios banais de jornal e deseja ser como Marilyn Monroe. Uma de suas principais
características é o fato de nunca questionar. A personagem não sabe quem é nem do que
gosta, ou seja, é completamente alienada ao mundo real. É, enfim, “alguém sem vida
interior, sem futuro e com um passado sem qualquer importância”.
Após conhecer o metalúrgico Olímpico de Jesus, começa a namorá-lo. O moço,
entretanto, é inculto e grosseiro. Seu objetivo é ascender socialmente e tornar-se
deputado – possibilidade que Macabéa não pode oferecer-lhe. Então, Olímpico a troca
por Glória, sua colega de trabalho. Seguindo o conselho da própria Glória, Macabéa
procura uma cartomante, ex-prostituta e cafetina, que, após descobrir sobre a penosa
vida da alagoana, promete-lhe um futuro brilhante, que inclui uma vida feliz ao lado de
um estrangeiro rico e alourado. Contudo, ao sair da consulta, é atropelada por um
luxuoso Mercedes-Benz. Então, Rodrigo S.M. estabelece com o leitor um diálogo,

138
questionando-se sobre o futuro da personagem: “Macabéa vai morrer? Como posso
saber?”. O narrador se decide e anuncia o falecimento de Macabéa. No momento da
morte, Macabéa alcança sua hora de estrela.
Algumas observações são importantes para o maior conhecimento de Clarice
Lispector e de sua obra. A presença de um narrador masculino, por exemplo, evidencia
um caráter mais objetivo, menos intimista e sentimental, como relata o próprio Rodrigo:
“Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando
pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que
quer dizer realidade.” (Lispector, 1977, p.17). Um homem é apto a entender a realidade
concreta, sem interferir tanto quanto o faria a mulher. Há um vínculo entre Clarice e
Rodrigo S.M. Ambos se confundem, pois Rodrigo é como um heterônimo de Clarice,
contudo escreve de outra forma. Na seguinte frase retirada do livro, percebe-se a
mistura da realidade vivida pela escritora com a vivida pelo narrador fictício:

Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando


violino na esquina. Devo explicar que este homem eu o vi uma
vez ao anoitecer quando eu era menino em Recife e o som
espichado e agudo sublinhava com uma linha dourada o mistério
da rua escura. Junto ao homem esquálido havia uma latinha de
zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam com
gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo e só agora
brotou-se-me o sentido concreto: o violino é um aviso. Sei que
quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei
música, música, música. (Lispector, 1977, p.82)

Segundo Benedito Nunes, A Hora da Estrela deixa de ser uma novela


especificamente social e torna-se um “drama de linguagem”, um questionamento
metafísico sobre o significado último da existência. Além disso, o narrador tem uma
relação com Macabéa. De um lado, ele a compara com capim e diz que a moça é
incompetente para a vida; de outro, ele se iguala a ela (“Sobrei e não há lugar para mim
na terra dos homens”) e sente-se culpado pela situação de Macabéa:

Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor


– no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós
nos intertrocamos. (Lispector, 1977, p.22)

Detendo-nos na personagem principal, encontramos algumas particularidades e


sua obra. Mais importante do que sua origem modesta, sua tia repressora, sua aparência
física, sua virgindade é sua medíocre personalidade e seu despreparo para a vida. Nada a
desespera, ela não tem cultura e muito menos senso crítico. O narrador Rodrigo S.M.
descreve a insignificância e o desconhecimento de Macabéa dela mesma através das
seguintes metáforas:
Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda
e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua
vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia
imagem alguma. (Lispector, 1977, p.25)

Outro recurso interessante utilizado pela escritora é a série de doze títulos


paralelos ao principal apresentados no corpo do próprio texto. De acordo com Sergius
Gonzaga, em seu livro Curso de Literatura Brasileira:

139
O último título é uma espécie de pungente referência a Macabéa,
a Rodrigo S.M. e a si própria: Saída discreta pela porta dos
fundos.

Uma característica marcante na obra de Clarice é a “epifania”, que corresponde


ao momento que o personagem sente uma iluminação de sua consciência, despertando-
se para a vida. Esse fato o muda completamente. O enredo é considerado sempre
secundário. O importante são as ações, pois estas ilustram a psique do personagem.
A passagem a seguir, além de parecer unir o tempo de Clarice ao tempo vivido
pelo narrador, coloca ambos no mesmo nível de consciência e confirma a tese de que a
vida pessoal da autora teve papel fundamental na construção do romance. Levando-se
em consideração que a autora sofria de câncer, concluímos que a mesma sentia a morte
cada vez mais perto (na esquina). Retira-se daí também a ideia de que Rodrigo S.M.
representa Clarice, atuando como um heterônimo:

Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão


da narrativa: é que esta é acompanhada do princípio ao fim por
uma levíssima dor de dentes, coisa de dentina exposta. Afianço
também que a história será igualmente acompanhada pelo
violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina.
A sua cara é estreita e amarela como se ele já tivesse morrido. E
talvez tenha. (Lispector, 1977, p.24)

O narrador, no instante da morte de Macabéa, dá-se conta de que nós todos


estamos destinados ao mesmo fim. Pode não haver semelhança entre a personagem
principal e Clarice Lispector ou entre a protagonista e nós mesmos. Contudo, a hora da
morte nos aproxima, torna-nos iguais, dá-nos feição de humanos.

Na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é


o instante de glória de cada um, e é quando como no canto coral
se ouvem agudos sibilantes. (Lispector, 1977, p.29)

A importância de Lispector vai além da técnica de linguagem. Traduzir a


consciência humana não é tarefa fácil, visto que o homem é o ser mais complexo, em
termos de pensamento, que existe. Com um verdadeiro talento para entender e expressar
as questões íntimas do indivíduo, ela é capaz de tocar o leitor e levá-lo a refletir. O
intimismo, o questionamento do ser e a valorização da palavra são características de
Clarice Lispector: aquela que expressa em vocábulos os contínuos medos do homem. É
necessária uma visão mais sensível do mundo para compreender sua grandeza. O maior
mistério é, com certeza, o que está escrito nas entrelinhas.

Referências
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rios de Janeiro: Rocco, 1977.
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Brasil: Leitura XXI, 2004.
HELP! Sistema de Consulta Interativa, Técnicas de Redação e Literatura. São Paulo:
Jornal Estadão.
DUJARDIN, Édouard. Les Lauriers Sont Coupés. França, 1888.
BERGSON, Henri. Matière et Memoire. Paris, 1939.

140
ENTRE “LE CHIEN ET LE LOUP” EM NELSON RODRIGUES
Thaís Viegas Cigolini

Resumo: Os chamados “anos rebeldes”, entre 1960/70, foram marcados por uma
explosão da juventude no Brasil e uma considerável mudança na economia, política,
cultura e comportamento da população. O sentimento que nascia era de mudança,
repressão, liberdade. No Brasil, os jovens lutavam contra a ditadura militar; as mulheres
contra o patriarcalismo, e o mundo a favor de um novo sentimento de mudança capaz de
contagiar corações e mentes. Nelson Rodrigues faz de suas peças uma miniatura da
sociedade contemporânea, onde os relacionamentos já não eram tão estáveis, e os
homens viviam em constante medo da autonomia conquistada pelas mulheres no
período. Mas, afinal, o que levou Nelson Rodrigues a escrever tantas peças em meio a
uma única temática? Não é à toa que todas suas produções ilustram a instabilidade de
relacionamentos da sociedade carioca no século XX. Propomo-nos aqui a discutir essa
relação.

Palavras-chave: Nelson Rodrigues; autonomia feminina; instabilidade conjugal.

Abstract: The years between 1960/70 were marked by an explosion of youth in Brazil
and a considerable change in the economy, politics, culture and behavior of the
population. The buzzwords were change, repression and freedom. In Brazil, young
people were fighting against the military dictatorship, woman against patriarchy and the
world in favor of a new sense of change capable of infecting the hearts and minds,
Nelson Rodrigues used to show on his plays a miniature of contemporary society, where
relationships were not as stable and men lived in constant fear for the autonomy
achieved by women in the period. What motivated Nelson Rodrigues to write so many
plays in the single theme? No wonder that all of his productions illustrate the instability
of relationships of Rio society in the twentieth century. I propose here to discuss this
relationship.

Keywords: Nelson Rodrigues; female autonomy; instability in marriage.

“Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos


outros, ninguém cumprimentaria ninguém.”
Nelson Rodrigues

Não é difícil escutarmos que o amor é, sem dúvida, o sentimento que mais
aproxima o ser humano da arte. Os livros sempre procuraram mostrar o interior das
pessoas e, embora alguns movimentos literários sejam separados por séculos, os
sentimentos estão presentes em cada um deles, diferindo-se apenas dos moldes
histórico-literários aos quais eles foram baseados. O amor capaz de enfeitiçar o olhar
dos apaixonados e fazer sentir o pulsar da vida nas suas múltiplas sensações é o mesmo
que também provoca o sofrimento quando foge de nosso alcance e mergulha em outras
paixões, deixando vazios onde tudo que podemos enxergar é uma linha muito tênue
entre amor e ódio. Na realidade, os conflitos entre corpo e alma presentes desde a época
do Barroco são os mesmos que atormentam as relações entre homens e mulheres até
hoje. Uma imagem politicamente correta construída a partir de casamentos felizes e
uniões estáveis mascara as insatisfações que variam entre o tédio de um casamento de

141
anos e o desejo de inovar, experimentar outros prazeres do corpo e conhecer novas
pessoas. Embora esse pensamento seja visto quase como normal pela maioria das
pessoas hoje em dia, ele não é. Os pudores da sociedade, apesar de menos
conservadores que em outras épocas, continuam existindo. Aparentemente, todos
querem transparecer um casamento feliz no qual a fidelidade é o ponto culminante,
ainda que possuídos por uma vontade de jogar tudo ao alto e ir gozar de outros prazeres
da vida.
Foi na década de 60 que os jovens participaram de mudanças com uma
intensidade nunca vista antes na história. A revolução juvenil não se restringia apenas à
política e economia, ela se refletiu de maneira bastante nítida no comportamento das
pessoas que buscavam a liberdade desde o modo de se vestir, com minissaias, roupas
coloridas e cabelos compridos, até a maneira com que se relacionavam. Mulheres
conquistaram a tão sonhada autonomia, ou seja, não só poderiam trabalhar como
também tinham o direito de se expressar, logo não se viam mais presas ao estereótipo
tradicional de ser uma “boa esposa”, o qual implicava submissão aos maridos e
constante trabalho doméstico. Até sutiãs foram queimados em praça pública em sinal de
protesto! Iniciava-se uma era de relacionamentos conturbados, em que tanto homens
quanto mulheres haviam de lutar para preservar seus matrimônios. O papel não era mais
garantia de união eterna, e o divórcio se tornava bastante popular. É exatamente essa
situação que Nelson Rodrigues procura demonstrar em suas peças.
Para Nelson Rodrigues, não existe união perfeita. Cada uma de suas peças tem
a intenção de demonstrar um tipo comum de discórdia entre casais. Sua primeira
publicação, A mulher sem pecados, em 1941, já é uma prévia da infidelidade que viria a
conturbar as relações no futuro. Trata-se de uma crítica moral que um homem faz à sua
esposa ao desconfiar que ela o estivesse traindo. A história gira em torno do excessivo
ciúme que Olegário sentia por Lídia, sendo capaz de contratar uma pessoa para que a
vigie durante o dia. Embora Lídia nunca tivesse sido infiel, a desconfiança degradou a
vida do casal de tal forma que Lídia se vê obrigada a fugir do marido.
Os anos foram passando, e Nelson cada vez mais abusava das histórias
cotidianas de sua Era. Suas peças não retratavam apenas uma infidelidade psicológica.
O contraste entre a verdade interior das personagens e a máscara social que elas
apresentavam é constantemente apresentado, e é comum vermos a mudança de
comportamento entre elas no decorrer da narrativa, como quando uma mulher, até então
presa à sua integridade moral, resolve se libertar de tal censura.
Segundo a teoria rodrigueana, suas personagens são a exata representação das
pessoas reais. Hipócritas são os que negam. Em seu livro A vida como ela é, Nelson
deixa claro que aqueles são os sentimentos de todas as pessoas, sem exceção. Algumas
palavras de Nelson nos permitem inferir isso:

Combatido, me chamaram de tarado, de cérebro doentio. Poucas


pessoas, algumas exceções como Gilberto Freyre, José Lins do
Rego e Manuel Bandeira, me estimulavam. Mesmo o Manuel
Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens
éramos odiados, e disse: ' Nelson, por que você não faz uma peça
em que os personagens sejam assim como todo mundo?’ Eu
respondi da forma mais singela: 'Mas meu caro Bandeira, meus
personagens são como todo mundo. ' Porque uma coisa é verdade:
quem metia ou mete o pau no meu teatro está procedendo como
um Narciso às avessas, cuspindo na própria imagem.

