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930.

1
P285 ,
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J C OMPRA

PASSADOS RECOMPOSTOS
CAMPOS E CANTEIROS DA H ISTÓRIA

Organi1..3.çi-o

j(an BOflr_'T
Dominique !"..u/ia

Participam

Philipp, Ba=-y
fac,!"" R"d
Parrick N~,ot
UFRJ ,Pascal Ent,d
Rtitor Paulo Alcanbr:J. Gomes Clawú Lanr;J.is
Vice·rdtor Jose! Henrique Vilhcn .. de Paiva Dominiqu( &me
Coordenadara do F/lrum François Bld=ida
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Crmullw Editorial Heloisa 8uarque de Holanda (Presidente), Dominiqu~ fodia
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EJiülrtl Euc:lllim Alzira Alves de Abreu Antoin~ d~ /J.:...-cqtU
CmmJerllldtlrtl Edifllriuf Cristina M :lI'y Paes da Cunha

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I.) ·... {
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Editora UFRJ
Edito ra FGV
.' \:\ =--,') S;:-~
- 1998

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Copyrighl \O by Jean Bouti~r e Dc!niniquc JuJu.


Títu[o do original: PtLf.ti.f rU(/III/JlI.fb suMÁRIo
Ficha CataIogr.Uica elaborada p:13. Divisão de
Processarnel'to Técnico-SIBlIUFRJ
APRESENTAÇÃO 9
P285 Passados recomposlOs; ca:llpos e canteiros da história I organiza·
ção Jean Boulier [e] Dominiquc! Julia: tradução d~ Marcclla
INTRODUÇÃO
Monara [e] Anamaria Skinner. Rio de: Janeiro: Editora UFIU:
Editora FGV. 1998.
Em qIJc Pensam os Historiadores? 21
352 p .. 16 x 23 em. Jcan Boutier e DominiqucJulia
I. Boutier. Jean 2. Julia. Oominique 3. Mort .. ;a. Marc~l1a.
lrad. 4. França-História.
COO 900 44 I QUESTÓES

ISBN 85·7108·199·9 Certezas c Descaminhos cb. Razão His(órica 65


Pbilippe Bourry

Caf1/l História e Ciências Sociais: Uma Confrontação Insdvd 79


Tita Nigrí jacques /?erlcl
Revüeio
Cecflia Moreira FUNO "ÇAO UNIVERSIDADe ' '~'Nô Prlnc'íçih Era' o Dirci{o... 91
JoseU.! Babo Ff!,ER"l "OE RONDONIA l . •. :;;".. ": l'a(rlck NerbOi".
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Maria Beatriz Guimarães ·
9f8t I':)TI:(,o, CENTRAL :' Pode a'Fil~s~~~:~.?p-;; tb·História?
Proj~fII Gráfico -:-:-:----_.:.--i "Pascal EngeL
105

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Ana Carreiro
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Editoraçü(I Eletnillica . -- --
-: . Os Efeitos Re(roativos da Edição Sobre ã Pesquisa 121
Cadu Gomes BC Claude Langlois

Universidade Fcder.l.1 do Ri I .• ', . . ' Comunidade de Memória c: Rigor Crítico 133


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Os "Tesouros da Stasi" ou a Mir2.gem dos Arquivos 155
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e·fIlai[: editora@rgv.br
hup:!lwww.rgv.brlrgv/publicaolli vros.htlll A Ascese do Texto ou o Reto rno às Fontes 173
Jeall-Louis Ga.ulill
Apoio
A Hi stó ria Quanüt:\(iV:J. Ainch É Necessária? 183
lI(f). Fund açio Unive,~IU,'I., jcall·Yucs Grcnic.-
• JC$é BcniUclo .
t~ Ane da Narrativa Histórica 193
Françots H:z:-tog
-~ -.

, 3 " MUTAÇÓES
I APRESENTAÇAO

o Lento Su.gimento de uma His(ória Compacada 205


Hcinz-Gcr.bard Htr.rpt
1
A Violê'ncia das Multidór:s: É Possível Elucidar o pesumano? 217
DominiqueJu/ia
r.
A Construção das Categorias Sociais 233
Simona Cerutti

Mulheres / Homens: uma Quest.ã.o Subversiva 243


O/wcn Hul/on

Depois de 1989, Esse Estcanho Comunismo... 251


MarcLazar

A Arql:lcologia na Conquista da ~idade 261


Henri Galinié ~ Manuel Royo I•
, I •

A Memória Viva dqs HistorUdores , 271 ...

!,
é;'"

Entrevista com Pier:re


Vi/ar

, I
i: '
5 FRO~TElRAS
I" I. · I
Os Caminhos da Po lifonia 301
Jean Bou/icr e Arzmdhati Virmani

A Comunidade Científica Americana: um Risco de Desintegração? 311


Timotby Tackett
I
Um Mercado Mundial das Idéias: o "Bicentenário" da Revolução 321
Antoine de Daecque

BIBLIOGRAFIAS 335

BIOGRAFIA DOS AUTORES 346


APRESENU\.ÇÃO

F RANCISCO J OSÉ CALAZA.NS F AI.CON

",oassados recomp ostos: Campos e callteiros da História, ob ra coleti-


va dirigida por Jean Boutier c Dominique Julia, apresenta ao leitor algumas
das preocup ações de mais de duas dezen as de historiadores, franceses .cm
sua maioria, acerca de questões hoje na ordem do dia da Oficina da História.
Tem seqüência assim um movimento his toriográfico responsável pela publi-
cação, nes tes últimos anos, de obras deste mesmo gênero em diversos países
c tendo em comum certas preocupações quanto aos rumos c tendências
observáveis na historiografia contemporânea. Da percepção de tais rumos e
tendências deriva-se um a certa percepção? algo generalizada pe r sinai, de se
estar, provavelmente, em ~ace de uma crise da história. No .âmago desta
percp.pção encontra-se uma ~o.mpreensão aguda das implicações epistem a-
lógicas dessa crise, vale dizer-se, do que significa par~ . as concepções domi-
nantes acerca da natureza do discurso hisLÓrico e de seu valor de ve rd ade, ou
seja, ao fim c ao cabo, é a possibilidade mesm.a de um discurso hist6rico
enquanto conhecimento de História que estari a ameaçada.
A partir de uma perspectiva mais abrange nte, pode-se situar esta obra
ao lado de inúmeras outras editadas nf's te fina l de milênio nos mais diversos
semelhantes: ava liar os res ult~dos até agora alcançados e tentar oferecer al-
gumas respostas a novas indagações.
No caso específico da historiografia,. vem se torn ando cada vez mais
necessário afirmar de maneira incis iva c incessante os va!ores destacados
por Eduardo Lo urenço num de seus últim os ensaios: o valor da racional idade,
a im portância do sen tido, a ex istência de imcligibilidadc e do conceito. I As-
sim, con tra os após tolos do caos e da dcsorJem epistemológica comprometi-
dos com o desespero da razão, cabe ao historiador retomar com decisão os
princípios fundame ntais de sua própria disciplina. A emergência c di ssemi-
nação do irracionalismo e do ceticismo rel<1t ivista, justamente ironizados por
Eco ao trat ar do Irracional, misterioso e enigmático,2 e denu nciadús entre
nós por alguns histo riado res, como Cardoso,) constituem o horizon te princi-
pa l de referência dos artigos dçsta coletinea.
Uma das questões subjacentes a OS ensaios presentes neste li vre é a
demand a cada vez ma,is forte que se exerce sob re a [llividade historia dora em
1C PASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 11

tempos como estes quc estamos vivcndo. Tid os como senhores do passado, realidade quanto a objetividade do l:onhec imento histó rico são propostas ao
ou donos da memória, sofrem os profissionais de His tó ri a du as solicitações lcito . . . sob a capa dc ·alusões indiretas a questõeS que estão na primeira linha
opostas: a so licitação daqueles que 'des cjam conheccr/compreender o p as- dos debates atuais. De fato, referir-sc a passados é sinali zar-sc, s imultanea-
sado, e a dos que sonh am com antever o futuro. Confundidos co m os mente, tanto no sentido do problema d a realidade hist6rica, enquanto s inô-
"'futllró logos", os historiadore.; vêem-se ins tados pe la mídia a delinear os nima de passado, como do discurso que se produz sobre este m esmo passa-
rumes mais prováveis d~ H istória, a part ir d", suposição algo ingênua de que do. Ao sc propor o ca ráter recomposto d esses passados, convoca-se para a
o seu con!lecimento do passado con~ti tui passaporte garan tido rumo às in- frente do palco a figura do hi~toriado r enquanto s ubjetividade dccis iva para
4
c ertezas do futuro. Com? se vcrá em algu ns cnsa ios des ta coletânea, a tcn- o trabalho artcsannl de a seu modo, scgundo s ua leitura, recompor um certo
dência a resga tar, na atualidadc, a história do le.m po presenteS não s i g~ifica, passado. Difícil não se pensar, im ediatam ente, nas interpretações quc postu-
do ponto de vista dos his tori ado res que a pratic am, qu alquer comp romisso lam a inexistência , o u a " irrealidadc" . d a His tó ria, ~ sua inacess ib:lidade a
com especulações futurológicas . todo e qualquer eonhecimcnto.9
No entanto, bem mais até quc o fu tu ro, ~ certamente o próprio passa- Os a~tores de Passados rect,mpost:JS procuram fazer um a espécie dc
do que se tornou um sé ri o problcma para seus tradicionais sellhores. Passa - contraponto aos vários deseamin,hos da razão his toriadora que o título da obra
do, vale frisa=-. aqui entcndido quer como realidade cm s i mcsma. quer como patece, num primciro momento, incorporar ou. quem sabe, insinuar. Contra os
o objcto por definição ·da prát ica historiadora .:tue a respeitu de:c r:rc duz seu fatores que favoreceram e ainda favorecem tais descaminhos, sublinham eles
pró prio discurso. Um di scurso, é bom nota r. que se quer como cor.hecimen- os aspectos do ofício capazes de frear os excessos de subjetividade típicos da
lO verd:ldei ro da realidade passada. Assim. sc 3. noção m~sma de pas~'ado é cultura contemporânca: c estudo da documentação, os lugares sócio-illstitu-
passível de interpretações as mais di versas, cabe recorrer à conhecida frase danais de produção do discurso histórico e as indispensáveis premissas te6-
de Pierrc Vilar - a históric. fala da História f , - a fim de nos interrogarmos rico-metodológicas de toda p~squisa histórica que sc preze. Fica também m~i­
sobre a validade ou não, ai nd a hoje, do qu e nela se afinna de essencial: a to evidente, na maior parte dcs tes cnsaios~ uma. certa ênfase em direção à
.... his tória - disciplin a" e a " His tó ria - ma tér ia" press upõem-se mutuamentc. h'!nncnêutica, a qual parece derivar como que naturalmente do caráter essen-
Com efeito, ante a tão repetida declaração de falência da concepç50 hcgeliana cia lmente interpretativo do trabalho historiador que apa ren temente admitcm. lo
de Histó..-ia 7 e os cst ragos causados à hisl"Íria -disciplilla p:las anál ises críti- Já o subtítulo, se também inova, permite no cntanto que se perceba com
Gl~ assoc iadas ao linguistic lllrn, ao lIarrativismo, c à crise da grande teo- muito mais clareza um a e ...·identc intenção d e ret ifiea r as eventuais derrapa-
ria ,JI, é cx tremnrncn te bem-vinda es ta publicação de trabalh .:Js s':ri os c opor- gens ou exageros a que o título possa ter conduzido o leit') r menos aten to.
tunos es" ri tos por autênticos especialistas do ram o, is to é, famil iarizados A referência aos campos da História se rve para quebrar a tradicional
com as verdade iras dific ul dades do processo d e escrever tcxt cs de história. rigidez associada às delimitações baseadas em especializações disciplinares
i
I
Ta l co mo o utras colctfllleas do mes m o gênero, Passados recompos-
tos consti tu i l11<l is uma tentn tiv<l de art icul3r um ::! espécie de estado alual das
que se ignoram às c'ltras. Ao mesmo tempo. a id éia de campos vale como
afirmação da pluralidade dos espaços pos tos à d ispos ição do conhecimc;1 to
!
I'
q:ll:stõeS, ;1 mane ira das co nh ec idas coleções C:,·o e NOllvelle Clio, mas com histó rico, o sem selltido das fronte ir as rígidas e as possibi lidad es infinitas
uma d iferança essencial: agora, os ba lanços e F'c rspec ti vas visam principal- das trocas com os campos vizinhos - d as ciências humanas e sociais.
me nte os problemas gc rai s da di sciplina e cad::t autor busca indicar cami- A alusão a call1eiros, certamente d isse minad os pelos diferentes cam-
,, nht)s e so luções sempre do ponto de v ista do h:. ."lOriador. Quaisquer se me . . pos, contém um a o utra m ensagem: escrever his tóri:t , como trabalho c!e um
Ih:lIlç.ls com <l qu e les antigos manuais f icam na verdade um tanto es rnn eddas tipo específico de p rofiss io nal, é atividade que possui ex igênci a e se rvidões
qu ando se busca compree nd er o título e su bt ítt.:lo d es te liv ro: inev itáve is - formação específica, familiari d:::J.de com um a certa prática. obe-
Prl.\"sados recoll1posros: passados (plur:1:). e não s imples mcnte o pas . . d iência a regras ditadas pe lo oficio. Cabe:: comu nidade his toriadora , hoje
sado; recompostos, va le dize r: rcfe itos mas não exntamer.tc " recons tituídos" cada vez mais int crnaci o. lali zada, reconhece r ou não como ~e hi stó ri a os
o u s imp lesmcnte "revelad os". Em ambos os ca..,os, títlllo e s ubtítul o, tant o a textos que assim se au to- intitu.lam.
12 PASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 13

Não gos:aria de concluir esta parte sem fazer o elogio de mais uma procedentes d(\ exterior da oficina, sem apelar, a priori, para sua desquali-
caracterísaca extremamente positiva deste livro: apesar de produzido p~r ficação pura e simples.
historiadores franceses, não espere o leitor n~le encontrer mais uma daque- Nesse mesmo ensaio, outra surpresa, UIIã quase-espanto do leitor, ao
las coletâneas triunfalistas já tão conhecidas. Bem ao contrário da tradição I~r: "Não que a "escola históriCa francesa" constitua ainda um modelo: se ela
das Annales, reconhece-se, sim, que existem graves e importantes proble- mantém um real dinamismo, h~ muito tempo não po~ui mais o monopólio
mas a enfrentar, evidencia-se muito bem a tomada de consciência quanto às da inovação metodológica". Eis aqui \lma constatação que chega em muito
relações realmente existent~s entre tai~ problemas e os as3im chamados dt?- boa hora sobretudo quando se sabe o quão é ainda rara entre nós a consciên-
safios dirigidos à história por um verdadeiro exército de filósofos, lingüistas cia efetiva de um fato na verdade tão simples que Boutier e Julia se limitam
e especialistas em teoria da literatura. a constatá-lo: a consciência de que existem diver:;osuniversos historiográficos
Enfim, registro meu próp~io alívio ao perceber que não mais me en- na' atualidade, ou seja, a hi~toriografia contemporânea não se resume à das
~; contro diante de outra antologia voltada para aquelas nossas já conhecidas e Annales! Há mais, porém: as aspas para Ma escola histórica francesa" expri-
:j
I
desgastadas ql:erelas: objetos - novos ou antigos? abordagens: inovadoras/ mem uma certa reserva acerca da própria realidade dessa escola; uma res~.r­
progressistas ou tradicionais!conservadoras? métodos: quantitativos (empi- va no mínimo curiosa em termos de Brasil, se nos lembrarmos de algumas
ristas) 0U qualitativos (teoricamente embasados)? a diferança/oposição en- tendências voltadas precisamente para a identificação de uma ou várias es-
tre história evenemen!ielle, historizante, e história conceitual, fundada em colas historicJgráficas entre n~.
pressupostos teóricos de viés estrutural, é passada em revista, sim, mas como A seguir, breve síntese dos caminhos da historiografia francesa desde
pai te do processe, histórico da própria escrita da História. 1945, se~s sucessos e .ambigüidades. É come voltar no !empo e rever aquelas
A coletânea está dividida em quatro blocos temáticos intitulados: grandes coleções dos anos 50/60, tais como a Hist6ria Geral das Civiliza-
Questões, Competências, Mutações e Fronteiras; há, ainda, uma Introdução ções, dirigida por Maurice Crouzet, e a coletâneaL'Histoire et ses Méthodes,
e um Testemunho. organizada por Charles Samaran! .
Elaborada pel03 organizadores da obra, a Introdução sintetiza os obje- Enfim, o tournant decisivo: os três volumes de Faire de l'histoire, sob
tivas e preocupações (jue norteiam o conjunto das intervenções e ostenta um a direção de Jacques Le Goff e Pierre Nora, 12 espécie de referência obrigató-
título sintomático: Em que pensam os historiadores? É como se já soubessem ria para todos interessados em travar conhecimento com aNouvelle Histoire:
da 1Y!SFosta mais provável: Quem afirma que os historiadores pensam? A pro- Novos Objetos, Novas Abordagens e Novos Problemas. Apesar de Veyne l3 e
va desta suposição vem logo a seguir: "é por demais conhecida a pouca incli- de FoucauIt,14 a Nova Hist\Íria, no Brasil, àquela mesma época, -foi também,
nação dos historiadores pelas questões de natureza reflexiva respeitantes à ~'.1a em geral, apenas uma questão de objetos, métodos e abordagens. Em 1978,
disciplina"; os historiadores que se preocupam com a análise dos pressupos- com a publicação da Enciclopédia da Nova História, organizada por Jacques
tos teóricos de seu próprio fazer sempre foram e ainda são uma espécie de avis Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel,ls o triunfo da Nouvelle Histoire
rara.. Afinal, não vem a ser isto exatamente o que um historiador como Elton 11 parecia estar definitivamente fora de questão.
afir::l0U e defendeu, ainda recentemente, sem meias palavras, ao denunciar e Vinte anos depois, já não é mais possível continuar-se fiel às certezas
mandar às urtigas as teorias dos cientistas sociais e asfilosofias dos não-histo- e ao otimismo dos anos 70, pois, muito ou quase tudo daquilo que parecia
riad...")res (filósofos, lingüistas, literatos) precisamente porque todos eles dcs- então adquirido definitivamente tomou-se objeto de discussão: a realidade
COD-r,ecem a prática do historiador, pois, jamais tend~) pesquisado e muito menos das estruturas; a noção de temporal idades imanentes; a eufor~a da quantifi-
produzido história, como podem pretender agora dizer algo sobre o oficio? cação, ou cliometria, a unida~e e serltido da História. A fragmentação da
Boutier e Julia não pactuam, é claro, com o radicalismo de Elton, disciplina fez-se acompanhar da crítica aos seus tradicionais pressupostos
err::-·.)ra tratem, até certo ponto, de problemas idênticos; apenas entendem realistas; a objetividade, ou verdade, do conhecimento histórico passou a ser
ele~ q:le a melhor política não é a do avestruz; a auto-reflexão historiadora mediada pelo conflito das interpretações, ~, por último, resgatados do limbo
é quem dev.e proceder ao reconhecimento e análise crítica dessas incursões ao qual tinham sido r{'legados, os agentes sociais foram trazidos para a frente
11 PASSADOS RECOMPOSTOS· Apresentação 15

do palco e suas ações e representações, coletivas ou/e individuais, passar.am pelo texto; segundo, a tomada de consciência das especificidades da na"ativa
a OCLlpar lugar de destaque na historiografia. histórica; e, por último, a recuperação sistemática da noção de sentido.
O primeiro bloco, Questões, inicia-se com o ensaio de Boutry - Cer- Outros ensaios deste mesmo bloco, também interessant~, são os de
tezas e Descaminhos da Razão Histórica. Talvez com o objetivo de apresen- Jacques Revel ~ História e Ciências Sociais: Uma Confrontação Instável-
tar em cores fortes a essência C!O problema que t!m em mira, eJ~ principia no qual se analisa o curso sinuoso da história das Annales do ponto de v'ista
pelo Illl1! a chamada Históri~Experimental, ou Hist6ria Lúdica. A mera exis- a
de suas relações um tanto ambíguas com Sociologia e a Antropologia; de
tência da tal História demoJ'.stra que não se deve desprezar as inquietações e Patrick Nerhot - No Princípio Era o Direito - a respeito da questão muito
o ceticismo atuais. de alguns bons historiadores em relação aos métodos, atual das afinidades discursivas da história com o direito; de Pascal Engel -
valores e tradições de uma disciplina talvez por demais lcadêmica' como Pode a Filosofia Escapar da História? - abordando uma das questões mais
parece ser ainda a história. Trata-se, segundo ele, dos resultados lógicos de quentes, hoje em dia, no ca]Dpo da históri~. das id~ias e da história intelectual
uma tendência secular que hipertrofiou cada vez mais o sujeito do conheci- - a da necessidade e possibilidade da chamada contextualização.
mento, uma tendência que afunda suas raízes no solo nietzscheano e se de- DII) bloco a seguir, Competências, destaco três trabalhos lÍlais gerais, ou
senvolve, na França, graças aos cuidados de Aron e de Marrou, desabro- menos técnicos: R Bédarida ~ As Respon..c:abilidades do Historiador Expert -
chando, finalmente, com Veyne, Ricoeuer e, sobretudo, Foucault e de Certeau. i que critica duramente, apoiando-se sobretudo em Michel de Certau, os vários

l
Um longo percarso, ~m~. genealogi~ que nã('l ele campre aqui discutir, mas revisionismos da atualidade, lamentável abdicação da razão contra a qual se
. que, segundo Boutry, marca a passagem da objetividade à subjetividade, da faz mais urgente do que nun::a, segundo el~ afirmar (o historiador) o princí-
crítica das fontes à das categorias e formas de escrila d'l história, ou, como . pio de verdade, princípio essencial e em nadá incompatível, ao contrário do
seria bem mais claro talvez: o questionamento da verdade da história en- que alguns possam supor, com o fato de que toda pesquisa histórica inscre-

i
quantc) forma de conhecimento. ve-se num lugar social. O ensaio a seguir, de Jean-Yves Grenier - A História
No intuito de demonstrar a validade de seu argumento, Boutry exa- Quantitativa Ainda É Necessária? - retoma e desenvolve alguns pontos já
mina alguns dos momentos e efeitos do processo geral acima descrito so- tocados por Bcutry e indaga sobretudo dos n!lvos usos possíveis de uma
bre a historiografia contemporânea: o prestígio e as ilusões do' quantitativo história quantitativa em tempos COül0 os que vivemos hoje aparentemente
(cabe aqui pensar-se em Furet, Chal1 nu, Mauro, e tantos outros, papas da
euforia quantitativista que grassou também entre n6s, nos anos 60nO); o
t muito mais favorá.veis à narrativa e à análise antropológica. Em terceiro lu-

I
gar, François Hartog, com A Arte da Narrativa Histórica, oferece-nos uma
declínio da razão geográfica (imposs!ve! não se pensar em Vidal de La síntese precisa e inteligente das últimas discussões havidas na historiografia
Blache, Mare Bloch, ou, principalmente, Braudel e seus epígonos, adeptos ocidental a respeito de um real ou apenas suposto retorno da narrativa; mais
de uma geohistória que chegou a fazer parte do currículo mínimo oficial
t importante, no entanto, é a crítica consistente que faz às chamadas teses
dos cursos de graduação em História e Geografia em nosso país ...); a crise t narra ti vistas ao sublinhar que a narrativa histórica mantém, por definição,
de inteligibilidade que tende a transformar a história num jogo ou sucessão i uma relação específica com a verdade pelo simples fato de que ela remete
de experiências, no qual as hipóteses· e interpretações são eternamente sempre a um passado que realmellte e.-cisr:.u.
revisiradas e a obra de história vale ou significa bem mais em termos do Após as Questões e Competências, o terceiro bloco sublinha as Muta-
conhecimento do respectivo historiador e sua época que da história propria- ções. Entramos então na leitura de temas os mais diversos, inclusive alguns
mente dita (seria aqui a brecha para introduzir, entre outros, o nome de um tanto pontuais, cabendo de fato ao leitor, conforme seus interesses e pre-
Hayden-White). ferências, escolher entre O Lento Surgimento de Uma História Comparada,
Depois de tantos perigos e ameaças, será que a história pode ainda su- de Heinz Gerhard Haupt, A Violência das Multidões: É Possível Elucidar o
perar t\.xlos esses contratempos? Sim, afirma Boutry, e ela o. vem fazendo a Desumano?, de Dominique Julia, ou, ain·.:h, A Construção das Categorias
partir de três atitudes básicas dos hi::;toriadores: a red~scoberta do arquivo, Sociais, de Simone Cerutti, e Mulheres/Homens: uma Questão Subversiva,
isto é, dodocumemo bruto, graças, entre outras co~ ao fascínio hoje exercido de Olwen Hufton. A tônica aqui recai n.as temá.ticas mais atuais, aquelas

I
16 PASSADOS RECOMPOSTOS Apresentação 17

precisamente que r.oncentram uma parte significativa das pesquisas e dos principalmente um certo cuidado com a marcação das próprias distâncias em
debates histÓricos mais polêmicos. relação àquela tradição. Metodologicamente 2berta, ela assim se define quer
Diferentes da lógica seletiva presente nos blocos anteriores, os temas pelo que inclui, quer por tudo que exclui. Jnclui, !l0r exemplo, sem as ccstu-
de Fronteiras nada possuem em comum, salvo o fato de.contribuir:::m, cada meiras ironias e restrições, referências a trabalhos ue historiadores de outras
qual a seu modo, para a melhor compreensão do panorama atual da historio- nacionalidades sobre ~emas tipica~ente franceses, a começar, pasme-se, por
grafia. Em Os Caminhos da Polifonia, J. Boutier e A Virmani buscam d~se­ historiadores dedicados ao estudo da Revolução F~ncesa! Do lado das ex-
nha! as linhas mestras da comunidade mundial de historiadores, em função clusões, vale sublinhar-se a ausência de qualquer tipo de abordagem que
tanto de seus progressos evidentes, como dos dilemas que ainda persistem. signifique a valorização unilateral de tal ou qual visão te6rica.
Ac analisar A Comunidade Científica Americana: Um Risco de Desintegra- A juventude se deduz tanto das próprias posições assumidas como
ção?, Timothy Tackett oferece-nos um , quadro realista, algo pessimista quem também das datas de publicação dos trabalhos mais importantes de quase
sabe, da estrutura e funcionamento de uma comunidade historiadora ainda todos os participantes da coletânea - a década de 80. Naturalmente, poder-
bem pouco conhe~ida entre ilós.l\.luito interessante., enfim, a exposição crí- se-ia lamentar ~ ausência daqueles nomes nossos velhos conhecidos... Não
tica de Antoine de Baecque acerca do Bicentenário da Revolução, pois, se penso que se deva realmente cobrar essas chamadas presenças obrigatórias.
os númerol' são impressionantes, mais ainda o são as estratégias e mecanis- Como logo o leitor irá perceber, a injeção de perspectivas diferentes elabora-
mos postos em prática a prete~to ~aquela comemoração vishndo, de fato, das por historiadores lel:tivamente I".OvC~ pode ser extremamente positiva.
afirmar uma presença cultural em crise - a francesa - à sombra do poder Abertura, juventude, tudo enfim se condensa num certo padrão diante
simbólico in~rente à memória da Revolução Francesa. da crise que hoje parece estar na cabeça de todos os historiadores, padrão
Antes desse último bloco, inseriu-se um documento da maior importância este que incorpora alguns pontos consensuais: 1- Chamemos ou não de cri-
- uma entrevista com Pierre Vilar - sob o títuloA Memória Viva dos Historia- se a atual situação da historiografia, o fato é que problemas existem na ofici-
dores. A escolha merece todos os elogios. Afinal, Vila; é o mais antigo dentr\.: na da história, embora a natureza e alcance de cada um deles e a das respos-
os historiadores franceses vivos mas é também o menos procurado pela mídia, tas e/ou soluções dos historiadores seja algo ainda muito problemático; 2 -
provavelmefl:te por não ter sido nunca um aI! alista ortodoxo e por ter sido A existência de tais problemas não significa necessariamente uma ameaça
sempre um historiador identificado com pGsiçães teóricas marxistas. Escolha ou anúncio de desintegração próxim~ mas, antes, um verdadeiro desafio,
curiosa também, se se tem presente a ressonância atual de perspectivas ditas no sentido positivo, principalmente se daí resultar, para o historiador, o aban-
pás-marxistas no contexto do chamado pós-moderno! Estão portanto de para- dono definitivo de sua indif{'ren~a e/ou sectarismo teóricos e a aceitação da
héI".5 os organizadores, pois, ousaram apresentar-nos Plerre Vilar de ~rpo intei- necessidade de refletir seriamente sobre a natureza de seu próprio fazer. .3 -
ro, vivo e lúcido como de hábito; um historiador competente, sério e coerente. Não há lugar, na história-disciplina, para o ceticismo ou o relativismo radi-
Antes de terminar, creio que são oportunas duas observações finais - cal. O historiador continua a ser, por definição, um realista: a matéria do
sobre o carater inovador da obra e a visão da crL~e da História que dela conhecimento histórico é sempre a História, o singular coletivo no sentido
podemos deduzir. utilizado por Koselleck; quer designemos :l História como a realidade ou o
Inovadora, esta coletânea assim se caracteriza de· duas formas pelo passsado, o fato aqui essencial é sua existência real, e sua acessibilidade ao
menos: por ser francesa e apesar disto não se apr-esentar como uma obra tipo de conhecimento específico e verdadeiro que chamamos de conheci-
fechada, do ponto de vista metodológico; pela juventude relativa de seus mento histórico. As dúvidas existem, não 550 de pequena monta, e têm mui-
colaboradores e assim não incluir, como é de hábito... os famosos nomes con- to a ver com o descrédito em que caíram as tradicionais ambiçÕes empiristas
sagrados e quase obrigatórios da historiografia gaulesa. e teorizantes embasadas no 'pressuposto da apreensão/explicação da totali-
Francesa, esta obra não sumen~e inova com",") surpreende pelas pers- dade histórica. Ao proporem a pluralidade dos passados recompostos pela
pectivas que seus autores assumem em face da tradição historiográfica das atividade dos historiadores, os colaboradores deste livro não pretenderam
A1UtQles - reconhecimento genérico, muitas dúvidas, algumas críticas e com isto abrir mão do mais essencial: que a h:stória seja uma escrita, que
18 PASSADOS RECOMPOSfOS

sua forma intrínseca seja a narrativa, que o discurso histórico tenha t~do a
ver com a retórica. Trata-se de aquisiçõ~s import'lDtes sem dúvida alguma. INTRODUÇÃO
O decisivo, porém, é que não se perca de vist:\ a caracidade desse discurso
de dizer algo verdadeiro a respeito de uma realidade passada que constitui
seu referente extradiscursivo. Logo, p~r mais que se pretenda o inverso, o
hi~toriadGr nao é nem pode ser um autor de ficção pois não é livre para
inventar, imaginar e interpretar - o exercício das suas faculdades criativas e
interpretativas está limitado pelas evidencias documentais disponíveis no
seu próprio tempo e lugar. É. a partir de protocolos dp. verdade que se identi-
ficam, em derradeira instânda, a história e o historiador como tais.

Notas
1 Os "Tmrpos··doSéclIlo, ou o Crepúsculo da Consciêllcia Histórica, in Gil, Fernando (Org.),
Balanço do Século. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, pp. 237/250.
10 Irr.lCional, o Misterioso, o Enigmático, in Gil, Ferna!1do (Org.), 0.'1. cit., pp. 105/117.
1 Cardoso, Cirô F. S., Ellsaios R~ciollalistas. Rio de Janeiro, Campus, 1988.

• Dumoulin, J. et Moise, Dominique (Org.), L '/ristorie". l'tWe I'!"thlldogue et le futuro-


lo~. Paris, Mouton, 1972.
S Diversos autores - Ecrire I'histoire du lemps préselll. Paris, CNRS, 1993.

"Vaiar, Pierre,llliciacióll ai vocabulariodel alláli.c;is histórico.. Barcelona, Critica/Grijalbo,


1980.
7 Anderson, Perry, O Fim da História. De Hegel a Fukuyama. Rio de Janeiro, Za!1ar, 1992.

" Chartiei, R., A História Cultural. Elltre práticas e represemtações. Lisboa, Difel, 1990;
. Slcinner, Quentin, The RetuTll of Gralld TÍleory ill lhe HwnalJ Sciellces. Cambridge,
Uni\ocrsity Press, 1991.
.. Zaidm Filho, Michel, A crise da razão !ristórica. Campio.;as, Papirus, 1989.
111 I)os.s:, François, Le 10ilTIIDl:t illlerprétatif el pragmalique d~ J' hisloriograplrie frallçaise,

Recife, Simpósio da ANPUH, 1995, texto mimeo.


11 Eltoo. G. R., ReluTII lo Esselltials. Some reflecliotls 0/1 doe present stale of historical

stw:f)'. Cambridge, University Press, 1991.


I: Paris.. Gallimard, 1974,3 vols.; trad. bras.: Rio de Janeim. Francisco Alves, 1976,3
vais.
1.\Ve!'t>e, Paul, COltllllellt 011 écril J'histoire. Essai d'epistermologie. Paris, Seuil, 1971.
." Foc;C3ult, Michel, L 'Archéologie du Savoir, Paris, GallilIlJlrd, 1969; Idem, L 'Ordre du
DiKours. Paris, Gallimard, 1971.
U Retz - CEPL, Paris, 1978.
INTRODl'ÇÃO

Em que Pensam os Historiadores?


JEAN BOUTIER E DOM/N/QUE JUUA

Quando, no silêncio da abjeção,


só se ouve c retinir d:l corrente do escravo e a voz
do delator; quando tudo treme diante do tirano e é tão
perigoso ,estar em suas graças ou merecer sua desgraça,
àparece o historiador, encarregado da vingança dos povos.
',Nero prospera em vão, Tácito já está no Império.

Chateaubriand
Le Mercure de France
4 de julho de 1~07.

Em que pensam os historiadores? A questão parecerá a muitos uma


piada pois, ao contrário do que ocorre com, os filósofos, não se espera
dos historiadores que sejam virtuoses do conceito, nem que elaborem
complexas arquiteturas' teóricas. Tanto mais que, à exceção de alguns
textos híbridos entr~ biografia c discurso do método, eles não são dados
à auto-análise. É verdade que, desde os anos 60, surgiu' o hábito de
elaborar, episodicam~ntt:, espécies de inventários, conseqüência da ex-
pansão sem precedentes que o conhecimento histórico conheceu a pattu
do fim da última Guerra Mundial. Com a conquista ,de novos objetos e
de novos territórios, a acumulação de trabalhos eruditos, o aprofunda-
mento dos métodos, o avanço da informática, a prática do historiador foi
grandemente renovada. A aceleração das mudanças nos últimos anos
chegou a levar certos historiadores a falar, na França e fora dela, de
incertezas, de dúvidas, de crises.
A presente coletânea se inscreve assim na urgência de uma reto-
mada da reflexão sobre a profi:isão de historiad?r. Suas ambições são,
todavia, modestas: nem balanço sistemático, nem manifesto de uma nova
"nova história", ela pretende primeira:nente destacar a "longa marcha"
das pesquisas históricas de cinqüer.:a anos para cá. A empresa é difícil:
a extraordinária internacionalização da pesquisa histórica, a diversidade
.~ ,f:f{~
~ ":-'.
22 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 23

das abordagens, a massa das publicações tornam impossível um panorama A segunda série de questões veio do div6rcio flagrante e sentido
exaustivo, mesmo restrito à escala francesa. Pr~isaremos então nos como intolerável entre a histó~ia universitária por um lado e a vulga-
contentar em esboçar as grandes "linhas de fuga'" de uma historiografia rização hist6rica· tal como .era praticada - mediocremente - por histo-
abordada principalmente a partir do ponto de vista francês. Não que a riadores amadores pouco informados das renovaçges da historiografia,
"escola histórica francesa"'constitua ainua um modelo: se eJa mantém um por outro. Mudança de geração? Sentimentn de um dever a ser cumprido
!'eal d!namismo, há muito tempo não possui mais o monopólio da inova- como já havia sugerido Henri-Irénée Marcou em De la ronnaissance
ção metodológica. Tanto quanto possível, portanto, conduziremos nosso historique [Do conhecimento histórico]2? Oll simplesmente pressão de
olhar para além das fronteiras. . uma demanda social crescente, satisfeita por editores dinâmicos? O fato
Não procuraremos aqui defender um conjunto coerente de propo- é que os historiadores profissionais continuam aceitando a tarefa de es-
sições. Nem por isso cairemos em uma pseudo-imparcialidade insípida e crever livros d·estinad?s ao grande público mstruído. A partir dos anos 50,
enganosa. Engajados em trabalhos e discussões, compartilhamos com Lucien Febvre concebera uma nova colCção, "Destins du Monde", que
vigor de certas convicções: seria desonesto dar a ilusão de· calá-las. Ao aprc.sentava amplas sínteses realizadas por historiadores profissionais3•
contrário, esta coletânea pretende participar, no mesmo plano, de alguns "Les grandes civilizations" (Arthaud), coleção dirigida por Raymond
dos debates reais da atualidade. Bbch - alguns volumes conheceram uma difusão sem precedentes, como
a Civilisatiun de l'oecide1Zt médiéval [Civilização do Ocidente Medieval],
o exame periódico de consciência' de Jacques Le Goff - responde, de uma form~ mais sistemática, às mesmas
Não é de ontem que os historiadores se inter:ogam sob:e o estatuto preocupações: "Esta coleção - esclarece o editor - correspo!lde a uma
de sua própria disciplina. Às impaciências de uma geração emergente necessidade nova. Ao desejo de uma leitura agradável, à necessidade da
frente às certezas da histúriografia instalada, às inquietações de uma síntese e das amplas visões de conjunto se acrescentam agora, entre todos
corporação ciosa na defesa de seu território, vêm. por vezes se misturar o~ leitores, o gosto pela precisão, a exigência ~e um contato direto com
as reflexões de solitários, cujo lúcido diagnóstico é mal recebido por estar os documentos e os monumentos, a necessidade ainda de um guia que
nas antípodas das correntes dominantes de uma profissão satisfeita com treine o leitur para a análise e o oriente para pesquisas mais especializadas.
seus pressupostos e com seu patrimônio. Apenas a partir dos anos 1960, Assim, nos esforçamos por resolver esse problema dirigindo-nos a alguns
entretanto, surgem as primeiras tentativas sistemáticas e coletivas de eruditos cujo talento de escritor, cuja ampla cultura, a prática de um longo
reflexão sobre a atividade do histodacor, de questionamento de alguns de ensino designavam para levar a bom termo um problema tão complexo".
seus aspectos. Tais tentativas resultaram, provavelmente, de três séries de A vulgarização repousa sobre as mesmas exigências de cien:mcidade das
fenômenos, independentes umas das outras. publicações eruditas, o que, por vezes, confunde suas fronteiras: A Re-
A primeira está ligada às transformações rápidas do ensino secun- volução Francesa de François Furet e Denis Richet, que suscitou um
dário, tornado ensino de massa: num momento em que as matemáticas - debate importante, aparece em dois volu.;nes luxuosamente ilustrados da
e particularmente a matemática moderna - substituí:! o latim como critério editora Hachette (1965-1966).
de classificação das inteligências, a cultura histórica seria fundamentalmen- A partir de agora, o "belo" livro vaIe tanto por seu texto quanto pela
te necessária à formação do homem moderno? Os historiadores travaram qualidade de suas imagens. Aqui nasceu um diálogo regular - que não era
duras batalhas para manter o lugar da história nos programas diante da fácil - entre a pesquisa de ponta e ~m público cada vez mais amplo
invasão das ciências exatas, consideradas mais "úteis", para sublinhar seu (renovado, de resto, pela explosão dC'') efetivos universitários). Cada grande
valor "existencial" e cívico, seu antigo papel, insubstituívél, de magistra casa editora tem, doravante, o dever de p.~)ssuir a sua ou as suas grandes
vitae: 1 Fernand Braudel OÚ Jacques Le Goff, introduz.indo no ensino secun- coleções hist6ricas. Trata-se de vastas símc;~es, com a coleção "Arts, Idées,
dário a hist6ria das civilizações, t~l como ela se de~~volvia então em torno Histoire" [Artes, idéias, hist6rias], criada em 1964 por Albert Skira, com
da revista Annales, tiveram aqui um papel decisivc. os três vlJlumes tie Georges Duby, Adoleseence de la ehrétienté occidentale
24 PASSAOO~ RECOMPOSTOS Introdução 25

[Adolescência da cristandade ocidental] (1967), L"Europe des Cathédrales haver c~nsagrado algumas páginas à definição da história, ao tempo e ao
. [A Europa das catedrais] (1966), Fondements d'un nou,!el humanisme espaço, o volume se desdobra seguindo uma arquitetura c1~ica, onde a
[Fundamentos de um novo ltumanismo] (1966)" ou as diferentes séries da parte reservada às técnicas (as famosas ciências ditas "auxiliares") é
Histoire de France [História da França] das Éditions ~u Seuil, hlauguradas pril&ordial: "pesquisa met6dica dos testemunhos", "conservação e apre-
pela Histoire de la France Rurale [História da França rural] (1975). Os sentação dos testemunhos", "e"Cploração cótica dos testemunhos"s•.
editores se lançam ainda a uma larga difusão de trabalhos origina~. No No mesmo momento, vários colóquios e números especiais de
momento em que F. Braudel lança uma ambiciosa coleçã:> interdisciplinar revistas inauguram um1 reflexão mais exigente: "A carência de reflexão
- a "Nouvelle Bibliotheque scientifiq~e" [Nova Biblioteca Científica] sobre o que. fazem, de lucidez de seu sentido, entre os historiadores
(Flammarion) -, a coleção "Histoire sans frontiêres" [História sem frontei- profissionais - nota Alphonse Dupront - tem algo de estarrecedor. (•.. ]
ras] (Fayard~ 1966), dirigida por,François Fure! e Dedis Richet, pretende Se a conversa -girou sobre métodos, e ainda assim muito pouco, já é mais
ocupar o vazio que existe "entre o jornalismo histórico fundado sobre a do que tempo de nos perguntarmos, como homens de boa fé, quanto à
anedota e as t,:ses inéditas ou dificilmente acessíveis", cobrir o espaço clareza do que fazemos e para que servimos,,6. A discussão prossegue no:;
"entre a curiosidade de ontem, muito comulI!ente limitada ao passado anos 1970, desde Aujourd'hui l'hisloire IA histó!'ia hoje] que; no auge da
nacional, e a de hoje, extensiva à Europa e ao o=.undo", restabelecer uma vaga estruturalista, pretende reafirmar a fecundidade de um retomo de
continuidade "entre as grandes obras estrangeiras inéditas em francês e Marx,' até ao vasto balanço da Nouvel!e l-Ik'to:re [Nova história] (Paris,
as pesquisas novas que amadurecem na França e fora dela": daí o apelo Retz, 1978), dirigida por Jacc;ues Le Goff, Roger Chartier e Jacques
a grandes nomes - é aí que· Pierre Goubert publica, em 1968, seu Louis Revel, prolongada pelo Dictionnaire de:s scit!nces ;,istc,riques [Dicionário
XlV er 20. millions de franç(l.is [Luís XIV e 20 milhões de francese~], um das ciências históricas] (Paris, PUF, 1986), dirigida por André Burguiere8 •
dos primeiros best-sellers da edição histórica - e uma política inteligente Mas essas duas obras, na órbita das AntrGles e da École des Hautes Études
de tradução de obras de peso como as de Eugenio Garin, L 'Éducation de en Sciences Sociales [Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais], já
l'homme moderne [A educação do homem moderno] (19~8) ou de Eric ratificaram a explosão da historiografia em múltiplas direções; sobretudo,
J. Hobsbawm, Les Primitif.s de la révol:e dans l'Europe moderne [Os passando-se do balanço sistemático ao arbitrário de cl~ssificação alfabé-
primitivos da revolta na Europa moderna] (1966). Numa perspectiva si- tica, o instrumento de trabalho sobrepuja uma encenação fundamentada
milar cs primeiros títulos da "Bibliotheque des Histoires" [Biblioteca das
7
do método. Por isso é que o ambicioso Faire de l'histoire [Fazer história],
histórias] (Gallimard), sob a direção de Pierre Nora, surgem em 1971, publicado em três volumes em 1974 e tornado rapidamente um clássico,
quase ao mesmo tempo em que os da coleção "Universe historiqup." constitui o balanço mais revelador de um verdadeiro momento historio-
[Universo histórico] (Seuil), dirigida por Jacques Julliard e Michel gráfico, que ele permite por isso mesmo apreender9•
\Vinock. A própria escrita da história sentiu os efeitos dessa abertura4 • 1974: o momento ffFaire de l'histoire" - vinte anos depois, como
Sobretudo - é a última série de questões.. certamente a mais im- e
lemos essa "obra coletiva e diversa" que pretendia "ilustrar promover"
p3rta::te - a história é levada a redefinir problen:;.iticas, métodos e objetos os "caminhos da pesquisa histórica hoje" - um "novo tipo de história" -
face às ciências sociais e humanas - basta pensar no impulso da socio- para "esclarecer a história a ser feita", sem ser entretanto explicitamente
logia ou da psicanálise - no momento em que a impressionante expansão programático?
de seu questionário e de suas curiosidades abrga continuamente seu Os subtítulos de cada um dos volumes manifestam esse interesse
-território", o que suscita, desde a década de 1960, numerosas publica- pelas mutações recentes da profissão: ••. Novos problemas", que repensam
ções. Algumas delas conservam um aspecto muito t:adicional, tal como a definição da história sob a "provocação" das outras ciências humanas;
o vobme coletivo da Ellcyc/opédie de la Piéiade [Enciclopédia da "Novas abordagens", que modificam o:s recortes tradicionais em diferen-
plêiade], L'Histoire et ses méthodes [A história e seus métodos] (1961), tes setores bem balizados; "Novos objetos", que em sua bulimia devorante
i' dirigida por Charles Samaran, antigo diretor dos Archives de France: após a história apropria e que se desenrolam, segundO) uma lista à Prévert, do
26 PASSADOS RECOMPOSTOS lntTodução 27

clima à festa, passando p~lo inconsciente, o corpo doente, 'os jovens e a M. Vovelle; "um lado capital de uma história do essencial"u. Quanto a
cozinha. U,na breve sociologia dos autores destaca três traços fundarpen- Georges Duby, se ele afirma de saída que "a história d:lS sociedades deve
tais. Quase· todos são "parisienses"t 30 em 33, e apenas um é "provin- fundar-se em uma análise das estruturas materiais", é para acrescentar,
ciano" (muito esp~ial, já que se trata de Paul Veyne, futuro professor do imediatamente, que os progressos feitos pela pesquisa histórica nos do-
tollege de France e dois "estrangeiros" (Je~n Starobinski, professor em mínios da economia, da demografia e da ecologia no curso dos anos 1940-
Ge:leora,e H. Zerener, professor em Harvard). Em segundo lugar, um 1970 obrigam à "elaboração de novos questionários" e particul~rmente ao
terço dos autores (11) vêm da sexta seção da École Pratique des Hautes . estudo dos sistemas de representações, de valores e de crenças a partir
. Étud~ presidida então por J. Le Goff; um outro terço (12 autores) dos quais os homens modelam seus comportamentos.
reparte-se entre as diferentes universidades parisienses nascida::; da frag- Enfim, F aire de l'histoire [Fazer história] a~ompanha - e ao mesmo
mentação que se seguiu aos acontecimentos de maio de 6?: Paris-I (4), tempo anuncia - a pas~lgem de uma paradigma onde a análise macro-
Paris-IV (2), Paris-VII (3), Paris-VIII (3). Os restantes pertencem aos econômica era primordial para uma história que focaliza' os sistemas
grandes estabelecimentos científicos: College de France (3), CNRS (3), cultun·is compreendidos em 'um sentido muito amplo. Nem por isso o
Institut d'études poli tiques (1). A maioria dos autores atingiu a casa dos livro se prende a terminologias em moda: Jacques Le Goff critica a
quarenta: poucos jovens, ainda menos "grandes antigos", as exceções imprecisão e a maleabilidade do termo ~entalidades"; mas não se trata
sendo A. Dupront, A. Leroi-Gourlian e P. Vilar. A &usênda m~is espan- de abandonar o terreno, mesmo se 00 instrumentos conceituais e os
tosa é a de Fernand Braudel; mas ele poderia aceitar não ser o mestre- métodos aptos para o seu esquadrinhamento ainda faltam.
de-obras? Caberia notar optfas ausências, enhe cs "inovadores" recen- Em segundo lugar, Faire de l'histDire preludia uma fragmentação da
tes, como Maurice Agulhon ou Michel Vovelle. No essencial, trata-se disciplina. E. Le Roy Ladurie, ao afirmar em seu prefácic a Paysans du
de uma geração formada no período imediatamente pós-guerra, que dá Languedoc [Camponeses do Languedoc) (1966) ter-se lançado à aventura
a ver senão um "pano~ama. da história atual" - o t\:rmo é explicitamente de uma história "total", suscitara vicleDlaS críticas. Pierre Vilar, apoiafl(~o­
recusado -, ao menos as arestas mais vivas da disciplina e seus desea- se em um retomo teórico a ~arx sensivelmente diverso da lei~ra operada
volvimentos mais recentes. então por Louis Althusser e seus dis=ípalos, é quase o único a defender,
A proximidade .dos autores com a última geração de responsáveis apesar dos "sarcasmos", a ambição de uma história total. Com malíCia,
pela revista Amzales explica em boa parte a especificidade do livro. Ele Pierre Vilar recusa-se a deixar a presa· pela sombra, a totalidade pela
igno~ desse m~o, uma história diplomática e política, muito tempo noyidade: "Toda história 'nova', privada de ambição totalizante, é uma
domin:ada pela figura de P. Renouvin, e marginaliza uma história econí)- história previamente envelhecida". Ao contrário, para F. Furet, a "apreensão
mica e social construída sobre o modelo elaborado por C.-E. Labrousse. do global" não é mais que "o horizonte da história": "A historiografia
F. Furet convida a nos voltarmos para a análise "político-ideológica" das contemporânea só progride na medida em que ela delimita seu' projeto [...].
sociedades do passado c contesta a evidência segundo a qual o "dinamis- Mas a análise global do 'sistema dos sistemas' hoje provavelmente está fora
mo da historia da França" seria de natureza econômica: "O investimento de seus meios"12. Michel Serres é ainda mais categórico: "Os sistemas de
escolar.. cultural no sentido amplo, e oficial (através dos serviços públi- totalidade sem exterior, de ·explicação ou compreensão universais e sem
cos)~ pode ter tido aí um papel mais fundamental que o aumento do lacunas, estruturados por diferenças, leis seriais e quadros sinóticos,
produto nacional"lO. Para Pierre Chaunu, encarreg:ldo todavia de tratar da hierarquizados por referências e funcicnando a motor, ou de planos
história econômica, a história serial e, "ontem, econômica e social", deve escalonados como camadas ou estrat~.. são dessuelo~ tanto quanto seus
se lanç.at "de assalto sobre o terceiro nível, a saber o essencial, o afetivo, modelos mecânicos de funcionamento, como variações ortogonais a uma
o mer::tal, o psíquico coletivo ... melhor dizendo~ os sistemas de civiliza- ciência morta"13. O ecumenismo de Fc;ire de /'!J;slo;re desemboca numa
ção". Não apenas tratar da civilização escrita ou da imagem, mas estudar forte contradição entre os autores, pouco ciosos de uma coerência de
o sexo. a vida e a morte, para utingir, a exemplo do livro "pioneiro" de conju'lto C'l1 suas proposições.
28 PASSADOS RECOMPOSTOS lntroduçdo 29

A dispersão das referências teóricas é, de resto, proporcional às nitidamente o deslocamento dos interesses dos historiadores à "crise de
divergências. que separam os autores em sua concepção da !tistória. Os civilização que afeta, desde 1962, semr a setor, os países que chegam,
grandes ancestrais, Marx e Freud, não estão ausentes. Mona Ozouf su- progressiva e setorialmente, à era p6s-ináustrial. A crise põe em questão
blinha, a prop6sito da historiografia acadêmica da festa, o "grande ausen- as ~ransposições laicas dos valores de civilização de cristandade realiza-
te das interpretações", a saber, a "necessidade coletiva [ ••. ], a necessidade das no século das LUZC3, a transposição escatológica da finalidade cristã
pulsional da festa"I",. A psicologia das profundezas está presente na con- sobre um crescimento por muito tempo automotivante"17. Distinguem-se
tribuição de A. Dupront sobre a antropologia religiosa, ainda que ,beba' mais com muita nitidez aqui as inquietudes do historiador - e um tanto tOOlogo
em Jung do que em Freud. A contribuição mais aberta às interrogações da - diante da perda de sentido em nossas sociedades contemporâneas. O
psicanálise é, sem sombra de dúvida, a de Jacques Revel e Jean-Pierre Peter, acontecimento - como poderia ter sidC' diferen~e depois dos "aconteci-
que sublinham que o corpo, er,. sua alteridadc, é ·0 limite onde tropeça e mentos" de maio de 68? - conquista até o direito a uma colaboração
pára" um saber "agressivo e devorador", que deseja abolir a diferença: a particular, a de P. Nora, enquanto que asAnnales não lhe reserVavam lugar
hist6ria não l!eve mascarar muito rapidamente as falhas que' atravessam os algum. Mas ele é tratado sobretudo sob seu aspecto mediático "~e atu-
,"textos" de ontem com hipóteses redutoras, mas dar lugar aos silêncios, alidade" e sua projeção espetacular contemporânea; e para além ~e uma
atent.a ao irlÍortúnio, ao sofrimento que s6 se diz indiretamente1S • fenomenologia formal, o autor, ao comparar o historiador ao geólogo
Quanto ao retorno a Marx, ~inda que a abra pretenda romper com sobre um vulcão em erupção, designa mai~ pontil de vista do que os
o modelo dominante de história econômica, ele surge em vários neveis. O i,nstrumentos para tratar o problema.
objeto principal do debate é, no entanto,' a leitura filos6fica que Louis Mas é talvez M. De Cert~au quml ma~s lucidamente situa a falha
Althusser acaba de propor em Pour Marx [Por Marx] e Lire /e Capital [Ler ir:ttroduzida pelo acontecimento: para ele, o historiador não deve renunciar
o Capital]; toda a demonstração de' Pierre Vilar se levanta firmemente jamais à relação qu~ as séries, as regularidades percebidas "mantêm com
contra seu dogmatismo teórico, seu begeHani~ seu desconhecimento ·particularidades' que lhes .escapam", mas d~ve ocupar-se do particular
abissal da prática histórica contemporânea: "A descoberta de Marx não é como "limite do pensável"18. Assim ele pontua, atravé:i do modelo do-
essencialmente nem de ordem econômica alem de ordem teórica, mas: de minante da história serial, o movimento que conduz ao interesse pelos
ordem s6cio-histórica. Ela está no desnudamento <ia contradição social que "restos" e pelas "diferenças": "O historiador não é mais o homem capaz
implica a formação espontânea, livre, da mais-valia ('acumulação do ca- de constituir um império. Nem visa mais o paraíso de uma história global.
pital '), no conjunto coerente do modo de produção que a assegura, e que Ele chega a circular em torno das racionalizações conquistadas. Ele tra-
ela caracteriza".'6 A fidelidade a Marx encontra-se também no text" de balha nas margens. Sob esse aspecto, ele se toma um erradio"19.
Michel de Certeau que, recusando o estatuto "reservado" que Raymond Vinte anos depois. - Forçoso é constatar hoje que a hist6ria dos
Aron atribuía aos intelectuais, sublinha ql1e os cortes epistemológicos são anos 90 difere sensivelmente daquilo que, por um momento, apresentou-
indissociavelmente sociais e intelectuais. se como a "nova história"2o. É bem verdade, a mudança operou-se com
Em verdade, Paire de l'histo;re é um livro datado em suas referên- freqüência no sentido diagnosticado ou sugerido por Paire d~ /'histo;re.
cias intelectuais. As obras maiores que, na França, inauguraram novas O "território do historiador" prosseguiu sua expansão com a introdução
questões nas ciências humanas, de Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, de novos objetos: a história das "atitudes coletivas", diante da morte
Michel Foucault ou Louis Althusser, subenteudem as colaborações de (Philippe Aries, Michel Vovelle), do medo (J. Delumeau) ou da vida (1.
muitos autores. Era o apogeu do período "e~truturalista". Por outro lado, Gélis), a história dos gestos (J.-C. Schmitt), das cores (M. Pastoureau),
os trabalhos da escola de Frankfurt - então disponíveis apenas em alemão dos prenomes (L. Pérouas, J. Dupâquier) ou dos "dispositivos afetivos"
- eram pouco conhecidos: apenas Paul Veyne e sobretudo M. De Certau (A. Corbin). Novas abordagens continuaram surgindo, levando vastos
iI
fazem referência à sociologia crítica de Jürgen Habermas. O livro é por s~tores a uma reformulação das análises, como a análise das formas da
! isso sensÍvd às mutaçG.!s que afetam o tempo presente? P. Chaunu liga sociabilidade no âmago da história social (M Agulhon), a· inscrição no
i

1:1
30 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 31

~spaço das relações e das dinâmicas econômicas de longa duração através a L 'Bistoire économique et sociale du monde [A história econômica e social
das "economias-mundos" (I. Wallerstein)21, ~ relacionamento das ativida- do mundo] ou a L 'Histoire de l'édition française [A história da edição
des econômicas, das estruturas demográflcas e das configurações sociais francesa]29, .mais recentemente ainda, e ~b a iniciativa do editor italiano
segundc o modelo - hoje fortemente discutido - da "proto-indústria"22, Laterza, a L 'Histoire des femmes en Occident [A história das mulhcres no
ou a construção da memória nacional pelo trabalho com os "lugares de ocidente], seguida de uma L 'Histoire des jeunes [A hist6ria dos jovens] e
memélria"23. Certos domínios, já definidos, adquiriram visibilidade e le- agora de uma L'Histoire de l'enfance [A história da infância] .:.. nem pela
gitimidade, como a hist6ria das empresas, industriais, comerciais ou fi- inércia das práticas historiográficas. A hist6ria social e eco.nômica, por
nanceiras24• Outros constituíram-se, quase que totalmente, como a "his- muito tempo dominante na França, apagou-se diante do avanço da história
t6ria do tempo presente" - que é extremamente difícil de se pensar, cultural, mas também da história política,. em história contemporânea30, e
considerando-se a função clítica da história frente às reconstruções da mais ainda em l:list6ria medievapl e mOderna, como t~temunham, por
memória (ou da amnésia) - que o CNRS institucionalizou 'ao criar, em exemplo, os importantes trábàlhos consagrados à "gênese do Estado mo-
1978, um Instituto de hist6ria do tempo presente2S • I ·dernQ"32. A rigidez dos quadros "estruturais" (o econômico, depois o social,
Entretanto, semelhante criação não era tão simples. Por causa, depois o mental, para retomar a trilogia de E. Labrousse) desgastou-se, a
antes de tudo, da antiga e tenaz crença de que a história se institui sobre quantificação - uma das "linguagens de descrição do mundo" preferidas
a separação entre o passado e O" presente - iltlS~o todavia denunciada peles historiadores do pós-guer;a - perdeu terreno, mesmo que, como
desde há muito - para que exish entre o historiador e seu objeto a explica J.- Y. Grenier, per:naneça sendo um instrumento heurístico
distância necessária à "objetividade": só o Iecu~ iibertari:l das "paixões" insubstituível. A realidade histórica é cada vez menos examinada como um
do momento e a história "imediata" deveria ser deixada para o jornálista. objeto dotado de propriedades que preexistam à análise, mas como um
Em segundo lugar, porque a escola histórica francesa foi fortemente "conjunto de inter-relações que se movem no interior de configurações em
~ar(".ada pela onipotência concedida à longa duração em detrimento do ~~tante .adaptação"33. Simona Cerutti aqui o .de~onstra a partir do pro-
acontecimento: F. Braudel disse sua desconfiança frente ao tempo curto, blema das classificações s<;)Ciais.
"a mais caprichosa, a mais enganosa das durações", pois "tal como a Numa palavra, a passagem das massas às margens, das análises esta-
sentiram, descreveram e viveram os contemporâneos", reconhecendo, en- tísticas aos estudos de casos, dos objetos às práti~as e às lógicas sociais (como
tretanto, que é a história "mais apaixonante, mais rica em humanidade"26. demonstra Dominique Julia"a 'propósito da multidão) provocou, entre outras
Pois foi o caráter traumático dos acontecimentos que inauguram nossa coisas, a .reintrodução dos agentes nos grandes processos l:istóricos e a
contemporaneidade - a Segunda Guerra Mundial e o genoc"dio nazista diversificação dos instrumentos analíticos. Passar a levar em consideração,
- que tomou necessária a emergência da história do tempo presente. por exemplo, a diferenciação social dos papéis sexuais em um número cres-
François Bédarida recorda aqui mesmo a importância. do papel do exame cente de domínios (cf. o artigo de Olwen Hufton) não foi pequena trans-
por peritos e a responsabilidade social do historiador frente à impostura formação. Notemos igualmente que a chegada, doravante maciça, de histo-
dos negacionistas. Está em jogo a relação da história com a verdade assim riadores estrangeiros (americanos, ingleses, mas também italianos ou ale-
como de sua função cívica, sem que seja certo que possamos jamais mães) como Robert Darnton, E. Weber, R- Paxton ou T. Zeldin, o desen-
"historicizar~ totalmente o fenômeno "nazismo", tanto o horror dos cam- volvimento das grandes revistas angl6fonas como French HistoricaI Studies
pos toca os próprios limites de nossa cultura; como escreve F. Furet: uHá [Estudos históricos franceses ] (a partir de 1962), French History (História
um mistério do mal na dinâmica das idéias políticas do século XX"27. francesa] (a partir de 1987) ou 4'vfodern an.d Contemporary France [França
Os vinte anos que nos separam de Faire de I'histoire não foram então moderna e contemporânea], favoreceram a renovação das abordagens.
marcados nem por uma falta de dfuanismo - as sínteses coletivas são muito Por que, apesar da riqueza e da abundância de um tal panorama -
numerosas, como as histórias da França (·rural", "urbana", mais recente- que além do mais é necessariamente inc.ompleto - certos historiadores
mente Ureligiosa", aL 'Uistoire de Ia vie privée LA histtSria da vida privada]28, fal:lm nãc apenas de incertezas, de dúvidas, mas também de crise? A
32 PASSADOS RECOMPOSTOS >
Introdução 33

