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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Teoria da História II
Profº Dr. Miguel Soares Palmeira
Vanda Lúcia Lima de Araújo
NUSP 10832268

Mesmo que nosso conhecimento sobre a historiografia seja limitado ante a imensurável
produção historiográfica existente, sabemos que há discrepâncias quase intransponíveis
entre as diversas concepções, entretanto, essas divergências são necessárias para que a
narrativa histórica não seja apresentada de forma plastificada, homogeneizada, limitada a
determinados grupos populacionais abrangidos por tal narrativa única em cada período. Isso
faz com que haja pouca congruência entre teóricos de variadas áreas de estudo que se
debruçaram na conceituação de tempo e história.

Por muitas gerações, aprendemos na escola que “a história é a ciência que estuda o passado”
e fato histórico era descrito como um acontecimento “singular, irreversível e de repercussão
social”. Havia um fatalismo que apontava o presente como “refém” do passado e definidor
do futuro, num encadeamento de efeitos causais. Era como se pudéssemos afetar o futuro
mas não fôssemos agentes de nossa própria história no presente, uma vez que os eventos
ocorridos eram consequentes. Esse entendimento ganhou outros contornos à medida que
novos teóricos se debruçaram sobre antigos conceitos e novos questionamentos produziram
ideias inovadoras sobre os estudos históricos. A pluralidade de olhares, a partir da
democratização do acesso à academia e do contato com a bibliografia, ampliou as frentes
para novos objetos de estudo, e novas epistemologias e avanços tecnológicos, relativizaram
as verdades históricas que perdem seu caráter absoluto a cada surgimento de evidências que
descortinam outras possibilidades.

Ao refutar a ideia de que a história é a ciência do passado e situá-la como a ciência dos
homens no tempo, Marc Bloch1 lança um olhar humanizador sobre os estudos históricos,
colocando o homem em seu centro, como agente e protagonista 2. Bloch, sabia a importância
da interação entre a história e as demais ciências humanas. Atualmente, testemunhamos a
contribuição que a filosofia, a arqueologia, a antropologia, a linguística, a etnografia e a
etnologia vem trazendo para a pesquisa histórica, permitindo novas interpretações sobre

1 Historiador medievalista francês (1886-1944), um dos fundadores da Escola dos Annales, considerado por
muitos o mais importante historiador do séc. XX. Foi preso, torturado e fuzilado pela Gestapo, em 1944
2 BLOCH, March. p. 54: “Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,]
por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles
que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo,
um serviçal da erudição.”
antigas “verdades”, principalmente as que se referem a sociedades primitivas, fora do
padrão cultural eurocêntrico, que foram historicamente subestimadas em seus diferentes
recortes espaciais e temporais e em suas subjetividades, e para as quais o tempo flui e a
narrativa histórica ocorre diametralmente ao formato europeu, sendo, por isso consideradas
inferiores, fato esse, infelizmente, ainda não expurgado nas relações sociais ao redor do
mundo. Tais sociedades vivenciam temporalidade e historicidade de forma muito particular
e, comumente, o fazem dentro da coletividade, registrando a memória coletiva, com pouca
ou nenhuma ênfase aos registros individuais. Para essas comunidades frequentemente
animistas3, o tempo não é marcado pelo relógio, como nas sociedades industrializadas. Elas
o definem interpretando sinais que identificam a partir de suas cosmovisões.

Nesse sentido, ao defender o posicionamento de Claude Lévi-Strauss4 contra as acusações


lhe dirigiam de ser inimigo da história, Marcio Goldman5 aponta que o antropólogo
francês, recebeu tais acusações por seu posicionamento altamente crítico ao discurso
histórico, que considerava profundamente etnocêntrico, por tentar aplicar a todos os povos
os critérios de desenvolvimento europeu e ignorando as peculiaridades de cada sociedade.
Para Goldman,

“Sob o pretexto de construir uma restrita


defesa da antropologia contra as investidas
da história, Lévi-Strauss, na verdade, utiliza
a experiência da antropologia para elaborar
uma crítica generalizada do imperialismo
da história no pensamento ocidental.”6

e analisa a definição de sociedades frias e sociedades quentes, cunhada por Lévi-Strauss,


não como uma hierarquização na escala evolutiva. Goldman faz-nos ver que as sociedades
frias tem suas próprias cosmologias e apresentam menos desigualdades sociais, enquanto as
sociedades quentes tem seu desenvolvimento pautado na industrialização e consumo,
funcionando “como "máquinas a vapor", gerando uma enorme quantidade de energia e
acelerando o tempo às custas das crescentes desigualdades entre os homens que todos
conhecemos”7.