142
(RODRIGUES, Nelson http://www.idademaior.com.br/vida-
memoria-3-agosto.html)

Nelson Rodrigues retratava a vida como ela era. A diferença é que procurava
mostrar um lado enrustido e obscuro das pessoas, embora não menos presente.
Mostrava as personagens em seu íntimo, revelando os desejos mais ilícitos do homem.
O autor mergulhava no inconsciente e fazia com que até mesmo a pessoa mais moralista
se imaginasse sem roupas diante de suas peças. Vale lembrar que, embora Nelson visse
o amor com bastante erotismo, isso não significava mais sexo do que sentimento.
Em Divina Comédia, Nelson aborda outro constante problema enfrentado pelos
casais vigentes da sociedade carioca: o tédio. A história relata a vida de um casal
sufocado pela monotonia. O único contato que exercem é quando Marlene vai estourar
os cravos do marido. Pensam inclusive em divórcio, mas a comodidade é tão grande que
nem isso mais se tornou um objetivo para eles. No entanto, tudo parece mudar quando
chega um novo casal na vizinhança que, por sua vez, é dominado pelo fogo da paixão.
Vivem em constante lua de mel, transparecendo um casamento digno de invejar
qualquer mulher. É por aí que o primeiro casal resolve iniciar uma competição. Apenas
do lado de fora da casa, vivem aos beijos. Contudo, quando não vistos por ninguém de
fora, continuam com o mesmo tratamento hostil e desinteressado de antes. O tempo vai
passando, e os dois casais continuam competindo para ver quem é o mais feliz. É aí que,
pela primeira vez, eles começam a perceber que se amam de verdade e que podem, sim,
reviver a paixão de quando se conheceram. A partir desse momento, não há como
imaginar o que acontece dentro daquelas quatro paredes...
Apesar do mundo conturbado que Nelson exemplificava em suas peças, ele
dizia acreditar no amor eterno. Não era por que o tédio havia dominado a relação que o
amor havia terminado. Talvez o que faltasse era apenas um pouco mais de paixão, de
conquista. Nem mesmo a traição justificava a falta de amor. A infidelidade podia se dar
por diversos motivos, desde ausência na relação, até mesmo falta de caráter, o que ainda
não é falta de amor. Até mesmo quando um dos cônjuges não é fiel, o outro pode ser.
Uma das mais célebres e conhecidas frases do escritor, extraída do livro Teatro quase
completo, retrata exatamente isto: “Amar é ser fiel a quem nos trai”. Nelson chegou a
confessar que seu maior sonho sempre foi viver um grande amor que durasse a vida
inteira. Aliás, esse era e sempre será o sonho de toda humanidade. Ele acreditava
também ter sentimentos muito nobres. Para o autor, “Todo amor é eterno. Se acabou,
não era amor”. No entanto, até lá, precisava salvar a plateia “enchendo o palco com
uma rajada de monstros”. A vã ideia de que nada possa ser perfeito não diminui a
intensidade e a eternidade dos sentimentos. Ninguém é perfeito até que você se
apaixone.

Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na


esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras
que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.
(RODRIGUES, Nelson.
http://www.velhosamigos.com.br/AutoresCelebres/NelsonRodrig
ues/nelsonrodrigues)

O autor de “O beijo no asfalto” se tornou famoso por retratar a infidelidade.


Baseado em O homem fiel, ele ousou dizer que o único homem capaz de ser totalmente
fiel à sua esposa era o asmático. Este que, por sua vez, mal tinha fôlego para satisfazer
uma única esposa. A peça conta a história de uma mulher que, cansada da infidelidade

143
masculina, decide que aceita tudo, no entanto a única exigência que faz a um marido é
que ele não a traia jamais. Casa-se então com um asmático. O problema é que cada vez
que ela deseja beijá-lo, os ataques acontecem. Cansada de uma vida sem amor, casada
com um homem incapaz de satisfazê-la como mulher, ela busca um ex-namorado que,
embora cafajeste e galanteador de todas as mulheres, tinha todo o fôlego do mundo para
completá-la na cama. Essas situações apenas comprovam a teoria de Nelson, afinal, ele
só acredita no amor capaz de resistir a uma traição. O livro Flor de Obsessão: as 1000
melhores frases de Nelson Rodrigues já nos trazia essa ideia: "Ninguém trai o seu ódio,
e repito: o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor". As pessoas só
conseguem amar e ser felizes quando mascaram seu lado mau-caráter e dominante.
Expô-lo explicitamente como Nelson Rodrigues fez pode gerar controversas de muitas
críticas. No entanto, faz cada um libertar, mesmo que inconscientemente, o “monstro”
que há dentro de si.
Nelson Rodrigues sempre foi um escritor controverso e inovou a dramaturgia
ao escrever sobre os mais polêmicos temas como o adultério e o homossexualismo –
temas nunca antes expostos. Dessa forma, é impossível ler um conto de Nelson sem
traçar associação com o conturbado período ao qual ele vigorou. Analisando uma das
mais famosas peças do dramaturgo, O beijo no asfalto, publicado em 1961, a qual
apresenta um enredo aparentemente simples, percebemos uma forte crítica à sociedade.
Um homem é atropelado e, antes de morrer, pede um beijo a um desconhecido, Arandir,
que passava pela rua. Um repórter assiste ao beijo e faz desse acontecimento um enorme
sensacionalismo. A fragilidade humana é, sem dúvida, o principal aspecto retratado na
trama. Arandir muda drasticamente sua imagem no desenvolver da história. Ele é
apresentado inicialmente como um homem politicamente correto e termina delineado
como um homossexual enrustido, em uma época em que a liberdade sexual ainda era
distante.
Mas, afinal, de onde desencadearam tantas histórias malucas como as de
Nelson Rodrigues? Não podemos atribuí-las ao simples fato de que foram escritas em
um período também conturbado. A verdade é que Nelson sempre foi um rebelde. No
subúrbio carioca onde cresceu, passava horas espionando a vizinhança e procurando
sinais de adultério. Isso sem contar que gastava maior parte do seu dinheiro em
prostíbulos. Na escola, sempre fora irreverente, questionando todos os professores. Ele
mesmo se denomina um “anjo pornográfico”, afinal, sempre foi um exemplo clássico de
antíteses, pois, desde sua primeira peça, foi taxado ao mesmo tempo de imoral e
moralista. Para alguns, era um conservador exacerbado; para outros, um rebelde louco
por mudanças, e ainda outros o viam como simplesmente um gênio. Nelson era assim,
escrevia como um louco, sempre chegava atrasado à redação onde trabalhava, mas nem
por isso deixava seu trabalho atrasar. Bastavam alguns minutos para que ele escrevesse
os textos que distraíam todas as donas de casa dos anos 50 e 60.
Nelson não tinha visão político-partidária, embora fosse um artista
revolucionário; suas peças são um protesto contra o estabelecido, contra a ordem, a
moral vigente e a família. Ele revolucionou a dramaturgia e a cena brasileira. O teatro
no Brasil se divide em duas fases: antes e depois de Nelson Rodrigues. Ele foi genial
como dramaturgo, contista, cronista crítico esportivo, romancista, jornalista. Sua obra é
atemporal, afinal, ele trata das questões da alma humana.
Impossível traçar uma ideologia que aprisione a obra de Nelson Rodrigues. Ele
vivencia os extremos. Cada personagem vai do caos à lucidez, do puritanismo à
selvageria sexual das falsas virgens de saias colegiais, da mediocridade podre das
senhoras de família à força sobrenatural das casadas traídas. Sempre encobrindo um
erotismo fantasioso, semelhante às personagens que colocam o amor à prova, ao

144
desafiar seus amados, esperando inconscientemente – ou não – que os mesmos lhes
esmurrem – em nome do amor, evidentemente. Parece que todas suas personagens estão
encobertas em uma névoa, mostrando sempre alguém querendo esconder-se de si
mesmo e passando uma imagem irreal, mas repleta de sentimentos contraditórios. Esse
é o ser humano apontado por Nelson Rodrigues: dualista, verdadeiro. Nada mais
rodrigueano do que tornar visível o que está escondido no fundo de nossas almas.

Referências
RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto. São Paulo: Nova Fronteira, 2005.
RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é. São Paulo: Bom de ouvir.
RODRIGUES, Nelson. Teatro quase completo. São Paulo: Nova Fronteira, 1965.
RODRIGUES, Nelson. Flor de Obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson
Rodrigues. São Paulo: Cia das letras, 1992.
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/nelson-rodrigues/nelson-rodrigues.php
http://www.moisesneto.com.br/estudo61.pdf

O VESTIDO DO ANJO PORNOGRÁFICO

Ana Paula Piva Panzenhagen

Resumo: Esse ensaio visa analisar a obra “Vestido de noiva” de Nelson Falcão
Rodrigues. Através dessa peça, Nelson faz uma crítica à sociedade carioca dos anos
quarenta, representando-a a partir de suas personagens como Alaíde, Pedro, MME.
Clessi, Lúcia e outros.

Palavras-chave: Nelson; Vestido; século XX; sociedade carioca.

Abstract: This essay aims to analyse the piece Fiancée dressing of Nelson Falcão
Rodrigues. He criticizes the society of Rio de Janeiro in the 1940s by introducing
certain characters like: Alaíde, Pedro, MME. Clessi, Lúcia and so on.

Keywords: Nelson; Dress; twentieth century; carioca society

Sou um menino que vê o amor pelo buraco da


fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei
de morrer menino. E o buraco da fechadura é,
realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e
sempre fui) um anjo pornográfico.
Nelson
Rodrigues

Nelson Falcão Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1912 em Recife, quinto


filho dos catorze que o casal Maria Esther Falcão e o jornalista Mário Rodrigues
puseram no mundo. Seu pai, por causa de problemas políticos, se mudou para o Rio de
Janeiro onde foi trabalhar no jornal O correio da manhã. Logo após Maria Esther foi
para a cidade maravilhosa com os filhos. Aos treze anos e meio de idade, em 29 de
dezembro de 1925, Nelson começou a trabalhar para seu pai no jornal “A manhã” como
repórter de polícia, ganhando trinta mil reis por mês. Desde então, Nelson já surpreendia

145
todos: uma história monótona, como o atropelamento de uma velinha na Rua São
Francisco Xavier no bairro Maracanã, tornava-se, em suas mãos, uma saga
surpreendente. No século XX, a história de pactos entre jovens namorados, que na
época acontecia frequentemente, era o que mais motivava Nelson a sair pelas ruas à
procura de matéria para o jornal e, com apenas alguns dados, como o nome e a
aparência física, Nelson criava uma história de amor proibido, eternizando a morte.
Em sete de fevereiro de 1928, Nelson Rodrigues publicou seu primeiro artigo
semanal com o nome de “A tragédia da pedra...” na página principal do jornal, onde
outros escritores como Monteiro Lobato e Agripino Grieco assinavam artigos. O jornal
estava cheio de dívidas, e Mário Rodrigues passava a ser o diretor, porém esse só
permanecera um dia. O novo dono acabara intervindo nos artigos, e isso fez com que
sua família saísse do jornal. Se passaram quarenta e nove dias, e o pai de Nelson lançou
o seu próprio jornal: o “Crítica”. Poucos dias depois, o coronel Carlos Reis mandou
Mário Rodrigues e toda a sua família para a prisão, acusados de serem o mandante do
assassinato do argentino Carlos Pinto, repórter do A democracia. Nelson foi o único que
não fora para cadeia, já que estava viajando para Recife, pois tinha entrado em
depressão. Sua prima o fez voltar para o jornal Crítica, tirando-o da depressão.
Em 26 de dezembro de 1929, sem matéria para inserir no jornal, Nelson acabara
escrevendo sobre a separação de Sylvia e José Thibau. No dia 27 de dezembro, Sylvia
entrou na redação do jornal Crítica procurando por Mário, porém, ao saber que esse não
se encontrava, foi à procura de Roberto, irmão de Nelson, e deu-lhe um tiro no
estômago. Nelson viu e ouviu tudo – foi a primeira cena de violência que presenciara.
Seu irmão faleceu no dia 29 do mesmo mês. Após 67 dias da morte de seu irmão, seu
pai Mario Rodrigues sofreu de trombose cerebral e faleceu de uma encefalite aguda
acompanhada de hemorragia.
Em maio de 1931, Mário Filho foi chamado por Roberto Marinho para assumir a
página de esportes de O Globo. Mário aceitou desde que pudesse levar seus irmãos
Nelson e Joffre. Em 1932, Nelson teve sua carteira assinada pelo jornal, ganhando
quinhentos mil réis por mês. Esse dinheiro ia para a sua mãe para ajudar a sustentar a
casa, entretanto Nelson recebia uns trocados para comprar cigarros.
Em 1934, Nelson estava com sintomas de tuberculose pulmonar, doença muito
comum na época. Ele foi então para Campos do Jordão em São Paulo para começar o
tratamento. Lá continuava recebendo seu salário, pois Roberto Marinho sabia da
dificuldade da família Rodrigues. Nos catorze meses que ficara internado, Nelson
recebera apenas uma visita de seus dois irmãos Milton e Augustinho. Em abril de 1936,
a doença atacou seu irmão Joffre, com vinte e um anos, e esse morreu sete meses
depois.
Em 1937, Elza Bretanha foi contratada pela redação do jornal O globo. Nelson
logo se aproximou de Elza, e esses marcaram para se casar no dia do aniversário de
Elza: 08 de maio de 1939. Porém, em 13 de maio, a tuberculose atacou Nelson
novamente. Passou quatro meses internado. Em 29 de abril de 1940, Elza e Nelson se
casaram no civil e, em 17 de maio, se casaram no religioso.
Nelson Rodrigues começara a escrever a peça “Vestido de Noiva”, sua segunda
obra teatral, em janeiro de 1943, em sua casa sempre de madrugada. Terminou a peça
em sete dias. Um ato a cada dois dias, Alaíde, Lúcia, Pedro e Madame Clessi pareciam
contar-lhe a história, e Nelson a escrevia com facilidade. Ao terminar a peça, entregou-a
para Elza que fez vinte cópias para serem distribuídas a críticos, jornalistas, diretores,
empresários, atores e amigos. O primeiro a receber a cópia foi Manuel Bandeira em fins
de janeiro. Dois dias depois, Nelson ligou para Bandeira e ouviu dele apenas elogios.