questão ~ tanto mais importante por não se restringir à França, mas


A profissão de historiador hoje
repetir-se na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos34• O fenômeno não
datà de hoje: o primeiro alerta remonta ao fim dos anos 70 - momento A história tende a tomar-se u;:n patrimônio comum. Por conseguinte,
de euforia persistente sob o signo da "nova história" -, com o artigo todo o mundo pode tomar-se historiador, de sua famma, de sua cidadezinha,
de Lawrence Stone que, à contracorrente de v{rias décadas de prática de sua região, de sua profissão, de sua disciplina... Diferentemente da
histórica, diagnosticava um "retorno ao relato"3s. Ele chegar:a a se matemática, da biologia, até m\!smo da sociologia ou da antropologia,
integrar em uma "crise ge>ral das ciências sociais u36• Trata-se simples- acontece üinda, muitas vezes, com a história como com a música de
mente de uma transformação dos grandes modelos de inteligibilidade amadores ou a pintura de domingo. Alguns mesmo, como certos juízes de
que, por longos anos, os historiadores utilizaram no exercício de sua Versailles em uma sentença famosa ou cer:o antigo conselheiro do príncipe,
"profissão" (cf. artigo d',1 Philippe Boutry31)? Trata-se também dos se erigem pura e simplesmente em historiadores. Donde um risco, clara-
desafios que outras disciplinas podem lançar à história quando ela se mente denunciado por Pierre Vilar: no "comércio da história", as "marcas
esforça f''Jr historicizar o conjunto de realidades sociais, em particular [ ... ] estão muito mal protegidas. Qualquer um pode se dizer hist::>riador.
entre os filósofos - trate-se da filosofia analítica, como apresentada aqui [ ... ] Contudo, nada mais difícil e raro do que ser historiador ... 't4I. Vilar
por Pa~cal Engel, ou da filosofia moral e ética - que recusam a acrescentava, é certo, o epíteto "marxista", mas a observação vale mesmo
bistoricidade &l certas realidades, em nome de um sujeito universal e , sem ü \!píteh.>. Num~ro~os tex!os recen~es.. que remetem à "profissão de
trans-histórico? Não apenas: é o próprio estatuto da história, enquanto historiador" - às suas "regras", como lembra aqui mesmo François Bédarida
óiscipHna científica, que 'a partir de então é posto em jogo. - testemunham a atualidade da questão. Se a paternidade da expressão
De um relativo c0I.ls~nso passou-se a uma confrontação ambígua, pertence a Marc Bloch, numa obra importante, ainda que inacabada42, ela
onde a história, de resto, está longe de se encontrar em uma posição de pertence daí em diante ao domínio público, para englobar a um tempo um
fraque~a. Sob o choque da "virada lingüística" iniciada nos Estados método - um conjunto de operações técnicas, com seus instrumentos seus
. '
Unidos no fim dos anos 6038, e de uma crítica literária que, levando a procedimentos e sua necessária aprendizagem, e critérioc:; de cientificidade
extremos as análises de Paul Ricoeur e, mais recentemente, de Hayden - e uma deontologia, não se deve esquecer a dimcn~ão ética do trabalho
Wbite sobre o relato (cf. o artigo de François Hartog), amalgama '~relato", histórico, como de todo trabalho científico_ Certamente foram as exigências
histórico ou não, e ficção, a história tomar-se-ia um simples gênero da "história do tempo presente" que devo h-eram a essa antiga questão toda
literário, e perderia a partir disso toda pretensão a ser também um discurso a sua urgência, enquantu que a reflexão metodológica recente tendia a
de verdade. Ora, recentes proposições da epistemologia das ciências promover o problema da "escritura histórica", pondo como que entre pa-
sociais reinstalam a história no coração das ciências sociais, não como rênteses a imperiosa exigência de verdadeJ:3_
a ciência-rainha, mas como um modelo geral de cientificidade das ciên- O "pequeno mundo" dos historiadores? - Desde inícios dos anos
cias sociais: J.-C. Passeron considera a todas como "ciências históricas", 70, os efetivos universitários conheceram um crescimento sem precedente.
frente às ciências da natureza, as únicas que estariam submetidas ao Os historiadores titulares de postos nas ur:h'crsidades frances<ls passaram
modelo popperiano de validação experimental~. de 302 em 1963 para 155 em 1991, ou seja, seu número foi quase quadru-
Em conjunturas diversas, segundo as disciplinas ou o país, a "crise" plicado, os professores de história nas universidades italianas passaram de
se enuncia em termos de sobrevivência - Grã-Bretanha - , de futuro - 252 em 1951 para 1.115 em 1983, e passar:un de 1.300 em 1960 para 1.700
Estados Unidos - ou de estatuto - Franç:l, Estados Unidos - da história. em 1970 nas universidades britânicas, qu:mdo eram por volta de 30 em
Será necessário, por 'isso, dramatizar o momento presente pois, como 190Q44. As conseqüências são numerosas: a pesquisa profissionalizou-se
lembrava recentemente a historiadora americana Joan W. ScoU, "aqueles quasc completamcntc, às custas dos ilustres acadêmicos, e, com algumas
que esperam que os mome~tos de mudança sejam confortáveis e isentos exceções, implantcu-se solidamente. O volume das publicações deu um
de conf!itos ;lão apr~nde~am história?"40. salto: de acordo ("am a bibliografia anual internacional de história da França,
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contava-se com cerca de 3.000 publicações (livros, artigos, comunica- para quem a 'vive, mas tende também a reduzir, até mesmo a fazer
ções ••• ) por ano nos anos 1920, 5.000 por ,"o)ta de 1955, 8.000 em 1960, desaparecer, o indispensáve'l "tempo de reflexão".
9.000 em 1963, ,10.000 em 1970; após um decênio de estagnflção, o cres- Desde os grandes sucessos editoriais dos anos 70 sobre fundo de
cimento foi retomado: 11.000 em 1979, 12.000 em 1985, mais de 15.000 nostalgia rural (Histoire de la France Rurale, [História -da França
em 1991. Enquanto os "catedráticos" uos anos 1960 podiam ainda dominar rural]), o Montaillou de E. Le Roy Ladurie ... ) - que alguns acreditaram
uma vasta área, a explosão da produção em todos os setores historiográficos poder interpretar como um açambarcamento da ~dição de história pro-
levou a uma especialização mais e mais aguda, a despeito da publicação gramado pela "escola das Annales" -, o imaginário de muitos historia-
regular' de review articles ou do desenvolvimento das bibliografias dores foi povoado de best-seUers ou de Apostrophes. A celebridade do
informatizadas. É preciso notar, de resto, que e~sas últimas operam escolhas historiador é uma realidade recente, como o demonstra a contrario um
drásticas, privilegiando fortemente as publicações em inglês, uma vez que panfleto anti-s7mita recente que se opunha ao nome de Marc Bloch para
os instrumentos informáticos mais potentes encontram-se nos Estados a Universidade de Letras e Ciências Humanas de Strasbourg: um nome
Unidos. É verdade, como lembra oportunamente T. Tackett, que o tamaJlbo . "não conhecido pelo grande público"47. Ela indubitavelmente modificou
da "comunidade" dos historiadores nos Estados Unidos é sem comparação a relação entre pesquisa e edição. Não há dúvida, um bom número de
com a dos outros países do mundo: lá são publioldos a cada ano mais de livros ainda é submetido a um editor por iniciativa de seu autor (33%
7.000 livros apena3 sobie a histór:a d~s Estados Unidos e países da América, dos livros publicados no conjllnto do setor de ciências sociais). A no-
contra uns 2.500 na França para todo o conjunto das ciências sociais. vidade - não absoluta - vem sem dúvida da crescente importância da
Esses historiadores, mais numeroso~ que :nte~, encontram-se tam- encomenda editorial (22% dos livros publicados4B): ao lado das grandes
bém mais freqüentemente para apresentar problemas e resultados em coleções c das séries históricas, ou das biograf:as, redigidas agora por
congressos ou seminários, em períodos limitados de ensiná em professores universitários titulados, os editores pretendem suscitar obras
universidades estrangeiras, sobretudo' européias (graças aos programas específicas. Georges Duby, que confessa hayer escrito vários de seus
de cooperação como "Erasmus"), mas também americanas. Tal circula- livros sob encomenda, lhes reconhece o mérito de sacudir a indolência,
Ção possui evidentemente muitas vantagens: acelera a difusão dos re- de estimular a inteligência49 • Eles foram particularmente ativos para
sultados, obriga os pesGuisadores à confrontação, nacional e, mais ain- produzir vastas sínteses, primeiramente em escala nacional, com co-
da, internacional, o que tende a desclassificar uma historiografia muito edições "bilaterais" logo â seguir - o editor italiano Laterza fez disso
estreitamente "hexagonal", em suas questões mais que em seus objetos. uma especialidade, com a ajuda de historiadores italianos ~ franceses; os
Mas o "colóquio", mais dissimuladamente, toca a atividade dos histo- volumes são depois propostos para a tradução em outías línguas - , com
riadores de dois modos. A prática da comemoC3ção, em escala nacional coleções agora européias, como a dirigida por Jacques Le Goff.
como na França, em escala mais local como na ltália4S , tornou-se uma Esse real sucesso da história como mercado editorial, que mobi-
das fontes de financiamento das reuniões científicas; ademais, uma lizou - desviou? - uma parte - méiS Gual? - da corporação, influenciou
demanda social forte exige a apresentação de resultados da pesquisa, profundamente as dinâmicas da pesquisa recente? alterou o equilíbrio
para além dos círculos de especialistas, pel~ próprios historiadores. entre a vulgarização e a pesquisa? modificou a própria escritura da
Comemoração e "vulgarização" (sem conotação. pejorativa) podem história? Claude Langlois pr~põe aqui uma perspectiva diferente: qual
perfeitamente se encontrar e multiplicar os en~ontros, como foi o caso a edição necessária para a pesql1isa hi3tórica? Para além das questões
do Bicentenário da Revolução Frallcesa. Compreende-se então facil- clássicas, que tratam da dh:tância entre pesquisa e vulgarização, da
mente o apelo à moderação no uso dos colóqulos, apelo lançado recen- necessária publicação, em atenção a um público de especialistas, de
temente por Jacques Le GOff46. A transforr:.:3ção do historiador em pesquisas austeras e difíceis mas fundamentais, é importante refletir
globe-trotter - um ex~mplo excepcioc:l1 mas revelador é apresentado sobre o laço essencial que o editor deveria estabelecer entre a pesquisa
aqui por Antoine de 13aecque - é não apena~ uma experiência extenuante e ~ demar.da social. A esse respeito, a França, como a Itália ou a Espanha,
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encontr"rn-se em uma situação em que a maioria das obras históricas é históricas1 . Seus a~anços decisivos repousaram na inventividade de seus
publicada por editores comerciais, o que assegura uma larga difusão a autores, na importação, mais ou menos selvagem, de noções 'ou de modelos
esse tipo de livros. Na Grã-Bretanha ou nos Es!ados Unidos, ao con- explicativos vindos cas ciências sociais, mais do que na crí~ica metódica
trário. o essencial das obras históricas é publicado por editoras das fontes. À margem da "galáxia Mabillonn , o "novo historiador" encon-
universitárias, especialistas do livro "acadêmi~". Não estaria aí uma trou-se desarmado, nos anos 80, iace às teses "negacionistas" sobre a não-
das razões do aprisionamento dos historiadores ingleses nUllla torre de existêneia das câmaras de gás e, mais recentemente ainda, diante da aber-
marÍlUl cujos perigos acabam de ser d~nunciados por D. Cannadine? É tura dos arquivos das antigas democracias populares.'
evidente que se, para retomar uma comparação já utilizada, o editor de Em um livro que deve ser meditado, Anthony Grafton nos lembra
história concebe seu produto como uma fábrica de detergente concebe que o desenvolvimento da crítica na éiloca moderna alimentou-se da
um novo sabão em pó, o ,~istoriador fica dependente. Mas a oposição sutileza inventiva do~ falsárioss 2, quer se trate da famosa "doação de
simplista entre lógicas editoriais e lógicas intelectuais negligencia a Constantino" que deveria legitimar o poder temporal do papado medie-
interpen(..'~ração complexa do mundo universitário e dt' meio editorial, vals3, ou dos tristemente célebres "protocolos dos sábios de Sion", texto
a divisão dos papéis entre diretor de coleção e diretor comercial, os anti-semita posto em circulação no fim do século passados4 • Donde, num
risco~ de desclassificação, no campo intelectual, do historiador merce- primeiro momento, uma retomada dos métodos tradicionais da crítica de
nário._. Todavia, que editor atual esperaria quinze anos para que um textos, tlabol ados no sé~ub XVIi e sistematizadcs pela filologia alemã
M:arc Bloch lhe entregasse seu manuscrito de La Sociéfé Féodale [A 00 século XIX, e uma remissão, na falta de coisa melhor, à velha
~ociedade feudal]SO? A oposição dos dois sistemas não deve, de resto, Introduction aux études historique.ç [Intrnduçãe. ao~ estudos históricos],
ser levada longe demais: os editores comerciais franceses se beneficiam publicada em 1898 e recentemente reeditada: C. V. Langlois e C.
freqüentemente das subvenções do Centro Nacional do Livro (CNL), do Seignobos nela assentaram o "método histórico" sobre um tratamento
Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), ou do ministério do de documentos que combinava uma críticà externa voltada para a au-
Ensino Superior e da Pesquisa, quando se trata de publicações de caráter tenticidade - a partir da escritura, da língua, d'as fOl1Jlas ou das fontes
cientifico. Não é o caso de se ignorar ou denegrir essa entrada da do documento - a uma crítica interna atenta ao autor e suas intenções
história no espaço mercadológico, sobretudo enquanto uma avaliação e assim ciosa do verídico .. Se essas fórmulas simples podem constituir
séria e serena de suas conseqüências não tiver sido realizada. um poderoso antídoto contra'as falsificações de todo tipo em um período
de manipulação mediática e de aproximações apressadasss, é apenas
As regras da profissão imperfeitamente que dão conta da erudição crítica, ainda menos das
Não há história sem aplicação rigorosa das regras de uma profissão. práticas atuais da profissão: esse exercício sistemático de comparação
Essa insistente lembrança - cuja compreensão não é imediata, pois eia e confrontação é a um tempo uma "arte racional" e uma "arte de fineza",
remete tanto a princípios formalizados quanto a0 s:zvoir-faire não expresso, afastada de toda regra mecânica; M. Bloch já sublinhou suas formas
adquirido no trabalho ou na atividade de "oficin3" - retira sua origem de muitas vezes antinômicas e ,os seus riscos - como o de substituir uma
inúmeros fenômenos. A "nova história" fundou-se, entre outras coisas, no linguagem da probabilidade por outra de evidência comumS6 .
estuóo das massas - a verdade é então assegurada não pela operação crítica Não nos cabe aqui retomar os grandes elementos da "profissão de
mas pela "lei dos grandes números" - e na iecusa da divisão entre docu- historiador" aos quais M. Bloch consagrou, há, mais de meio século,
mem'os "verdadeiros" e "falsos" - todo dccumento é útil para o historiador; reflexões mais do que nunca funciamentais. Não pode haver história senão
des~ modo ela colocou entre parênteses por um tempo a crítica histórica erudita; a coleta melódica dos dados repousa sobre o recurso, freqüente
ma~ tradicional, ao mesmo tempo em que elabor.lva outros métodos adap- ainda que variável segundo as épocas e os lugares, às técnicas "auxiliares"
tadO$ aos novos tipos de documentos mobilizados, como os testes de - ou "ancilares" - cuja longa lista não cessa de se enriquecer, com a
vali<hffi~nto :las séri~s estatísticas em história econômica ou em demografia introdução, por f"xemplo, de métodos físico-químicos em arqueologia ou
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em História da Arte. Uma arqueologia industrial atenta :lOS arquivos veio móvel toma aspecto de flutuações cíclicas; se se considera que a sucessão
recentemente desmontar o processo da "engenharia criminal", a partir do das colheitas sob o Ancien Régime é um fer.ômeno aleatório, como afirmar
estudo da construção dos crematórios de Auschwitzs7 • Neste quadro, os que os ciclos conjunturais das econoúlias antigas são fenômenos reais? Mais
progressos da história repousam essencialmente sobre uma lógica da recentemente, os efeitos do uso da média nas estatísticas históricas foram
acumulação: acumulação de instrumentos de trabalho e de dados (repertó- submetidos a avaliaçã06o • Restaria ainda examinar a utilização de noções
nos de arquivos e de fontes, bibliografias gerais ou especializadas, dicio- importadas de outras disciplinas, variante do ciáss!co "anacronismo": as
nários, edições de textos, bancos de dados ... ), acumulação de trabalhos ... noções elaboradas para descrever, digamos, os bororos ou os nuers podem
Mas não está aí o ess~ncial: a qualidade da produção histórica depende do se aplicl\r aos aldeões da Borgonha medieval? Muito dificilmente, pois
questionário elaborado pelo historiador; n validade das respostas obtidas "a disciplina da história é, acima de tudo, a disciplina do contexto"61. Ao
remete, para além dos procedimentos empregados, à pertinência da docu- afirmar assi/l a especificiüade disciplinar da história entre as outras ci-
mentação mobilizada em .relação às questões propostas. ências sociais, o historiador britânico E. P. Thompson enunciava uma
A demonstração de Étienne François, aqui mesmo, é, a esc;e res- regra fundamental da profissão de historiador: um fato, u~a realidade
peito, esclarecedora: os relatos dos "informantes não-oficiais" da antiga social ou cultural, só pode ser analisado no contexto muito preciso, quase
Stasi descrevem a oposição ao regime ou são, antes, o produto da máquina estreito, que o produziu ou fez existir.
político-administrativcl.ca ~n!iga RDA e das estratégias complexas de Os instrumentos de trabalho - Durante os anos 1960, no apogeu
seus agentes? Para retomar a velha expressão de Émile Durkheim, o da exploração das grandp,s fontes seriais.. o uso do computador realizou,
historiador, como o sociólogo, constrói seu cbjeto de estudo pela formu- na França, uma entrada marcante na pesquisa histórica. Ele permitia o
lação de questões ou hipóteses, pela definição das bases documentais e domínio sobre corpus até então inacessíveis por sua ~mplitude, permitia
pela escolha dos procedimentos de análisesS8_ Foi neste caminho que a transformá-los em quadros de cifras e gráficos: era, antes de .tudo, uma
reflexão sobre a "profissão" progrediu. recentemente. fantástica máquina de calcular. Trinta anos mais tarde, a introdução d&
Analisando oMontail/ou, vil/age occitan ~{ontai11ou, aldeia occitanna] iniormática na história parece quase paradoxal: os grandes trabalhos de
de E. Le Roy Ladurie (Paris, Gallimard, 1975), Jacques Ranciere sublinha história quantitativa, de Esquisse du moveme1lt des prix et des revenus e1l
o CllStO da construção historiog!"áfica. A etno-sociologia de uma aldeia France au XVIllc siecle [Esboço do movimento dos preços e dos lucros
"cátara" do século XIV só foi possível pelo descarte da heresia que deu lugar na França no século XVIII] de Ernest Labrousse (1933) ao monumental
it visita do inquisidor e forneceu o material de arquivos: "O inquisidor Seville et I'Atla1ltique [Sevilha e o Atlântico] de Pierrp Chaunu (1955-
suprime a heresia ao erradicá-la. ( ... ). O historiador, ao contrário, a suprim~ 1960), foram elaborados com máquinas de calcul"r "pré-históricas"; as
ao enraizá-la. ( ... ) Era necessário que a heresia fosse para que fosse escrito calculadoras de bolso nos anos 1970, sobretudo a microinformática dos
o que não tinha nenhuma razão de ser: a vida de uma aldeia do Ariege no anos 1980 colocaram ao alcance de todos um espantoso poder de cálculo
século XIV. É preciso que ela desapareça para que essa vida se reescreva no no. momento em que o "paradigma galileano" deixa de ser central entre
presente de uma história das mentalidades"59. Re~idade enviesada, reduzida, os historiadores que se afastam do serial e do quantitativo.
mutilada? A operação historiográfica é acompanhada por efeitos diversos: a Não é o caso, todavia, de fazer um balanço negativo. As grandes
menos mal conhecida é a ilusão documentária que, como nos lembra Olivier enquetes quantitativas não cessaram da noite para o dia: a possibilidade de
Guyotjeannin, faz tomar por uma mudança nas realidades observadas o que trabalhar com populações consiJeráveis foi banalizada - Christiane Klapisch
é apenas uma modificação do mode de redigir atos administrativos ou notariais e David Herlihy estudaram :ssim os talvez 250.000 toscanos registrados no
ou 3 aparição de uma documentação antes inexistente. Mais sutil é a produção catast~ (cadastro fiscal) estabelecido por Florença em 1427, André Zysberg
de -artefatos" pelos instrumentos utilizados. Há quase vinte anos, l.-C. Perrot escrutou a totalidl\de dos 60.000 conden~dos às galeras da época de Luís
hu\;a atraído a aten'ião para o efeito descoberto pelo economista americano XIV, lean-Pierre Bardet reconstituiu, a punir de amostragens significativas,
Slurzky: uma série de cifras lançadas ao acaso e substituídas por uma média os corr.portamentos demográficos dos habitantes de Roucn nos séculos
.: ..•.
40 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 41

xvn e XVIII 62. Onde a informática começa a alterar o trabalho do histo- As transformações dos anos 80 não acarretaram nenhuma perd:l no
riador é na introdução da possibilidade de traLalhar com dados cada vez domínio dos utensílios fundamentais: a "transfiguração" das técnicas,
mais ricos, dotados de úm número mais e mais elevado de carac~eres ou mais ou menos antigas, da erudição, o uso refletido da cifra e d:ls esta-
dc variantes. Os anos 80 co~heceram ainda, na França, o desenvolvimento o
tísticas, o aprofundamento da análise cartográfica - uma das originalida-
da análise factorial, no momento em que os h!storiadores complexificavam des francesas 65 - enriqueceram e diversificaram a profissão de historiador.
SCliS modelos explicativos dos processos históricos: apreender as correla- Ma~ ela não poderia ser reduzida a um conjunto de operações técnicas
çõcs não entre dois ou três elementos, mas re-5ituar o objeto. (;studado em uma vez que é, nntes de tudo, orientada para a produção de :::entido, trate-
um circuito muito mais diversificado. A informática permite, igualmente, se de uma explicação ou de uma interpretação.
o recurso a modelos formais para avaliar a importância de tal ou tal fator
num processo histórkdí3 • A econom~tria faz assim uma entrada tardia, e Algumas questões atuais, na França e no exterior
prudente, na história econômica com a publicação do grande trabalho de A história, enquanto disciplina, não pára de reformular seus próprios
J car. · Heffer sobre o porto de Nova Iorque, que recC'rre a modelos econô- problemas, sem dúvida porque a evolução do mundo não pára õe modificar
micos, avaliando a cada etapa sua capacidade explicativaM • a percepção das realidades humanas que DflS cercam. É verdade que alguns
Enfim. no momento em que a história retoma o interesse pelos indiví- não hesitam em pensar que nosso mundo pós-industrial, pós-moderno.
duos e suas trajetórias - as "carreiras", as genealogias, as redes sociais -, o tende a se destacar da ~orrente cas tr(ldi~es que o construíram, abolindo
computador - que não é mais uma calculadora ~não secundariamente - toma a "memória longa" e rem'!tendo os historiadores a seus gabinetes. É verdade
a ser o gerente zeloso de "bancos de dados nominativos: pa!'a C' estudo de que nos Estados Unidos, país de "viajantes sem valise~", a história serviu
vastas populações - as dezenas de milhares de dossiêc.; de membros da apenas muito raramente para exaltar a grandeza nacional 011 "a primazia
administração espanhola no século XVIII (l.-P. Uedieu), ou as genealogias, americana, diferentemente das outras ciências sociais. Mas os historiadores
abrangendo cerca de vinte geraçõcs, dos habitantes do importante po\'o<tdc britânicos denunciaram recentemente com ovigor os perigos de um
de Manduna, na Puglia (G. Delil1e) - mas também de amostragens mais profissionalismo cortado de um público mais vasto, ignorante da demanda
restritas, estudadas de maneira mais intensiva As possibilidades do compu- social exterior. Muitos problemas históricos recentes, sejam eles franceses
tador permitem desse modo' a identificação de indivíduos descritos por di- - em tomo de Vichy ou da dcscolonização - , ou mais amplos - o recru-
ferentes fontes, e o estabelecimento da lista e o encadeamento das variantes descimento dos nacionalismos na Europa,. o retorno de uma extrema-direi-
de um texto através de seus diversos manuscritos (cf. o artigo de l.-L. Gaulin), ta ... - , mostram entretanto como o presente não deixa de interrogar a
a reconstituição do campo semântico de uma palavra em um corpus ou a história e obrigam o historiador a retomar suas pesquisas, a reformular suas
reconstrução das etapas do trabalho tipográfico em uma casa de impressão questões, até a mudar seus métodos. Grandes historiadores de nosso século
do século XV a partir do estudo intensivo de alguns incunábulos. Os não pararam de repetir: toda história possui "o caráter de 'história cont~m­
resultados - bem mais confiáveis que aqueles ohtidos por enquete manual porânea''', gostava de dizer o filósofo-historiador Benedetto Croce6(,; a
- S0 dependem agora de uma realidade fundamcntal: a qualidade das fontes pesquisa histórica inscreve-se em um vai-e-vem indispen::;ável que nos faz
registradas nas bases dos dados. O rigor formal do computador remete pois "compreender o presente pelo passado'" e "compreender o passado pelo
o historiador à crítica erudita. A enquete prosopográfica sobre a alta ad- presente" (M. Bloch), ela é um "diálogo perpétuo entre o passado e o
ministração espanhola em fins do Anden Régime vem assim obrigar os presente,,67, o que Pierre Vilar nos demonstra mais uma vez aqui mesmo.
pes.quisadores a retomar o estudo d"c.; instituiçõcs políticas da Espanha das Questões sempre novas - Esse diálogo se faz mais insistente quando
Luzes, setor que a historiografia tradicional estimava conhecer bem há a irrupção de um presente trágico obriga o historiador a 11m exame de
tempos. Se a utilização "galileana" do computador ameaçava "fetichizar" consciência68. "Devemos crer que a histó:ia nos enganou?" Essas palavras,
os resultados "limpos" saídos da impressora, seu uso mais recente relançou murmuradas por um oficial do Estado-~1aior recém-saído da Escola de
a :eflexlo sobr~ a constituição da informação e a natureza das fontes. Guerra, peq;,untando-se, no verão de 19~. no dia seguinte ao desastre de
42 P~DOS RECOMPOSTOS

FJandres~ sobre os ,responsáveis pela derrota, perseguiram por muito tempo Foi aSsim;'Í1o fim dos ànós 1960/éom; o desviojqué~"des'i6à,ii~:muitcis
. de censura . a. ' d'lSClp
'I'ma69 , lo"t. .
o capitão Marc:'BJoch .,como uma :espéc!e historiadores' fraÍlceses~ edóS"mélhores, deúmã'histórià ecónomlca~e:soclal
,t ,' • •~...... f*IA"'~f ....... ('
sua • " .. "'" ••• , .' . . . . . ,'t !" .-".... .' .. o.i • •

Lucidamente, 'ele' media como as falhus,da formaçã~ :militar, e particular- para lÍniahistóri~ daS 'mentalid~des 'Coie~tlP~~a !ó6fbtlhmi'~etdi~êi~0
mente um ensino.de estratégia que se referia apenas aos exemplos da guerra retrato econômico e ~Ocial;', da" I."raÍl~G.t.~ l:ábÍ'Óu~é!rpro~~i)td~í11stó~' ,
de 1914-1918, haviam itr.pedido ,o, alto comando de 1940 de realizar a ria econômica na Sorbonnei ,ha,'ia retúmãdô; ~partii" dós;i(tlds'·50~ :o~h~cô~te
necessária mudança de idéia diante da Blitzkriegdos exércitos hitleristas: r' '., . '-r .- ", l~: "'.;.'~ t":"'\ .... •" ' .
!,
departamental da país e distribuído' ,3' éada ~llnf'de 'seus-alünós üma 'ci:-cuns-
4',

esse "feitiço do passado"7o não seria, a mais terrível acusação contra a crição a ser estudada. As'ceStriçõesnão tardararii73:!1iavià:ú~at'audáciâum
legitimidade intelectual e a utilidade pragmática da história? Seria o caso, pouco ingênua" em pensar que a' ambição de um' tal·,trnbalhó :COletivó!era
então, de conformar-se ao dito espirituoso qnt; escapou a Charles Seignobos: compatível com 'o "individúalismo' feroz" qUe'lêv~ "tâdi'dohtorando a'afir-
"É muito útil propor-se questões, mas perigosíssimo responder a elas?,,71 mar a originaI: dade de seú procedimento; como 'confeSs{MaunceAgulhori,
, "A resposta é evid~ntemente negativa.' A experiência da Segunda cada um desejava escapar '"da'repútaÇão' de'~serlaté~!():,fim~d~lséuS;di~' o
Guerra mundial, assim como, ma~s recentemente, a queda do mur..) dp, historiador da Somme-Infé'rieure :oti ',do <l1~i~ei-Tertdte"l4.!;Sot)~eíudo,.. a
Berlim ou o ressurgir ,dos nacionalismos na Iugoslávia, obrigam os his- história das infra-estruturas havia" à "partir 'de :,éiitão~j:ónlluistado\éàmplo
toriadores, para compreender a opacidade de um presente, a se perguntar direito de cidadania e, nesse tempo :de' rupmnis rêultUiaisímáio~ei (tránSfor-
sobre a validade dos procediulentos COM os ~is eles cxplicam as trans- m<!çâo dos comportamentos demográficos e'sexuàis;:Iébriêflió"'!do:Vatleano
formações, Refletindo sobre o ~entido dos acontecimentos de maio de 68 rt, crise de maio de 68 oilde a irrupção doiimb6liéo fiiostrav~,a fragilidade
.
e sobre, a vontade: política de prcenche.i.'-lhes as lalh3S, M, de Certeau das convenções sociais~ r:),~rrtijci' sutpn;efiife ~qÚ6101 bih~~r J'iIoS:-liist~fi~d8têS ~
1<.
I notou:'"A história presente, ,a que nós vivemos. nos ensina a compreender se tenha voltado pará fenômenos -no limite dõ"per&Sáv~I:1êÍ'eiiçâ~(-Pdpiilâ~êS~
de outro. modo a' história passada, que se escreve ou se ensina. O saber feitiçaria, profetislÍlo$',!; messianismO§/inas'1anibéuli6!sêx~~~i!m6tte~, 1~'
pode muda~' com, a experiência. Aliás,. sob., o viés desse fenômeno parti- Ao contrário, a his16rià1rur~l'cóhli~'eu:liirií:"irítd~ilstá~~;eí:llps~'
cular -= a palavra tomada. e retomada -:-, somos 'levados n 'um problema após a floração dos:trabalhos1deibisÍórla;-têgiônal q1íe~l'tdói13eãuváisi~
fundamental que provavelmente a estabilidade social e M sistematizações ao Languedoc~ do 'Hurepoix: ao' Midi .toulousian()(há~l~ÍilCSublinhadd~
que a acompanhavam ontem havi"m obliterado: como pode ocorrer uma nos anos 60, a permanêndaFaté inesmo ii 'cón~ervaoodsmÕ;de':scicie~
mudança? Como nasce um novo d~a"!2? As crises do presente alteram os dades ru'ra is· "fottemenÚ~· ~COÍ1trastàda's;~' e;( delinea'cioí')~ãgrasslstemas" .
paradigmas de ontem e o historiador trabalha sempre no presente, mesmo pIurisseculares~" A'Hislôire dé la':Franee' Rurale"1[His'té"tiâ;1da ,França
que, estudando com as regras da mais estrita erudição um objeto do mais rural] (LeSeuiI~' i975-1976)~·dirigida por 'Georges '.nuby~é1;E: :Le"Roy
remoto passado, o faça dt; maneira metafórica.. Lad u rie, :p ropusera Luma 1síntese' consider'adá'~ eritãô~~êOni(fr.defin'i tiva:
A renovação dos assuntos e das problemáticas não nasce jamais in Neste domínio abaildonldo; a história' rural' -renasét';hoj~rgraças' a
abstracto. Ela associa em uma alquimia complexa a acuidade de questões opções metodológicas novas (como o cruzamento de uma história
contemporâneas, a constelação intelectual na qual a história se insere, antropológica das famílias com uma análise econômica ,precisa da
(muito particularmente sua relação com as outras ciências sociais, como empresa agrícola) e revela, por trás da ilusória' imobilidade' estrutural,
o demonstra aqui Jacques Revel), as exigências específicas do campo da algumas descontinuidades: o belíssimo livro de' Jean':Marc Moriceau
própria disciplina, com seu desenvolvimento interno, suas formas parti- sobre os fazendeiros da IIe-de-France entre os séculos XV e XVIII
culares de trabalho, os poderes que ali se exercem. valoriza assim a 'ascensão ~ocial de um "patronato" agrícola no seio
Como qualquer outra disciplina científica, a história possui suas das elites rurais, seu papel motor na concentração e na modernização
dinâmicas internas: ela conhece os entusiasm~ e os desânimos dos pes- das explorações, seus investimentos precoces na educação das crian-
quisadores, ás submissões ,e as rebeliões, ela possui suas enquetes "nor- ças 75 . A criação, em 1993, de uma associação que 'agrupa já 500
mais" e suas "revc!uções científicas", para ret~ar os termos de T. Kuhn.

I It;storiaõorcs, seguida do lançamento da revista Histoire et sociétés


.......

'11
44 PASSADOS RECOMPOSTOS Introduçilo 45

rurales l História e sociedades rurais] em 1994, no momento em que Foi preciso a morte do general de GauHe, o declíni!l do Partido Comunista
os ingleses e sua nova revista Rural Hislory [História Rural] (1991) e sobretudo o desafio que representaiam os estudos americanos (particu-
redescobrem também a história dos campos7 s~o um sinal de que uma larmente os de Robert Paxton) para que a historiografia francesa estudas-
nova geração garante a.continuidade e que a história rural vai retomar se profundamente o regime de Vichy. É evidente que a evolução da
nos próximos anos um crescimento promisser. historiografia da República Federal está estreitamente ligada ao olhar
A história é uma ciência social, quer dizer: "política". É uma antiga que ela lançou sobre seu pa!\sado. Acabada a última· guerra, o
evidência que já foi muitas vezes demonstrada com brio: a historiografia historicisíDo tradicional, saído da escola prussiana do fi~ do século
da Revolução Francesa adere estreitamente à evolução política da França, passado, perdurou até 1960; a partir de uma história centrada sobre a
até mesmo do mund076 • O vigor da história depende então da liberdade política e a diplomacia, e em uma ótica nacionalista, ele não responsa-
de que dispõem os indiví1uos para pensar e agir. Na Alemanha Oriental, bilizava a Alemanhl pel~ Primeira Guerra Mundial e considerava o
a despeito de algumas exceções notáveis, o sistema muito centralizado de terceiro Reich uma aberração na história nacional: em nenhum dos casos
controle' ideológico e político - o.grau de adesão ao partido comunista a Alemanha era culpada. Só se colocou em questão essa aborda 6em nos
aumentava em função direta da hierarquia dos postos e a quase totalidade estertores dos anos 1950, com a demonstração dos objetivos imperia-
dos professores de história moderna e contemporânea das universidades listas da política de Guilherme 11 em 1914, e depois da implicação de
eram membfC\s do Partido - desembocou o mais das vezes no conformis- ampios setores da sociedauc aiemã r.o sucesso do nazism080• Obra de
mo de um catecismo conceitual e de uma linguagem ritualizada, que jovens historiadores, essa reviravolta historiográfica se desenvolve com
bloquearam ou retardaram as renovações, apesar de alguns espaços de o sucesso político da coalis:!o social-Hbcral. Eln instala a história no
liberdadc". Distâncias consideráveis separaram entretanto as historio- meio das ciências sociais, afirma a singularidade de uma história alemã
grafias dos diversos países ditos "do Leste" segundo sua resistência à a ser reinterpretada desde o século XIX: 1;lma industrialização sem re-
dominação do aparelho do Estado e do Partido. volução burguesa, um país dominado pela a.ristocracia proprietária dos
Na Polônia78, as exigências de alinhamento·doutrinal e a severidade JUllkers prussianos, um nacional-socialismo como ql'e desembocado de
da censura política puderam acarretar o abandono de certos assuntos de uma "via específica" - o sonderweg - na modernidade.
história contemporânea julgados muito explosivos ou a adaptaç~o da his- Nos anos 80, esse novo paradigma foi por sua vez criticado pelos
tória nacional à conjuntura política, mas não encontraram a mesma adesão defensores de uma corrente historiográfica que, em nome de uma abor-
maciça. A historiografia polonesa foi capaz de se renovar lá onde os objetos dagem mais CUltUI aI e antropológica das realidades sociais, deseja
em jogo não pareciam decisivos para o poder. Os medievalistas Gesenvol- reapropriar-se da dimensão subjetiva do viver cotidiano, no nível rc.;gio-
veram desse modo a metodologia original da cultura material a partir de nal, local, até mesmo· individual: as macroformulações das ciências
um programa muito amplo de pesquisas arqueológicas: nesse terreno, com sociais - industrialização, modernização ... - não podem dar conta dr
o ~\'al das autoridades, e sem que o controle de~t:lS últimas pudesse distorcer relação que se elabora entre as contradições materiais da vida e os
os resultados, eles estiveram na ponta da ino"ação tanto na história da comportamentos dos atores sociais 6 :. Se o sucess() deSSe! Alltagsges-
produção agrária e industrial quanto na história das técnicas, do habitat, da chichte pode ser posto em paralelo com a subida dos "verdes", o avanço
alimentação ou do vestuário. Se a isso se acresc-.cntam os estudos sobre os à direita dos anos 1980 é marcado por uma tentativa, de banalização do
sistemas mitológicos, as culturas populares uu os excluídos, os historiado- "nazismo", considerado como o caso extremo de práticas mais larga-
res poloneses puderam propor modelos d::- pesqt:isa aos países "ocidentais". mente difundidas. Esse "debale dos historiadores" - o Historikerstreit
Seria conveniente então nos interrogarr.10s sobre as pressões que - dos anos 1986-198882, fortemente ideológico e político, não desem-
afetaram a historiografia dos países ditos "livres" durante a gucrra fria, boca dc fato em nenhum grande avançü mctodológico ou científico. As
tendo em mentc que "todas as questões históricas tendcm a ser colocadas reformulações dus historiadores .;eriam apenas, por vezes, a simples
sin1ult~near.:entc ccrno questões políticas". e n50 somente na Alemanha'9. reativação de =livagens antigas?
46 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 47

significativos dos novos tipos de relações que os historiadores entretêm com


Os Grandes Paradigmas a economia ou a sociologiass . Nenhuma dessas formulações tem ambição
As questões renovada:; não ganham sentido senão no seio de totalizante, elas correspondem bem às necessidades de uma história espe-
modelos dc compreensão que tomam sua solução possível. Nos anos 60, cializada, de horizontes limitados; elas concernem, enfim, no essencial, aos
um problema devia integrar-se em uma história "glob:!l", que pretendia dois domínios que se elevaram ao prime!ro lugar durante os anos 1980: a
dar conta da evolução das sociedades em seu conjunto; a resposta era história política e a história cultural.
obtida pela serialização de documentos e sua avaliação quantitativa. Duas vias se desenham então. Seja rc!construir, em bases diferentes,
Mapas, diagramas; quadros estatísticos. eram instrumentos indispensáveis uma nova amhição de totalidade, seja propor como· ponto de partida da
para se analisarem relações estáveis que compun~Õ1m sistemas - estruturas análise histórica o que, à margem, resiste freqüentemente à investigação.
_ e as transformações temporais que as afetavam, no próprio seio dessa Uma nova ~,mbição "totalizante" veio à luz recentemente, a partir
estrutura - a conjuntura. Tal modelo "estrutura-conjuntura", caro a C. E. do político ou do cultural. No primeiro caso, a reflexão mais avançada
Labrousse, a Pierre Vilar e a um grande número de historiadores france- ['.)i con~uzida em torno da "história crítica" da Revolução Francesa pro-
ses, repousava sobre uma representação do universo social vagamente posta por François Furet. Marcel Gauchet pretende desse modo fazer do
derivada dI) marxismo, o que P. Chaunu denominava o foguete de três político, desembaraçado do "jogo das forças sociais", uma &:nova chave
estágios, onde. o econômico precedia (ou dcter:ninava, segurado as opções) para a &rquitetura da totalidade" que permitiria "uma recomposição do
o social, e o social o cultural. ãesígnio de uma história total" e autorearia a construção de um novo
Esse horizont~ de referência dos his~oriadcres france!;es terminou paradigma. "Longe de se reduzir a essa parte superfidal e transparente
por desaparecer no decorrer dos anos 70. A crise econômica que dava um do funcionamento das sociedades sobre a qual acreditava-se saber tudo,
fim às Trinta Gloriosas e a suas "grandes esperanças", ao mesmo tempo o político constitui o nível mais englobante de sua organização ( ... ). É
abalou as grandes conceitualizações. Os grÕ1ndes paradigmas - de dupla do ponto de vista da forma política que a coerência hierárquica da ordem
referência a Marx e a Freud, mas seria necessário provavelmente acrescen- social e material do Ancien Régime se revela melhor. Do mesmo modo,
tar alguns outros, como Malthus - dão lugar a um arsenal diversificado de é apenas do ponto de vista d\J poder e de sua história que as fraturas
instrumentos e de abordagens teóricas, tomadas de empréstimo no essencial maiores iniciadas por sua lógica, tanto no plano diretamente político como
a outras ciências sociais: as conceitualizações políticas de Tocqueville; a no plano dos fenômenos induzidos, como a separação da economia, se
descontinuidade dos "epistemai" e a microfísica do poder de M. Foucault; tornam plenamente legíveis"86. A outra versão do retomo à totalidade
a "reprodução" social, as "estratégias", os "campos" ou o "habitus" de P. residiria talvez na promoção recente, nos Estados Unidos, dos cultural
Bourdieu; o "espaço público" de J. Habermas; a "configuração" ou a stlldies, onde o mundo em sua totalidade inserever-se-ia na esfera das
"interdependência" de N. Elias ... A lista, que se ampliaria se ultrapassás- práticas e das produções culturais87 .
seffil'S as fronteiras, embora revelando pontos C',"'\muns - a extraordinária Essas duas tentativas repousam numa lógica semelhante: fundar um
fortuna, quase póstuma, de N. Elias - e divcrgências - a espanto~a ausê:1cia novo paradigma buscando a instância ao mesmo tempo mais central e
da sociologia compreensiva de Max Weber na França - , permite todavia mais englobante. Outras lógicas partem de uma constatação oposta: a
algumas conclusões gerais. Os historiadorcs não constroem mais do que construção do objeto histórico, que supõe um recorte específico do real,
anteriormente instrumentos teóricos que lhes seriam próprios, o que indica, é incapaz de dar conta de lados inteiros do "continente história", das
segundo R. Chartier, um "déficit de pensamento- S\ seu "bricolage" tende asperezas, das singularidades, dU3 "qued~s" que resistem à formalização
toda\'ia a se tornar um diálogo mais exigente e mais rigoroso, em que se c às categorias nas quais as queremos inserir.
mesclam a recusa de uma interdisciplinaridade :ndulgenteH4 e U111 esforço Para responder a esses silêncios, duas estratégias diferentes foram
ativo de "tradução" conceitual. Os trabalhos de Bernard Lepetit sobre recentemente propostas. A primeira foi desenvolvida pela micros/oria italiana
histl'ria urbana ou de Chdstophe Charle sobre hi~t6ria ~ocial são exemplos .1 paí!ir de 1:doardo Grendi, Carlo Ginzburg c Giovanni Levi. Trata-se
'i7.~;"'-"
._"";!/"',('
;~,
111
48 PASSADOS RECOMPOSTOS
. .' "Introdução 49
:!
e!:scncialmente, por um deslocamento de foco da objetiva que aumenta o talhando suas palavras excessivamente sob nossas interpretações" negli-
:1 número e o tipo dos dados possíveis, de -fazer emergir outras configurações genciando a particularidade dessas "vidas encalhadas,em,:~rquivos~~~que
·1
onde aparecem, em toda a sua complexidade, concretamente, as relações dizem a violência, a humilhação ou c prazcr92};Ess~~,,~ida5.~~c~i!t~~~
sociais e as estmtégias individuais e coletivas: considerar, as condutas ''<1t colhidas no arquivo judiciário e policial sã,? o pão ~~q~i.d.i~~, ~~~ ,~~~tte
pessoais e os destinos familiares permite, melhor que agregados estatísticos, Farge. Uma perturbação da ClCdem social obrigou ás' p~~~~s ~_s~. relata~em
compreenderem-se as racionalidades específicas que informam os compor- diante da úutoridade. Daí a surpresa !,erpétua :do:. historiador:.à: leit~ra
tamentos de tal ou tal categoria sociaJ, muitas vezes nos interstícios de desses textos, c com o manejo dos objelos. modest~~ que.la: ele~ :foram
sistemas normativos cuja coerência inexiste88 • A restrição do campo de reunidos - panos, grãos, cartas de baralho, - como 'se:()~ detaiheS. mais
observação não é nem retorno à biografia, nem complacência com a íntimos de uma vida fizessem, para além da m~rte, u,maaparição emnbsso
monografia local: trata-se, ao cmitrário, mudan'::o de escala, de fazer surgir mundo. Mas esse real nasce de uma prática de poder que ordena o texto
modelos de compreensão mais operatórios, que restituem as margens de segundo as exigências do interrogat6rio_ Não há então :,uma "verdadeira"
, jogo deixadas !.os atores pelas formas de dominação. Para dar conta disso, palavra popular a se exumar como um tesouro enterrado. .", ;,,; .
Edoardo Orendi adiantou a noção de "excepc:onal normal", o que pode A partir dessas parcelas de discurso, desses fragmentos de vi~a, é
significar quc uma sociedade se lê mais em suas m.argens que em seu centro; todavia possível reconstruir os modos de racionalidade que regulam'prá-
C. G inzburg, retomando a comparação com o p'1licial investigador, falou ticas e açõcs, os códigos que regem as relações soc:ais no bairro, na
do "'paradigma do indício": ,o historiador começa seu trabalho seguindo um oficina ou no botequim, a~ r~lações entre homens 'eimulheres93• Pois o
indíci0, que não é mais do que um "resto" muitíssimo significativoS!). "populacho" não é esse menino crédul~ irncion,a!' e . violento')q~e;, os
Oinsburg analisa os mecanismos de troca entre cultura popular e administradores teimam em ver nele. Seguindo os~mâus discursos"! trans-
cultura erudita no final do século XVI, a partir do processo da Inquisição mitidos pelos inspetores de polícia, ele:. sabe i, també~"lIlanifes~~r~~ua
contra o moleiro friulano Menocchio, um indivíduo original e eviden- "opinião"; não a nossa "opinião púbIi':!a~;!ill}ensurável;,;e: rma~içap~as
temente excepcional que representava o cosmos sob a form~ de um "opiniões sobre" (tal ato do rei, tal acontecimento,: taloêorrência)/Ii16~eir
queijo comido por vermes 90• Le pouvoir au village [O poder na aldeia], e fluidas, saídas de esquemas lógicos com 'os ,quais os d'ferentes·atores
de G. Levi, começa por um relato minucioso da atividade de um padre reconstruíram sua interpretação dos fatos de que não conhecem senão um
exorcista de aldeia que revela, aumentando-as, as inquietações de uma pedaço. No século XVIII é 'que se enraíza em cada indivíduo a segurança
população rural submetida às incertezas do tempo; ao longo do texto, de que é legítimo julgar e saber. O que faz surgira arquivo' policiaLé, que
ele propõe uma releitura da sociedade rural do Ancien Régime, demo:ls- a opinião popular dos períodos antigos não se forja segundo um processo
trando a existência de estratégias ativas na população aldeã através da cumulativo e automático ligado à multiplicação; das. leituras, (libelos,
•.hlálise do sistema das alianças, das políticas de transmissão do panfletos, cartazes), mas pela scparação das idéias confroritadas com uma
patrimônio ou do mercado de terras. A socicdaje Jnt:ga, organizada em pluralidade de aeontecimentos94 •
lorn\.) de amplas "frentes de parentesco" - do família nuclear européia, Diferentemente da microstoria, essa abordagem ,repousa ~obre a
cara aos demógrafos ingleses do Cambridge Group, é rejeitada entre as importância atribuída ao detalhe quase insignificante e' sobre seu, trata-
noç0es inúteis e enganosas, consegue criar? à sua maneira, formas de mento: aqui, não mais modelos formais para dar conta das racionalidades
segurança em face das crises e das guerras'jot. próprias a uma categoria social, mas um retorno voluntário à desordem,
A segunda via divide com a microistór:t.: o projeto de restrição do às descontinuidades, a tudo o que excede ou rompe a normalidade
campo de observação e a preferência pelas m::.;~cns como terreno de ação. majoritária. Daí a atenção dada ao trabalho de escrita que participa da
Ela parte da estranheza muitas vez~s ignor::.'::;J. dos documentos que ai i- inteligência do material: a história permanece fundamentalmente um relato
mentam o trabalho do historiador. São mortos. que falam: não podemos - François Hartog nos lembra - e a !orl.Ul desse relato é 'consubstanciaI
res..~uscitá-Io.; ma:; nos ar;iscamos a "matá-los uma segunda vez" amor- à compreensão do objeto. "Por ter visitado os limites de sua terra, por ter

I
;~~.
:;11:.'.

Introdução 51
50 PASSADOS RECOMPOSTOS

sido, como Robinson, 'comovido' pelos traços da ausência marcados nas Há alguns anos, o livro de P. Novick suscitou um amplo debate sobre
margens de uma sociedade, escreve M. de Certetlu, o historiador retoma a "questão da objetividade" nos Estados Unidos9'); a discussão existe tam-
modificado mas não silencioso. O relato põe-se a f.!lar entre contempo- bém - mais discretamente? - na França; C. GÍllZburg evocou-a', a seu modo
râneos. Parece-me que ele pode falar do sentido tornado possível pela e em um contexto muito específico, na Itália 100. As obras históricas seriam
ausência quando não há mais outro lugar senão o discurso. Ele diz então apenas obras de ficção, já que a história nãc pode escapar ao relato, que
alguma coisa que se relaciona com toda comu'licação, mas ele o narra em é antes de tudo um gênero literário? Mas se o recurso inevitáve! ao "relato"
forma de lenda - para bom entende~or meia palavra basta - em um não implica no abandono de toda intenção de "verdade", de que tipo de
discurso que orgàniza uma presença ausente e que guarda do sonho ou "verdade" se trata? Mais do que nunca, o historiador' pretende construir
do lapso a possibilidade de ser a marca de uma a!teridade alterante" .95 fatos "reais", mesmo se essa verdade for parcial, imperfeita, por vezes
As questões do tempo - Mesmo se o mundo dos historiadores tende insatisfatória. Não há irabalho histórico sem produção erudita d~ dados,
a se confundir hoje em dia com o planeta, se uma história "transnacional" apoiada em documentos que não podem assumir um sentido qualquer, ao
se afirma como um instrumento indispensável à compreensão de nosso sabOl' da subjetividade ou parqialidade do historiador. Mas nem por isso este
tempo, os questionamentos contemporâneos não podem escapar às preo- abdicou de sua verdadeira ambição, que é a de dar sentido aos processos
cupações nacionais. A Grã-Bretanha dos anos 80 se esforça em sublinhar h;stóricos. Seja o método escolhido explicativo ou interpretativo, o resul-
as continuidades de sua história, iss<.J quando há dezenas de ~mos seus tado produ-zido não se avalia jamais pelo brio ou virtuosismo do autor. Os
historiadores haviam posto em evidência seus aspectos pioneiros, com a historiadores do século passado publicavam, em anexo a suas obras, do-
precedência de suas revoluções, política e d'!p0is industrIal: assim, um cumentos autênticos que chamavam de "provas"; hoje o trabalho histórico
livro recente, e muito discutido, apresenta a sociedade inglesa como uma prova suas análises certamente pela segurança da documerltação produzida,
sociedade de Ancien Régime até o alvorecer do século XIX9lI. O mas sobretudo pelo rigor dos procedimentos utilizados (lógiea do raciocí-
""excepdonalismo" americano da "escola do consenso", fu.ndado sobre a nio, instrumentos estatísticos pertinentes)lol. O imperativo de verdade, por
experiência da "Fronteira", a ausência de tradições feudais e hierárquicas, . muito tempo denegrido como um avatar do "positivismo", retomou assim
a forte mobilidade social, deu lugar a uma forte negação dos caracteres em nossos dias ao primeiro lugar uas preocupações dos historiadores.
constitutivos - "mitos fundadores"? - d~ uma nação americana: raça, Sua reformulação não levou entretanto o hh:toriador a uma falsa
etnicidade, "gênero", chisses - a diversidade é primeira e interdita a segurança dos "fatos". Seu objeto privilegiado permanece sendo ainda a
escrita de toda história unificada do país'J7. dinâmica das sociedades humanas, mas sua abordagem mudou prc~unda­
A França também tem suas questões do tempo: a publicação, nos mente, à escuta de nossas interrogações mais atuais. A "aerrota" do
últimos dez anos, de um conjunto impressionante de Histoires de France progresso calou a questão, antes preeminente, do surgimento da "moder-
[Histórias da França] muito diferentes em suas abordagens, sublinha o nidade", seja econômica, política ou cultural, e afastou essas dinâmicas
.etorno de preocupações nacionais; a história do antigo império colonial longas que faziam se suceder majestosamer.te as grandes fases da história
faz uma reaparição marcante, muito comumente sob a forma de nostalgia da humanidade. A erosão ou o esmigalhamenlo das crenças de todas as
imperial, por vezes em um esforço original de análise das relações com- espécies abalou as grandes rnodelizações totalizantes, pondo em relevo,
plexas entre colonizadores e colonizados; os novOS problemas apresen- para além das lógicas do interesse, as tensões entre indivíduos e grupos,
tados pela integração social de populações de culturas afastadas das as distâncias entre práticas e normas, as falhas que ameaçam a coesão
"'tradições" francesas suscitam trabalhos fundamentais sobre o "cadinho frágil das sociedades. O fim brutal e ~nesp~rado das "democracias popu-
nacional"tJs. Não se trata aqui de inventariar esse mosaico de interroga- lares" convida mesmo a ceder um grande espaço ao imprevisível. Envol-
ções específicas, mns de distinguir, para além dessa diversidade funda- vidos em uma crise genera!izada das múl:iplas modalidades do "crer",
mentalmente política, algumas grandes questves - necessariamente mais testemunhas das resistências às manipulaçõcs mediáticas, os historiadores
instn:aran~ no celltro de suas preocupaçõcs a questão da "crença". Em
abstratas - mais largamel1te repartidas.
52 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 53

li.lguagem cOP.'lum, a palavra tem apenas uma acepção restrita, ligada à imagem de tensões tornadas inacreditáveis no consenso consumidor de uma
esfera religiosa, enquanto que, em verdade, ela remete às dimensões sociedade do espetáculo. Nao se trata, em nenhum dos casos, de depreciar
subjetivas da vida social. Essas representações de toc!as as ordens, no essa busca de enraizamento, de subestimar os esforços consideráveis de
ponto de partida áa constituição das identidad~ do local ao nacional, do salvaguarda que foram empreendidos. O AlémoriaI de Caen ou o Historiai
individual ao coletivo, desembocam nas formas complexas de adesão e de Péronne são, a esse respait0, sucessos exemplar:s.
de recusa no coração de coesões sociais tornadas bem improváveis. Mas essa onipresença do passado - sintoma inquietante de um
déficit - não ameaça torná-lo sufocante? Apenas duas questões serão
Necessidade da História propostas. A disciplina histórica não tem por objetivá celebrar tal ou tal
Vivemos um período em que vemos desaparecer sob nossos olhos memória particular ou ressuscitar o que se passou, mas tomar compre-
'tradições plurisseculares: aldeif" desertadas, ~omplexos mineiros, side- ensíveis, em toda a sua complexidade, as relações que unem ou dividem
rúrgicos ou têxteis desativados nos lembram cotidianamente o fim de os homens e as mulheres, os diversos grupos sociais, os governantes e
antigos modos'de vida. Mas não se trata apenas de uma págintl de história os governados... sem apagar nenhuma de suas asperezas. Ao mesluO
que se vira; assistimos a uma cri~e generalizaJa da transmissão cultural: tempo, a história guarda em nossas sociedades democráticas uma função
que c;e tornaram as crenças e convicções no interior das .igrejas que se cívica insubstituível. Nada pode evitar, a cada geração, o ato que lhe faz
esvaziaram, nos p~rtidos políti"cos ou sindicatos? As grandes formas a um tempo receber um passado herdade' e :alter6-10 eúl função d:as exi-
coletivas que asseguravam no país a transMissão dos va~ores às jovens gências do presente. "A tradição - escreve Michel de Certeau -, só pode
gerações parecem ter-se apagado. O tempo das procissões cristãs triul!fais estar morta se permanece intacta, se um~ im'enção não a !=ompromete
agora ficou distante, e os" desfiles do Primeiro de Maio são cada vez mais dando-lhe vida, se ela não é transformada por um ato que a recria" 102 •
magros. Um certo fio de uma tradição viva foi sem dúvida alguma cortado, Nesse sentido, é o trabalho histórico sobre o passado que, ao instaurar
e os aprendizados passam agora por outra3 vias. " uma distinção fundamental entre história e ~emória, torcia possível a
No momento em que essa perda é sentida como uma amputação, um apropriação crítica das tradições. Pois são certamente as cmnemorações
desapossamento de si, a "memória" conhec~ uma valorização espantosa, aparentemente mais sacrílegas - como o desfile dos tanques alemães nos
com uma busca, por vezes patética, do testemunho marcado pelo duplo ~elo Champs-Élysées no dia 14 de julho ue 1994 ou a presença do presidente
da autenticidade e do vivido, ou, inábil, das '"'ante-memórias" que repou- da Alemanha reunificada n"a comemoração da insurreição de Varsóvia no
saria.m, intactas, nos depósitos de arquivos. Ao mesmo tempo, os museus 1U de agosto de 1944 - que carregam o futuro.
prol iferam, encarregados de suportar a partir de agora o peso de memó:ias
particulares, assim como os espetáculos "populares" - dos Misérables
[ivliseráveis] de Robert Hossein ao GerminaI de Claude Berri, mas também
da representação do combate vende ano no Puy-du-Fou organizado por P. Notas
de ViIliers, ao Ils 0111 tué Jaures [Eles matara.m laures] realizado por P.
10 diretor da Faculdade de Ciências de Paris, M3TC Zamansky, escreveu nü Le MOllde
Quiles em Carmaux. De um lado o modelo patrimonial que, em um espaço de 10 de abril de 1964: "Diminuiremos fa.citmente o total de horas do curso
neutro, transforma em objeto os instrumentos cotidianos, o habitat, os tornando secundárias as disciplinas que de (;ato o são. Por exemplo: a história ...
costumes de um passado já morto, subtraído ... 0 tempo das "tradições Pode-se ler uma obra de hist~ria aos vinte ~nos pela primeira vez.
populares" muitas vezes reinventadas. De out:-'.). a exaltação romântica de
2 Henri-Irénée Marrou, De la cOllllaissallce /risll."lrique, Paris, Seuil, 1954, p. 103. Em
combates originais, tanto mais distantes quanto mais as condições de vida
seu artigo "Commcnt comprendre le métier á·historien" para L 'Hisloire el ses mt!-
da sociedade contemporânea mudamm radical:l1ente. De um lado, um in- ,/rodes, Paris, G •. llimard, 1961, de C. Samaran. Marrou escreveu: "só pode vulgarizar
ventário etno-histórico que "privilegia os traço:; de identidade de uma co- a ciência o erudito verdadeiro, aquele que se situa, por seus trabalhos pessoais, na
munidade (úldei .. , profis::.ão etc.) em relação aos conflitos. De outro, a ponta da pesquisa, lá vnde a ciência está se produzindo" (pr. 1538-1539).
54 PASSADOS RECOMPOSTOS Introdução 55

3 A coleção, visando o "grande público instruído", se re_cusa a ser uma história pour Pilistoire sérielle, le quantitatif au troiSieme niveau", in Mélallges FeTllalld
"univers.-.I" do mundo: ela pretende multiplicar os observn~órios e recusa o euro- Bralldel, t. 11, Toulouse: Privat, 1972, p. 105-126.
centrismo. Cf. a introdução geral redigida por F. Braudel em A. Varagnac (dir.).
L'Homme avant I'écriture, Paris, 1959, pp. VII-XII. 12 F. Furet, "Le quantitatif en histoire", op. ca, p. 55.

4 Gecrges Duby se explica em L'Histoire cOlllillll:!, publicado pela eoitora UFRJ e 13 M. Serres, "L.es sciences", in Faire de r~oire, up. cit., t. li, p. 228.
Z:lhar em 1991, Paris, Odile-Jacob, 1991, pp. 133-134. 148, 152. Ver aqui mesmo
o artigo de Claude Langlois. 14 Ibid. t. 111, p. 265.

5 Dos 35 colaboradores, 15 são antigos alunos da École des Chartes. A obra abre espaço 15 A colaboração de Alain Besançon sobre o imronsciente, consagrada à comparação
tudavia para o testemunho sonoro, o cinema, e se abre (com prudência) a "algumas de um mesmo episódio em dois romances russos dos anos 1860, um de Tchemychevski
novas orientações": a lingüística (Mareei CC?hen), as economias e as sociedades antes e outro de Dostoiévski, p..~ece hoje pouco convincente. Ibid, t. m, pp. 31·35.
da era estatística (Philippe Wolff), os dados demográficos e estatísticos (Jean
Mauvret), a história das mentalidades (Georges Duby). lei P. Vit.r, "Histoire marxiste, histoire en coa:struction", ibid, t. I, p. 179.

6 A Dupront, "Présent, passé, histoire", in Histoire ell'/rislOriell. Recherches et débats 17 Ibid., t. 11, p. 67.
clu Celllre des ill(LII~c'uels ralho!!qu'!s, Paris. Fay,rd, 1964, p. 18. Cf. ainda
"L'histoire, ~cience humaine du temps Frésent" • in Revue de syllth~se, números Ullbid., t. I, p. 32.
37-39, 1965, e o número especial da Revue cl..: I'e'rsdgllemellt sllpériellr, 1969,
números 44-45, preparada p~r Robert Mandrou, I,;om o uíptico ·'L'histoi:-e apres 19 Ibid., t. 1., p. 27.
Marx" de Pierre Vilar (pp.- 15-26) e "L'histoire apres Freud" de A. Dupront (pp.
27-63). :W Para um panorama exaustivo da história !medieval francesa, cf. Michel Balard
(diretor), L'Histoire médiévale ell Frallce. B3tz" et perspectives, Par;s, Le Seuil,
7 Aujourd'lrlli /'!risloire, Paris, Éditions sociales, 1974, reúne os artigos publicados 1991.
entre 1967 e 1973 pela Nova Crftica durante uma enquete que, graças às colabo-
ra~~s dos mais dinâmicos historiadores desse período (Georges Duby, Robert 21 I. Wallerstein, Le Sysléme du mOllde du Xttt s:iécle à 1l0S jours, Pari~, Flammarion,
M;ndrou, Jean Bouvier. Pierre Vitar etc.), visaviJ uma reflexão teórica sobre a 2 vol., 1980, em curso.
evolução da historiografia.
22 P. Kriedtke, H. Medick e J. Shlumbohm, Ináu:strializatioll be/ore bldustrializatioll.
li A metade dos autores da No~velle Histoire pertence à École des Hautes Études en Ruralbld!lstry illlhe Gellesis o/Capitalism, P.aris-Cambridge, 1981 (edição alemã,
Scknces Sociales. Para o DictiOllllaire des sciellces hisloriqlles, essa proporçãu cai Gõttingen, 1977).
par.! pouco mais de um quarto. Nos dois casos, a qU3ntidade de parisienses per-
manece amplamente majoritária, mesmo que, com 95 autores, o Dictiollllaire des 23 Les Licux de mémoire, P. Nora (diretor), t .. I La République, t. 11 La Natioll, t. JJI
sci.:."I1CeS hisloriqlles se abra mais largamente aos provincianos (21 % dos autores) La Fra/lce, Paris, Gallimard, 1984-1992, 7 "olume~.
c ;l .."\S historiadores estrangeiros (10,5%).
24 Para um balanço recente da história dos banCC$ franceses, Hubert Bonin, "L'Histoire
., Jaccucs Lc Goff e P. Nora (editores), Faire de l'I,istoire, t. I Nouveaux problcmes, bancaire française entre I 'univcrsité et les anrtiversaires", L 'i/l/ormatioll historique,
lo li Nouvelles a/Jproches, t. 111 NouveallX objels, Paris. Gallimard, 1974,3 volumes. LV, 1993, pp. 73-77; para a pesquisa italiana.,. Giulio Sapem, "11 professor Roverato
e i1 professor Bairati: ovvero dell'utilità e ÕCI danno della "storia d'impresa' in
lU F. Furet, "Lc quantitatif en histoire", in Faire de' Izisloirc, op. cil., 1. I, p. 59-60. Italia", Sociclà e Slor;a, X, 1987, pp. 949·975.

11 P. Chaunu, "L'économic. Dépassement ct perspcclivc". Faire cle 1'l1isloire, op. cil., !S ~ode-se remeter aqui ao bciíssimo volume -!n1 homenagem a F. Bédarida, Écrire

lo 11. pp. 66-67. Em 1962, comentando a tese de Michel Vovelle sobre I'iété baroqlle I'!risloire dll lemps préselll, Paris, CNRS Éditions, 1993.
el .-Jéclrrisliallisalioll, defendida em 1971, P. Chaunu já fizera um vivo elogio do
··I.1·.Jantitativo no terceiro nível", então em plena cxp:lOsão: "Un r.~uvcaux champ 2e1 F. BI.ludel, Écr;ls ~lir ['!risloire, Paris, Aa:.mmarion, 1969, pp. 12 e 46.
56 PASSADOS RECOMPOSfOS Introdução 57
~1 f. Furei, "La passion révolutionnaire au XXC siécJc", in Le Pellsée Polilique, 1994, :11 J. C. Passeron, Le Raisolllremelll sociologiqlle. L'espace IlOll:..poppéri:!II du
Écrire l'/zis/oire áu XXc siée/e, p. 39. raisonllemelll nalurel. Paris, ,Nathan, 1991, pp. 24-27.

~lt Todas publicadas, a partir de 1975, pelas Éditions Seuil. •CC' J.W. Scott, "History in crisis? The others' side ':)f the story'", in American Hislor;cal
Review, XCIV, 1989, p. 692.
~~ P. Léon (diretor), L'His/o;re écollomique el sociale du mOlld!!, Paris, A. Colín, 6
volumes, 1978-1982; H.-J. Martin e R. Chartier (diretores), L'H;s/o;re de I'édilioll 41 Piel're ViJar, arl. cit., p. 169.
!rallça;se, Paris, Promodis, 4 volumes, 1~83-1986.
42 M. Bloch, Apolog;e pOlir I'!ris/oire ou le métier d'hislorien. Paris, A Colin, 1949;
311 R. Rémond (diretor), Pour uIle /ristoire polilique, Paris, Le Seuil, 1988 [Por uma edição crítica acaba de ser, publicada por Étienne Bloch, Paris, A Colin, 1993.
uma /ristória política, publicado pela Editora UFRJ e Editora FGV em 1996];
para a história das relações internaciomaIs, um b~lanço problemático recente: 43 Por exemplo, Paul Veyne, Commellt 011 écrit I'!ris/oire. Paris, SeuiJ, 1971.
R. Girault, "De Renouvin à Renouvin", in P. Renouvin (diretor), Hislo;re des
rel':lliolls illlerllalioll"les, nova edição, Paris, Hachette, 1994, t. I, P!l. 1- 44 C. Langlois e R. Chutier, Les Hisloriens et I'organizalion de la r~c1rerclre, Mi-
XXXVIII. nistério da Educação Nacional, setembro de 1991, p. 18; Mirella Scardozzi, "GIi
insegnamenti di storia nell università italianc (1951-1983): Ira 'immobilismo e
31 Para um ponto de vista estrangeir~, CharJes T. Wood, "The relurn of medieval frammentazior.e", in: Ql:aderni slor;ci, XX, 1985, pp. 621; D. Cannadine,arl. cit.
polilics", in Americall Historical Review, XCIV, 1989, pp. 391-404. p. 171. A situação é muito menos preocupante do que aquel:: descrita há dez anos
por Daniel Roche, "Les Historiens aujourd'hui. Remarques pour un débat",
l: Trata-se ape.las de um exemplo entre outros: cf. L 'Elat modeme: gellese. Bilalls Vinglieme Siecle, n. 12, 1986, pp. 3-20.
el perspcctive. J.-P. Gennet (ed.), Pa:is, ed. do CNRS, 1990.
4S Uma discussfto internaciona! sobre a questão figura no nl! 78 do Débal, janeiro.
II J. Revel, "Uhistoire au ras du sol", in G. Levi, Le pouvo;r au vil/age. Hisloire de'u" fevereiro de 1994.
exorciste dans le Piémolll di XVIllc siécle, Paris, Gallimard, 1989, pp. I-XXXIII
(edição italiana, Turim, 1985). 46 Jacques Le Gorr, "Une maladie ~cientifique: la colloquite", in Sciellces de 1'J,omme
et de la société. Lel/re des départemellls scien.zifiqlles du CNRS, n. 32, c:fezembro
3-' Para a França, o diagnóstico mais articulado é a obra de Roger Chartier, L'Histo;re de 1993, pp, 35.
aujourd'/rui: ./ollles, défis, propositiolls. Eutopias, Universidadc de Valcnce, vol.
42. 1994, 24 p.; os diagnósticos britânico e americano são de outra ordem: Davida 47 O panfleto foi reproduzido no Événement du jeud;, 30 de junho-6 de julho de 1994,
Canr.adine, "British history: past, present - and future?", Pasl alld Presellt, nl! 116, pp. 51.
1988, pp. 169-191; John Higham, "The future of Amcrican history", in Jourllal of
America His/ory, LXXX, 1994, pp. 1289-1307. 48 M. Chaudron, "Éditer les sciences de I'homme. Des livre, des auteurs el des
lecteurs", in CommullicaliollS,' 58, 1994, pp. ) 36.
;: L. Slone, "The rcvival of narrative. Reflections on a nc\V old hist0ry", in Past alld
Pr,:sc!JJI, n. 85, 1979, pp. 3-24, tradução fran":~$o: lt: Débal, n. 4, 1980, pp. 116- -I" Georges Duby, L'Hislo;re cOIll;llue. op. cit., ?r. 94.
14~.

So M. Bloch, Écrire La Société féodale. Lellres a Hellri Berr, 1924-1943, Paris, 1992,
34 -Histoirc ct scienccs socialcs': un toumant critiqueT', Anllales ESC, XLIII, 1988,
pp. 292. SI E. Labrousse, "Comment contrôler les men:uriales? Le test de concordancc",
~mra/es d'!risloire sociale, li, 1940, pp. 117- eo; J. Dupâquier, La populalioll
.:. L~m diagnóstico diferente foi formulado por R. Chartier, "Le monde comme rurale dll Bassill parisiell à I'époqlle de Louis XIV, Lille, 1979, pp. 92-145 (estudo
~ç;,réscntation", AllIra/es ESC, XLIV, 198(j, pr. 1505·1509. crítico dos dados).

;," G. Eley, "De I'histoire sociale au 'toumantlinguistique' en I'historiographie anglo. 52A. Graffon, Fallssaires et critiques. Créalil'ité el duplicité c/,ez les érudils
américainc des annécs 80", Genést:s, 7, 1992. pp. 163-193. occidelllallx, Paris, Les BclJes ~ellres, 1993 (~dição amcricana, Princeton, 1990).
58 PASSADOS RECOMPOSTOS lmrodução 59

53 Cf. A tradução recente de um grande texto do século XV: L. Villa La DO/lali"/I (6 Por exem!llo, original e inovador o empreendimento em curso, do Atlas de la
de ':::O/lSlalllill, edição e tradução por J.-B: Giard, Paris, Les Belles Leures, 1993, Révolmic", Frallçaise, sob a direção de Claude Langlois e S. Bonin, com 7 volumes
XXI. 149 p. publicados desde 1987.

se Lu 44Prolocoles dcs sages de Sioll". Inlroduc/ion à ré/ude des "protocoles": uns 66 B. Croce, L' H isroire comme pellseé et comme aetio", Genebra, Droz, 1968,
/aux e/ ses usages dans le siécle, editado por P.-A. 'faguieff, Berg Ir.lcrnational, p.38.
1<;9:>, 2 voJ.1. 296 p ..
67 E. H. Carr, QlI'esl-ce qlle I'Mstoire?, Paris, La Découverte, 1988, p. 78, (edição
55 Cf. por exemplo P. Vidal-Naquet, Les assass;ns de la mémoire, Paris, La inglesa, Londres, 1961).
Dérouverte, 1987; notemo~ que não é indiferente que o autor seja um especialista
em Grécia antiga, disciplina ainda enraizada em uma longa ~radição ciítica. 68 É o título - "Examen de conscience d'un français" - da terceira parte de L'Étrai'ge
Dé/aite, de Marc Bloch, publir-ado pela prime;:a vez em 1946; ele é retomado desde
Sf> M. Bloch, Apologie pour I'lrisloire, op. cito (edição de 1993), pp. 139-155. a introdução de Apologie pOlir I'Mstoire.

57 J.-c. Pressac, Les Crématoires de Auschwitz, la /nachil,erie du meúrtre de masse, 69 Marc BI~ch, L'Élrallge Dê/aire, Folio Hisloire. Paris, Gallimard, 1990, p. 150, e
Paris, CNRS, 1993. Os arquivos utilizados, os da "Bauleitung SS" de Auschwitz, Apologie pOlir I'/ristoire, op. cit., (edição de 1993), pp. 60, 70-71, 280-282.
est.~o localizados em Mosco:.: e no museu de Estado d'Oswiecim.
7\1 Marc B1och, L'É:rallge Dê/aite, op. cit.• pp. 155.
9C G. Noiriel, "Les enjeux prãliques de la construction de I'objet. L'exemple de
l'immigration". in C. Charle (diretor), Histoire sodal, hi~toire g!oba!e?, Paris, 71. Cilado por Marc Bloch, Apologie pour 1'/,iSloire, op. eit., pp. 77.
MSH, 1993, pp. 105-115.
72 M. de Certeau, La prise de parole el aUlres. eerits poliriques. 21 edição estabelecida
59 Jaoques Ranciêre, Les mots de ['/ris/oire. Essa; de poétique du savoir, Paris, Le e apresentada por L Giard. Paris, Le Scuil. 1994, pp. 65.
Set:il, 1992, p;>. 149-150.
73 J. Roug~rie, "Fa~t-i1 départementaliser I'histoire d~ France?", AllIlDles ESC, XXI,
t.:O Moyelllle, miiieu, celllre. Histoire et usages. Editado por J. Fcldman, G Lagneau, 1965. pp. 178-193.
B. Malalon, Paris EHESS, 1991.
74M. Agulhon. "Vu des couliss~s", Essais d'egt>llisio;re, Paris, G ... iiimard, i987, pp.
61 E. P. Thompson. "Antropology and lhe discipline of hislorical context", Midland 42-43.
His:ory, I, 1972, pp. 41-55.
7S J. M. Moriceau, Les Fermie~es del'Íle-de-Frallce L'aseellsioll d'lI/l ~atrollar
~ C. Klapisch e D. Herlihi, Les Toscans et ~'eurs familles. Une ê/ude du catasto agricole, XVC-XVlII~ siecles. Paris, Fayard, 1994.
florentill de 1427. Paris, 197&; A. Zysberg, Les Galér;ans. Vie e deslills de 60.000
forçats sllr les galeres de France, 1680·1748, Paris. Le Seuil, 1987; J.-P. Bardet, 76 A. Gérard, La Révolutioll Française, m)'lhes ct illlerprétatiolls, 1789-1970, Paris,
Ro... eu allx XV/lc et XVlllc siêcle. Les mutatiolls d' un espace social. Paris. 1983, Flammarion, 1970.
2 ,"-olumes.
77 G.G. Iggers, "L'histoire sociale Cll'historiogl"3phie eSl-allcmande depuis 1980", in
63 Urr. uso meditado dessas diversas possibilidades foi r~3lizado de modo convincente Villgtieme Siecle, nU 34, abril-junho de 1992. pp. 5-24.
por B. Lcpetit, Les \filles dans la Frallce Moderne. Paris, Albin Michel, 1988 (cf.
pp. 445-449). Um exemplo interessante de utilização de um modelo de simulação 711 La Sciellce Mstorique polollaise dalls I'lris:oriograpllie mOlldiale. Editado por
a tnulo de avaliação, sem ambição "contrafaclual": J. Dupâquier e M. Demonet, Marian Leczyk. Wroclaw, 1990.
.. C~ qui fait les familles nombreuses",AllllOles ESC. XXVII. 1972, pp. 1025-1045.
7'J R. Flelcher, "Hislory fram below comes la Germany: lhe ncw hislory movcmenl
M J. Heffcr. Le Port de New York et le commeree extàieur américaill (1860-1900). :n the Federal Rcpublic of Germany", in JouTllal of Modem History, LX. 1988.
Paris. 1986. pp. 560.
60 PASSADOS RECOMPOSfOS Introdução 61

1111 J . Souchar.y, "Le n:l.'z isme: déviance allemande üu mal de la modernité? Rérlexions q~ A. Fargc, Le g O!Íl de l'arcltive, Paris, Le Seuil, 1989, pp. 145. Essa posi ção
des historiens d:ws !' Allemagne des années zéro (1945-1949)", in Villgticme Sit2cle, desemboc:l no apagamento voluntário do histo riad o r pnra dar a palnvra ao
n. 34, abril-junho de 1992, pp. 145-156. documento: eo"., Le COllrS ordiluire des choses dali la cilé du XVI/f': siecle,
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111 C. Lipp, "\Vrit in g histo ry as political culturc. Socia l History versus Alllagsges-
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1'1 [3. Lepctit, " Propositions pour une pratique restreinte de I'inlcrdisciplinarité",
Re\'ue de syfltl!cse, 1990. r,p. 331 -33&. 'n Um baln nço info rmado : E. Fano (editor), Ulla e illd:'vis:bif.!. Telldent e .Iltuali della
storiografia statllllitellse. Florença, Ponte alie Grazic, 1991. Cf. Joyce App leby,
~~ Em p:!rticular. B. Lcpct il, Les 'lilles dallS la Frollce Moder/!'.!. Op. cit.; C. Charle, " Recovcring Ame rica's historie divcrsity: bc yond c,· ceptior. alis:;I", in JOllmal of
Les Élites de la République (1880-1900), Paris, FOl)'ard, 1987. Americo/l History, LXXIX, 1992, pp. 419-431.

"" M. Gauchct, "Changeman t de paradigmc en sciences sociales'!", Le Débat, n. 50, q:.; Cf. em particular os trabalhos' de G. Noiricl, Le creu sele frallçaise, Paris, Lc Seui I,
número especial, Matériá/lX pOlir servir à l'histoirL' ilJtelleclllelle de la Frallc e, 1988, e La Tyrallllie du lIatiOllal: /e droit d'asil!! ell Europe (1793-1993), Paris,
/953-/987, 1988, pp. 168-169. Calmann-Lévy, 1991.

.~7 Limn aprese ntaç50 críti ca dessns tendê nc ias em Lynn Hunt, "Hi s to ry, culture and W Pctcr A. Novick , "Tllat Nobil' Dream ". Tlle " Objectivity Questioll" al/d tile
(e x t" , in 'Fite l-lew Cultural History , Uni ve rsit y af C .. liforni " Press, 1989, l ~ fJ. 1-22. AmericolI Historical Profcssio.lI, Nova Iorque, Cambridge Univcrsity Prcss, 1988.

~...: G . Levi, "On microhistory", in P. Burke (edito r) , Neli' Perspectives in /-fistoric al 11111 C . Ginzburg, Lo storico c il gi/ldice. COfl sideroziOlli i" margine ai processo Sofri,
Writillg, Oxford, Polity Press, 199 1, pp. 93-113. Sobre essn "mudan ç a de Turim , 199 1.
pnr.ldigma" que n5 0 é apenas italiana , cf. também C. Chn r1 c, "M icro- histoire sociale
e nlncro -hi sto ire so c ia le . Quclques reflec tio ns sur Ics effec lS dcs changemcnts dc lUl Um nú me ro reccnte da revi sta Qu adcmi sforici (n. 85,1994) é dedicado à prova
mê lhod es de puis quinze ans en hi sto ire socinle". in J-list oire social, "istoire em hi stória .
glo!Jole?, So b a direç 50 de C. Charl e, op. Cil .. pp . ": 5-57.
1U2 Michel de Ccneau, La Faiblesse de croire, texto es t:loclccido e aprescnta (lo fl o r
IN E. Cirendi, "Micronnn li si e storia soc ialc", Quademi storici, n. 33,1972, pp. 506- L Giard, Pa ri s, Lc Seuil, 1987, pp. 69.
520; C. Ginzburg, " Traces. Racines de un paradigmc indi c inirc", in id., Mylhes,
('tr: h h~III CS, traces. M orpl/Ologie et lu'stoire, Paris , FI:lmmari o n, 1939, pr. 139- 180 .