3 Sistema de crenças que confere a todos os seres, vivos ou inanimados, um espírito que os conecta como um
todo
4 Antropólogo, professor, filósofo e sociólogo francês (1908-2009), criador da antropologia estrutural, foi um
dos mais importantes intelectuais do séc. XX
5 Cientista social, Mestre e Doutor em antropologia social. Professor adjunto na UFRJ e pesquisador do CNPq
6 GOLDMAN. 1999, p. 6
7 idem, p.12
Henri Hubert8 incita a reflexão sobre a especificidade do tempo a partir dos astros e das
representações religiosas, apontando o tempo religioso como um tempo de bases sociais e
qualitativo que não pode ser mensurado ou quantificado. Via o tempo como um
redemoinho, composto de diversas dimensões da vida social, uma sucessão de eternidades,
cada qual caracterizada por uma qualidade própria, vinculada a uma realização particular da
noção de sagrado. E esse sagrado impõe ritmos variados à passagem do tempo, proibindo e
exigindo determinados ritos de acordo com a própria dinâmica social . Para Hubert, o tempo
é um fato social exterior às consciências individuais, que impõe-se de forma imperativa aos
indivíduos. Mas o interesse de Hubert não era qualquer tempo, qualquer sociedade ou
qualquer experiência social. Havia especificidades nesse interesse. Seu olhar para a história
recaiu sobre os celtas e suas experiências, buscando o caráter social no tempo, na religião e
na magia.

A história é comumente escrita a partir de memórias registradas. Quanto mais antigo o


registro, mais coletiva é a abrangência dos fatos narrados, haja vista que o cotidiano das
primeiras sociedades organizadas era baseado na vivência comunitária. Para Maurice
Halbwachs9, individualmente um sujeito não consegue construir ou registrar experiências
fora do contexto de seu grupo social, estando sua memória individual intrinsecamente
afetada pelos eventos ocorridos na sociedade a que pertence, sendo, entretanto, o repositório
das memórias dessa coletividade. Halbwachs aponta a existência da memória coletiva e da
memória histórica como duas condições distintas. O filósofo não via a história como uma
sequência cronológica de fatos encadeados e atrelados: via-a composta de eventos
descontinuados que ocorrem em distintas temporalidades. Ao longo do tempo, a história
seleciona o que será registrado, de acordo com os padrões de cada época, priorizando
memórias de determinados grupos e invisibilizando as vivências da grande maioria da
população que, mesmo oficialmente não registrada, também produziu sua história, que hoje
vem sendo conhecida graças ao trabalho de pesquisa empreendido pelas diferentes ciências
humanas.

O que pudemos observar a partir dos textos estudados, é que, como exemplificou Bloch, a
história comporta suas antíteses. “...esse tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É
também perpétua mudança”10.

8 Arqueólogo, sociólogo e antropólogo francês (1872–1927)


9 Filósofo francês (1877-1945), referência mundial no campo da psicologia social, reconhecido por seu
trabalho sobre memória coletiva. Preso pelas tropas nazistas em 1944 e levado para o campo de concentração
de Buchenwald, na Alemanha, foi assassinado em 1945

10 BLOCH, March. 2001, p. 55


Encerro com uma frase ainda mais inspiradora para o trabalho dos historiadores: “Ela (a
história) é uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro entre os
homens. A vida, como a ciência, tem tudo a ganhar se esse encontro for fraternal.”11

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1- BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001
2- GOLDMAN, Marcio. Lévi-Strauss e os sentidos da História. São Paulo, Revista de Antropologia.V. 42, n 1-
2, 1999. Disponível em: https://www.academia.edu/6232794/L%C3%A9vi_Strauss_e_os_sentidos_da_hist
%C3%B3ria-
3- HUBERT, Henri. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1GLWjpeThtFUsgGIunB-
D8TkcE1Nbg1yA
4- HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 (cap. 3: “A memória coletiva e o
tempo”, pp.90-130).

11 idem, p. 128

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