146
Sem dúvida, o teatro desse estreante desnorteia bastante, porque
nunca é apresentado só nas três dimensões euclidianas da
realidade física. Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem
possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter
como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha
imaginação. ‘Vestido de Noiva’, em outro meio, consagraria o
autor. (MANUEL BANDEIRA, 1943, jornal A manhã)

“Vestido de Noiva” é a obra mais conhecida de Nelson Rodrigues, encenada por


jovens alucinados por teatro e comandada pelo polonês Zbigniew Ziembinski com oito
meses de ensaios, oito horas por dia. Com uma linguagem simples que faz com que
leiamos em minutos sua obra, ele consegue intercalar os planos da realidade, da
alucinação e da memória – processo inovador na época, já que esses planos aparecem de
forma simultânea. Através da intersecção desses três planos, tem-se o conteúdo da peça.
A obra é a história de um triângulo amoroso formado por Alaíde a qual rouba o
namorado da irmã Lúcia e casa com ele, o Pedro. Entretanto, Pedro e Lúcia viram
amantes e formam um complô, o que leva Alaíde à loucura e à morte. A mulher sai
enlouquecida pela rua, é atropelada e levada para um hospital, onde fica entre a vida e a
morte em uma sala de operações cirúrgicas. A partir daí, tem-se a história do Vestido de
Noiva, intercalado entre o plano da realidade, em que Alaíde está sendo operada, entre o
plano de alucinação, em que Alaíde se encontra com Madame Clessi e entre o plano da
memória, em que ocorre a reconstrução de seu casamento com Pedro.

Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem


violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio.
(RODRIGUES, 2004, p. 9)

Plano da realidade: O primeiro que aparece na peça. Inicia-se o som estrondoso de um


acidente seguido de repórteres que comunicam o atropelamento de uma mulher. Logo
após o plano da realidade, estamos em uma sala de operações cirúrgicas. Mais tarde a
mulher é identificada como Alaíde Moreira de vinte e cinco anos, mulher do industrial
Pedro Moreira. Alaíde delira na sala de cirurgia, ocorrendo a intercalação dos três
planos. Por fim, a morte de Alaíde é anunciada pelos médicos.

Luz no plano de alucinação: Surge na escada uma mulher.


Espartilhada, chapéu de plumas. Uma elegância antiquada de
1905. Bela figura. Luz sobre ela. (RODRIGUES, 2004, p.15)

Plano da alucinação: Todos os desejos de Alaíde se libertam. Divagando, ela procura


por Madame Clessi, uma prostituta do início do século que fora assassinada por um
amante adolescente. Essa curiosidade por MME. Clessi é despertada em Alaíde porque,
no plano da memória, Alaíde acha um diário dela em seu sótão antes de se casar. O
casamento sem muitas aventuras e o cotidiano banal projeta os impulsos e desejos na
figura da prostituta em Alaíde.

Luz no plano da memória. Alaíde, vestida realmente de noiva,


está sentada numa banqueta. Agora o espelho imaginário se
transformou num espelho verdadeiro, grande, quase do tamanho
de uma pessoa. A grinalda não está pronta ainda. Alaíde
sozinha. (RODRIGUES, 2004, p. 33)

147
Plano da memória: Cenas do casamento de Alaíde com Pedro. Aparece a Mulher
do Véu, que mais tarde é revelada como Lúcia, irmã de Alaíde. Nesse plano a história
de MME. Clessi e como ocorreu seu assassinato é revelado.

ALAÍDE - Me lembrei agora! (noutro tom) Ele está me


olhando. (noutro tom, ainda) Foi uma conversa que eu ouvi
quando a gente se mudou. No dia mesmo, entre papai e mamãe.
Deixe eu me recordar como foi... Já sei! Papai estava dizendo:
"O negócio acabava...
(Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória.
Aparecem pai e mãe de Alaíde.)
PAI - (continuando a frase) ... numa orgia louca.”
(RODRIGUES, 2004, p. 17)

Nesse trecho o plano da memória completa o que está ocorrendo no plano de


alucinação, o que, para muitos na época, era considerado impossível de se fazer em uma
peça, mas Nelson conseguiu criar em seu teatro que o consagrou. Percebe-se que,
através dessa intersecção de planos, a história da peça é montada. A matéria
fundamental do teatro está no plano da alucinação e, ao mesmo tempo, no plano da
memória de Alaíde.
Em “Vestido de Noiva”, Nelson retrata a sociedade carioca nas imediações dos
anos quarenta. Nessa predominava o preconceito e a hipocrisia da época, onde a mulher
só poderia chegar à vivência sexual através do casamento ou da prostituição – a
primeira representada por Alaíde, e a segunda, por Madame Clessi. Alaíde também
representa a mulher oportunista e neurótica. Ela seduz o namorado de sua irmã, Pedro,
em uma tentativa de “reconforto”, ou seja, usando esse ato para melhorar sua
autoestima. Através do plano da alucinação, pode-se perceber a fascinação pela vida de
MME. Clessi por Alaíde. Essa prostituta representa o ideal da mulher desimpedida que
se opõe à sociedade hipócrita que Alaíde lutava contra e na qual ela faz parte.
Lucia, irmã de Alaíde, aparece, na maioria das vezes, como a Mulher do Véu.
Também é uma mulher incompleta e insatisfeita que é atormentada pelo sentimento de
ter sido passada para trás pela irmã. Parece estar feliz com a morte de sua irmã Alaíde e
com o casamento com o Pedro, porém, no final, se percebe o contrário.
Já Pedro representa o manipulador de mulheres. Aparece inicialmente como um
bom homem, um ótimo partido para as moças, porém, ao longo da peça, revela-se um
aproveitador que se deixa ser seduzido por Alaíde e logo após deseja sua morte ao lado
de sua amante Lúcia. Ele mostra o homem que domina a mulher e a usa para conseguir
o seu bem-estar e sanar seus desejos.
Nos personagens secundários, aparecem os pais de Alaíde que trazem a
sociedade conformada com as convenções sociais, além de se sentirem confortáveis
dentro dela. Segundo eles, isso deveria ser preservado.
Conforme Nelson, todas as atitudes das pessoas fazem transparecer o seu lado
mais oculto, ou seja, revelam a hipocrisia, os desejos proibidos tanto carnais como
materiais, a competição e o egocentrismo dos homens. Esse livro transmite essa ideia
desde o primeiro momento, pois, se analisarmos o título (de casamento, marcha
nupcial), a paixão dos noivos, a ingenuidade dos sentimentos, verificamos que a obra
transforma-se em seu contrário, logo a traição, o desejo de morte, a deslealdade, a
disputa entre irmãs, os assassinatos e a marcha fúnebre tomam as rédeas da narração.

148
Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus
personagens éramos odiados, e disse:' Nelson, por que você não
faz uma peça em que os personagens sejam assim como todo
mundo?' Eu respondi da forma mais singela: 'Mas meu caro
Bandeira, meus personagens são como todo mundo.' Porque
uma coisa é verdade: quem metia ou mete o pau no meu teatro
está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na
própria imagem. (RODRIGUES).

Nelson Rodrigues foi duramente criticado e odiado por causa de seus


personagens. O autor mostrou seus personagens em seu íntimo, muitas vezes no limite
da loucura que iam da máscara a uma sinceridade insana. Ele retratou a vida como ela
era, fazendo com que a grossa maquiagem da sociedade moralista, principalmente da
classe média e alta, fosse tirada, mostrando seus rostos iguais ao de todo mundo, em
seus desejos e em suas intimidades. Nelson fora mais fundo em direção ao inconsciente
coletivo, despertando a ira dos mais pervertidos, dos mais santos ao se verem nus,
desmascarados e desprotegidos dos milhões de olhos do mundo.

“O que está havendo com o teatro, que só se fala nisso?”,


perguntou Getúlio Vargas a seu ministro Capanema em janeiro
de 1944. “São ‘Os Comediantes’ e é ‘Vestido de Noiva’,
presidente!”, respondeu o ministro enchendo a boca. (Castro,
1997, O anjo pornográfico, p. 175)
A contribuição de Nelson Rodrigues para o teatro brasileiro foi,
a rigor, a criação total do gênero em termos estéticos universais.
E abrangeu, por via de uma prodigiosa dotação natural do autor
para o gênero, a totalidade de seus componentes de concepção,
de construção e de composição. Concepção criadora, construção
única e composição literária. (POMPEU DE SOUZA)

Vestido de Noiva é considerada a peça mais importante do Teatro Nacional. A


figura do diretor, que até então era apenas um ensaiador, ficou conhecida como
responsável pela estética do teatro. Utilizando uma linguagem nova e abolindo a
narrativa realista que tinha como padrão começo, meio e fim para contar a história de
maneira entrecortada e difusa, Nelson Rodrigues implantou o modernismo na
dramaturgia brasileira através de suas peças. Apesar de ser uma construção modernista,
ela apresenta traços fortes expressionistas e realistas, além de apresentar temas
proibidos e imorais para a época, como sexualidade, lenocínio (cafetinagem), adultério
etc – traços que fizeram com que a peça Vestido de Noiva revolucionasse (e chocasse)
o teatro brasileiro.

Referências
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. 11ª reimpressão. São
Paulo: Companhia das letras, 1992.
RODRIGUES, Nelson. O vestido de noiva. 2.ed. Brasil: Nova fronteira, 2004.
http://www.filologia.org.br/machado_de_assis/Machado%20de%20Assis,%20Nelson%
20Rodrigues%20e%20a%20vida%20come%20ela%20%C3%A9.pdf

O HÁBITO NACIONAL DA CORRUPÇÃO

149
Mariana Cunha da Rosa

Resumo: Este ensaio tem como objetivo a análise da corrupção que existe no Brasil. O
artigo visa mostrar, através de duas crônicas de Luis Fernando Veríssimo, de forma
irônica, o que acontece no país. A corrupção não é feita apenas pelos políticos, mas sim
por qualquer indivíduo da sociedade. É necessário destacar o grande autor que é Luis
Fernando Veríssimo, o qual consegue sempre atualizar temas importantes de nossa vida
diária. Esse ensaio expõe de maneira clara a relação que a ditadura brasileira tem com a
corrupção hoje em dia.

Palavras-chave: Luis Fernando Verissimo; corrupção; Brasil; crônica.

Abstract: This essay has the objective to analyze the corruption that exists in Brazil.
We aim to show what happens in the country in an ironic way through two of Luis
Fernando Veríssimo’s chronics. Corruption is not only made by politics, but by any
individual in the society. It is also necessary to enhance the greatest author named Luis
Fernando Verissimo. He is able to address past situations that still happen in present day
in a simple and very realistic manner. This essay sets out the relationship that the
Brazilian corruption has with today’s corruption in a clear way.

Keyword: Luis Fernando Verissimo; corruption; Brazil; Chronics.