'~ I C . G inzb urg, Le F f'O lIIa ge ct le:; verso L 'ullil'crs d'lIlI //I e/ll/ier dll XV/c sicc/e, P:lfi s,
FI::. m mari o n, 1930 (edi ção it:llian:l . Turim , 1979 ).

"1 G. Lcvi , op. cit.: le re mos ate ntam e nte a apresent ;lç ão de J . Re ve l, introdu ç;io
prl!'ci osa fI e xpe ri c nc ia d,l microstorill.
5Gl' ?twl1iz ma»c"?;
UM

Certezas e Descaminhos
da Razão Histórica
PIIILlPI'E Bo um;'

"N ,j o lembrar o rosto do homem


que mat amos n;io é melho r do que
fazer um fil ho estando bêba do."

Lo ui s Aragon,
La Mise à Morl

Os anos 1990 nascem, por um mall~feSlO de história "experim en-


tal", com U111 questionamento radical do ') m étodos críticos da história.
Pretendelll os, examinando as certezas e os descamillhos da razlio !listÓ·
1 iea, discernir as evaluçdes recentes das interrogações dos historiadores

sobre sua própria disciplina, tratando da hipet·tr?fia do sujeito do cOllhe-


cimento, dos prestígios e das, desilusões do quamitativo, do declíllio da
razüo geográfica em história, dos indícios, cufim, de lima superação do
momento flIll i-lwl1lanista das :lvellluras é a razüo histórica.

I
o último decênio do sécu:o XX é inilugurado, no domínio - rel ati-
vamcnte pouco freq üente na França - da reflexão dos historiadores cm torno
3S raci onülidades de sua própria di sciplina., por uma obra ambiciosa, A/ler
hislOire [Altcr hi stó ria] (1991), qu e rcúne um3 dczena de ensa ios de história
e xperim cnt<1l l . À frentc da coletânea vem um texto assin ado po r Daniel Milo:
·· Pour ull e hi stoirc cxpérim entale, ou lc g::::.i $:lvoir" [Por uma hi stória expe-
rimentai ou a gaia ciênc ia]. O manifesto d:! "história lú dica", pos to sob o
triplo apadrinham ento de Nictzsche, Groucho Marx e Aristó teles, reivindica,
:!Itcrnadamcntc, a vio laçflo do objeto (histó rico) e a onipotência do histori a-
do r; o anacronismo metód ico (pel a superaç2. G da co ntingênc ia e neutralizaçüü
da · intenc ional idade dos atores históricos): o distanc iament o em relação ao
obje to (o VClji·emdllllg brechtian o aclapt:;.':\.'I :1 histó ri a sob as formas do
cs tranlwlll cnto, da "dcs-famili:uizaç 5.o" e d:l "~~cs-co nl exlual iza ç;io"); uma
moratória na produçüo dc w'Vos document os: o eJ11IJobrcc imen to vohlllt(lrio
66 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 67

das fontes e a repetição crítica das pesquisas anteriores; a prática sistemntica história ("0 homem moderno carrega consigo uma enorme carga de pedras,
de uma experimentação arbitrária das hipóteses interpretativas e de um as pedras do indigesto saber", capo IV); que esse ex~esso de história pode
comparatismo radical, para além dos séculos e co~tinentes; a ampliação do ser nocivo ao presente e à vida ("o passado deve ser esquecido sob pena
',!'

campo dos possíveis históricos; a utilização da quantificação para fins ex- de se tornar o coveiro do presente, (pois) toda ação exige o esquecimento,
perimentais; o desrespeito ao passado, em todos os casos. como todo organismo necessita, não apenas de luz, mas também de
O que um tal projeto contém de, provocação jubilosa não deve en- obscuridão", capo I; "damos mais importância à história que à vida", capo
tretanto dissimular uma ambição inte.1ectual: constituir os fundamentos de IV; "o excesso dos estudos de história é prejudicÍal :!os vivos" capo lI); que
uma outra hist6ria e exaltar a missão de uma nova "raça" de historiadores a proliferação da história se alimenta do surgimento 4a massa ("o desejo
experimentais. Por isso, seria desejável, para início de c.)nversa, considerar geral de popularizar a ciência, igual ao de femillilizá-Ja e infantilizá-la",
esse manifesto não tanto como um conjunto de proposições argumentadas, capo VII; "a idéia muitas v,:zes penosa de ser epigonos", capo VIII; "seria
mas (fiel nisso à lição de Nietzsche) como um sintoma que exprime em seu verdade que nós, alemães, para não falar nos povos latinos, ( ...) jamais
tempo as incertezas e os impulsos de um grupo importante de historiadores poderem c'." ser senão descendentes?", capo VIII); os limites da piedade ("o
em relação aos métodos, às tradições e aos valores de sua disciplina. prazer que a árvore recebe de suas raízes, a felicidade que se experimenta
por não ~e sentir nascido do arbitrário e do ~caso, mas saído de um passado
Da hipertrofiJ. do sujeito de c0nhecimento - herdeiro, floração, fruto - , o que desculparia e até justificaria a exis-
A posição elevada conferida ao hi!'toriador na produção de saber tência, é lSSO o que hoje se chama, com uma certa predileção, o sentido
constitui o primeiro e' sem dúvida o principo:! siTltoma tia cris~ intelectual bistórico", capo 111); e a denegação da objetividade ("os historiadores in-
que o manifesto da história experimental traz à tona. "Violentar o objeto gênuos chamam de objetividade o hábito de medir as opiniõe:; e as ação
é o slogan deste manifesto", conclui Daniel Milo, que atribui ao histo- passadas com as opiniões correntes no momento em que eles escrevem",
riador poderes ilimitados sobre o objeto de secs estudos. O historiador capo VI). Em filigrana ao raciocínio njetzschea~o, há finalmente o velho
experimental constitui o "único sujeito pleno": "O espaço antes ocu!,ado bordão do super·homem: "Apenas pela maior força do presente o passado
pelo sujeito histórico parece assim ocupado pelo sujeito historiador." "Ex- deve ser interpre~ado (. ~.). O igual pel0 igual! De outro modo abaixaríeis
perimentar é violentar o objeto": O historiadc,r deve ser "conscientemente, o passado a vosso nível. Não acrediteis em uma historiografia que não saia
~: violentamente ativo", para além das "reticências", das "resistências" e das di.. mente dos cérebros mais raros ( ... ). Não é o caso de se desprezar os
"meias-medidas". O passado é sua "vítima passiva"; e as duvidosas metá- trabalhadores que empurram o carrinho-de-mão, que aterram e peneiram,
foras da violação como a referência ao narcisismo freudiano são explícitas: sob o pretexto de que eles não poderão certamente se tornar grandes
"Qual é o objeto final da história experimental? Qual é o lugar do eu - historiadores ( ... ) mas olhá-los como operários e serventes necessários ao
tomado no sentido amplo do termo - historiador nesse projeto? Conhecer serviço do senhor( ... ). É o homem superior que escreve a história".
melhor ou diversamente o passado, ou se conhecer melhor? Pois se falamos Para dizer a verdade, a deriva nietzscheana elo historiador onipotente
em matéria prima a propósito do passado estudado, se pedimos o desres- dos anos 90 se alimenta igualmente de outras fontes, e principalmente em
peito a ele, torna-se improvável atribuir-lhe uma prioridade no processo de dois momentos da reflexão sobre a história tal como ela, muito esporadi-
imeligibilidade conduzido pelo historiador c~"perimental." camente, se desenvolveu na França no último meio século. Houve, antes
O que essas linhas devem ao "nietzschismo" intelectual e moral do da guerra, as duas teses (de inspiração neo-k:mtiana) sustentadas em 1938
s.:egundo século XX, e muito particularmente ao jovem Nietzsche de De por Raymond Aron, sua lntroduction à 1{1 philosophie de l'histoire. Essai
C:ailité et l'illconvéniellt des études historiqut.·s pour la vie [Da utilidade sur les limites da l'objectivité historique [IntrodlJção à filosofia da história.
ç Jo inconveniente dos estudos históricos para a vida] (1874)2, não poderia Ensaio sobre os limites da objetividade hish.1rica] e sua Philosoplzie critique
ser ignorado - tanto mais que a gaia ciência c.i.1 história experimental o d..! l'histoire [Filosofia crítica da história] (originalmente: Essai sur la
e:\.-plicita. Conhecemos suas r-rincipais teses: que a época está saturada de theórie dI'! l'hi ..toire drrns l'Allemagne conlel7lporail1e [Ensaio sobre a teoria

I,
6J:S PASSADOS RECOMI'OSTOS QllCS(ÕCS 69

da história na Alemanha contemporfmea]), que, à luz da filosofia c da um a vontade de potêri.cia (no nível, enfim derrisório, próprio do .manipulador
sociologia alemãs (Dilthcy, Rickert, SimmeI. Wcber), se havi.lm atr~buído de tC}:tos, de imagens ou de dados), mas de um::: orientação quase sec!.lla r
a !nissão de reexaminar criticamentc as categori as do conhecimento histó- que viu uma reavaliação dos fundamentos filusóficos da história crítica e
ri co: orientação prolongada no imedi ato pós-guerra sob a forma de uma positiva da s'.!gunda metade do século XIX mudar-se progressivamente em
análise{forternente tingida de fenomenologia existencialista ou personalista) um questionamento radical das lógicas e das racionalidad.::s do raci ocín io
da "subjetividade do historiador" e de uma reavaliação global da história ilistórico. Avatar di stan te da agitação cultural que precede e segue 19685 ,
dit2 positiva, da qual uma obra dc I-Icnri-Irénée Marrou, De la L'ollllaissallce a históriri experimental exprime por sua vez uma posição subjetiva tant o
historique [O conhecimento histó rico] (1954), e vários artigos de Paul mais violenta por se ornar com os atrib utos de uma liberdade absoluta, da
Ri coc ur reuni dos numa coletânea intitulada Hisroire el verité [História e inovação e do desrespei to. "No Ilietzschismo, subl ir.ha Vincent Desco mbes,
verdade} (1955) constituem as princi:;a is etapas , MilS, ao mesmo tempo em a resistência à arregimentação tor/la a forma g randiosa de uma teoria geral
que Raymond Aron consagra no fim de sua v id a seus últim os escritos às dos s ignos, com sua ontologia (há apenas interpretações, nada há a inter-
imp licações da fil o..:.ofia analítica de ori ge m ::mglo-saxõnica sobre o conhe- pretar que já não sej a uma . interpretação) e sua epistemologia (não há
cimento histórico (cursos de 1972-1974 puhlicados em 1989 sob o título conhecimento, apenas discursos, ou agenciamen tos de signos, produzindo
Leçolls sur f'htstoire [Lições sobre a histó riaL uma segunda etapa da ef eitos de verdade"(I) ... Nascido jovem demais num mundo velho demais,
rea":1liação dos fundamentos científicos da produção do discurso histórico o historiador dos anos 9u estaria, por súbredcter!1linação de sua individua-
se inaugura na virada dos anos 60 e 70 com (para ser breve) a publicação lidade intelectual e renúncia à vcrdad,. de um conhecimento, votado a
nas princirais sínteses de Michel Foucault - Les Mots el les choses [As interpretar incessant emente e experimenw.r ~nfinita:nente os s ignos, os
pal<!vias e as coisas] (1966); L :Archéologie du savoir [A arqueologia uo discursos e as imagens de um saber acabado?
snber] (1969) -, das análises de Paul Veyne - Commellt OII écrit l'histoire
[Como escrever a história]. (1971) - e das reflexões de Michel de Certeau Prestígios e desilusões do quantitativo
_ L 'absent de /'histoire [O ausente da históriJ.], (1973); L 'écrêl de /'histoire Tal não havia s ido, en tretan to, vinte anos mais cedo, a espuança
[A escrita da história]. (1975). dos protagonistas da "nova história", tal como se exprim ia at:-avés dos
Esses dois momentos defin em no esp:.lço de meio século um percurso artigos lá um tanto eufóricos que, em 19"JO, Pierre Chaunu consag rou à
rela tivamente linear: da objetividade li subjetiv idade; da crítica das fontes hist ória serial 7 , e em 1971; François Fure t à história quantitativa 6, A
à d3S categorias e modos de escrita. O questionamento da verdade (ou
validade) da histó ria como forma de conhcc imen to traz, todavia, co nsigo
um:! dimensão cons iderávcl de relativismo: "Se alguém es tima, co mo o faz
meu . . . olega e amigo Michel Foucault, que é preciso, de uma vez por todas,
se !!nar da mit ologia do verdadeiro e do fa lso", exclama i:1dignado Aron
já c m 1972, "o lógico dcpõe imediatam clllc as ormas" 3 . Ela implica, po r
I constituição, lá onde as fontes o permilem ~ de séries temporais homogê-
ne as, não apenas nos domínios da economia e da demografia, locais de
origem e terr as eleitas do quantitativo his tó ri co, mas também em históri a
social, política, cultural ou religiosa, perm:tia prever ullla transforma ção
radi cal da noção de aco ntecimento e de ""[:110 hist óri co" em geral, co ns-
truíd o e nflo mais dado, a partir de premissas que dependem ao mesm o
Qutrc lado, a eme rgência cresce nte do sujeito do conhecimento: "Pode-se tempo da potencialidade da ·fonte (a série quantificável) e de uma pré-
con~ tatar, entre os historiadores re centes", relc\· o com prazer, igualmente defini ção dos questi onamentos a v ir e das respos tas que a documentação
em 1972, de Certeau, "que essa ressurrci ç50 do e lt lia disCL:rsO his tóri co pode obter (a co mposiçflo prév ia de cam pos estatísti cos c de interrogações
começa com a importfmcia crescente, ma:, aind :: adicional, atribuída li numéricas). "Toda a própria concepç50 da :::rquivísti ca vê-se radica lmen-
Iz is :âria do sujeito-historiador: os Prefácios, em extensão, se articubm te transformada justam en te no momento e m qu e suas possibilidades se
sf){: ~c a história do objeto estudado c precis:.lm o luga r do 10C UlO f" ·' . multiplicam pclo tratamento ele trônico d::. :nforma ção", observa f-ran ço is
I A hipert ro fia do sujeito-h istori ado r. tal como ela se exprime co m Fure t. A quan tifi cação au torizava a p<!rtir do: el1 150 o historiad or a recolher
vi~ ~" r no man ifes;.) da !listóriG experim ental , n50 procede então apenas de fontes a priori es tranh as ~ seu objeto e, segun do o tC'rmo em uso na

1
I i
70 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 71

corporação, enviesá-Ias por uma boa causa, ou seja, as necessidade~ de raciocínio informático intervenham diretamente na construção de seu tra-
sua pesquisa (o balanço demográfico de uma população a partir ~as hstas balho? Como dar conta de outro modo do declínio relativo da enquc.te
de comunhão pascal; a composição socioproÍlSSional de uma cidade na quantitativa em domínios onde ela havia sido pioneira, como a sociologia
base de uma lista de impostos; a evolução do sentimento da morte a partir religiosa retrospectiva ou a hist6ria do livro, justo agora quando as ope-
de testamentos perante tabeliães; a trànsformação dos comportamentos rações computáveis que formam sua base seriam infinitamente Inais faci-
se~uais conforme os reeistros paroquiais etc.). As potencialidades mú,I- litadas? As ações de Gutenberg (para não evocar os copistas que o prece-
tiplas de iniciativa ou de manipulação. que a quantificação oferece não são deram) permanecem sólidas entre o povo historiador do fim do século XX;
certamente estranhas, de resto, ao sentimento de potência, já evocado, que e a onda quantitativa retirou-se por vezes bem rapidamente da praia que
percorre a prática histórica da segunda metade do sécuio .XX. . ela um instante pensou ter invadido para sempre.'
Com efeito, a introdução maciça do computador no selO da pesqUisa
histórica a partir do final dos anos 70 constitui ao mesmo tempo um
elemento fundamental n~ alargamento das possibilidades e a renovação dos
procedimentos e raciocínios. Seu aporte se apresenta já a~~ra, enqu~n~o se
I O segundo perigo sG inscreve num processo de desagrega'iãú da
unidade dos saberes históricos e se liga principalmer.te aos domínios para
os quais <> computador tomou facilmente praticáveis tarefas antes julgadas
faStidiosas ou mesmo insuperáveis: em primeiro lugar a econometria retros-
espera um primeiro balanço das pesquisas efetuadas, no mlmmo formldavel. pectiva e a demografia histórica. Procedimentos técnicos sofisticados, como
Nos mais diversos domínios, da econometria à iexicometria, da análise dos a busca de modelizações de tipo matemático, ou o recurso à análise fatorial,
textos à das imagens, das taxas de fecundidad-: 30S modelos de desenvolvi- afastam progressivamente da cultura comum dos historiadores blocos in-
mento dos presidiários às rerles urbanas, o instru.ner.to lnfo:-máticu permitiu teiros da pesquisa: comparados com as elaborações mais recentes, o
acum~lar, em uma escala absolutamente inédita.. informações perceptíveis Beauvaisis de Pierre Goubert,o Languedoc de Emmanuel Le Roy Ladurie
ou quantificáveis sob a forma de bases de dados.,. multiplicar as elaborações, parecem um pouco exercícios para alunos primários, no momento em que
renovar as interrogações, verificar ou anular interpretações. O computador múltiplos indícios nos fazem infelizmente pensar que as principais aquisi-
foi para o historiador francês das últimas déC3das, participante ativo da ções da demografia histórica ou da história econômica 'e social do segundo
revolução informática das ciências sociais e leitor assíduo de revistas pspe- terço do século XX, apenas muito incompletamente penetraram' na forma-
cializadas Histoire et mesure [História e medida, Le Médiéviste et l'Or- ção geral de professores e ,de estudantes de história. A 16g ,ca institucional
I
dinateur [O medievalista e o computador] etc.),. o veículo de uma mutação
~~ e científica dos laboratórios conduz assim, muito paradoxalmente, ao iso-
,I
tecnológica e o vetor de uma revolução metodológica sem precedentes. lamento progressivo das pesquisas mais inovadoras no domínio da história
"
I'

Três perigos parecem todavia relativizar, nos primórdios dos anos 90, quantificável: o computador, em muitos domínios, aumentou as divisões
o impacto da transformação induzida pelo recurso ao instrumental disciplinares e favoreceu o desenvolvimento em separado (em africâner:
informático, dissipar até certo ponto as euforias quantitativistas, e alimentar apartheid) das problemáticas. "Vivemvs a fragmentação da história", es-
entre uma parte nada desprezível dos historiadores um relativo desencanto. creveu Pierre Nora na abertura de sua -Bibliothcque des histoires" [Bibli-
A primeira dificuldade diz respeito ao caráter incompleto da revolução oteca das histórias], vetor do brilhante mas efêmero encontro da "nova
informática tal como operou:'se na França, muito progressivamente, durante história" e do grande público culto no meio dos anos 70: o computador
os últimos quinze anos. Ao lado de disciplinas que praticam uma utilização contribuiu sem dúvida de modo mais eficaz para a verificação desse fato
maciça e sistemática do computador, seja a título de base de dados e do que a ampliação multiforme do campo das abordagens históricas.
instrumento de cálculo (demografia, economia... história social ou política), O último perigo disposto na via a.scendente que os anos 70 traçavam
se13 sob a forma de corpus indexáveis (análi~ de textos ou de imagens), para a história serial fo!, de~de a origem. identificado nas exigências par-
q~;mtos pesquisadores não consideram a tela mleligente que lhes foi, of~­ ticulares determinadas pela mutação do estatuto das fontes e do papel do
recida pelo último avanço tecnológico da modernidade apenas uma ~a~UI­ historiador. Quantificar é, com efeito, constituir-se estreitamente prisionei.
na de escrever mais cômoda, ~~m que o procedimento, ou, a fortlO", o ro, a um ~ó tempo, de uma série documentária e de uma linha interpretativa
Questões 73
72 PASSADOS RECOMPOSTOS
na Europa, e que provoca ainda hoje, segundo o caso e o humor, a
detenninada a priori p::la própria elaboração do material cifrado. A crítica admiração ou o espanto, a hilaridade ou a irritação dos historiadores
y~~.,
das fon!es, tal como os mestres eruditos do método histórico, do século italianos, alemães, belgas, espunhóis ou anglo-saxões, cujos r~cortes
XVII ao XX, afirmaram, não perde os seus direitos: apenas se projeta do ;~J;
associam mais comumente a história, aqui à filosofia, ali à filologia.
um para o múltiplo, do documento isolado aos seus procedimentos de +- Da própria geografia veio, no curso dos anos 70 e 80, a ruptura
homoaeneização e processamento. A c;onstituiçao do materiai quantitativo progressiva de contrato. A geografia de referência dos historiadores era
o A• •

sobre o qual se funda o raciocínio deve igualmente responder a eXlgencl=ts a geografia lablachiana: geografia humana (demasiado humana?), anco-
da mesma ordem, sob o risco de cair num empirismo por vezes fecundo, rada na percepção das glebas e das culturas, das paisagens e das tradições,
mas sempre, por si mesmo, insuficiente: a quantificação exige então a das permanências estruturais e das lentas transformações históricas; abor-
explicitação dos questionamentos preliminares do historiador assim como d.agem global, história total dos países e dos homens, construída à imagem
a verificação ulterior de sua pertinência'e de S4:!. validade. As interrogações e para a exaltação da França ainda amplamente rural do desvio da virada
e as interpretações finais do historiador serial remetem, enfim, o mais das dos séculos XIX e XX. O questionamento dos pressupostos ideológicos
vezes, às problemáti~as globais dos domínios ronsiderados, expressas nas da construção de Vidal de La Blache e de seus herdeiros, a afirmação
cateaorias mais gerais da linguagem das cifra..,-: alta ou bai~a, aceleração
~ . rigorosa e por vezes veemente da autonomia do procedimento geográfico,
ou desaceleração, concentração ~u difração ... A quantificação parece asslm, as novas perspectivas aher~as pe1.a ('artografi:l. informatizada, a ambição de
mas em escala diferente e segundo vias inéditaS, reencontrar os métodos, uma geografia exclusivamente celltrada em torno da noção de espaço em
as questécs e oe; debat~s. da história clássica; e a posicão paroxística do suas acepções antigas (geografia rural, inàustrial, urbana, geografia dos
manifesto da história experimental (quantific-.ar! ql!antificar!) traduz em transportes) ou novas (organização do território, geopolítica, geo-estraté-
verdade, sob a forma de uma fuga para frr.nte. uma inquietação lancinante: gia) conduziram os geógrafqs, no plano intelectual, a uma separação de
que o serial, para além dos seus aportes e seus confortos, não seja aquilo corpos ainda mais paradoxal, porque o eusino das duas disciplinas perma-
por que a razão histórica mudou de base. nece estreitamente unido e porque os historiadores conservam globalmente
o gosto pelos mapas e croquis, quando não a nostalgia das glebas.
o declínio da razão geográfica em his~ória Filha deserdada de amores levados pelo bom ou mau vento das
Quantificar é ainda operar uma rcduçiu do real para fins c~tatís­ "lógicas espaciais", a geografia dos historiadores neste final do século XX
ticüs ou comparativos por abstração proviSoÓria do dado histórico ou afirma ainda solidamente sua preseTlça no seio do processo histórico: para
geográfico: objeto da maior importância em uma perspectiva experimen- ficarmos com um único exemplo, o empreendimento coletivo do Atlas de
tal de erradicação das contingências temporal." espaciais ou culturais, que la Révolutioll Frallçaise [Atlas da Revolução Francesa]9, expressão grá-
reprova e rejeita sem apelação "o prazer que 3 árvore tira de suas raízes, fica e cartográfica do acontecimento revolucionário, na curta ou média
a felicidade que se experimenta por não scntir-~e nascido do arbitrário e duração sob seus diversos aspectos, associa estreitamente mapas e esque-
d~"' ac~so, mas saído de um passado - hcru,=:.lfO, fi oraçao,
- tru' t "
o ... mas, elaborações espaciais ou est3tÍstic3s e discurso histórico, numa ar-
A crise da razão geográfica em história no último decênio do século ticulação intelectual onde o mapa é a um tempo transcrição geográfica
XX - que determina por sua vez o enfraquecimento gradual das causali- do saber histórico, elemento de raciocínio, fonte de interrogação e motivo
dades espaciais no raciocínio histórico - se alimenta todavia, para além dos de interpretação. Igualmente, a história política como a história religiosa
imperativos computáveis dos métodos scriais.,. de fontcs mais profundas. A ou a história sócio-econômica continuam a integrar, mais ou menos
dt.:pla formação - a um tempo histórica e g"':'0gráfica - dos historiadores fundamentalmente, o mapa a seus questionamentos. O tempo e o espaço
f:-;.mceses, a utilização sistemátic~ que fazem do mapa (de localização, de da geografia de Vidal de La Blache, C0mo o acontecimento e a duração
densidade ou dinâmico) no raciocínio e na exposição, constituem, é sabido, da análise braudelialla, continuam a compor o quadro original de uma

I
uma especificidade importante do recorte do campo dos saberes tal como reflexão histórica obcecada pela inteligência global do passado.
o concebeu, no fi:n do século XIX, a Terct;lra República, recorte único
:"1
'j
'I 74 PASSADOS RECOMPOSTOS
.....:1'.• :
Questões 75
Não podemos, entretanto, deixar de realçar um certo enfraquecimen-
A casa dos historiadores é todavia, doravante, tão vasta, cada peça,
to da dimensão geográfica das problemáticas dos historindores contempo- :~~~~ .
cada porão, cada sótão tão abarrotado - de conhecimentos, de referências,
râneos. A reavaliação, por parte dos geógrafos, dos recortes territoriais
herdados da França do Ancien Régime, 'assim como da Fran'ia revolucio-
·~t de notícias e querelas - que há qualquer coisa de temerário em se sugerir,
.:~~~. mesmo sob a forma de indícios sucintos, as vias que a razão. historiadora,
nária., não deixou de influir no &bandono, por parte dos próprios historia-
neste final de século XX, parece adotar para ultrapassar a crise onde a
dare:;, de !!ntidaàes geográficas fechadas ou pré-d~finidas em proveito de
levou o anti-humanismo moribund~ dos anos 60. Vamos tomar três, à
quadros temáticos e problewáticos: a "departamentalização da história da
guisa de. pedras de espera, ou de hipóteses audaciusas, chi lo sa?
França" viveu; monografias rurais ou urbanas, diocesanas ou regionais, são
O primeiro indício repousa na redescoberta, já inquisitorial (a época
agora geralmente concebidas como o quadro espacial de um questionamen-
é tão barroca quanto chicaneira), já patética (mas que seria um historiador
to que lhes é por essência estranho. Ao mesmo tempo, as análises
destituído do sentimento da morte?) do arq~ivo, do documento bruto, dito,
macroscópicas (centradas, em economia como em política, em tomo da
em forma de redundância, linguagem comum, que alimenta "o sentimento
noção de "mercado") assim como, ao contrário, a influência da micro-
ingênuo, 1.'13S profundo, de rasgar um véu, de atravessar a opacidade do
história italiana lU, transtornaram as escalas espaciais das interrogações e
saber e de ter acesso, como após uma longa e incerta viagem, ao essencial
associaram contextos espaciais específicos e moventes a temporalidades ou
dos seres e das coisas" ". Ingenuidade, no que diz respeito à prática co-
questionamentos particulares. A .uaidJde de 1uga.:- não existe mais e o
tidiana da classificação e da verificação dos fundos pelos homens do ofício,
espa'iO faz menos sentido: é nessa brecha do continuum espaço-temporal
nestes tempos de elaborações quantitativas complexas e de análises finas
. da memória que se engolfa a empresa subversiva de estranhamento e de
d0s discursos e das configurações retóricas? Provavelmente. Ma.s t(!lvez
"descontextualização" do historiador experimental.
seja necessário ler na f&scinação contemporânea do texto a emoção primi-
!' tiva de uma leitura original, de um encontro que alimenta por sua vez a
r: Uma crise de inteligibilidade?
busca da inteligibilidade para além da acumulação das interpretações e dos
i Deportada progressivamente· de seu objeto .para o sujeito-histo-
I "efeitos de verdade". Já seria alguma coisa. .
riador, entregue à mediação (não conclusiva entretanto) do quantita-
j' tivo. desviada do enraizamento no espaço, a resquisa da causalidade
Interrogações diversas e contudo convergentes em torno da
narratividade histórica como modo de inteligibilidade constit~em no
".
I.
em história atravessa assim sua crise fim-de-século. Os paradoxos do
'I
" mesmo período, na virada dos anos 90, o espaço principal de uma reflexão
,I
anti-humanismo que percorre, há tri!!ta :1oos, o conjunto do campo das
P inédita e exigente através de obras tão dessemelhantes na intenção e no
ciências sociais, forneceram até este ponto uma linha interpretativa
conteúdo como as de Paul Ricoeur - Temps et récit [Tempo e relato]
para recolocar essa crise em um contexto explicativo mais geral.
(1983) - e de Jacques Ranciere - Les mais d'histoire [As palavras da
Assim, enquanto o ego do historiador ocupa como senhor absoluto o
história] (1992). Se a urdidura ou o "contrato narrativo", se o relato
lugar onde antes reinava o fato bruto e como que ingênuo da idade
histórico em seu agenciamento tornado infinitamer.te complexo na era das
do ~ientismo, uma reavaliação mais ou menos radical da capacidade
estruturas e da longa duração, reconquistam desde há algum tempo a
da razão humana para alcançar uma verdade do conhecimento do
atenção dos filósofos e dos historiadores, isso se dá provavelmente porque
passado rejeita em bloco os grandes modelos explicativos para se
eles permitem fugir da querela mais do que secular saída do "projeto de
deleitar ludicamente com a experimentação sistemática das hipóteses
objetividade"(Paul Ricoeur) da história; mas tambér.1, talvez, porque eles
e ir-terpretações "revisitadas" até ao infinito. Senhor do jogo, o his-
autorizam a reintrodução sem pretensãC' totalizante da causalidade em
tori3dor parece por vezes ter perdido a percepção do objetivo de sua
uma perspectiva onde narrar já é explicar.
dis:iplina - que não pode ser outra coisa que não a inteligibilidade,
Reintroduzir a noção de ~entido é. talvez, a ambição mais secreta,

I
par::: cada geração sucessiva, da wemória conservr-da dos homens, das
mas também a questão mais obsedante que percorre surdamente, com uma
COi$3S e das palavras que não existem mais.
intensid.de m::is viva ainda por estar mais retida na expressão e na forma,
76 PA SSADOS RECOMrosrOS Qucscõcs 77

o trabalho de numerosos histori adores do último decênio do século. O que Territoire. Les limites /'fdmillistra/ives. 6. Les Societés politiqlles. 7. Médecillc et
o encontro do arquivo provoca, o que o relato torna intelig ível, é a putir sallté.

daí i:! busca do sentido - situe-se ele em uma intuição inicial, ur.l a hipótese lU J. Reve l, "L' histo ire au ras du sol", prefá cio à traduç:io francesa lia li vro de G .
fundamental, uma temátka central, um a interpretação final ou um "pensa- Lcvi, Le pO/lvoir ali "ifIage. Histoire dc'utt exorcisfe dalls lc Piémol/l di XV/li.:
mento oculto" - que cabe fornecer-lhe um foco cuj a tempo!'alidade por siécJe, Pari s, Gallimard, 1989, pp. I-XXX III (edi ção itali:lOa, T~rim: 1985).
vezes é apenas o pretexto: mas chegaríamos a té pretender que o estudo da
his tória é bom pa ra a v ida? 11 A. rarge, Le GOli/ de "archive, Pari s. Hachc ttc, 1989, p. 14· 15.

Notas
I Alter his/oire. Essais d'/. iSloire expérimclIlale, reu ni dos por D . S. Mil o c A. Boureau,
Pari s, Lcs Bcllcs LCIlrCS, coleção " I-li s toi rc ", diri g id3 por M. Dcsg rangcs c P. Vida l-
N3QU Ct, 1991.

~ Cit3do aqui na tradução dc H. Albcrt, D e J'lIfilitt! cf l'illculIl'éllielll des é/lides


his loriq//es pOlIr la vie (scgun da considcração in:cmpcstiva), Pa.is, Garnicr-
Flammarion, 19t:i8. int rodução de P.-Y. Bourdil.

l L~çoll s sI/r l'histoire, Pari s, 1989, p. 145.


,,
\i
I I .c M . dc Ccrtcau, "Une épi stémo logic dc trans itio n: Paul Vc ync", in AI/llates ESC,
! XXVIII, 1972, p. 1325.
: !~ $ L Fcrry, A. Renaut. La Pellseé 68. Essai sI/r J' a f;th!wlll aflisme cOII(cmporaille,
., Pari s, 1985 .
:;'
r· 1\ V. D escambes , " Le momcn' fran çais de Nietzsc ll e", in A . Boyer, A. Comtc -Sponvi ll c,
V. Descombcs cf alii., Porq/l oi 1/0/lS lIe SOIl1I1 Ií.." S [Ias I/ietzschéells, Paris, Grasse t,
199 1, p. 113.

P. Ch;lUnu , " L'h istoi rc séric ll e. bilan ct pcrspcc tivcs,··, in RCI'/le Historiqllc, 494,
: C7 0.~. 297-320; cf. igua lmente " His toirc qU:lntit:!ti\'c ou his toirc sc ri al", CaMcrs

Vilfrcdo Pareto, 111 L, 1964, pp. 165·176.

:< F. F ure t, " L'histoirc quant itati ve ell a con struc ti on du f:l it histo riquc" .AI:llales ESC,
XXV I. 197 1/1. p. 63-75, rctomado cm J. Lc G ofL P. Nora (editorcs) , Faire de
l"histoire, LI - Novos probl emas) , Pari s, 1974. pp. 42·61.

s. Boni n c C. Lnn g lo is (diretores). A/Ias de la NJ\ 'oll/tioll Frallçoise, 7 volumes


pl.! bli c:ldos dcsdc 19S7. 1. Rou/cs et COIIIIIII/llic otiO/l s. 2. L'ElIscigllelllc//(, 1760-
IS]5. 3. l.';\rmée c,· la gl . ~"rre. 4. Lc Te rritoirc. U.talités e rCprésel/fnliolls. 5. Le
DO IS

Hbtória e Ciências Sociais:


Uma Co nfrontação Instável
JACQUES Rn'EL

Nossas sociedades tonlG~am~se mais 0Facas para si mesmas, illcer~


las qual/to a seu presellte, seu futuro e, com isso, mesmo qualllo a seu.
passado, Ao ','lesmo tempo, os grandes paradigmas lIIzificad(lres que ha-
viam servido de arqu.itelUTa abrallgente ao desenvolvimellto das ciêllcias
sociai.\ desmoronaram, c com eles o modelo fUIlcio/lalista que tinham,
II grosso modo, em COI1lUIII. A Mstória global (ou (l história total), cujo
projeto havia orientado os esforços de três gerações de historiadores, viu-
se d<>sse modo, ao menos provisoriamellte, posta elllre parêllleses.

A história e as ciências socia is : esse poderia ser o tema de um


concurso acadêmico, se eles ainda hoje exist i s~em . Poucos argumentos
terã o sido mais obst;nadamentc invocados, ao menos na F rança, desde o
fim do séc ul o XIX. [m 1894 foi publicado o livro de Paul Lacombe, De
fJhistoire cOllsidérée commc sciellce [Da histó ri a considerada como ciên-
j ..I ' cia], ylle pode ser visto como um dos primeiríssimos de uma longa sé ri e.
'! '
I, , "
Em 1994, asAnllales abandonam o sub título que Lucien Febvre e Fernand
B raude l lhes haviam encontrado após a gue rra, o célebre Écollom;~s,
5ociétés, civilizations [Economias, sociedades, civilizações], por uma nova
1 !-6rmulu: Histoire, sciellces .~ociales [H istória, ciências sociais]. Nova,
mas em verdude mu ito antiga: entre esses dois lim:tes de um século,
poder-se-ia sem muito esforço estabelecer uma primeira lista das proposi-
ções e dos debates qu e alimentaram o lema: sem qualque r pre tens50 de ser
exa usti va, ela con taria muitas dezenas - m::l.is provavelmente centenas - de
in terv enções de importância e forma s diversas,
Uma ta l con tinui dade n50 deve, contudo. iludir. Elu induziria ao erro
: :! quele que dela lira!-ise a conclusão de que temos aqui um proble ma cltÍssico,
e.st.\bilizado em seus lermos e - por que n[IO'? - em suas soluções. Pois tud o
s.e clel. ao conlrtÍrio, Duran te um século, a confrontação entre a história e as
ciê nc ias soci(lis foi o espaç'1 de um debate difíc il e inst,ível, e que aind a hoje
I 80 P,\SSADOS RECOMPOSTOS Q Llestões B1

pCrrn a!lCCC intciramCllIc aberto. Ela apresenta caracteres contraditórios. Com


efeito, na expe riênc ia francesa, tudo se passou como se a história devesse o golpe d urkhe imiano
m ~.':H: cr, de d ireito, relações pr iv ilcgiad;:Ls com as c iênc iilS socia is pelo fato de Retornem os então à vimd a dos séculos XIX c XX. Na U;liver<; idade
ser, no fundo, um il delas. QU i.l l ro gerações de historiad ores vivcrnm, tác ita reconstru ída pela jovem Terceira República (e da qual a "Nova Sorbonne"
ou explicilnmcl1tc , com essa convicção. Mas uma vez expos to o princípio, é o retum bante emblema), a discipli na J-.istó rica beneficia-se de uma posição
tudo es lava por construi r. Tudo, ou sej a, as modalidades da coexistência c pre~ 111 in e n t e. Freemi nência ideol ógica: a el~ é at ribuída a missão essenc ial
da troca entre as diferent es disci pli nas. ~cssc po m o - aq uele once se defi nem de enunciar a id entida~e e as expectativas de uma naçiio ferida por sua derrota
c se organ izam práticas - , a evidência parec ia nublar-se. Por trás da I11CSIl1;:L .diante da Alemanha - pensenios em Lav1..sse. Preemi nênc ia científica: ela
p ro~s içüo gemi, que diz que a históri a c as c icr.cias sociais possuem objetos, encarna por excelênc ia o método "posit ivo", a ex igên-:ia erudita c, pa ra além
prco:;upaçõcs c procedimentos comun~, sucede ram-se, po r Vt;;zes até se co m- dela, o id ea ~ erud ito que deve contribuir para o rea rmamento in telectu ~lI c
bare..ram , projetos, modelos de co nheci mento (; o rg anização de saberes muito moral de um país que prepam a revanche . Preeminência insti tucional enfim:
pro fu ndam ente difel '; IlciJdos. Um a palavra pode co modamen te resumir esses provida de uma leg iti m idade ant ig a, a di scipli na se vê em vi a de
aspectos cont rá rios: a palavra interd isciplinariàad e, q ue, sob va riáve is fo r- profissionalização rápida; ela redefine se us c urrícu los e seus padrões, sendo,
ma.."- serve pa ra de~; i gnar uma espera c permi te m ed ir, à revelia, o afastamento a esse título, uma benefic iária particu larmente mi mada do espe tncular cres-
do o bjetivo. A illterdi sei!)lina ricbde é um slo g.::lI1 voluntar ista e vo tivo (é c imento universitário de.:;ses <.n05. S::: u !Tl-5r·:xIo - "o método" - torn a-se um a
preciso pensar sempre nela), mas ela alimenta. ao mes mo tempo, a 111 5 referênc ia quase obrigató ria. No essencial, ela se ide nt ifica com a crítica
c:o!l......;;c iênc iJ ou a ironia dos eruditos (ela jamais se real iza). erudita de textos, do qual o clássico JIl[TY)duc!i(lf/ aw: études hisloriques
Co nvém, ent re tant o, levai a sé ri o essa te nsão, e ver nela algo ma:s [Int rodução .IOS estudos históricos), de La.nglo is e Scignobos (1898), reca-
do q ue um lu ga r-comum da retó ric a acadé mi ca . E la é, e te ti va ment e,
i! inseparável de um proje to inte lectual cont i n uam ~ nte reivindi c ad u na lon-
pitula os princípios de base pa ra es tudantcs, mas c ujo modelo o rienta no
mesmo mome nto uma boa pa rte dos es tudos literários. Frente à história, as
I:
it ga. d uração do século, mas descontínu o em s uas rea lizações assi m co mo o utras ciênc ias soci ni s são recém-chegnd<l:S que ·dificilment e encontram se u

ii e m sua concepção. Esse proje to, e o deb,u e q"J e el e alim entou , não é
esp,o.ecifica men te fra ncês. Pa ral e los pode ri am se r encontrad os na A lcmJ-
luga r e seu reconhecimento. A geografia., tardiamente co nsti tuída corno dis-
c iplina uni ficada sob o impul so de Vidnl de L,a Blache, é a qu e melhor perfa z
nh:!.. na It i.Í lia ou no mund o anglo-saxão, po r exe mp lo , segundo crol1olo- seu cami nho, mas permanece na eondiç5o de irmã caçula, na órbit a da
g i<!S mais o u me nos d istanc iadas. É impressio na nt e se co nsta ta r todavi a história, apesa r de uma no tável n a ração. A econom ia perma nece tradicional-
q u essas di ve rsas expe ri ênc ias não se pa rece m mui to e que elas não se men te aca nto nada nas fac uld ades de direito c, ainda aí, em pos ição subor-
coc 1Un icarum entre s i, a li muito po uco. Oco rre q ue c ada um a to mo u form a di nada. A psicologia é divid ida ent re o ens ino da medicina (em sua parte
e ~-a Il :lO U se ntido no seio de um co ntex to c~ lt u ra l e institu c ional m uito experim ental) e o da fil osofi a. A lingü ístiC! não possui existênc ia autônoma.
p<!.:-:ic ular, ao qua l deve traços irredu tíve is. T0 . h"ia. , h:í uma o ri g ina lid ade A t'i1ti m:l ciê nc ia social em data, a sociologia, é provavelmente aquela c uja
di.l Yers~o fran cesa, qu e nos inc um b ire mos C~ ~;.lr;.l c t c r i za r i.lq ui; e la pode fortu na é ti mais paradox;Jl: a uma cspe:'.Jcub r afirmação teór ica, que se
cc n amente se r ide nt ifi cada co m três caracte res: m a is do que qualqu er identifica de início com n obra de Durkheim, à multi plicação das frent es de
OU :i:J, ela roi vo lu nt ar ista, e ex primi u-se p . ., r ten tat iva s rei te radas de refl exão c rít ica e de pesq uisa (o que é ilustr.:l.do, a parti r de ] 898, por L'Aufl ée
cC:1s tru ção de um es paço ao mes mo tempo e?i~ lcmo l (, g i co e !l1stitu ci ona l; soci%gique [O Ano sociológico]), n5.o co rrcsponde uma verdade ira acolhida
m:.:.is do qu e qua lque r ou tra, ela se desenrolo :.! e m "aso fec had o e, em todo no seio do mundo acadêm ico. A resistív cl c::? ríei ra de Émil e Du rkhe im e, ma is
c:.:.::'-o. perlll :1I1eCC U lo ngament e sur da aos deb:::.tcs cstrang<.: iros; fi nalme nt e, ainda, a de seus d iscíp ul os, o tes tcmUnh::Lil' .
aF<I1 i1s e la deu ; L hi stô ria um lu gar de pr ,::ic iro pl:L no f re nte ~L S outras É desse lad o, n de uma disci pli:--.:J: Jll al rcconhccid;..t c ultrami no-
ci~nc ia s sociai s. !'<.Ira tcnta r co mpree nder C$."5-3 o ri gi nal idad e, pode ser útil rit ,i ria, qu e s urge ti prime ira propos iç3o de l!:n a uni fi cação das c iênc ias
rt: C0 rn ar aos 1110i:le nt C:i s uces:: ivos dessa co nfro nt aç üo. soc iai s . Ela co ns titui , e p1 muit os aspec tos, li llla es péc ie de go lpe
8í. PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 83

epistemológico. Ao método erudito crítico, Durkheim e os seus opõp;m mesmo de a Primeira Guerrá Mundial dizimar a equipe durkheimiana,
as rearas
b
bem mais ambiciosas do método sociológico; à codificação de sinais de resistência se manifestaram. Resistências cOalservadoras, em
uma profissão, um plano para a t'rganização d:'.S ciências sociais. Ou face de um conjunto de proposições que questionam, de uma vez, muitas
melhor, "da' ciência social", da qual a sociologia seria, segundo eles, posições e hábitos adquiridos, mas não apenas elas. As resistências sur-
chamada a definir o cânone evistemológico pr~ritivo e, ao mesmo tem- gem também do lado daqueles que, med:ndo Í1 "crise da razão" que se
po, gan:.ntir a unidade do conjunto. Pois nada jt.:.Stifica fundamentalmente abre por esse tempo, estimam que o modelo de cientificidade - Q modelo
a seus olhos a divisão disciplinar do trabalho, senão as irregularidades da das ciências da natureza - reivindicado pelos sociólogos ja está obsoleto,
história e a diversidade das competências técnicas locais, que são sem e que seria conveniente reconstruí-lo sobre novas bases.
dúvida importantes mas que permanecem secundári~s em relação ao
projeto científico de conjunto. Assim mesmo é necessário que c~da ~~a A alternativa r,~gmática: as "'ciências do homem"
das práticas particulares aceite tomar seu lugar no novo espaço cIentifICo É nesse contexto, e em particular a partir desse debate, que deve
definido pelo sociólogo, e que ela resolva, ao mesmo tempo, reformular ser situa~a e compreendida a outra proposição esboçada então para or-
seus (maus) hábitos de pensamento para se conformar ao manual de ganizar as relações entre a história e as ciêncins sociais. Ela não possui
encargos que lhe é proposto. Uma série de confrontações tensas vai des~e e não possuirá jamais a nitidez e a segurança epistemológica do projeto
modo opor os durKhe;mianus - COJnumentc representados por FrançOls durkheimiano. Para falar a verdade, ela aj'resenta menos um modelo de
Simiand - aos geógrafos, aos psicólogos e sobretudo aos h IStO . dores.
· na 2
cientificidade do que sugere um procedimento eanpírico: provar o movi-
Em face desses últimos, Simiand aproveita a C'casião de urr.. areplo debate mento ao caminhar. Em 1900, Henri Ben funda a Revue de synthese
internacional sobre o caráter científico ( ou não) da história: ele o faz historique [Revista de Síntese Histórica]. A nova revista, como todos os
r
,oi deslúcando os termos do problema e demonstrando que não é sobre a empreendimentos ulteriores de seu animador, destinava-se a acompanhar
!~ .erudição que pode ser fundada uma tal pretensão à cientificidade, mas a realização de um projeto aesmesurado de síntese enciclopédica dos
l!l!i sobre a aceitação das regras constitutivas de uma ciência positiva: "Não conhecimentos. Mas ess~ grande arquitetura importa menos do que a
:1 há, por um iado, uma história dos fenômenos sociais e, por outro. uma maneira de fazer que é escolhida. Trata-se de criar um espaço livre - e,
t.z ciência desses mesmos fenômenos. Há uma di~ciplina científica que, para reconheçamos, fragilmente ordenado apesar da obsessãC' dassificatócia de
" atinoir os fenômenos que são objeto de seu estudo, se serve de um certo
~ - Berr - de confrontação entre práticas ciectíficas que, as mais das vezes,
método, o método histórico". A especificidade da história é entao rede- se ignoram. E como Berr está convencido de que a história, e não rr.ais
finida - e limitada: ela pode e ela deve abrir a dimensão do tempo para a filosofia, pode ser o espaço da síntese dos saberes, a primeira ocupa
a experimentação sociológica. em seu programa um lugar central, mclh<lr: organizador.
Trata-se então, no caso, menos de uma interdisciplinaridade do que As AllIzales, fundadas por M<"!rc B~och e Lucien Febvre em 1929,
de algo que poderíamos chamar de a-disciplin~ridade, uma vez que as tomarão a sucessão ao afinar o projeto, livr:!.":1do-o de suas escórias e de suas
disciplinas são reduzidas a especializações iGe\'itáveis no seio de um aderências mundanas, dando-lhe ainda a legitimidade universitária que lhe
mesmo projeto de conjunto. Em L 'Année sociologique como em seus faltava. Bloch e Febvre, cujas posições, ali~, não são exatamente idênticas,
trabalhos pessoais, os discípulos de Durkheim são o exemplo, tanto ao são bons exemplos da trajetória que aqui tentamos precisar. Um e outro
passar pelo crivo de suas exigências a produção científica contemporânea, formaram-se nos primeiros anos do mo,.imento durkheimiano, e ambos
quanto ao penetrar eles mesmos em terrenos ~e pesquisa especializados reconheceram sua dívida intelectual em ~~lação a Durkheim: sua escolha
após ter adquirido a competência necessária. Esse plano de unificação não de uma história social e sua recusa às c0mpartimentações disciplinares
terá, contudo, um futuro imediato. O que reyda esse fracasso é uma datam da época em que freqüentaram a eClão jovem AllIlée sociologique.
relação maciça de forças: por mais brilhante que seja, por mais agressiva Contudo, eles escolheram não se aliar a uma nova ortodoxia, a uma escola.
que se queira, a sociologia r.30 teve os meios de sua política. Antes SubscreY'eratu à crÍtÍl..:a do método erudito :nas nem por isso se dispuseram
84 PASSADOS RECOMPOSTOS
Questões 85

a aceitar as regras imperiosas da epistemologia sociológica. A opção de margens do sist~ma acadêmico (mesmo na marginalidade prestigiosa do
organizar a troca entre disciplinas em tomo da história ganha aq~i toda a College de France); ela também inclui pesquisadores cuja formução ori-
sua significação. Sem dúvida, Bloch e Febvre são historiudores e o primeiro ginal era de tipo filosófico, o que foi o caso dominante entre os sociólogos
trtulo de sua revista foi, não esqueçamos, AnnaIes d'histoire économique e antropólogos franceses. Sem forçar muito as coisas, poder-se-ia assim
et sociale [Anais de história econômica]. Resta o fato de que o programa sugerir a compreensão do brcvt= porém intenso momento estruJuralista -
,q:.
iniciado a partir de 1929 é o de uma dupla confrontação: por um lado, entr~ do início dos anos 60 ao início dos 70 - como uma retomada, em termos
as múltiplas abordagens do presente, ~lustradas pelas ciêndas sociais e que novos, da ambição durkheimiana (é possível perceber nele, simultanea-
devem enriquecer os modelos de inteligibilidade do passado; e por outro, mente, uma tentativa de emancipação da tutela dos historia~ores, da parte
em sentido inverso, entre a experiência do passado e a interpretação do das ciências sociais reunidas sob a bandeira de uma :deologia científic:t
contemporâneo. É então, de fato;,3 complexidac!.: do tempo social que serve a-histórica, e até anti-histórica). Viu-se, em todo caso, reaparecer então
de eixo para o encontro interdisciplinar. Esta reorganização se duplica por o programa de um modelo de cientificidade l1nica, lançando no inferno
um outro desl!zamento significativo. Para Durkheim e os seus, apenas o do empirismo todas as práticas eruditas que lhe resistiam. Os historiado-
método poderia pretender unificar o campo das ciências sociais; já para os res, ao contrário, jamais deixaram de defender a abertura pragmática. O
historiadores, este papel caberá ao objeto supostamente comum destas célebre texto de Fernand Braudel sobre a "longa duração", publicado em
ciências, ou seja, o húmem na 'Sociedade (e não é por acaso que durante 19583, testemunha essa atitude. Ele opera em duplo nível: reivindicando
muito tempo, na França, a expressão "ciência~ do homem" prevaleceu sobre o caráter central da dimensão temp0ral na análise e compreensão dos fatos
"ciêndas sociais"). Eis aqui esboçado um modelo menos brilhante, pC'rém sociais, o que significa lembrar o espaço irrediltívelda história no seio
sedutor, mais empírico, até mesmo artesanal, e também, de i~ediato, mais das ciências sociais; mas também, num plano mais estratégico e que
operacional por parecer mais tranqüilizador. traduz uma antecipação muito precoce da crise por vir, defendendo uma
O imediato vai durar. Não se trata aqui de evocar, ao menos para ::oncepção mínima, "ecumênica" (o adj'?ti~o é de Braudel) de toda prática
esboçá-lo, o que foi a história das ciências sociais no século XX. Notemos da interdisciplinaridade, a serviço da qual "a história - talvez a menos
entretanto que, para a maioria delas, o reconl:ecirnento e a institucionaliza- estruturada das ciências do homem - aceita todas as lições rl~ sua múltipla
ção universitária foram adquiridos tardiamente nos anos 50 e, sobretudo, vizinhança e se esforça para repercuti-las". Visão modesta, esta de um
nos 6u. A história beneficiou-se com essa minoridade prolongada. Tes- terreno comum e de uma língua franca. Ela não' bastará, a curto prazo,
temunha este fato, para além das AllIlales, o papel central ocupad~ por para deter a ofensiva estruturalista, mas servirá eficazmente para limitar os
uma instituição que foi seu imediato prolongamento, a VI Seção da Ec')le danos. Melhor, ela alimentará a estratégia de reconquista levat!a a cabo -
Pratique des Hautes Études [Escola Prática de Altos Estudos] (ciências ser:npre empiricamente, e provavelmente sem ter clara consciência disto -
t.conômicas e sociais) fundada sob o patronato de Lucien Febvre, por pelos historiadores no próprio terreno das ciências sociais.
muito tempo animada' por Fernand Braudel, e tornaca, em 1975, École
des Hautes Études en Sciences Sociales [Es.cola de Altos Estudos em Uma interdisciplinaridade integradora
Ciências Sociais]. Durante muito tempo dirigida por historiadores, ela Uma série de tentativas de hibridização, das quais a antropologia
pode muito bem servir para ilustrar essa via empírica. . histórica triunfante dos anos 70 foi o exemplo mais espetacular, é testemu-
Se nos detivemos sobre essas duas conc~p'$ões antigas da interdisci- nha diss04 • Podemos ler aí um esforço vigoroso para reformular, em con-
plinaridade, não foi por gosto da retrospecti"a, mas porque elas consti- junto, a distribuição das relações de força entre as ciências sociais e as
tuíram, até muito recentemente, os dois pólos de um debate recorrente, regras da troca interdisciplinar. Sem dúvida, a tradição historiográfiea cas
mesmo que ele tenha se perpetuado em con:cxtos profundamente reno- Annales poderia reclamar para si o pioneirismo de algumas experiências
vados. A reunião em torno de uma epistemulogia unitária, prescritiva, que permaneceram, cntrctanto, individuais e isoladas: a de Marc Bloch, é
veio, o mais das vezes, ~e disciplinas minoritárias ou acantonadas nas claro Les Rois thaumaturges [Os reis taumaturgos] (1924); Les Caracteres
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11
86 PASSADOS RECOMPOSTOS
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Questões 87
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origuzaux de l'histoire rLlrale française [Personagens originais da histúria "_!':
i.'
.~~~~
gráficas das produções desses anos para verificar que se tornou normal, até
t'
rural fran~esa], (1931); La Société Féodale [A sociednde feudal], (1939-40);
l, '.:~:: mesmo imperativo - quase também ritual - para 'os historiadores fundar
t, depois, uma geração mais, tarde, as experiênciass tão diferentes entre si, de ", ~,.

seus procedimentos e seus resultados remetendo acs trabalhos dos antro-


.~~
I A. Dupront ou d~ l.-P. Vemant. Mas é numa escala totalmente diferente que . .{~;;, pólo~os e dos sociélogos, a partir de agora parceiros privilegiados.
I, se organiza, a partir de então, o confronto. Em torno de alguns grandes ,,;;:: (~.

~.). De resto, não é indiferente que a antropologia e a sociologia tenham-


domínios ete investigação - a família e o parente~co, o religioso, o econô- se tornado as protagonistas da história. Por muito tempo, a geografia e a
mico, o político -, sem 'grande cuidado de ortodoxia teórica - entre as economia pareceram dever representar esse papel, m::~ em condições com-
referências dominantes encontraremos certamente Lévi-Strauss, mas tam- '~~
pletamente diferentes. A geografia propunh~ a um só tempo, a possibilidade
bém Dumont, Hertz e Mauss, Polanyi, Chayanov, Murr~ ou Sah1ins - e nem de uma reflexão sobre a inscrição dos fenômenos sociais no espaço e um
sempre de coerência, a antropologia hist'.5rica assegurou empiricamente a princípio forte de realidade: ~la parecia ofe:ecer à análise histórica objetos
presença e as posições dos historiadores sobre a maior parte dos terrenos concretos, visíveis e quase tangíveis. O lugar da economia, por seu lado,
ocupados pelas ciências sociais. Ela, seguramente, fez mais do que isso. foi associ()~o à ccnvicção mais ou menos explicitada que pretendia que,
Em 1978, André Burguiêre justificava muito lucidamente a atração exercida através dela, se atingiriam os mecanismos ;>esados que orientariam o des-
pela antropologhl nesses anos explicando que, no momento em que nossas tino das sociedades humanas. Em sua própria orga~ização, Le Mediterranée
.; ~~ sociedades contemporâneas renunciavam, por sua própria conta, & concep- [O Mediterrâneo] de F. Braudel (1949) traduzia bem essas preferências,
ção de um progresso linear, ela tinha podi~o corresponder "à necessidade com uma p:imeira parte inteiramente consagrada ao diálogo entre o homem
,":
de reencontrar [no passado] os diferentes \..aminhos da tral1sfo:-mação. e o meio, e unja segunda aos tempos da atividade econômica. Mas as coisas
inventariá-los, compreender seus mecanismos, afirmar sua pluralidade"s. O mudam nitidamente com a promoção de disciplinas que, como é o caso da
!~ fato é que esse retorno crítico aos hábitos do oficio também foi a ocasião antropologia e da sociologia, são de algum modo coextensivas à história,
I~;
de um ~spetacular movimento de expansão. e que têm em comum com ela uma seme1hant~ indeterminação de seu
}! Com efeito é então que parece se abrir desmesuradamente o que '.rJ:~. objeto. O confront.:> não é mais setorial, limitado. Ele tende, mais ou menos

I, ~
, ;:

....,
tIl!
Emmanuel Le Roy Ladurie chamou de "território do historiador", termo que
é por si só um programa. Registra-se uma mUltiplicação, que parece então
conscientemente, para uma integração das disciplinas cuja identidade perde
pouco a pouco sua evidência. Tal terá sido t3lvez o projeto mais ou menos
!11o
;r~ . sem limite previsível, dos procedimentos e dos objetos. Cada estação, cada cor.fesso dos anos 70, e ainda de uma boa parte dos anos 80.
:!~ número de revista, cada novo título, parece testemunhar uma incansável
inventividade. Esta aceleração já não é, de resto,. exclusiva da França: breve o tempo dos confrontos?
a encontramos no mundo anglo-saxão (em particular nos EUA), na Itália Tal projeto entretanto não se realizCMl. Pior, a fé na possibilidade
c na Alemanha. Nesse momento - que é também aquele, provisório, de uma de uma comunidade das ciências sociais encontra-se provavelmente mais
intluência máxima das AnlJales no mundo -, tudo parece poder -logo dever fraca hoje do que há quinze ou vinte anos. Para isso concorreram diversas
- tornar-se objeto de história. Tudo: a família, a sexualidade, as idades, as r:lzões. O espetacular crescimento historiográfico desses anos foi gene-
crenças e os sentimentos, o simbólico e as representações, os confins roso, mas foi mal administrado. A multipliC3Ção dos objetos, dos terrenos,
indecisos do biológico e do social, com um interesse mais acentuado pelas mas antes de tudo, das proposições foi a origem de tendências centrífugas.
fonnas sociais, que não se oferecem nécessari3ffiente tais quais à leitura e Denunciada, reivindicada ou, mais freqüenterr.~nte ainda, aceita como um
à compreensão, precisamente aquelas que as ciencias sociais se incumbiram fato, a "fragmentação da história" serviu, r.uito cedo, como sintoma para
de trazer à luz e interpretar. Nesse sentido~ p,"~e-se legitimamente pensar qualificar a nova desordem das coisas'. A fórmLlla registrava a prolife-
que a aliança com elas toma a sucessão da antiga história das mentalidades, :ação dos interesses historicistas. Mas ela manifestava também que, no
da qual amplia o programa, as ambições e os melOs(i. Ela ganha forma de interior da disciplina, a unidade estava cenos assegurada. A própria
uma integração voluntarista: oasta prestar atenção às ref('rências biblio- dinâmica da pesquisn convidava a formas de especialização mais

., •• J. ' : -<5 .V , , ••
, 88 PASSADOS R1::Cm.. IPOsros
QueSlões 89
aV;Ençndas, que (o rnavam ao mesmo tempo a circulação da infor mação
mais difícil (pense -se por exemplo na evolução da dGmografia hi s tórica, sugest ivo e irritante. Tudo se passa como se, apagad os os antigos pontos
simples modalid ade da história socia l gera l nos anos 60 que, duas Llécadas de referência, devêssemos agora tentar re.::ons truir um espaço pensável
depois, tornou -se un~a subd isciplina altame nte técn ica e fOi'lcmcntc auto- para as ciências sociais. Essa recon<; truçâo. entretanto, está apenns come-
norniz:.lda). Sobretudo, a cumulatividade dos resultados obtidcs p;UCCl!U çando, e é muito cedo para adivinhar hoj e aonde ela nos cond uzid oO que
mais c mais inccrt<.l. O prôprio projeto de u ma síntese intcgri.!dora dus se ' pode fazer, em troca, é dar atenção às formas que ela adquire sob
coohccimcntos parecia assim questionada 8 . r•.)ss.)s o lh os. A pr imei ra é a de uma " rcdi<;ciplinnrizaçüo" parcial. A
Essa evolução c esse diagnóstico serão próprios da disciplina his- exper iência dos anos 70 e 80 terá sido também a de uma maneira de
lónca? Não se pode assegurar. Será por acaso qu e, no mesmo momento, confusão dos gêneros. Se nada, no fundo, distingue a his tória da antro-
numerosas ciências sociais ss
propuscm l1l 2 estabelecer um inventário o u po logia ou da sociologia, qual pode se r o Il,j.::ro tirad o de seu confrontn?
qUe!, m ais sign ificativamente a inda, operaram um retorno crítico sobre sua
É preciso tornar novamente possíveis entre elas "diferenças de potenciais"
pró pria his ',6riu? Sem dúvida a maior parte dela s hesita em reco nh ece r (B. Lepc tit), que gar;mt iriam um a circulação efe tiva fundada sobre a
for::nalmente que um tempo de pe rtur baçõe~. c de dúvidas chegou, mas os autonomia e sobre a d:fere nça dos pontos de vis ta e dos procedimentos
sini!O mus da cr ise podem ser vistos por todo lad o. Eles podem, em cada de trabalh o'). Não se trata então de tornar a con-.partimentar o esp~ço
C<L"'-O, remet er üs fo!"mas e às contradições de uma hi s tória particu lar. MilS
científ::o em nQme dos particularisl110s discip lin ares, mas sim de abrir
; ;": ele:s devem lumbém se r ligad os uo próprio projeto de uma cOlllunidade nele uma pluralidade de projetos que nãc.. se rcc(,br~m um a outru. Essa
~
Ja' ci~nc i as s..Jc ia is, e isso, pelo menos, em cais nÍveü•. segu nd a evolução em curso pare~e-m e cont ri bu ir para redefin ir o papel
O prime iro é aque le, bastante geral, da significação e d e:! possibi- da histéria no seio d<ls c iências sociais. Por muito tempo ela fo; pensada
• lid:.ade do projeto el11 s i. Nascido na v irada do sécuio - em verdade, como o lu gar ecumênico da ' sín tese futura dos sabe res sobre o homem,
j~ o u, em um a ve rsão menos ambiciosa, como o lu gar comum de suas
enra izado nas gra ndes ideologias científicas. do sécu lo XIX - , de era
j;:.
n: ~; ilL.'<epadvel da co;wieção de que uma intcligibilidade de conjun to de cxperimen·ta ções. Em uma o bra impo rtante, . Jea n-Claude Passcron ,
nossas socieu<.ldes era possível e que \!Ia garant iria, ao mesmo tempo, a reorquest r:.IJldo uma temática \Veberiana, acab3 de desloca r tal reflexã o
!~ coavergência - ao menos tendell c ial - dos procedimentos c dos res ultados insistindo sobre a hi s to ricidade com um ao conjunto das c i\::ncias sociaislll.
.
, ,.,
~! ~ d~ ciências sociais. Tal convicçflo encon lf 3-SC abalada hú pel o mcnos A afirmJ.ç::o n50 possui nada de uma evidência do senso comum. E la
;1 fl vi.c.le anos. NossiJS sociedades t orn~1fam-se m:lis opacas em re laç50 a si propõe o reconheci mento da ex istê nci a de um regime de cientific idade
m..::.'.m<lS, incertas quanto a seu presente, seu futuro e, COI11 isso, até qlja nt o particular, diferent e: daquele das ciênci3s nomológicas, no qU3! O traba lh o
a s.~ u passado. No mes mo período, os grandes paradigmas unifi cadores, de interpre tação é constantemente associ2do :\ cons truçflo do objeto. A
qu...... se rviram de arquitetura e ng lob<.ln te ao desenvolvimento das c iências part ir de li ma reilcx50 dr::sse tipo, poderi:! ser encaminhad o, em te rm os
s0 ...' i3is, desmoronaram, e com eles o model o iurcio nalista que poss uíam, relativamen te inéditos, nos próximos anos, o difíc il diálogo entre os
gn.·lsso modo, e111 co mum. A hi slória global (o u história tOlal), cujo projeto :, istoriadores e os praticantes profission ~i 5 da s o utras ciências sociais.
h<!.-.. ia orientado os esforços de três gerJçocs de hi stor iadores, v iu-se
a~s i 11l, ao menos proviso riam ente, posta en!rc parênteses.
Nor:ls
O segundo nível é mais técnico. Entre 2'" disciplinas menos seguras
I G. Wc isz, Tlu: Elllerg c.'/I cc: of "-fodem Ul/h'l'rs i t ic ~ il/ Frall ce, 1863 - 1914, Princclo n,
d·! s i, de sua uni dade , de suas finalidades, o regime da comun idade e da
1983; W. R. Kcyl or, AcadclllY aJld CO/JIIIII/f/;' ;y: Tlle Fmll/df/fioll oj Ille FreI/ C"
tn:,:a alterou-se profundamen te. A inte rdi sc!?l ilwridade que parecia evi- J-/isloricaI IJrojessio/l. C:1Il1brid gc, 1975; r. K. Ringcr, Fidds ofKllowledge. r:rcn c h
c,;:.te, fosse qual fosse a via seg uida p:lr ~ G; cr:í-la , to rn o u-se problcm;J - Acadc llli c C ulturc in Comp:lrati"c Pcrs pcc li": ' 1890 - 1920, C:uub ridgc - Pari s,
ti . . . . :.• e lalvez seja melhor assim. Daí a l11u il iplicaçüo das respostas. Vi- 1992. Sobrc a sociologia, :1 rcferênci a fun d:! nlcnt:d continua sendo V. Knr;l(ly,
ve.:110S em um tempo de "anarquia ep is te mo lógica", ao mesm o tempo "Durkhcim, Ics sc icnccs soc i:lIcs CI l'U nivcfs ilé: bil:lU (]'un sc rni-échcc", UCI1lle
jrtl/lçaisc de s oci%gic.·, 1976, pr. 267 · 311 .
90 PASSADOS RECOMPOSTOS

2 O texto de referência aqui é o arti go de F. Simiand, "'Mé thode hi stor ique et scic ncc T RÉS
so:iale", Revue de syllfl!ese historiqlle, 1903 , pr- 1-22 C 129-1 57.