“A corrupção dos governantes quase sempre começa


com a corrupção dos seus princípios.”
Barão de Montesquieu

Desde o século XIX, a crônica mantém uma tradição de busca e utilização de


fatos que ocorreram em um determinado tempo. No século XIV, os temas abordados
tratavam de acontecimentos sociais, políticos e até mesmo econômicos decorrentes da
época. Com as mudanças da vida social, ocorreram modificações nos gêneros, e em
especial na crônica.
O texto de Luis Fernando Veríssimo é uma crônica que se mantém atualizada,
pois o autor escreve sempre com base em acontecimentos comuns do dia a dia da
sociedade e, muitas vezes, apresenta temas que provocam polêmicas. Ao lermos as
crônicas de Veríssimo, identificamo-nos muito, pois essas retratam a realidade na qual
os leitores estão inseridos. Além disso, sempre queremos desvendar que fim ou rumo
será tomado (ou foi) pela história.
A crônica consegue retratar de forma descontraída e “informal” os valores que
vivenciamos, tais quais a corrupção das pessoas, o poder da mídia, a política, entre
outros valores que são de extrema importância para a sociedade. Crônica nada mais é do
que uma ligação com o tempo e uma narrativa que diretamente ou indiretamente estuda
a sociedade.
Luis Fernando Veríssimo nasceu no dia 26 de setembro de 1936 em Porto
Alegre, filho do escritor Erico Veríssimo e de Mafalda Volpe Veríssimo. Desde muito
cedo, o autor convive, em razão de seu pai ser um grande escritor, em meio a literatos.
Quando pequeno, começou a escrever o jornal de notícias da família, mas isso não

150
durou muito tempo e já passou a escrever e a traduzir publicações comerciais no Rio de
Janeiro. Em 1967, Luis Fernando Verissimo passa a ter uma coluna diária em um dos
jornais, se não o mais importante do Rio Grande do Sul, “Zero Hora”, e preserva ainda
hoje, mas reduzindo o número de publicações.
Em 1973, o autor lança seu primeiro livro pela editora José Olympio, o qual
tem o nome de O popular, reunião de todos os seus textos publicados na imprensa. Em
1975, lança seu segundo livro de crônicas, A grande mulher nua. Neste mesmo ano, ele
lança seu primeiro livro reunindo tiras dos personagens da sua obra As cobras. Em
1977, lança Amor brasileiro, logo mais em 1978, A mesa voadora, reunião de crônicas
sobre assuntos gastronômicos. Em 1979, surge um de seus livros de maior sucesso, Ed
Mort e outras histórias; no ano de 1980, lança Seno na cabeça; em 1981, é publicado
pela L&PM O analista de Bagé – que teve sua primeira edição esgotada em dois dias.
No ano seguinte, publica O gigolô das palavras. Em 1983, lança A velhinha de Taubaté;
em 1984, A mulher do Silva e O rei do rock: no ano seguinte, lança A mãe de Freud e
Ed Mort em Procurando o Silva. Atendendo a pedidos, Veríssimo escreve seu primeiro
romance em 1988, O jardim do diabo. Em 1989, publica Orgias. No ano seguinte,
mesmo cobrindo a Copa do Mundo, lança Peças íntimas. Em 1994, lança Comédias da
vida privada e 101 crônicas escolhidas – sucesso do autor. Novas comédias da vida
privada tem uma sequência nova, e a obra é lançada em 1996. Em 1997, lança A versão
dos afogados – Novas comédias da vida pública. Já, em 2000, escreve Borges e os
orangotangos eternos e publica uma reorganização em suas crônicas: As mentiras que
os homens contam. No ano seguinte, sai a antologia Comédias para se ler na escola e o
romance Gula – Clube dos anjos.
Luis Fernando Veríssimo, sem dúvida, é um dos maiores escritores do Brasil
com mais de quase três milhões de livros vendidos. É dessa maneira que Veríssimo
escreve suas crônicas, com muito humor, com um pouco de deboche e com alguns tons
de ironia. Essas escolhas fazem-no deslocar da posição de escritor para a posição de
leitor, como se a voz daquele que fala fosse também a voz daquele que lê, operando
uma identificação com o outro.
A escritora Ana Maria Machado, no prefácio do livro Comédias para ser ler na
escola, comenta sobre as crônicas de Veríssimo e seu estilo:

Sobre qualquer assunto e a qualquer pretexto, o autor revela suas


obsessões, fala das mesmas coisas, preocupa-se com o social e o
ético, despreza solenemente o econômico... e encontra sempre
uma maneira nova de fazer isso, como se nunca o tivesse feito
antes. As situações podem ser quotidianas, mas os ângulos
geralmente são insólitos e inesperados. Ou então reforçam o já
esperado, mas com tão exatas pitadas de exagero que a caricatura
até parece um retrato realista pelo avesso, em que o lado cômico é
revelado em sua verdadeira grandeza e o sentido profundo
aparece com nitidez.

Ao lembrarmos outro cronista, podemos repetir as palavras de Rubem Alves


(2002, p. 61), que diz: “Crônicas, para serem gostosas, devem refletir a imensa
variedade da vida. Um cronista é um fotógrafo. Ele fotografa com palavras. Crônicas
são dádivas aos olhos. Ele deseja que os leitores vejam a mesma coisa que ele viu.”
(SILVA, Mariana Cunha Rosa).
Esse cronista é também Veríssimo, que consegue atingir seus objetivos de
sedução do leito a partir do seu estilo e da leitura prazerosa de seus textos através de um

151
fator extremamente significativo em sua arte “fotográfica”: a linguagem. Para Ana
Maria Machado, ainda no prefácio do livro por nós trabalhado (Veríssimo, 2001; p.14-
15), Veríssimo afirma:

A crônica Hábito Nacional, do autor Luis Fernando Veríssimo,


retrata de forma clara e simples que a corrupção existe sim no
Brasil e não está associada somente à política, mas a qualquer
profissão: todos sim são corruptos. O motivo para tanta
corrupção não existe, mas o fato de todo brasileiro querer dar o
seu “jeitinho” para resolver tudo da maneira mais rápida é
possível. Os crimes e escândalos não são de agora mas sim de
tempos passados. A meu ver, o ser humano só é capaz de
cometer certos crimes e certas atitudes maldosas quando não se
tem caráter (SILVA, Mariana Cunha Rosa).

Quando Veríssimo cita na sua crônica:

“ – Podem. Se dependesse de mim, iam direto para o Inferno.


Mas...
Todos entram pelo Portão do Paraíso, dando risadas e se
congratulando. Um querubim que assistia à cena vem pedir
explicações a São Pedro.
- Mas como é que o Todo-Poderoso não castiga essa gente?
E São Pedro, desanimado:
- Sabe como é, Brasileiro... ”
(2001; p. .86)

O autor expõe claramente que até o Todo-Poderoso é tolerante com os


corruptos, visto que ele permite a entrada no Paraíso de indivíduos que cometeram
inúmeros pecados, mesmo não tendo a aprovação dos demais escalões do paraíso. A
entrada de as pessoas que usam outros, torturam, matam, etcétera é autorizada por Deus.
O Brasil é sim um país de grandes escândalos, e é só relembrar alguns anos atrás
quando veio com toda força para a mídia o fato da Operação Satiagraha, que era
desenvolvida pela Polícia Federal para combater o desvio de verbas públicas ou então o
Escândalo do Mensalão. Um dos mais importantes e mais comentado dos fatos políticos
envolve corrupção no Brasil nesses últimos anos, no qual está relacionado a maior crise
política do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005/2006.
A corrupção não está só associada diretamente a políticos, mas sim a
funcionários de poderes legislativo, judiciário e executivo, e também a empresas que
prestam serviços aos governos. Por trás de muitos editais para obras, é onde começa o
desvio do dinheiro. Um exemplo claro é quando foi descoberto que o dinheiro gasto nas
obras do Pan-americano, que foi realizado no Rio de Janeiro, em 2007, já tinha sido dez
vezes maior do que se era previsto inicialmente.
O que o autor quis colocar de uma forma irônica é que a corrupção vai existir
sempre em qualquer situação, e o individuo só tem a consciência de pedir o perdão
divino quando está prestes a morrer e nunca pensa antes da realização do pecado.
Independentemente da crença, na qual cada um tem o seu Todo-Poderoso, Deus perdoa
o ser humano porque acredita que ele confessou e se mostrou arrependido pelo que fez.
Como mostra na passagem da crônica:

152
“... Nos poucos instantes que lhes restam de vida, todos rezam,
confessam seus pecados, em versões resumidas, e entregam sua
alma à providência divina. O avião se espatifa no chão.
São Pedro os recebe de cara amarrada. O porta-voz do grupo se
adianta e, já esperando o pior, começa a explicar quem são e de
onde vêm. São Pedro interrompe com um gesto irritado.
- Eu sei, eu sei.
Aponta para uns formulários em cima de sua mesa e diz:
- Recebemos suas confissões e seus pedidos de clemência e
entrada no céu..

Na crônica “Pode Acontecer” do livro Comédias para ser ler na escola, do


autor Luis Fernando Veríssimo, são mostrados os diálogos de figuras do governo
envolvidos em crimes e escândalos, os quais estão preocupados em montar uma
estratégia para coibir que a verdade venha à tona, e eles possam vir a ser presos e
expostos. O fator maior que leva as figuras do governo a temer a exposição é devido à
imagem de vê-los como corruptos e torturadores. O que é levado em conta não é o
crime ou a ação que eles tenham cometer de forma indevida, mas sim que eles sejam
expostos a todos.
Com o intuito de dar um fim às denúncias, eles armam um plano para invasão
do Congresso Nacional e tramam tudo usando codinomes para que não acabem sendo
descobertos. O objetivo maior deles é cercar e invadir o Congresso para que eles façam
valer o que, na época da ditadura, era muito comum: o ato de censurar a imprensa. O
que pode ser visto na crônica:

“- Uma vez no poder, censuraremos a imprensa. De novo.


- Exato...”. (Veríssimo, Luiz Fernando, 2001; p. 88).

Quando Luis Fernando Veríssimo utiliza a expressão ‘De novo’, ele faz uma
relação com a época da ditadura militar que havia no Brasil.
Em outra passagem da crônica:

“... - Atacamos o Congresso. Fomos direto ao cerne da


democracia. Cercamos o prédio. Entramos para render os
congressistas.
- E?
- E não encontramos ninguém!
- O quê?!
- Bom, para não dizer que não tinha ninguém, tinha uma
taquígrafa. Pensamos em usá-la como refém mas acabamos
desistindo.
- Assim não dá!
- É. É impossível golpear as instituições se elas não estão
aonde deviam estar!
- O que vamos fazer agora, Mão?
- Eu se fosse você dava o fora do país, Boca.
- E de onde você pensa que eu estou falando, Mão?
“(Veríssimo, Luiz Fernando, 2001; p.89).

153
Como vimos no trecho acima, a escolha do Congresso é feita pelo simples fato
de que atualmente ele é visto como símbolo da liberdade e da expressão do povo, apesar
de seus pares ainda cometeram crimes no âmbito político ou contra o patrimônio do
povo. Como é escrito pelo autor, quando as figuras do governo entram para render os
congressistas, acabam se deparando com apenas uma taquigrafa, e o que podemos
concluir é que, se a sociedade elege e confia para lhes representar no Congresso, ele está
trabalhando e lutando pelos direitos da sociedade. Essa atitude é sinal de que a história
política no país traz consigo imperfeições na realização de um regime democrático
efetivo, pois os “homens” se deixam levar pelos interesses próprios e pela ganância.
Esse ensaio visa apresentar as pesquisas que fizemos a respeito da corrupção e
da ditadura no Brasil, sempre fazendo uma associação com a literatura e as obras que
apresentam personagens os quais exemplificam o verdadeiro brasileiro em algumas
situações.
A ditadura configurou-se a partir do golpe militar que ocorreu em 1964.
Durante longos anos, o país viveu um regime de censura, o qual marcou a nação, seu
povo e suas instituições. Esses anos de confronto entre forças políticas e sociais: foram
duros para a nossa história cultual. Neste conflito, ambos os lados, governo e oposição,
utilizaram todos os seus recursos: censura, terrorismo, tortura e guerrilha. Em 1988, é
aprovada uma nova constituição para o Brasil. A Constituição de 1988 apagou os
rastros da ditadura militar e estabeleceu princípios democráticos no país.
Podemos perceber que há, na literatura brasileira, a presença da corrupção. Em
muitas publicações conhecidas, existem personagens que demonstram claramente esses
aspectos como, por exemplo, em Macunaíma. Mário de Andrade escreve um romance
que representa o multiculturalismo brasileiro: traços do desvio de caráter. A obra
valoriza as raízes nacionais e a linguagem dos brasileiros, buscando aproximar a língua
escrita ao modo de falar local. Macunaíma é um personagem que representa um herói
sem caráter nenhum. Outro personagem bem marcante é Leonardinho da obra Memórias
de um sargento de milícias do autor Manuel Antonio de Almeida. Neste texto, o
personagem se mostra um típico malandro carioca, cheio de picardia, esperteza e
sarcasmo. Leonardinho foi o antecessor de Macunaíma, e mostra o lado dos anti-heróis
que apresentam como marca de identidade aquele “jeitinho” brasileiro, ou seja, tenta
conseguir as coisas com o mínimo e de uma maneira mais prática e rápida.
A cada dia que passa, vemos que o país, para crescer economicamente, tem que
acabar com a corrupção, contudo a situação é tão grave que não sabemos como iniciar o
processo de mudança. A sociedade toma conhecimento na hora de escolher quem irá
nos representar e optar por alguém que não irá desviar dinheiro público, entre outros
crimes. Não existe um antídoto para esses atos, mas o melhor que podemos fazer é
continuar debatendo formas melhores de se construir um país. Para isso, é necessário
conscientizar a sociedade e quem assume cargos importantes a fim de melhor
representar o povo.

A TELENOVELA E OS PERSONAGENS REAIS

Victoria Montano
Leal

Resumo: Desde que as telenovelas começaram a ter papel expressivo na programação


brasileira, não podemos deixar de observar a maneira como contagiam e manipulam o
público, o qual, muitas vezes, confunde a ficção da novela com a realidade. É um dos

154
traços das telenovelas trazer algo semelhante à realidade ou até mesmo levantar uma
crítica à sociedade. Porém, nos últimos anos, observamos que as novelas estão
influenciando até mesmo a vida dos telespectadores e a cultura da sociedade.

Palavras-chave: telenovela, programação brasileira, crítica social.