) F. Braudel, " Hi s toire et sciences sociale s: la longuc durée" , Allllales ESC, XIII , No Princípio Era o Dirdto ...
1958, reeditado em Écrirs slIr {'hisfOirf', Paris, 1972, pp. 752-3.
PATRICK NERflOT
• CC? gt: isa de exemplo o número especia l da s AIIIUl les; Hist oire cf slructtlre, 3-4,
197 1. Um testemunho mais mediatizado .pode se r fo rnecido pelo balanço-progra ma
n:.al izado por J. ' Le Goff e P. No ra na obra co letiva Faire de l'Mstoire, Pari s, 1974,
3 volum es. Que a história tenha nascido do direito nessa disputa entre o
verdadeiro e o falso, e que a questão da ver~lade 110 seio do pensamento
5 A. Burgu icre, "L'anthropologie historique", in J. Lc Goff, R. Charti e r, J. Revel ocidental tenha illleir(1l~,ellle confundido os métodos histórico e jurídico,
(o rg.), La NOlfvclle Histoire, Pari s, 1978, p. 61.
é o ql~ e a enquele ilustra. Forma exclusiva do conhecimento da verdade

6 Desta continu ida de encontraremos um teste munh o sign ifi cativo no artigo de J. Lc
em nossas sociedades, ela se impõe sobre o ordálio liOS primórdios de
Go ff, "Les mentalités . Une hi sto ire ambi gUa", in 1. Lc Goff e P. Nora (orgs.), Faire nossa segundo milênio, através da busca judiciária da verdade.
l'hisloire, op. cit., 111, pr. 75 -1)1,
-,
;
E a hi s tór ia nasceu do direi to. Nes tes term o's é que scr ia COIl-
7 A fó rm ula apareceu pela primeira vez, até onde sei, n a apresentação dJ "B ibli otéque ,,'cn ienl c es tabelecer a relação entre a hi s tó ri a e o direito, embora uma
d ~s hi stoiv:s" (Gallir.lard) por P. Nora, em 193 1: "Nós vivemos il explo~50 da
tal form ula çüo deix e pairar a pesilda ambigüidade de um "direi to"
história ... " Ela foi retomada , dessa vez em chave po[':-.mica, por F. Dosse , " L'Hi sto ire
en miettes". Dos A/ll/ales à La NOllvelle Hisloire. Paris, L, Decou vc rte , 1987. prese nt e desde sempre, sempre id êntico a si l~~csmo . O que é conve-
niente afirmar vigorosamen tc, entretanto, e que essa fórm . I1a possui a
J! Cf. os dois edito riai s sucess ivos da s AI/noles, "H;stoire et scicnces soc iales: un vantagem de indicar, é que o que nós ident ificam os pelo term o his tória
ta uma nt critiqu e" , A/ll/ales ESC, XIII , 1988, pp. 2"9 1-3, c "Tenton s I'expé riénce", :5 nosso mudo de co nhecer e de Jtestar O verdadeiro (o debate ocorrido
ibid., 1989, pp .13 17-23. Ver também B. LepettL J. Reve l, " L'cxpcrim entat ion
há al gum temp o na França, cujos participantes queriam definir a his-
..
,:; \...
cl. ""\ntre 1'<Irbitra ire", ibid., 1992, pp. 261-5.
tó ria como um romance, assim il ar O mé todo hi sto rico ao método ro-
., I' C'ste ponto conco rdo com as rcfk:xó\,;s propos tas po r 13. Le petit, "Pro positi ons pour manesco, era um enorme absurdo, notadamente porque demons trav a
i:'j
une pratique restre intc de I' inle rdi sc ipl i nari té", R e:'; 'Uc de sy/ltltêse, 4 ~ sé ric , 3, 1990, o .trágico desconhecimento, da parte daqueles que de fe ndiam essa
pp. 331-8. hipótese, do lugnr oc upado pela " hi stó ria" na episfémc ociden tal). Esse
modo de ates tação c de re co nh eciment o do verdadeiro, portant o, re-
,o k ..J n- Claude Passero n, LI! Raisollll emel/l sociologiçut.". L'espace /10/1 poppériclI du
toma, ret omou, é nossa tese, o(s) modo(s) de co nhecer e de atestar o
r ,:iSOllllemell( /wfl/rel, Pari s, Nathan, 199 1.
ve rdadeiro próprio(s) ao método ju ríd ico.
Se Michel de Certeau] podia cons ide rar que a história moderna
ociden tal começava com a distinçã o e a cisão entre presente e passad o,
é porque, e antes de tudo na nossa opinião, o suber jurídico ocidental,
nisso aliad o inseparáve l do s teólogos (po demos nos referir a esse(s)
temp o(s) qu e Jacques Le Goff tão m3raviJl1Os<lmente eXilminou em se u
es tu do sob re o nasc imen i.o do purgatório), reescrev ia se us meca nismos de
ex plicaçflo caus<l l ident ificando seus efe itos de sent ido com uma estrutura,
totalmente cr i s l ~l , do tempo2.
r 92 PASSAOOS R[COMPO~:iTOS QuesWes 93

Q ue a llistória tenh a nascido do direito nessa disputa entre o ver- caso para redesenhá-Ia c uidadosamente, reprop or um a outra visão que não
dadeiro c o fal so, c que a qu es tão da verdade no se io do pensamento <;eguiria eom certeza a idéia cl ássica de um ú " linha divisória" entre o que
ocidental lenha inteiramente confundido os mé todos histórico e j urídico, seri a da ordem do religicso e da orden: do píofano por um~ leitura da
é o que a c nq uc lc ilu:;tra. Forma exclusiva do conhecirnc!, t0 da verdade verdade. Principalmente por essas razões pretendemos, através de nossos
em nossas sociedades, ela se impõe sob re o ordúlio nos primérdios de trabalhos atua is e futuros, reelnnpCJf. as t erná ti ca~ epistemológ icas e
nosso segu ndo milênio, através da busca judiciária da verdade. DCffiOIôS- hermenêuticas, recomposição que reesc reve ri a outros princíp ios de dife-
trar nossa lese sobre a art iculação en tre história c direito é, desse modo, renças que não esses de uma exclusão, na enunciação-reco nh ecimento do
aventu rar-se, primeira c fu ndamcntaln;cntc, em questões epistem ológicas: verdadeiro, entre o que se ri a da o rdem do sag rado e da ordem do profano.
é, com efe ito, propor o problema da atestação c da aceitação dos modos Os jur istas sempre se voltaram ao c ult o do "documento autêntico",
de enunciação da ve rd ade no s~. io de n OSSas s'1ciedaJcs. Quando a enquete v ia obri ga tória da comprovação da verdade, mas qu e, evidentemente, e
se torna o modo domin ante, primordial, de autenli fica r a verdade, de mesmo que isso hoj e possa parecer obscuro, não podia ser percorrida senão
s usc itar em t;' utros t':!rmos esses materiais atr ~vé.s dos quais se atesta uma quando jii pudéssemos identifiea r um " tex to" (lembremos, a propós i!a
verdo.de, então, talvez, algo que um d ia reconheceremos como a " histó ri a" disso, ao eve ntua l desatento, que interpre tar "corretament e" um texto é
j á existe. porém at ravés de mecanismos que perte ncem exclusivamente a ntes de tudo atesta r esse " texto", quer dizer, enunciar as regras e proce-
às práticas jur ídico-judi ciári~s .. dimentos disl,:urs ivos d iversos pe!o.5 quais se desvela "o" tex to). Seja esse
termo "já", que ocupa um lugar tão particular na filosofia hermenêutica
'Jma n ::Jva linha divisória entre sagrado e profano contemporânea e graças üo qual lent a-se Irad:lZir os me:ani'imos cognitivos
Marc Bloch via no ano de 1681, data da publicação do De Diplo- pelos quais se afirma a atestação de um sentido. Por esse termo "já", nessa
marica de Dom Mabillon, uma dat a ext remamente illlportan te para o perspectiva filosófica , entende-se estar sublinhada a idé ia de um movimento
penSo.menlo, porque nessa ocas ião estabelccia-:;e definitiv:.mente a c rít ica perpétuo no princípio do sentido, isto é, ele mec~ni smos segu ndo os quais
dos documentos de arqu ivo. Segundo uma sín tese recente, as o ri gens da compreende r, in terp retar, não consiste jama is em ide ntificar pon tos origi-
escola me tód ica dos historiadores jJi'Ofissionais, também no meados nários (e seu equivalente que são os pontos de chegada), quer dizer, pontos
"' positivistas", tornam-se mais claras se examin3das ~ lu z dos erud itos do sem pre :Jresentes (parad~s do senlid3) que bastaria então identificar na
sécu:o XVII, mais do que a partir dos esc rit os de Augustc Comt c3 . Todos própria forma da presença, prese nça eterna, presença imutável, para ates tar
têm razão certa mente, entretanto é preciso perceber que tu do isso ocorre o verdadeiro. Tornar a pei,::olfer historica mente essa via equivale a abr ir
porque a escola metódica saiu dos p rocedimentos da crít ica textual (da esse espaço, nem acabado nem definido, a priori da mlio ocidental que
prática da dúvida metódica) na " leitura" dos testemunhos, que r dizer, podcria se esboçar a partir dos pon tos de refe rência fundamenta is que foram
desses saberes que participam da identific:Jção do verdadeiro u tilizados a exegese medieval e sua inseparável crítica " hu manista", levada a cabo por
pell' método jurídico, desse modo efetiv am ente be m jurídico de atesta r juristas como Lorenzo Vall a4 , e que reperc utiria sob re o quc Foucault
o s~ll lid o ":Jutêntico" de um tex to. c hamou pe ríodo "clássico" ou a aventura soli tária da linguagem5• Assim,
O projeto da modern idade semp re Cai s:eparar cu idadosamente o pe nsar essa relação ent re história e direito obriga a uma reflexão que
que fosse da competência de um con hec imento c ient ífico autêntico (ne- inscreve cm seu princípio a questão da rac ionalidade.
cessi tad o de uma auto- interrogação, que If :: dieionalm e nt e se chama
ep iste mologia) desse ou tro modo de sabe r, n;io mais lig~do ao conheci- Ident id ade de m étodo
mento das " leis Ilatur~i s" do mundo, mas que é. 1~1llbélll tradic ionalmente, Uma lal ren ex[,o não pode em ncnhum caso, todos terão comp re-
J p rl' ~clltildo como estando ligado a espec ul.1 ções c uj os fun damentos e ndid o, dar-se por sJ li sfeit3 COI11 a época cOl1lemporflllea. Um fil ósofo
PCfj',laIlCeeSSelll principalment e teológicos. S,-'bre essa sepa ra ção acha - do direito escocês, N. Mac Cor mi ck(', Fara defi nir o método juríd ico
nws que seria c()llveniente nos interrogarmos. sc nfio para negá- Ia em todo adianta esses q ua tro :-'ontos: a) pesqu isa r os [a tos; b) interpre tar os fa tos;
91 P ASSADOS RECO)..·l rosrOS

c) interpretar as regras ; d) ap reciá-Ias em rcl aç5.o ao conjunto das rcgras Vejamos o exemplo da crític a textual " hum ani sta" (que mais tard e
jurídicas co nsidcradas como um s istema tanto qt'a nto s ua intcg ração ncssa se rá identificada como a "filologia"). E la s e inscreve em uma perspcctiva
o rdem. Taille, ci tado por Bourdé e Martin 7 , já dizia, defin indo o m étod::> que permanece fundamenta lmente c ri s tã nú próp rio momcn.lo em qu e
his tórico e antecipando os Langlois c Seignobos : ~) pcsqu isar os fatos; constrói suas oposições semânti cas às Icituras ca tólicas. O historicismc,
b) classificá-los d is tin g~ in do cada classe de fatos ; c) dcfini-I os; d) esta- j á o di ssemos, pretende esta r trad uz indo uma verdade " atestada histo ri-
11
bc.:!ece r as rciaç5es de dependê nc ia entre 3S di"ersa s defi ni ções para vcr camente". Essc é o primeiro ges to fu ndamental de nossa fil osofia herm e-
e m que med ida fo!"mam um s istem a. No temos de passagem qu e os nêut ica ; ele retoma, j á o disse mos, He idegger c Derrid;a, mas sc acom-
hermeneutns mais finos apreciarão qu e "a interpretação de umü regra" pa nha dc uma oul ra disti nção, fund amental, e quc dessa vez nos é mais
ent re os juristas tem por nome: "definição dos f~tos" cnt re os histo ri a- específica (apesar dc nos se ntirmos muito próxillloS do filósofo francês) ,
dores mas o que é, efet ivame nte, uma reg ra inte rpretad a senão esse efeito a di stinção en tre hist 7ria c passadu.
de sentido que já se int rod uz no qu e sc c ham 3 " o fat o"?
Como que r que seja, o método histórico. tal como se dcfine já no História e passado
séc ulo XIX, é idê ntico cm todos os pont os 30 mé todo jurídico atuLi I Quando se "escreve a histó ri a" , o "sent ido", a "realidadc" são essas
(aprcsentado aliás muito dogmaticamcntc por um juris ta que ainda por var iações significativas às qua is sc re feria Miche l de Certeau, e se ins -
c im a pertcnt:t.: a um a :scc!a ~n.g! ó f0n:t , definida tw dic ionalmentc com o crevem assim, é bana l d izê-lo hoje, I~u ma li nha, homogênea, do tcmpo,
completamen te es tranha às escolas continentais! ... ) e essa identidade nos trad uzin do assim uma re lação de causalidade (racionalidade fo rm al): a
interroga vigorosamente. Ta! iden tidade de mêlOdo, l1ue H. G. Gadamer~ dissipação do mistério, do tempo presente, pela ins tauraçãv, no prcsentc,
jan13is percebeu, deve se r. pensada muito se riamen te c, longe de nos de um a figuração amb iva len te p assado -futuro. Com efe: to, o qu c scmpre
cnvülve r em uma refle.do sob re a "mode rn id::lde", nos envolve ao con- se perde de vista, sem dúvida porque isso parece rcalmcnte bana l, é que
trário em um a reflexão que trata da questão da rac ionalid ade c que se todas as nossas interrogações rcme tem sempre a uma só e mcsma qu cs tão:
qu alifica por três termos : ocidental, cristã, pré-moderna. a que consiste em identif icar o que constitui realmente p roblema para o
ator históri co, a saber, seu próp ri G tempo! Se soub éssemos, sem a menor
Hisroricismo '" hisroricidad e
ambigü idade possível, quem nós so mos, se a qu est~o do sCll tido que é o
A questão da rac ional idade, ass im colocnda, nfl o se redu z a nosso já cs ti vesse totalmente resolv ida, es taria rcsolv id a ao mesm o temp o
histu ri c isl11o, mas se insc rcve na questão da his to ricid ade. Que se dcve a qu cstã o filosófica, por exemplo nessa fonn a par ti cular que é a p-:squisa
e nt ender por lnl di s ti nção? Digamos antes de tudo , fiéis nisso à fi losofia históri ca. É a razão pela qua l um sen tido, no prescnte, se dabora pe la
hemlenêutica de Heidegge r e Dc rridaIJ , que .:! ques tão da histori c idade constituição de um passado, se elabora n'essa va ri ação ou diferença; ncsse
pretende propor o problema do scntid o corno "abertura d a Ills · tona
'·"IU
. gesto he rm enêu ti co, o presente não é j ama is prese nte, mas já futuro. E
em:l isso, di stingu imos a questão da hisloric id::;.de de todos esses conju n- a questflo do " li mitc" tal como surgia, nós l ~mbral11os, nos diversos tra -
, tos jc explicações hist óricas quc "descre\'cr.:- \"crdades passadas (h is to- ba lhos qu e tra tavum de qucs tões de método nos anos 70 11 é uma traduçflO,

, ricismo); fazcmos, ao con trário, da questão cJ. hist o ricidad c o que torlla
possível a cn un c iaçflo dessas ve rdades, c ~ traduz imos entflo como a
";ü-crtur a do se ntid o". Tocamos aí a grancc ques t;io de toda fil osofia
entre ou tra s possíveis, disso.
I-listori c izamos assim o "a tu al" ou, o qu e dá no mesmo, efetu amos,
no prese nt e, efeitos de sen tid o (n oções ue "situação", de "acontec iment o",
hermcnêutica; essa dist inçüo é n[1O ape n:ls cs:: cncia l no qu e concernc li de "fato"), e isso só se pode fé1 zer a p:lfti r de argumentos (cuja naturez.l,
cnunciaçflo.reconheciment o da verdade, mas ~::l mbé m pclo descart e (eó- aq ui , pouco imp ort a) aos quais é recúnhccldo o estatuto de ve rdiJd e. Nós
ri c~' da hipótese rcl 'ltivista. Esse pos tu !Jc . Ja "abertura da his tória" fazemo:} aeol/tecer alg uma coisa, que podemos chamar o aco nt ecimento
int rüd uz efetivamen te à hi pótese de "colldi ç=...c ~ de possibilidade" para a (poderíamos também chamá-lo "fatú", "s ituaçrlO" ... ); nesse gesto, só o
enunciação- recon hec im ent o de toda proposiç5.0 de verdade. esp :rito : streito podc ve r o triu nfo do pensament o sllbje tivi sta , pois se
96 PASS,\ DOS RECQMI'O!iTOS
QUC.Hões 97
trat;] de n ~ da menos que da experiência da racionalidade ocidental, desse Um processo de se ntid o de uma escrit a indica fundam entalmente
raciocíni o pelo qual um sentido (presente) se elabora, articuliJndo um aquilo por que uma verdade se ates ta (nusso "texto"). Se noc; refe rirmos
passado (testemunho de uma verdade, e tudo est5. nessa atestação eviden- ainda à experiência do j:uista, o conceito de iegra (onipotênc..ia da "norma"
teme nt e), e já valendo como um futuro previsível. na cabeça do jurista contemporâneo) se e:\-prime como uma projeção no
futuro (comportamentos r-re~critos e então autorizados, proibidos .. .) pela
Nas fontes da racionalidade ocidental qual comlJortamentos serão qualificados , a partir da reconstruç50 de pas-
Dessa histori cidade, abertura dq história, qu e ~stá no princípio dos sados, e va leri.o como o se ntido (presente) da regra. Um passado. é passado
signüs qu e atestarn e pelos quais se reco nh ece a verdade do mundo, desco- desde que é sen tido, atestação de um presente; o passado permanece fun-
brimos as primeiras formas históricas nesses s:!beres dos teólogos e dos damentalmente testemunho do presente, 110 presente, mas notemos bem
juristas, para quem ape nas p, :a escrita se ch\..!garia a verdade do mundo, que todavia, que um presente não pode pretender um sentido se não através
recompunham em outros termos uma linguagem de signos, redese nh avam os dessa diferença, desde que é inferido de um passado. O passado está no
con tornos \d iferenças) do "texto": é preciso se re pensa r aqui, em particular, princ ípio du sen tid o, di ssipa o mistério do presente, faz então ocon er c
o que foi a exegese medieval como o signo do qu e nós chamávamos ainda acontecimento: eis o qu e propõe como problema filosófi co a questão da
rá pou,:o "experiência da rac ionalidade ocidental ~' , onde o texto tornava -se ""'história", e compreend emos ainda um po uco melhor como a retlexfi o
1 uma articul:lção en tre o Ant igo c o Novo Tr:sram ento, onde esses signos epi s te m o ;ó~ica t;stá inti malller.te ligada à reflexflo he.n:enêutica.
"1 2.nu nci avam, enunciavam graças à construção dessa lei tura tão específica
:1
~,

ql.lc foi n hermenêuticn da "doutrina dos quatro se ntid os" da sacra scrip1ura. A questfto d2 tr:td:ção
..
"
"ii
Aqui o "sentido lite ral " era O Antigo Testamento , o que quer .:Iizer "h is-
tória", ou seja, rel a to verdadeiro de acontecimentos passados, mas ele não
Nossa rápida apresentação do a lcance fil osófico de todo di sc urso
hist órico, nos dirã o, já es tá bem densa, senão pesada, maci ça, mas nos
~\'
era sentido sellão enquanto articulado no Novo Testamento, isto é, a essas permitiremos incluir um novo problema que .não podemos deixar de
:;
.51 três interpretações que eram a alegoria, a mor:~J e a anagogia 12. menci onar nesse muito, por demais, rápido lraba lho, c que é o problema
I~ Co meça enlüo algo de decisivo pa~a a racio nalidade ocidental, onde
151 ria tradi ção. Queremos ins istir sobre esse pon to, pois é t.:'ssa própria idéia
se inscre vem todas as nossas bat;.ilhas (hislOricismos) do sentido e qu e que e~ tá no princípio ela hermenêutica des envolvida pelos historiadores,
: ~ "I

!'~~' conv ida. e começamos a entrever por quê, a jamais afastar demais da
; .;: 1alvez também, por vezes, sem dar muita 3tenção, hermenêutica se m a
~~ ' ieflexão epistemológica a renexão hermen ê ut ica. q ual eles seguramenle nã o esc rever iam a história tal como a escrevem.
Um passad o é um transporte de sentido: a partir do mome:1to em Exis te, de fato, uma idéia bem banal pJra nOSSJ c ultura, qt'e consiste em
que se trata de enunciar o sentido (de um escrito, portanto de um tra ço dizer que o "isso que somús" já es tá escrito no que nos é anterior, que ,
SUl' já an uncia sentido), um passado é illferido, por mais discreta quI,; em outros termos, somos esse resultado de um passado, que nos form oll ,
; o~~a se r essa inferênc ia (tal co mo, por excm p !~' . "a hi stó ria da palavra"); de fo rm ou, e com o qua l é preciso negociar j:í que queremos dar co nta de
is tn OCO rre sempre, e nessa inferênc ia reenCl..1:lIraIllOS nossa qu estã o da -nós mesmos", de nossa "identidade". O p3ssado é de al :;lllll Ill ~do esse
-'hist óriCl", que se s itua então, em nossa perspectiva, 110 próprio prinCÍpio -necessá ri o" j:í qu e se di sc ute a ques tão de nosso presente. Como nossa
de /lm a reflexão ephacmológ icn. Um jurisl<! . por exemp lo, se ria absolu- pe rspect iva hermenêutica aborda essa questão?
: ~ Il1 e llt e incapaz de trabalhar do modo com ú ç. fa z se m nossa " histór ia": Se, como vim os, O passado faz oco ner, tal como definimos esse
e~~ :1 proposição qu e, na base dos postu~3 d o 5 que enunc ia mos, corre o p rocesso, o aco ntec imellto, então se di sso lve o conceit o de " tradiçã o",
~ isco de parecer uma redundfln c ia, prete nde I.~ lll ve rd ade sublinhnr qu e :::nqu ant o esse processo de se ntido tal COffi l.'I el e pretend e se r e que rapi.
es~cs malCriais qu e O jurista ~H: i ona no excrl..· ic io co tidiano e po r vezes jal11cnt e apresen tamos. A trad içflo seria ('le tivamente esse pedaço de
r:1u ito mod es to de seu o fíc io são a exprcss J. o do que uma sociedade se nti do que chega ria "ozinho e inte iro :.Jtê "nós", " hoje", eonfigurand o
:eco nh c,-e CO i·.l O o ql; ~ partic ipa da atesta ção c da enun c iaç üo da verdad e. -2 ssim - li gand o, CO::l0 uma espéc ie de tr:.Jnsce nd r: nc ia , o observador que
98 PASSADOS RECOMPOSTOS
Q uestões 99

seríamos _ o sen tido au tên tico, filosofia da hi s tó ria , que va le como a o "ato r" ren asce, nflo é so b a forma de um nco·s ubjetivismo, assim como
verdade (n osso present e). Po rque a tradiçfto jamais c hega sozinha, porq ue pretende mos afastar, por essa c rítica à oJl tolog:a, a referência objetiv ista.
a fazemos chegar, diríamos, dessa tão c.nraiz<.Lda h erm enê uti c a da ti adição, Pel a co ncepção qu e esboçamos dJ "passado", longe de postular um
que da é o mUlldo da gra nde i!uslÍo. A tr ad iç30 é sem dúv id a um "tes- se mpre cognoscível (identidade, metafísica da prescnça), concebemos, ao
temunho", ela não é " idea lcgia", a tradição é e~se passado tal como o contrário, o processo hermenêutico C0mo a enunciação de reg ras, prin-
definim os, qu er dizer, cond ição de p0ss ibilidade o nd e se inscreve nossa cípios e tc., que se aplicam. É porque nosso " prese nte " se abre à pr0blc-
raci o nalidade oc ident al; a trad ição ~esse moào não depende àa c1ocu- máti c a, à qu es tão do sen tid o, que um pa::,sildo é invocado c j á nos ensina,
braç ão, e o trabalho do jurista (l eiamos, igu2.lrncnte, do histo ri ador) o "nós", nos info rma sobre "nós mcsm os".
dem o nstra todos os dias, mas ela perman ec..c um tes temunh o para lima A hermcnêuti ca assim concebidil redesenha um es paço q ue escapa
autclltificaçüo de 11m presente, ela é um tnec2llis mo específico da nossa à evidênc ia de ~~e ves tígio, a modernidade, que a fil osofia alemã quis
civilização cristã para suscitar efeitos de sen tido. Sem dúvida cap taremos iden tifi car - a partir de Kant -, recomp õe os materia is pelos quai s ela
verdade na escrita do passado, é esse, de resto, o postulado de pa!".ida. , res por.de à questão do sent ido, a testil traços que exprimem 'cs tes termos
o objeto de nossa racio nalid ade, mas ncsse m ecanismo de sen tid o, o qu e mais o u m enos precisos, mais DU menos c lilros, de "pré -modcrno", Hc ri s-
está em jogo é a qucstão da " história", que n OS faz penetr ar no mistéri o tã o", " racionalidade", que no entanto j á orientam nosso conceito de his-
do p rese nte mais do que no "saL ido" rio pass :'ldo. tó ri a; ~Ia reesc reve esse " tex to" q ue permite cons tru ir as certezas e ;.lS
1.
provas , reins taura ri tmos hi stó ricos etc. , como efe itos dc se ntido. A hi s-
'1
~ , A raciona lidade, unla experi ê n ci'1., lltTI 111ovimento tó ria é urna espec ul ação que abre para o mi stério do presente ' 4; tentamos
A história é um processo que constrói e o passado, um objc to identifi car, at ravés desses estudos de cpis tcrnolobia e de hermenêutica,
construído. A his tó ria é nossa ex pcriência da racio nalidade na s ua ten- uma forma, a de UI11 passado Uá futuro en tre tanto) suspenso à abcr tura
~ t;}tiva de dizer o ve rdadeiro, ela é UIr. sentido qu e se constrói como um d o senti do. É, ass im, muit o il usório co ncebe r o passado co mo esse obje to
[:li '"'Q p osteriori". No ato de d izer o ve rd adeirQ~ o se ntido é projeção de inerte, se mpre se melh ante, di spo níve l, prese nte passado e passado presen-
~ .

.~; passados, "cfeitos de sentid o", que atestilm es....;;;.a mi steri osa ce rt eza de um te, essa fo rm a uni ve rsal que t:Jdos os ho mens de todos os tempos, de todos
lí! prescate, " nós", " hoje". O scn tidú é, po is, a rcco mposição de passa dos, os séc ul os, de todos os con tinentes e de todas as civi liza,::ões teriam
,.
;'''l .
,
:~ ~
... desvclados, fu g itivos efeitos de sentido cn tret:m to e que são os testemu- sempre reconh ecido da mesina manei ra.
:~f:i nhos de um a e nCJue te c uj os ato res só se recm:.:iccem a posteriori: mov i- Um processo de se ntido nflo se cumpre se não em um esp1ço já aberto,
mento sem " origem" e sem "fim" (o que não s ig nifi ca necessa ri ament e dizíamos, qu e chamil1110s hi sto ric idadc. A fil osofi a do direi to, que é també m
sem objetiv o), cadeia inillte rrupta dc sig nifi c:al1tes. f ilosofia da " Histó ria", sc dedica :1 in terrogaç ão dessa histor icidade.
Es tamos no próprio ümago da reflexão h·ermen êuti ca co ntemporünca Histor ic idadc e hi storicisl11 o nos con\' idam a nos interrogar sobre esse
e. pa ra concluir nossa conversa, podcm os rapic:!.mc nte evocá- Ia a partir de "tcxto" o nde está escrita nossa vcrd::.dc do mundo (semp re ún ica quando
um co nceito esse nc ia l que cncontram os em ?a rtic ular cm Hc idegge r e ela se afirma, scm pre plura l e polêmi cJ tão logo afirmad a). Es te ponto é
G ildame rJ3. Referimo.nos, no início de nosSO t~x t o , tI historic idadc , " abe l· essencial: a qu cs tão da hi sto ricidade supõe um só " texto", qu e nbri ga (l
tur:l da. hi stóri a" , historicidade que terá sido t:'.3d uz ida por esses dois fi ló- ve rdade do mundo, a q uest;io da HistóriJ . O rcliltivisI11 o, para dizer de modo
sO los como "espe ra" , " horizonte dc espc r;l". T=:11 nossa c oncepç;io, a idéia sim ples, fica assim fora de propós iiO. Um~ fi losofia do direito, da " Histó-
de espera é abandonada em proveito da de - c1Q vimcnto", o q ue s ign ifica ria", se inte rrogn assim partic ul ::rmcll! c sobre a diferença (sempre renova·
que n:i o há um passado que FI, semprc j á prese ntc , indiq ue (o se ntido). da) oral idade-esc rita, que ell gaja nossa experiê nc i<1 da racionalidade e oc upa
Que re mos recon hcce r o princíp io do sent ido _-~"m o o que se constrói sem u m espaço si ngu lar, e que vê a noção de c~lusa corres po nder ao d eito de
pOli tode partida e Sefll pOli lo de cheô,u!a (<'DÓS", co mo o prcsent e), por- se nti do, o u leitura, dc uma esc rit:l (he rmenc uti ca) quc (re)cons ti tuímos no
tanto, co mo um F:Jcesso qu c j5 é movimcnt...""'1. E se em nossa conccpçüo c x:w) 1110111"nlo em que "descobri mos" o se nti do (dcsvelíllllento).
QucsWc~ 101

m anei ra esscncial, o qu e sc reconhece, o q ue se reconhecia (vestígios em


História e direito par te também perdidos), corno a h!s tó ri a e o d ire ito.
Essa hisloricidadc é traduz ida por css::..s cons tru ções, história real
do mundo, da qual quise mos reconhecer um mome nto decisivo em um a
co njunç50 ent re juridicismo c teolog ia. Q'_~e o Ocidente c ri stão, pré- Notas
moJc rn o, renove as experiências da raciona lidade, nós iLlduzimos fo rt e- L L'Éc:rilllre c/c "ltistoire, Pa ri s, Gallimard, 1975, p. 9.
mente desses s ignos que são as cstqHuras lCfiJpo rárias, esses segmen tos
de tempo linear, cio lados de se ntido (causalidade). "Historia esl renU1l ::: Não é fáci l falar em tão po ucas págin as do que c o ns titui, j á há va n os ano s,
um aspec to essenc ial de nosso trabalho. A ques tão da hi s tó ri a atravessa,
geSIa rll11l narra/io", dizia Hugucs de Snint-Vic tor; o ve rdade iro se prova
efetivamen tc, mai s ou menos cOllsc i e n t~mente, ma is ou menos expli c itamente ,
por princípios que rcrt1 nstroc m o pa!)sado c se. estrutura co mo um relato, nossas pe s qu isas de fil o:;o fi~ do direito. Remetem os aqu i a nossa s publi c a.
gesta temporum; a história é ass im uma represe ntação, descriplio ções, que pude ram tratar es tas quest ões de m ane ira menos a lu s iva: P. Ne rh o t
temj.':Jrllll1 , mas ela é também c finalmente uma certeza, t emporwlJ (org. ), IlIt crpretalioll OIul realil)'. Essa)'s ill Epistem ology, flermello,..llti e'i allc/
cerliwdo; a cronolog ia to rnou-se urna p reocupação constante, obsedante, Jurisprudell ee, Dordrcc ht-Bo s ton·Londre s . K luwe rs Acadcm ics Pu bl ishe rs ,
de -. lnl te mpo tomado integralmente mensurável, uma medida única (que 1990. cm particula r pág inas 193-226; Legal Kllowledge alld Allalogy. Frag-
melltcs ,)f Lf:gal Epis(cmolog)', flermcl/eulics alUI UI/suislies, Do rdrecht-
1, nos. anu nc ia j á a rac ionalid ade filológica).

.,..
Bos ton -Lo ndres. Klu\Vers Acadcm ics Publi sber:;, 199 1, e m pa n icular p:ígina s
"1
.,' Se o " Oc idente c ri s tão, racional, pré -moderno" é esse "Texto" 183- 1QS. P. Nerhot, /I Dir :'lla, lo scriuo, il sellSO. Sa gg io di Ermelleulicll
particula r, à le itura do qual se exercem a epistemologia e a !lcrmenêutica, Giuridica, Ferrara, Co rso Eêi torf!, :992; uOV õJ ed: ção modificad a, p .íd ua ,
ent20 um a tal es pecificidade se inscreve nessa indisscci ab ilidade entre Cedam, 1994; La"" lVrilillg, Meollill g. An Essay ill Legal Hermell culics.
m ét:odo histórico e método juríd ico . Os conhecime ntos diversos e sempre Edim burgo , Edinburg h Univcrsi ty Prcss, 1992; I.. 'ipoles; perc/llla del/a legge ,
Pádu a, Ccdam, 1994 .
renovad os que par ti ciparam, que J inda participam , do que reconhecemos
corno a hi s tó ria, são insepa ráveis desses conhecimentos que eram. qu e ;; G. Bourdé c H. Mani n. Les Écoles lIistariques. Paris, Lc 3eu il , 1983, p. 82.
s ão . ope rames no método ju rídico. A hi s tó ria n ão se separa em nada des te
m éwdo, tudo o que se recon hece co mo o pensam ento ocidental na ex - Por exempl o, se u c:: lebre 1i'airé :le la dOI/OIiau dc Constal/lill, tradu ç:ío france sa
periência da rac io nalidade traduz exatamen te essa indis tinção entre a por A. Bo nneau, Paris. 1879; texto entretanto incomp leto, sendo a vers:ío in g le sa
supe rior: Tll e Trcatise af LorellZO Valia 0 11 Ih.: DOJlatiall of COflstal//ille, C.B.
hisi:ór ia e o d ireito. A inda um a vez, o fato de o ofício do his torindor tcr
Co leman, Vale Uni versi ty Press·, 1922. J.8 . Giard acab:!. de pub li car uma l1('va
SUi1..S regras, que não coincidem forços:lrncnte com as rebras que um
versão fran cesa desse tr:ll ado com um a inlroduç.ão de ea rl u G in zburg. O melh o r
j uris ta pode utilizar, remete a um problema, à ifercnte, que não tínham os exemplo que podemos ofe rece r dessa c ríti ca textual human ista é a demo ns tra ção
a in tenção de tratar; c a dogmática jurídica se afas tará muitas vezes de qu e Valia fn da impostura que represe nt :l\'a esse document o a partir do termc
n U:-:l erosas regra s que o hi s to riador cO llsiuer:':' : :l como esse nc ia is ao exer- "Augu sto"; podemos também re lllc ter a nosso c 5- ludo, I.m\~ IVritillg, Mea1/il/g, Ali
Essa)' ill Legal /-Ierl//c/lell tics, op. cir., pp. l ú ;.109.
cíc:o hones to de sua profissão (p ense mos ...,:s pecialm e nte no pape l da
ficção em certos ra c iocín ios jurídi cos).
Miche l Fo ucault, Lcs Mais cl Ics c"ases. Pa ris. Gallima rd, 1966.
A cxpe ri ênc i3 da rac ionalidade oc iden:31. e essa se rá a nossa co n-
clt.:5ão, tal co mo lel1 t:.1I11 tr aduzi-la as p cr'::?ec ti va s he rm e nê uti c as e ., Nosso scmin:írio dc ril oso fia do dire ito no Inst ilut.J Univcrs it:írio Europeu, feverc iro
cp:sEC mo lógicas, se apresc nt a C0l110 :;sses sa t-·;.~ rcs, se m prc rcnovados , quc de 1989.
cc ::hccc l1l e rcco nheccm, ins tit uc m e inte rpr<::13111 csscs s ig nos que co ns-
Op. cit .• p. 108.
tir:..:Jc lll UJl1 ''Tex to'' (q uc Ilfio é o li vro), qu\: ;'Ião é jam a is de sde semp rc
c cesdc já dado a ler, Illa s qu e se ins titui CO C1 0 uma escrita cujos modos , Reme te mos :l qui essell c i:1IIllClltc a sua obra \ferr:': ct lIu:tlwde (traduç::i o fr an ccsa),
de :e ill: :-a lh e s:io cons tituti vos e nos qu ais pJ.r ti c ipam , participaram de Pa ris, Le Sc ui:, 1976.
102 P,\SSAOOS RECOMPOSTOS ·
QllCSlÕCS 103
'I Heidegger, Efre cf Icmps, Paris, Gallimard, 1986; Quesliolls,l-IV, G:'I llimard, 1968;
correspolllle ao qlle é lido. Essa aventura so lit:í ri a da lin g uagcm é já um
Qu'esl-ce qu'ullc chosc, Gall im:'lrd, 197 1; Clu:múls qui /lC //Ien elll Illlllc part,
posi tivismo, e muito precisamente pe la razão que in ::liea mos. Para um eSludo
Gallirn:'lrd, 1962. J:'I cques iJ e rrid a, L'Écrifure cl la différellce, Le Se uil, lC)67; De
s is te m:ítico da exegese medieval, re me temos ev~den te m e nle:l H. de Lubac, Exégesc
la gram//latologie, Éd. de Minu it , 1 ~ 72; Mflrges do!' la plzilosophie, Éd. de Minuit,
m cdicval, Les Qua/re Sel/s de L'Écrilllrc, Aubier-M c nta igne, 1961 , 4 vo lumes.
1972; La Dissémillarioll, Le Seu il , 1972. Limitcd ItrJ:, ve rsfio francesa, Éd . Galilée,
Pa ra essa "hermenêutica do ol h:'lr", chamemo- Ia 3ssim, remete mos a nosso último
1987. Se Jacq ues Derrid:'l, com SUl filosofia he rmc nêuiic:l, retomn a es pec ul ação
Ir.tb:llho, L 'ipolesi perduttl del/a Legge, op_ d t_, 1994.
fil osófica de Heidegger, dela e le se separa profundamente por re c haça r s is te ma-
ticamente tod=: "metafísica da presença" , :I pon lo, de resto, de se pode r di zer qu e
15 É/re c/ temps, op. cit.; Ve rd:'lde e método, op_ cito
a "descons tru çiio" começada pe lo fÜ ósofo fr:mcês é uma espéç ie de a nt i-
hermenêutica he ideggeriana.
]..1 Os not;í rios, para dar um exemp lo bem simp les, e m particular os not:í rios
flore ntinos, Illas nii o apenas esses, escreviar:' passados sob a fo rm a de um re l:'l to
111 Tornem os o exempl o utilizado po r Heidegge r em Chémill.f qui /l e mel/Cllt IlUl/C pari.
op. cit.: "A ciência ( ... ) niio é um adve nto in augu ral da ve rdade, mas se mpre a que re tomava em t~dO.:i os po ntos a malleira de se escreverem os contr:ltos.
expl o ração de uma regi:io do verdadeiro j á aben::!, o que se faz conceber!'Jo e
fun dando (no modo da prova) como cxato o que, em s ua esfera, most ra- se co mo
131 de um modo poss ível e necessário" . Sempre par:! confrontar, muito esquematic a -
111elde esse fi;ósof0 com J aeques Derri da, o que e\-identellle nte criaria um proble-
m:l p:ua este último, e m uma reffexiio CO Ill U a qw.. 1J.lze:llOS aqui, é esse a lgo q ue
'!: 5e mostra .. em Sll:'l esfer:'l. J;í h:1 de algum modo signific3do, o que o fil ósofo
:1
., fra ncês não 3ce itaria porque, para e ~ c, ns n·,eca"i5.,Il Os do !'entido não re metem
se não a ullla s6 cadeia de s igni fi can tes. Esse último dir:í, de resto, referin do-se aos
Ir3~alh os do filó so fo alemão: (é) " a de te rm inação do ser em presença ou em étaJ/tité
,~.
'. (f:1I0 de esta r sendo) que é in tegrada pelo pe nsamen to da diferença. T'II que stiio
n50 pode su rgir e se deixar compreende r sem que se abra ... a diferença do ser em
"I
~ relação ao se ndo. Primeira conseqüê nci a: a di ferença nflo ex iste". Jacq ues Dcrrida,
~li Marges de la pllilosopllie, op. ci/_, p. 22_
., :
1·: 1

:'1 1I Mi c hel de Ccrte:lII, 1.:ll·crilJlre dc I'bis/oire, op. cil.; Mi c he l Fouc3u lt ,L'A rclléologie

~i du savoir, Gallimard, 19(,9_

I! O leitor terá compreendido que nosso "sen tido lite ral" é sensivelmente diferent e
do "sentido liter31" da sacra scriptllrll . Este sc nti.:lo literal, q ue é ins tituído por
nossa exegese, é, com efe ito, o " rela to de :Icontecimc nt os verdadeiros"; em outros
ic rm os, ele pretende opor-se a esses outros relat os . t~ \' i dentementc contelllporfineos
,'~I ant e ri ores :'lO tempo d:1 exegese , que mi!'lUr a'. :; ~, indiferentemente o que podi:1
:,e r tomado po r verd:'ldc iro e o que era completa me nte imagi nado. tJcssa Illcdid:1,
esse sentido li te r;\1 concerne ao que eonsideram o s hoje como a "histÓri3". Ele
pe rten c ia portanto no que reconhecem os hoje C(I:110 pertencente ao domínio da
epistelllOlogi:'l, lI:io era j:í ent:io o que ide ntificam o,;' hoje como um "sen tido litera l",
que n:io traduz se ll:io uma s6 hermenêldi c:1. [S S:'l C;'Jest:lo do "selltido litcr31", mai s
um:'! vez como :1 entendemos hoje, só s lIrt;.irá qL!.3 ndo :1 esc rita do mundo for :1
~' 5crila de um li vro : os prim e iros IraU:111105 d\! Fç _ .~:Jul t pode riam se r re tolll:'ldos :l
p_1rtir dess:l ... :wvc , quando o que é visto fo r j:í un;~ <.-'sai/II, o que ê li do, "aventur:1
:;ü lit :í ri :1 da lingu:l gc m", dizia esse fi lósofo , o qu e L!lvcz n:io esteja tot alm e nte exal o
f.-'m SU:I formul:'lç:io . pois a lin g uagem é UIIl texto qt' ,. enunc ia que o que é visto
QUATRC

Pode a Filosofia
Escapar da História?
PASCAl. ENGEL

Há, em filosofia, um certo número ú'e problemas que, embora suas


f ormulações divirjam s~g lll/{lo os autores, as escolas, os estilos de pen-
samento e as épocas, têm uma situação bastante permanente ou durável
para que possamos reconhecê-los, apesar da variedade de farmut';lções
e respostas. Por mais diversas que elas sejam segundo os call/exlOS
históricos, essas respostas apresentam similaridades suficientes para que
possamo." aillaa hoje compr~elldê-las e ~vaIi6-las, e dizer se as cOllsi-
deram os corretas ou mio.

A meu ver, a filosofiu pode se cumprir sem que se faça necessi.l-


~: ri;lmente história da filosofin. Esta declaração, para muitos escandalosa,
'.
me parece profundamente b.mal. Para precisar J~eu ponto de vista, ten-
tar e i, de modo csquemático, defender duas idéias . A prir:lcira é a de que
fazer filosofia não é esscncialmente urna a! ivid ade (Ie historiador, mas
uma atividude de busca da verdade, ainda que se trate de um tip o de
verdade específico, de ordeni sobretud o conceitual e 115.0 empírica ali
demons trativa. A segunda é que um dos meios de se chegar a essc gê nero
de verdade - mas de modo algum o único - é ler os aulnres do passado,
.:!inda que essa leitura não tc;nha um obje tivo principalmente histórico,
mas argumentativo: ela visa aV:lliar as reses desses autores para observar
::::c e las pode m contribuir ainda para nossa compreens50 dos problemas
J:l fil osofia, que s50, em ullla med ida mui to :lmp l'l, inde:)cnden~e s dc suas
i~)rmu l ações específicas <la longo da história dessa discip li na.
A cu ltura filosófica contempor5nea, ao menos na Françu e nn maior
Farte dos países europeus (em particub.r na Aleman ha e na lt ~lia), é quase
[ü talmentc históric;l. O ensino da fil osofia cons iste, em sua mai or panc, em
u m ensino da história da filosofia, e mesmo quando um curso g<lllh<l um
~spcc(Q um pouco "sistem;ítico", o meslrc c seus alunos se scntem UIll
pouco perd idos quand o se navega sc m referênc ia ao que X ou Y (Ial grande
figura da histó ri ü da filosofia) di sse sob re o :l(jsuoto. O curso é melhor
l O6 PASSADOS RECOMPOsrOS Ques lõcs 107

comp reC'nd ido e recebido se ele se cha ma (por exem plo) "o problema do tam bém as c iênc ias, a lite ratura , a crític a Hlie rá ria ou artísti ca, os di scursos
conhecimento em X" ou " a questão 1I1Oral d e X a y". Os programas dos religiosos e a teologia etc. Pode se r o histor iJdor de uma doutrina fi!osó-
exames e dos concursos tes tam princ ipa;mente a aptidã0 dos cand idntos a fi<:a úni ca, s ingu líl ri zada po r um aUlor, impo rtant e ou n50, trate-se de
conhecer os "grandes autores" dessa históri a. A mai or pa rt e dos exercícios Descartes ou de um "pequeno cartesiano'", ou de uma escola como o
propostos são explica',íões de textos, e quandC' eles têm que esc reve r "d is- estoic ismo . Pode pratica r dif'.:!rente.; ti po:s de história. Pode, como os
scrta~ões", fica implícito que sellS raci ocínios deverão se apoiar nesses gra nd es his toriadores alemães do século i\.'lX, rea li ~a r uma históda sis-
grand es a;Jtores, e propor algu ma c ~ i sa como um a perspectiva histó ri ca. Os temá ti ca, visando tratar a ob~a como um (odo articul.ado e org5nico, um
estudantes ass imilaram esse est il o tão totalmente, que se acreditam ainda s istema. Pode ser partid{lrio de um ti po de história es truturalista, como
hoje obr·igados a propor di ssertações Clll três !lart es, cada uma "fazendo :tquela ilustrada brilhant emen te pelJ escola de Guerou lt. Pode se r um
f31ar", como um ver.trí1 oquo, um grand e a utor, e a última ofe recendo em historiador h:" scli ano, para quem cada obra é a enc:lfnação do devir da
geral a última palav ra a alguma grande figura contemporãnea - segundo Idéia. Pode ser he ideggeriano, e pensa r que analisa a história da metafísica
as époc as Nietzsche, Ma rx, Freud, Heidegge r ou HusserJ. Quando CiJ seguia, como " histó ria" do esquecimento do se r. Púde ainda rejeita r toda análise
n a Sorbonne, o cu rso de Fe rdinand Alquié, um desses grandes mestres dn s istem{lt ica, e se consagra r princ ipalm ente à análise de tex tos isolad os.
ins titu iç50, ele dizia, desde a primeira aula, que não se c riti ca um grand e ~uI11a palavra, poderá prat ica r a históri a segundo tal ou tal método, e ser
.,. filosüfu, milS que àevelno:; siínpiesmeP..te ap rendcr a lê-lo. O concu rso de um mais ou menos bom historiado r. M as o que qu e r qu e faça, adm ite·se
,.':!: . agrégatioll testa principalmente a capac idade de dominar i1 história da em ge ral que ele faz t:ma história filosófica da fil osofia.
;,:: .
filosofin. Ásperos confrontos opõr.m os ex..mÍi,adC' res para saber "quem" Portanto, história da filosofia não é s implesml.!nte; um meio de fazer
" i
es tará no programa, e muit Js vezes é a consagração de uma ca rrei ra quando filosofi a, é o mei o certo, o ún ico possível. A lgun:; historiadores dn fil osofia
,
.: ,
o " seu" autor ati nge O estatuto de "autor de agréga l;on". Quando um se pe rguntam se pode haver um a histó ri a ciemífica da filosofia, que não
'I ~~ estudante escolhe um assunto de dissertação ou de tese, ele se propõe o recorra, impl icitamen!e, às opções filosófic2S próprias do historiador. Outros
:··[SI...•1'. exame da obra de X, ou do problema Z "em X". Se e!e entrar mais tard e pensam qu e não é possível. Mas qualquer que seja a resposta a essa pergun-
! ! i1i;
n2 profissão de professor e pesq ui sador, ele escreve r:'\ arti gos e livros sobre ta, n5 0 há salvação fora da históri a. Apenas ela gara nte a se ri edade, apenas
' I,"1
'...'' .
;

;.. :;ii
(.: 1 autor, sobre tal questão em X ou Y. Qu.:mdo esc rever arti gos que não

sejam explicitament e históricos, seu estil o ser.! con tudo implicitamente tal.
I e.la nos ofe rece alguma coisa 1:lI1gível, ~':"I liúvcl e ensinável. Isso n[lo
significa que na França só existam fil ósofos que se co nsagrnm à his tória
~:: ~I;,· E1i11 face de um prllblt..: ma dado, ele não se perguntará: "Que respos ta de su;) disciplina, qu e n50 ex istam auto res origina is que sãc basta nte indife-
I'
pudere i dar a es te problema?" ou "Ta l proposição fil osófica será ve rd adei· rentes à necessidade de inscre~er se u trJb~ho em uma tradição, e capazes
ra?", mas s im: " Que respos ta o gra nde fi lósofo X deu a es te problema?". de esc rever livros relativamente li berados GOS constrangimentos do comen-
EJe praticará muit as vezes o métod o da "io.';;c . rição" : por exempl o, fren te tári o e da análise históri ca. Mas esses auto-:-es são raros, e são, as mais das
u. ques tão da c ausalidade, e le buscará inscre '.·er a con tribu ição de X ou de vezes, ma is "pensadores" do que fi ló!:oofos :lO sen ti do acadêm ico do tenl1 o.
Y no conju nt o das concepções da causJ. lid:; ':.:: cons iderado sob o 5ngul o Quando esc reveram traba lhos histór icos ~'les de dese nvolver "suas pró-
d;;:o um relato histórico l . Pode-se responder que tai s prúticas exegé tic as e prias idé ias", tende-se freqüentemen te a p,ensar que eles se perd eram, ex-
d-c comentário não fazem necessa riamente c<:!.queles que as têm historiado- traviaram um pouco, que teria sido me lhor ~e permanecessem historiadores.
r ~ , preocu pados em descrever a letra das o0 ut rinas e em si tu á-los num a
p·;:-rspect iva históricíl. Nosso e~ tu dan t e dis?'-....c. notoriílmente, de muit as Fora da histó ria: elogio d o "5211 S0 comum crítico "
rr.3neiras de f,lze r história da filosofia. Ele pNe ser um sim ples doxógrafo, Es ta preeminência da hi stóri a com,) gara ntia de se riedad e explica-
r:b tand o as opiniões dos fil ósofos ilustres. Pode ser um histo ri ador das se, se pensa rm os na situ açflo cO lltempo ri..lea da filosofia entre as outras
ic éias, ate nto ~I nun eira como elos uascem, se propagam, morrem e renas- disc iplinas. Fora algumas bri lh antes cxc eçô es, os filósofos, mais ou menos
ce m a tr avés de ' ipos de di scurso qu e nflO incluc m somen te a filosofia, mas .• parti! de Kan l, não silo mais cie nti st~$. Sua formaç50 é, em gera l,
1il
,'11I
lOS PASS/\DOS RECOMPOSTOS Questões 109

~sscnci<1lll1cntc literária, c o sistema d<ls "duas culturas" atingiu, na França, a favor das quais, ou contra as quais , os filósofo~ do passado apresentaram
proporções inquietantes. Um filósofo q:Jc se interessa r pelas ciências razões o u objeções, e a favo r ôas qua is, ou contra as quais, 116s podemos
granjeará sua credibilidade como fil ósof':l, em geral, de s ua familiaridêlde apresentar raLões e objeções. Essas questões merc;cem ser ainda di scu tidas
CO!l1 outra disciplina: ser;] também matemático, biólogo, ou lógico (de e retom adas, porque não estão resolvidas, e ainda nos solicitam. Refiro-
preferênc ia, uma ciência Ud ura") c, caso mais com um, precisame nt e me a questões como as da rela ção entr~ o mental e o físico, da natureza
historiador de s ua disciplina "secundária" (que se lo.-nar:í também, muitü:; e da existência dos universais, da o ri gem e da possibilidade do conhe-
vezes, sua d·isciplina primei ra). Na~a fo~a do normal: r.. filosofia é uma cimento, da natureza da significação, da realidade do~ valores morais, do
disciplina muito vaga em s uas fronteiras, muito pouco segura de seus tempo e da mudança, das entidades m a te ri a is e das entidades matemáticas,
resu ltados c de seus métodos, p'HJ poder se desenvolver sem referência e assim po r diante. A lg um as de~s i.ls questões aprese ntam, sem dúvida, em
a um discurso jUI :~Cldo mais "CiC:ltífico", mais - sé ri o". Precisa de um tutor. ce rt as épocas e em certos contextos, um aspecto mais problemntico que
Quando o filósofo ti ve r formação exclusivamente literáriu, de onde retirará em outros, e ex istem diferenças de acento. Certos problemas assumem
,:1 ga ranti a da se riedade? De se u conheciment0 profund o de um a lín gua, no mes dife rentes segundo as épocas, ou s5.o menos marcai,tes que outros.
o g rego, o lat im , o árabe, ou oet ra , de seu conhec imento filológico, uma Mas, sejam quais ' forem as diferenças, existe um fundo comum,
série de domínios que estarão, novamente, a se rvi ço da hi stória, a única reconhecível, algo que eu não rece aria chamar de philosophia perellllis,
',,!, di sciplina en tre as c iências ",humanas" que parece haver res istido ao se este termo não es ti vesse 110 :::Oll o tado. H ~í também um fundo comum

..T" ce ti cismo que inSpiram ainda a psicologia, a lingüís ti ca ou a sociologia.


Não lamento esse es tado de coisas. E le permite qu e nossos alunos
de respostas: é poss ível, apesar da variedade de formas que tomam essas
teses, caracte rizar de mar.cira tr ~lJ1~- hi~ tór: ca o que é o empirismo, o
.;
es tejam, quando comparados aos que se form:lf~l.in em o utras tradi ções, platonismo, o nomi nalismo, o utilitarismo, o realismo ou o id ea li ~mo em
,.,.: " bem mais in formados quanto às obras do passaUo, e lh es fornece uma diversos domínios. E existe uma maneira comum de proceder: os fil ósofos
iii
!'t ;
cultura muito mais profunda Ele ainda foi o responsável pela produção propõem argumentos em apoio a uma tese ou con tra ela, e a va lid ade
i l!;
~ I;
de tratalhos admiráveis, que fazem hoje da escola francesa em hi stória desses argumentos pode ser avalioda. No ent:mto, a fi losofia não é a
da fiJo~o fia uma das melhurc:-; do mundo. Lamento ap enas que tal estado c iência: ela não pode traz er, em gera l, uma ca nfirma ção empírica de suas
h." de co isas seja exclusivo, que se tenha a impres.são de que não é poss ível leses, l1em pode demo nstrn-las matematicamente. Existem, entretanto,
,' li se fazer fi losofia rigorosa fora das disciplinas h is tó ri cas, e que toda saída c5.nones de raciocíni o: são 'os que a lógica nos ofe rece. Neste sent id o, uS

H· para fora desse territó ri o seja vista como u::n mergulho perigoso nos
abismos da especulação desenfreada, ou n:..!. express~:J idcológica o u
ju s tifi cações das teses fil osóficas não s50 retóricas. Contudo, um
argumento não consiste apenas em regros lógi r::ls que respe itamos para
reli g iosa. Po is existe, parece- me, uma outra m~"1eira de se fazer fi losofia , delas tirarmos conclusões: as premi ss3s podem ser mais ou me nos
sem por isso se tornar um " pensado r"ou um de§cs "fil ósofos e escritores" plau síveis, as conclusões, mais ou men os acreditáveis. Devemos ceítificar-
que assinam as púg inas culturais dos j orn:lis, Tol man e ira repousa sob re nos de que as premissas não são recu so.das pelo advers:írio, sem o que
as seg uint es idéias (banais). H;í, e m filos~ :-i a, UIll ce rlo númer o de faremos uma petição de princíp io, m os essas prcmi~sas devem também
problemas qu e, embora s ua s formulações di virj.Jm segundo os aut o res, as se r admissívei s. Por quais cri té ri os? Só vejo três: o senso comum, a
escolas, os estilos de pens amento c as épocas. !ê lll uma s ituaçflo bastante ciência, e algo mais difuso, que podemos denominar a possibi lidade
permanent e ou durável polra que POSS:lP1 0 S reco nh ecê- los, apesar da conceptual. Como Peirce, eu creio que a fil osofia e a c iênc ia se fundam
varied<lde das formulações e da s respost~ls, Po ; mai s dive rsas que sejam, num "senso comum crítico", Isso n5 0 f:.1z da filosofia e da ciência dis-
segundo os context os hi stó ri cos, essas respos[~ ~Ipresenlalll s imilaridades c iplin as idênti cas: quand o muit o, podc·se esperar certa' con tinui dade entre
sulicie nt es para que p OSS:I111 0S ~lil1 d:.J hoje co ::-.?reenclê-Ias e avali:í- Ias, e as dua s. A investi gação fil osófica produz, na mai ori a das vezes, teses
diz e r se as cons iderl.lmos co rretu s o u nflo. É ?oss íve l ex trl.lí-Ias de se u conce ituais ou (l priori, dett.:rminando o que nós pe nsamos em ge ra l e o

I contexto, c discu ti -Ias, considerando·as como [~$CS. (eorias , ou co njec turas que é pú:.sível pensar. Este se nso do p,::,ssível (c do imposs ível) co nceitual ,
11 0 PASSf\DOS RECOMPOSTOS
Q ues cóes 111

do pensável, é o que di!> tin gue a filosofia uas c iênci as, e a aproxima da reinven tando O estilo c a prática dos fil ósofos medievais, tão dep reciados
lógica, e, 5s vezes, também da ficção científica. As experiências de desde a Renascença? E sobretudo, ela nãc confundirú, sob a aparência de
,I"" pensrtmento são, muitas vezes, o me lhor ~ll e i o de explor"r as púss ibilidadc.::s uma investigação "intemporal" relativa à verdade de leses e de análises
I conceilUais. Mas isso não subtrai a fil uso fi a à c rít ica, permitindo-lhe julgadas pertinentes por uma escola de pensamento, sua figura histórica
inventar qua!quer possibili dade: só a argumentação se r'le de garantia particular com aphilosophia perell!!is? É inegável que os problemas técnicos
in~ e rs ubjetiva da correção das idé ias . mencionados acima adquiriram sua forma numa tradição, que seu ~aráter
Acabo de descrever em gra ndes linhas as idéias de base de uma certa "urgente" ou "digno de interesse" es tá muito ligado aos interesses temporais
concepção raciona lis ta da filosofia. O·s prin cipais defenso res desta concep- de um a comunidade de pesq uisadores num momento determinado. Mas isso
ção: no universo intelectual dc hoje, p a ~ccem-m e se r os filósofos "analí- não implica que essas ques tões, por mais antiquadas qu e possam parece r,
ticos". Eles acred itam qu e existe algo como ter ou não ter razão em filo- estejam ser; rel ação co m 3:i questões mais perenes. Tomemos, por exemplo,
sofia, que se podem enuncia'! teses e submetê-las à crítica, que quant o mais o problema dos enunciados condicionais contrJfactuais, do tipo se p fosse
se é claro e argum en tativo no es tilo, tanto mlli s se terá oportunidarie de ser ú caso, em iío q seria o caso. Os fil ósofos analíticos se perguntam qual é

criticado e, por co nsegu inte, de ir para a fre nte. A tradi ção contemporfll1eJ, a semântica desses enunciados, isto é, em que condições são verdadeiros
que remonta a Frege c a Russell, me parece um a das melho res enca rnações ou falsos. Isso parece se r um a questão de pura lingüística. Mas implica
Ó (:S-:~(, cstiio. 0 3 f!1 ó~') fC''i dcs",a tr.:.:dição trabalham, em ge ral , mais na escala tam bém problemas muito trad icionais: o da natureza do possível, por
" 'j
'1'
L .,,! do arti go que na do livro: pretendem prod uzi r contribu ições curt as sob re oposição ao real, e o dn natureza de todas as noções que a isso se liga m:
j,;: as de po tcncialidade e de ato, de disposição, de modalidade, mas também
assu ntos específicos qu e, em ge ral, receben! rC~7ostas, e o deba te pode se
l .,
,. , I
desenvolve r. Um arti go é tanto mais importante quanto maior o nl1I11ero de a do papel dos condicionais em nossa compreensão das ações e das
C!so ussões qt.:c suscitou. O fil ósofo ana lítico 115 0 se considera um gênio, decisões, ou ainda da avaliação da probabilidade de um acontecimen to.
nem sente a necessidade de se-lo. Não procura produzir um s istema, nem Qucm diria que essas questões nã o são '"'gran.des ques tõ..!s~' fi losófica5?
ser um "autor". O que elc visa é sobretudo ao reconhecimento de um a }.Josso prever a respos ta de um fil ósofo fo rm ado na tradição historicista
contribuição a um trabalho colctiv0 2 . descri ta acima. Ele adm itirá que essas questões siío bem tradicionais, mas
co ntes tarú que ainda possam se r propostas hoje, justamente porque, em
Ques[ões " j á reso ivià:lS"? s ua opini ão, essas qu es tões· não podem ma is ter, no cont exto presente, o
Quais são <lS f) uc!:tões sobre <lS qu ais esses fil ósofos d iscute m? Se selllido qu e possuíam na fil osofia antig<l ou clássica.
abrimlOs uma revista de fi losofia an ~liíti c a , lerc mos art igos so bre (por Nisso res ide talvez a div ergê nc ia ma is prvfunda entre o fil ósofo
exemplo) os co ndicion:lis contrafllctu ais, os p;!.Tadoxos sori tes, a teoria continental típico e o fil ósofo analítico típico. O primeiro sus tenta a tese
funcionalis ta dos estados mentai s, a teoria disposicional do va lor, os cérebros mctafi losófica seguinl e: os problemas fi fosóficos "tradicionais" coloca-
cm tinas, a teoria combinatórill das possibili d'-l"':cs, os relatos de atitu des vam-se apenas no contexto histórico no qu al ainda tinh am um sen tid o,
p ro ;,~)s i c i o nai s, ali o predicado "" reu" de Gooc::1an, temas estes q uc n5u isto é, no qua l a fi losofia era concebid:l como uma busca úa ve rdad e,
dir50 nada ao leigo, e que farão com que ele :s' pergunte cama pode; se segundo uma perspecti va qu e um kanti ano desc reve ri a como "dogmática"
tr<:(<l.r, neles, dos "grand es problemas" de que f:.Jl ej ac ima. Não devcmos nos e não críti ca; mas nós não podemos mais . depois de Kan t (Hegel, Ma rx,
il udi r: a filosofia é hoje um a discipli nll muito [":-enioa, e a maneira como Nietzsche, Hcidegge r), colol:ar os proble:nas assim . É por isso que, aos
os iilóso[os an alíticos disc ut em .:S "grand es" qU I;."'::' tões parece muitas vezes olhos dos fi lósofos pós (pós- kantian os, pós- hegcli anos elc.), a nt ilUde
sepul tá-Ias sob disc ussões de deta lhe, que se .:1figurarão aos olhos dos analítica é essencialmente ingênua, de uma ingenu idade que igno ra
l e i : ~' :-cs ex teri ores co mo p e rreit~lIl1 e llte esco/Úsn : .l.\·. J\ p:lIavra csl:í dila: a precisa ment e a inscrição históri ca dos ~ roble n1<ls c sua cad ucidade. O
rr <::.ii~ 5 o ana lítica cont emporflllen, cr"n sua pr etC:1~~I O de tratar de qucstões fil ósofo analítico reivindica, ao con trário. esta ingenu idade. Ele sus ten ta
con::,i deradas independentc mente de se us iJ llteccJ n tes his tóri cos, n;lo estará ates:: metafi losófica inve rsn: por mais in teressantes e co nvincentes qu e
11 2 P"SSAOOS RECOMPOsrOS Questões 11 3

r .JSS :lI11se r as posições "críti cas" em fi losofia propos tas desde Kant , e po r
mais historic amente determinadas que sejam as questões sob re as quai s A histó ri~ como jurisprudê ncia
os filósofos di sc utem, essas posições crít icas não foram estabe lecidas , e Se adctarmos a at ituje qUt; desc re"'i, a hi.:itória da filosofia não é
n50 mostram de modo alg um que problemas como o dos universais, da o tribunal de segunda instância, ou mesmo o supremo tribunal de justiça

j realid ade do mundo exterio r etc., cessam de se prop c. r ou, por se proporem
"dogmaticiJmení.e", são insolúveis. Ele também n~o adll1ite que e ss a~
dos problemas filosóficos; nem o tribur.al de primeira instânc ia (ou, pelo
men os, o líllico tribun al de primeira ins tância). Pode mos levantar questões
ques tões cessem de se propor porque !: ri am sido res:>lv idas. Mi c hel fil o.:ióficas, e tentar responder, sem nos re ferirm os nec,essa riamente aos
Serres diz que os filósofos analíticos só propõe m ques tões "j á resolvidas", grandes filósofos do passado. Esta atitude tem sido muitas vezes il ustrada
pois. ele reconhece, em certas problemáticas contemporâneas analít icas, pelos filósofos ana líticos. Alguhs de le <;y com.o A. J. Ayer oU W.V.O.
questões que sua tc ultura hi s t ó ri ~a o leva a julgar da tada s, disc utida s ad Qu ine, excluíram essa disciplina dos dep::utamentos em que ensinavam.
IlQuseam nos sécul os passados. Mas, mesmo que a falta de cultura histó ri ca Em conseqüência, se us alu nos c seus discípu los discutir am de preferência
t;'OS$::I dar aos es tudantes form ados na tradição analítica a fa lsa impressão as teses de Aye r e de Quine, ou de seus con temporftneos i.ne~iatos! Não
de lidar com um problema novo, em nome dc que se pode dizer que esses creio qu e, com isso, a filosofia tenh:\ necessar iamente pe rdido, salvo,
pro b lemas foram "resolv idos"? Em que, por exemplo, o problema do evidentemente, quando essa atitude era im itada por filósofos de meno r
sentido dos nomes p róprios, o da natureza aas cssências, ou o da induçüo, envergadura. Mas, fi.l :lllIlente, em qt1e esta s: tuJç50 difere da maneira como
rI,,,";I'
.; ,
~ rcspeito dos quai s os fil ósofos analíticos ainda discut em aspe ramentl.!, as escolas fil osóficas se constituíam no passado? Contudo, essa at itude
for:.:m resulvidos 3? Não é porque hossa cu ltura his tórica nos faz reco- volunt ariamente anistó ri ca é urna ficçãu: ú:;, fi16sofos di scutem quase sem~ re
nhecer que um problema já foi tratado por filós ofos do passado, sob uma as teses dos outros fil ósofos, quer sejam <Kl não afastados no tempo, e os
forma mais ou menos semelhante, ou ma is ou menos diferente, qu e te mOS filósofos ana líticos não fogen~ a esta regra: m uitas vezes, encontramos neles
o direito de dizer que esse problema já rece\:'eu um a solução, ':lU q~ e a referências ao que disseram os autores do passaqo, no próprio contexto de
abundâ:1cia das di scussões passadas que não alca nça ram res ult ad os suas discussões acerca de questões "contemporâneas". Não se trata de nega r
t ~1I1g íve! s p ro va que é inúiil cont inuar di sc uti~d o so bre e le. De fa to, a história. Isso equ iva le a reconhe cer a val ida rle do ponto de vista histori-
S erres ado ta lima atitud e positivi sta: e le pensa que m: probl emas fil o - cista, que eu estou critiLando aq ui ? N5.0 pois tud o depende da maneira
7

sóficos que n50 fo ra m reso lv id os pela c iência só podem se r prob lemas como se faz essa dis cussão. Para rel omar ;;!:. metáfora jurídica, direi que as
met:2físicos vãos, que nã o é necessá rio eX::lm in::u de novo. E os his toria- teses dos outros fil ósofos e as do possado deveriam ser, para um autor
dores que pe nsa m que não vale a pc na re tomar este ali ~q uele probl e ma contemporâneo, a jurisprudênc ia em fi Iosofb 4. Dr;vemos nos referir a elas,
tradiciona l jus tamente porque j á fo i di sc uti do. adotam implic itamente, mas essas teses lIão estão, por assim dizer~ fechadas sob a relação "X j.í
ou ~ idéia de quc esse problema já rece be u um a solução satis[.l lória cm disse qu e jJ ... , e é inúlil voltar a isso" (o que se pode chamar de [ecJu:mcmo
cc rI O au tor, o u então a idé ia cle que e ~s a s queSt0es n50 tê m so lução. Não histórico). A juri sp ru dência evolui, rt medida qu e se apresen tam novos
digl" que essas poss ibili dades dev;lI11 se r c xcJ uÍ":J.s . Mas nü o vejo e m que casos (que, muito freqüentemente, vêm d:l ciê nc ia, m a ~ também das outras
isso foi mos trad o. De fat o, cu tam bé m suspt:' ito que, e m fil osofia, a formas de saber e prática). Pode-se modific.á-Ia, e cada fi lósofo se r;sforça
mai ü ria das respostas aos problemas tradi c ion3is é con heci da. Sabe-se, po r co ntribuir pa ra a jurisprudênc ia. M:lS ::-Ia não est[, fechada .
por e xempl o, qua l é a resp os ta "rc- alista " ao p rob le ma dos univers ai s, Esta concepção jur isprudencial é, mu itas vezes, criticada. Ela tende
QU:.1! é n res pos tn " nominalis ta". Mas is to nã\.") s ign ifica que a qu cs tüo :1 levar os fi lósofos ana lít icos a fazerem co mo se tal tese, suponhamos de

tcn r.:l sido resolv ida, nem que nfl o S0 púss<! fazer prog ressos em SU,t A ri stó te les, pudesse ainda ser avaliadJ . e=l term os co nt emporâneos, um
cor:·. ;)fee ns;to. O p rog re sso em fil osofi a se ~~c n de muit o ra ramen te ~ pouco co mO se Ari stóte les ti vesse pU Di~ ::Ido re centemen te um a rti go
natl!rez a das posições e das teses defendidas . Prende-se fi natureza dos numa r ev i s~a, e pudesse se J ispo r a nos : cspo nder em nossos próprios
mér \."\dos, da s est rat égias de argumenta ção. le rm os. Co mo dizia maldosa ment e o hi.::-lo riador da fil osofia Miehae l
11 4 PASSADOS RECOMPOSTOS
QilCS [ÕCS 11 5

Ayc rs, ~ respeito do filósofo ana líti co Jonathan Bennett, qu e se torn ou fo~ma de an ac ronismo, mas UI11 ve rd ade iro erro sobre a própria natureza
famoso nesse tipo de lei tura, principnimente a propósito de Locke, Berke- do pe nsament o de Occam. De um lado, poro...ju e, para ele, esse pensamen to
ley. Hume c Espinosa, isso equ iva le a fnze r co rn o se compreender esses é ins<: parável de s ua teologia, c de outro, porque o próprio "mundo" de
.'lUtores não fosse mais difícil, ou mnis fác il , que compreender o próprio qu e falava Occam não pode, segund o ele, se r o mesmo de que fala o
Oennett s. É inegável que isso ieva a distorçées. C riti ca-se, por exempl o, fi lósofo de hoje: "Nós argurnentan.os longamente, em ou tro luga r, contra
ce rto intérp rete de Ar istóteles, que procura utíl izar as categori as da lógica :a idéia de uma con tinuid ade fenomenológ:ca do mundo, e co ntra o
contempú rânea para compreender a l~gica e a metafísica deste último, ou p reconceito a favor da rea lidade que leva, em nossa op inião, indevida -
que confro nt a as teses de Aris tóteles a respeito da alma com teses contem- mente, r: crer que os An tigos viam o mund o como nós o vemos. Nosso
porâneas, como o funcionalismo e a {euria materialis ta d a identidade do re lat ivismo histó ri co se prende ao fato de que toda tese é, para nós,
esp írito e do corpo (,. É ev idente que os intérpretes podem cometer erros, relativ a ao .~ lUnd o que a viu nascer e a recl ama, ao mes mo tempo, para
c que tal ou tal reco nstru ção de uma doutrina do passado em term os ser 11I1l1ulo. O relativismo bem compreend ido é um holi smo, c, por esta
contemporâneos pode se r jul gada inco rreta, porque não se apli::a li letra razão, é também descontinuista". (De Libe ra, ibid., p. 161.)
de um aut or, ou deforma seu verdadeiro peIL'3 mento - caso possa se r Tem-se a imp ressão de se estar lendo um texto de Kuhn sobre os
mostrado que essas reco nst ru ções são infi é is. Eu diri a que depende dos pa radigmas, ou de f-oucault sob re a descontin uidade das epistemai. Com
casos, dos lipas de recon:;tJüção. Mas temos também, freqüentemente, a =feito, a pos ição defendida aqui é claramente um relat ivismo. No entanto,
impressão de que é a p' ópria idé ia de uma recons trução, ou de uma embo ra, notoriamente, o historiadoc possa se r levado para o relat ivismo
reinlerpretação, de uma doutr:na do jJas~aGo C"':l termos co ntemporâneos, c para o descontinu ismo, não é de modo alg um evidente que es ta posição
o u mesmo s implesmente de uma confron taç5o entre as doutrinas do sej a filosoficamente j us ti ficada. Ela repou sa na idéia de que exis tem,
passado e os pontos de v ista prese ntes, que é ilegítima, um pouco como segundo épocas ou segmentos va riados, "esquemas coneeptua is" ou de
se não se pudesse compreeender O universo de pensamento de um filósofo pensamento, illlraduz{veis no idiom a de "'outro" esq uema, e que, por
senão do interior, e como se a única base de med ida ela verdade das teses conseguin te, não há refere nte único dos d iscursos em questão: De Li be ra
de um fil ósofo fosse o próprio autor, e o contexto do saber que lhe cra pa rece ignorar que esta idéia foi criti cada vi gorosame nt e por num crosos
eo ntempo ri'lneo. fil ósofos contemporâncos~. Nf\o procurare: :!q U! repel ir esses "argu mentos.
Bastar á um a ilustração intuit·iva. Quando Aris tóteles fala da lua, des ign a
Contra O relativismo
por acaso um astro diferente daquele de que nós falarolos hoje? Indis-
Encontra-se um exemplo ba s t ~ nt e paradi gmático dessa atituJe na c uti velmen te, ele tem uma v isão do mundo "sublunar" inteiram ente
rece nte reação do histori ad or da fi losofia m edieval A lnin de Libera a um diferente da quc nós temos hoje, e mesmo aque les de nossos contem-
livro do his tori ador "analítico" da fi losofia C laud c Panaccio sobr~ pori'lncos que ignowl11 t!ldo da astronom ia têm dele li ma visão totalmen te
Guillau me d'Occam 7. Panaccio propõe um :! leit:Ha de Occa m que perm ite d istint<1 da que ti nham os Antigos. Mas sed que disso resulta que estes nilo
confront ar seus pontos de v ista com os probl~mas da filosofia ana l ít i ~a cswvam falmulo da mcsma coisa? Ex iste, ê verdade, um sentido, ao qu ~lI ,
de hoj e, em particular no qu e diz respeito à qucst50 do nominalismo, à ~rovavell11ente, de Libera faz alusão, em que JS propriedades que at ribuímos
da referência dos s ignos, ou à da linguagem me nta l. Desde o in ício, ele :3 um objeto fazem deste um objeto di rereme, se lhe atribu irm os oul ras
admi te se parar essas questões d<Js posições de O.=cam em teologia, e pode r ?ropri edades co ntraditórias com as primeiras. Por exc mplo, é possível
aV~l li ar ~I que l as independ entement e dest3s. P:n a ele, o importa nt e em :lcredita r, neste sentid o, qu e o doutor Jekyll c Me. Hyde süo dois indivíd uos
filosofin é .1 formubçilo e <J <lvaliaçüo de t es~:s. e é porque os fi lósofos dis tint os. ou que a estrela da tarde nüo é a estrela da manhã. Mas este não
do passado formu laram tais teses, que a h is t....' ~ia é possível e tem uma e o caso em relaç53 ~ lua de que falavam os .-\ntigos. Eles não a confundi<J1l1
sign ificaçflo filosófica, j{1 que se r,)de " tr3duzi·l:Js num idioma fi losófico com outro planet<J. Talvez disscssem coisas disti nt:ls de nós (e fa lsas), mas
de hoje". De !...ibera vê, nessa maneira de pc..")ceder, não so ment e uma :1~I O se cnganavnm quanto ao referente. N,'sIe sent ido, é falso dizer qu e o

II
I 16 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 117

mundo de Aristóteles era totalmente dife rente do nosso, e que nós nflo heidegge rian o cntende por Daseill, po rque não vivo no mesmo " universo"
estamos falando da mesma coisa. de pensamento. Ora, por mai~ difícil que possa ser para mim, crci o poder
Devem existir muitos objetos e çropriedades para os quais se dá compreender o que ele entende com isso, e criti cá-lo. Desconfio que os
a Itlesma coisa, e isso basta para garantir uma compreensão num grande que sustentam o contrário acreditam que a discussão racio nal é impossível,
número de casos, já que podemos tr aduz ir o grego. De Libera responderi a e que só é possível a exegese históri ca do qu e foi pensad o. ,

'' provavelmente que, se isso é talvez verdade para ohjetos mundan o.:> Nada disto implica que nflo haja incompreensões, causadas muitas

I "
'li
habituais, é muito menos ce rt o par.a os ubjeros teóricos, ou pelo menos
não empíricos', de que se trata em filosofia: a alma, o corpo, ou os
universais. Mas, mesmo quc Aristóteles ti vesse uma concepção da alma
vezes pela ignorância da história do pensament o. Se não poôemos fazer
filosofia totalmente li vres da gravidade, des li gados de qualquer conheci-
mento históri co, é igualmente r:rrado n0S privarmos do que disseram os
totalmente diferrnte da nossa, \.lU da de Descartes, deve-se dedu zir qu e autores do passado, pois isso ainda pode nos scrvir e ser fonte permanente
ele não es tava falando da mesma coisa? Quando os gregos diziam que dc inspiração. Existe contudo um bom uso da história em filosofia, que
.) med o está nos joelhos, des igna vam por acaso uma emoção tão cons is te em supor qu e os filósofos do passado procuraram visnr a verdade
prClfundamente distinta? Afinal de contas, eram humanos, e não primatas, e dar razóes do que eles afirmam, que o que nós fazemos não é muito
n5.o tão diferentes, genética e biologicamente, de nós. Se um marciano diferente, e que é isso qu e nos permite nos comu nicarmos com eles, para
ou um leão pudessem nos falm, !Jode se r, como dizia Witlgcnste in, que além da his lória lfl .
J1 ÓS não pudéssemos compreendê-los. Mas existe uma continuidade

cognitiva, natural, suficiente para que possamos compara:-, compreender,


Notas
c discutir as opinióes dos humanos do passado. Sem o qu e, duvido que
I Dev o essa observação a J. Proust, em sua introdução <lO número de Philosopliie,
a própria histó ria fosse possível, se levássemos o rel at ivismo até a
35, 1992 , sobre Phil oso phie continentale et phil osoph ie analytique.
"descontinuidade fenomenal" de que fala de Libera. Quanto ao " holismo"
qu e ele invoca, parece-me ou trivi al ou absurdo. Se o ho lismo s ignifica 2 Uma boa il ust ra ção das diferen ç as entre este estilo e o das práticas "con tinentai s"
que existem laços de interd epe nd ência recíproca entre as teses de um correntes é o número de pessoa s a quem, e!~l geral, o autor de um artigo
filósofo em diversos domínios, e entre sua ohra e a do: seus contempo- agr:ld ecc. Um a an c dot:l o relclll bm. Há alguns an os , ~l1la polêmica opôs o
fil ósofo :lnlericano J. Scarle e J. Derrid.J. SC<lrlc criticava, de modo dctivC' e
r5.neos, quem o nega ria? Mas se o holismo sign ifica que a "rea lidade" de
breve, algumas proposições fantasistas que De rrida fazi a <l respe ito da teoria dos
que fala um fi lósofo é sempre interna ao " mundo" que ele f!labora e ao <lt os de lin g ua ge m de Austin. Derrid::l responde u num lo ngo texto empo lado, e,
que elaboram seus con temporfmeos, não vejo COmO dis;inguir a filosofia so bretudo, tend o nDla do que Searle, no fim de S(;oJ artigo, agrndccia a algun s
da lite ratu ra, que, ela também, constrói "mundos" coerentes . c o leg<ls e ;lmi gos por suns observações. fez como se estivesse respo ndendo, nflo
É possível compreender as teses de Occam sobre a semân ti ca a um ind ivíduo, e sim a uma soc iedade anôni ma; daí o título de sua r~ spos la,
Limi/ed Jllk Uogo de palavras!) (cf. J. Dc rrid:'l, Limi/cd Jllk , Pari s, G:l lil éc , 1990 ,
independcntcmente de sua teologia, OLl a::- de Desc:lftes sobre a metafísi ca
e J. Searle, Pour réirérer les diffàcli.:e s, lr:1d , fr. J, Prollst, Cornbas, L'Écl:lt,
inJcpcndent el11ente de sua física? Prova,'c ll11 t:nte nflo, se nós nos intercs-
19(0), No fundo , Derrida es t:l\'<l surp reso co m o fa tú de se poder escrever em
" I sannos unicamente por Occam, por Descartes. O qu e eu reivindico é O comum com v;ir ia s pessoa s, elaborar os texl OS num tr:lb<llho nl:lis Oll menos
dire ito de separar certas teses de outras para :J.valiá-las. Ora, é evidente co letivo. Sua rea ção era bem típi ca d::!. a titu de dos fil óso fos contin e nt;lis, para
que as teorias de Occam .sobre a : :. cl11f1l1ti (:;J. : : !. inda podcm scr discutidas os quais se escreve so zinh o (como fo i na lado frcqüclll e ment e, foram os fil óso ros
pe los contemporân eos. Se nfiO F~ldesscm sê-IC'. as cr íticas que os contcm- que Ilwi s in s is ti ram na ",norte do aUI 0 r" . que fin:l llllente se encon trar;ll11 mai s
dep re ss a na condição de "aut ores" ).
PQr3neos diri g iram il teor ia das suposições . por exemp lo, nüo teriam
ncnhu m se ntido <J. Pior ainda, a di scUS5~1 0 r3c iona! d el/lro do próprio 3 L' m de me us colega!; me fez observar, um d ia , qu e a teo ria segundo <l qual o se ntido
cOlllexlo cOll temporâneo também nft o teri a nc nhum se ntid o. Pois isso dos nomes pró pri os é dado por uma dcscr iç:io dcrin ida "j:í" se Cllco ntr;lv:J em
s i gJ~ ;ficari::! que cu não posso, po r exemplo. compreenu er o que um Anlísle .. e. Em s i, a observaç:io é inler c S ~ :ln!c . Mas o que é que ela pro";l? Qu e

J I
118 PASSADOS RECOMPOSTOS QIlCSCÕCS 119

Russ.:: 1l teve predecessores? Quem o nega ria '! Que, porqul.! lIihilllOV; sltb sole, não 11. 189, Universidade do Québec em t-,'Iont real, 1994), que aborda os mesmos tema s,
vale a pena discutir disso? Lcibniz rc:a ta que 11\0str:H:Ull a Casaubon a Sorbolllle e defende, muito fluis claramente do que eu faço aqui, idéias simila res, através de um:!