Abstract: We can observe how soap operas infected and manipulated the people since
they have started having a significant role in Brazilian television. They are so
contagious that people are often manipulated by the plot, not discerning between fiction
and reality. It is a trace of soap operas to bring something of reality or even a critique of
society. We have recently observed that soap operas have even influenced the personal
lives of the viewers and the culture of society.

Keywords: novel, programming Brazilian social criticism

conjunto dos dispositivos de intercâmbio cotidiano


entre o real e o imaginário, dispositivos que
proporcionam
apoios imaginários.
(MORIN, 1962, citado por MARTIN-BARBERO,
2003: p.94).

Em 1950, surgia, no Brasil, as fotonovelas e com ela um novo e diferente estilo


de criar arte. As fotonovelas são a mistura do teatro com as histórias em quadrinhos
conhecidas como almanaques. A fusão de duas artes criou esse gênero em estilo de
almanaque, mas, ao invés de desenhos, eram utilizadas fotografias, dando um ar de
realidade. A fotonovela conquistou um abrangente público feminino e teve circulação
nacional. O gênero mantém como característica principal o tema, normalmente girando
em torno de uma heroína em busca do verdadeiro amor e de intrigas femininas. Alguns
estudiosos consideram o gênero como um subtítulo da literatura – fato que aumentou as
pesquisas e os estudos ou interesses pelo mesmo. A primeira fotonovela que circulou
pelo Brasil foi "Encanto".
Com a chegada da televisão em 1948 e o desenvolvimento industrial para
comercializar e incentivar o uso do aparelho, a fotonovela incentivou a criação do
gênero que seria futuramente a grande marca da televisão brasileira: a telenovela.
A telenovela nada mais é do que a fotonovela em movimento. O papel ganha
vida e é apresentado em rede nacional. Um ano após o surgimento das fotonovelas, em
1951, é apresentada a primeira novela no Brasil, exibida pela emissora TV TUPI, a
pioneira no gênero. A partir de então, a novela transformou-se em programação fixa e
deslanchou. Em 1960, surgiram emissoras investindo no novo gênero que mantinha
como herança o estilo dramalhão dos mexicanos e cubanos. No fim do mesmo ano, com
a telenovela solidamente implantada, houve a necessidade de mudar o estilo dramalhão
e transformar o gênero em uma arte genuinamente brasileira. Em 1970, já haviam se
extinguido os temas mexicanos e cubanos e, na mesma década, a emissora Globo
lançara três grandes sucessos na teledramaturgia brasileira: “Selva de Pedra”, “Pecado
Capital” e “O Astro” – o primeiro passo em direção ao sucesso absoluto da emissora no
gênero. As primeiras telenovelas abordavam temas românticos, assim como as
fotonovelas, porém estavam sempre presentes críticas sociais.
Já foi exibida uma quantidade expansiva de novelas desde a criação do gênero
que, ao passar dos anos, conquistou um espaço significativo na sociedade. Hoje em dia,

155
são exibidas pela emissora Globo mais de quatro novelas diárias, com alta audiência,
tornando-se personagem fixo na sociedade e não podendo ser ignoradas ou substituídas.
Através de pesquisas e estudos, foi comprovado que 80% dos brasileiros
possuem televisão em suas casas. Também foi provado que a televisão é o meio de
comunicação mais popular e abrangente. O número de pessoas que assiste à televisão
diariamente é o dobro do número de pessoas que leem jornais ou revistas. A televisão é
considerada o meio que influência diretamente o povo da nossa nação.
Tendo a telenovela como principal programa da televisão brasileira, é
importante analisar o gênero e as propostas seguidas pelo mesmo. É através das
informações e tendências exibidas nas novelas que muitas pessoas direcionam sua vida,
principalmente as camadas menos favorecidas da sociedade e, portanto, menos
informada. A novela transforma os costumes tradicionais, trazendo assuntos polêmicos
para despertar a curiosidade do público alvo, ou reflexão. Doenças, machismo,
infidelidade, prostituição são bastante discutidos nesses programas. A principal
característica da novela é o tratamento de temas cotidianos. São essas situações que
agradam a sociedade e fazem com que os telespectadores vivam experiências que não
teriam na vida real, principalmente no campo sentimental. A novela tem o poder de
despertar a emoção do telespectador.
O gênero ou subgênero transformou-se também em um ditador de moda, pois é
nos personagens que se espelham. O modelo de vestido de uma heroína certamente
estará nas vitrines de shoppings e em revistas de moda para que todos possam copiar. A
novela influencia até mesmo em cortes de cabelo ou na linguagem a partir de gírias.
Diante desta capacidade surpreendente que a novela adquiriu de influenciar o
comportamento e provocar mudanças sociais, é muito importante que cada autor de
telenovela avalie com sapiência o tema e a proposta que pretende apresentar para a
sociedade, trazendo algo diferenciado e polêmico para despertar o interesse cultural e,
ao mesmo tempo, provocar a reflexão sem agredir ou gerar impacto negativo.

ANÁLISE DE UMA TELENOVELA


Em 2003, foi lançada pela emissora rede Globo a novela “Mulheres
Apaixonadas”, escrita por Manoel Carlos. A telenovela trouxe como personagens os
atores veteranos Christiane Torloni, José Mayer e Tony Ramos, além de Helena
Ranaldi, Paloma Duarte, Camila Pitanga, Carolina Dieckmann, Giulia Gam, Regiane
Alves, Dan Stulbach e Ana Roberta Gualda nos papéis principais da história.
A novela foi ambientada no Rio de Janeiro e vivenciada no ambiente escolar.
Ao longo da história, foram relatados diversos dramas e acontecimentos que giravam
em torno da vida dos personagens. A telenovela “Mulheres Apaixonadas” mantinha um
trama bastante polêmico, trazendo à tona para a sociedade diversos temas distintos que
despertavam a curiosidade social, tais como: doenças (alcoolismo e câncer de mama),
violência doméstica, prostituição, infidelidade, homossexualidade, preconceito e
gravidez precoce. A presença de vários temas bastante questionados fez com que a
audiência da telenovela alcançasse uma média de 59 pontos até o último capítulo (prova
concreta de que o gênero se consagrou).
Apesar da quantidade de temas distintos, um merece atenção especial, pois
alertou a sociedade para um problema constante entre as famílias: a violência
doméstica.
Na trama, a atriz Helena Ranaldi vive a personagem Rachel Martins, uma
professora de educação física. Em certo ponto da história, o ex-marido da personagem
retorna ao enredo mostrando-se muito apaixonado e carinhoso. O personagem chama-se
Marcos Martins, interpretado por Dan Stulbach. Contudo, Rachel parece repugnar e

156
ignorar as manifestações de afeto do ex-marido visando a uma futura reconciliação. As
personagens próximas de Rachel, na trama, acreditam que a reação da professora em
relação ao ex-marido organiza-se dessa forma porque ela está vivendo um
relacionamento com o aluno Fred, vivido por Pedro Furtado.
No capítulo número 121 da trama, podemos perceber o principal motivo pelo
qual Rachel abomina o ex-marido Marcos. Neste episódio, Rachel está saindo do banho
e, ao entrar no seu quarto apenas de toalha, Marcos está sentado em sua cama com duas
raquetes de tênis ao lado. O ex-marido discute com Rachel, que tenta fugir, mas a porta
está chaveada. Este é o ápice da cena, pois Marcos coloca no rádio uma música clássica
que diz ser a sua favorita e, a partir daí, joga Rachel na cama e a espanca com as duas
raquetes. O clímax da cena constrói-se como resultado da conjunção da intensidade da
música associada à violência do ato.
Após essa cena, as perseguições e agressões do ex-marido só aumentam,
expondo Rachel que cada dia chega mais ferida no trabalho. Contudo, o medo da
personagem a impede de lutar por seus direitos e denunciar o agressor. Ao longo da
trama, a situação de Rachel só piora, e a consequência disso é o assassinato do aluno
Fred, por quem a personagem era apaixonada.
Situações vividas pelos atores na trama citada acima são acontecimentos reais.
Eles ocorrem na vida diária e, muitas vezes, é necessário a telenovela agir trazendo
temas polêmicos para conscientizar a sociedade e até mesmo incentivar a coragem para
quem sofre desta violência lutar pelos seus direitos. É a partir de cenas marcantes como
essa que a informação se difunde pela sociedade.
Desde 2006, essas agressões domésticas contra a mulher estão tendo uma
punição mais pontual, amparada na LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006, mais
conhecida como “Lei Maria da Penha”, conforme o seu artigo primeiro:

“Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência


doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais
ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”

A novela transformou-se em um influenciador com capacidade de alertar a


sociedade, por isso deve ser bem utilizada. É um gênero desvalorizado, considerado
fútil e acusado de ferramenta propicia à ignorância para a população. Contudo, não é
possível negar a abrangência que o gênero conquistou, assumindo não somente um
papel de lazer ou distração em frente à tela, mas também pode ser um eficiente meio
informativo.
A telenovela conquistou função social diante de um mundo tecnológico com
muitos meios diferenciados de informação. O gênero é o único que abrange todas as
camadas, sendo capaz de levar informação e cultura por todo país. É impressionante a
maneira como o meio dissemina a informação, contudo é fundamental para a sociedade
entender que o programa, apesar de bastante cotidiano, não é a sua vida. Antigamente,
a programação era aplaudida somente por mulheres, porém, hoje em dia, com novos

157
temas e tal similaridade com a realidade, é a programação que atingiu público de todas
as idades, cores e sexo, fazendo parte da vida de todos os membros da família.
O poder conquistado pela telenovela mistura a arte com uma função social
alarmante, sendo um aspecto bastante positivo para a população e um meio muito
inteligente e diferenciado de divulgar informação, cultura e despertar curiosidade social.
O gênero tem uma maneira diferenciada de atingir o seu público alvo, pois é um
programa divertido o qual envolve a população e, ao mesmo tempo, difunde saber de
uma maneira inconsciente capaz de gerar uma modificação na sociedade e até soluções
para os problemas vividos.
Sendo assim, os temas polêmicos, nas telenovelas, são bastante apropriados,
pois tem a capacidade de influenciar na sociedade e gerar mudanças positivas.
Obviamente, muitas novelas já trouxeram temas desnecessários e bastante pobres, mas,
com o desenvolver da indústria novelística, menos se veem esses temas, pois ganharam
uma característica marcante: provocar mudanças na sociedade.

Referências
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
http://mulheresapaixonadas.globo.com/
http://www.bocc.uff.br/pag/tonon-joseana-burguez-telenovelas-represenacoes-
sociais.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mulheres_Apaixonadas
http://pt.wikipedia.org/wiki/Laços_de_Fam%C3%ADlia_(telenovela)
http://www.jurisciencia.com/artigos/cultura-de-massa-televisao-e-telenovela/86/
http://www.teledramaturgia.com.br/hi.htm

VIVER A VIDA DAS NOVELAS


Tiago André Piccoli

Resumo: As primeiras novelas registradas surgiram na França no século XIX, em forma


de romance-folhetim, e mais tarde vieram a se tornar os folhetins eletrônicos.
Comparando as novelas de antigamente às atuais, podemos verificar diferenças em
relação ao enredo e à linguagem, visto que, na década de 60, predominavam as novelas de
melodrama, e hoje em dia não existe um modelo único quando se fala em novelas do
Brasil. Nesse sentido, propomo-nos a discutir as influências que as novelas trazem para
sociedade e de que forma isso altera as ações e os comportamentos das pessoas.

Palavras-chave: comportamento; influências; pessoas; novelas; manipulação

Abstract: The first recorded soap operas appeared in France in the nineteenth century, in
the form of roman-feuilleton, which later became what is known as the present soap
operas. Comparing the soap operas of the past with the present ones, we can see
differences concerning the plot and language. There was a predominance of melodrama in
the 1960s while today most of them do not follow this old pattern. Soap operas were
obedient to the literary stage at the time they were transmitted, leading to major changes
until the present day. There is one aspect which is common to all soap operas: the ability
to transmit information that could influence the Brazilian society in some way. We
propose to discuss the influences that the soap operas bring to society, and how they
influence the actions and behaviors of people.

158
Keywords: behavior; influences; people; soap opera

‘’ Somos duplamente prisioneiros: de nós mesmos


e do tempo em que vivemos.’’