I,
I.
dizendo- lhe: "AqUI se tem discutirlo dura'lle seC'u los", c que ele re:ponde u:"C qu e
foi que eoncluímm?". O fatu de que as di scuss6cs em fil osofi:1 não chegam a uma
rcspost:1 a de Li bera. Só posso, pois, recomendJ r a leitura de seu ensaio.

conclusão s ignifica, por acaso, que elas nunca chegarão a uma conclusão? Esl.í
errado. O acordo e o progresso podem se r obtiLklS em ce rtos pontos. Por exe mpl o,
ho.ie con hecemos as implicaçóes da teoria do sentido dos nomes próprios como
descri .;ões muito melhor que há vinte s6::uI05.

~ Tiro esta terminologia de I. Ishiguro, "La phil~'s o phi" analytique et I'hi stoire de
la philosophi ~ ", Critiqlle, 198 1, núm e ro espú'ial sobre Les plrilosvphes allglo-
saxoll.s par e/lx-mêmcs.

S M. Ayers, "Ana lyti ca l philosophy and the his tory af pllilosophy", in J. r.ée, M. Ayers
c A. \Vestoby (ed.), Philosoplly mui its Past, I3ri~hlOn, Ib.rvesler Press, 1978, p. 54.

"A orillleira c,írica foi dirigida a 1. V~ri][emin a propósito de seu livro De la logiqllc
â la fh c:ologie, Pari 'i, P'lammarion, 196'1. ror ur.. :l revir:lvolta bastante irônica da s
coisas, foi o próprio J . V:.:illerni n que me c riticou 110 segundo ponto, qu:mdo e u
aprovava D. Cha rle s po r ler' cop. 'iid<.:radc Arisl0lcJc!' como 11m " materialista não
reduc ioni s ta" (cf. D. Charles, Aristo/e s Philosophy of Actioll, Londres, Duckworth,
i 9S5, c min ha resenha des te li vro, "A ri s tote el la philosop hie de I'ac tion", L'Âgc
de la sciellcc, 111, 1990).

7 C. Panaccio, Lcs Mots, les COllcepts ct les C"oses. La SC:1II0IltiqUf! de Gftiflallllle


d 'Occam ct le lIominalisme d'aujollrd'lwi, Montrca! e Paris, Bcllnrmin e Vri n,
1991. A. de Lib.:ra, "Rctour d.: la philosop hic médiév:lle? ", Le Débat, n. 72, 1992,
pp. 155- 169. Não é por aC:lSO que lomo o exemplo de um fil ósofo "escolástico":
como vimos acima, existe~l sim ilarida des induvid:íveis (menos a teologia,
jusIJ lllente) en tre o estilo das discussões cscolástic:ls c o da filosofia ana líti ca
conlelllpor5nca, e, na minha opini:io, essas similaridades s50 positivas. É por isso
qUI! estou ainda ma is espantado porqu e um hi storiador que quer, como t.lc Libera,

fazer " retorno" à Idade Média, insiste tanto, ao contr.í ri o, na descontinuidade em


rc!:!ç;io il fil osofia contelllpor;inea, quando é jlL~l:lfllCnle essa cont inuidade que me
in:;-rcssion a.

,It Em particular D. Davidson, "On th e very idea o f J concep tual sc heme", in /lI q//iries
irtf<) 1;"tt" tIIlll IlIterpretatioll, Oxford, 1984. Irad . fr. P. Engel, Ellqw!tcs slfr (a
"(}ri ré ef l'illterpréfatioll, Nimes, J. Chambon. \ 993 .

., Po r exem pl o, P. T GC:lch, Ue!crellce (IIul Cel/a.:lit)' , C\'fllell Unive rs ily Press, 1962
I.: ; 'J 6~.

lU QUJlltto cu estava acabando a redaç50 deste arti go, t"lllci con hecimento do de C.
Pan accio, " I~c la reconstructi on en histnire de la ; '~ lilosophie" (Cahiersd'ép islémologic,

I
', O~

['
li! C INCO

" Os Efeitos Retroativos


" da Edição Sobre a Pesquisa
li C I.AUDE LANGLOIS

Não existe pesquisa histórica sem livro que lhe publique os resul-
tados. Que estratégias um' historiador ansioso por publicar deseflvolve
, I
para atingir um público mais amplo qlie seus pares, n/lUZ mercado editaria.'
.I complexo e diversificado? Às custas da pesql/fsa histórica?

•, f: Aus OI:lOS de nossos colega .. do sclc.r científico, nós ou tros, his-


~!,. ,~ toriado res, so mos lidos por originais , pois, para divul ga rmos nossas
.,l
."
pesq uisas, não ':"ecorrcmos c!J r i ~<Horiamente às revistas COr:1 com: tê in-
tern acio nal de leit ura, necessariamente es critas em inglês, mas temos a
~i l~
~ " presunção de publicar liv ros em francês~ c até mesmo de sustentar que

~
~, I;
aí se encontra o eS<iencial do trabalho científico que produzimos. Nós
fa ze rp os qu es tão do li vro, portanto da edição, pela própria natureza de

~
nossa disc iplina, qu e ex ige, vale lembra r, qu e a demonstraçã0 passe
prioritariamente pela narr ação.
~~ Acrescent e mos a essa especialidade di sciplinar um a p ~:- ticulari­
~!l'
~ r dade bell1 naci o nal , que tamb ém nos torn a susp eitos: na rrança, a
histó ri a inte ressa um g rand e público, cl:J se vende bem, é eomprad~l em
revis tas, em li vros de bo lso, em coleções de lu xo. Sem dú v ida, os
editores se queix;;llll reg ul a rm e nte d a conjuntura adversa l , da concor-
rência infe rnal da fo tocó pia, do gos to escasso dos jovens pela leitura
I· e tc. Apesar d isso, o fato é qu e o fr ;).nc~s gos ta dos liv~os de hi stória,
i qu e os p ro fesso res universitár ios sabem di sso, e 'lu ,: acabou de vez o
tem po da sep<Hação dos gêneros: aos historiadores convencionais ou
"a li mentures", as g ra ndes tir:J ge ns, aos his to riadores uni vers it ár ios, a
ma g r:l hi stó ria ..: ientífica 2 ,
Depois de lembr.lr essas cv idénc i:1s, explicitemos a qu estão que
nos é propos ta: esta eo njulltura cdit ur i:ll estrut uralmente favor:ívcl ;1
,
I

I,i hi!;tória tem sobre a pesqu isa efeit os indu zidos? Efei tos re',roativos?
S feitos pe rversos? Ou Ilen hu l11 efeito? Dcixando·sc duro que o interesse

II
122 PASSADOS RECOMro~TOS Ques tões 123

, "culrural" pela his tóri a te ri a, de ma nei ra g lobal, um efe ito " m ais para
favoráve l", para fa la r a lin guagec1 das so ndagens.
Todavia, se ace itarm os !1artir do po nt o de visw. pessoal do hi sto~
Recea mos quc a resposta a esta última pergunt a seja nega tiva, porque
n em todas as "histórias" são igu<!lmcn tc vulga rizáve is, ncm todos os setores
ou todos os períodos intcress<, m igualme nte o pú blico. porquc, enfim, a
riad or, a abo rdage m é diferente. Este último deseja inic ialmente ser inovação ve rdadeira custa a abrir ca minho . ~1as o "cfeito público" nflo rege
publicado; se possível, sê~ l c "bem", isto é. pe los cuidados de um editor rudo. Ex istem se tores pro tcgidos, dentro (;: fora da Univcrsidade. Iruaginc-
':OM s-uas próprias instalaçõe:;; em segu ida, te r u ma "boa c ríti ca"; se r li do, m os, por excmplo, uma institui ção be m ~ quinhoad a , que a~scg ul c a um
é ev ide nte, port anto, te r uma boa tiragem; se r li do por mui to tempo, se pequeno número de pesqu isado:-cs selecionados a possiqilidade de dedicar
possível, port anto, entrar numa coleção de bo lso; enfim ser vul gar izado, a sua pcsquisa um tempo bastante generoso, e que, após a defesa da tesc,
por s i próprio e por outrem: duas g.~ rantias são melh o res qu e uma! E a lhes ofe reça a possibilidade de editá-l<l integralmente numa coleçüo de
pesquisa nisso tudo?, dir-se ~ á. Tomem os apen as um exemplo: o que é prestígi,o. Tudo leva l! pensa! que, nessas cond ições, não have rá pcnúria no
mais importante, nessa perspectiva? Uma c rít ica fundamentada e se m campo científico coberto por essa ins tituição, se, além do mais, forem
comrlacência numa revista fra ncesa, ou mesmo ame ricana, ;Jrestigiosa, regularmente oferecidos cargos aos que liverem seguido esse ca minho
que <l;Ja rece rá três anos ap ós a publicação da ob ra , ou alguns arti gos g lorios04 • Imaginemo~ agora uma instituição de tipo bcm diferente, antiga,
necess,3. ri amente rápidos em Le MOl/de, Le Figaro e alguns hebdomadári os, mas semp rc prcstigiosa, envelhecida, mas q ue guardou no país uma influ-
G U ~ :Jr{)voca r~ :) e:n colega!' e jovens pesq ui sadores a vonta de imed iata de ência rea l, que não podc v iver sem manter um a relação íntima e renovada
lê-l a? O prazer um tanlo solitário de contem pla r pilhas de exemplares não com seu passado c, pn rticularme nte, co m suas origens, emuora , mui tas
vendidos dc um a obra que você dec;ejava p rcj uzi r~ mas que não se vende, vezes, ela tenha tido di ficlJldade em deixar os pc..c;;quisadores exercerem sua
ou a JN)ss ibilid ade de escrever um manual, que lhe permitirá fazer con he- profissão em total independência, que di spõe, além do mais, dc editoras
cer sü::as idéias a um g rand e público de estudantes? próprias, re lat ivamente indepem.ien tcs, e~ no que concerne a algumas,
J\1as se cada historiador deseja que sua pesquisa pessoal - ant es de desejosns de ter uma política de publicação cie":líficn, principalmente em
t
C
';1
tud o, sua tese - seja editada, o qu e ocorre na realidade? Desde qu e a
defes:! deixou de ser feit a em exemp lar imp resso. que O núm ero das teses
matéria his tórica: é presumível que os quc t:r::lbalh <lm nesse domínio ten ham
menos dificuldaucs que ou tros para se re m editados, c que esta vant:Jgem
fi d'ÉrQl aum entou a partir dos anos 60, e que seu tama nh o aumen tou possas facilitnr a pesq uisa nesse se tor, no mínimo au mentando, pela massa
desmedidamente, não fo ram ma is editad as t od~. E o que dizer da tese das publicações, sua importfmcia el11 re laçê.o aos outros.
,\
, de rroisieme cyc/e (grJduação)! E sem dúvida ta mbé m da nova tesc. Como
A estre iteza do prime iro mercado
as teses represent am, pois, tít ulos e pág inas demais pa ra um m\;rcado,
apesar de tu do , restrito, faz-se uma seleção. 1\1as quem selcciona? Co mo? Como já se pressen te por es te último exempl o, a medida do efeito
E com q ue c rit éri os? Es te inevi táve l procedimento de e liminação suscita retroativo da edição sobre a pesqui s a remete ~l própria estruturação do
ainda \"') u lras in terrogações. Em cada caso illdi vidua l , quando o autor é me rcado ed itori al , particu larme nt e hete rogêneo. Pode~se ass im distingui r,
fo rçac."\ a passa r de 2.000 páginas dat il ografac:!..i :1 600 páginas impres- p ara s imp lificar, quatro se tores diferentes, pa rcialmente im bricados. Um
sas, o q ue está na p art ida se encontra n n c hcgad3? Em o utras paiavras, p rim eiro mercado, mais estritamente científico, é consti tuíd o pelas rev is~
troca-$C - e, em caso afirmativo, isso pcrm ~r.ece de nt ro dc limites [ as e publicações da s im prensas unive rsi tárias (teses, colóquios e diversos
accit <J.... c is? - UI11 aumento de legibilidadc por uma pe rd a inevitável dc -instrum ent os" da pesqu! <; n). É subvencion3do, v isn um pú blico reduz ido,
c ient i::cidade 3? Se conside r.! rm os o proces:-;o C:::J. SU;) totalidade, pode- o que explica tiragens ~IS vezes infe ri o res ::l 500 exe mplares, porque as
rem os '3c resce ntar out ra inte rrogaçüo: passa nd o cc 11 teses defendidn s a biblio tecas univcrsi ttÍrias nJ o sJo ri cas. os his toriad ores profissionais niio
11 /2 OI.: 11 /3 ob ras imprcssas, c ncontrarClllllS :-. ': c hegada os mcsmos podem com prar tud o, c os edito res . C O :1lO Ill uitas PME (Pcril es CI
equilíi:- :-ios e nt rc pa íses cst ud :l rlos, cntre pCi íc- jo.s e en tr e temas de :\foyellll es EfIlrcprises) [Pequenas c Médias Empresas], têm difi cu ld ades
pesqui;::,a qu e os ex is te ntes na p;ut ida? em exporta r, tanto para a EuropJ como para os Estados Unidos. O segundo
124 P,\SSAOOS RECOMPOSTOS Quescões 125

mercado - es te, privado - é con hecido do grande público, pelo menos pares. Disso também deriva, talvez, uma a~itude du rave lmcnte ambígua
através dos editores mais à vista, como Le Seu il , Gallimard, Fayard, Albin dos próprios historiadores ~m relação ao sucesso editorial, individualmen-
Michel, mas também Aubier, Le Cerf, sem falar I.!m outros, alguns dos te de sej ~do, mas colet;vamelite suspeito.
quais aparecem ou despa reccm segundo a c~njuntura . Os editores des te Poder-se-ia, pois, cons idera r que, em relação a um conjunto homo-
g rupo, que obedecem estritamente üs leis do mercado, liram no mínimo gêueo que ~e definiria como "a pes,! uisa", a edição se encontra, na maioria
2.000 exemplares, comerciali zam sem dificuld:2.~e os li vros de hü:t<Í ria, dos casos, na mesma situação que aqu ela analisada pelo historiador das
mas por tempo limitado, como aconter:e com as OÚtf:.IS obr us de g rande ciências, quando es tu da os processos da vu lgarização científica nos sé-
cons um o. As coleções, fel izmente, fornecem, a uma parte desses títul os, culos passados. Redu ção, sedu ção, até mesmo, llS vezes, ilusão6 . Redução
uma vida mais longa que a um romance sem leitores. dos s inais mais visíveis da i!egibilidade científica; recurso inevitável a
O terceiro mercado - os mar:uais para es rudantes da univers idade processos de sedução, mesmo modestos; coabitação, enfim, com um a
- surgiu em n;cados dos an os 60: os edito res de livros didáticos perce- histó ria não-científica, que des eja se enfeitar com as plumas do pavão.
beram que o forte crescimento do púbiico es tudantil criava uma nova Esta promiscuidade se explica em parte pelo fato de Gue os editores que
n ecc~sidade de ob ras de iniciação. Os edi t ore~ de li vros didáticos como (Omam o risco de perder dinheiro com " bons" (cientificamente fa lando)
Nath:m, Masson e Armand Colín, tentaram implantar-se nesse mercado, livros, precisam ganhar dinheiro com li vros menos bons, comercialmente
com exite de~igual, enq uanto os .editores mais clássicos, a partir de suas nlais venJáveis; iTI JS cambém pel o fato de que a opinião pública, como
coleções de boJ.<m, também procuraram aproveirnr esse novo público. O alg uém o lembiava recentemente, a propósito da ati tude dos pretensos
':Juano mercado é m ais antigo e permanece sempre im po rtante, já que se historiadores "revis!o nista!;"7, air.da I)en ~a que qualquer pessoa, cO:1Iant o
trata do li vro de histó ri a para o Primeiro Grau (r.olleges) e sobretudo o que fale do passado de maneira apa rentemente fu ndamentada, pode se
Seg;,mdo (lycées). Os secretá ri os de educ~ção e os professo res univ e r si ~á­ proclamar historiador sem ser acusado de usurpação de título.
rios disputam tradicionalmente entre si a d:rcção lU L:rativa des t3s últimas Resta a pergunta fo rmulada: como apreci~r o Uefeito retroati vo" de
obr<15; as mudanças de programa têm sido po r multo temp o uma boa fon te lal s ituação editorial sobre a pcsqu.isa? Na falta de enquete sistemática,
de lucro p':U3 editores (: autores, garantindo, se a repa rtição do bolo for procuremos tirar algum ensinamento da situação dos anos 1 960- 1~ SO,
eqüilativa, tirage ns s ubstanciais. A s ituação atua! - crise oblige - redu z levando em consideração dois aspectos diferentes, a amplitude da tese
as pe rspectivas de lucro. d'Élal e a evolução dn conjuntura editorial. Salvo caso excepciollJI, a
Ora, num conjunto editorial amplo, m as heterogêneo, o mercado g rande tese não era publicável para um editor, que "jogava a toalha" aci ma
jHopriamente científico permanece estreito, pc r ser insuficientemente de 600 ou 700 páginas: os infelizes au tores deviam, portanto, retalhar e
alime ntado pelas aquisições institu cio nais (biblio tecas) e individuais (es- cortar - horrível automuti lação - ou, se se recusassem a isso, reescrever
tudantes e professo res). Em co nscqüência disso, se comp ar<!:mos a situa- completamente sua tese; com mais sorte, tinham a possibilidad(' de juntar
ção francesa com a dos Estados Unidos, nos d.:!.rc mos co nta de que, do uma versão vul ga ri zada, elaborada por eles. em coleções que impunham
Oulr\.."l lado do At lfll1tico, O mc rcado do livr0 de n istória parece ser mais ou tras res trições, como CIWlllpS, Archives (Campcs, Arquivos] ou La vie
,. homogêneo, e reflet ir melhor a produção científic.:! , ao passo que, na quotidielllle [A vida cotodiana]. A conseqüência de tud o isso'! Prolonga ndo
Franç a, existe uma origina l interpenetração de uo público escolar, de um em mais do is ou três anos o " tempo da tese", atrasa r mais ainda para a
público "culto" e de um pú blico "científico" . ~b.s . enquanto nos Estados coletivi dade o acesso i"1 inovação que ela devia constituir; mas também, para
Un i dl1~ a pesquisa me parece bastante estimul:.tJa pcla ex istência desse o auto r, extenuado pu r esse pcnoso acréscimo de trabal ho, limitar as pró-
vas to mcrcado, alimcntado também por Ill ;.ti o r (,,-.o mp eti ção en tre uni ver- p rias capacidades de se re novar investindo em ou tro cam po de investigação.
sid accs e entre :tis toriad ores, na rr,lJl ça ela ~c r i;,:.. d e certa forma, co ntida É verdadc qu e, nesses mesmos anos 60, a co njuntura favoráve l
por um sis tema híbrido que im põe ao hi slo riad ...1r diri g ir-se, quando cs- podia comp ensar a morcsidade da ges tão - inclusive edit orial - da tese.
c rev\.', a UIll público mais amplo que aq ue le. po r dem ai s limitado, de seus A cll"gada maciça de es tudalltes, como vimos, tornava necessá ria a rápida
I 126 PASSADOS IU:CO )...jPO~:iTOS Quc.. cões 127

colocação de novos manuais no mercado. Para os m ais ditosos, então, l a propaga lide, DessillQceurs eCdessills po liciques SOllS l'Occupatioll [De-
depois da tese, a síntese; depois do Loir-ct-Chcr ou do Alâcollllais, II sen hos da propaganda, Desenhistas e desenhos políticos durante a Ocu-
sociedade francesa ou o mundo medievaIs. Ou seja, a p0ssibiEdadc imedia- pação], um a parte de sua tese consagrada :lOS DessillMeurs de presse et
ta, não so men te de vul gar iza r suas intuições pessoa is, mas também de dessill politique CII Fra, lce des allllées 1920 à la Libératioll [Desenhistas
"modclizar" sua abordagem peculiar. E, sem d:.h;dG, isso fo i inicialmente d e impre nsa e desenh o político na França, dos anos 20 até a Libertação].
bcnéfi::o pa!'J a pcsquba dt crior. Mas a conjunrura ~con ô mica se inverte u Apesar do rece nte e ntusias mo pela Himagem", o ed itor - o CNRS, o que
fi..l pid:1mcnt c, c o crescimento dos es tudant es se estabilizou. Os editores é o cúmulo! - despedaça, escolhe o que é mais ve ndá",1el, ao passo qt;e
procu raram torn ar suas coleções lucrntivas se m renovar seus títul os nem o ma is novo, o que diz respei to ao período en tre as duas guerras, perma-
refundir seus manuais: com isso, a vul gari zação dos anos 60, ali mentada nece por enquanto inacess ível, a nã o ser para aqueles que aceitarem le r
pelas pesquisas mais recentes, estava inev itavelmente e nvelhecida, vinte :1 versão datilo grafad a des ta tq e.
anos mais tard eI). A renovação dos manuais do ens ino superi or, atua lmente Con tud o, não seria j~ s to acusar apenas os editores : os historia-
em cu rso, está, no entanto, longe de chega r ao fi m. Seria preciso poder d o res se prest~ m a práticas c uj o efeito pe rverso percebem tarde demais.
medir as conseq üências desses sobressaltos ediIO riais, mas a formação É o caso da tirania dos aniversúrios, do Cer. tenári o ao Milenúrio, pas-
inici al dos jove ns histori ado res, base indispen.s.3.vel para uma pesqu isa sa ndo por t"das as gamas intermediá rias. O que fazer diante desses
[utUr:l. sofreu, prova v cllil e n~e, co:n o üfa.s:a n:cntl) :res.:.ente ent re a apre~en­ even tos programados, que s::io tam bém momentos de sucesso ed itoria l?
tação escolar e os resultados efetivos da pesqu:s:2 num setor determ inado. Permanecer di gnamente afastad o, para escapa r a todo c,omp romi sso com
a ndeia? Ou prol.:urar tirar o melho r proveito, inci ividual e coletivamen-
Em uu sca das es tratégias e diroriais te, de uma co njuntura mo rr.entanea m cnte benéfica? Tornemos o ex~mpl o
M~s é de forma aind a müis ampla que a ed ição uni vers itá ri a é do Bicentenário (a Revolução) - m as a demon st ração seria também
tr ibutária das políticas, evidentemente mutáve is. das casas ed itoras. Há vá lida para o Milenário (os Capetas) o u n Sen~ i -mi l ená riu (descoberta
quase um a década, os historiadores do re ligioso t ~cem l ouvo rcs às Éditions da Amé ri ca). Sua hi.-:>lori ografia estava dormitando: nos anos 60-70, a
du Ce rf; mas, ar,tes qu e uma nova eq uip e in vesl isse na história, esta j ô. his tó ria nova se fa z i::t e m out ra pane. A ?csq ui sa tirou benefício dos
ve lh::l casa editora dom inicana tinh a deixado paSs,3: o trabalho mon um en- holofotes dirigid os dura nte vários an os par:l a Revolução? Tirou, so:m
ta l d e Étien ne Fouilloux sobre a história do ecumen ismo lO - em que, no d úvid ó alguma, e de di fe re nt es m ane iras: pela massa de colóqui os ll ,
en tanto, o padre Canga r, uma glória co::cil::íria iocal, ocupava um lugar o nde a nov idade se m anifestou ao lado do mais convenciona l e do
se leto - somente porqu e, entã o, a casa n50 se l:1te rc ssava pela his tó ri a. inevitavelmente repetitivo; por alguns des locament os temáticos e p:-o-
Os ou tros his toriad ores são gratos a Fayard po r p ubli ca r há al gun s anos b lemáticos, que poderão aproveitar a ou tros seto res da história; pcla
teses c mais teses, mas esta opção é recente. E será du rável? Não está t!'ad ução de obras es tran ge iras, como o Tac kett l2, e a publicação de
t ~1O lC' nge o tempo c m que a mesma casa editora ,5,e rcst rin gia im perlu rba- novos ins tru mentos cole ti vos, tais como o A t/as de la Révolfll;OIl
\'c lr::;:- nte ri biog rafia, valor scguro c sem ris..:o. ::'111 o ut ros termos, pode- ;=-rollçaise [Atlas da Rcvo l uç~lo Frances;::], Les Rapporls à l'Emperellr
se l i~3r a difusão d:l pesquis a a estra tégias editl. "'I riais pri va das, necessa- S Ul' le progres des sciellces [Os Rela tó rios ao Impe rad or sobre o pro-
ri 3me nte sujeitas a muda nças? g resso das ciências], ou os Cours de I'Écolc Il ormole de / '011 111 [Cursos
Outra c rítica, feit a f rcqüentemente ;1 cdiç:}o: segui r, e m his tó ri a, o da École norma le do ano lII] . Em contraparti da, é vl! rdade, toda s as
gostC\ do pllbl ico, o qu e leva a distorçõc!' prt:-j ucic iais. Um caso é o co ntradi ções de um me rcado no rm al são \C'vad as ao paroxis mo. Sem
iJl[ er~s.se d ur:ldouro por Vi chy: a pesq ui sa sob e esse período fica bcne- fa lar em verdadeiros efeitos perversos. Passada a f~st :1 , adeus ao san to,
fi c i':''';:l. mas, e o res to, tud o que n:io é nem c~l rilame nt e francês, nem .."'l U melh o r, Adiell 89 [Ade us S~ ] I:'I! O tempo - longo - da prod ução

mui t..., con te mp ortllleo, nem prioritariam ent e conjull tu r,! ' ? To mcmos um só c ie ntífica se co nci lia mal co m aqu ele. mai s cu rt o, dos «a ni versá ri os".
cxem? lo: Christian Dclporl e ucaba de pu blicar, co m o títu lo C r ayolls d e A s aturação ed it0fial agr. também con tra publicações ult eriores: se rú
128 PASSADOS RECOMPOSTOS Questões 129

d ifíc il , nos próxi l~:os dez anos, publi ca r algo sob re a Revo lução, e n- unive rsitário. Nflo se pode ri a d izer o mesmo da história das ciências, onde
quant o se pode espe ra r que o mais novo, as teses dos qu ~ co meça ram se encon tra ria uma d isto rção semelha nte cntre J qualidadc das publica-
a trabalh ar no momento do Bicen ten á rio, a inda es teja por vir. ções c a presença muito li mitada des ta h istória no mesmo ensi nol(i?
O mesmo acon tece com a política de a uto r. Os ed itores ti favore- Deveríamos então retomar o elogio d a ma rgi nalidade, afirmando quc é nas
cem, se mp re em busca de novos MOl/fai l/oll, mas os próprios historiad ores rroí.tei ras da inst itu ição que se elabora a verd adeira nov idade?
n ão s50 inse ns íveis a isso. COlIl efeito , a no toriedade - científica? Na realidade, tal registro nos leva a L1 C1S interrognrmos sobre o que,
mcd i5. lica? - passa qu ase sempre por um a prod ução con ~ l ec i da , senão :::té agora, foi cOllside:-ado como um todo, <ela pesq uisa", a respeito da qual
abund ante, co mo se pode ve r a propós ito da e nfi3da de his toriado res qu e te mos o direito de nos pe rgun ta rmos se, no futu ro, ela não vai ser ma is
Pi crre Nora re uniu em seus ensa ios de ego- histó ri a . Ex istem, é verdade, s ls!Cmaticam ente di ssociada. De um lado, uma pesqi.lisa ligada prioritari a-
os co ntra-exc mpl os - um a fort e nO,lo ri edade "cien tífica" e um fraco re- ocnte à gestão de uma carreira univ ersitá ri a, co m uma produção inicial
conh ecimento por p a rt e do gra nde público - , mas o próprio fato de se (nova tese, habilitação), qu e permitirá a seleção dos docentes e lhes dará
ins is tir na ex istê nr; ia desses histor iadores "ascét icos" 14, co mo no caso de :l possibilidade, em contraparti da das pesadas tarefas de ensino nos primei-

filhos de operá ri os que alcançam altas funções, m 'Js tra bem que, segundo ros ciclos, de controlar, atr avés dos tcrce iros ciclos, O recrutâmcnto da nova
o dit ado, as exceções es tão aí para confirma r í1 regra. De qualqu er modo, fe ração de doce ntes-pesquisadores. 17 De o utro lado, pesquisadores vita lí-
exis tem na Fra nça verdacfe iros "au:ores" his to riadores, escr itO res pro lífi- cios, menos docaltes O l.1 nüü uoc~nt cs , J.g lupnd os em instituições mais
cos co mo Chau nu , regul ares como Duby, Le Roy Ladu rie ou Dclu meau, orientadas, algumas, para a busca da inm.. aç5.o, a c riação de redes intern a-
como Corbir. ou C h ~ rti e r , mais raros como Agu lhon, Fu ret Oll Roche ... c..ionais e a presença nas estruturas cd itori :.isl ~; o:Jt rac:;, parü a produção de
Paremos a enume raç;io - trata-se de exemplos, não de lista de i.:ls trumen tos de traba lho e a pe rn:tanênc ia da erudi ção em setores conside-
i laureados - e voltc mos a nossa in te rrogação. É possível meu ir as conse- r ..ldos como marg inais, mas cientifi ca mente indispensáveis. Não have ria
..I
.j
-,
qüê ncias dessa política de "au torcs" sob re ti pcsqu isa his tóri ca ma is glo-
ba l? Será q ue cl a aca bo:l atraindo os estuda ntes para os setores ass im
então o risco de se es tabelece rem três ca te go ri a~ distin tas de docentes-
pesq uisado res - desigualmente doce ntes e desigu;,li mente pesquisarlores -
't.
foca li zados pela a t ua li da~e cdi to ri al? De fa tu, r odemos nos perg un tar se ~ quais corresponde r iam p rod uções càitoria is dife rent es, conforme se

:J s im pl es capacidade de produzir "obje tos hi stóricos" novos, de notori e- privilegiasse, :lq ui a pesquisa erudi ta, 15, L. promoção da inovaç50, aco lá,
da de imed:a ta, é sufic iente para induzir uma pesqu isa no setor explorado, :l capncidadc de produzir maciçamente teses e fo rnecer regularme nt e sín-

mobil iza ndo os es tudantes, po rt ant o, os futu ros pesquisadores, ou se, ao teses escolares? Se essas três m,:tne iras de faze r pesquisa di vergirem de-
c..J ntr:i ri o, é prec iso que essa produção seja também apo iada por uma IT1.ais l·), principalmente sendo levadas :1frente por instituições se m ligação
pos iç50 insti tucio nal dos au tores na Uni versidade, que pe rmi ta di spor de e nt re s i, have rá, sem dúvida, um ri sco, a médio prazo, para o futuro da
meio:, - humanos e fina nce iros - para real izar t:'l l pesqui sa. Co m efci to, pesquisa histórica nil França. Esperemos que es te "roleiro-cil tás trofc" niio
certos co ntra-exem p los mos tra ri am que cx istem outros casos de re levo F:'lsse de ficção histó rica, c voltemos mais aj uizada mente a nossa conve rsa.
que t='~Hece m contradizer essa regra dominant e: r ..1deJl1os, de f<lto, e nco n-
Ir.J r selO res nos quais a produçiio c ientífi ca é rC:'l I, Illas perma nece mar- o preço d a \"irrude?
ginal c sem poder sobre a ins tituiçflO uni vers it:ír i3. Não e ra uma si tu <lçflO Até agora, colocam os a ediçüo em posiçflo de ex teri oridade em
deste gênero que evocava recentemen te, a propós :!O d:1 filosofia medieval, r ~ laçüo à próp ri a pesqu isa, o que nüo é exatam en tc o caso, primeiro
Alain de L i be ral~\ quase que re tomando as n":ls tatações deso ladas de ::,~') rqu c os ed itores confiam frcqücn lcl11el1lc responsab ilidades editoriais
Étienne Gi lson, hú sessen ta an os : li ma pesqui s:.:. de qua lidade, marcada ;,!. his tor iad ores, mas sobretudo po rque. se lembrarm os que a história é,

pelo. ~"'Ifl) d ll ç ii o regular de ob ras cielltíl icas, m :b (,.'~:.i os au to res permanece m _~') mcsmo temp o, dem onstra çfLo e I1 ~Hra~:i o . "cremos qu e o papel daquel c

c o ntlnadc ~ II OS es tabe lecimcntos de pesquisa CQ:no o CNRS ou a EPI-I E, ~uc "sabc" faze r - ou manda r faz e r - livros é c'Lpita l, já que atinge o
po rque esse se tor da fil osofi'l ainda Il ~L O tem seu lugar no ens ino ;:-róprio âmago da prát ica c ! ~ n t ífi ca hi stôriea. Pcnsam os logo nas coleçõcs
IM
130 PASSADOS RECOMPOSTOS QI ~eSlões 131

pres ti giosas lançadas pelas gwndcs casas cditoro.s, n;JS obras de encomen- .1 Traia-se de um') questão import ;Jn te, qu e nflo se pode li qu id :lr no espaço exíguo de uma
da que se tornaram imediatamente rcfc.rências~ como o Duby-Mandrou 2lJ , nota. Dig.101CS npenns que este trabalho de redução se opera de três mane ira s, igual-

rll onde uma ge ração de historiadores aprendeu ""a nova história" antes que
esta fosse rotulada. Mas há mais coisas: La Droite ell Fran ce [A Direita
Illente prejudiciais, embora os efei tos sej:l lll diferentes, segundo cada prática: cortes
pro fund os no aparl"\to c ríti co, desa parecime nto de uma das partes do texto, contração
do conjunto. Acrescentemos que, às vezes, o editor vê mais claramente onde se situa o
na França] de René Rémond , !..a Républiq/te aI: vil/age [A Repúbli ca na núcleo duro da dcmonstração, c que suas exigênc i3s pode m ler e feitos benéficos tanto
alceia] ele Mati,'icc Agu lhon, os L ieux de mémoire [Lugares de mem óri a] para o autor como para seus leüores.
de Picrre Nora por acaso não rcprcscnt'lm, de modo evidentemente dife-
rente em cada caso, "produtos" em que a intervenção editorial, aqu i, para ~ Suge rimos aos que não têm ima gi n;Jçflo e não gosta m de ~eniglllas que procurem na
direção do Tibre uma inst ituil.:áo prestigiosa c ma is que cen tenária, que corresponderia
suscitar uma síntese brilhant,c, ali, para fazer editar separadamente a porção
ba stante bem a esta descrição.
mais original de uma ampla te~c, aco l.í, enfim. para fazer nascer um a
interrogação coletiva de uma geração de histo ria do res so bre um objeto 5 Nflo causa rá muita surpresa que o :lU lor, espec iali s ta de hi stóri a rel igiosa, tome um
I novo, "cria" - parciall11r.nte, apressam o-nos em acrescentar - um "objeto" exemplo nU~l campo que con hece. Nflo é preciso acrescenta r que, na França, o catoli-
i s ingular, que marca durav elmente a paisagem historiográfica c, por consc- cismo é religião "domi nan te", se é que este lermo ainda tem um sentido em nossos
dias, e que as Éditi ons d u Ce rf, C0l110 foi lemb r2do, po r ocas;f!o de um recen te salão do
I guinte, mud a o rumo da pesq uisa futura?
li vro, nLIll "grance jo mal da tarde", tenta m im;x> r- se como o editor de referência pam

:.I, Chegando ao térMin o de~.te br~ve perc1Irso, temos consciência de ter


mU!liplicado as perguntas, mais do quc;: oferccido respos tas francas; de tcr
enfocado as relações complexas qu e unem edição e pesquisa histórica, mais
tudo que diz respe ito às ciênc ias das religiões.

Ti ro O binômio reduçáoised ução de J. Po irier, ver, pc.r exemplo, "La vulgarisalion


"t'
, do que medido esses muito reais, mas dificilmente ap rcensíveis, "efeitos Illédi ca le en France au mili eu du XIXe s iêcle, Migne en situ ati on", in C. L:lnglois e F.
re tío::"'tivos", que havíamos recebido a missão de descobrir e descrever. É Lapla nche , La Science cotlloliqllc, Pl"\ ris, Sciencc co s itu at ioo-Cc rf, 1992, p. 208.
li,
ve rdade, também, que não é habitual fo rmul ar as perguntas desta maneira,

;itpL principalmente porque, na matéria, o observador não pode se dissociar do


que observa, e, port:mto, toda análise se torn3. auto-análise, toda crítica,
"7 C. Charle et alii, " L'historien et les falsific3 'curs'"', Le Monde, 29 de ab ril de 1993, p. 14.

" Para os distraídos - Ol.! os mais novos -, Gco,ges Dupcux e Georges Duby.
;I ~· autocrítica, e qu e é preciso virtude - ou i ncolIscit~ncia - para no.s engajarmos
num ca minh o perigoso onde corremos o ri.5C'"o de nos indispormos, ao Sem te r empreend ido uma enquet.e sistemática, pare.ce comprovado quI,; os ca l:íiogos de
':!I'
lO

mes mo tempo, com nossos editore ~, C0m nossos colegas .. . e com nós A. Colin , de Masson ou de F. Nathan sc renO\":lr.lm pouco dur:lnte muito tem po, e que
\!l mesmos. É muit o de uma só vez, c pa ra um s.ó homem !
a "NOll ve ll e Clio", nas PUF, do rmitou um pouco no mcsmo período.

111 Les COlholiques el/'UI/ité c!JréticJ//lc du X/Xf! oU X Xe siêcle, 1.007 págin as, é verda-
de ! A obra é publicada elll 1982 pe las Éd . du Ccr.t urion. Pratiques de lo cOII/essioll,
primeira obra da coleç50 "Cerf·hisloire", é pr.;blic;Jda e m 1983. Neste meio tempo,
Noras
lima nova equipe cheg:lva f\s Éd. du Cerf.
1 E. provave lm ente, na conjuntura atua l, sua quei xa é jl;.$tiricada. Di ga mos logo nqt.:i no
in ício, p:lrJ. não ter que voltar ao assu nto . e também p.:tra ev itar qualquer mal-entendi- 11 Os diversos ba lanços editoriais, nccessari:lmcnte p.:l rc iai s, s50 mencionados num núme ro
d....,. que nossa an:ílise pretende ser ll1;Jis estru tural q;.:c conju ntu ral. Ela quer ajudar a especi:ll da rev ista p,.é/oce, em 1989; em Rechaclll!S sI/r /a Révolulioll (Pari s, L1
c\.""Impreende r a singula ridade francesa - e mesmo S:.:..J ex ce pcion:llid:lde - e n5 0 vis:l Découverte, 1991), que dá o estreito pon to de vis.:2 do Ir.<;titut d'hi stoire de la Révolut ion
p-erllli lir toma r o pulso - conjun tural - da protluç;jQ :-: istórica, nelll :lv:ll i:lr o luga r da (Paris- I); ou ainda nas not;JS do livro de K:tplJ.::. cit:-rdo a segu ir (nota 13). O "e feito
h iSlória nas ciê nc ias human as. l3icenten:írio" pode se r llIedidocom muita precis.:k ;Xlo lIlímerode indicações bibliogr:íric;Js
da lJibliograplrie (1II11l1l.'lIC de "histnin.· til..' Frtl1:c~ . Entre 1982 e 1986, anosaind:J calmos,
: A;'Cnas ullla data: 1978, o lan ç;Jmento de L 'lIisroirc , "':'la publi c;u;ão "grande público" a parte da Re\'oluç:io se enco ntr:lva csta~iliz:.l Ó mllll níve l fraco (5%). Em 1987- 1988 ,
, - tirage m intcTlllcdi:í ria e ntre as re"ist:1s com plÍbli C'~... mui:.) grande c as rcvistas cie n- chega a \':lnguarda do 13iccnten:í rio: a Re\'oluÇ"!-.o pnh;J - a custo - dois pontos (6,7%).
,.
I tificas - feil:l com a parlicipaçflo de hi sto riad ores uni\'e rsit:í rio.:: . 1989: centcrras de livros; e;l <: revistas 1150 falt ar.lm 30 encontro: a produç50 foi ll1ultiplicada
132 PASSADOS RECOMPO~TOS

por três ~m relaçilo ao período de referência (1 5,7%), sem quc, no cntanto, a produção
global aumcntas:,;'.' s ign ifi cat ivamcntc; com efeito, numcrosas rcvistas - sobrctudo
SE IS
regionais -consagraram ao cvento um númcro cspecial, sem modificar o volumc dc suas
publicaçõcs. Em scgu id a, vem a inevitáve l baixa: 1990, cerca de 12% (11,8); 199 1,10%.
Comunidade de Memória
IZ T. Tackctt, La Révofu/ioll, l'Église, la Frallce. L~ scrmt':1I1 de 179/, Paris, Éd. du Cerf,
19S6. e Rigor Crítico
DOM1N1QUE BORNE
IJ Título da ob ra q~e S. Kaplan acaba de publicar sobre o Biccntenário da Revolução,
Pari s, Fayard, 1993.

I~ En trc os mais famosos, A. DUprollt, cuj"/ "processü de be..::.tificação" - se assim podemos o ensino da história cOi:triblli para a cOfistrução de cidadãos
dizer - foi abcrto com n publicaç:l0 de uma série de ;lftjgOS, reunidos sob o título DII enraizados numa comwzidade de memória livremente escolhida, e 'não
Sacré, Paris, GalJi,llwrcJ, 1987, e cujG "processo de canonizaçiio" está sendo preparado
cemerosamellte preservada, sem arrogância, aberta a outras solidariedades
com a publicação - tudo ac~ntcce - de sua tese, ddendida há ce rca de quarellta anos.
que Ilão a da nação. Aias o pro!essor de história ensina também o rigor
I! A. de libera, "Rl.Iour dI'! la philo,wphie méd iévalc'!", Le Débat, 1992, n. 72, pp. 155-169. critico. Quando é necessário ordenar um discurso sobre o mundo, cOllfusa-
mente desenhado pelos jllrores (Ie uma allwlidade lan çada, sel:1 hierarquiq
I' Acrescentemos Ur.l argumento suplemen:ar : a história das ciências é, provavelmente, nem recuo, para as telas de televisiio, ellfüO a história pode ajudar a tomar
um ~os cilnr>is por o n':le poderia passar uma cultura "científiCJ", que falta terrivelmen- essa distância, indispellsável ao exercfcic d(l p€IISamelllo livre.
te n:l formação de base dos estudantes de Segundo G~u. Fala-se muito em incultura
no dom íni o religioso. De acordo. r...1as a inc ultuf:l cient ífica é, sem dúvida, igualmen te
evidente c, na nossa opinião, igualmente prejudicial.
A França é um dos raros países ocider. l ai~ que ligam o ens ino da
17 Uma boa oportunid:lde pala verificar a justcza d::ls tescs de I30urdieu sobre n reprodu- história ao da geografia. A a li ança das duas disciplinas nasce co~ a IH
çã o, que n50 perdc i'am 11<1(la de sua pertinência. República. Ela permitia que se apresentasse o hexágono nacional como
uma " pessoa" rica da diversiJ ade de seus terroirs [suas províncias] e
!. O yuC corn::sponJcl'ia b:l sta nlc ut:1ll às orit:nlaçCx:s d:l EHESS.
de uma história providencial. A odisséia terrestre dos dois heróis do
li Nos últimos anos, a paisagem científica se modificou ~rofllndamente pelo efeito con- Tour de la Frallce par deux ef/fall/s [A volw da França por duas crian-
ju,:ado da aposcntadoria da gcr:lção rccrut;'\dJ p,,"Ir volt:: de 1960, da criJção de novos ças] faz sentir carnalmente a harmoniJ de povoados ligad os como num
c.:!rgos para Jlender ao recente crescimento dos cfcti,·os uoiversit:írios, e, enfim, da fe ixe para formar a nação.
polí tica 1ll:1is sistcnd ti ca de bo lsas par:l tescs (di"ers2S categoriJs de beneficiários),
A função cívica da hi s tória é, então, umJ evidência. E la acompanha
PI."I rt:mlo, a Universidade cresceu, a pesquisa uni\'crsitiri a (eCJuipes c pcsquisadores)
\.'" fim dos terroirs : a hi stó ria , como a geo~raf ia , amplia, nas dimensões
:',:: hcnefic i:lda com auxíli os substanciais c - l''';;lCrC[~' u s - durá\'cis , M:lis modestas
f" ,H'anl as mudallç:ls permitindo uma real c ircul:l..;:io d ::.s pessoas c o fim da compar- ..:i a nação, um quadro de referência até entã\.") lim itado ns frontcir~ls de UI~l
ti'11Clllação das in s tituições. cantão. A hi stó ria dá uma cultura de participação. Se u ens ino é logica-
mente contemporâneo da construção da rede fer rov iária e da constituição
::. H ,'_,;toire d.: la cil·ilislllio/l fl'(//lç(li.~'{' , MO)'/:/1 Ag.: -.\'Xe si~cle. 1 ed. J 95g, Pari s. A. Col i 11, Ge um mercado nacional. A hi stória tembéra é cívica, porque o discu rso
2 \'0 1.
,,:l::J, democracia republi ca na é conslantel11en iC alimentado por lcm brn nças
:'islóricas, que se enraízam nUllla dupla cu ltura: a Antiguidade greco-
,,,)l1lana oferece, com seu feixe de exelllp~' ,l, uma mina inesgol<Íve l de
modelos; a nnrração da longa marc ha p;!ra a emancipação do servo
medieval e do burguês da~ primeiras comunas, ligndos em aliança, em
1J4 P ASSADOS RECOMPOSTOS Questões 135

1789, para de rrubar o Ancien Régime e proclam ar enfim a alvorada da entre as di!::ciplinas dominarttes. A demanda social junto aos professores
liberdade, dá sen tido :la co mbate rep ublicano contríl to das as forças qu e é tão fo rte, que~ po r vezes, eles são submersos pelas comemorações e
recusam o progresso, e puxam a F:ança para urro passí'.do de obscuran- celebrações, e O" campos qu e se lhes pede lavrar para seus alunos (da
ti s mo. A o mes mo tempo, a expansão colo nial manifes ta a influência cultura !'cligiosa à segurança rodov iá ria, da hi s tória da arte à educação
civilizaGo ra da França no mu ndo. A geog rafia, a das manchas cor de rosa para o des envolvimento ... ) se este ndem desmesuradamente.
no ~lan;sféri o, é aqu; , mai s uma vez, a auxiliar indis pens ável de urna
hi s tória que inse reve a col.:mi zação na, lóg ica de um a irradiação ao mes mo A situação: dos horários, dos professores, dos programas
tempo espiritual e material da nação. Algun s dados num é ricos não são inú(e is para anali sa r a impo rtância
Ve io, em seguid a, o tempo da dúvi da. No perícdo entre as duas do ensino da hi s tó ria c da geografi a (o pa r é in d,issociável nos horários).
g uerras, a vitó ria de 1918 ainda fi gurava co mo prol onga me nto do g rande No college (Prim eiro Grau), ':"';) quint o até o o it .. vo ano, os alunos rece~em
c ombate pelo direito e pela liberdade, mas a suspeita roeu rapidamente as duas ho ras e mcia po r semana, ao que se dcve acrescentar ,urna hora dc
certezas, A hi s tó ria cor.tribuía para fundar a unidade da nação, mas ela educação ci 'v' ica. No lycée (Segundo Grau ).. o horário varia, segund o as
também servia para faze r a guerra, E se al guns pod iam ler a Revolução seções, entre três e quatro horas semanais; o horár:o é mais reduzido nas
Russa de 1917 co mo O pro lo ngament o da Revolu ção Francesa, com os seções científicas. A histó ri a e a geogr afia estão totalmente ausentes na
bolcheviqlles cumprindu milagrosamentL: as p;c mt:ssas ninda não re:l li zadas s éric termin al da~ seções de tecnologia indus tri al. e seu lu gar é pequeno
de 1789, aí também as decepções ve nce ram as ce rtezas. A descolonização, nos lycées profissio nais.
enfim, to rnou menos límpida a hi s tó ri a da ir:-adiaç5.o d~ f<rar,~a. O qu e Para ministrar este ensino, contam-se cerca de 40.000 docentes de
esta\'a em qllcs tflO, não era apenas uma v isão tcl cológica da h is tó ria; a divc rsas categorias: agrégés, certifiés, adjoillls {/ 'ellseigllemenl, maÍlres
hi s tólia erudita, a das Allllales, denunciava um ensino excessivame nt e auxilia ires, professores de ensino geral de college ... a maior parte dos
,I
cc ntrad o no acontecimento e no político, que ig.n o r3va as longas durações, quai s poss uem, pelo menos, a li cença, de histó ria o u de geografia. Estes
os ritm os lentos do econômico, do social e dzs men talid ades. A narração dad os nã o levam em conta nem os professores primários (ou professores
his tórica, de um rcgim e para o utro, de g rand e ho mem para g rand e h0111em , d:3 s escolas), nem os professores de letras-história dos lycées profiss ionais
torn::wa-se ridic ul i.!!l1ente obsoleta. Enfi m, as crÍt:cas em rel ação a um ens ino qu e, tan to uns como os outros, ensina!'!! 2. hi5!Ória c a gcogr:!~:o. como parte

Il etnocê ntri co, estrit amente "hexagonal" , multiplicava m-se.


O ens in o da hi s tó ri a dev ia , po is, cnf~cn tar um d upl o desafio:
de se u serv iço. O rcc rutamen'to to rnou-se mac iço: na sessão de 1994 do
CAPES (Certifica c d'apticude au professora! tle l 'ellseignemelll secoIJ-
como reinvent ar uma aborda ge m que levasse e m con ta o no vo lu ga r da daire) [Certificado de aptidão ao magi s téri o secund;írio], mais de 1.200
Fr;:J.nça no mund o, e juntar os elemen tos qu e dese nha sse m uma nov a candidatos fo ram aprovados.
c ulmra de p a rti cipação? Como produzir outril forma de di scurso hi s tó- Esses professo res lecionam em cOi.diç.êes materiais ainda desiguais
ri c\.""\ que pudesse refl et ir, j unt o aos alun os. C' ~ avanços da ciência hi s- de lIIll estabelec imen to a ou tro, mas que, de modo ge ral , estão melh oran-
tó .:..:a? Os pedagogos que, no mesmo períodG, .:lcllullc iavam o cmbr ul eci- do. Q uase se mpre , há um a ou vári as sa las es:pec ialmente equipadas (tela,
m ento inútil pro voca do pe la lllelll or i zaç ~l o pJ.ss iva dos ac o nte c im ento s, cortinas ... ); o projeto r de diapos itivos, bem como o ret roprojeto r, já são
c insis ti am, .10 cont r;írio, nas necessá ria s ap :endizagens metod o lógicas, de uso banal. Mas, se o vídeo não é m;lls excepcional, a utilizaçã o
apr . . 've itav am dessa conjun lu ra pa ra aumen ta : sua influ ência. A descon- didát ica da info rm{lti ca e do videod isco ainda é rara, Enfim, os centros
tru-;5 0 do m ode lo a tin g ia po is, ao mes mo tc::·.po, o fundo e a for ma da de docum entação e de info rm açfi o (Cor .. que exis tem em todos os
narração hi s tó ri ca. estabelec ime nt os, reúnem os recursos de,eUlll en t;í rios, e pe rmitcm o
E, no e ntant o, a hi s tó ria co ntinua sc:-:": . ."I ensi nada. Melh or ain da, t rabalho a ut ô no mo dos al unos.
o luga r da hi s tór ia nüo é muito con tes lado: ~ rec .; nte reforma do lycée Os prog ramas 'ltua is foram impl eme:l tados, progressivamente, de
( se ~undo grau) a inscreve , na s seções lite r:í.ri3s e eco nô mi cas e sociais, 1986 a 19G9; nu colli:ge, es tu da -se a ro:.:lI id ade do desenvolvimento
IJ5 PASSAOOS RECO~IPOSTOS Qucscõcs 13 7

históri::o: a his tóri ,! antiga, na sexta sé rie, a his tória medie va l e o século
Que histó ria ensinar?
XVI, na quinta. O programa da quarta série se es tendc do século XVII
,llé 1914, o da terceira, ne 1914 aos nossos dias. No /ycée, o programa A primeira cont rovérs ia s~ refere à rep: rti ç50, no currículo e:;co-
da segunda sé rip. começa por uma recorda ção das -estruturas do Anci e n lar, dos dife rentes períodos da his tória. Será razoável percorrer, no college,
Rég ime, c prossegue com o es tudo da Revol ução e elo sécalo XIX até a a to ta!idade do campo histó rico, qu:mcto são c ada vez mais numerosos os
década de 1880. Na primeira sé rie, cs tuda-sc o período qu e va i da décnda aI'me:; da oi tava sé ri e que cont inu am se us I.!stu dos no lycée? O que se
de 1880 até 1945. Enfim, na série te rminal , o programa parte de um jus tifi cava qu nndo oita\"a sé rie era um a sé ri e final de es tud os, será ainda
balanço, em 1945, da Segunda Gl!erra Mundial ~ e se es tende até os nossos indispensável? Deve-se, então, repartir, pelo co njunt o da c'scolaridade, el a
dia s. A finalidad e é cla ra: para os alunos do primei ro g rau, uma visão de quinta sé ri e à última sé ri c, o tempo hi stórico? Serin re;;ncontrar uma vel ha
conjunto da continuidade histórica, ~I uma rcto mada dos períodos histó- tradição, quando a Grécia estava confort áve l na quinta série, Roma na
ri cos mais recentes, no lycée. O privilégio conced ido então à época con- sexta, a Idade Média na sé tima ... Mas ess3. orga niznção, puramente cro-
temporâ nea se exp;';ca, em par te , pela conjuntura política; Jean-Pierre nológica, dos progra:nas, é, ela própria, criticada: por que os períodos
Chevcnement era ministro da Educação quan do esses prog ramas fomm m ais antigos se ri nm rese rvad os às c ri anças mais novas? N50 se ri a bom,
promulganos. Por acaso não era urgente, na perspec ti va do Bicentenário, no lycée, co nsagrar-se a um aprofundamento, em out ra escala histórica,
restabelece r um ens ino ob riga tó ri o da Re vo luç ão F:-anccsa na segunda do co njunt o dos pcríodos estuJauos .10 c.J!!ege? J á nos anos 60, o "pro-
g r an~a Braudel" int roduzia na última série. após o estudo cronológico do
série? Fazer começa r o pr~g rama da primc ira s~r i c na décad~, de 1880 não
permitiria pôr CITl evidência a importância das funda ções republicanas? período 1914-1945, uma vas ta retrospecti\'" sob J fn nr.a do: um estudo
De m odo mais gcral, esscs programas res ponde m à idé ia de que a históri a da s "civili zações", pondo em cvidência tan to suas ra ízes históricas como
contemporânea deve ajudar na compreensão do mundo de hoje, e que e la seL:S aspec tos c011lemporâneos. É preciso dizer que, muito rapidamente,
é, po rt anto, ind ispensá vcl para preparar a9 exercício da profissão de es ta últim a parte do p rogra ma foi "csquecida" pelos professorcs. Um
cidadão. É necessário, po is, refo rça r seu cnsino no final do currícu lo pouco mais tarde (1982), o prog rama dO a prime i~a séri e do segu nd o grau
escolar. Aliás, na terceira sé rie, como na sé ri e terminal, o programa se tcnt ava, pur sua vez, explorar as origens da c ivi lização ocident:11. Este
eSLCnde "até os nossos dias". prog rama, temát ico, amp lament e co nsagrada ;IS longas durações, foi di-
Esses programas não S~IO apenas marcados pela " tradi ção republica- versa mente recebido e tratad o; fo i substituíd o em 1987: criticava-se nc le
na", cles tes temun ham também a influência de uma impor tante co rrente o csquecimento da cro nologia, Ulila Jiluiç50 da história nacional (a Re-
pedagógica, que visa teo ri zar as modalidades da aprend izagcm, e que, voluç ão Francesa de 1789 n50 é tra tada obrigat ori ament e, c o século XIX
fortemente in flucnciada pelas " idé ias 1968", den unc ia a "aula mag istral ", é bas tante descurad o). Es te primei ro debate. em que as associações de
preco n;za a at ivi dade do alun o, que deve constf1: ir, e le próp rio, se u saber. especialis tas dos difercntes períodos de sem penham, no rmalm ent e, se u
Tra t~l -se me nos de faze r " ap rcnder", que de :'~ er refl e ti r. As inst ruçõcs
pap el, complica-se entüo. E le desemboca numa oposição en tre o c ron o-
ofic iais pede m aos doce nt es que proponha m Froblemálic as em lu ga r de lógico c o lem5t ico, qu e repousa, por \·e zes. na idé ia de que o cro nológico
desel1\" olver um a cronologia Il<lrrando históri as, Cada programa está orien- respo nderia apenas a um obje tivo de mcm orização passiva, e que so ment e
ta do e m torn o de UIll lema, cuja elu c i daç~1O dc ...·c ser o ce ntro de interesse a :lbordagel11 temática comportaria a intcligêncin e a refl exão. Con tra -
durant e todo o ano: por exe mplo, a Il oção de c :vi liz,lçilo na sex ta série. O pa rt ichl, enfim, da vo ntad e de exaustivid:.:.de, muitas vezes denun ci:.lda
tra ba lh o ti part ir de document os - a evo luç5 0 ~os l,w lluais O comprova - pelos professores de históri a, o " peso" dos programas explicaria se u tã o
ocupa uma parte important e do tempo escol:.::. Sem (!lívida, a mane ira de freqü e nte in<Jcab'lInent o.
ensi nar mud ou mais que os co nteúdos du:; p: I..~ .;:;ra ma s . Apesar de ludo, a O segun do grande debate diz rcspei: ..."'l ao lugar rese rvado ;1 his tória
história per manece uma d isciplina "sensível". n .." ce nt ro de lodos os debat es nac ionnl. Me nos exclusiva do q:le ~I S \'CZ C.$ se di: (assim, no col/ege, ela
políticos, e as p ok mi c~L :) so bre os programas :1\lll ca acab'lram. não é objeto de um estudo ~rono l óg i co s istcm;íti cl), pclo mcnos até a
138 PASSAOOS REC..'OMrosrOS Competências 139

Revolução), ela é, en tretanto, muito prese nte, e de modo bem particular, orientou se u cl lsino de acordo com uma id eo log ia do progresso, que
para a época contemporânea. Aliás, esta história naci on:!l mudou. Muitas reservava li França um papel particular em sua realização. Hoje, duvida-
vezes, é caricaturada como vã sucessão de rein ados, ,!uando da se prende se d o progresso, afirma-se menos freqüe!ltemente a excepcionalidade
cada vez mais fi evo lução da vida dos franceses. O fato é, entretanto, que, f rancesa. O ensir,o ain<.ia pode, sem dúvida, afirm ar finalidades cívicas e
se os ataques cont ra um ensino do histó ri<1 dr.mas iadamente franco-francês culturais, mas hesi ta em se r o vetor de certezas milit" ntes. Esta mutação
es tão menG:; na moda que na época brilhante do teíceiro-mundismo, algu- deve se r assumida como liber tado ra .
mas perguntas verdadeiras pe:manecem. Deve-se, pelo menos em relação
fi época contemporânea (e o problema· se apresenta também na geografia), As finalidades de um ens ino
continuar a anal isa r a história e o espaço da nação indepen1entemente da Ensinar a hi stó ria é, em primeiro lu gar, levar os alunos a se
história e do espaço europeus? Na époc;t da globalização das trocas, não apropriarem de uma lin guage n~1 específica. Neste se ntido, os conteúdos
seria preciso descrever o apagamento progressivo das especificidades na- do ensi no são inseparáveis das modalidades de s ua transmissão. Apro-
cion3 is? Inse rir o estudo da França num estudo mai s vasto da Europa seria priar-se de U1~;a lin gt:agem n50 passa por u ma s imples memorizilção, e
então um ato de voluntarismo político ou um respe ito a realidades sim pe la aprendizagem dils ope rações in te lectu a is qu e permitem a cons-
verificáve is? Reafirmar, ao co ntrári o, a pennanência de uma histó ria nacio- uução de lIP.l discurso. Como o hi s to riad or, mas no níve l que lhe é
nal s.e ria ajudar ao enraiZJr,lento, civbmu OL fC ~r:l :'. oposta de voluntarismo? próprio, o aluno deve descobrir, analisar, cla s ~ i ficar. Em suma, operar
Isso mos tra bem que O trabo. lh o do professo r de histór io. não pode um ordcna mclI(Q no temp o. Tal documen10 , escrito ou figurado, é cui-
escapa r às pressões vindas da sociedade. E essas pressõC'.s são !lUlT'erosas. dau o!: amenlC identificado e inscrito numa cronologia, depois é poste em
A op inião público. se indigna peri od icamente com as ignorâncio.s, reais ou relaçflO com o '.ltras documentos escritos ou figur:ldos. Pouco a pouco,
suposta:;, dos alunos; a imprensa publica so nd agens natu r almente os alun os aprendem as operações que conduzem a "fazer história". A
"ac2brunh ildoras". Mas, por um lado, nenhuma cnquete anterior de refe- história não é dada a priori, el;t se cons tr ó i. tv1anipular dados e, com-
rência permite concluir que houve, de fato, degro.d ação do saber históri co, binando-os, produzir sentido: a história é um a aprendizagem do exer-
e, por o utro lild u, as perguntas feit as, excessivamente pontuais, não podem cício do pensa ment o lóg ico e crítico.
dar con ta da cultura histórica adq uir: da . Quantos jornalistas, que fico.m Fazer hi stória com os alunos é também tmn sport,í-los no tempo: a
indlgnados ao constatar que os alunos do Segundo Grau não têm o reflexo h istó ri" fa la à imaginação, desenhando a figura do outro, dos outros. Uma
" 15 15" quando se lhes diz "Marignar.", .:;50 c.Jpazes de explicar quem turma de quinta sér ie compreende a democracia grega quando o professo r
lut a .... a contra quem em Marignan, e por quê? Outras interrogações s5.o Illilis to rna reais os escravos citas, que, com uma corda pin tada de vermelh ~o,
razo áve is. Num mundo cujas evoluções re centes foram brutais, os pontos empurravam os cidadãos para a ecc/esia, o orado r que se coroa de murta ,
de referênc ia tradicionLlis, qu e se enraizavam numa cu ltura catól ica c justiça popular da Heliéia; outra turm a e 5trcIllece ao sopro da "Grand e
:2
rUf;J.!, desaparecem. É verdade que os alunús n~ . ."\ sabem o que é um arado Ar mée", quando o so l de AuS lerlitz hcsit:! antc s de i!umin ar a vitó ri a.
ou -.Jn1 eSlCrroador, assim co mo n;1O sab.:m o que é um sacramento ali Assim, ora at ivos c co ns truindo a h istór i<l, ora sob o cnc;:lIlto da
Pe ntecos te s. É verdade que O próp rio calendário, rit mado por festas re- :1a rraçflo, os alunos se familiarizam com a v id a e a mo rte dos homens,
li gi \."lsas, to rn o u- se herm éti co para e les. Devc-se leva r em conta esta :: guerra, a paz, o poder. O ens ino da histó ria é, pois, uma aprendi zagem
CV\.1IuçflO? Ou, ao contr~r i o , o ensino da hi s tó ri ::l deve suprir uma forma- ..:ia li berdade, mas também da tolerância: c . . 'lllp re ... nder o mundo é afaslm
cá<.

". relioi o
osa em via de de saparecimentü ? S \.~r i :.: , no caso, a título de ...-, medo qu e na sce do desco nh ec ido . Mas. p ara que a tolerfllleia sozinha
co r.servaçã o de um patrimônio cultural. ~v1a s . pode-se tra tar a reli g iflo ::1;10 leve ao relati v ismo, a hi stór ia devc {:.! mbém dar a c.ada um o sent i-
c o:-_:o se trata um m o nument o hi s tórico? ::1 cn to de pertencer a uma co munidade: : !l iJ da a ullla geografia capaz de
O que ilustram ess as dific ul c ad es? TocL"'I enS!'lO é uma busca de :: preellder os territ ó ri os, a histó ria leva a p:ulilhar de um patrimônio e de
sentido, exp lícita ou implíc ita. P0r muito tentrO , o professor de hi s tó ria uma cu ltura, ;<;to é. de UI11 o: iste ma de imagens, de referências c de va lores.
140 P ASSt\OOS HECOMPO~"TOS QIH!.HÕCS 14 I

Es ta cultura dá uma identidade. Eb é também libertadora. Os alu- professor de histó ri a ensina também o ri go r crítico. Quando é nccess5 ri o
nos, subm etid os, quasc permanentemen te, a um flux o de imagens c de ordena r um di sc urso sobre o mund o, confusa mente dese nh ado pe: os
palavras não hierarquizadas, devem adqui rir pont os de re fzrência, grades furores de uma atualid ade lançada, sem hi erarq ui a nem recuo, para as
de le itura, um ol har c rítico. É po r isso, aliás, qu e é indispensável prolon- telas de tel c', isão, cnt ão a história pode ajudar a tomar essa di stancia
gar os progra mas até os nossos di as. Deste m odo, a hi ~ tória n5 0 exibe indispensáve l ao exerc ício do pens<l m c!l to li vre.
mais apenas os gestos das civilizações m o rtas ; ela afirma a con tinui düde
d:l hum anidade e ilumina o presen.te.
A definiçflo dos objetivos pe rmit e uma abordagem dos problemas
de progra ma. Deve-se percorrer rapidamente o conjunt o da his tóri a (pe lo
m e nos do Mediterrânco e da Euror;.)? Sim, pa ra que os alun os dominem
al g umas grandes referên cins. cronológicas e possa m situar os t.empos fort es
do desenvolvimc r,to histórico. Mas cs ta abord agem deve ser seletiva c
c\-Üar o enciclopcdismo (como diz J acqucs Lc Goff, " demas iada crono-
logia mata a c ronologia"); e la deve t'.1Tllb ém dei xa r ao professor um a
liberdade sufi c iente para que 'possa m od ular se u ensi no cm fun ç50 das
'I inte rrogações do presente; qu e redntú r de progr:l111a poderia im aginn r, há
~, apenas dnco anos, que seria preciso CVL)car a Bósnia-Herzegovina? Em
;.
seguida, os programas devem atr ibuir se u lu ga r natural à h istória na cional,
p.:.trimônio co mum de um povo.
No lycée, a história cont empo rãnca é indispensável para a formaçã o
do cidadão, mas deve ~c r possive.l rc tomar certos gra ndes temas dos
pe ríod os abordados no cc/lege. Entret anto, est:l abo rd agcm nã o pode se r
c o ncebida co rn o uma sucessão de temas especiali zados. A his tórin escolar
deve pern" l neccr " tolal" e inscrever-se sem pre num a trama cronológica.
Po r que, então, não aborda r alguns g randes momen tos da his tória da
civili zação ocidenta l (Atenas no século V, a França de são Luís, o sécu lo
das Luzes etc.), sem afaslar poss íve is incursões na China dos Ming ou
no s Andes dos Incas?
Mas não serão os programns .,... sC' mpre obje to de polêmica - que
lf;.::.nsforma rão, como num p.lsse de mágic;l, o ens ino da hi stória. Os docen-
te::::: e a m aneira como s50 focmndos s50 mais im po rtant es que os programas,
e a inda mais capital é a cocrêncin da miss~o que a nação lhes confia .
Estas poucas observações n5 0 cons titucm uma J ou trinJ . Talvez elas
permit nm medir objeti vos. O e nsi no da his tó ria ro ntri bui para co ns trui r
c idadflos enraizados num a co munidad e de mcmó ria li vreme nte escolhi da,
c :150 temerosamente preservada, sem arrog~m c ia, ab e rta a ou tras sol ida-
ri.;-dades ' jue nf!o a de naçüo. Assim. é neccssi.Írio que se cr uzem os
c:!.m inhos da part icipnrsüo I1lP 'la co muni d ade c os da lo le r5ncia. Mas o
~ . ---

=
-
UM

As Responsabilidades
do Historiador EXjJert
FRANÇOIS B ÊDAfUDA

Na verdade, IlrlO se lra/(l de Illodo alg ulII CO/1/ essa reivimlicaçli o


de alçar o historiador II pareI/te de áug ure da cidade, mas de afirmar
que a su a palavra, 11 f: observâll cia estrita das reg ras do ofício e em
resposta aos questiol/am entos do tempo presente, à parte des viá-lo de
sua vocação, é, por OlUro lado, perfe itamelllc legít ima, restituindo à
histó ria sua d ensidad e Sig ll ifi ctl llo ó? Co m e. disse bem A1idl el de
Cl1rtcll u, to da p esquisa histórica illscr e\<"e-se em algum lug ar li a so-
ciedade. Em fUJl çlio desse lugar socia l e d ~sse l1I '! io de ela!Jo ra çtl o é
que os questionamelltos se f ormu lam, que se defil/ em e apuram os
"
m étodos e esbuçam -se riscos e uma traj et ória.

De início, afi rmemos: pesqu isa sobre o tempo presente, fun ção de
exp ertise e Icsponsab ilidadc social. do historiador ca minham lado a lado.
Efetivamente, nossa sociedade, tão ap::lixon3.d:l por história e tão ávida da
intclig ibi lidade de se u pass ado, es t5 mais do qu e nunca ans iosa por
'. , compree nder os grand es dramas de sé.; ul o: na interseção da mem ória -
pa ra aq ueles qu e vi veram aqu ele tem po - c na da história - para as
ge rações que aprend e ram esses d r a m a~ nos li vros, mas que obse rvam em
toda parte s uas marcas abras adoras. O his tc riador se acha então intimado
a escl arece r o caso e a fo rn ece r um fio cond ut or, ali ando função crítica
e fu nção cívica - ;15 qua is a demandJ so~ial para mostrar-se ge ne rosa
ac rescenta mui lJs vezes uma função é tica. Temos aí, portant o, o modes to
pesqu isador proc1 anwdo expert, com ou scm Q sc u conscntimcnto. Ccrtam cn-
te, co mo rcssilltava rece ntc mente Geo rgcs Duby (Le }'1onde, 23/01 /1996 ),
o bo m historiado r deve cstar :ltcnto :1 tud .."). :. co meçar pcJa atc nção ao
mu ndo que o cc rca, mas pa ra e lc o cami:1ho é cs trc ito quan do prec isa
dcfc ndcr um lugar c dcfinir a sua missão rela tiva mclltc aos mi tos, aos
preco ncc itos c ~I S defo rm açõcs da co nsciência coleti va e da mcm ória
co mum . Sem pcrd e r de v is ta (! II C cle próprio contribui para ti claboraçflo
14 1:: P ASSADOS RECOMPOSTOS ' ComlJc[ências 147

e construção dessa consclencia e dessa mcmória, um a vez que nisso explicando CJue nem um nem outro existiram e que as suas biografi as não
consi~te uma de suas [u nções vitais na sociedade. passam de uma armaçtio l ?
Propomo- nos aqu i, apoiados em um exe mpl o cont -:: mporuneo - a De fato, na base do proced ime nto dos negaci.::m is tas, discernimos
his tória do genocíd io naz ista -, esboçar rapi damen te os ens inamen tos e três vícios redibitófl os. Primeiramente, p or trás de um a proclamada
os limites de um procedimento um pouco incorr. um, no qual o saber do c ient ificidade, tod os os seus escritos refletem as ap:uências enganadoras
histn ri adof, em IJ ga;- d('. distribuir-se unicamente no ca mpo c ien tífico, é do método hipercrítico. O procedimento consiste em recusar em bl0co a
solicitado a intervir na esfera pública, a fim de se pronunciar sobre os massa de document ação, apo nt ando acusatoriamentt: as lacunas ou os
g raves riscos da sociedade diante de um amp lo processo negac ionista erros que esta pode comportar; e e m desqua lificar todos os testemu nhos,
conduzido por falsificadores da h istó ri a. argü indo a inexati dão de detalhes mínimos. Como se após um jantar em
família, com o pretexto de q' ., ~ um dos con vidados se enganou ao re latar
Revisionismo e abolição da razão o cardápio, se deduzisse que o jantar não aconteceu! Chega-se ass im -
Na verdade, n50 sr: trata de modo algum com essa re iv indicaçflo pecado grav!ssimo con tra o método his tóric o - a seleciona r à vontad e nas
de alçar o his tor iador à pa tent e de áugure da ciré, m.as de afirmar que s ua fontes, desprezando a maior pa rte delas alegando rigor crítico, a calar de
palavra, na observância es trit a das regras do ofício e em resp os ta aos modo s i ~ t einát ico os dn c10s que vão de enco ntro à tese adiantada, a ignorar
questionamcntos do i ~P.1FO present::, ~ p.::: te d ':'t:" vi~ -l o de sua vocação, é, desenvoltamente qualquer contexto social. po!ít ico, ideológico, que final-

I,:
I .
por ('ut ro lado, perfeitamente legíti ma, rest ituindo à história sua de nsida-
de signi fica nte. Como disse bem Michel de Ce rteau, toda p-::sqdsa his -
tórica inscreve-se em algum luga r na sociedade. Em função desse luga r
mente nunca s50 levados em conta.
Outra fac hada do Potenkin: para além das apa rências de um ... argu-
mentacão fortalecida por uma lógica ríspida e pretensiosa, n.:: verdade,
soc ial e desse meiü de elaboraç50 é que os qu es ti onamentos se form ul am, quand~ se examinam de perto os textos ncgacionistas, encontram-se neles
que s e defin em e apumm os métodos, e esboçam-se ri scos e um a traje- somente viperinas e infundadas denúncias de car{tter repetitivo ou ladainhas
tóri a. A isso se deve a renovação a um rit mo veloz das problemáticas de afírmações peremptórias e desartic ul adas, sem qualquer enraizarnento no
co ntcmpo râne::!~ sobre o totalitarismo, o r:::l c ismo , o Estado, os direit os te rreno de uma história dominada por uma mec:lI1ica implacável e plena de
hum anos e o crime co ntr a a humanidade. Tudo ic;so tendo como pano de g ritos e sussurros, de aflição e de piedade. As fa lhas de raciocíni o
fundo a crise do huma nismo e da concepção do homem como figura supe rabundam aí. ri im agem desse \Vie de Freud , qu c Nadine Fresco citava,
soberana do universo. em um notáve l artigo nos Tcmps Alodemcs [Tempos Modernos] ("Les
No que conce rne ao naz ismo, a primeira impostura dos negac ionistas redresseurs de mort" [Os reden tores da morte], 1980), no qual desm ol, tava
é se arroga rem o título de revisiollisfas: \.1111 termo em s i mesmo mais do um a um os mecanismos da s "fallrissoIlJl cries": A tomou emprestado a
que honroso, elogioso mesmo, um a vez que car ~c l eriza o procedimen to de B U111 caldeirão de cobre. Quando o devolv e, 13 se queixa de que o
base do trabalho histór ico. Con tud o, da parte dos defenso res obsess ivos do caldeirão tem um eno rm e furo que o h.1ma impres t(lvel. Obse rvem a defes a
anti-semitismo, trata-se exclus ivam cnte de ncg:!: um dos acont ec imcnt os de A: " l !!.: Nunca pedi caldeir50 algum a B; 2~ : ' 0 ca ldeiriio tinha um furo
máximos do nosso tempo, um dos mais indubit 3veis, um dos mais traba- quan do B me emprestou; 3!!.: Entreguei o cal de irão intacto". Como não
lhad os: UI11 conjunto maciço de dad os inco nt orn3\"cis, atestado por deze nas co ncluir, dia nt e de tal arb itr:uied ade. pel o charlatan ismo?
de m ilhares de documentos, de testCl1111llh3S, àe- vestígios; materiJis, ao Em terceiro luga r, o neg3cionismo por in teiro repousa num esq uema
mesmo tempo, coerentes em su a dispersi"io C con'."e rgent es em sua d iver- histó rico tüo gas to quallto s im plista: :l lCori3 Jo comp lô o co nstitui de pont a
s idade: em suma, um imenso apanHO erudito. O que se poder ia d izcr de a ponta. De acordo com a tese dcsell\'olvi d:1 ad / 1fIf/SCal1l, o ge nocídio dos
um indivídu o que ti vesse a prctcnsi"i o de "reve," :l história das C ruz adas, judeus nüo passaria de lima gi gant('-:,ca mentira imaginada e construída,
afirmando qu e elas nunca oco rreram; a hist6ri a de J oa~a d'Arc, pretendc n- int eirament e forjada devido a um a al i:lI1ça monst ru osa entre o capitalismo
do que ela nflo fo i queim ada; a história de C r\.")Il1\Vell G U de Napolei"io, impe ri alist;, e o :;ollluni::mo sta linista. devido também f, cum plicidade dos
\48 P ASSAOOS RECOMPOSTOS ComlJcfências 149

vencedores e pse ud ovítillHls e à cadeia dos Estados, dos governos e das da s ubjeti v idade do hi s t ~ riad o r a ponlo d e permitir reesc rever de qua l-
opiniões ilusórias, tudo isso sob o patrocínio de Israel, corydutor do j 03,O quer mod a a história . Po is o esse ncial do proced i!l1ento era a de c ifra-
maléfico do processo, em detrimento da pobre Alemanha vilipendiada e ção das compone ntes do passa do, se u enc.adeamcn to, sua hierarqui za-
explorada até o fim do mundu. Ora, qua lquer um sabe que todas as ção, em suma, sua part icipação no conjunto do csquema interpreta tiv o.
explicações his tóricas baseadas no tema da conjuração e do C'omplô tra- Nessa ópti ca, tanto era legítimo prel~njer qu e d e t crm in ad~ batalh a ou
duzem não so mente uma completa abdicação da raz ão, mas pertencem, at o Jipio mático tinha apenas uma importância muito secundária rela-
por natureza, ao campo da obsessão e do primitivo em busca de um bode ti vamente às gra ndes fo rças col etivas e aos mov imentos de lo nga
exp iatóri o. Ac rescentemos que, se em cert as acusações ritu ais proferidas dura ção, quanto também nã o oco rreria a nin guém apagá- los da histó-
cont ra maqui avé licos orquestradores clandes tinos (franco-mações. jesuí- ri a, negando sua pró pri a existênc ia .
tas, o Komintern ... ), poderíamos ter a il i~s50 de desco0 rir a participação Mas quando foi preciso, dian:e dns teses ·negacionistas, conferir
de minorias , agindo estruturadas em organizações secretas e dinâmicas, de maneira pública e notória urna c ha~ ce la de cientificidade aos "fatos"
os negacionistas, no q';e lhes diz respeito, imag in am um complô englo- melho r es tabelecidos por meio séc ulo de pesquisa his tórica, e depois
bando milhões e milhões de pessoas dos países, das formações sociais e transm itir na sit uação pedagógica as principais aquisições naqu ela pes-
dos sistemas ideológicos ferozmente host is uns aos outros. Pergunta-se qui sa 2 , vi-me confrontado ao difíc il problema do par subjeti v idade/
qu em , com exceção dos anti-semitas man ifestos, pode dar crédito a objetivid ade. Lembrei- me, entã o, do qu e l-i~nnah 6.rcndt escreve u num
elocubrações tão delirdlltes. cél eb re artigo de 19503 sob re a ap lic.açã0 da ciência social <10 estudo
d o fenôm eno co ncentmcionári o: esse fcnÔrtlCna, JizÍJ ela, obr:ga os
A objetividade dos btos históricos pesqu isado res em ciências sociais c os his toriad ores "a reconsiderarem
Mas é preciso ir mais adiante. Pois o que cstá fund amentalmente em seus a priori fundamentais".
jogo é o probl ema da objetividade em história, uma vez que a resposta dos Observemos qu e, paralelamente, o retoCI1Ç> inflexível do aconteci-
historiad ores profissionais con~iste em contrapo r a solidez maciça dos fatos mento na historiografi a contempor5nea obrigou a reabilitar o estatuto do
às a!lf111açõcs gratu itas dos negacionistas. AJiás, qu:::.ado se recorre a um factu al, que desprezamos muito depressa, assirnilando-o aos prc'.:eitos
cxperr. se rá que lhe pedimos outra coisa sen50 que emita sua opinião sobre pos iti vistas. Tantc que todos os pro fi ssionais de Clio estão prontos a
a base de dado;, objetiva, única fiadora de sua c redibilidade? Ora, justa- admitir que os limites da objetividade em história dependem do próp rio
mente o passado seria objetivável? E o que é um -fato" em história? Velho objeto histó ri co: seus limites avançam ou recuam de acordo com a na-
problema na verdade, que nesse estágio recupera toda a sua acu idade e que tureza desse último. Por outro lado, o fato _ em vez de encontra r-se r.m
é importante apreender no corpo a corpo. estado bruto no interio r de não sei qu~l dado inscri to na natureza, deve
Qu t:' me permitam citar aqui a minha expe riên c ia pessoa l. Como se r definido como um:.l rclaçti o entre fenômenos, eles própri os ates tados
a maio r part e dos histo ria do res de minha geraç:!o, semp re cons id erc i, por vestígios e s inais visíveis.
na linha de R,lymond Aroll e de cncontr0 ao~ p rece itos positivistas, A partir daí a operaçüo his tóri c3 cons iste, após tcr reunido, criti-
que (oda interp rc tação hi stó ri ca depende de um s is tema de referênc ia cado e dissecado o co njunt o dos docum entos disponíve is, em estabelecer
subj:::!cente e que, por co nsegu int e, qualquer :m5l ise de um "dado" encadea mentos entre os diversos componentes do objeto es tudado - de
remete à subjetiv idade do hi stor iador. Em Qutr3S p:ila v'·;Js, os "fa iaS" 3cord o com um método adap tad o a cada ca:o:o - e a construir um discurso
o ri gin 3m-se de lima escolh a, pois já eS I:io con::::!i tuíd cs pe la introduçJo at ri bu indo-lhes coerência e sentid o. Por ou lro lado, n:io esqueçamos a
de um se nti do na "objetividade", ai nda que Fro\'enham de mater iais dimensão transdisc iplina r. ou seja, o co ncurso precioso - e "objeti vo" -
üriunJos da s somb ras dos arqu ivos e re\'d.u,i ..."' s pelo engenho do his- trazido para o campo estudado pe1o. ~ ciêr.cias auxil i:Hes, lais como a
toriador. Conll,do, ess,l his lo ric ização n ~IO i<.! d~r. de modo algum, num a rqu eologia , a lingüísti ca, a história das técnic,ls, a psicologia, a medicina
re lati v ismo ge neraliz t'do. (' 111 que ')s dad os ser iam mal eá veis ao sabo r o u a bi ologia. Em suma , é prec;:;o ress:1 ltar "i go ros:lIne nle qp e a pesquisa
150 PASSAOOS RECOMPO!>"-OS ComIJC!rér.: ills 15 1

em hi stóri a não é compa tíve l com qualquer coisa. Co ntra as pervers:ls o primeiro cân onc consis te e m reconhecer a h istori c id ade do
tentati vas dos fal sificado res, s ua dim ensão c ientífica, por imperfe ita qu e objeto h istó ri co a (re)co nstruir e a explicar. Nesse caso, nin g ué m
sej a, deve ser ressaltada com energia. Não é essa, ::Iüís, r. condição de contes tará a realidad e de um elo de dependê ncia entre a escol ha dos
validade de qu alquer expertise? fatos e o ato de int e rp~etação. Mas o que se procura primo~dialmente
Out ro ponto a se r levado em co ns id eração: quand o se aborda um através do discurso, e a fortiori co m a experlise do hi stori ado r, são
fenÕn-,C!10 co po rte do ge.lOcídio naz is ta. é claro qll e se deve pri v ileg iar, os s in ais por mei o dos quais lima sociedade se pensa, se c xp rit11 ~ e se
na tra d iç ão de Durkhe im e de Tocquev ill e. de Vidol de la Blache e de hi s to ri c iza . Mas ass im como a obj e tiv idade não se ~onfund e com a
Max \ Veb er, a noção de o rga nização, de est rutura ou de sistema, a fim indi fere nç a, a histo ri c ização não se confu nd e co m o rela ti vismo ab -
de ev itar pe rd e r-se na poeira dos aco ntecimentos . Sem minimizar a soluto à moda pós-mode rn a.
dimen são subje tiva no trabalho do hi sto riad o r, tud o conco rre para qu e .
Segundo câno ne: concei tos de base d0 proccd ilncnto
. hi stó rico -
tempo, mem ó ria , testem unho, libcrd ade - nã o há como joga r fo ra, de
sc afirme, se m rode ios, que a hi stó ria deve ser tão obj eti va quant o
possív el - a inda que se tr~. t e nesse caso de um vo to ir realizável 4 - cm repent e, a noçfi.o de verdade, procla mando qu e, nesse do mínio, só há
vez d e pe rd er-se nos me andros das dcsconstruções pós-moderna s, nas verd ades rela tivas e pa rciais (e mesmo, às vezes, partid árias) . Essas
quais só flut uam ilusó ria s rcprese nt <.l çõcs, frágeis c mbarcações derivan- verdad e:; con tingen tes e instrument a is perturbaram, sc m dúvida, uma
do ao acaso das co rre r.t \.:s da ficção. DI.! r..l::. i:; a mais - e o fat o é hi stó ri a frá gil e falívr:l , mi.ls q;Je se quer acesso à verdade e busca de
s ignifica ti'/o - dent re os defe nsores da escola pós -moderna, até mesmo sentido. Seria isso uma razão para entrega r-se, sob o efeito de uma
os rel a tivi s tas mais radicais tiveram o g rande cuidad c de aii rm':1f ~ u a mod és ti a cxcessh'a, às s uspeitas e às dúvidas epistemológica.:>, até mcsmo
distâ nc ia do negac io ni smo. Ass im, e les rc c usa ra m-se cons tantem ent e a ao masoqui smo? Não minimizemos ig ualmente a dimensão científica no
duv ida r da expe ri ênc ia úni ca que fo i a S hoah, exp eri ência para a qual trabalh o do histori ado r: quero dizcr o método críti co com se us processos
ad rr.item qu e não fo ram encontrados a té então modes de represe nt <.lção tes tad os e seus ins trum entos bem afiados. Aí é que res ide ;) verdad e iro
adequad os. No entan to, na lógica rela ti v is ta à H aydc n \Vhite, tão c iosa profiss io nalismo em !lisló ria - e não em algum a fi li ação corporativa à
de libera r-se do fet ic hi s mo dos fat os , 11 ;10 há ou tra rcalidade a nã o s('; r c ategoria dos píOfessnres de histór ia. A!ina l de co nt as, diant e da crise
cs t:!, c o ns truída pelo hi storiado r cm fun ção d~ S U ~1 se ns ib ilidade, de s ua atual dos obje tos hi stó ri cos e do perigo de um a hi stória às mi ga lh as , 11m
ideolog ia c de su a cu ltura . Ass im como se rejeita, em li tera tura , a fixid ez dos r e l~~éd i os não es taria numa reabi litação elevada e f irme do princípio
do texto o u, em fil osofia , a fixidez da iil1gu agcm, do m esmo modo, em de ve rdade ? O qu e, co m isso, garantiri a um acréscimo de cred ibil idade
histó ria, acha-se ba nida a fixidez do passado_ uma vcz que um a " rela- à experlise hi stol iado ra.
tividad e inexpugnável " deco rre do recurs o 3. n arra ti va hi stór ica co mo Enfim, na med ida em que toda busC":J da ve rdade es tá ligada a um
meio de represcntaç;1O desse pass<.ldo, todo -iCxtO" tornando -se e nt ão corpus de valo res, a interface entre hi stó ri:! c ética, enqu anto um a e o utra
"pre texto" e toda hi stó ria, ficção. Apes ar de tudo, uma co isa é qucrer permanccem sepa radas por uma linh a de demarcaçfio nítida, pode mos trar-
pí:.:. tic ar um hi stor icismo a todo custo, o utra, ~ qu cre r apagar o p'lssado s: tão fecunda qua nto necessá ria, contan to que seja enunc iada clarament e
neg.:lI1d o q ue ele tenh u jamais cxistid0 5 . e in tel ige nt emente artic ul ad<.l. Tanto mais q uc , qunnt o ma is o obje to his-
tó ri co res ponde por ri scos fund:lmcIlta is l::lis como a vi da e a morte do
o prinCÍpi o ela , 'e relael e hom em, n1<.1i s o di510go parece necessári o. Ali5s, diante de scmelhan tes
Para te rminar, convém depree nd e r os três dlll o ne s que qualqu er ri scos, co mo poderia o d iscurso hi s tó rico, o bse rvando o ri go r e a sob ri e-
exr'~ r t ise hi stó ri ca deve res pcita r - selll fal<tr. ev id cnt emen te , dos impe - dade de praxe, perma necer im pessoal e gél ido? Que ira-se ou n5 0, a
r:. :. ::\"os se mpre ca tegór icos da deo nt ologi:l p:ç i iss io nal e das exigê nc ias his tór ia é, c deve co ntinuar sendo, lima ":isci pl ina hum ani sta.
da esc rita, que requ er lIllla g rand e leg;bil idad.: c uma .,(cnção se m trég ua Na ve rdade conhece mos as m ú lt ipl ~" de ri vações q ue , no passad o,
à cOl1lunicaçfid' . a co nfu sfio e ntre hi stó ria e éti ca nüo deix o u de susc itar, qu er sejam as
152 PASSADOS RECOMPOSTOS
COIIII)(' {êllcias 153
" lições" de ur:1a históri" moralizadora e pregadora ou o cin ismo maquiavélico 4 Pode-se notar que os tota lit:lris mos contempor:mcos, na sua vers50 comu nis ta como na
de uma história rr::GuziJa à Realpolilik, ou ainda, uma visão shakcspeariana ~u a versiio nazista, contribuíram paradox:l IOlentc para encor'lj:lr uma volta ;1 idéia de

do por: ir dominada pelo reino an5rquico das paixões individuais. Não é objetividade, na p.led:d:J. cm que eSla ap:!~ece u como o antídoto ao conhecimento dos
es píritos pela propaganda assim como às fabulaçócs e mentiras ollcia is. Dessa aspira-
menos legítimo, quando se trat~ de acontecimentos de tal alcance e signifi- ção a dados objetivos, conri:í"e is c segu ros, dá testemunho o recente artigo, " Lcs
cação, querer inserir uma dimensão ética, que poderia s ituar-se sem muita Allllfllcs vies de Mosco u", do historiador ru s.c;o Youri Besscme rtny, Alllwles ESC,
1992, pp. 245-259.
dificuldade no interstício criado pelo c!istanciamento entre o objeto histórico
c O sujeito historiador. Pois então o acontecimento assume uma dimensão j Ver sobre esse assunto as estim u!:H1tes an:íliscs C renexões (uma delas uma contribui-
ç50 de Hayden \Vhite) in rriedl:inder (ed. ), Probil/g Ille Limils of Rcpre::elllalioll:
meta-histórica ao mesmo tempo que sua dimensão histórica.
II11ZislII {//ul lhe .. Filial SOlll/ioll", Harvard Uni"ersity Press, 1992, Cf. também J. Young,
Nessa via, referia-me naturalm ente às intuições de Péguy nas úl- H'ri/il/g (/Jul RClI'rilil/g 111<: N olocousf (198S), cn s.:l io de apricaç~ 'l das teori:J.s de \Vhite
limas p5ginas de Clio onde, refletindo so bre "o mistério mC'smo do acon- aos documentos sobre o ge nocídio.

tecimento e d:l história", ou melhor ai;1da, "o mistério uo acontecimento ,. Como exemplo de recurso aos hi sto riadorcs-expens pode -se também citar, numa atua-
do acontecimento", introduz, na fala da musa, este pensamento: "Há lidad e ainda próxim<l, mas em um contexto tOlal mente diferente - o caso Touvier qu e
apalxollou a opini50 rrancesa - , o C;ISO da comissiio de especialistas re unid:l pel o
pontos críticos do acontecimento como h:'i ponws críti cos de temperatura, c;trdeal Decourtray e de se u relatório (Toll l'ier crl'Eglise, Paris, r:lyard , 1992), cujo
pontos de fusf\o, de congelamento [ ... ]; de coagulação; de cristal ização". procedimento e ri scos, ;lIi;ís, evoquei (Le Débat, n.70, 1992).
E ela continua, "há no aconteçim e:1to certos estados de 50brefusão que
não se precipitam, que não se cristalizall1. que não se determinam senão
pela intr0dução de um fragmento do acontecimento [cturo", Esse é o
segredo do acontecim ento, fonte de perturbações e renovações tão pro-
(undas que, "de rep ente, vamos dor eni um novo povo, em ... In novo
:1
mundo, em um novo homem". Bas ta aplicar semelhante visão a0 acon-
tecimento Shoah para avaliar o quanto podem pesar as míseras denegações
de alguns falsificadores nu que eo nce rne :1 esse :!.pelo vindo dos extremos
de um saber hi stó ri co pleno de sentido e de pode r de meditação.

Noras
I o te rmo armaçrio (sl/percllcrie) é o mesmo utitiz:Jdo p:lra des ignar o genocídio dos
j t.: ~e u s
por um dos chefes de fita do neg:lc iolli:'lll O. .-\rtlmr [3 rulz, no seu li vro n/ c
Gr.:ar /-Ioax Df filc XXIII CCJlfllry (obse rve-se qu..: / /O(;.,x pode se r traduzido por "farsa"
"'I (";ro" "canutar" ...).

Fo i o que se esrorçou po r r:lzer, por um l:ldo, o cotóc;uio inlernaci on:lt org:lnizado n:l
1 !
S ...'\ rbonne elll 1987 sobre A polílica lIazis((l ti.,: c:xll'rmillio, cuja~ :lIaS foram edit:lda s
I p...~ r Albin · t-. lichel em 1989, c, por outro, o opÚSCUt ..l redigido em homenagem aos
:: .000 professo res de hist ória dos liceus e coh:.;;ios (r:lnceses, sob o títul o Lc Naúsmc
I t!{ le Géllocide, produ zido e dirundido pel:ls l'diçõc:;. Nalhan em 1989, reeditado em

ti .. :o de bolso pela s Prcsses Podei em 1<)92.

j H. Arendl , "Sueia! scicncc tcchnics and th e study of concc lllration camps", Jcwisll
S.x:ia{ Swdics, XI I, 1950, pp. 49-64.

.' ., ~~ ' .; .
"" lLA11 111 ~...- IUlUlA! 11 I Ul1Itt •
- .-.1 ........
. ~
DOIS

'i
o~"Tesouros" da Stasi
ou a Miragem dos Arquives
ÉTlENNE FIUtNÇUIS

A aberlllra dos arquivos das antigas democracias populares é motivo


de fascínio: a verdade por tanto Itempo escondida ,:staria finalmente ace5 -
sível? A manipulação desses {1.rquivos, mais do que a de ql/alquer outro,
requer exigência crítica e rigor metodológico, considerando o risco de se
cair Ilovamente lias armadilhas dos aparelhos totalitários.

Após a qu eda do muro de Derl im e O desmoronamento da RDA, os


historiadores e a opinião pública experime:llaram por algum tempo a sen-
,,'• sação de estur vivendo uma situação única e uma oportunidade inesperada:
de repente, tinham diante de si <Hquivos superabundantes c bem classifi-
;1 cados; ao mesmo tempo, uma administração competente c liberal respondia
., ,. p rontamente por eles, quase sem destruição nem 'Solução de continuidade .
d
I Tratava-se não aper.as dos arquivos da temíve l polícia política - a "Stasi",
..! com seus seis milhões de dossiês indi"iduais, mas, mais genericamente, de
IOdos os .arquivos produzidos. por um Esw.do qUe tinha a mai. ;a do papel
e do documento escrito, e do qual ninguém podia intitular-se herdeiro ou
r defensor, uma ve~ que ele literalmente implodira, antes de vir a ampliar a
República Federal e ser absorvido por ela.
As esperanças suscitadas foram imensJ.s : depois de quarenta anos de
uma penosa ditadura (ela própria sucedem~ . ). aos doze anos de nazismo),
c que, à medida que sc burocratizava c se enfraquccia, recorrera - com o
concurso de um aparelho hipcrtrofiado (SO.OOO permanentes c pelo menos
150.000 "colaboradores oficiosos") - sistematicamente à vigi lfincia poli-
c iai, ~ denúncia, ~l intimidaçiio, estabelecendo como sistema e princípio de
sobrev ivência a prática do segredo, da suspei ta, do fichamento, poder-se-
ia enfim, pensava-se, mergulhando nos arquivos, reapropriar o passado,
\'oltar a ser senhor de um~: histflria da ql!:l l se havia sido dcspossuído.
Poder-se-ia compreender o que tornara possível a ditadura, ex plica r paro
s i mesmo como ela funcionara e porque ha via durad o tant o tempo,
I S6 PASS/\ OOS RECOMPOSTOS ComIJcrêrlcias IS7

des mascarar os ,:ulpados e os cúmplices, em suma, não somente fazer brot<lr profunda do que se pensara até então. O terceiro relaci ona-se com as ·
'I
a vcrdade (po is o desmoronamen to do regime c seu balanço de falência dimensões tomadas pelo al.lO 1968 na RDA - com os esforços desenvol-
I:
Jllostrariam com evidência absoluta que tudo aquilo qu e O regi me dizia de v idos prontamente pelo Es tado e o Partido para ,~bafa r ainda em embri3.o
I."
s i mesmo não pa<;sava de ilusão) mas, ao mesmo tempo, libcrta r-se. toda forma de contágio ideológico e de contestação, para sufocar qua lquer
Ferigo de derrapagem, j)ara reforçar a ap:-eensão da populaçflo, das empre-
o ilusório segredo dos arquivos ~3S e da juventude, para aperfeiçoar o si!;tema de enquadramento, de con-
Quatro anos se passaram depois dessa lo uca esperança, e é forçoso trole e de domínio exercido sobre os espíritos, para finalmente convellcer
reconh ecer que as dece pções são coiu p ar5veis à des·p roporção das expec- a Un ião Soviética e os outros países do pacto de Var~óvia a intervir mi-
ta tivas do ponto de partida. Confrontados a possibilidades inesperadas , litarmente na Tchecoslováquia.
mas também a problemas insusneitados, ., hi stor iadorc::; e usuár ios (vítimas Muito rapidamen tc;, no entanto, renuncia-se a essas pre tensões e
da repressflo que consultavam seus dossiés individu ais, tribunais que começa-se a perceber que tud o nã o é assim tão simples, que os novos
deveriam pr Ol~u nciar-se sobre a cu lpa dos di gnatários e dos agentes do arquivos não falam a verdade por si só, que, como tod os os ou tros
antigo regime, administrações que teriam de ger ir a herança da RDA) a rquivos, eles devem ser submetidos a uma crítica exigente das fontes,
tiveram de redescobrir, nfIo sem dificuldades , o realismo, e aprender a que seu manuseio só pode ser fe ito se forem respeitadas as prec<luções
mooéstia. éticas e metcdnlógica!) c1ei"iler.tarr:s, e -iue mesmo bem uti lizados, e
A paixã'J com que todos se puseram a trabillh ar n50 deixou dc dar lnterrogad os a partir de questões pertinentes, nflo dispensam o histori-
re.:ultado:::. Ao laco dos <Icontecimentos mais espeta.:ulares e Ge maior carga ado r de seu trabalho habitua l de recoTlstirui!jflo e de in terp retação - e
emocional (exibir as estruturas de vigi lância do regime e da s ramifkações não têm resposta para tudo. Quatro exigências se depreen dem através
de espiontlgem interna, identificar " informantes oficiosos" dC.), evocar-se- -desse reexame.
d 5, a título de exemp lo, o trabalho de reexame c de reescrita ~tualmentc; em A primeira é ressaltar a imperiosa necessidade da crítica das
I
'L andame nto - devid o exatamente à abertura dos arquivos - de três momentos fo ntes. De imediato, efetivamente, os usuários, ·inicialmente arrebatados
essencinis da histó ri a da RDA. O primeir ..... d iz respeito à história da repres- pelo entusiasmo diante das fontes abundantes c livremente acessíveis,
são stalinista, não apenas co m a reco nstitu ição de suas dim ensões maci c:;as, $ão rem etidos às regra s elementares do ofíc io, dificult os amenle
II arbitr;bas c assassinas, mas ·tamb ém com todo o trabalho de reestruturação edificadas por gerações de prática hi storiadora: Quem cons tituiu as
dos memoriais inst::t1:Jdos nos ant igos campos de conce ntração de fontes? Em que co ndi ções? Par~ qu ê? O que expressam? O que dizem,
Bu..:.henwald, Oranienburgo/S:Jchsenhauscn e Ravensbrü ck, alçad os pr:la o que não dizem? A mai or parte dos arquivos da ROA são efe tivamente
RDA à categori a de santu5rios da resistência com uni sta e .mtifascista, e nos :3 rquivos da superes trutura político-administrativa-policial, produz idos
q '!~ is se qu e r pôr em pr<Ítica agora uma vis.Jo m:lis diferenciada das coisas po r um reg ime de tipo autoritário e ideológico, que se serv ia de modo
e t:lt egrar o período poste rior a 1945 , sem com isso s itu ar no mesmo plano ~ast ante int enso da propaga nda política. Todos, por essa razflo, inclus ive
L.. ':: ::mos 1933-1945 e os an os 1945119 ":' <), : ~)g9 . O seg undo momen to ~"""\s mais secret os, encobrem tanto quant o rc,·e l:lm. Os arquivos da políci a
CO:1cerne ao levante de junho de 1953, qu c nos dias de hoje parece ter sido 'I. " "\ u os relatórios dos " info rmantes oficiosos", por exemplo, têm também
be:n mais do que uma revolta ope rária cOntr:1 a ampli aç ão das normas po r função acobertar aque les que os redi ge m, fazer com que seus autores
re:'e rent es aos operários (13 const rução ci,· il qu" tr;'balha v<lm na construção s.ejam tid os por efici ent es, se nd o, o ma is das vezes, redi g id os de mod o
d;.:. Stalinallce, j á qu e veio dar numa p o liti z:H:~i ~"' ex trao rdin ari :l!1)ent e ráp ida '1 ue agradem Jlque les qu e os vão ler, p:lrJ. qu e se obtenham vantagcns
d I) movimento (com conv ocaçüo de cki ç õc~ li vrc:. e de reunifi caçüo), ?J. ra seus aut ores, promoções, ou s impl cs ment e tran qü ilid ade, e para
~:_:·.h :ltl do O interior, as pequenas ci(b dc::, e l!::~:1 parte do campo, c Illergu, .:: ue comprometam terceiros sobre os qt.:.:lis poder-se-ia, em segu ida,
Ir.::.ndc o partido comu nista - totalmente desampa rado t1ianl e de um leva nt e f :lZer press:i o. Em tal re g i!ll e de suspe ita, :ic repressüo cOlls wnt e, mas
qt.:.e nfIo prev ira e Que não chegava tl co mpreer.de r - numa c ri se muit o mais m uitas vezes interm ite nt e, tud o é di ssimulação, tud o tamb ém é expressão
158 PASSADOS RECOMPOSTOS
Competências 159

de desconfia nça , de suspeita. Deve-se, por essa razão, cons ide rá-lo
imagcm que o regime queri a dar - ao passo que convém, ao contrário,
Lomo a palavra do Evangelho? Acred ita ndo-se flue, indo ao cerne do recupcrar sua complexidade, s uas con tra d ições, suas discordâncias.
s is tema c abr indo os doss iês ma is sec retos ter-se-ia enfim a verdade
7
A terceira exigência cons iste em ressaltar q"Je as fo ntes não d izem
obj etiva, a prova irrefutáve l, não se tenta antecipa r a decepção, ou , p ior, tudo, não podem di ze r tud o - mes mo quando as lemos escru pulosamente
n50 !'e corre o risco de cd r na arm ad: lh a q ue cons is te em pensa r qu e c fo rmul amos as perguntas certas. Num s istema em que controles e vi-
hav i" um maes~ ro clandestino que rege ria t'jdo em segredo, um grand~ o il ânc ia são for tes e múltiplos, todos aq ueles que estão disiantes com
~
m:mi pu lador que puxaria os cordões das ma ri o f. etes? Com isso, não se relação à linguagem oficial e às norm as d o EstadlJ evitam expressa r-se
es tari a sucumbindo à teo ri a do coniplô em que acred itavam prec is am en- publicamente, só deix am poucas fo ntes escritas (são numeros,?s os teste-
te (o u fingia m ac redita r) os d irigentes do regi me? Nnda poderia ser pior munhos nesse sentido de diss iden tes, mas também de pastores protestan-
do que cons ide rar ao pé da ietra o que d izem os arq uivos, po is com o tes) ou masca ram sua di fer~. n ça sob as ap.:!fências da conformidade. Não
pretexto da denún cia puri ficadora, ca ir-se-i 3 na arm adilha qu e se pre - esqu eçam os, cnfim, que toda um a sé ri e de processos essenciais à com-
°
tende denun ciar, ac red itando na im age m qu e regime defunt o quis dar preensão lia his tóri a real da RDA fora m t50 disc retos no seu desenrolar
de s i mesmo - ao passo que, precisamen te, as cond ições de se u des mo- (cond ição de seu sucesso posterior), tãe s ubterrâneos, que o aparelho
ronamento demonst ram a sua vaidade. A leitura dessas fontes não se policia l, po r desenvo lvido e cu rioso que te nha sido, não os perce beu.
improvisa; ela é ,lt-! par!icu l :::.rn;cn!~ difícil ;Jara os le ito res ocidentais Q uando e como se deu o desligamento emocional de numerosos habitan-
t que não passaram pela expe ri ênda imedia ta das sociedades socialistas, tes (finair.lente majo ri tári os) da RDA, a passagem da adesão (total ou
•" de se us códigos e de suas linguage ns. Fa lsamente fami liar, sua língua p3 rcial) à s uomissão res ignada, depois à s imp les apa rência de lealdade?
,... I
,
deve ser pacien temente dec ifrada pa ra recuperar as intenções mu itas Quando e como esse d istanciamento secreto transformou-se em distancia-
vezes comp lexas dos au tores e as lógicas implíci tas de sua express50 mento ofens ivo, indo da r na afirmação da d úvida, o fim do medo e da
(c de seus s ilêncios), pois, aí, como em q ualq uer outro lugar, nada é mais s ubm issão? Por que, afina l, o aparel he de cont!ole e àe vigilânc ia nada
enga nador do q ue a aparência da evidênc ia. v iu? Como en tender que, como d izia Clcmenceau de Poincaré, esse
A ::;cgunda exigência - de uma b::malidadc ta l que sc tem pouca aparelho tenha sabido de tu do e nada er.tcndido? Tantas pe rguntas essen-
von tade de lembrar tão evidente parel.:e (m3s as si tu ações dc exceç50 ciais, e so bre as qu ais o historiador tem o dever de constituir sua docu-
c:!.racteri zu m-se também pe lo fa to de que nelas esq uccem -se freqüen te- m . . . ntaç50 - tcndo para isso o rec urso não somente às fontes escritas, mas
me nte os escrúp ul os e as ev idênc!as da "normal idade") - é não esq uece r 3S fontes orais (oral history).
que as fon tes só comcçam a fala r a partir do momento em que as A quarta exigêncin é finalmc nte uma cx igência ética, reqt;:! rcnd o

í inte rrogamos, e que a qua li dade das respostas que elas podcm dn r
c(.'1 incide com a qua lidade das qucs tõcs que se fo rmu lam. Típica dos
erros de óptica freqüen temente cometidos ( o u dessas más qucstões), que
do pesq uisado r que seja pa rti cula rme nte esc rupul oso e pruden te, e que
seja gu iado por uma concepç50 rigorosa da verdade histó rica. Essa ex i-
gênc ia de verdade é tanto mais imperativ3 quanl'J os riscos midiát icos,
ir::pedclll avançar na descobcrta, é a iJus5.o c;ue cons iste cm ver tudo em emocionais e pol íticos do ques tion:.Il11en rü ace rca do passado próx imo
função do fim, como se tudo es ti vesse de ::mtemüo cond cnado ao tra- mantêm-se fo rtes, e os reg imes defuntos, dos quais se deseja justamente
C~$SO e ao desmoro namento - o ra a RDA durou mais de quarenta anos mante r distância, faziam uso .abundante da reescri tura ideo lógica da his-
- . cons idcrando a pe rmanênc ia do regime dos primórd ios até o finl - tória e da ma ni pulação do passado. Num 1:J! contex to. não se pode, nüo
al' passo que convém, ao contrúr io, intcrr J gar-sc acerca de possíveis se deve não cu idar do que se d iz, e as d;ll1e nsões éticas do traba lho do
rl! pt uras/e tapas na cvoluç:io in terna (eonsid ..~ r:lr os qua ren ta anos como historiador tornam-se pa rt icularmente imperativas. Pois a história que se
U::l todo significa tomar ao pé da Ictr:l :.: :-:cç:io de permanência, pe r- tra ta de escrever ou de reescrever é, em mu jlos casos, a história de homens
manentcmente recriada pelo regime), ou essa out ra ilusüo que seriu a c mulheres que sofreram, que foram feridos, que estüo marcad os para
d~ ac red it ar que a re al idade soc ial e cul tural da RDA correspond ia fi semprc c qu e reclam :uTI por jus tiça.
160 P ASSADOS RECO~ I POSTOS Compclêncicrs 16 1

eXlgencia aut oc rít ica que os jornalistas começaram a fazê-lo depois do


o imprevisto e o continge nte? Camboja ou Timisoara. Mas a ques tão n50 se resume a isso. Mui to do que
Para além enfim desse retorno às exigências pdmeiras do ofício, aconteceu an tes c depois de 1~89 era efetivamen!e imp re visível ~ surpre-
surgem dois questionamentos profundos, um próprio dos alemães, o outro endente, novo e em ruptura - lembrando-nos que a história é també m fcita
de alcan ce mais ge ral, que levam a pensar que os requ estion~mento s d~ surgi ment os e inov:::.çõcs, de acasos c de contingência, de liberdad e e
oco rrid os atua lmen te são mais do que s imples ajustes . ce espontaneidade. A verdadeira quest53 que se formula desde en:50 é
O primeiro di z respei to ao luga r q ue se concede r. his tória da RDA saber como conside rar em sua justa med ida a dimensão do imprevisto, da
na histó ri a da Alemanha. Esses quarenta :mos àe his tó ri il efe tivamente não surpresa e do acaso na história, como repensa r essa última nas SUáS dimen-
são unicamente umil histó ria por escrever (ou por reescreve r), mas tam- sões de abertura e de contingência, como, por cons"!gui nte, modificar nossos
bém desafio de memória e um:',memó ria por .lssum ir - pelos alemães do modos de apresen tação e de escrita do passado.
Les te e também pelos do Oeste . Trata-se de um desafio que co ndiciona Mui to longe de proporcionar respos ta para tu do, a abe rtu ra dos
o sucesso da ·mificação alemã e cuja import3ncia nunca é demais acen - a.rqui vos va i dar, ao con trário, num chama do ao tr aba lho, à exigência
tuar, pois o que está em jogo, finalmen te, é ..1 integ ração do passado da me todológica e ética, à mpdés ti a, à humil dade, ao reques tionarnento das
RDA - em t3das as suas dimcnsões - cama parte co nsti tutiva do passado certezas adqui rid as. Em 1989, não foi somente o muro de Berlim que caiu,
alemão - sem qu e !",úr isso sejam requ es ti onad<ls as aq uisições da RFA e mas também -- ~o m eiam cs : :. pe!1as a [l OS dar con ta - uma certa mr:. neira
de s ua nova relação com o passado e com a hi ~ó ria (enraizamento europeu de pensa r, de fazer e de eserever a his tó ri a.
e ocidental , conversão democrática, rejeição ào nacionalismo etc.).
A segunda qucs tão ~o n s i stc em saber como pe nsa r o imprevisto e
reintrodu zir a cont ingência na escrita histórica... O ano de 1989 foi efetiva-
mente um a su rpresa tOlal, que ningué m I~avia prev isto - e o que vem
aco ntecendo desde então continua a frus trar os roteiros previsíveis. Essa
constatação é scm dúvida alentadora - uiOca q ue sejn na medida cm que
anula as teses sob rc o "fim da história" in vocadus durantc algum tempo.
I'vbs é preciso não se deixu r cnganar quanto às suas implicações profu nd as
c quanto <la fato de que tal constatação rep0c em qu es tão al gu mas das
legitim idadcs sob re as quais es tava es tabe lecido o trabalho dos hislori:::lo-
res: ela n50 soment e confirm a a incapacidade da histó ria de prolongar-se
em prospectiva, Ill<JS ainda reveb a prcc;lriedJde de nossos saberes, os
limites, a fra gil idade e o c;lr;íter profullebm cr,:c rebtiv o e dete rminad o de
n0~sas reconstru ções - ainda que seja cvidcnc:.:..ndo mai s ainda a docilidade
da história, a qucm se pode ped ir que exp lic;.ue tud o, e que se dcix a tão
f3cilmente instrumentalizar pelos poderes vi~cntes. Todo historiador que
tr:lb alha com iI ROA vê-se con frontad o e m U:-:l j,lOl1lento qua lqu er com a
ql\(..~ st;I O da ceg ueira da disc iplina: timid:ll11c r 'c colocada depois de 1989,

a qucs tã o de saber porq ue os cspecialistas U:J. ROA cri aram tantas ilusões
a :,cu respeito enquanto ela ainda vivia é ur.: :'l qu es t;lo que est:í longe de
ter s ido resolvida e para a qua l seria co nvcn lcn te que historiadores, cien-
ti:,I:1S polític('s e F ,: squ i sa ~! ores de ciências soci 3is pcns; lsscm com a Illes ma
O"

TRES

A Erudição Transfigurada

I, Ou VIER G UYOTJEANNIN

Durante muito temp o, a erudição manteria rela ções ambí-


guas com a his tória. A dii?lom á tica, a paleográfica Oll a heráldi ca
aillda eram, quando mui/o, ciências "a uxiliares", enquanto já
p articipe'Ja m lW mesmo plall o da renovação dos s uportes histó-
ricos mais atuais.

A erudição muitas vezes é mal j u]~ada. Sem ' ir além do Trésor


de la La/lgle Française [O tesouro na língua francesa], onde se lê
"
i:;dirct amentc o ideal do "ma is prcocuJn'ldo com cultura do GUc com

':1"
,I
' O
e ru dição" (Anatolc Francc) c, positivamente, a desesperadora aridez
in telec tu al do pesquisado r perdido em "'poeirentos trabalhos de erudi-
ção" (Simone de Beauvoir), Na melhor chs hip óteses trabalho gratuit o,
<
" li beral", a erudição serviria ape nas par.a proporciona r pra.zer a quem
a pra ti ca. b no eIl tanto, ela aparece de po.:nta a pónta no liv ro-mest re de
Blandine Barret-Kriegel sob re a pesqu is:J! his tóri ca nos séculos XVII e
X~,,' IIII. Não ve r nisso senão a última moda, capaz de misturar um
I I
indício de recuo e uma pitada de pós-modernismo, se ri a fácil demai".
Pois a erudição e as discip linas "auxiliares" da história, às qU ..tis ela
I ! freqüent emente se encontra associada, . ...,olta ram de modo infl exíve l,
tan to ou quanto exp licitamente, em num e["·o sos traba lhos históri cos: não
exa tamen te na prá tica, que nunca as deixa ra de lado, mas no di scurso,
,I que as rei v indicou, às vezes Co m os t enr~ção. O período medieva l, em
que vamos nos deter mais ·par ti c ularm e.n te aq ui, manifes tou -o ainda
me lhor pelo fato de s uas font es es tarem inicialmen te bastan te di fíceis
c dispe rs as pa ra que viessem n necessic.ar de um des ta cad o "aparato
erud ito", e bastante numerosas ti ponto je de ixtHern um vasto ca mpo
li v re para o trabalho do histor iador. A heráldica, a sigilog rafia, ou
discip linas mais auste ras como a paleog.:-afia e a dip lomá ti ca, vie ram,
puis, não mais alimentar "qu erelas de cr.uditos", mas con tri bui r pa ra a
reflexão c;ob r(' as sociedades medievais .
164 PASSADOS RECOMPQSfOS Co;-nlJClêncws 165

tratado - sob re a his tó ri a dos retóricos, que contrapõe à história cien-


Os gafanhotos do Senhor ]assemin tífica . O títul o corresponde a um programa: Duas maneiras de e:;crever
"Quantas montanhas dialéticas serão necessG.rias para elevar os a "história, ao passo que o subtítulo res trin ge ° campo (Critica de
espíritos, um dia, à noção de que, em históri~, é o 'fato' que vem a Bossuet, de Augustill Thierry e de Fustel de Cou/anges). Mesmo se o
i . se r a planta rara, raríssima, e por demais preciosa: quanto às • idéias', autor se perde um pouco no camip..ho, ele declara, faO prefácio, buscar
es tas chovem, fo rmigam, devo ram ~ verdade que se esforçava por um1 "~xp licaç5.o para o fenômeno psicGlógico" por meio do qual um
If crescer. Quem nos li v rará dessa praga de gafanhotos?" Na sua infeliz
respos ta a unl pesado ata<;, ue de Lucien Febvre 2 , I-Ienri Jassemi n, autor
espírito brilhante poderia passar ao largo das aquisições ria crítica (e da
"erudição), como uma constatação clínica que pode ter sido formulada
I de uma história da Câmara das contas parisienses na Idade Média, cum grano salis: "Chcguei" à conclusão de que as !eis que regcm a
replicou dand o de certa fo r!.~a o testamento espiritual ge um pos iti- inteligência de um his toriador f:lósofo, e aquelas a que a inteligência
vismo declinante. A aposta ultrapassa o âmbito de uma obra que se de um erudito obedece podem ser às vezes bastante diferentes, e que
I tornou, invo~untariamente, e em parte, pelo menos, bastante injusta- pôr os dois de acordo r. tarefa que apresen ta, pelo menos em certos
I m ente, emblemática dos limites de uma histó ria estrita dãs instituições.
."
casos, dificuldades quase insuperáveis". Essa nova bgitimidade baseia-
I Através de simplificações e to rções sucessivas, o debate sobre o modo se em gnndc parte na crítica. Começando a prat icar em larga escala a

:J de estudar uma instituição 't ransformou-se em ponto de atrito entre


erudição da crít ica c crítica da erudiçãc . ~1as erudição, crít ica e ci-
pilhagem intelectual que não deixariam mJis de l: d0, os histori adores
im-portam tudo o que podem e que diz respeito a métodos e conceitos;
::I,' ' ências auxiliares mantêm entre s i relações mais compl~xas dCJ qae
pode parecer à primeira vista.
método alemão, filologia, de preferência, já então constitilída em ciên-
cia. Para pe rceber isso bas ta reler o plano da lntroduction alise étude5
i ,1
A erudição histórica é, numa larga escala, uma criação dos grandes historiques [Introdução aos 'es tud os históricos], de Charles·Yictor

I:W
· ~~ i: t "
!
.i
arqueólogos -do século XVII, descobridor~ polivalentes, ao mesmo tempo
que pesquisadores insaciáveis, vivendo em perfeita simb iose com a socie-
Lar.g'ois e Charles Seignobos (1898), que, .sinal dos temp os, acaba
justamen te de ser reeditada 3 e que descreve e prescreve suces5ivamente
• . 1• .
dade política e as grandes aventuras intelec.;tu3.is de seu sécu lo - simbiose a crítica da res tituição, a crítica da proveniência, a classifi=ação críti ca
talvez mais profunda, e em todo caso mais feli7, do qu e a dn positivismo das font e~, a crítica da erudição, a crítica da interpretação, a crítica
li I ,
. I com a ciência experimental; o método cartesiano, o processo class ificatório interna negat iva da sincerid"ade e da exatid ão, todas operações de análise
;, 1, 1
!1 de que as ciências da vida iriam também aproveitar fornecem referências instalando-se an~es da determinação dos fatos particulares c" as opera-
essenciais a se u trabalho. Mabillon , que est3beleceu os fundamentos da ções de s íntese. Mas por engrandecerem dem ais a "crítica", conferern-
di plomática (1681); de Cange, os da lexicografi a do la tim medi eval (1678), lhe um a posição ambígua. Palavra-m est ra, espinha dorsa l do método, a
para não citar mais do que dois exempks, não oferecem apenas instru- crítica se encontra em toda parte, por demais presente para que não
men tos de traba lho ou conselhos. Herd eiros de um século XVI qu e ins- termine por acantonar-se, em suas ambições, contra a corrente.
tituiu como dogma O corte com o passado, co ntemporâneos de uma nação Para a críti ca são fornecidas armas pelas "ciências 3uxilia.es".
e de uma monarquia recém-criad as , eles fo rn ecem terra firme para o Langlois e Scignobos ainda se ac reditam ob ri gados a pôr a expressão
histo riador, elabo rando procedimcntos tid os hoje em dia C0 l11 0 refinados, en tre parêntes is e decl aram mesmo qu e não a empregam sem alguma
mas sempre func ionais, de investi gação e de validaçJo dos "vestígios" reserva, mas preferem -na, no entan to, a '''c iências satélites" ou "ciências
111onumentais/docu rn entais. ancilares" . Po is, na expressflo, não é a p3la vra "auxiliar" que os inco-
O segu nd o período importante ins tal 3-se dois sécu los mais tard e, móda , mas, a "ciênci<J.": estatu to científico que não reconhecem àquela
qua nd o a his tória pretende se r c:ênci3. Pa ra sentir o que se passava filolog ia, que arregiment am com a tra nqüi la au dác ia do paris iense su-
então , basta abrir o li vro em que, em 1896, Henri d' Arbo is de l ubainvi ll e ficient emente distante de Heidelberg e Leipzig. Técnicas auxiliares,
expõe uma série de observações polêmicas - mais do que um ve rdad eiro am o res ancilares cu !p.,dos, o essencial para cles é dispor na história-
166 PASSADOS RECOMrosrOS Ccr.npecências 167

I ciência-mestra, pedras bem talhadas, conforme o modelo da servidão documen~ a vinha responder a um número diverso c em todo caso,

I medieval. Alcançaram dem"asiada repercussã0 c, para considerar um s6


7

exemplo, é suficiente ver de que modo, no Manual de diploma tique


insuspeitado, de questões .
O documento tornava-se instável, mesmo se seu estatuto permanc-
[Manual de cJiplomática] (1894) de Arthur Giry, brilhantes intuições, ci~ privilegiado. Uma outra etapa devi a ser vencida qua .. do se deitou por

qne se desenvolvem ainda hoje, sobre uma diplomática comparativa terra um outro credo positivista, relacionado ao estatuto do ve rdadeiro e
abe rta ~!)s temas id:ol6gicos e à circlllação ~o s mndelos entre chance- do falso. Co nfrontado <tU letrado que mente, o documento rje arquivos
larias, são a c~da página co ntid.as "pelas exigências de uma profissão parecera, por muito tempo, possuir um valor intrínseco mínimo (funcio-
positivista, quase monacal sobre o modelo beneditino. naI, é árido; repetitivo, es tá sobrecarregado de fórmulas), mas garantia Ufl1
I testemunho mais seguro (o autor não se rep resenta para a posteridade).
Auxiliar do positivismo triunfante, a erudição crític~ não ma tão
cedo ser salva da pesada serv idão pelo declínio deste. Muito pelo con trário, Uma vez afastada a suspei,ta de falsidade, ele cJÍa bem, no caso de dizê-
recebeu os golpes que lhe eram destinados por sua excessiva identificação lo bem. E era o caso de se confundir autenticidade e sinceridade. E
a ele. Continuavam existindo duas maneiras de se escrever a história; a também, ,d e se deixar de lado o essencial: ele próprio produto da história,
legitimidade do empreendimento e dos métodos críticos encontrando-se o mais modesto pergaminho rabiscado pelo mais simples dos copistas
efe tivamente confirmada, o homem por abater não era mais o his toriador- também é uma representação, a conjunção de uma necessidade· de esc.rito
retórico, a!nda que ele continuasse a brilhar, milS J.gora faia da corporação; e de normas de escrila. f\!ova dificuldade. portanto, no caminho do his-
o erudito limitado tornava-se o modelo dJ outra (má) maneira de escrever toriado r. Nova riqueza tambzm. Cltarles-Victor Langlois, confrontado aos
a históri a. A representJção esquemáticn tinha e ainda tem vida difícil, textos literários, observara que de fato a "'m~ntira" estava em tod a parte.
enquanto que os trabalhos históricos, alimentaoos pelas grandes pesquisas Mas o que se torn ara uma aporia ("todas as testemunhas mentem") abria
monográficas, prevalecendo-se de uma cientificidade ainda maior, viam um novo caminho ("a mentir a das testemunhas é rc;v'eladora"): ao deslo-
tornar-se pesado o aparato erudito. O debate encobriu, no entanto, uma car-se, o estatuto da "mentira" deslocava L!.mbém' a d:reção da pesquisa.
evolução mais secreta, e de um alcance bem diferente, a do próprio estatuto No sentido estri~o, o "falso" tornava-se objelo de"história, como revelador
do documento, e não o artesão-historiador. acc::rca do falsário, e não foi pai ac~:;o que os estudos sobre a falsificação
de documentos ganharam novo impuls06 . ~í3S para além das fal sificações,
A revolu ção documental· c histo ri ado r era incitado a ·uma "desmom:agem" do documento (1. Le
E se trata, de fato, de uma vcrdndeira .... rev olução documental", Goff). A crítica, em se u sentido etimológico de olhar, um olhar fért il em
se nos permitirmos retomar a express50 de l ::lcqucs le 00ff4 , revolução questionaml!nto, reencontrava seu lugar. Relativizando, no sentido forte
tranqüila c profunda, que prolongou ns conqu istas históricas do século do termo, as fontes, essa evolução pôde levar ao niilismo e ganhar o
XX. Essa rev olução faz-se em duas dircçócs_ Primeiramente, ao credo "sent ido de letério" que Lucien Febvre recriminava na erudição ininteli-
positivista implícito da equ ivJl ência entre documen to e questão (formu- gente: mas não é porque um documento me"nle que se pode fazê- lo dizer
lar a questão, saber encontrar os documentos que respondem a ria), qualquer coisa" Mais amplamente ainda de que uma decifração, tmta-se
sucedeu a era da polivalência: em um primeÚo momento, com uma da própria forma do documento - procedimentos de composição, normas
prodigiosa bulimia intelec tual, mostrou-se que nã o apenas as questões de apresentação, formul ário - que, por sua vez, torn ou-se objeto de his-
se desdobram até o infinito, mas também que vários tip os de documen- tória. Desse modo, o historiador conquisto"l um novo território em que,
tos podiam responde r a uma questão do histo riador: documentos diver- para ser preciso, o ce ntro encon tra-se em wda parte e a ci rcunferência,
sificados encontrados no caminho, mas tam bém documentos que ele em parte alguma, na proporçâo do que est:i cm, jogo: a reapropriação, ao
próprio cons tituíu (a forma dos campos lida no cadastro moderno por mesmo tempo global e lúciúa, da [onle, c ~:$O no âmbilo de uma "história
Mare 13 loch, historiador dos camposS), e que vieram exigir novas com- ~Jtal" , de preferência a "global", de que, entre os Illedievistas, Jaeques

petências do historiador. Posição in versa mêlS conseqüc,ntc . um mesmo Le Goff e Pierre Toubert tornaram-se os àcfensores em 1977.
1. 1
'" 168 PASSADOS RECOMro~'TOS Coml.'etências 169

I através de uma cronologia fina (aqui complicada, e nisso r~siJe a di-


.... honra recuperada das ciências auxiliares ficuld ade, po r uma variedade particularista das experiência~); permttçm
11
Essa dupla evolução, do estatuto das fontes e do olhar lançado sobre igualmente ver que, em 1050, não se redig~ um ato de yenda co,n9 em
.\ elas.. permitiu cclcbr<:f novas núpcias entre história c ciências auxiliares, a
Iq primeira descobrindo um novo objeto, as segundas vivificadas, vendo
1120, nem como em 1180, e perguntar por quê. De um períodq a ou!ro,
no complexo entrccruzarn ento das gramaturas dos é!Jeurnentos e da
. ;~,.
I' abater-se sobre r.las um ali mento conceitual c não uma praga de gafanhc!os. pressão das necessidades (até mes mo da influência do tabe lião, perso-
Os documentos de arquivos, c~ seu duplo estatu to de escritos c de nagem cultural de Idevo, sobre seus contemporâneos), o diplomatista
tírulos, são sem dúvida aqueles que res istiram por mais tempo, tanto assim põe ass i ~, ao serviço do histori ador, observaçõe~ permitindo-lhe explo-
que , desde os anos 1950-1960, as operações estatísticas c a magia rar as info rmações (opção pos itivis ta); mas elabrua também um material
informática até poderiam dar um,\ ilusão de cientificic!adc beneficiadas histórico, em que a evolução das formas do documento torna-se um
pelos resultados de sua seri ação. No entanto, a etapa foi importante por documento, revelador, no ,p rimeiro caso, d a explosão dos intercâmbios
ler servido, melll':-r do que a história pos itivista (que já prescrevia rasgar e do numerário, no outro, do "renascimento" do direito romano. com o
o invólucro das fórmulas para extrair o metal precioso do "fato"), para que este acarreta (e legitima) de mudança do poder. E no mesmo tempo,
desmontar o documento, romper, portanto, com o respeito (com a pregui- lo nge de acumu lar os conhecimentos, esses foram desfeitos. I O ato
ça) de seu leitor. Mas, no que ~oncerne a certas irregularidades, ela cartorial permite conhecer um paueu pior (ou s impll"':smente um pouo::o
I':'· contribuiu para alçar ao nível de dado, objetivo e intangível , as informa- menos) o tes tador ou o proprietário dn que se acreditava, mas conhecc-
,li çóes .' rc!iraúas" do documento. A arquivís tica c a diplomática intervêm se melhor o tabeli ão. ,: :: : n~ .:'1. .

H' aqui. Louis Stouff deu uma bela ilustração disso no caso arlesiano, Fara
demonstrar até que ponto as pretensas evoluções .desviaàas das séries
A paleografia deixou mais cedo ge ser um catálogo de· abrevia-
ções e de formas permitindo o decifrarneQlO e a datação das escrituras9 •
i':
" i, , poderiam estar desnaturadas pelo estado da documentação,. ela própria Uma revolução foi tranqüilamente re alizada, h~ muitas décadas,:quand o
~
:I , · "i• reflexo de vicissitudes posteriores (destruições cegas) ou de uma organi- a escrita na sua materialidade não foi mais concebida como um c!Jnjunto
J zação socioprofissional (métodos e divisão Jo trabalho no próprio cartó-
1": C de s inaiS jus tapostos, mas como o produto de uma dinâm ic,,-, o correr
I
ri o, relação com os clientes): semelhan te evolução, pode, desse modo ~ da pena determ inando ·o dUClllS da ese.cita. Era um meio notável de
li mitar-se. à s imples passagem, na pseud o-"sé ric" estatís tica, do registro le itura e de ensino das escritas difíceis (baixa Antiguidade, époea
11' :: det::!lhado de um tabeli ão a outro'. moderna), mas também um reques ti ona mento da concepção das evolu-

~
Mas há também um aspec to qU3litativo. Aqui ainda refreada pelo ções gráfi cas, portanto também, a mais longo prazo, do próprio r.statuto
posi tivismo, a diplomática manteve, sem desenvolvê-la, toda a riqueza das da escrit ~. A pesquisa estava também melhor aparelhada para ataear a
atas para o estudo da exprcssfio de temas ideológicos for tes nos preãm- qucstüo dos atel iês de escrita como manuscrit os "pessoais" (autógrafos
"

"
bulos dos documentos, eclisiologia no sécu lo XI ou concepção do poder de auto res), em qu e suas cu ri osidades fOr<!:n aliment ar as da codicologia .
rc~~ na bi.lixa Idade Médi a, ao mesmo tcmpo que pressentia a dificuldade Emanação da paleogrnfia no que concercc ao estu do do su pNte m:::.is
ii ,
ues..."e estudo: sua defesa e ilustração virii.l em 1957, por intermédio de um do qu e a escrit a propriam ente dita, a disciplina nasceu toda aparelhada
diplomatista e historiador <lustrí<lco, He inrich Fichtenau. Mais tarde e com novas curi os idades. Pesquisas pione~ ras, realizadas, como para a
mais dificilmente ai nda é o próp ri o estatuto do alO e!-:rito que pôde tomar- p<lleografia, nos anos 1930, já haviam estudado os modos de produção
se o bjeto de pesquis<l, como Domi nique B:uthélemy o demonstrou no que do li v ro un ive rsi tári o: a obse rvaçfio de m\.""\destos ves tígios, gráficos ou
conce rn e aos hab itantes de Vendôme (Loir-et-Cher) da Idade Méd ia cen- materi ais, nos manuscrit os conservados, permitia compreender como as
tro.F'. E para reto mar o exemplo cartori al , os e.studos diplomáticos abun- au tori dad es uni vers itári as tinham reagi do dia nte de duas necessidades
dantes realizados n<.l Itália sobre um a produç50 cartorial inigualávcl pela contradi tó ri as: o contro le dús tex tos copi~dus e sua rep rodução manus-
s ua quantidade e sua !"recoeidade permitem baliza r a.evolução das formas, c rita em larga escala par: um público nu meroso. Muito rapidamente, a
II I iO PASSADOS RECOMPOSTOS
Com/Jc!éncias 171

h;stórico. Nesse estado de coisas, muitas vezes depl orável quanto aos
codicologia respondeu à estimu lação da história material do livro im-
rcsultado~, as responsabilidades, é ve rda de, são bem divididas entre os
presso, multiplicando os estudos de ateliês de cópia c de bibliotec2.s.
qüe desprezam e os preguiçosos.
Aperfeiçoamento da arte, já medieval, da catalografia dos livros, a
Menos supletivas do qu.c esclarecedoras, as ciências auxiliares justa-
codicologia voltou-se resolutamente para a história cultural. Não se trata
põem, por um lado corpus de dados c de técnicas de análises, por outro,
rn3.is, em ligação com uma história de arfe concebida como uma história
observações propícias a alimentar a reflexão svbre o estatuto da font~ no meio
das obras-primas, dn cstábclcccr o mapa dos "grandes centros" de es-
produtor e debaixo do olhar do historiador 11 • Muito conhccidG pela arqueo-
crita c de estampa, nem de estabelecer sua filiação. Não se trata mais
logia, onde suscitou virulentas polêmicas, o problema' de seu estatuto face
ou não somente, de fazer, em ligação com a "história das obras e da~
à disciplina histórica no seu conjunto pôde parecer regulado por uma nova
idéias", o inventário dos manuscritos de obras litc:-árias e doutrinais. O
importação terminológica alemã : as "ciências auxiliares" (Hilfswissells-
quantitativo serviu para o estudo Ja difusão e da circulação dos manus-
chaftell, o que já fica melho/) so:riam de prefer~ncia "ciências fundamcntJis"
critos; o qualitativo mais refinad o, perseguindo o menor s igno, permitiu
(Grulldwissellschaftell), com um campo específico tão evidente quanto seus
compreender melhor as atitudes do poss uid or de livros.
métodos ~ram bem experimentados. A filologia, a numismática, a epigrafia
Fantasia de colecionador ou passatempo nobiliário nostálgico, a
mostravam o caminho. Mas seria suscitar um nov.,) risco de corte, provindo
heráldica não é mais nbsolutamentc a nuxiliar que permite descobrir o
do retinamento c Ja tecnicidade de a1htUrna5 das pesquisas comprometidas.
possuidor de um mnnuscrito Ou o comanditário de um vitral. O brasão é
Pois se o consenso faz-se em cima das aquisições, na verdade muito par~iais
u m " monumen t o .. acerca á o qual progressivamente se percebeu todo o
e marcantes. existe sempre, em sentido i.,verso, um possível retomo do
1\, j''" peso simbólico. Sua língua, seu luga r nas m.mifestaçõcs do parecer fora'J1
recalcauo, em que o especialista se entrincbeira numa cientificid.ade hermé-
portanfo intimamente penetradas. Vivificada pelas .questões da antropo-
li'j.1"1'i l~gi~ .histórica (em particular a história das estruturas familiares) e da
tica. Situação em que se enc0ntram, de resto, di sci!Jlinas irmãs, como a
história da liturgia ou a história do direito ,!ue retornam, elas . também, de
.,.\~'I'":1
hls tona cultural (semântica, percepção da cor, <.le que Michel Pastoureau
modo acentuado ao próprio cerne <.la história medieval. Situação enfim que
:i . I! faz a exploração que se conhece 10), a "ciênci a do brasão" se cons:iluiu
coexiste com um inquietante balanço: jamais tão bem reconhecidas, as
~ tt
~ I,'
desse modo não mais como adju nta ocasional da crítica, mas CO:110 uma
"auxiliares" nunca foram tão pouco ensinadas. A hora sem dúvida não é
di~ciplina, autõnoma, p. ois ela também traba lh ava e renovava um corpus
r
~l l ..
I'" d ocum ental sobre a base de métodos específicos.
para produção de um a nova~-listória e se;.;.:; iiii todos, mer. ~::; ainda para uma
nova 11Itroduçüo aos estudos históricos: os historiadores franceses parecem
l i" Auxiliares ou fundamentais?
preferir a interiorização dos preceitos de b.3.sc 12 • A profusão das pesq ui.:.as
c a explosão do campo documental tomam tanto mais urgente a rep artição
Os cortes, sabe-se, nã o estão sempre ond e se acredita. Lucien
das experiências.
Fetwre via ainda em Mabillon um g ran de ""provedor de matér ia-prima
Pouco importa afinal o des tin0 que a língua reservará 5 pabvra
hi:' lórica": uma fórm ul a bem no espírito de Char les Sei gnobos, no que
"erudição". Há um, sem dú vida, que me:::ce ri a um melhor destino: o de
I , es!;] press upunha , qUilnd o nft o um procedime nt o e111 dois tem pos (o
crítica, se quisermos entendê-lo em se ntióo mais amp lo. O exame crítico
dC'Cumento, depois a construção), pelo menos um a reparti ção de papéis
dos poucos vestígios que conseguiram st,;bsistir das sociedades passadas,
c das intervenções (um erudit o c um h isror iado r) . Por cantil disso,
corno palavras gélidas que é preciso csque,ntar, a maior parte conservados
er:wnde-se de fato que al guns s e percam pelo caminho, ou n50 possam
porque estavam melhor preparados, OUt:0S, pelo mais puro acaso, esse
sch ir mui to alto: prazeres refinad os da erlld içflo, dando vo ltas , ps ico-
exame permite, portanto, sentir um pouc ..) menos mal, um pouco menos
lC' g icnrne nl e valoriznnles, por natureza inc C'Tllunicáveis. Ou qu e outros
friamente o homem pe r det~ás de seus v-:;::,- tígi os, e isto n;lo é o esse ncial ?
que im em etapas. Que os terce iros, en fim. s if3111 com muit o esforço todo
o ca minh o. Compreende-se também qu e se pense freqüentemente, c
s l" hretud o na França, que lim a ed içfto de tex tos nã o ~ um trab alho
172 PASSAOOS RECOMPOSTOS

Notas
QUATRO
I B. B.met-Kri ege l, Les Hisloriells el la MOllarchie, v. lI, La Dêfaile de l'érllditiOfl,
Pa ris, PUF. 1988. .