Manuel Bandeira

A MÍDIA
A televisão é considerada, hoje em dia, uns dos principais agentes
influenciadores da cultura no modo de agir, no modo de se vestir e também no modo de se
pensar a sociedade em que vivemos. Incluído nesse contexto, as novelas, desde a época
em que foram criadas, fazem parte da vida das pessoas, interferindo no entorno e fazendo
até parte do mesmo.
As telenovelas foram criadas mais ou menos na década de 60. No decorrer de
seu lançamento, predominam as mais curtas, com a duração de cada capítulo bastante
reduzido. Com a evolução da mesma, foram ficando mais extensas, e o que era uma mera
diversão e passatempo, foi ganhando espaço para outros interesses – manipulação da vida
das pessoas de forma negativa, ou seja, alienando-as. Esse sistema em que vivemos hoje
não só interfere nos pensamentos, mas também na rotina das pessoas, pois muda
completamente seus hábitos e horários para assistirem às novelas na televisão.
Esse processo só ocorre graças à mídia, visto que é ela que promove tais
situações as quais, na maioria das vezes, são negativas. A mídia surgiu um pouco antes
das novelas e, desde a sua criação, já apresentava segundas intenções diante da sociedade.
Não é à toa que grandes emissoras gastam milhares de reais para fazer uma novela, cujo
principal objetivo é a manipulação e não a difusão da cultura. É isso que algumas pessoas
não conseguem enxergar, pois as novelas que fazem parte da mídia têm vários objetivos,
mas o menor deles é a difusão cultural.
Hoje o grande interesse da mídia é a ‘’padronização’’, pois é necessário
esclarecer que um conjunto de pessoas com o mesmo pensamento é muito mais fácil de
ser manipulado em contraposição àquelas que possuem opiniões e modo de viver distinto.
Os meios de comunicação são formas de mídias projetadas para abordar o maior público
possível. Eles abrangem televisão, cinema, rádio, jornais, revistas, livros, discos, jogos de
vídeo e Internet. Muitos estudos são realizados nos dias de hoje para avaliarem-se os
efeitos da mídia sobre a população, a fim de descobrirem as melhores técnicas para
influenciá-la.

Forças impessoais sobre as quais temos quase nenhum controle


parecem estar a empurrar-nos a todos na direção do Novo
pesadelo Worldian Brave, e isso está sendo impessoal,
empurrando conscientemente, e acelerados por representantes de
organizações comerciais e políticas, que tenham desenvolvido
uma série de novas técnicas de manipulação, no interesse de
alguma minoria, os pensamentos e sentimentos das massas.
(Aldous Huxley)

159
Esse raciocínio de Aldous Huxley, mesmo que apresente um ponto de vista um
tanto radical, tem a ver com a mídia e consequentemente com as novelas, pois consegue
ilustrar com perfeição o objetivo das mesmas. Mesmo que as novelas não tenham como
meta principal a massificação, elas sempre acabam interferindo de alguma forma na vida
real e ditando regras de comportamento.

A NOVELA VIVER A VIDA


Outrora as novelas não obedecem a padrões rígidos, mas, no decorrer dos anos,
elas foram mudando suas características. Hoje em dia, por exemplo, a mídia registra
novelas antigas, de épocas passadas, não existindo mais uma linearidade ou padrão de
escolha. A novela ‘’ Viver a Vida’’ estreou em 2008, foi feita na cidade de Rio de Janeiro
e obteve um enorme sucesso entre os telespectadores. Entre os aspectos centrais da época,
podemos citar:

IDEALIZAÇÃO
A imagem de uma ‘’família perfeita ‘’mostrada nas novelas apresenta uma visão
distorcida da realidade. Os padrões disseminados são copiados e seguidos; não obstante,
as pessoas não conseguem adaptá-los a uma vida real, o que pode até gerar frustração nas
pessoas.
A novela ‘’Viver a vida’’ apresentava vários aspectos de idealização, mas o
principal deles era a família. Ela idealizava a família perfeita de classe média alta ou
classe média baixa. Analisando todas as famílias que constituíam a novela, apenas uma
era pobre ou de classe média muito baixa, mas essa, ao final da trama, foi desconstituída,
pois o pai era traficante e acabou morrendo em um tiroteio. Essa imagem de família
perfeita mostrada pela novela tem uma grande repercussão no mundo real, pois acaba
ridicularizando as famílias pobres de classe baixa e influenciando o público a achar que
quem não tem dinheiro ou até mesmo não tem uma família ‘’perfeita’’ não faz parte da
sociedade atual.

MODA
A moda é uma das características mais marcantes na população, sendo muitas
vezes ditada pelas novelas. A moda na novela pode até representar a personalidade das
pessoas e provocar a imitação na vida real. Roupas que o ator (a) principal usa ou até
mesmo o jeito totalmente diferente que o vilão se veste é diretamente refletido no mundo
real.
A padronização das novelas cujos atores usam muitas roupas de marca e
extravagantes é muito visada. Até o mais pobre, com uma vestimenta mais simples e
menos chamativa, tem um certo tipo de estilo – tendências que podem influenciar muitas
pessoas, gerando novas modas e uma nova maneira de vestir, e até de pensar, graças à
novela.
É assim que a mídia age quando quer que um tipo de roupa seja cobiçado, pois é
de se estranhar que cada vez que uma telenovela entra no ar, as pessoas se vistam de
acordo com a mesma, desconstruindo a imagem do povo.

BELEZA
As pessoas se projetam nos personagens ditos mais belos, bem-sucedidos, ou
ainda com aqueles que rompem com os padrões sociais. Esse comportamento alienado
poderia ser revertido desde que se aplique uma prática de politização e conscientização
social, e se trabalhasse mais a autoestima do povo brasileiro. Essa afirmação é verdadeira,
pois esse é um dos grandes problemas que atormenta a sociedade, porque os protagonistas

160
sempre são os bonitões e bem sucedidos. Na realidade, as pessoas buscam ficar mais
bonitas fazendo plásticas, lipoaspiração, ou até mesmo se sujeitando a cirurgias arriscadas
para alcançarem a beleza da jovem atriz da novela das 8h. Um dos resultados principais
de toda essa estética é a influência que a novela difunde.

LINGUAGEM
O modo de falar nas novelas é outro aspecto importante a ser ressaltado, pois
adquirimos o hábito de ‘’imitar’’ ou até mesmo de usar em nosso dia a dia muitos dos
vocábulos utilizados pelos protagonistas. O público mais a mercê desse hábito são as
crianças, pois, por serem ingênuas, às vezes não entendem muito bem algumas coisas e
acostumam-se a imitar a fala dos protagonistas. Esse tipo de influência está muito
presente no público jovem também, sobretudo quando o astro vulgar possui quase a
mesma idade que o telespectador. Esse comportamento é negativo, pois padroniza a forma
de falar das pessoas, seguindo padrões discutíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Viver a vida é uma novela que tratou de muitos temas variados e por isso
influenciou tanto a sociedade quando estava no ar. Esse tipo de novela que apresenta
temas polêmicos muda o hábito de qualquer pessoa e, durante meses, acompanha a rotina
dos telespectadores. O grande problema não é assistir à telenovela, no entanto é preciso o
desenvolvimento de um senso crítico que nos permita fugir do mundo imaginário criado
pela teledramaturgia. A sociedade precisa de valores reais para viver uma vida real sem a
influência e a padronização de Viver a vida apresentada por uma rede de emissora.

Referências:
http://pt.shvoong.com/social-sciences/1660488-influ%C3%AAncia-das-novelas-na-
vida/
http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&client=firefox-a&rls=org.mozilla%3Apt-
BR%3Aofficial&channel=s&q=novelas+influencias+na+sociedade&aq=f&aqi=&aql=
&oq=&gs_rfai=
http://pt.wikipedia.org/wiki/Novela

O PRECONCEITO COM O CINEMA BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA


DO CINEMA AUTORAL

Guilherme Barcellos Blumberg

Resumo: Os brasileiros do século XXI têm preconceito com o cinema brasileiro,


voltando-se ao cinema estrangeiro. Esse fato, aliado à falta de popularidade do cinema
autoral, gera um empobrecimento muito grande na cultura de nosso povo. Aqui vamos
discutir o porquê desse preconceito e citar os diversos problemas envolvidos neste
assunto.

Palavras-chave: cinema brasileiro; autoral; preconceito

Abstract: The 21st century Brazilians have prejudice about their own cinema, turning
themselves to the foreign cinema. This fact allied to the lack of popularity of authorial

161
cinema creates a really big impoverishment in the culture of our people. Here we are
about to discuss when this prejudice started as well as to name the different problems
involved in this theme.

Keywords: brazilian cinema; authorial; prejudice

O pior filme brasileiro é mais interessante que o


melhor filme estrangeiro. Paulo Emílio Salles
Gomes

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO SURGIMENTO DO CINEMA NO BRASIL


O cinema no Brasil começou muito antes do que a maioria imagina, tendo sua
primeira exibição em 1896, no Rio de Janeiro. No entanto, o primeiro trabalho filmado
em terras nacionais foi “Vista da baía do Guanabara”, de Alfonso Segreto, lançado em
19 de junho, data que se tornou o dia do cinema brasileiro.
Com a inauguração da Usina de Ribeirão das Lajes, o fornecimento de energia
elétrica passou a ser mais confiável, dando espaço a vinte salas de cinema no Rio, que
apresentavam filmes estrangeiros.
Já, nos anos 1906-1911, nasceram os cinemas “posados” e os “cantados”. O
“posado” é um sinônimo para o que chamamos de ficção, e o “cantado” era um tipo de
filme mudo em que os atores dublavam seus personagens ao vivo, atrás das telas.
Em 1911, fomos invadidos pelo cinema italiano e norte-americano que
monopolizaram nossas salas de cinema. Os EUA exibiam seus filmes no Brasil; e os
italianos participavam da produção de filmes brasileiros.
Na década seguinte, surgiram os ciclos regionais que não deram muito certo,
acabando prematuramente devido à falta de mercado. São registrados ciclos regionais
em Curitiba, Belo Horizonte, Campinas, Porto Alegre e até Pelotas.
Em 1929, o primeiro filme brasileiro com som foi lançado por Luiz de Barros
com “Acabaram-se os otários”. Isso deu, então, uma certa popularidade e um certo
otimismo ao cinema brasileiro, pois as películas faladas de Hollywood tinham
problemas com as precárias salas brasileiras, sem falar da barreira da língua, já que a
massa popular, em sua maioria, não tinha conhecimento suficiente para entender a
língua falada no cinema americano. Contudo, isso não durou muito tempo, uma vez que
as distribuidoras norte-americanas investiram pesadamente em propaganda e na
aparelhagem sonora das salas de cinema do Brasil. Impressionantemente, nosso povo se
acostumou rapidamente a legendas, dando espaço, então, ao monopólio americano.
Nos anos 40, formou-se a Vera Cruz, uma enorme produtora, nos moldes de
Hollywood, que acabou indo à ruína devido a problemas de distribuição. Então a
Atlântida Cinematográfica é criada, dispondo de histórias cômicas e de fácil acesso à
população, sempre evidenciando o carnaval e muitas festas como, por exemplo, em
“Carnaval de fogo” de Watson Macedo. O sucesso foi imenso, e os filmes foram
apelidados de Chanchadas (porcaria, em espanhol), com muita aceitação do público,
mas sofrendo fortes repreensões dos críticos mais sérios. A “fórmula” deu certo até o
final dos anos 50 quando o público pareceu cansar-se. Porém, nos anos 70, foram
lançadas as pornochanchadas, filmes parecidíssimos com as Chanchadas, mas utilizando
muitas cenas de nudez e erotismo, fazendo muito sucesso.
É nessa época (anos 50) que entra o Cinema Novo, influenciado pelo
neorrealismo italiano, filmes excelentes, tal como “O Pagador de Promessas”, de
Anselmo Duarte, o único filme brasileiro na história a ter ganhado o prêmio A Palma de

162
Ouro do festival de Cannes. Vê-se que, nessa época, filmes caracterizados pela crítica
como sociais e morais podiam ser vistos como autorais e até se tornarem muito
populares.
Os anos 80 foram de escuridão para o cinema brasileiro. Com a crise econômica,
o povo não tinha condições de frequentar os cinemas, levando as salas a pararem quase
que totalmente a exibição de filmes brasileiros. Contudo a pior fase se deu na década de
90, com a chegada de Fernando Collor ao poder. Collor simplesmente aboliu as leis de
incentivo ao cinema e fechou a Embrafilmes com desculpas esfarrapadas. Em 1992, o
último ano de governo de Collor, apenas um filme brasileiro chegou às telas: “A Grande
Arte”, de Walter Salles.
Começa-se a falar de uma “Retomada” do cinema brasileiro em 1992. Com a
volta das leis de incentivo, filmes como “Carlota Joaquina”, “Lamarca” e “Quatrilho”
chegam às telas com muita força. Em 1997, é criada a Globo Filmes, que “explode” e
ganha muita importância na indústria cinematográfica brasileira. Essa empresa hoje é
responsável pelos blockbusters brasileiros “Se Eu Fosse Você”, “Xuxa” e muitos outros
que impregnam nossas salas de cinema e não adicionam nada à cultura de nosso povo.
Hoje em dia, o cinema autoral brasileiro é bem evidente e, embora sempre lute
contra a falta de recursos, tem um mercado consumidor não mais tão pequeno. Filmes
como “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles; “Carandiru”, de Hector Babenco; “O
Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia e “Os Famosos e os Duendes da Morte”, de Esmir
Filho, são exemplos de belíssimos filmes de cinema autoral.

2. A IMPORTÂNCIA DO CINEMA AUTORAL


O cinema é um meio muito eficaz na luta contra a ignorância. Ao contrário da
literatura, o cinema é muito dinâmico e consegue ensinar de uma maneira mais
“descontraída”. Mas os filmes se tornam inúteis, nesse ponto, quando passam a se
preocupar somente com altas bilheterias, esquecendo-se do conteúdo. A opinião de
Pedro Henrique, autor de um blog sobre cinema, ao não condenar completamente as
distribuidoras por quererem ganhar dinheiro – embora ache que deveriam se preocupar
mais com o cinema inteligente – é completamente válida, pois leva em consideração o
implacável mercado de trabalho que enfrentamos.