2 A;lIIales d'llisloire écollomique el sociale, março e jtclh9, ]934.


A Ascese do Texto ou
o Retorno às Fontes
iII J C.y. Langlois, C. Seignobos, IIIJroductioll oux intdes historiques, Pari s, 1898 ,
reimpressão com um prefácío de M. Rebérioux, Paris, Kimé, 1992. J EAN-LoU/s GA UU N

.. J. Lc Goff, "Documento/monumento" , in Encicfopedio Eillaudi, I. v. Turim, 1978 , pp.


38·48.
f: o trabalho de pilblicação das falires é um dos mais tradicionai.)·
I ! M. Bloch, Les Caracteres origina:.': de l'Ms/oire rurale frallçaise, Paris-Oslo 19;\ l '
reed ição, Pari s, Colin, 1988. ' , em história medieval. Mas, por essa razão, seria preciso abandonar as
edições críticas dos textos como os historiadores franceses parecem
, A . G.raflon, Fa~lssaires eJ critiques. Créativité et duplicité chez les érudi/s occidelltaux,
Pari s, Lcs Be ll cs Lettrcs, 1993 (ed iç:io original, Priwceton , ]990). decididos a fazer (diferentemente de seus colegas alemães)? A. insl~fici~
ência quantitativa e qualitativa das fontes publicadas constitui na rea~
., L SIGuff, " Lc s reg ist res de nota ires d 'Arles (dcbúlt X IV~ siccJc - 1460): quclques
prob lcmes posés par I'uli lisa li on d'cs archives no tari:1l:s", Provellce Mstoriqll e, XXV, !idade Uni f reio à rello'Jação das problemáticas. Devido ao poder das
) 975, pp. 305·324. técnicas informáticas, a hijtúria cultural dos textos medievais, que daqui
• D. Bart héle'l1Y, La Sociêlé dOlls Ic comlé de \'Clldõ~' de J'Oll mille ou X I I,* siecle
para [rente leva em conta o conjunto .las variantes, ganha uma nova
Pari s, Fnyard, 1993. ' . ' significação, e as bases de dados documentais oferecem ferramentas
maleáveis e infinitamente mais atuantes para responder às múltiplas
, ~io-me aqu i ~a análise de D. Mu zere lle, " Un siccle d: pal éographie latine cn Froncc",
In Vil secolo d, paleografia e diplomatico (1887- 1986), Roma, 1988, pp. 131-1 58. interrogações dos historiadores.

UI M . Pastou rea u, Trai!é d'héraldiq/lC, 3. ed. , P:lri s, PicArd , ]993.


A edi ção crítica dos tex tos e documentos da história da Idade
11 Para um último ba lanço, ve r o re latório coletivo "Sciences aux ili a ires de I'his!oire Média continua sendo, há muitas décadas, o parente pobre de um a
médiévale", in L 'Histoire médiévale ell Frallcc: biJan: e t perspectives, textos reunidos
por M. Balard, Paris, Lc Se uil, 199 1, pp. 47 1-499. disc iplina em ou tr os asp ectos muito õinâmica 1• As d ificuldades pró-
prias ao es tabe lecimento e ~ impressão das fontes escritas são apa~
IZ \~ r particul anner. le F. Furet, L 'Alclier de I'hisloin:, F:aris, Flammarion , 1982: sobre as ren temen te sufic ientes para ex pli ca r essa s ituação. Publicar colet5~
diferenças dc abordagem cm numerosos outros paí5(!$ europe us, pode·se toma r como
exemplo o recentc manual universitá ri o de J. P)'ckc, La Critique historiquc, Louvain- ncas de títul os , tes tamentos ou tr atados jurídicos ex igc competênci as
13 Neuve. 1992.
específicas e muita paciênc ia da parte dos pesq uisadores. É preciso
também qu e es tes possam contar com inst ituições ca pazes de finan-
ciar as cus tosas pu bl icaçõcs e prever J. sua programaçflo no longo
prazo. Mas tal esforço, ao mesmo tem po ind ividua l e co letivo, ainda
teri a sen tid o hoje em dia? Os his toriado res da alta Id ade Méd ia - que
se deve aqu i estender até o final do sécu lo XII - podem, efeí.Ívamen-
te, apoia r-se na massa dos tex tos r: dos doc um ent os já publi cados.
Sua tarefa pri nc ipal não é evidentemen te de com pl etar esse corpus
de fontes legado pelos e rudi tos d os sécu los passad os, e sim s ubm etê-
10 a novas int errogações, e renova r a sua in terprctaçflo. As pesquisas
refe rentes ao fim da Ida de M édia ;:!póÍ3. m-se numa ou tr a ordem
174 P ASSAOOS RECOMroSTOS Competências 175

documental , muito próxima desta que o hi s tor iador dos tempos mo- nascia e!!1 1875; passados nove anos, a Escola Francesa de Roma lançava-
dernos faz uso . A inves tiga ção histórica, conduzida nos dep ós itos se :Ia publicação dos registros da chancelaria pontífice.
dos arquivos, desenterra uma massa de documentos cada vez maior, Essas poucas datas balizam a mola da história positivista elabo.-ada
,. do século XIII ao XVI. Esses múltipios documcn tos inéditos, sus-
cetíveis de tratamentos ~m série, não pedem evidentemente ser ob-
no século XIX. Essa história baseava-se no dogma absoluto do documento
_ interpretado então no sentido mais estrito de texto - cuja crítica levada
!
j eto de publi caç:i.o , a não ser na forma de "trechos selecionados". ao extremo deveria pcr;nitir que a autenticidade fosse garantida: "a since-
A questão das fontes e de sua publicaç.ãu parece colocar-se hoje, rid ade c a exatidão", preliminares de toda c qualquer utiiização. Na sua
no entanto, com uma acuidade nova. Na prática, assiste-se - há pouco busca de ve rdade absoluta, semelhante hiStória acharia na filologia uma
tempo - à retomada de empresas antigas, assim como às iniciativas novas aliada natural e tranqüilizadora. Ciência nova, nascida na Alemanha, na
em matéria de edição de foutes, em língua original ou em tradução. De primeira metade do século XIX, e introduzid :'\ na França por G. Paris, a
I um ponto de vista técnico, a informática já modificou os procedimentos filologia destacava-se po'r estabelecer a vt.rdade de um texto a partir das
de estabelecimento dos textos, e mais radicalmente ainda a reprodução diversa~ versões consel'Vadas. A eliminação dos ercos cometidos, volunta-
e a interrogação das fontes precedentemente publicadas (tratamento de riamen;e ou não, por copistas descuidados ou malfazejos deveria permitir
texto, leituras ópticas, apresentação de um número significativo de obras ~emontar, valendo-se de muita paciência crítica, até o 'texto original dese-
~I em CD-ROM). Enfi~. !la e ~ t~do cl.e inc:ertez.3. teórica característico das jado por seu autor. No final do século, o ma!lual c!e Langlois e 'Seignobos
ciências históricas há vá rios anos, a publicação das fontes poderia cons- estabelecia logicamente a 3nálise dos textos no cerne da aprendizagem do
,, lituir, com ou sem razão, um ponto de enrai:a.mento, um valor-refúgio. of:cio do !listoriajor2 • Para fazer história era preciso, primeiramente, esta-
,,
11' Por todos esses motivos, parece oportuno redefinir o estatuto da publi- belecer de modo crítico seus .documenlos.. C. Langlois, aliás, praticara ele
C3.ção das fGntes n~ seio da ativ idade dos his toriadores da Idade Média. mesmo a publicação das forltes sendo responsável pelo primeiro volume da
I'I , As páginas que se seguem não constituem de forma alguma, portanto, uma série dos Documentos financeiros da Colnânea dos h;sloriador~s da Fran-
~ vis toria da publicação das fontes documentais e narrativas. Após chamar ça, promovid2 pela Academia das inscrições e Delas-letras a partir de 1899.
atenção para as relações es tabelecidas entre a interpretação das fontes e Desde então, esse movin:ento propiciou inúmeros resultados e
sua publicação, gostaríamos milito simplesmente de delinear os limites da encontrou também dificuldadt.!s que não temos o propósito de retomar. É
·i s ituação atua l e, depois, imJginar as formas e as finalidades que o esforço preciso em compensação .insistir nos requ es tionamentos de que foram
d·'
" de publicação das fontes pod e oss"mir hoje em dia. alvo tanto a história erudita como a prática da publicação das fontes,
'I

, . Morta a rainha filologia


No sécul o XIX, o desenvolvimento da história erudita dava-se lado
primitivamente tão próximas uma da ouua.
A primeira ruptura, de ordem his toriográfica, foi provocada pelos
fundad ores das A1l11ales no período compreend ido entre as duas grandes
a lado à publicação das fontes históricas. Os empreendimentos editoriais guerras. A nova históri a forjou-se em parl e contra o dogma das fontes
cr:.:. m numerosos , dinâmi cos e amb icios os. Pela empresa J lemã dos escritas, ela se d izi:l " revogação do pri ...-i légio exclusivo do escrito, e a
hfoJlumellta GermQ lliae Historica (1826), tr3balho pioneiro de edição fortiori, do text03 " (K. Pomian). O historiador devia multiplicar e diver-
crítica das fontes medievais, respondem desde 1834, sob o impul so do s ificar os objetos do passado suscetíveis de iluminar suas pesquisas. Foi
min istro e historiador Guizot, a "Coleção dos documentos inéditos sob re então, por exemplo, que, segundo um::!. F'crspecliva inauguradJ pelo pró-
a história da França", qu e está na origem ::10 Comi tê dos traba lhos his- prio March 810ch, J históri a do campo àc ixo u de confundir-se com um a
tó ricos e c ien tíficos (CfH S) . De 1844 a I S:i5, o abade Migne c seus história da condição jurídica dos homens (' das instituições se nh ori ais.
c\.. . l3boradores publ icaram a Patr%gia latina, ou seja, 221 volumes Inscrita no longo pruzo, abe rta :.1 0 com; : :. ra tivismo, 'Itenta ~I contribui ção
abra nge ndo um conjunto ini gualável de text·:-s eclesiásticos do fim da da geografia e da sociologia, a históri a ru ral deve ria também divers ificar
Antiguidade e da Idade Média. A sociedade dos t.:xtos antigos franceses s uas fontes: interpretur n50 mais unicamente textos, mas também
176 P ASSADOS RECOMPOSTOS Com/)c[ências 177

ferramcr.t as agrícolas c obj etos conservados nos muse us, ou então ainda, qu and o e'les ascendem ao est5gio da pesquisa. É tanto mais difícil .::nsinar
títulos, mapas, cadastros c imagcns 4 • O investimento desses novos c as téc ni cas de análise das fo ntes em d ocumei1tos traduzidos e reei a-
ap ~ ixo n ::mtes territóri os his tóricos, que completam c fazem concorrên..:ía borados, isto é, já interpretados.
à históri a baseada na documentação escrita, explica em parte o desinte- Declínio relativo do primado das fontes escritas, progresso e espe-
I resse :clativo que pôde conhecer desde então - e especialmente na F!"ança cialização das disciplinas que conC(\f1crn !Jara a publicação de documen-
I
! I' - a publicação das fontes c sc rit ~s . Sem dúvida esse era o preço a pagar toS, preparação t.:!cni ca insuficiente dos aprend izes historiadores, essas
pela renovação das ciências históricas. Acrescentemos de todo modo que são as principais razões das dificuldades atu ais da edição de textos.
I.
I
os herdei ros de .M .. Bloch csqucceraril talvez muito depressa que este não Constata-se então, sem surpresa, que a renç>vação das problemáti-
se recusou a editar uma Vida, inéd ito de Édouard, o Confessor, como cas nã o é mais segui da pel os progressos no domír.io das publicações de
trabalho preparatório aos Reis taumaturgos, esse livro :1500 tcndo equiva- fontes . É lame ntável, por exemplo, que as muito recentes pesquisas rea-
I lente na historiografia francesas. ' lizadas em história urbana há du as décad as não tenham descoberto um
I. Num segundo temp o, as inovações realizadas pelos . técnicos da corpus significati vo de font es impressas. Mais acen tu ada na França do
,
edição dos tex tos explicam - de modo aparentemente paradoxal - os que em outros lugares - a obs tinação e o vigor da edição alemã suscitam
resu ltados quantitativamente modes tos da edição de fontes medievais. A há muito tempo a admiração e a inveja do historiador francês -, essa
paleografia e a codicologia realizaram efe ti vamente imensos progressos : s ituação qu e pdv;leg ia O c0nlo.!nt5rio e:n Jctrimento da renovação da
estudo das tint as, das mãos, do pergaminho ou do papel, da p~ginação, dccumentação condiciona um reto rno à pesquisa histórica.
da encaderf' ação, dos sis temas de referê ncias (indicação dos cadernos, Não nos deteremos no fato de qUf' rnesw..o nos pri:neiros séc ul os
dos capítul os, dos quadros c índices). Elas Deixaram de ser técnicas da Idade Média - pob res em documentos e proporcionalmente melhor
auxiliares e cons tituíram-se como c i ~ncias autôno mas, dis!Jôndo de sóli- cobertos peia publicação de fontes - um c rescimento do corpus das fontes
das ins titu ições (École des Chartes, École pra tique des hautes études , disponíve is ainda é possíve l. A invenção de '1.o,,:,os testemunhos escritos
Inst itut de reche rche et d 'histoire des tcxt cs) e d e revistas especializadas é um acontecimento e di z respeito freqüentement e aos textos c doc.umen-
.! I: (Scriptoriz:m, Re!'ue d 'lzisloire des textes). Essas disciplinas trazendo tos chegados até nós em más condições de conservação. A exploração de
no vas exigências fazem da edição de te;xtos um exercíc io mais árduo do
II '; que nuncft, a que o histori ado r se dedi ca com inquietação e risco . Mais
tais deseoberlfts, ap esa r disso, é impo rt ante. Foi desse modo, por exem plo,
que a descober ta e a ed ição de documcntos contábeis do sécul o VII
:'! I"
r. rigo rosa, a edição dos tex tos antigos to rn ou-se também mais amb iciosa. provindo da abad ia Sa int-Martin dI;' Tours melhorou nosso conhecimento
I N5.o se trala mais de ap enas publica r tes tem unh os do passado (ç~ um da economia rural do começo da Idade Média7 •
ritmo mode rado em razão das exigências crescentes), mas também de A insuficiência quan titati v:J. e quali tativa das fontes publicadas
I elaborar uma verdadeira história das fontes manusc rit as, de sua produção tende a tornar-se um freio à exploraç50 de cert os domínios da história.
e conse rva ção. O es tud o das escrit as e de se us sup o rt es vei o dar Os esfo rços consagrados ao liv ro manuscrito fornecem li ma il ustração
IOf.!c am ellte, desse modo, numa his tória materia l do liv ro med ieva l. disso. Devendo sua problem::ítica a um a cultu ra renovada de vinte anos
Out ros fato res co nt ribuem para explicar o esgo tamento do filão para cá pelos historiadOícs do li vro im pressos, os especialistas em manus-
das ed ições c rít icas. Pensemos, especia lmente, no lento declínio do c ritos med ievais tentam reconst ituir as co ndi ções de prod ução, de ci rcu-
ens ino em latim, língua cujo conhecimento co nt in' la se ndo indi spensá- lação e de co nsulta do li vro manusc rito. Múltiplas lis tas de livros,
ve! ao med iev ista 6 . Tendo deixado de se r uma língua de civilização estabe lecidas por ocasião de empréstimo.::i ou de vendas, assim co mo
veic ulad a pelo ensino sec undári o, nem por isso O lat:m to rnou-s e um u cat51ogos estab elecidos pelos bi bl iotecários ou possuidores medievais,
cs:.'cc ialida de cuj u ;;I prend izugelll - ciic<lzme nt e o rg anizada pe las fo ram conservados; ora, p~lfa essa fo nte fu ndamental, só dispomos atu'll-
unive rs ic1ad es segundo o modelo das lín guas rara s - poderia permitir aos mente na f-ra nça - diferen temen te dos pesquisadores alemães, austría cos
estu dant es vo luntári os adq uiri re m a base que frcqü cntemente lh es falta e ingleses. e salvo exceçõf's s ign ificativas. como a biblioteca da abadia
178 P ASSADOS REC.."OMPO::.TOS CDmpe~ências 179

de Clairvaux - de edições muito dispersas, incompletas e muitas vez~s rnúliiplas bibliotecas. Não seria preciso t ambém, nessas condições ,
envelhecidas. Essa lac una torna muito difíceis as pesquisas . que têm por red escoorir o escrito, o texto que se impoo preliminarmente aos histo-
objeto as coleções antigas de livws, limita o cfJtejo dos manuscritos ri ado res face ,a '-}ualquer 'interpretaçâo?
subsistentes e menções antigas, c, definitivamente, cria obs tácul o para a
compree:1são da cultura m edieval. Repensar o trabalho de edição
A inadequ ação das fontes impressas às questões que os historia- Semelhante Hretorno às fontes" parece caracterizar mIlitas da:)
dores gostariam de dirigir-~hes é cada vez mais manifesta. Sabe-se da ~ orientações atuais da pesquisa de que se bencCieiam os técnicos da
fragilid ades das edições re ali zadas no século XIX e no começo do sécul o inform ática. Du as abordagens prestam-se muito particularmente a um
XX: tendência a unificar o conteúdo de um manuscr!to em lu gar de trabalho em p rofundidade sob re as fontes_
acentu ar os diferentes extratos de compos ição, redução da cópia aliviada Para uma história cullll;al dos textos ~edieva is - Tirar plenamente
de fórmula s julgadas secundárias, respeito desigual da ord em original, da proveito das fontes narrativas implica renunciar ao dogma do estabele·
pag inação e dos títul os, recomposição artificial de coletâneas nunca tend o cimento do ',' texto origina l" como obj etivo fi nal, e único, do trabalho de
exis tido sob a forma produzida pelo editor. Uma recente reflexão consa- edição. Essa noção foi abalada hoje por uma melhor comp reensão da
g rada aos ca rtul ários permitiu determinar as distorções que existem entre difíci! gestação das obras medieva is. Mais complexas do que a filologia
as edições anti gas c ;::s prob!crná~ic &5 ;::!ua:s, Co:etâneas de títul os ates- do século XIX supunha, ~S5a~ não tive ram sempre, a bem dizer, um autor
tando C!S propriedades de uma pessoa o u de uma ins titui ção, esses que li be rasse, em determinadó momento, um texto considerado definitivo
c artulári os foram durante muito tempo ut ili zanos como re ~,: rv r. t ó rios de ~or ele. Os tex: os medievais apresentam remanejamentos, estados suces-
infonnações brut as. Estão daqui pra frente incluídos e analisados c omo sivos reduz indo ou ampliando o precedente. Os copistas intervinh am
proàu~o s cult urais, cuja confecção é tão importan te quanto o co nteúdo. pessoalmente em um texto que j ulgavam pe rtencer tafl ~u a eles quant o a
Se n ão for possível ter em v is ta reedições de car tlll ári os (existem ainda um autor cujo es tatu to moral não estava definid o. Suas ir.tervençõl:s não
inéd itos), estudos pontuais rejuvenescem as edições ant igas e tornam sua são redutíveis exch.:sivamente aos erros que a filologia trad icional detecla.
utilização mais confi áve l ~. Certos copis~as acrescentavam ou cc:-taV""-D1 o texto, interpretavam o
:;
É lícito e nfi m perg untar-se se, colocado di ante de uma documen- conteúdo, corrigiam, às vezes, a fúrma. Por essa razão ace ita-se melh or
taç~o cujo essencial está publicado há muito tempo, e que poder-se-ia rel acio nar a uma ilusóri a unidade uma diversidade que é emblemá tica da
class ificar de "dorment e", o his toriador nflo corre o ri sco da sob reinter- produção cultural da Idade Média. Essa ruversidade rei vindicada, esse
pretaçflo. Desse pon to de vista, a reediçflo de fontes ant igas po r m eio "excesso alegre" de que 13. Cerqu iglini dentonstrau o interesse pnra o
de procedimentos novos e muito cômocos (CO-ROM) até pode acen tuar conhecimento dos textos literári os em francês antigo, apl ica-se a uma
a foss ili zação dessas publicações (de qua li dade nem sem pre exemp lar), parte extensa da produção narrativa medie-,1a l.
abstar a inda mn is os usuiÍr ios de sua produç:1o. O primado que se f ica Um aus tero tratado de agricu ltura , c o-::no o que o italiano Pietro de
lemJ.do a concede r à reprodução das fonte s ji impressas, de preferência Crescenzi escreveu no co meço do século .:\.\' 1, pode rá dar um exemplo
ao estabelecime nt o de fontes novas, pode w mbépl parecer p aradoxa l se disso. Redigida em latim, essa obra vo lum..osa intitulada Liber ruralium
se pe nsa nos c ui dados de que sfio objeto, no mcsm o mome nt o, a rea· commodorum fo i-nos transm itida por ce re:.? de 130 manuscritos conse r-
l iz~ç_ ão de corplls de font es nã o escritas. A ::!rqueo logia medieval luta vados em umas sessen ta b ibliotecas atr avés da Furapa. Esses manuscritos,
há muitas décadas para dotar-se de ins tru men10s de referê nc ia (catá lo - que se mult iplicavam até que uma versão impressa fosse editada em
gos de ce rfim ica por exemp lo). Os especialis! J.s cm iconografia tomnm Veneza em 1471, permitem re cons tituir a t.is tória da difusão do tra lado.
in i\.'ia tivas no moment o atual no sentido de in ve ntariar c tornar rapida- No momento em que o texto ci rcul a\".J e er3 objeto de cópias há muitos
mente co nsu ltáveis por me io dc \'ideodi scos repr ~ duções das milhares ano:: na Itália do nort e, uma tentati va ocorreu para es tab ili zar seu co n-
de I.'".s lampas que o rn amentam 0"- li vros m::lI1usc rit os e es t[\ o dispe rsas em teúdo: urna verdadeira ed ição torno u· se db70nív el na forma de cadernos
180 PASSAOOS RECOMPOSTOS ComlJClências 181

(os peciae) cada um deles fornecendo uma parte do texto, que os copistas esse trabalho tradicional: um ganho Je tempo, se se procede a uma
podiam alugar llas oficinas de livreiros. De acordo com uma prática cz.ptação direta do documento; enriquecimento permanente de uma base
difunjida nos meios· universitários, muitas cópias eram desse modo documental, sefi1 misturar fichas e fichários; uma grande facilidad\:! de
efetuadas a partir de um me.smo exemplar, o que limitav.a em princípio tratamento; a interconexão de bases realizaJas a pa rtir de fontes diferen-
i os riscos de erros e permitia uma d ifusão mais rápida dos livros. Apesar tes ... Finalmente é possível: a toda hom, -Publicar" tud o ou parte dos
dessas precauções, as cópias realiz~das mais tarde no século XlV, depois dados acumt:lad'Js, no papel, mas também ; muito simplesmente, no

"I no sécu lo XV, apresentam variantes impor tan tes e muitas vezes "positi-
vas" com relação aos manuscritos olais antigos: explicações de termos
disq uete, o que é menos d ispendioso c permite, além do mais, atual izá-
los periodicamente. Obrigações e dificuldad~s novas surgem contudo,
técnicos, comentários às vezes situ ados à margem do texto, às vezes quer se trate da difícil .questüo da indexação dos nomes de pessoas ou
introduzidos no próprio texto. No momento de transc re'!er os capítulos então da padronização c do ir.tercâmbio de dados entre usuários 1o•
d edicados à vinha e ao vinho, um copista ind ica uma uuração de fermen- Uma forma de retorno às fontes é, portanto, perceptível nos his-
tação diferente da~uela aconselhada por Crescenzi, um out,·o, dá uma toriadores, uma forma de renovario, dir-se-Ía na Idade Média. É notável
receita pessoal de cozimento dos vinhos para melhorar a conservação e que esse recrudescimento de iOleressc pelas fontes inéditas, mas também
guardá-los por "quatro anos" (era muito tempo na época). Todas essas editadas, coincida com uma revolução das técni cas de escrita, conserva-
intervenções, que a filologia çl;;ssica teria considerado COillO erros a ção, publicação c questionamcTlto dos dadas.
serem corrigidos, desenvolvimentos ilegítimos a serem suprimidos, de- Um vasto campo encontra-se aberto para os editores · de textos
vem ser interrre tadas como iJlll certo .número de testemunhos de vitali- narrativos como para os historiadores de arquivos. Muito mais do que no
'., dade de um texto, do interesse que os leitores experimentaram em lê-lo,
e em rctranscrevê-Io. A edição de um texto n~o é mais dcs.d~ então um
passado, os historiadores deverão trabalhar em equipe para levar a cabo
seus projetos, como a const ituição de vastos bancos de dados. Esse retorno
trabalho de depuração, de eliminação das escórias, mas um inv~ntário e às fontes não por elas mesmas, mas a fim Je fazer melhor a história, ou
uma história das modifica~ões do texto, de suas variantes, q que complica seja, de acordo com as pJlavras de Michel Foucault, a fim de "conferir
certamente G trabalbo do editor de textos, ma~ :!bre também caminho para estatuto e elaboração a uma massa documental de que (a sociedade) não
t. : urna história total da cultura escrita. se separa"IJ, manifesta uma dupla exigêr.cia de inventividade e de rigor:
Em (!ireção às bases de dados docum':::'lltais - No domínio das terá chegado a hora de uma n.ova ascese do texto?
fontes documentais, diversas tentativas ocorreram há muitos anos para
re::lúvar aS abordagens devido li informática. Corpus restritos de docu-
mentos são captados no computador e geram questionamentos lex icais
acerca do modelo praticado a parti r do final dús anos 1970 por especia- NQ[3S
lis t3S de literatura . Pode-se assim delimitar muito rapidamente a data de
I (l065- 1990), lexlos reunidos
Bibliogrnpllie de ,'hisloire 1I/(.!dit:l'(lic ell Frnllce por M.
ap~rcc iment o de uma palavra, estabelecer a l:stagem das formas dessa
B~lard, Paris, Publicalions de ta Sorbonnc, 1992.
p4i!avra, dos term os que lhe estavam associados .
Confrontado à documentaç50 em g ranàe parte inédita do fim da : C. v. L1nglois c C. Seignobos,lJ/trodllct;oll O/u: éruda hisloriq/lcs, Paris, 1898; reedição,
Idade Méd ia, o historiador pode doravant c substltu ir pClr fichários informa- Paris, Ed. Kimé, 1992.
tiz ~dos os fichúrios realizados anti gamente à m50. Na massa de séries
, K. Po mian, "L'heure desAl/lwlcs" em P. Nor~ (dir. ), Lcs lic/lxdc mt:moirc, 11. La NalioJ/,
homogêneas (atas de tabe li üo, contabilidade ~c nhorial, reg istros fisca is
I. CalJil1lard, 1986, pro 377-429.
elc.), ele pode escolher extnlir as in iorl1la çõe~ cOl1sideradíJs como prin-
cipais (nO!:les de pessoas, de lugares, estrulucas de parentesco e de ali- • M. 13l och, Les Caracteres origil/{lIIx de I'lu"s foire r ..trale /"rallça isc, Paris.Oslo, 193/,
anç.3., tip o de transações ... ). A informútica tr az signi ficativas me lhorias a reediç:io com prefáci o de P. Toube rt. Paris. A. Co /in.. 1988; cf. P. ToubeTt, " MaTe IJl oeh
I,
,I
132 PASSADOS RECOMPOsrOS

e iI dopo: la s toria agraria c Ic Allllalcs (1929-19S5)". Quadcmi storici, XXV, 1990, pp.
4S6-499.
. •.. ~ • '.'l.:j t .Ju J I:

, M. Bl oc h, "La vic de sa int Edouard lc Con fcssc ur par Osbcrt de C larc", Allolec!a !'1:1 Jtq ~J!l!;; r'1.1i:>d1
Bollol/diallo, XLI, 1923, pr. 5-131 , reim pressão em Id., Mélollges historiques, Paris, " P.- ' . . .JJ ... e ,Iur,

e A Hist6ria 'Quantità.tiv~ sc,,'(t'u':(;k~J


Í",nÜI

li , ... hir
1983, t 2, pr. 988- 1030; Lcs ReIs I"allmalllrgc~. Érurfes sur te caractere sumalurel . .. I ~ ~

r:1lribut! ti la pI:;ssaw::c rDya(c particuliercmClll Clt F rance et enAllg /e/erre, Estrasbu rgo, ...\J ....Ainda ,E Necessária? ..
1924; nov;. cd;çiJo com U.11 prcf:ício de J. Lc Go~f, Paris, GallimOlrd, 19.83.
'.l .... G .. '.. . I _ , l ... _ .;1" "1)
.'
,_o JEAN-YVES "GRENIER
• "I "
, A constataç ão não é nova mas n50 provocou verdade ira rcação nas un iversidades frOlocc- i. ",' ."
$aS, cf. as palavras de A. Vernc l, "La publ ication des SQurces n ar~at i vcs cl li ttéraires".
em TCf/(loll ces, perspec/jvcs cf méthodes de I'Ms/oire médiévale. Atas do centésimo
"'Congrcs national des socié tés sava nles", 1975, Paris, 1977, pp. 1 9~-2 13.
Em história, o númer7 foi por mui:.:J tempo umá das linguagens
poss(veis numa descrição que não aceita o aproximativ.o o'u o subjetivo.
7 P. Ga~;nau1t e J. Vézin (ed.), Documell!:: comptables do: Sailll-Martill de TOllrs à l'époque Num tempc. desacreditado, em benefício da narrativa ' (lU da análise
lI11érovillgiclllle, Paris, C fl-I S, 1975. antropológica, a história quantitativa faz-se portadora de ambições
diferentes, voltadas para a formalização ou a elaboração de noves
• R Ch:lrlie re D. Roche, "l...! li vre: un ci,a ngo.!mc nl elo:: ;x- rsl'.:!ctivc", in J. LcG o rre P. Nora
ins,trumentos de illvestigação.
ldir.): Faire de ['histoire, 111, Noltveaux übje/s, Paris. 1974, pp. 11 5- 136.
,
~ L.es Cartulaires. AtJS da mesa-redonda organ izada pe la Éco le nali unalc des chartes e o , A história quantitativa 'não faz mais grande sucesso. Está }0nge o
GRD 121 do CNRS (Pa ri s, 5-7 deze mbro 1991), reunidas por O. Guyotjeannin, L tempo em que F. Furet poderia falar de seu pap'cl dominante e de Isua
M orelle e M. Parisse, Paris, 1993 (Mémoires e l documen ts de !'École des chartcs, 39). capacidade de renova r a ·pesquisa histórica_ A grande linhagem dos su-
cessores de E. Labrousse,~ que soube instalar, . nos anos 1960,. 0 número
lU J. P. Gcnel (ed.), Stalldardisatioll ct échallge des bQ.SiCS de dOl/llées /Jistoriques, atas da
lerceira mes:! -rcdonda inlern aciona l realiz.1da no LlS H (CNRS), Pari s, 15·16 maio 1987,
c a série n'a cerne da escrita' e da demonstração histori adoras, não garantiu
Paris, 1988. continuadores cap:.tzes ou desejosos oe Ferpetuar a tradição quantitativa
ou seri al. Isso não quer dizer que o número tenha desaparecido dos livros
11 M. Fo ucau lt, L'Archéologiedll savoir, Paris, Galli m.:l rd, 1969, p. 14. de história, longe disso, mas sua prá tica é menos categórica do que an tes.
Algumas cons tatações editoriais comp rovam-no; sejam elas 'as dificulda-
des de uma jove.m revis ta como J-/istoire cf Mesur,! (publicada a par~ir de
1986) em promove r aborda ge ns es tatísticas históricas nova, ou o fato das
últimas g randes teses de história econômica serem pouco ou quase nada
quantitativas. Daqui pra frente , o recurso ao quantitativo deve ser justi-

.
111, ficado; sua necess idade não é mais evidente.
Quais são as causas dessa diminuição, tanto mais surp reendente
que coincide com o desenvolvimento da microinformática qu e facilitou
considerave lmen te as operações técnicas e acelerou os cálculos? É pre-
c iso cons iderar a intervenção de muitos aS;'lcctos. Prime iramente, a fraca
formação matemática dos histo riadorcs, evidenciada por se 'enco ntra rem
dispon íve is programas estatísticos difíceis de dominar. Além disso, a
organ izaçflo menos hiera rquizada dos laboratórios ou dos centros de pes-
quisa e a êimcr.::;ão l11 a::; igualitária e ind ivid ualista do ~rabalh o fazem com
l&t PASSADOS RECOMPOSTOS .
ComlJcrências 185

que a coleta e a elaboração dos dados sejam hoje menos fáceis e que, história. Comprovam-no, sem. dúvida, a critica do estruturalismo, de todo
em todo caso, esteja fora de moda; esse tip o coleta voltu.~se dNavante projeto fonnalista, mas também o sucesso de ab('l[d~gens que abrem mão
mais facilmente para outras fontes, os textos em primei:-o lugar (o que da idéia de lei em proveito de uma abordagem voltada para princípios
abre, aliás, igualmente para possíveis formalizações quantitativas). organizadores mais flexíveis, como a de N. Elias. Mais :;ignificativo, talvez,
II
I pam compreender a evolução recente, é ') rápido progresso 'da micro-
II I
Crítica do pãradigma "galilaico" história. Sub .nú!tiplas formas, que hoje f'!:m dia ultrapassam o projeto
j
Basicamente essa evolução .contemporânea de ur~l desinteresse italiano fundador da microstoria, a micro-história inverte a perspectiva

I' crescente pela ' história econômica, deve ser ressituada num contexto de historiográfica~ Trata-se menos, no presente caso, de sua preocupação em
fi I
crise, o~ pelo menos de rcquestionamento, da explicação histórica. O considerar o acontecimento ou a biografia revista como entidades históricas
essenci~i s, o que possibilitada uma má aoordagern macro-histórica quan-
historiador privilegiou durante ml·;to tempo UI11 ~ represent.ação implícita
do mundo qtie apresentava duas características. A primeira era que seu titativa, do que a passagem do paradigma galilaico ao paradigma indiciai,
domínio de estur:os organizava-se em mú ltipl as. totalidades econômicas, para ficar na terminologia de C. Ginzburg. Para seus seguidores, o dilema
sociais ou culturais. Trata-se, pois, de referendar esses agregados pre- é o seguinte: "Ou garantir um estatuto científico fraco para chegar a
I. existentes (classes ou categorias sociais, variáveis ·econômicas ... ); para resultados significativos, ou garantir um estatuto científico importante para
II ' isso, o critério quan titativo impõe-se como o mais eficaz para identificar chegar a' resul:adcs desJ)r.:!zfvels". Em outms palavras, os progressos da
e classificar. Ora, seu uso não caUSa problern:t , pois à idi;ia de agregado histori ografia passam pela recusa do mito da. objetivação e do método
está ass()ciada, pelo menos implicitamente, a de homogeneidade. Alén científico e pela ace itação do privilégio concedido à interpretação e à
do !Tlais, a articulação dos diferentes conjuntos é imediata, uma vez que reconstrução a partir de vestígios e de índices. Já fieou claro que a micro-
é moldada nas diversas escalas de análise do sistema - do sistema mundo história estii distanciada do quantitativo; aliás, a moldura ultralocal quase
à monografia local - que têm cada uma seu lug::!.r, cabendo à macro-história, não o possibilitaria. Da mesma m~meira, mais fundamentalmente, a preo-
n':) entanto, um privilégio ou uma validade superior. Em outras palavras, cupação dominante não é mais a busca de concofi!.itâncias estáveis pela
essa visão hierarquizada permi te resolver a p~imeira vista a questão da seriação com finalidades de generalização" mas, ao contrário, essa última
relação entre grandezas, o que atr ibui ao número um estatuto de li nguageIr. é atingida paradoxalmente pelo indiviJuaL pelo viés do "excepcional nor-
universal, o mais adequado para descrever o mundo histórico. mal" ou pelo encadeamento dos pontos de vis ta analíticos. A singularidade
ri' A segunda característica é a inscrição pelo historiador de sua reconstruída supera a regularid"de dcscril:a. Desse modo, nada pode estar
atividade em um paradigma de conhecimento muito mais amp lo, c mais oposto do que, de um lado, o quadro es tatístico objetivando .
pa.radigma gali laico, para retomar a expressão de C. Ginzburg. Trata-se, quant itativamen tc os grupos sociais e sua tipologia ou o conceito de classes
i' no Fresente caso, de pensar o mundo histó rico menos como regido pelas que define os limites desses grupos, c, de. ou.tro, a localização das redes
lels do que por rela ções estáveis entre variáve is. O tratalho do histori ad or internacionais que constroem os contornos im precisos e nunca repetíveis
cl..""Ins iste em fazer aparecer essa estrutura preexistente, ela também sus- da relação social cujos conteúdo e substân.c ia são inacessíveis a uma abor-
cetível, como O são as total idades, de um conhecimento cifrado ou de uma dagem conceitual ou tipológica. No entanto, a cesura é completa emre o
a~or dagem quantitativa, em razão da cons t;Íncia dessas relações que
recorte do tempo histórico po r intermédio de temporalidades preesta-
permi te supor re lações estáveis. Em sum3. no mesn.0 movimento, supõe- belecidas (tendência secular, movimento longo, ciclo ... ), o que limita a
se uma for te coerência do real e uma adeq uaçã0 sem intervalo da abor- in vestigação desses movimentos par~ cada época histórica, e a
d2gem quantitativa utilizada. reconstituição dos tempos vividos, de sua arquite tura própria a cada enti-
Essa representação implícita há <llgu m tempo modificou-se em pro- dade cstudadn, dos quais resultam scriuç0es tcmpora is que são também
fW1didaàl.! em razão do questionamento sobre <1 razão da reinquisição acerca construções progressivas, jamais previsíveis, verdadeiro desafio à referên-
àz preexistêncir- das totalid =:des em que repousava a demonstração em cia de constantes c de relações imutáve is..
186 PASS,\OOS RECOMPOSTOS Competências 187

A resposta li questão-título que motiva esse artigo deve levar em dos efeit'Js de limiar, tão numerosos em economia ou em demografia, cuja
conta essa evolução recente. A transformação do questionário do histori- localização é essencial, uma vez que modifica em profu~didade a dinâ-
ador, o deslocamento de seus centros de· intcre~e e, ffi:lis ainda, do qUI"} ele mica dos conjuntos ecológicos ou sociais_ Ora, essa localização. não tem
admite como forma pertinente de demonstração modificam o recurso ao intere'ise se não se ultrapassa a simples demonstração de sua existência
quant:tativo e - o que lhe está consuhstnncialmente ligado - à formalizaçãc. para chegar a uma avaliação exata que só pode ~e r cifrada. Um exemplo
No · entamo, mais do que nunca, n re:;posta deve ser positiva ou, foi fornecido por B. Lepetit e J. F. Royer que mostraram que o tamanho
para melhor dizê-lo, nll:lca talvez as condições historiográficas foram tão das cidades é uma variável explicativa, "um objetu da hÍstória", do cres-
" . favoráveis para dar li medida toda sua dimensão heurística. Desde então cimenlo urbano, Trabalhando com cidades de mais de 5.000 habilantes
o recurso ao número é ao mesmo tempo pertinente, ne sentido mais amplo em 1806, os aulares mostraram a importância do limiar de 5,800 hab i-
da palavra, e legítimo, se ele" se insp.re em um dos três momentos seguintes tantes que distingue doi ~ , grupos estati.::'licamente robustos: abaixo, o
que definem tantos modos de intervenção no seio da demonstração ou da dinamismo é fraco; acima, o tamanho, muito diverso, não é mais um fator
reflexão histórica. significa\'jvo de diferenciação das taxas de crescimento. Sobre a signifi-
O primeiro aspecto que justifica essa resposta positiva. é do campo cação desse limiar, a estatística é evidenlemente silcnciosa, fiaS ela abre
da função de med ida própria ao uso do número. Essa função é a primeira para uma intc.rpretação histórica que tcm oportunidade de se exercer sobre
a acorrer ao pens:ar.ento, mas. eld r.ão d::!!xa de causar problema. Efeti-
um objeto pertinente. .
.") 1. vamente, um dos fatores mais pernicios:Js (mas também o mais exato) da Para o segundo caso, os exetr.plos interessantes dizem respeito
desqualificação do quantitativo em história foi a confus20 freqüente, e as ireqüc:r1.temente a reflexões teóricas que Dão encontram justificativa his-
mais das vezes implícita, entre a expressão de uma problemática por um
\. tórica senão com uma aplicação numérica.. As reflexões de P. T. Hoffman
laco e a instalação de um dispositivo estatístico (dados e método) do
, ~: sobre a produtividade agrícola francesa em longo prazo são uma ilustra-
outro. Muitas vezes, o segundo pressupunha (l ·primeiro e o historiador ção disso. Seu estudo se baseia n" análise d e 809 cont~atos provind~s dos
achava ou dem onstrava, sem nem sempre dar-se conta disso, o que estava arquivos de Notre-Dame de Paris entre 1450 e 1789, para co~s trulr um
í'
'I"
I"' contido nu seu método como hipótese implícita. A decomposição canônica índice da produtividade total dos fato reS suficientcmente sólido do ponto
!r dos movimentos conjunturais p:lfa mostrar a validade da abordagem em de vista quantitativo permitindo retraçar uma evolução de longo prazo
termos de equilíbrio econômico (ou demo-econômico) de lôngo prazo é mais confiável do que a propos ta tradicionalmente apenas pelas dízimas .
um exemplo bem conhecido. Para tentar fugir dessa armadilha, é neces- Essa abordagem é verdadeiramente nova em história rural por propor uma
sário que não se finja ignorá-la: é ela, ao contrário, que permite desvincular medida da evolução de uma variável essencial pelo viés de Uí.l índice
as duas form as legítimas da fun çãc de medida. construído a partir de hipóteses econômÍC3S explicitadas (sobre a medida
Num primeiro caso, a form alização quantitat iva não passa de au- da produtividade dos fatores, em particular). o que permite ao mesmo tempo
xiliar, claramente submetida aos interesses histó ri cos expressos em outro tcr uma aprcciaçflo crítica da sua validade c atrit:.uir-Ihe uma significação
lugar e numa linguagem própria. Seu objetivo pode então ser duplo: seja histórica que poderá ser, segundo o caso.,. trivial ou inovadora.
'I o de fornecer respostas (em termos, muitas vezes, de invalidação de Um outro jovem histo riador americano, J. L. Rosenthal, propõe
hipóteses) para perguntas moti vadas por uma prob lemáti~a histó rica urna ilustração dessa capacidade da medida de ge rar questões interessan-
amp la, a úni ca capaz de dar um sentido a resultados quantitativos que não tes. Seu trabalho se situa na corren te in sti:;u~ ion a \i sta da teoria econômica,
peJ em por si só adqu irir uma significação; seja o de au torizar a formu- amplamente aberta às preocupações hi:: :óricas a partir dos trabalhos de
laç.ão de pergunt as ou a emergência de problem as qu e não seria possível Douo\ass North. Duas questões centrais o estruturam: em que medida a
o ,
est3 belecer ou basificar-sc fora da linguagem cifrada. Não são poucos os moldura inst itucional quc regu!a os dire it .."'"\s de propriedade frclíl o desen-
exemplos de semelhantes estudos que demon $ ~ram, na prática, a perti- vo lvimento agrícola no Antigo Regime, e as reformas oriundas da Revo-
nência do raciocínio quantit;l'ivo. Citemos, para o primeiro caso, o estudo lução s;mpli~icaram .:õ igni ficativament e - portanto melhoraram - a estrutura
ISS PASSADOS RECOMPOSTOS Competências 189

-:los d ireitos subre as propriedades territo riais ? A partir do exemplo da di fe renciando as hipóteses teóricas para chegar a resultados condicionais,
1
drenagem na Normandia e da irrigação na Provence, a abordJgem quan- c, portan to, de uma validade melhor controladd. Somente nessas condições
titativa mostra que nem a evolução da tecnologia, nem a dos preços será possível dar uma maior visibilidade a t..-abalh0s tão notáveis, por exem-
rel ativos podem explicar o fracasso agrícola do sécul o XVIl!. Por outro plo, como os de F. Bourguignon e M. Lévy-Lcboyer sobre a economia
11 lado, um modelo formal da teoria dos jogos, conceb:do a partir de hipó- francesa no século XIX, que r.ão suscitaram talvez o ciebate ~pcrado .
teses coerentes com as realidades do século XVIII c alimentado p!?los
dados quantitativos pertencendo ao .mesmo período, nlOstra que um s is- A quantificação como formalização
tema mal definido de direitos de propriedade, com custos elevados para A segund a contribuição da his tó ria quantitativa reside na sua ca-
litíg ios, era ao mesmo tempo parte integrante da própria estrutura do pacidade de renovar a formulação intelectual dJS problemas e de propor
Antigo Regime - portanto imri1ssível de ser reformado sem revolução _ caminhos originais - às ve:.:es contra-intuitivos - para sua ·conccitua-
e muito ineficiente no controle do uso da água. Ao contrári o, depois de lização. É claro que nos distanciamos aqui do processo quantitativo tra-
1820, irrigaç7.o e dr..!nagern se desenvolvem. dici onal que faz do número um simples índice de grandeza,' com finali·
Em um segund o caso, a invenção conceitual s itua-se, ao contrário, dades de descrição estatística. A dimensão formalizadora é que, ao con-
na medida z não mais na. expressão de um problema que se trata de trário, é central; em certos aspectos é o caso, de fato, de uma mudança
aoorda r em pa rte pelo quanti tat ivo. Todos os traba lhos que se podem de paradigma. É preciso distinguir d0is de seus aspectos. O primeiJO pode
reagrupar sob a etiq ueta de "econometri a retrospectiva" - el es se multi- ser qu alificado de f ormalização qua ntitativa, no 'sentido de que propõe
plicaram consideravelmente de uma década pra cá - , herança da New novos instrumentos para interpretar dadf)$ :eai'i; 0 sc..gundo é antes do
ecoIJomic history de R. Fogel, pertencem a essa corrente. O nún:ero está campo dos modelos de reflexão, pois s uge re conceitos de análises dife-
no cerne da operação históri ca um a vez que a problemática se elabora e rentes. Eis alguns exemplos:
exprime através do processo de medida qu e cont6m de maneira explícita ! - A questão das temporalidades ilus tra muit~ bem o primeiro aspecto.
todos os motivos da demonstração. A principal tarefa da "cIiometria" (no Viu-se que a his tória quan titat iva trad icional baseava·se numa riecomposi-
sentido próp rio, é de efetiva mente exp rim ir qu anti tativamen te as corre- ção estatística que se tornou· canônica (a do modelo Labrousse-Braudel,
lações entre a evolução de grandes agregados (poupança, produção, con- poder-se-ia dize r) e acabou por impregnar todas as representações históricas
sumo ... ) cuj a teoria prevê a existência. Essa operação é muito poderosa do tempo. Uma evolução diferente é entrevista, desde que uma outra abor-
um3 vez que permite ao mesmo tempo uma descrição cifrada completa dagem em análise das sérir.:s temporais g3J1hou impulso, primeiramente
de uma econom ia antiga e uma refl exão arg um entada sobre a pertinêltcia entre os estatísticos, depois entre os ' econo mistas, durante os anos 1980.
de hipó teses teóricas que n50 é possível tes tar mas avaliar empiricamente. Trata-se, para ser suscinto, de iuterrogar-se acerca do estatuto da tendência,
Eia só tem, no entanto, um alcance metafórico. Trata-se, efet ivamente, de de decidir se ela é de fato determinista (o que está imp licitamente suposto
U!!l:l ficção argumentada, mas passível de revisão caso mudem-se os muitas vezcs) ou se ela ap resenta uma dimensão aleatória mais ou menos
princípios de inteligi bilidilde, que não se deve ri a tomar pelo rcal. A exata fo rte. A distinção é essencial, já que modifica a natureza da di nflmica
npreciação dessa históri a quant itat iva não es tá, portanto, na acei tação temporal, quer seja o estatuto do acaso ou a expl icação dos ciclos. Os novos
ir:con dicional nem na recusa completa da formalização - duas at it udes questionamentos dessa decomposição, que se tomará, talvez, ela também
que produzcm o mesmo efeito de descrédi to COIll relaçã.J à história quan- canônica, são importantes como se pode ve ri ficar do lado da teoria econô-
ti!:! tiva - mas ela deve levar a séri o o dis t<l r.c iamcnto es pecífico cri<ldo mica com o desenvolvimento ' da teoria dos c iclos reais. Os historiadores
po r essa problcmatização quantitativa. O que s upõe, por um bdo, interro- ainda não tCó1balharam suficien temente co m esses métodos, exclu indo cer·
g~ : ·sc sobre o modo de : :t ssocia r as a'luis ições e resu ltados d<l econometria tos setores como a demografia histórica p:=.ra os quais a natureza da dinâ-
reüospecti va CO I11 diferentes abordagens, em que a dis ttmcia do real (que mica tempo ral causa problema, mas rev isô...,s históricas 'são previsíveis, não
o h istoriador !lUnC:l alcanç:1) é di feren te; po r outro, mult ip licar os modelos, somente quanto à arG'.litetura das temporalidadcs mas também com a
190 PASSADOS RECOMPOSTOS CO'11p<léncias 191

introdução de novas questões bas tante variadas sobre a dcpcndên~ia de supor qu e o próprio mecanismo encontra-se, ao mesmo tempo, efetiva-
muito longo prazo ou a influência do impacto de UI11 acontecimento brutal. men te presente e invisível? A pergunta não é trivial e autoriza uma
Aí ainda, os problemas de interpretação são nUffie;cosos - c os t '::5 te5 arg umentação muito diferente para questões histó ricas antigas. O mesmo
estatísticos rev elam-se, nesse caso, pouco eficientes - e seria falso can- acontece cem as ~bordagens, melhores conhecidas nas ciências humanas,
sider de essas abordagens co:n0 sup~riorcs ou mais vcrdadbiras do que as centradas na auto-organização. Estas também propõem modelos tempo-
<::lted orcs : sua per tinência está em outro lugar, ou seja, na sua capacidade· rais novos que interessam ao historiador_ Não deixa, de fato, de ser
de deslocar ques tões {;; rcprcsentaçé?cs. interessante observar que, em certas condições, um sistema de equaçõe::;
2 - A formalizaç ão quantitativa assim concebida n5.o está muito distante di fe renciais não lineares, longe de conduzir apcnas ao tempo da dinâmica
dos modelos de pensamento de que vamos falar agord. A diferença é que, clássica, pode dar explicações acerca das características impaCtantes do
no momento, ao menos, esses me deIas se prestam pouco ou quase nada tempo histó rico: por exe")plo, pôr em evidênc:a a existência das trajetó-
à aplicação direta sobre dados históricos . Ficaremos satisfeitos com al- rias de bifurcação geradas de maneira cndógena, isto é, privilegiar a
gumas ilustrações desse fato. mudanç~ em detrimento das continuidades, as regularidades oão-
A reflexão sobre as 'cscalas tornou-se central nas ciências sociais de te rministas de preferência às reco rrênci as estáveis. As dificuldades
c, como já se viu, na história, com o debatc micro/ macro. A dificuldade lt;vantadas por essa abordagem são nUII!.erosas, seja ela a' validade da
em pensa r essa diai ética accntua, ou que ~c trat!) de ~m falso p:oblema, desc rição de um processo histórico por um sistema de equações diferen-
•• ou que é nccessá rio deslocar os modelo~ implícitos de pensamento. Ora, ciais ou a identificação de trajetórias teóricas (c de suas bifurcações) com
,if: esses últimos inspiram-sê muitas vezes na 5sir-..él clássicd, cum .JS noções os Jesenvolv imentos temporais reais). Mas esse é o pr,eço a se r pago pela
,, ~I. de continuidade c de encaixe de escalas. Desenvolvimentos matemáticos renovação das questões.
re ....--entes acerca da geometria dos fractais demonstraram que outras repre- O último aspecto penence ao campo da epistemologia ao qual as
sentaç,ões - às vezes contra-intuitivas - da relação entre g ~and ezas são cons iderações precedentes já nos tinham conduzido. É evidente que a
válidas. Se a invari5ncia possível dos fenômenos em todas .as escabs , do utilização da rr.edida para fins primeiramente heurísticos, tendo em vista
macro ao micro, é uma das contribuições mais conhecidas dos !!'abalhos fo rmular qu estões e suge rir novas interpretações, suscita questões delica-
de B. Mandelb:ot, as outras corlseq üências .:>obre a forte variabilidade da das, não costumeiras para o historiador. Com isso, não se corre o risco
escala pertinente para apreender o desenvolvimento de um fenômeno ou , Je mergulhar em um universo metafórico,. de forçar o real e~ desenhos
de um ponto de vista analítico, o cara ler arbitr.iri o das di stinções que são' analíticos, a seu modo muito coercitivos? A dificuldade é real e força a
menos do campo da evidência ou apenas da lógica do que da escolha de associar, mais do que antes, um pensa men to acerca da validade das de- .
,, um observador, todas essas considerações novas sobre os efeitos do focal mons trações a outro, acerca do con teúdo_ O processo quantitativo tem,
utilizado devem ser levadas em conta pelo his toriad or, mcnos para inva- no entan to, um outro interesse epistemol ógico, o de barreira para contro-
lid3r as a nti gas g rades de análise do que para multiplicá-Ias. la r o valor ou a força do d iscurso histórico. Nesse sentid o, 'é possível
Deve-se fazer o mesmo uso das refl exões acerca da din âm ica do inv oca r em se u auxílio a rg ument os si milares aos utilizad os para
caos. D esse modo, a fac uldade de certos processos ao mesmo tempo desvincular a históri a da ficção. Efetivamente, a idéia de uma validação
simples e bas tant e deterministas em engendrar formas temporais que por ela mesma da demonstração hi s tóric a~ como nas ciências da natureza,
apresent am todas as características de um encam inhament o aleatório deve está daí em diante caduca. A história não :,ertence ao campo da prova no
d<:!.I o que pensa r. O historiador encon tr a-se, muitas vezes, efetivamente se ntido cláss ico, e o universo de Poppe r lhe é estranho. Apenas a multipli-
às voltas com essa mesma dualidade, ou SCj3, os esquemas de aná lise de c idade e a conve rgência das demon s traç'~es são proba ntes. A va lidação
con teúd o determinista e as observtlções rebel des de uma ord enação s im- é apenas relati va. Nessa moldura, o int:eresse do quantitati vo é tri plo.
ples : deve-se resolver a con trád ição associandu acasos imprevis tos, que Primei rame nte, cle constitui uma maneira cn tre outras de desc rever um
[ornariam menos v is íveis u::! mecan ismo bem det erm in ;-.do, ou se deve fenômeno: pouco importa aqui qu e cst.3 seja considerada inferior o u
, '

I
192 PASSt.DOS RECOMPOSTOS

s uperi or a escritas mais literárias ou intuitivas? só conta o fato de tralar-


s e de um a d escrição suplementar não redundante. Em seguida, a análise SEI'::;
;f
I
I,
I c~tatística concribui para definir o universo dos possíveis. Se ela não
pode vD.lidar por si mesma, pode conferir uma plaus ibilidadc variável
A Arte da Narrativa Histórica
às afirmações propostas. Assim, se é fá cil m ostrar que n-.uitas decom-
posições de séries cronológicc.s são possíve is , isso não s ig nifica que F/MNÇOIS HAUTOG
todas o seja m, Ql! que [LIdas tenh am a mesma pertinê!1cia quantitativa.
Finalmente, o número - bruto ou elaborado - é um a referência, ou
melhor dizendo, um índice. D o mesmo modo que um fragment o de texto Se um homem esclarecido se dedicasse a
escrever sobre as regras da .história, poderia obse rvar
v u de um caco de ânfora, ele orienta a ·intuição. Nesse sentido, pe rtence
que um exce lente hi storiador UJvez seja ainda
ao campo do paradigma indiciai evocado acima: desqualifi ca r o paradig-
mai s raro do que um gra nde poe ta.
ma galilaico não basta, portanto, para elimina r o recurso ao quantita-
Féll eloll
tivo. Somente as modalidades da hist ória quantitativa mudam . Aposte-
mos: essa mud ança e.s tá apenas começando.
Narrativa entre outras, a história singulariza-se, no entanto, pela
relação especifica que mantém com a vel·dade, pois ela tem, de fa la, a
prc;len ~ lio de remeter a um pass:ldo que realmente existiu. O que pode
e ntlio, a partir daí, diferencillr o enredo histórico e o earedo roman esco?

A história conta? Não, é Alai n Decaux ql1:em con ta. Mas, ele nE.o
te m repre ~e nlad o para muitas pessoas, em nossas telas de televisão, o
rosto e :"\ voz da his tória? Não el ogiâvamos preci&a men te seus talentos d:::.
contador de história? Aliás, não cos tu mamos ler, em historiadores pro-
;:r,
j
"
.~-~ I
fi ssionais que rendo d ivulgar um livro de his tória, que este se lê como um
roma nce? Lemo-lo de cabo a rabo, livro univers itário, sé rio, ele foge ao
I
! suposto téd io do gênero. Nessa fó rmula e logiosa, tfi o gas ta qua nt o fre-
i qüe ntemente empreg<1da, tud o está contido no como: cu, que estou lhe
recomendando, a você, leitor não- especialis l3, garanto-lhe que se traia de
f;:!1O de história - de acontec iment os realmente ocorridos, de um fenôme-
no histórico verdade iram ente expli cado, de ;lfquivos inéditos exa minados,
I de, efe ti vamente, novos conhecimentos - , mas, não obs tante ou alé m do
ma is, o livro pode se r lido: a monta ge m, o enredo, a escrita fazem com
que você, leitor, possa mergulha r nele como num a ob ra de ficção , en lre-
fJ.r-se ao p razer da leitura, instruir-se c divertir·se ao mesmo tempo.
Como um romance quer efetivamente dizer <15 ap.nências de um roma nce,
mas nflo um roman ce, menos ainda um rom all ce histórico, pois este põe
3 se rvi ço da fi cçüo o deta lhe que faz soa r verdadei ro. Pelo como indica-

~e qu e o leitor sa i supostamente ganhal~ rJo I!')S dois tabule iros.


t 94 PASSADOS R[COM PO~TOS Competências 195

Então a histó ria conta? De modo algum. responderão esses mes·


IO OS historiadores profiss ionais, há luga res para isso c há muito tempo Eclipse da narrariva
que. a "história-narra ti va" não é mais nosso caso. Rcportem-~e, portanto, Chegando a esse ponto, um balizamento histórico pode ser útil.
aos sarcasmos ditos por Luc ien Febvrc, nOS a nos 1930, a propósito da Quando se fala de rejeição da narrativa por parte dos historiadores dils
história·!1arrativa, "historicizante", évéll cme:.ntielle ou "história-bata- A.ll11ales, o que se quer indicar com isso? Primeirilmente uma pO!êf!lica
lh as" ! E, melhor ainda, vocês sabem que ô! his tória constituiu-se em instillada cOiltra a história pm,it!vista en tão dominante. Com o que se
disciplinas, na segun da metade d<? sécu lo XIX, optando, pautada no q"Jeria romper? Com a ':história-narrativa" (ou historiciza ntc ou évémcll-
modelo das ciências naturais, pela ciência contra a arte. Ciência de 'leI/e, sendo essas palavras praticamente sinô nim as); mas nessa expressão
obs ervação, ciência de análise, lei tora de documen tos, que um dia tal vez desvalorizante, em nenhum momento, a narrat iva enquanto tal foi proble-
desembocará na síntese e na li bertação das leis. Lembrem ·se das ,')bjur- matizada. A história-narrativa é s implesmente a que põe em primeiro
gações reiteradas de Fustel de Coulangcs ou das inst ruções minuciosas pl ano os indivíduos e os acontecimentos. Seu novo questionamento efe-
de Langlois e de Seignobos: Para ela, a narrati v~,é s inônimo de afetação tu a·se debaixo da pressão das jovens ciências sociais, para quem o objeto
o u de ingenuidade (a crô ni ca medieval é ingênua). da ciência não é mais o indivíduo, mas os grupos sociais, não mais a
No entanto, na série dos retornos anuncü!dos a que nos acostuma· seqüência dos acontecimentos em sua superfic ialidade, mas o "fato social
ra'll os últimos quinze anos, não faltaram nem o do acontecimento nem total". Tornando-se econômica e social, a história en tende com isso, il0
o da narrativa. Com o título "retorno à nu rrativ'a ", o historiador Lawrence que lhe d iz respeito, contribuir para a construção dessa nova ciência da
Sw!'!e lev;:.nto'l essa dif!culdade <;lté en tf:o imprevisla, desde 1979, ap re- sociedade sobrr: si própria. Passando do nacional (sua preoeupação maior
semando um primeiro "demonstrativo das mudanças operadas na moda durante o s~cu lo XIX) ao social, a históri a logo deixa de lado a narrativa
historiadora". Mas o que ele designava por narra tiva o u narração não tinha das origcns, a narração contínua GOS fau stos da nação, pelo recit at ivo da
sido de modo algum problematizado. Era somen te uma "abreviação cô· conjuntura" (ela quantifica, cons trói séries ergu~ quadros e curvas). Não
7

moda", permitind0 descrever um fenômeno de tomada ue distância com se conten tando mais com a ordem da sucessão e com o fio da cronologia
relação às diferentes formas da história cientíifica até então predominan- (subentendido apenas pela idé ia de progresso), de mil maneiras, ela
tes 1. Descritivo talvez, o termo não era, eonrudo, neutro. compara, c iosa em fazer apa recer repeti ções ~ remanescências. Em seu
Com mais ser iedade, foi de um fiI &:::.ofo que veio a reflexão microscóp io, o acontecimento não é mais ""visível", não é mais legível:
maior sobre a questão da narrativa (em su;! relação com a história). P?r s i mesmo ele não é nada, ou quase nada, e a luz que projeta é
Em Tcmps ct récit [Tempo e narrativa], Paul Ricoeur, c ioso de sondar totalmente tomaja de emp rés tim o. O te mp<l com que ele trabalha não é
o misté ri o do tempo, considera sucess iva men te a história e a ficção c mais o do acontecimento, muito suscin to e não s ign ificativo, mílS um
chega a conclusão de que não pode!"ia haver histó ri a sem elo, por tênue 1Cmpo social também, yue ciclos, conjun turas, es trutur as e crises escon-
que seja, com a na rrati va 2 . Filósofo, s itua nd l...... ·se na trad ição hermenêu- dem. Com suas oscilações c seus movime r.tos de grande amplidão, suas
I .. tic ~ . bom conhecedor riu filosofia da his tóri..a ang lo-saxônica, Ri coe ur camadas profundas e suas lentidões, css.:- novo te mpo histórico (que
transformou·se para esse fim no leito r cu id:zdoso e in ven ti va dos his - conduz para o longo prazo bra udel iano) não sabe o que fazer com o
toriado res franceses contemporâneos que, na ins ígnia dos A nn ales, 3contecimento e com a história política. Assim, a históri a proclama qu e,
qui ser.ull precisament e dar as costas ~I "hi s(l..-) ria·narrativa". Começa n- re;:)Udiando·o, abandona-se com isso a narr 3Iiva. É suficiente, pois, reeu-
do por Bruude l e seu A1éditerrallêe, liv ro bú sso la dessa nova hi s tó ria. sa r o acontecimento e o ind ivíduo para esc:.l?ar 5 narrativa? Inversamente,
Com certeza, ex iste uí uma apos ta impor:an te para quem diz que. é s uficiente evocar o retorno do acontecim ento e do indiv íduo para con-
hi::::t ó ria e narrativa não são tota lm en te sCç'arávc is : corno class ifi car, duir pelo re lorno da narrativa?
cnt50, essa história? Ela ser ia a ex:ceçiio o u man teria então um elo com QU<1nd o Lucien Febvrc, refl et indo s\."'bre o obje to da hbtória, con·
a narrativa ou com uma forma de narrativ:!!? c1uía "os fatos são fal os" , ele aproximava o historiador de histologista,
196 P ASSADO:; RECO ht POSTOS ComlJcCências 197
!
que Só vê através da ocular de seu microscópio aqu ilo que ele "preparou" ainda um pouco mais. a perspectiva his torioi;ráfica, seria preferível então
I
,I preliminarm ente. Denunciando uma concepção obsoleta da ciência (essa
que ;lo histó ria positivista invocava tend o permanecido em Claude Bernard),
falar de uma ocultação (de modo algum deli berada) da ques tão da nar-
rativa, muito anterior ao combate das A1Znales contra a história positivista
ele acreditiJ.va estar conduzindo a his tória para o lado da ciência viva, e c em favor de urna históri a social (o real é social), m·J ito anterior também
de modo al gum, aproximando-a da na:, rativa de ficção . O historiador ao r.ombate, travado na segund a metade do século XIX, em favor de um a
constrói seu obj:!to, Cul110 o cientistll, n~o como o ror.1 ancista. Com essa históri a não mais arte, mas ciência, mais rreocup ada em conhecer do qu e
fóm1Ula, Febvre não pensav a de modo algum em vê-lo c0.mo um mestre °
ressuscitar passado, história, em todo caso, muito pouco évémentielle.
de enredo. "Os fa tos são iatos" er·a um requis itório em favor de uma Onde o historiador. transformado em homem de arqui vos, observa, esta-
his tó ria mais científica ou verdadeira me nte científica, um convite a pensar belece os fatos (como o fil ólogo estabelece um texto) e os expõe sem
s00 re suas condições de elaboração (e ti levar Péguy a mentir, recrimi- pesquisa e sem lustro: tais como são.
nando aos historiadores faze rem comumente hi s t~ria sem meditar nos
seus limites e nas condições da histó ria), mas, de nenhum modo, um História e re tórica
quest ionamen to sobre a escrita da história : sobre a narrativa. Durante todo o tempo que, efetiva.mente, permanece operatória a
Depois disso, a his tóri a manteve e reformul ou essa ambição de distinção entre res gestae e historia rerum gestarul1l, as ações realizadas
ffi:!is ciência (porta nto, de mais. re al ou mais verdade), p:inciFalmcntc pelo po r UIT! hdo e sua narração pelo ou tro, a qu estã o da narr ativa não se
uso da referência marxista ou, num plano mais técnico, pelo recurso ao coloca. Ou, em outras palav ras, é ev idente que o trabalho do historiador,
computador. Sem tornar-se uma crítica epis temológica, a história mos- s.!u ~aleflto , sua ori gi nalidade cum rel ação a seus predecessores, em re-
trou-se ainda m::is ciosa das condições de sua produção e mais consciente sumo tudo aquilo em função do que um príncipe a ele recorreri a decorre
de que seus objetos não eram daàcs nas fontes, mas prouuzidos: era do seu domínio da arte da exposição. Em tal regime de histori cidade, a
preciso que ela pnmeirame!lte estabelqccsse as perguntas, formulasse as história pertence claramente ao campo da retór}ca, e pode ser justamen te
hipó teses, construísse os modelos, muito mais do que· contar o que se definida, serundo a fórmula de Cícero, corno opus oratoriwlI max ime. Ela
passara. Ao final de um artigo provocador e famoso ("Le. discours de é obra oratória por excclência: o o rmor, o orador mas também o homem
l' his toi re" [O discurso da história]. 1967). ded icado a exam inar se algum político, é o homem mais capaz de escrever. O que não significa, de
tr:!ço específi co distinguia narrati va histórica e narrativa fictícia, ao nível nenhum modo, que a históri a di si~c n s e a ex igência de verdade; pelo
d:!S modalidades da próp ria narração, Rol and Barthes observava q~e "o contrário, ela se afirma com 11U:: veritatis (luz de verdade). Existe todo um
apagamento (quanch não desaparecime nt o) da narra ção na ciência hisló- estoque de fórmulas famosas do mesmo Cícero que retomam e vão trans-
,I ric-3 at ual, qu e procura falar das estruturas ma is do qu e das cronologias", mi~ir essa vulgata hel enística até a época modern a.
cr:?: o índice de uma mutaçãv ("o signo da his tória é, daqui pra frente, menos Corolário dessa defin içãf'\ é a concepção, de Cícero também (e mais
u real que o inteligível"3). A exp ressão é aceitávcl se ncrescentarmos que amplamente, helenística), da histó ria com0 "exemplo": ela é coletânea de
u :cal, assi m visado, encontra-se datado, c é o do realismo - do romance exemp/a e "mestre de vida" (lIIagisrrll viw ~). Esse é o tema das lições da
re.3lisla -, conceb ido como imitação do re al. O inteligível n5.o é, portanto, história . Almejando form al o cidadão, e.s.clarecer O homem político, ela
0Fonível sem mais di ze r ao real, mas, s im plesmente, a um cert o real. deve também poder servir ;1 instru çflo do homem par ti cular. Narrativa das
Sem quere r jogar com as pal avras, viu-se portanto a história mo- incons tüncias da sorte, ela deve ajudar a sup ortar as viradas da so rt e, e
de rna praticame nte renunciar à narrat iva. sem nunca colocar a ques tão da propõe exemplos a imitar ou a evi tar. El:! se torna desde então, de bom
n..:.rrativa enqua nt o tal. Desse moclo. cm lugar de se fa lar de aba nd ono, grado, "biografia": ma is ciosa ainda do que não se vê imedi atamente, aten ta
s": íia preferível, com Ri coeu r, fa lar dc "cclipsc" da narrativa (nüo a vc- :l tudo qu e Plutarco chamar:í os "sig.lh1s d:J ;':'.:111<1", brinca com O encadeamen-

n: .1S,
. mas ela eSlú scm pre presc nte e será de outro modo visíve!: o " re- to admiração, emulaçflo, imit ação. J.: istó ri a fi losófica, quer dizer moral , ou
tl""\ rno"? - e suas fac il idades de proIllo-p.ua-pensar). Se pro10ngar mos, seJa, esse espelho estend ido em que cada uO"'. atr;lvés dos retratos escovados
198 P ASSADOS RECOMPOSfOS
Competências 199
c as anedotas contadas, pode observar-se, tenà0 em vis!a agir e tornar-se
melhc •. Com essa história de fin alidades mais éticas do que p olíticas, ou Como ela poderia ainda continuar srndo exemplar quando, como observa
me-smo s:mplcsmente, cí\,'icas, lJassou-se da cidade ao Império 'Romano, ou Tocqueville c~)I1 fro'1tado às perturbações da Revolução Francesa, o passldo
de Cícero a Plutarco, cujas Vidas marcaram de modo perma..'1ente, para além não aclara mais o futuro, quando a distância vai se forj ando entre campo de
J a Antiguidade~ as maneiras de escrever c us usos da história. experiência e horizonte de espera, entre aquilo que se conheceu e o que se
Ass im, ainda no sécLl lo XVI II , Cíce ro e Plutarco são parafrase- espera (ou teme)? A lógica' do progres!:o é quell1 dete rmina que o exemplar
ados e desvinc ulados, no muito difundido Traité des étlldes (1726) do dê o luga r ao único. O passado tOlna-se ult;-apússado.
ab~dc Rollin, onde a história é apresentada remo a " escolha comum do Mas com a história-Geschichte, a ques tão da narrativa, da naCíação
gênero humano". Nessa perspec ti va, mesmo a história pagã pode ser não mais se coloca. Há ocultação dessa dirr:..ensão: a história em si mesma
"s a lva": a partir do momento em que se lh e recon hece um val or de é, por hipótese, res gestae e historia rerum gcstarul1l no mesmo movimento,
forn1aç ão para os príncipes primeiramente, mas també m para os súdito~, os aco ntecimentos e s ua narração. Pois a his tó ri a fala e, no limite, fala por
contá-la é lícito, aprendê-la é ú!il. s i mesma. O bom historiador seria, justamente, o homem que se apagasse
diante dela: não aquele que, a exemplo de ~1i ch e l e t, leva-a a falar, sobre-
o conceito de Geschichte tud ..J nos seus si lêncios, mas aquele que a d eixa falar, simplesmente.
o u a história cQnhecimenlO de si mesma Entre a co ncepç~o retórica da história e a posição d.J historicismo,
Ora , a segund a metade do sécu lo XvTI I assistirá, na Alemanha há luga r para estados intermediários. Como Fénclor., com seu Projet d'rlJ1
inici<! lme nt::!, ao abandono progressivo des.;es lopoi e a exp ressão de um traité Sllr ['!listoire [P rojeto de um trat ado sobre a história] (1716). Propon-
novo regime de historicid ade. O tema da história m agistra vitne, se do à Academia qu e ela mandasse escrever tal livro, ele forn(;ce suas linhas
ai nda é re tomado ritualis ti camente, esv azia-s e de se ntido verdadeiro e ge rais e é levado, nessas circunstâncias, a esboçar sua própria concepção
a div isão res gestael historia renuu ges tarurn não parece mais pertinen- da história. Se cOrPeça ressaltand o o tema ciceriano ou estimulado pelas
tc, Ass is tiu-se entre os séc ul os XVI e XVIII a uma probressiva a u- lições da his tória, passa r3pidamente da re ló rica à poé tica, comparando a
tonomização da história, qu e os fi lósofos e os his to ri adores alemães vão história ao poema épico (e citando, dessa vez, Horácio). O historiador -
ratificar formando e impo nd o pouco a pou co o co nceito de Die prossegue - deve "vê-la inteirame nte nu m só olhar... mos trar sua unidade
G~sc"ic"le : a história no singul a r, a hi s t ó ri ~ : m s i, a His tó ria<l. Daqui
e retirar, pei" ass im dize r, de .u ma só fonte tc-dos os priiici pais acoiitecimcn-
para fren te está caduco o di spos itivo qu e de te rminava que houvesse, de tos que dela depend em". Fénelon não é, todavia, um historic'ista avallt la
um lado, os aco nteciment os, os fatos e gesrcs do príncipe p o r cxem pl o, letlre ou um inventor da ilist6ri a em si, tendo nela própria seu começo e
c do o utro, s ua expos ição , sua apresent ação. 3 narr ativ a que del es fa zia seu fim (sua própri a visada, seu leias em linguagem aristotélica). Pois o
, f
a $ua hi stori og rafia . Nã o, há um a histór ia que evolui depressa: história que justifica o desvio pela poética é, antes de tudo, o fato de se l ev~ r em
pn.'\cesso ou proces.ws, históri a prog rcsso F=-incipalmente. Nessa nova consideração o leitor. É para esse últim o que o historiado r deve fazer com
m"'l ld ur a co nceitual .1 histórin. definir-sc-5, fi.:.almen le, segundo a fórmu - que sua história pareça " um pouco" com (' poema épico, tendo o cu idado
la de D royse n, como o co nh eci menl u de si mesma. de " most rar-lhe as rel ações" e de "fazê-k") chegar ao desfecho". Nesse
Sem dúvid a, saiu-se do espaço da rctóriC3, que prcss upunha a divis50 aspecto ele se desvincula totalmente do erudito qu e "segue seu gosto sem
co ns ult ~ r o do público" e ac umul a pág ina a trás de página os achados de
cn::re res geslael historia e ond e a quesl;"to da n::urativa enquanto tal n50 se
..:\....jocava, ou melhor, n50 causava problema ep :'stemológico sé rio . Tomando sua " insaciável curiosidadc" s. A poética é, pvis, tam bé m polêmica. De resto
dtOempréstim o primciramcntc ao tribunal e às ~ éc ni cas de inquérito judicial , Fé nclon passa da retórica ~l poética, aprox im::mdo historiador e poe ta, até
o ~is t o riad o r recon hecido como mest re em ar:;:s oratórias, dcvia então im- co ncluir, com um sorriso se m dúvida, que t!:ll excelent e historiador é talvez
pr~ :·.s i o n ~lr, mas sobretudo co nvenccr se u au di: : rio, gu iado por uma lógica
aind a mais ra ro do que um g ra nde poe ta.
da pers uusão. Do mesmo modo desfez-se o vel bo lÓpOS das li ~ ões da história. Essa abord agem poé ti ca, a hi stória- Geschichre, nem ignorou, nem
proibiu. Mas para ela é a própria história. po r si mesma, que é épica. O
200 PÂSSAOO~ RECOMPOSTOS Coml)(~[êl1 cias lO 1

histori ado r não.tem ~e faz,er como se ela n fosse, siluando-se do. pon~º c de acontecimentos, Tendo por coroláno que o acontecimento não é
, I.. ' ,. • <.1(# .. .::., ~ u
de yista do leitor, Ela ·t~m em .si :nesrpa ~scu começo e .s~u , flIr., f..e~J.çlo~ sempre;
~ •
ou simplesmente:csse
, -' .U .'
resplandecer
,J ,11,:' '1,L 1.t. ,Joo,. ; hll
breve, li .mitado
,,' " ,
ao" , .terceiro
,lI.., - " • ••• !l.. '(tU
próprjo: ,sua jiVisada:;:f? {s,e u.; scntido",JlldL :; ): "i.t:p ,(11 11 11 " '0 ;>ilWI J:lf,fJO ,OG!' n ~ye;, j o~_d~ fJ a.car.t.o~~~ .j~~~'l!?O, .: j3rau_d<:l : ,Çom funções~ diversas, o
;' , " ... L:, I I
M '

~(. :)ur-Mas, H aO)ltorn~lf:-seJ ~isciplina~ 1! a. história . desconfiou :.d~s~.a :,J'Ôs~9..