Se esse mesmo público não vai ao cinema ver Woody Allen, o cinéfilo
que aprecia o bom cinema acaba sendo privado, afinal, quem
distribuiria um filme já fadado ao fracasso financeiro? Ora, estamos
falando de negócios, isso aqui é show business! Se foi o incêndio de
produções que transbordam emoções e sentimentos à telona. Agora é a
vez da era digital, ‘vamos atrair o público nerd, fazer dinheiro,
qualidade é o de menos, eles gostam de tecnologia’. Deixando a
hipocrisia e o falso moralismo de lado, o fato é que é de dinheiro que
vive a indústria, e ela não está errada em investir em produtos
rentáveis. Só que um pouquinho de ‘amor à camisa’ não seria nada
mal. (HENRIQUE, Pedro, 2008)

Embora sejam lucrativos, os filmes do estilo blockbuster assemelham-se às


novelas brasileiras, as quais mostram uma realidade completamente distorcida, sem
apresentar quase que nenhuma crítica. Essa preferência, ao contrário do que muitos
pensam, não é tida apenas pelas classes menos favorecidas. A classe média e alta
também prefere este cinema intelectualmente pobre às obras inteligentes, que
proponham o pensamento crítico, subjetivo ou até inovador. Outro tema muito

163
procurado é a fuga à realidade. A população não quer preocupar-se com os problemas
do dia-a-dia, buscando filmes que apresentem mundos distantes, seja na fantasia ou até
mesmo no futuro distante. Isso porque o cinema está virando única e somente uma
forma de diversão, não apresentando reflexão alguma.
A falta de público forma um ciclo vicioso quando acarreta a diminuição da
produção e distribuição de cinema autoral. Como os filmes não são lucrativos, as
grandes distribuidoras trabalham cada vez menos com esses filmes, o que leva a pouca
variedade para o público consumidor de bons filmes, acarretando, novamente, a
diminuição do público e assim por diante.
Pedro Henrique, em seu texto intitulado “O Cinema de Autor, o Cinema
Comercial e a Distribuição”, explica em que consiste o cinema autoral:

O chamado ‘Cinema autoral’ não pode ser aplicado facilmente. Um


diretor, por exemplo, não é autor só porque assinou o roteiro de um
filme que dirigiu. Não é autor, também, um diretor que trabalha
sempre buscando resultados óbvios. O autor é aquele cineasta que
constrói uma carreira e desenha nela um projeto, uma ideia que será
desenvolvida ao longo de sua carreira. Autor é aquele cara que fala
sempre da mesma coisa, mas que não é repetitivo porque lança sempre
novas questões. Autor é alguém que cria soluções, que inova, que
sonha, que faz sonhar. Atualmente se pode contar nas mãos os autores
em atividade. (HENRIQUE, Pedro, 2008)

Já Pablo Picasso, ao realizar a obra Guernica (óleo sobre tela, 350x782cm) em


1937, descreveu magnificamente a função do artista perante a sociedade na qual está
inserida.

O que vocês pensam que seja um artista? Um imbecil feito só de


olhos, se é pintor, ou de ouvidos, se é músico, ou de coração em
forma de lira, se é poeta, ou mesmo feito só de músculos, se se trata
de um pugilista? Muito ao contrário, ele é ao mesmo tempo um ser
político, sempre alerta aos acontecimentos tristes, violentos, aos
quais reage de todas as maneiras. Não: a pintura não é feita para
decorar apartamentos. É um instrumento de guerra para operações de
defesa e ataque contra o inimigo. (CIVITA, Victor, 1977).

Assim como nas pinturas, o cinema não é feito somente para entretenimento. Ele
deve servir como questionador perante diversos problemas, sejam políticos, sociais ou
culturais. O expectador não deve ser um voyeur alienado ao mundo em que está inserido
ao procurar no cinema somente para a distração de seus problemas pessoais.
Podemos traçar um paralelo entre o público cinematográfico e o frequentador de
museus. Hoje em dia, o grande público não aprecia a Arte Contemporânea por não
encontrar nela elementos que a caracterizem como uma “boa arte”, não identificando
nela exigência de qualidades técnicas ou um valor atrelado à época em que a obra foi
produzida. A Arte Contemporânea problematiza o estatuto da arte e a sua legitimação,
além disso, questiona a nossa sociedade com obras normalmente impactantes como a
obra “Como explicar pinturas para uma lebre morta”, de Jospeh Beuys, em que o artista
mostra que é mais fácil ensinar arte a uma lembre morta do que a uma pessoa alienada.

164
Poderíamos adicionar a esse paralelo também a música e a literatura, que estão
saturadas de obras vazias em significado e ricas em futilidades e exacerbação ao
consumismo. Dois exemplos são a saga Crepúsculo e o sertanejo universitário –
tendências que invadiram nossas rádios e livrarias.
A principal consequência do preconceito que os brasileiros têm em relação ao
seu próprio cinema é a desvalorização da nossa cultura. Isto é, ficaremos cada vez mais
parecidos com a cultura americana, que já é tão presente em nossas vidas. O Brasil é um
país que tem muito a oferecer ao mundo, culturalmente falando, e seria uma lástima não
aproveitar essa mescla de culturas que nos caracteriza, pois ela é algo único e muito
peculiar.

Referências
CIVITA, Victor. Mestres da Pintura: Picasso. São Paulo, SP, Brasil: Abril Cultura,
1977.
HENRIQUE, Pedro. O Cinema de Autor, o Cinema Comercial e a Distribuição. 2008.
Disponível em <http://tudoecritica.blogspot.com/2008/11/o-cinema-de-autor-o-cinema-
comercial-e.html>. Acesso em agosto 2010.

A VOZ DA GERAÇÃO BEAT

Helena Klück

Resumo: Este artigo analisa o fenômeno cultural “beat generation” dos Estados Unidos
da década de 50 e suas influências na juventude do século XX. Procuramos entender a
presença de um espírito revolucionário nos jovens desse século e sua ausência nos
jovens do século XXI.

Palavras-chave: beat generation; contracultura; juventude; século XX

Abstract: This article aims to analyse the “beat generation” cultural phenomenon from
the United States in the 50s and its influences in the youth of the 20th century. We have
tried to understand the presence of a revolutionary spirit in the young people of the
previous century as well as the lack of it in the present century.

Keywords: beat generation; counterculture; youth; 20th century

165
E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os
vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o
bastante para acreditar que podem mudar o mundo,
são as que o mudam. (Jack Kerouac)

O termo “beat generation”, traduzido como “geração beat”, representa um grupo


de escritores que, em pleno “american way of life”, passou a cultuar um estilo de vida
longe de qualquer paradigma da época, buscando um viver o mais intenso possível. São
conhecidos principalmente por suas experiências com drogas, sexo e pelo espírito
antimaterialista.
O início do movimento remete à Columbia University, onde os membros iniciais
do grupo conheceram-se: Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William S. Burroughs, entre
outros. A obra considerada marco inicial é o poema Howl (1956), de Ginsberg. O nome,
geralmente traduzido como “Uivo”, sintetiza o sentimento do autor, em um manifesto
em que ele denuncia todos os sofrimentos de parte de sua geração, escondidos pelo
clima próspero do pós-guerra americano. O poema denuncia o mundo underground
nova-iorquino de forma impactante, citando explicitamente o uso de drogas, o
homossexualismo e a degradação humana que ocorriam por trás dos olhos do estilo de
vida americano.
Em 1957, foi publicada a mais famosa obra de Jack Kerouac, On The Road,
escrita em 1951. Se Howl denunciou os problemas que atormentavam a geração beat,
On The Road representou a reação dela a esses problemas. “The so-called Beat
Generation was a whole bunch of people, of all different nationalities, who came to the
conclusion that society sucked” (cf. Amiri Baraka). Então, Jack Kerouac e Neal
Cassady largaram tudo e “botaram o pé na estrada”. On The Road conta essa história,
utilizando o lema kerouaquiano “first tought, best tought”: “o primeiro pensamento é o
melhor”, já que Jack achava que a descrição do mundo ao seu redor deveria ocorrer de
forma espontânea. O livro inspirou toda uma geração de jovens a romper com o estilo
de vida americano. Depois de lê-lo, Bob Dylan fugiu de casa, Jim Morrison fundou o
The Doors. O termo “beat” (batida, pancada, golpe) remete a essa ideia de cansaço da
vida convencional, mas também representa a força impactante dessa “batida”. Seguem
os principais ideais disseminados pelo grupo:
Experimentação com drogas: maconha, benzedrine, morfina e, mais tarde,
peyote e LSD. Os beats tinham “objetivos intelectuais” no uso dessas drogas, usadas de
forma experimental. O uso dessas representava o ideal de libertação do estilo de vida
convencional, tendo em vista que incrementava a criatividade e garantia à
espontaneidade.
A) Libertação sexual: os beats defendiam o fim da repressão sexual. Muitos dos
membros eram bi ou homossexuais. Suas manifestações são precursoras da revolução
sexual dos anos de 1960.
B) Rejeição ao materialismo: extremamente impactante em pleno “american way
of life”.

166
C) Interesse pela cultura oriental: como pronunciado por Kerouac: “The Earth is
an Indian thing”

1) CONTRACULTURA
A contracultura pode ser conceituada como o movimento de recusa ao sistema,
aos valores vigentes de uma época, ou seja, “contra a cultura”. Ir contra a cultura nos
anos de 1950 era fazer o que a geração beat fez. Pode-se dizer que a expansão da
influência do grupo representou o nascimento do movimento hippie; o hippie é o beat
popularizado. Nessa expansão, alguns ideais foram adaptados, e os hippies ficaram
conhecidos pelo enunciado “Paz e amor”. Antes de prosseguir, faremos uma breve
análise sobre as diferenças entre os ideais beats e hippies.
O uso de drogas psicodélicas, a libertação sexual, a rejeição ao materialismo, o
interesse pela cultura oriental: todos reflexos da influência beat. A principal diferença
reside no engajamento político, pois houve um grande protesto anti-guerra no
movimento hippie. A libertação sexual adaptou-se ao amor livre, e os hippies ficaram
conhecidos pelos grandes festivais ao ar livre. Importante traçar a relação musical, pois
muitas bandas que tiveram influência beat tornaram-se grandes marcos da música.
Apesar de os integrantes da geração beat ouvirem principalmente jazz, sua influência
foi responsável por trocar a inocência romântica do Teddy Bear de Elvis por acordes
mais radicais e letras mais engajadas. Bob Dylan, The Doors e The Beatles citam os
beats como referência.

2) CONTRACULTURA NO BRASIL E OUTRAS MANIFESTAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS


Brasil anos de 1960 e 1970: estávamos em plena ditadura militar. Originada do
contexto nacional e exclusiva desse, temos aqui uma de nossas principais
manifestações nas canções de protesto. Jovens arriscavam suas vidas na Luta Armada.
Em 13 de dezembro de 1968, entrou em vigor o Ato Institucional nº5. Os compositores
precisavam driblar a censura quando queriam passar qualquer ideal que não fosse
"Brasil! Ame-o ou deixe-o". Em março de 1970, Chico Buarque volta de seu autoexílio
na Itália e logo percebe o estado crítico em que seu país encontrava-se. Sua resposta é a
canção “Apesar de você”:

Hoje você é quem manda


Falou, tá falado, não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar toda a escuridão
Você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar
O perdão.

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar
Água nova brotando e a gente se amando
Sem parar
[...]

167
(Apesar de Você, 1970)

A censura não percebeu que o “você”, referido na letra, tratava-se do presidente


Médici. Chegaram a ser vendidos mais de 100 mil compactos em uma semana. Quando
um jornal publicou uma nota insinuando essa relação, o maior número possível de
cópias foi recolhido e destruído pela polícia. Já era tarde, pois “Como vai se explicar,
vendo o céu clarear, de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar, na
sua frente?” já estava na boca do povo.
Outro hino brasileiro contra a ditadura é a composição “Pra não dizer que não
falei das flores”, de Geraldo Vandré:

Pelas ruas marchando


Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão...

Vem, vamos embora


Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer...

Essa música movimentou milhares de jovens pelas passeatas. Esses estudantes


notavam colegas sumindo de repente da faculdade e, mesmo assim, eram fortes para não
se calar: “Aprendi a dizer não/Ver a morte sem chorar” (Disparada, Geraldo Vandré).
Muitos desses não voltaram para casa, mas seu legado foi eternizado e é hoje
representado pela democracia. As canções de protesto dividiram espaço com os reflexos
da contracultura, citados a seguir.
Voltemos para o ano de 1967: ocorreria o III Festival da Música Popular
Brasileira. A plateia estava ali para apreciar a Bossa Nova (ou o remanescente dessa).
Caetano Veloso e Gilberto Gil sobem ao palco com os roqueiros Beat Boys e Os
Mutantes para cantar suas músicas Alegria, Alegria e Domingo no parque,
respectivamente. A perplexidade instaura-se no público diante da mistura de rock e
ruídos, instrumentos elétricos e gritos. Nascia a Tropicália, movimento que defendia, ao
contrário das Canções de Protesto, a arte pela arte, sem necessariamente apresentar uma
ideologia política. Uma verdadeira revolução na música brasileira. Caetano Veloso e
Gilberto Gil tiraram 4º e 2º lugares respectivamente.
Um ano depois, os dois foram apresentar-se no III FIC, Festival Internacional da
Canção, promovido pela Rede Globo. Os Mutantes mal iniciaram a introdução da
música É proibido proibir, com Caetano Veloso, e as vaias começaram. Caetano faz
então um discurso inflamado, quase abafado pela plateia, que marca seu espírito
revolucionário:

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?
[...] Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que
juventude é essa? [...] Vocês jamais conterão ninguém. Vocês
são iguais sabem a quem? [...] Àqueles que foram na Roda Viva
e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles,
vocês não diferem em nada. O problema é o seguinte: vocês

168
estão querendo policiar a música brasileira. Mas eu e Gil já
abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui
para acabar com isso!

Ao falar-se em Tropicalismo, geralmente não se comenta um lado importante


dessa história: o “desbunde”. Apesar das barreiras da ditadura, o movimento hippie
encontrou muitos adeptos no Brasil. O chamado “drop out”, na geração beat,
transformou-se em “desbundar” na contracultura brasileira. Alguns jovens não queriam
adaptar-se a uma vida pacata seguindo o sistema nem engajar-se à Luta Armada. O que
fazer quanto a esse sentimento de deslocamento? Muitos jovens passaram a frequentar
as “dunas do barato”, também conhecidas como “dunas da Gal”, já que a artista era
frequentadora assídua. Outros iam para o Solar da Fossa, que era uma enorme pensão.
Ambos desbundados fumavam maconha e praticavam sexo alternativo, ao melhor estilo
beat. Toninho Vaz testemunhou:

Ali estavam porras-loucas, revolucionários, cabeludos,


destemidos, grandes talentos e garotas espetaculares que não
tinham medo de transar. Para melhor apreciar e entender o
fenômeno da contracultura brasileira, o Solar deveria ir para a
lâmina do microscópio. Todos os vestígios típicos dos anos 60
vão aparecer nos 85 apartamentos da pensão Santa Teresinha,
como era o nome oficial. Pelo menos nos três primeiros anos
(dos oito de existência) todos pagavam aluguel, depois o
esquema foi se alterando e, nos dois últimos anos, ninguém
pagava aluguel.

Esses frequentadores eram vistos como vagabundos pela esquerda, que lhes deu
o nome de “desbundados” por largarem tudo para “curtir um barato”. Entende-se a
carga pejorativa do nome ao considerar que muitos jovens arriscavam suas vidas na luta
contra a ditadura. Nessa concepção, um aspecto muito importante é ignorado: a forte
presença artística no meio. Os hippies estavam sim engajados em uma luta, mas uma
luta interna. Assim como na geração beat, aqui os representantes eram guiados pela arte
e estavam em constante busca desta. E assim como na geração beat, a busca era por uma
arte mais individual. Roberto Talma exemplifica:

No Solar da Fossa – onde havia um grande elenco de mulheres


bonitas – se você não tivesse alguma literatura, um pensamento
filosófico atualizado, uma conversa definida sobre arte, você
não comia ninguém.

Sobre esse comentário, saliento dois aspectos importantes que são reflexos da
contracultura: primeiro, a referência à libertação sexual presente no meio; segundo, o
tom coloquial desse comentário. Como os poetas da geração beat, os desbundados,
buscavam uma vida e uma arte mais intensas, em sua produção artística estará presente
a escrita espontânea vista nas obras de Kerouac e Ginsberg. Essa relação é direta, uma
vez que essas obras eram, de fato, lidas nos círculos hippies brasileiros.
Quando citei “Em sua produção artística”, referi-me a duas vertentes: a
Tropicália e a Poesia Marginal. Dos desbundados com veia artística, alguns transferiram
seus versos para a música. Além de Gal Costa nas dunas do barato, Caetano Veloso e
Gilberto Gil foram frequentadores do Solar da Fossa, explicitando a influência do

169
desbunde na Tropicália. Outros poetas mantiveram seus versos no papel. O fato de não
se envolverem com a indústria cultural e venderem seus poemas mimeografados foi o
que lhes rendeu o título de Poetas Marginais.
Allen Ginsberg começa seu poema Howl com a expressão “Eu vi”. Os poetas
marginais também têm forte marcação individualista, tendo sua obra chamada de
“poesia do eu”. O ideal beat de viver o momento também está presente, fazendo com
que o cotidiano seja valorizado como arte. Cacaso pregava que “a vida não está aí para
ser escrita, mas a poesia sim, está aí para ser vivida...”. Outro traço comum é a
espontaneidade na escrita, que não poderia ser diferente em uma busca por uma arte
natural, de nível prático. Este trecho do poema “Cogito”, de Torquato Neto, evidencia o
ideal beat de viver intensamente o presente, sem se prender ao passado: “Eu sou como
eu sou/agora/sem grandes segredos dantes/sem novos secretos dentes/nesta hora”
A poesia marginal também fazia crítica, através da comicidade e do improviso.
Fazia parte do ideal de viver poeticamente. Esses poetas transcenderam o sistema com
seu experimentalismo, às vezes até chamado de antiliterário. Paulo Leminski lançou seu
verso “Ameixas, ame-as ou deixe-as”, com clara referência ao slogan do governo.
Cacaso, nesse momento em que o país retomava o nacionalismo da primeira geração
romântica, reescreveu Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o tico-
tico/ Enquanto isso o sabiá/ Vive comendo o meu fubá”.
Ana Cristina César, muitas vezes, é afastada por críticos da poesia marginal. Não
frequentava as dunas do barato ou o Solar da Fossa, mas foi a mais beat de todas ao
misturar vida e arte, poesia confessional e ficção. Expressava-se como bem entendia,
falava de temas impactantes de forma natural. Sua obra apresenta-se através de diários,
cartas, bilhetes e poemas fragmentados. Leia este trecho de Arpejos:

Acordei com uma coceira terrível no hímen. Sentei no bidê com


um espelhinho e examinei minuciosamente o local. Não
surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não
percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei
uma pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse
brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir
de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a
irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

Neste poema, Ana Cristina, desinibida ao extremo, expõe sua intimidade com a
maior naturalidade de desbundada. Ainda pronunciou: “Não fica mais esquisito ainda?
‘Arpejos’ é um dos poucos textos meus que eu gosto, não abro mão. É tudo
'estritamente real'. ‘Antônia’ são poemas do Bandeira citados, e você sabe a história”:

Ontem na recepção virei inadvertidamente a cabeça contra o


beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo do susto.
Não havia corno desfazer o engano. Sorrimos o resto da noite.
Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua boca
de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos beijamos de
acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorsos.

Há quem diga que Ana Cristina César estava tendo problemas com a família
devido a um de seus supostos relacionamentos homossexuais. Há quem diga que fez
isto para perpetuar sua arte, para que sua morte fosse tão emocionalmente intensa como
sua vida. Seja como for, aos 31 anos, Ana C. pulou de uma janela de Copacabana,

170
fazendo com que não haja quem possa questionar seu espírito beat/intenso/desvairado
de ser.
A Jovem Guarda foi muito mais influenciada pela inocência de Elvis do que
pelos ideais radicais da contracultura. Apesar de fazerem suas versões dos Reis do Iê-iê-
iê, as letras mantinham conteúdo ingênuo. Só nos anos 80 houve mesmo a revolução
que formou o Rock Brasil, de inquestionável influência comportamental em toda a
geração. Um de seus principais representantes, sem dúvida, era Cazuza. Este era beat
em todos os aspectos: em sua vida de extremos, sempre intensamente vivida, em seu
relacionamento íntimo com sexo, drogas e arte. Acima de tudo era poeta, e seu espírito
rebelde foi ídolo de toda uma geração.
Cazuza citava os beats como referência. Talvez Kerouac tenha-o incentivado a
deixar de lado sua origem elitista e a jogar-se na plenitude da vida boêmia. Ginsberg
pode ter incentivado-o a não ficar calado e a denunciar as dores de sua geração através
da arte. Viu a vida por vários pontos de vista; não só experimentou os efeitos das drogas
e o sexo alternativo, como também se rendeu a e foi dominado por eles. Todos esses
aspectos têm reflexos em sua obra, a qual se misturou com sua vida e eternizou seu
cotidiano desregrado, regado a elevadas doses de álcool e drogas, sexo, mas,
principalmente, amor.

O amor é o ridículo da vida. A gente procura nele uma pureza


impossível, uma pureza que está sempre se pondo. A vida veio e
me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa vaga ideia
de paraíso que nos persegue, bonita e breve, como borboletas
que só vivem 24 horas. Morrer não dói

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato
Que eu nem acredito
[...]
Meus heróis
Morreram de overdose
Meus inimigos
Estão no poder
Ideologia!
Eu quero uma prá viver
(Ideologia, 1988)

Essa música é uma perspicaz autocrítica. A primeira estrofe costuma ser


interpretada como uma decepção ao cenário político, mas o próprio Cazuza relatara que
se referia ao sentimento de toda sua geração de querer mudar o mundo (não
politicamente, mas em qualquer dimensão) e à frustração de ver que o Brasil estava
igual (“Nos conceitos sobre sexo, comportamento, tornou-se alguma coisa, mas
deixamos muito pelo caminho”). De qualquer forma, a letra, com certeza, é também
uma forte referência pessoal, em que o compositor sente-se vencido por tudo aquilo em
que acreditou.

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O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs
Não tem nenhum rock 'n' roll
(Ideologia, 1988)

Chamo a atenção para essa estrofe em que ele cita seu estilo “sex and drugs” de
vida e diz que ele “não tem nenhum rock ‘n’ roll”. Interpreto como uma manifestação
de certo sentimento de derrota (novamente um poeta “batido”). Essa estrofe dá a
entender que o poeta sente que perdeu alguns ideais pelo caminho. A vida boêmia que
andava junto com sua arte (e fazia parte dela) não tem mais uma manifestação
produtiva. Ela não mais produz rock ‘n’ roll. Isso se deve ao fato de que Cazuza tinha
recentemente se descoberto soropositivo e estava pagando o preço da vida desregrada
que tivera (“O meu prazer agora é risco de vida”).

3) SOBRE A JUVENTUDE DO SÉCULO XXI


O século XX foi, sem dúvida, o século da juventude. Sua voz foi finalmente
ouvida: a voz dos fortes ícones que marcou épocas por seus ideais, seu engajamento em
busca da mudança, na luta por uma maior liberdade de expressão na política, no amor,
no sexo, no jeito de vestir, no jeito de falar, no jeito de fazer.
Muitos heróis “morreram de overdose”, seja do excesso de drogas mesmo ou
bebidas (Jack Kerouac), seja do excesso de outros desregramentos (Cazuza). Talvez a
intensidade tenha os degradado (Ana Cristina César). Muitos estão fortemente presentes
no cenário nacional (Caetano Veloso), mas passaram por muitos obstáculos. Fato é que
esses sacrifícios foram necessários na formação de toda a liberdade que temos hoje. Sua
luta não foi só pessoal, foi por todos os jovens e futuros jovens.
O questionamento a ser levantado é: onde estão esses valores hoje? Onde está a
luta por mudança? Nossos jovens estão acomodados, perdendo até os ideais já
conquistados. Política não lhes interessa, pois a arte está completamente degradada.
Como a juventude que cantou “Vem vamos embora, esperar não é saber” (Geraldo
Vandré) deixou seu espaço para “Eu quero saber se você não quer me beijar/Olha pra
mim duvido você negar” (Fiuk, sucesso adolescente).

—Hoje, passados mais de meio século desde que os primeiros


beatniks surgiram, a contracultura parece estar bastante
integrada à tecnocracia e muito diluída para representar uma
oposição tão grande como era no passado. Qual sua opinião
sobre o assunto?

TV—Não existe mais necessidade e nem possibilidade de


movimentos de contracultura. Pelo contrário, a época é de
globalização. O mundo de George Orwell chegou. Somos todos
replicantes, e Deus está morto.
(Entrevista com Toninho Vaz)

Teremos mesmo acabado com nossas chances de movimentos de contracultura?


Ficaremos com o rock sem conteúdo, com uma juventude vazia? Nunca foi tão fácil
passar ideias como é hoje no apogeu da globalização. Tantos meios e tão pouco
conteúdo. Será que não há mesmo a necessidade de contracultura?

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Caetano Veloso deveria refazer seu discurso “Mas que juventude é essa?”.
Cazuza deveria voltar a ensinar essa juventude a procurar uma ideologia. Se Cazuza está
morto; se Caetano perdeu sua voz perante a juventude e hoje é considerado “careta”, o
que nos resta? Digo que uma juventude que considera o pai do Tropicalismo careta
necessita urgentemente de um movimento de contracultura.

Referências
CALDAS, Waldenyr. Iniciação à Música Popular Brasileira. Barueri, SP: Manole,
2010.
HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
BAIHANA, Ana Maria. Almanaque anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

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