.,
acontecimento pertence a todos os,níveis c pode ser mais ,precisamçnte
rOmâtltica, J. Prç tenden~o J:ser , da Í..; para frenl e ciên~ia positiva, ~jÇlbjc~iva, de fin ido como "uma varian te do enredo". Têm-se aí uma nova confir-
.I~H' ,( • ~ 1
apoiada em fatos, ela :.Iimilyu 'suas ambi\S-ões, com R=mkp, poatentandq:- m'ação :'de ' q'ue-rejêitâr o' a'co ntecirnen to não significa fazer desaparecer
se cm dizer co~o .ãt·~oisas acontecer-am (wie es eigentlich gewes(w). Para a narrativa (nem o acontecimento), mas tran sforiná :l ~s. A polêmica
sabê-lo c dizê-lo ;era necessário e .suficiente freqüentar longal"Qente os .~rrebatava, c?mo é normal, e. d?ixàva de lado a epistemolog~~. O longo
arquivos. O wie (com:'~: ) - onde se abriga no entanto a questão d.a elabo- prazo não é o inimigo da , narrativa, simplesment e.
ração ' da narrativa ,- ~ão tinha então por que ser ainda mais Ipr,oblc:.n.1a- Assim, a história não cessou de dizer os fatos e gestos dos h01j1ens,
tizado,' uma ' vez .lque ,a história convertera-se em conhecimento ~dc , si de contar, não a mesma narrativa, mas Il&!JTativas de form as diversas. Da
mesma. Globalmente, os séculos XIX e XX viram a afirmaçãq c·a. ênfase histó ria-retó ric,~ à hi stór i a-C:~=~/!ic/áe e para além" as exigências, os pres-
- com o marx ismo -, até me ~ mo o endurecimento das ambições científicas supostos e as formas de empregá-los variaram sem dúvida amplamente, mas
da his tória-Geschichte (mas paralelamente também sua ~rítica le seu re- a interrogação acerca da narrativa (a narrativa enquanto tal), esta, é recente.
questionamento Iadicál). Acumulando fatos, o his t0r: ador buscava ou Tornaram-na possível a saída ou o abandono da históri a-Gesclzic/zte, pro-
verificava as leis da Hist~ ria , O que não passa, é claro, de um esquema, cesso e progresso, e a reintrodução do historiador na história; mas também,
que dá lugar a múltiplas variantes e adaptú.çáes, através d Js.contrit.uições a partir do papel preponderante ocupadú p-'!la lingüístka nos anos 1960, as
da sçciologia e da ,economia principalmente. A história social dasAllIwles, interrogações voltadas para o signo e a representação. Também a história
pela qual l comCç~~osj tlre!1resenta uma dessas variantes , muito flexível , pode ser tratada como (c não reduzida a) um tex to.

1n
lo,
Mas,r' em todos"os 'casos 'o
considf';rados,

a narrativa não estava 'na )ordem
do dia. Exceto , p,?r 'iecusá-Ia na forma ,de história-narrativa'1 0 que, não
tocav a na questão Ida narrativa, na medida em que o objeto primeiro do
dcb:ltc recaía no :::.:::ontecimento c n5.o na D2rr:ltiva. Renunciar à história-
Voltamos então a Darthes, com urrna out.ra fórmula p~ovocante : "O
fato não tem jamai'i senão uma existênci3 lingüística", Cnde se pode ler
o máximo do ceticismo, ou simplesmente <li confirmação de que entre 'f uma
narrativa .e um curso de acontecimentos, nâlo há uma rel ação de reprodução,
~ de reduplicação, de equivalência", mas, c...,)mo o precisa ainda Ricoeur,
" narrativa, quer dizer, .à história évéllemelllieIlc era deixar de lado não a
narrativa, mas simplesmente UI"I.<:I forma particular de narrativa. "uma relação metafóri ca". Ass im, para designar a rel ação da narrativa
Efetivumente, Paul Ricoeur, leitor de La Méditerranée de Braudel, histórica com o passado "real", ele prefere falar de " representância" ou de
não encontrou dificuldades em fazer aparece r no livro, com se us trê~ " Iugar-tenência" (em lugar de representaçJio), indicando com isso a part e
,:slágios voluntariamente dist intos, a trama de uma narrativa. O declínio de construção - a narrativa traz à li nguage m um análogo ("o ser como do
do Mediterrân eo, e sua saída da grande histó r ia, es te é o enredo g lobal , acontecimento passado"), mas também d e depend ência com relação à
mas virtu al, para o qual concorrem os três níveis e as três temp oral idades. efetiv idade do passado (OlO ter s ido do acoclecimenlo passado). Finalmente,
Ao passo que um romancista os teria "mis turad o numa única narrativa, para que surja a questão da narrativa, baso que o historiador acabe por se
i:
t
Br3udel age analiticamente:, por distinção de níveis, deixando às inter- faze r es ta simples pergunta, que lhe foi sop rada por Michel de Certeau: o
que é que eu estou faze ndo quando faço história?
fcrcn cius o c ui dado de engendrar uma im agem implíc ita do todo. A ss im
I:r II é que se obtém um quase-enredo virlua l, repart ido em vários s ubcnrc-
dos"r.. O interesse maio r da aná lise de Ricoe ur nã o é dizer: "Vocês
acreditavam ter rompido com a narrativa, não fo i nada d isso, O ll pelo Notas
li menos isso não é ass im tão s imples", mas enfatizar que Braudel in ve n- I L Sto nc, " Retour au réci t ou réflcxi ons sur un.o!" nouvcllc vieillc hisloirc ", Le Débal,
to u um novo tipo de enredo como conjugaç50 de es truturas, de c iCIOS n, 4,1980, pp. 11 8-1 42.

1\11
:'1 201 P ASSADOS RECO},1POSTOS

2 P. Ri cocu r. Telllps cf Réôl, Pari s, Lc Se uil, 1983 - J 985, 3 volumes. A questão centra l
é a do tem po c de s ua irrcprc ~cn t abi li dadc: a his toriogra fia só 0cupa, portanto, um
mom..: nlO da pesq uisa c a afi;'ma ção de um cio, mes mo mínimo, entre história c
III
narrativa, depende, ela mesma da hipótese ;"I rinci pa.l, segundo a qual. n5 0 há meios
de existir um tempo pensado fo ra da nnrrMiva.
MUTAÇOES
) R. Barthes, "Lc discours de !' histo irc" relo mado em Le Brtl issem ellt de la tOllg .. e,
Pari ~ , Lc Se ull, 1984, p. 153-166 .

.. R. Koscllcck, Le Futllr passé. COlltribllrioll à la simafllique des temps historiljlles,


Irad . fr. Fa ri s , Ed . da EHESS, 1990; livro impo rtan te, inte irament e às voltas com
essa qu cs I50, ver especialmente pp . 42 -53.

S Essa breve aparição do erudito é propícia a in díCl r que entre a hi st6ria- rct6ric;: e
a hi stóri:l-Ceschichle, e para cssa q'lcSl50 da narrativa que nos ~cupa, existe o vasto
campo da histéria crudita.

" F. Ri coe ur, Temps e/ R,!ci/, t. 1,.p. 300. Ricocur "pe ra com as noçõe:; de enre do
(mu/hos) e de const rução de enredo que toma emprestado à Pcoética de Aristótelcs
\ \·"lIa-se a encontra r a poética, mas dessa vez arlkada l1ã o mai s à hi stória como
processo, mas à histó ria como tex to).
.i UM

:/
o
Lento Surgimento
.1 de Uma História Comparada
. HEINZ-GERIIARD HAUPT

Com uma ta/tradição da historiografia, da politização dos dehates


históricos e da definição especifica do ml-ro fUlldador da França contem-
porâllea, os estudos comparr. tistrls 1Ião podiam ,'ie impor /Ia França.
Apenas com a internacionalização da pesquisa e da vida universitária.
essa la cuna surge clarainellle. Como, na maior parte das declarações de
rrillcípio sobre o trabalho histórico e as perspectivas de pesquisa, a
m cnçiio da história compara{(a lllio falta, podemos interpretar essa lem-
brança f..:OnltJ W .' l sinal encorajador para o jalurÇJ .

"Estudar paralelamen te sociedades ao mesmo tempo vizinhas c eon-


lcmpon1neas, cons tantemente influenciadas um a,s pelas ou tras, sujeitas em
seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua ~incronização, à
ação das mesmas grandes causas, e remont:'indo, ao menos pa rcialmente, a
uma origem comum." Eis o pr.ograma que ~larc Bloch propôs já desde 1928
para " um a históri a comparada das socied ad~ européias l " , programa quc ele
começou a realizar em suas obras sobre o, campo ou a sociedade feudal 2 .
Sua proposta de inaugurar no Cotlege dc . France um cnsino dc
histó ria comparada das socied:.ldcs europé~as destinava-se a dar uma base
institu cional a esse programa cientíFco amb icioso. Es te foi pos to em
surd ina durante muito tempo, e só rccenteJicntc a tomada de consciência
,. dc uma lacuna nos trabalhos francese~ fez :se u caminho. É assim que, num
ed itorial quc reafirma seu projClO interdisciplinar, a rcvista Allllnles
Écollomies Sociétés Civilisatiolls menclona também a ex igêncin do
·'comparat ismo", cmbora observando qu e s ua "práti ca continua a cxcc-
ÇflO"J. A recent íssima revista Gelleses, eI:l também, inclui em seu progra-
ma a exigência de reduzir "nossas insul::..ridades c ... estirnul<lf a cullura
compa rat ista de que lemos n ecessidJ.de"~.
Provavelmen te, o artigo de Mnrc B[L,ch tevc mais efeito no ex teri o r
quc na prApria Franç;l. A s abo rda ge ns e re21i z:1çõc c em história ~o mparada

I
206 PASSADOS RECQMPOSfOS Mutações 207

dos séculos X IX e XX, de quc vam os falar aqui, são raras na hi s toriografia estribada numa tradi ção universitária mais anglo-saxônica que francesa.
francesa. Mzsmo as AlIllales não lh e reservaram um espaço adequado, A própria região é freqüentemente um qU3dro eômodo, um pretexto para
como cons tata Lucelte Valensi : "A própria revista não apresenta uma executar um estudo, m3S raramente um problema pam s(;;r aproximado
rubrica regu lar sobre a história compa rada, c seu sumário per:nanecerá das concepções P. realidades espaciais de outros países europeus 8 . En-
fie[ às class ificações tradicionais, por seqüências cronológicas, por áreas tretanto, dois setores têm uma tradição comparatista declarada: a demo-
geográficas ou por setores disci plinares" s . Nas colunas das revistas de grafia histórica e a históri~ econõmica.
história francesa, os a rtigos comparativos são a exceção. Retomando os métodos d2 demografia, algumas obras procuraram
Ist o não significa que a h isto~iografia francesa esteja fechada em confrontar modelos nacionais de 2.umento da população ou de urbanizàção,
s i mes ma. CaDa em outros países europeus, na França também se veri - das taxas de natalidade e mortalidade. A Histoire c/e la populatioll moudiale

I
, 1
ficou um a internacionalização da discussão científica. Por ocasião dos
congressos e da composição de números especiais de revistas científicas,
[J-list6rip da população mundial], editada por Mareei Reinhard, André
Armt.!ngaud e Jacques Dupâquier, era um exemplo dessa abordagem, que
a evolução das hi storiografias es trangc;ras é freqüentement, levada em ainda existe\). Ao abandonar o plano nacional e privilegiar o quadro local e
conIa. Assuntos que ultrapassa m os limites nacionais são colocados no regional, a comparação se tomou m ais difícil e ma is rara. Na medida em que
programa da agrégatiol1} e especialistas da hi s tória de ou tros países as pesquisas incluem doravante o estudo das condições múltipl as de produção
e:.H:::;>eus são nomeados pma cargos universitários. Até mesmo a edição dos dados n,..méricos, e integram os fatores sociais e cuit urJis, a construçi'io
francesa - por mais tímido que seja seu esfo rço de tr adução - começou de modelos nacionais e sua comparação ~ tornaranl mais aleatórias. Essa
a trariuzir a!gufl1<l::: dn.:; grnndes teses de hi s tória cor.tempo rãnea, o rig in á- concentração dz pesqu'isa numa crítica rigorosa das fontes e dos mecanismos
rias.., é verdade, as mais das vezes, dos Estados Unidos. Os melhores demográficos foi acomranhada de um estreitamento do quadro geográfico 10.
trabalhos incluem também, em sua bibliografia, livros estrangeiros, e j á As Annales á: démograp.'zic hisiorique [ kais de demografia his tórica] dos
se ::::dmite que é impossível escrever a história da França dos séculos XIX dez últimos an0S, com exceção de alguns artigos que escolhem a escala
e XX sem o conhecimento de uma rica produção anglo-saxônica. A nacional como base de comparJ.ção, têm publicado sobretudo monografias
missão hi s tórica francesa na Alemanha (Gõltmgen) e a Escola frarlcesa limitadas a um município ou a .uma região. Portanto, a demografia histórica,
de Re ma, por sua parte, facil it am o acesso à cultura historiográfica alemã na França, tem utilizado a comparação - e continua a utilizá-la - mas com
e ir::tliana; todavia, seu eco entre os historiadores fi anceses permanece o objetivo de confrontar cifras globais. b bastante raro que expiicações
.11111
limitado . Portanto, se um galocentrismo existe - e, de fato, existe -, seria ob tidas durante o trabalho comparativo se integ rem numa reflexão sobre a
falSú gene ralizá-lo e exagerá-loti • evolução demográfica da França nos séculos X IX e XX.
Como em outros países europeus, os estudos sob re o crescimento
A história comparada na França: industrial tinham rapidamente arlquirido uma dimensão comparativa. Já,
setores e limites nos anos 60, o debate sobre a hipótese do ra.ke-off de W. W_ Ros tow, embora
Com efeito, a historiografia francesa em sua tota lidade não recu sa limitado u jusluposiçflo de monografias n3c io nais ll , englobava diferentes
a cl:.1 mparação. Entretanto, esta é antes impl ícita que explíci ta. Os es- países europeus. Um dos pioneiros da comparaçflo em história econômica
tud ..."ls loca is ou regionai s se referem freqüentemente ao contexto naci o - foi François Crouzet que, depois de sua lese acerca dos efeitos do bloqueio
nal : neles, este ou aquele problema nacional é 3nali sado na configuração continental sobre a economia britânica, confront ou a evolução na França
que assume no interior de um;1 regiiio ali d e uma cidade. Porém, os e na Ingl aterra. Ao comparar as taxas de crescimento dos dois países,
estudos que, partindo de uma problemiÍtica p:lrt icular, comparam entre François erouzet e Maurice Lévy-Lcbo yer encontraram provas do atraso
si .: xemplos locais ali regionais são extrcm a mente r::lros 7 ; as anúli ses indust rial da França, e da influência nCÍ2..S IJ da Revolução de 1789 sob re
reg~ o nai s S;IO comparadns mai s co m o nível naci o llal que com outras sua arrancada econômica e industrial. Esses trabalhos se inscrevem na
experiências regionnis , e a co mparação entre cidades ou regi ces eSI(: revisão de uma imagem positiva da Revolução Francesa el11 vigor nos unos
208 PASSA DOS RECOMPQ!:;TOS Mutações 209

G!J. Eles vão ao encontro de abordagens americanas, que procuraram na sob re o ensino agrícola nos dois países, ou de l-!ervé Joly sobre os enge-
cslrutura social francesa e na mentalidade pré-industrial dos empresários nheiros de minas e os Bergassessoren ... A compar3çãl) fra •. co-alemã é mais
um obstáculo ao crescimento C'conômi~o e à inovação l.l . difundida ,!ue a com a Ingla terra, e isso é C"'!rtamente também resultado de
A idéia subjacente a essas interpretações, a saber, que a Inglaterra uma vontade política e da ação do CNRSlS. Um exemplo animado r de uma
deve ser o modelo que permite medi:- a trajetória francesa, fo i abalada no ahordageI11 comparativa ampla é o manual de Jean-Luc Pinol, que trata da
decorrer da ("tima década. Com efc1to, a atenção se focali::ou mais nas , 'ida urbana e da cidade como es trutura na Alemanha, na França, no. Ing\:!·
condições de crescimento existentes na Pr:mça que nas correspondências terra e nos Estados Unidos, pro-:: urando estabelecer relações e referências.
com o exemplp inglês. Nesse contexto, as pequenas empresas foram Ao ·contrário, Géran:i Noiriel j animador de uma rede européia de história

r! interpretadas menos como indicadores do a traso que como resposta às


condições pnrtir:ulares do mercado e do sistema de produção em vigor na
comparativa, promete uma comparação no título de sua última obra, mas,
na realidade, permanece fechado nos limites da França 1li • Persistem, toda-
, 'I
França. Forúm so bretudo Jean Bouvicr e se us alunos que se concentraram via, as reti cências de fundo: duas grandes teses utilizaram a comparação I
nos caminhos fra~ceses em direção ao capitalismo. A formu lação de como princípio de pesquisa e de explicação. J061 Mich~1 estudou os mi-
Bouvier é categórica: "Toda nação é outr3. A França nunca foi inferior neiros na Bélgica, na Inglaterra, na Alem::mha e na França entre 1890 e
ncm superior a qualquer outra nação legi tim amente comparável pelo 1914; uma das chaves de sua explicação reside no município, que tem
avanço do dese nvolvimento, a~ dimensões e níveis relativos deste, seus es(!"uturas semelhantes nos quatro países. Frédéric l3arbier investigou a
I
ritmos e ve locidades. Nem inferior nem superior à Bélgica ou à Itália, por produção, o consumo e a distribuição do livro na França e na Alemanha
!.',IIU
.' exemplo. Porque, à semelhança de toda nação c de todo Estado, a França no sécu lo XIX J7 • Pois bem - e é sintomático -, pa!'sados alto ano~, estes
foi naturalmente outra do que seus vizinhos" lJ . dois trabalhos ainda não estão publicados.
I~I

Essa abordag~m revisionist3, que recusava C!ualquer medeio domi- Esta laeuna antiga é ainda mais surpreendente, porque algumas das
r,r nante e coerci tiv o, podia ser interpretada em dois sen tidos: seja uma condições que, em outros lüg3res, favoreceram o desenvolvimento da

t :~I
!t ,
: ~I concentração nas condições específicds da França, comparadas com as
d~ outros países europeus, sej3 uma insis tência na lógica interna da
evul uçüo eeonômica da Franç3, livre de todo modelo exterior. Na história
história comparada, t3mbém se encontram reunidas na França . Para co-
meçar, uma tradição sociológica insistindo na importânci:! da comparação
existiu, sim, e muito cedo. Ém il e Durmeim constat~ nas Reg/es de la
~~)
ui econômica, parece que prevaieçeu a segunda interprctnção. É assim que mél/zode sociologiqlle [Rcgr.as do método sociológico]: "O método com-
,,'
IIPI os 3rligos publicados na revista Hisfoire, éco/Jomie ef soci élé são dedi- parativo é o único que convém à sociologia"\s. É o melhor para descobrir
I cados unicamente à França, scm a mcnor comparação. Existem, no en- causalidades e, finalmente, também leis. Exemplos tirado~ de várias so-
tanIO, alguns indícios de uma mudança de ó ti ca. Algumas cont ri buições ciedades num estágio análogo de evoluçio devem ajudar os sociólogos
fr~ícesas 3 um recente colóquio intern ac iona l, consagrado à influência da '"'a descobrir relações gerais, leis verificávcis nas sociedades diferentes" \C).
tecno logia e da pesquisa na evolução industrial na França e na Alemanha, Por outro lado, a unicidade de um fenômeno excluía, para Durkheim, o
er:flo bava m uma d im cns:io comparativa\.l . trabalho compar3tivo c, por conseg uinte. ~ 3n[llise sociológica: "A própria
Essa mudança é perceptível em outr OS domínios, mais ou menos definição da economia naciona l exclui ;:> possibilidade de verdadeiras le is
pró ximos. Entre os trabalhos recentes, ou em fase de el3boração, cabe científicas, já que concebe seu objeto cemo único e exclui a comp3ra-
mencionar ;lS publicações de Patrick Fridenso n sobre a estrutura de orga- ção"2u. Embora Durkheim tellha (cito reservas à concepção de uma ciência
ni.z2ção e a política de pessoa l nas grandes indústrias alemüs c francesas, h'.II11<1l1a agrupando todas as ciênci<ls Soc13is e garantindo ti priJ1l<lzia da

os uab31hos de Étienne François sobre a alfabetização e as iconografias na sociologia, suas posições foram, assim DesOl O, interp retad<ls como o im-
Fc.:.nça e na Alemanha, a pesquisa promissora dt: Maurice Garden sobre a peri:J!islllo de uma disci plina que pro\' oc~:·· :l vivas rea ções, principalllll.:l1te
ho:-neopat ia 1I 0S dois paí!':ies, os trabalhos em curso de Christophe Charle entre os histori<ldores. Era por isso qu e Luc i ~n Febvre se opunha ao
soo re os professores univers itários em I3erlim c em Paris, de Thierry Nadau "sociologismo" mais que Marc Bloch.
210 PASSADOS RECOMPOSTOS
Muwçóes 211
Na Alemanha, a hipótese segundo a qual a hi~tória . alemã teria
rel ações entre países25 • Pode se exercer pelo menos em três direçór:s. Em
segu ido um "caminho particular" (Solldenvcg) capaz de expli-:ar o nacio-
primeiro lugar, pode oricntar a escolha das problemáticas c das diretrizes
nal-socialismo e sua vitória em 1933, provocou pesquisas comparativas. Na
de uma pesqt.:isa, e permitir uma melhor defin ição do campo dc análise.
França também, paJ::ticularidades nacionais se encontram cada vez mais
situadas no centro da pesquisa histórica, em parte no r ...s tro do Bicentenário Com efeito, os exemplos es tmngeiros e as historiografias dos outros
da Rt:volução Francesa. O caminho específico em direção ao capitalismo países podcm ampliar o horizonte das problcmáti~as . Em segundo lugar,
na França já fo i mencionado. Maurice Agulha0., que afirma que a demo- monografias históricas, quer sejam nacionais ou regionais, poJcm con-
cracia antecedeu a modernidade na França, insiste numa especificidade da frontar, numa introdução ou num capítulo final, a evolução particular com
França. Enfim, ~ início precoce, na França, da diminu ição da na talidade e a de outros países, servindo-se da literatura secund ária. Neste caso, podem
testar o valor das explicações propostas c ser obrigadas a uma escritura
da contracepção pode ser considerado como um ua ço específico da França.
mais analítica. Enfim, estudos partindo de uma problemática eomum
E o quc dizer, enfim, dos Hlugares de memória" nos quais a história francesa
podem ana lisar estruturas, processos e mentalidades em duas ou I~ais
se condensa e se reifica21 ? Contrariamente à tradição germânica, essas
sociedades, seja para acentuar diferenças, seja para encontrar analogIas,
afirmações não buscam provas numa an:ílise comparativa, num ~Ihar para
de qualquer maneira, para ampliar a base documentária e propor um a
além das fronteiras, mas se inscrevem mais num debate interno à França.
interp retação das evoluções baseada no conhecimento de realidades so-
A história comparativa não encontra luga r nesse contexto.
ciais, r:conômicas e políticas diferentes.
Enfim, tan to na história ·das relações internacionais como na his-
É certC', a histó ria comparad~ não oferece uma metodologia con-
tória políiica, existem tradições de análise comparativa em outros países
firmada. As perguntas que Lucclte Valensi levanta devem, de fa to, ser
europeus. Certame nte, teses importantes anaiisaram a rede de trocas di-
propostas de novo a propósito de cada lipo e cada exemplo de compa-
plomáticas, econômicas, políticas e culturais, mas, .na tr adição de Pierre
ração: "Como decidir que dois objetos são contparáveis? Como compará-
Renouvin, quase nunca tomaram a comparação como objetivo, nem pro-
los? Que escala de comparação adctar? E so~retucto, por que compa-
curaram confrontar problemas que se apresentavam em diferentes socie-
rar"26? É claro que existem também exemplos de más comparações. Mas
dades. Nesse contex to, colóquios franco-alemães ou franco-italianos,
temos numerosos exemplos de obras que, apesar de escolherem o caminho
., I
I' ~ I
assi:n como a série de encontros sobre as grandes potências na Europa
no sécuio XX, sai ientam ma is a importância àe redes internacionais do
da his tória comparada, correspondem bem a alguns dos pri ncípios da
~''' ' escola histórica francesa: a história-problema, a reflexão aprofundada
1111 que reais pesquisas comparativas 22 . A "nova história política", por sua
sobre as fon tes e seu valor, a descClberta de abordagens e de visões novas,
vez, relega a comparação ao capítulo sobre as. relações internacionais e
o desencravamento das problc.máticas etc. As d ificu ldades de uma história
se concentra no modelo francês . Este se encontra também no centro dos
compa rada mencionadas por certos au tores franceses não são específicas
estudos de história das mentalidades que são dedicados aos fenômenos
da França, mas aparecem em todos os países europeus. A resistência ao
nacionais, regiona is e locais, renunciando totalme nte a uma confrontação
comparatisma deve, pois, ter motivos particulares. Pelo menos três podem
com outras realidades na ciona is, embora esta seja bastante promissora 2J .
ser mencionados (numa boa tradição francesa).
As razões de um atraso 1 - A tradição de histó ria regional e local da historiog rafia francesa, que
fo i no passado uma de suas riquezas, torna a comparação mais difícil, mas
Quais são as razões desse . . traso da historiografia francesa? Os
não imlJoss ível. Com efeito, esse quadro pode se revelar ideal para certo
histo riad 0res fra nceses respo ndem ge ralmente que o próp ri o método
lipo de pesquisas comparativas, permitindo comparar recortes, e v i sõe~
compa. rativo é vago. Com efeito, a comparação não deve ser confundida
diferentes do cspaço. Essa primazia do regiona l e do local, no entanto, esta
com ccrtas sínteses intcrna.ciona. is tais como. por exemplo, a /-lis loire
fortemente embasada nas condições materi:!is e sociais da vida universit5ria
écollom iqllc el sociale du monde {História cconôm ica e ~ocial do mundo],
francesa. Ela tem também uma dimensão metodológica 27 . Um dos princi-
diri g ida por Picrre Léon 24 . Ela não se reduz tampouco u históri a das
pais motivos do pouco uso da compa.ração deve ser procurado num:.:
212 PASSAOOS RECOMPOSTOS M urações 213
I.
escri tu ra da história, que privilegia a indi\'idualidade histórica em rclaçãc univc rsais ou limitados à burguesia, e unicamente aos homens da produ-
às problcmáticas de importlncia mais ge ral. O temor dI"! que modelos ção capitalista ou aos de um mundo de pequenos produtores? Todas essas
teóricos pudessem deformar a leitura dos materiais históricos se exprimiu questões podi am ser discutidas num estrito qu adro nacional. Na medida
numa recusa de todo "sociologismo". Contra. este, celebraram-se os méritos em que essa perspectiva se alargou, ela se interessou sobretudo pela
da análise de casos e se considerou quc o conhecimento histórico progrc- influência da Revolução Francesa na Europa e no mundo.
diria por uma acumulação desses csturios dc casos. É tt:;sim que, já em 1922, Com uma tal tradição da historiografia, da politização dos debates
Lucien Febvre forml.ila essa posiçãq, marcando distância em relação a históricos e da d~finição específica do mito fu'ndad or da França contem-
Durkhcim, mas 'também a Bloch: " Quando possuirmos ma is algumas boas porânea, os estudos comparatistas não podiam se impor. Apenas com a
monografias regionais novas - então, só cntão, reunind o seus· dados, com- int.ernacionaHzação da pesquisa c da vida universitár ia essa lacuna surge
parando-os, confrontando-os minuciosamentc, poderemos retomar a ques- cl aramen te. Como, na mnior parte das decla rações dc princípio sob re o
tão de conjunto, fazer com que dê um passo novo e decisivo - tenha êxito. trabalho histórico e as perspectivas de pesquisa, a menção da história
Proceder de outro modo, seria partirmos, munidos de duas ou três idéias comparada não falta, podemos interprelar essa lembrança c(tmo um sinal
s imples e grossei ras, para uma espécic de rápida excursão. Seria, na maioria encorajndor para o fu turo. Talvez, nesse contexto, a exortação de Marc
dos casos, deixarmos de ver o part icular, o indivíduo, o irregular, is to é, Bloch adqu ira mais peso: HA história comparada. tornada mais fácil de
em suma, o mais intercssantc"26. Como a his tó ria comparada busca, além se conhecer c cle se uti lizar, animuá com seu espírito os cstudos locais,
do caso i'1dividual, traços comuns ou estruturas gcrais, visa mesmo apre- sem os quais ela nada pode, mas que, sem ela, a nada chegariam. Numa
ender os mecanismos de funcionar.lcn:o de diferentes sociedades em sua pala·na, de ixemos, por fJvor, de falar etemamen t ~ de históri a nacional
importância respect iva, e se volta para casos d iversos em busca de expli- pa ra história nacional, sem nos compreendcrmos"29. ·
cações mais substanciosas para problemas ou informações tão estranhos
que podem subverter a conccptualizacão habitual, ela está longe da apo-
Notas
logia de Lucien Febvre. Tanto em sua prática da pesquisa como em seu
estilo uni·... ersitário, a historiografia francesa se aproximou mais dos prin- I M. Bloch, "Pour une hi sto::e comparée des soc iélés curopécn nes", in Afê/allges
cípios de Febvre que dos de B1oeh. hisioriqlles, Pari s, 1963, I. I, p.19. Sobre a abordagem de moch, W. 1-1 . Sewcll Jr,
uM:!rc Bloch and lhe lagie of comparalive hi story", Hislc-y alld 71lcory, 6, 1967,
2 - A maior parte dos parad igmas da his tóri a contemporânca foi formu -
pp. 208-218; A. O. Hill, B. H. Hill jr (ed.) , "Forum Mare Bloeh and comparati ve
lada no decorrer dos últimos cinqücnta 'mos, não em comparação com hislory", Americall Hislorica l Rcvicw, LXXXV, 1QSO, pp. 828-853; D. Romagnoli ,
outras nações, e sim em re lação COItI posições de políti ca intcrior. Q ues- "L'l co rnp:1fazione nell'opera ui Mare B loch: pra li ca c leoria" , in P. Rossi (ed.),
tões impo rtantes como a Revolução de 1789, i3 laicidade e o marxismo, La storia comparata. Approcci e prospef(j~'e, Milão, 1990, pp. 110-128. Sob reludo
dividiram durante anos o mundo dos historiadores c oricntaram a pesquisa H. Ats ma, A Burguicrc (ed.), Marc 8/ocll aujo/:.pd'/wi. HiSl oire comparêe el
hi stórica. Mesmú no momento em que a~ frcn !es políticas se dissolvem, scicllces sociafes, Pa ris, 1990, pp. 255-336 (em particu lar, o artigo de Maurice
Aymard, " l'li sla irc cl comparaison", pp. 271 -2 78)
elas con tinuam a exe rcer um poder incgávcl sobre as classificações e as
definições da comunidade univers it;j ri a. ~ Ve r o estudo de R. Hilton, "Sc igneu ric fran ça isc ct manoi r angla is. Fifty ycars laler",
3 - Na França, a consciência de um "caminho pa rt ic ular" é - comparada in AI Sm::l, Bu rgu icre, op. cit., pp. 173- 182.
com a que vig0ra na Alemanha - de outra natureza. Ela n50 se origina
do fascism o, e si m do papel da França revo lucionár ia. O debate não sc ) " Hi sloire cl scie nces sociales. Un touman l critique T'. AI/llntcs ESC, XLI II, 1988, p. 292.
concentra na quest50 das condições exal:1S que, na França, deram ao
" GCl/êses, 1, 1990, p. 3.
"s,:cu lo da revolução" (Éric Hobsbawm) lIm 3 fo rma e uma irradiação
particulares, e s im na natureza específica da missão revo lucionária. A S L. V:llCIlSi, "Rclour d'Oric nl. De quclqucs usages du co mparati srnc", in Alsl11a,
Fr:::mça fo i o excmplo da democracia direi::! ou representa ti va, de valores Burgui cre, oI'. cit., p. 309. A ex ceção que co nfirllla a regra é o nrtigv de N. :...
ri 214 P.... SSADOS RECOMPOSTOS Mutações 215
I' Grecn, " L'hi slo irc comparativc CI Ic champ dcs étudcs mi gratoircs", AIII',IJes ESC 1$ P. Fridenson, "Hcrrschaft im WirtschaflSunternehmcn. Deutsch land und Frank reich ;
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ill/crl/aliol/alel! Verglcic;" Munique, 1988, li, pp. 65-91; E. Franço is, "Alphabc-
6 CL, per exe mpl o, vários núm eros do M Ollvcm ClI1 social sobre " Lcs nal iona li s:: :ions ti s ieru ng und Lcscfãh igke il in Frankrcich und Deutschland ", in Fra"kreich il1l
d'aprcs gucrrc cn Europc occ idcntalc" (n. 134), " L"atcli cr CI la boutiquc" (n. 108) Zcilal/er der FrallzõsischclI Revolu/ioll, Frankfun, 1989, pp. 407-425; M. Gardcn,
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III, 1 As comparações sis temáti cas de evoluções regio nais são bas tante raras: L. P. Moch,
CO llereau , " Problcmes de co nceptuali sati on C'O lIlparative de :'induslria:isat io n:
I'e xe mp le des ouvricrs de la chaussure en Francc et en Grande-Brctagne", in S .
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I~
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Révoluli on française a-t- ell e brisé I'es pril d 'c ntrc prise?", L 'info rmariol/ /Jisroriqll e,
-17,1985, pp. 193-204; M. Lévy-Leboyer, "Lcs pn:..:cssus d'indus lri alisation: le cas j 'A llemagl/e de 1898 à 19 14; Pari s, 1969; R. Gira ull, Emprul/ls rtlsses ct
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bem· sucedida de const ruções mentais , cf. M. J.:-is mann, Das V(I(e rlalld der Fcintle.
:. Y. Cohcn, K. r-.·bnfrass (ed.), Frallkrclch _lItI DCllrschla/ld Forsc/lIIl1g. Stlltliell zum lIal iOl/alell Feilldbegriff III IlI S.:!~s t vers t iil/{llIis ill Delttscltlaml III/(I
7i:chl/ologie ul/d illduslriellc Enlwickll/flg im XIX 11 1/(/ XX Jahrlllll/(Ierr Munich Fmllkreich, / 792-1918, Di ss. Uni ve rs il:i t Bie kfe ld, 1990; C. Tacke, Herm(llllllllltl
1990 (cf. as con tribuições de A. Broder, A. BcI (:-3 n, P. Frid enson, A. ':Ierlea, E: Vercillgérorix, Zwei IllltiOlJa le Symbole ill D<C.JJ tschlal/d /li/(/ Frallkrcich. lese de
doulo rad o, Institui uni vers ilaire euro péc n, I ~ 2.
C hadeau, F. Caron).
2 16 PASSADOS RECO~l roSTOS

:'. P. Léon (cd.). Histoirc écoIJomiqllc ct socialc: du monde , 6 volumes , Pnris, 1978- 1982.

~ Cr., ent retnnto, a abordnge~ promissora c inovadora de M . Espagne, M. Werner DO IS


(cd.), Tran sferts CU/lurels, Les relatiolls illtercullllrelles dans [' espace fral/co-
allemallll (X"'lIe-XXe sd:c/es), Pari s, 1988.
A Vio lê ncia das Multidões:
':li> L. V:! lcnsi, artigo citado, p. 311. É Possível Elucidar o Desumano?
;1 Cf. O artigo ,interessa nte de R. Cha rtier, "Scicnccs socia les ct découpage régionn l", D OMJNIQUE J Ul.IA
Acles de la recherclu! el/ scicl/ces sociales, n. 35, 1989, pp. 27-36.

~ L. f cbvre, La Tcrre cll'évo/utioll IlIIlIIaill":. IlItroduClioll géograplriquc à I'lristoire,


Pari s, 1922 ( 1970), p.· 92 C scgs.
o eSllldo das feridas da história, de suas paixões e de sllas feb res
sociais, dos estigmas que estas deLl.:Om, ainda pode !lOS ensinar IIlllita
~ M. Bloch, artigo citado, p. 40. Este art igo j á estava no prelo quando o 11 . 17 coisa sobre a relaçlio patológica (file !1ma sociedade " 'alllém consigo
(se tembro de 1994) da rev ista GCllêses publi cou o interessa nt íssimo dossiê "Le mesma. A estranheza perlllrbadora que emana c/os fenômenos percebidos
comparalisme en histoire et ses enjeux: ]'cxe mplc fr anco-a llema nd", com arti gos de p or nós (mas também pelos cOlltemporâneos) como 1I1S[!lIsatos revela as
P. Schõlller, S. Kotl e Til. N;'tdau, M. Esp:l.gne (pp. 102-12 1). Só posso remeter o p ergun:as qll': c c{'Irpv social formula a respeito de sua própria identidade
leitor para o mesmo.
e os perigos que tenta exorcizar seglllldo o registro próprio de sua época.

A histó ria da multid üo constituiu por mu ito tempo um dos pontos


cegos da pesqu isa na Fran ça, e, mui to provavelmente, esse atraso não é
um a<.:aso. Esboçaremos aqui apenas algumas ~ I apas desse percurso, que
é também uma reviravolta. No curso de um sécu lo, o ol har do historiador
sc deslocou: os fan tasI:l<1s que a "animalidade" das mu ltidões em movi-
mento suscitava no estudioso fechado em seu gabinete foram substituídos
po r uma aná lise das lógic.is prá ti cas que determinaram a ação das mes-
mas, chega ndo a uma busca· d as coerênci::ls qu c podcm dar conta do que
Alphonse Dupront cham<1va de "p rática do incxpiável": trata-se dc "re-
co nh ecer com um a lucidez espantada, po r vezes.ferida, mesmo que isso
nos choque, a orga nicid ilde de um mundo out ro, coercnte até no iltroz,
no anormal ou 110 estranho"l. Em sum3, o que denominamos hoje o
I'dcsu mano", o horror d:Js massacres. t:!i11oém deve se r elucidado.
Os Iraumatismos re vo lucionários q ue. escandem a his tória nacional
no dcco rrer do século XIX pesam fOf[emente 11<1 anál ise quc empreendem
no final do mesmo os pensado res das d i\'e rsas disciplinas. Pouco impor ta
que Hippolyte Taine afirme, ao encct:lr l" capítu lo revolucioll.í ri o de seu
Origines de la Frallcc cOlltcmpOr(1;IIt! (Oíigc ns da Franca contempor[lI1ca]
(1878), que nfto devcmos procura r cr.: :5J3 obra alusõcs aos dcbates CO n-
tcmporfl ncos: "Escrevi como se tive sse tid o por tema as revolu ções de
Florença ou de /\tenas r... ] Esti mava dem:1 is minh a pro f i~·" fto d,:: his tor~ado r
Mutações 219
I.:'1 218 PASSADOS RECOMPOSTOS

41 careteira, sanguinár io e lúbrico. que mata com uma risada de escárnio e


para fazer Qutra me cscond cndo"2. A ve rdade é que os rn cd::ls suscitados cabriola por sobre os es tragos que fez" 7 • T~ o obsedante quanto a animal
,it''I pela Comuna estão de fato presentes em s ua obra: a multidão é um é a metáfora médica, que dpresenta a sociedade francesa como vítima das
""animal", o motim popular, " um movimcc:to de bruto exasperaria pela patologias mais rept:gnantes, entregue à úlcera, aos abcessos, ao pulular dos
I'
necessidade c enlouquecido por uma suspe~ta"3; na manhã do di a 14 de
l' parasitas: semelhante acs efeitos crescentes do a\r.oolismo no operário dos
julho de 1789, "como um elefante domesticado que. de repe nte voltasse bairros urbanos pobres 110 firr. ~o século XlX, :l'isim a Fra;tça do fim do
a ser selvagem, o povo, com um gesto. dCrnJba seu cornaca hab itual, c Ancien Régime, "enfraquecida pela:; jejuns sob a monarqu ia, embriagada
os novos guias que tolccOl, cmpolciradcs em seu pescoço, só estão lá pela pela má aguardente do Contrat soci.11 c de vinte outr as bebidas adulteradas
:1
I mostra; de ago ra em di ante, ele anda a se u modo, libert o da razão deles, ou fortes, depois subit amente golpeada na cabeça: de imediato, vacilou com
entregue a SUJS sensações, seus instinto~ c seus apetitcs"4, Para Tainc, tal todos seus membros pelo jogo incoerente e pelos impulsos contrad itóri o:,
~prcciação decorre simplesmente das leis dementaces da fisiologia e da de seus órgãos dese ncontrados"3.
ps icologia: a razão não é um dom inato. c sim " um estado de equilíbrio Só insis rimos aq ui nas palavras de Taine, porque sun maneira de
ins tável, que depende do estado n5 0 me r.'Ús ins tável do l:érebro, dos ver a multidão será . . mplame nte partilhada e retomada. Com efeito, no
nervos, do sa ng ue e do estômago". Portanto" se juntarmos " mulheres que final do século XIX nasce um a nova ciênc ia social: a psicologia das
têm fome e homens qu e beberam", e os dcix;armos "infl ama r-se com seus multidões, ligada ao mesmo tempo à antrop ologia crim in: 1 c às teorias
I próp ri os g~ ito3, ::om a espera, com o contágio recíproco de sua emoção de Charcot sob re o hi pnotismo e a sugestã ')IJ. Ela também deve muito às

,"J
I
~~ crescente", teremos apenas um " tumulto de loucos perigosos". Quanto às apreensões ge radas pela irrupção das massas na v ida política e pelos
complexas operdções mentais qu e as idéia'i gerais exigem, se sua gênese conflitos sociais da époc.a, quer se trate das g rÇ!ves, do " boulangismo" ou


já constitui um milagre nos espíritos 5uperiores, o que se rá no camponês da violência d ... s manifestações comemorativ .. s do dia 1Q de maio, a p~rtir
ou no trabalhador braçal? Se o cé reb ro deles é incapaz de raciocinar e
i~ de ap ree nder o sentido dos dogmas (como (:) da soberani a do povo) que
de 1889. Na Itál ia, Scipiu Sighele. rliscípulo do crim inologista Cesare

~
Lombroso e autor deLa folia dclillquente [A multidão delinqüente] (1891),

~
lhe pregam "energúmenos perigosos", em cOlITlpensação, sob o influxo da atr ibui à multidão um a predisposição para o mal, po!" ser "um terreno em
.... voz v ib rante" dos tribun o.." despertam nel ~ "po r contágio os ins tintos que o micróbio do mal se desenv olve muito faci lmen te, enqua nto o

I,
·~ d 3 carne e do sangue, as cobiças pc ssoais~ 2S su rd as inimizades [ ... ] micróbio do bem quase sempre morrc". Numa multidão, os seres moral-
-
~
sempre prontas a se desenfrearem"s.
A explosão da Revolução Francesa é, pú is, analisada como o emerg ir
mente fracos, as mulheres e as crianças com deficiente força de vo ntade,
são presa fác il de hipnotizado res que lhes sugercm ações ilícitas. Na
de uma selvageria, quando sot.e à superfíc ie wda a escória de uma socie- mesma hora, na França, Gabriel Tarde, magistrad o da província, que, em
. dade, a mais vil ralé, vagabundos, bandidos e "estrangeiros .v indos não se suas doutas obras de direit o, se !ransfo rm ou em soc iólogo, funda sua
s3be de onde"" . De fato, a explicação fundaoental da conflngração revo- psicologia colet iva numa visão análoga; a socied:lde repousa na imitação,
Iucionúri a res ide, pa ra Taine , no encontro cr.:re ns teo rias quim éricas dos que é "uma espécie de sonambu lismo [... ). Te r ap enas idéias suge ridas e
jurist:ls do fim do Anc ien RGg ime, ia rg.amcmc divu lgadas por algu ns mi- julgá-las espontâneas, eis a ilusão próp ria ao so nâmbulo e também ao
lhares de "Maquiavel de praça pública", e a embri aguez de "vários milhões homem soeial"IU. Explicam-se assim os delírios das massas, e Gabriel
de selvagens" que, li bertos de qu alquer p ressJio, interior ou ex teri or - não Tarde utili za freqü entemente ta nto a metáfora da propagação da faísca
existe mnis gove rn o -, deixam as pai xões ma is bru tais irromperem . O elétrica, quanto a do con tág io febril, para dar cont a dos excessos aos qU;lis
.... inc ulo social se desfez: "Pelo isola mento 00S indivíduos, cada homem as multidões se entregam: "As multidões nflo são ape nas c rédu las, são
. e-caiu em sua fraqueza origina l, e tod .' pod.:-r pertence aos aj unt amentos loucas. MuilOs dos ca rac teres que obsciYJ1l10S nelas, elas possuem em
!c'mporári os qu e, na poeira humana, .:'c lev·..:...nt<.lm como turbilh ões". De comum com os hóspedes de nossos 'Isilos: hipe rt rofia de orgu lha, into-
repen te, dos homens an tes cont idos pell) tr:.J b:.alho lent o de lima civilização lerânc ia, il1lOderaç ~1O em tud o. Como os loucos, sempre vão p,uu os dois
il..:"'1tig:l, "vê-se s<li r c bárb<lro, pior <lind:l , o anim al p rimit ivo, o macaco
220 PASSADOS RECOMrQSTOS Mucaçõcs ZZ 1

pólos da excitação e da depressão, ora heroicamente furiosas, ora aniqui- é possível apreender o jogo dos atores, sua sensibilidade política bem como
ladas pelo pânico. Têm verdadeiras alucinações coletivas: os homens sua percepção da conjuntu ra, mas sobretudo, maciç",n leIi~e, a contradição
reunidos acreditam ver ou ouvir coisas que isoladamente não vêem nem cresr.cnte entre o gesto e o disc~rso.
ouvem mais" ". Além de louca, a multidão, embora "quase semp re" A palilvra da grcve é tanto mais vigorosa, ásperá, selvagem : quanto
composta de elementos m:sculinos, é também mulher, segundo Gabriel a violência dos gestos tende a se tornar excepcional: apenas um décimo
Tarde, "por seu capricho rc tinei ro, sua dociI:d:l.de revoltada, su: credu- düs greves - um quarto d aqu~las dos mineiros - deram lugar a manife~­
lidade, se u nervosismo, se~s bruscos !:iaitos psicológicos do furor à ter- tações de represálias; menos de 4% degeneraram em violências, c a
nura, da exasperação à g:ugalhadu"12. proporção alcança apenas 9% no terreno das minas. Nas 2.900 greves que
Como vemos, a psicolog ia das multidões é fortemente dominada estudou, l'ifichelle Perrot constatou um único caso de assassina to: na
pelos ~stercétipos dominantes da época. Disso tamb ém não escapa manhã do dia 20 de fevereiro de 1886, os mineiros de Decazeville at iram
Gustave Le Bon, polígrafo positivista que, depois de multiplicar obras de pela janel a o engenheiro Watrin, cuja arrogância provocara sua exaspera-
vulgarização científica, publica em 1895 La Psychologie des fOIl!es [A ção. A violência operária se apresenta as mais das vcze~ segunda, dian~e
psicologia das multidõesj, livro que será tr aduzido para dezessete línguas da resistência obs tinada de patrões agressivos. Afinal de contas, a vio-
c granj e:uá a se u autor a notoriedade 13. A obra não tem nada de orig inal lência operária foi, de certo modo, "domesticada e cana lizada", "civi-
e se limita a reunir os temas já desenvolvid05 por Taine, Sigheie e Tard ~: lizada" no sen ti do fortc do te rmo, subo rdin ada às necessidades da p:o-
com o advento da era das multidões, corncÇ3 a da força cega do número dução e, de modo progressivo, tornada dependente da o rd em indus-
.~
"
'''; e da destr:.Iição das grandes civilizações -'envelhecidas". Impulsivas, Irial 16 • Tanto a C!uantificação como o estudo te x'.ual rc"elam assim a
1 móveis, irritáveis, crédulas;. impressionáveis, pouco aptas ao raciocínio, deforma ção à qual os psicólogos das multidões haviam submetido o
as multidões se d ... ixam dominar pelas al ucinacões coletivas e pelas s u- acontecimento. A visão épica dc um Zola pintando a insurreição selva-
'1:,
ges tões quase hipnót:cas de uni agitador cap"3.Z de agir sobre elas por suas gem dos mineiros em Germillal- embora as notas redigidas durante sua
" afirmações repetidas e pelo contágio emocional que estas suscitam: "as permanência em Anz in atestem o cuidado dó detalhe colhido na reali-
I

~1
rr.:.l itidões são por toda parte femininas" e, ;;"como as mulheres, elas vão dade - pertence, de fato, à criação liter.íria.
logo aos extrernos"14. Sabe-se tudo o que Ac.olf Hitler tirará desta id colo-
.Jl gia no Nleill Kampf I ' . A racionaliclade das revoltas populares
'"I
jll Ao tomar, há un s v inte anos, a greve ogerária de ]871 a 1890 como Um dos primeiros historiado re s que criticaram a visão redutora do
1 objeto de estudo, Michellc Perrot abordou justamcntc o fenômeno que "doutor" Le Bon, subl inhando a ign0 r~cia do mesmo el11 matéria de
suscitara os mais vivos pavores da burguesi;L Ora, rcconstituindo mcticu- documentação histórica, é Gco rges Lefebvre. Seu eSludo exemplar de La
losamente as sérics de conflitos do trabalho em seus componentes profis- Grande Pe"r de 1789 [ O g rande medo de 1789] (1932) permanece ainda
sionais bem como em suas estruturas reivindlcat ivas, dedicando-se a esta- hoje um modelo de análise histórica. Baseando-se numa crítica aguda do
(-·;;-leccr por uma es trita quantificação as re.;;:..::a rid:ldes (sazo nais, mensais, conj unt o de fonte s disponíveis (à qu al T::Iine não se dedicara) e num a
s!"manais) c as oscill.lções das greves, sua rebçüo com a conjuntura eco- erudição sem fall13s, Gcorges Lcfebvrc refuta inicialmente algumas hipó-
r:..1mica e o clima político geral, a autora cocseg uiu ap reender as articula- teses sumárias: n50, as agi tações revolu c ionárias da primavera dc 1789
ç ...~s princi pais e os traços dominantes da revl", "'\ lta, e demons trar assim como nrlO são obra de "b rigalllh;" [bandidos} - o termo na época distingue
<!. "psicologia das multidões" se apóia em f:rJ.ndc parte em fantaslll:l s. Se simp lesmente um agrupam en to que pertu rba a o rdcm - , e s im do "pov inho
;,:, fisionomia social da greve é nitidamente ?folct[l ria, s ua natureza, StlUS elas cidades e do ca mpo que, impelid o pcla fome e acreditando estar de
r ;..~ i\' indica ções e suas J110tblidatles variam e:-:1 fun çüo dos temperamentos acordo co m o rci", invcste con tra os ::-::pOSI05, os direit os feudais e o
p:ofissiorwis e da qua lidade dos alares; 5UU e xplicaçüo, ali ,ís, nfi o pode se dízi::lO. As revoltas agrúrias do verão ta mbém nfio são obra de malfeitores,
res umir numa s implcs socio logia. 1~ no 1ll0VL"11ento, na própria prática, que e os aütos de pri sflO permitem re st ituir a composição social muit o

I :-'.,. ... .... ,. . "QI~ Cll'/lRSIll<\Dt fUl[Ul It IIUIII


ZZZ PASSADOS HECOMI'OSTOS Mucaçõcs ZZ3

di vers ificada dos participan tes: trata-se de a rt esãos e peq uenos comer- em seu compo nente revolucionári o, "agress ivo", como na ocasião dos
ciantes, de ::>res tadores de serviços nas vinhas, de g ranjeiros e meeiros, mo tins, das revolt Js, das insurreições ; po r outro lado, eliminavam outros
I de lavradores", moleiros, muitos dos quais são proprietári os, mas também
i tipos de multidões, como as presentes às cerimônias e às procissões, ou
,I de ourgueses do campo, às vezes na primeira fila dos in s ur~etosi7. Com às execuções capitais, ou ainda as multidões conv uls ionárias que se
efeito, atento à lo nga duração, Georges Lefeb v' re recoloca o Grande es prcrni a:n em Saint-Médard , "material fascinante para o psicólogo das
Medo na continuidade dos motins da penúri a e da luta secul ar contra mu ltidões, mas de um interesse acessó;io para o histori ador"2U. Em
,r os açamb."rcado res. No enta nto, o que m a is lhe interessa é analisar de
modo preeiso -os vetores da infc rm·ação; rcco ns titui assim os itinerári os
segund o logar, eles repo usavam num modelo teleolÓ"gico itnplícito,
segund o o qual o movimento SG lls-culotte é o paradigma pelo qual se
1
dos pâni cos, localiza sua irrad iação, e demo ns tra a inanidade da tese do julga a maturidade de um motim: desse ponto de vis ta, os motins da
"co mpl ô aristocráti co" ; não houve nem "' m ão in vis ível" nem uni versa- fume do século XVIII, ass im co mo a guerra das Farinhas de 1775,
lidade do fe nô meno. pe rt encem ao domínio da "espontaneidade" e da "inocência política"21.
A partir daí, o histori ado r é remetido para o prob leIl,la essencial : Finalmente, eles se baseavam no postul ado de qu e existe uma adequ ação
segu nd o que lógicas funci ona o rumor? Qu ais têm s ido s eus canais ri go rosa entre as palav ras de ordem, as idéias e os objetivos dos mili-
(reuni ões de fe ira o u de botequim, mas ta.mbém viajantes, pad res , tantes SGlls-c ulo ttes dos club:i po r um lad o, e os sen timentos e os inte-
ge"rlar:na ri a, mensageiros ou.postilhões) ? Seguu do qu e modalidade um resses das multidões revoluc ionári as por ou tro 22 . Sem dúv ida, a relação
rum o r se defo rm a no curso da propagação o ral, e como se dá a apro- é muito tr. enos s imples, e também não é celto qu e se possa ded uzir tão
priação? A an áli:: ; e dr. Georges Lefebvre desem boca a~s im na form ação diretamente a s ignificação política de uma revolta a partir da s imples
de um a mentalidade coletiva, na gênes e das representações, e el e pode composição soci al de seus participantes .
então reconstituir a ex tr ao rdinári a compl ex ida.de do aco ntecimento, no Uma primeira reori entação da pesquisa cons istiu, pois, em não
qual vêm se encaix ar sent imentos ances trais (memó ri a popular do an- tratar mais os mo tins como compo rlam ent os ."espasinÓdicos", qu e res -
tagonismo entre sen hores e camponeses, irritação em tempo de penúri a ponderi am como qu e mecanicamente à fome e à miséri a nasc idas da
contra os privil egiados) e imp ressões fo rjad;;ls recentCiTlcnte pela própria pen úri a, mas s im em considerar como uma exp ressão política próp ri a
atua li dade polí tica (papel das assemb léias e le ito rais e da redação dos os discursos e os ges tos dos atores, que são anim ado~ pela conv icçãú
cade rnos de que ix as na constru ção de um rei bem, preocupad o em partilhada de defenderem ·os direitos tra dicionais e os costu mes, e de
ali viar a miséri a de se us súdit os, e na representaçüo coleti va de um ti po se rem aprovados pelo conjunt o da comunidad e: com port amentos por
abstra to de se nhor que se·"'()põe às r efo r ma~). Po rtan to, n50 fo i po r acaso muito tempo jul gados "Lesv iados" ou ""erráticos" têm sua construção
qu e a violência cam ponesa se atirou contra os símbolos ma is fo rtes da próp ria, e es tão li gados a sis temas de rep resentações qu e ex primem os
dom inação se nhorial: castel.os, títul os feudais , oapé is das j us tiças senh o- valores, as no rmas e as res triçbes sob re os qu ais a sociedade deve ri a
rÜlis, assen tos na igreja. Ao recusar as interpretações pregui çosas , repo t1 ~ar. Aq uil o q ue se pode ri a denom inar uma ecollom ia moral da
Gco rges Lefebvre levava pela pri me ira vez o leitor a compree nder o l11 ult idüo es tim a o motim legíti mo, desde que uma cert a ordem eco nô-
event o que pe rm anecera o mais enigm 5. [i co da Revolu ção Francesa ls . mica e soci al tenha si do ro mpi da: o his tori ador ing lês Edwa rd P.
Nos últim os vinte anos, a rcnovnção dos cs tudos sobre as l11ul - Thompso n fez uma demonstração mag istral disso em relação aos motins
tidôes se realizou em direções múlti plas. i'o"5 0 se tra ta mais de inte ressa r- ingll.!ses da fo me no sécu lo XV I1I!J. O motim n [io é ma is percebido
se :lpcnas, como fize ra no início dos anos 60 '-.1 his toriador inglês George c::>mo desordem, e s im como um restabe lecimento da ordem, uma pe-
Rudé, a pa rtir dos arquivos polic iais , pel a c0mpos içflo social das mul- ti çüo dirigida ~l au toridade pa terna l do rei em favo r do bem comum, paru
til:~')es da Revolução Prancesa!<J: tais CS lUC ....... :' tiveram o cnormc mérito o re torno ao jus to preço dos gê neros a!i:nentícios. Ex iste, de fa to, uma
de rcfuw r dcfinitiva mente a lenda neg rn fabrica d:! por Ta ine, mas 50- rac io nali da de própria das form as dc açõe.s pop ul ares, qu e se funda n UIl .a
fri:lI11 de unu tríplice fraq ueza. Prim c iro, só considc ravam a multidão experiência plurissec ular .

. .
~ . .. ,.
124 PASSADOS RECOMPOSTOs Mutações l l5

Es ta aná lise foi amplamente confirm ada pelos traba lhos rece nte~ do multidões convidadas pa ra os espetácul os outorgados pela mona rqui a (q uer
histori ador amcri c,a no S~eve n L. Kaplan: partindo dos mecanismos qu e se trate ti as festas reais ou das execuções públicas) ou subl evadas em
reg ul am o mercado dos cercais sob o Anden Régime2<1, ele se interessou ~'em oção " popular. Esta história ef!1 fragmentos permite à autora afastar-se

pela recorrênci a, ao longo do século XVIII, tio s istema de representações, do discurso dos administradores da antiga monarquia, que dava à multidão
profund amente ~nra i zado na consciência coletiva , que infere a existência sel! duplo rosto contraditório, multidão animal e impulsiva e multidão
de um "complô de fome": cada vez que o ab :1S 1 ~ci m e nt o norm al do pão emotiva, capaz de dizer sua al egria e de agradecer a seu soberano.
ou de grãos fica illterrompido por ~m período pro longado, imedi atamellte Ao contrário dessa visão homogênea e monolítica, é possível dis-
reaparece um ' mesmo mode lo de percepção, comum aos meios mais di - tinguir comportamentos diferenciados, lógicos, organizados, adaptad os
ve rsos, dos ma is modestos aos mais favo recidos: os ministros, os finan- aos lugares e às circuns tâncias, sob a aparênci a da impulsividade; o qu e
cistas e seu ellfo urage são ac usad os de es timul ar um complô visand o levar mo tiva a ação popular é um a "construção de sentido fund ada na leitura
o povo à fome. Na visão popul ar, o governo não exe rceu o papel regul ador do que foi visto e percebido"27. A análise exemplar do caso dos raptos
que lhe cabia, e deixou que se dese nv olvessem as ilegalidades no comér- de crianças em Paris é um a demonstração brilhante dessa visão. Em maic
cio (es tücagens secretas, export ações ilícitas, até mesmo destrui ção de de 1750, corre o boato, na capita; , de que os homens do ~h efe de políc ia
grãos) . Rec usa nd o tanto a explicação pela paranó ia coletiva de uma Berryer raptam cri anças para levá-las não se sabe aonde; o motim creSCe
psicose alucinat ória, qu anto'a inte rpretação por uma patologia soci al, em diversos bairros, um ofici al de polícia é assassinado pela multidão,
K::! pl an mostra, ao contrár io, como a obsessão do complô, inscrita no mais e seu cadáver é arrastado para a frente da res idêneia do chefe de polícia.
profundo das "angústias de um a sociedade proto-indus tri al ainda suj eita Através do estudo minucioso dos testemunhos, relatos e rtepoimentos,
;1 tirania do trigo", se desenrola logicamente no interior do s is tema das através da análise precisa das formas da violência, dos gestos e dos gritos,
representações através das qu ais os atores perce bem as es truturas econô- pode-se ler "o motim como um texto que os atores im provisam, embora
micas e as redes do poder. A obsessão da ..::onspiração contribuiu mui to pa ra segui ndo antigos roteiros [... ]; ao escolherem luga res, situações, ao de-
poli tizar o problema da subsistência e para dessacraliza r a mona rquia, terminarem fo rm as de represálias, os amotinados inventam, de episód io
dcsatündo o laço místi co que uni a a pessoa do rei a seu povo25 . em episódio, a significação de sua revolra"2s. Cor.trari ament(; à opinião
Ao lado do grand e exemplo dos m otins provocados pelos g rãos, o de Michelet, o motim de 1750 não prenuncia as jornad as de 1789; el e
exame atento dos arqui vos da polícia e da j us ti ça paris ienses no sécu lo exprime, em sua form a a(caica e numa lingun gem política anti ga, a
fi irritação popular em face da invasão c rescente do Es tado e de sua polícia
XVIII pe rmitiu recentemente a ArtrIte Far~e reconstruir com finura a
lógica das ações e dos d iscursos jos g rupos capturados na rede da ordem na vida cotidiana, mas tam bém a nccess :dade de restaura! os laços de
rep ressiva, ou que proc uram simples mente o delegado do bairro, e res- amor e fidelidade que unem a aut oridade patern a do soberan o a seu povo:
titu ir assim os modos cot idianos de racionalid;:Jde do pov0 2(,. Re cusand o como pode Luis XV ser um rei de vida s e, novo Herodes, manda mas-
p:lftir de cJas~ificações preestabelecidas ou de cate go rias socia is predeter- sacrar os inocentes? Aq ui também se trata, em realidade, de recompor
mi nadas, trabalhando diretamente sob re os documentos (cujos limi tes ela um a orde m que foi destru ída: rapt ar cri :.lnç:ls cm nome da aU loridade real
é, justamente, ferir o caráter sagrado d ~ missão do monarca .
recon hece, pois fo i um a pdt ica de pode r qu e os fez nascer e qu c modela
5U:l forma) , ela faz ent~tO surg ir d:.ls próp ri as pr{iticas as reg ras de func io-

n.:'lTllento d<.ls rei;) ções sociais, e opera. pela reconstru ção de trajetórias
o horror do s massacres
clda ve:: sing ubrcs, e também pela atc nç;lo 30 detalhe s ign ificat ivo, UI11
No centro dessas reconstru ções, o his lorin dor enfrenta o que jus-
deslocamen to d:1s questões em rela ç5çl às te orias g lobal izantes, muitas tamente pode se aprese ntar como o mais irracional, o mais desuma no: a
\'czes cegas. D:1 fam ília para a oficina. do t1 J.irro p;lra a c idade inte ira , violência c seu cortejo de horro res. É preciso porém, pa ra apreender- lhes
a autora reeo loca os objetos das dispu t:\S, tensões, conflitos que s urgem o senlido, não ap licar aos fenômenos nosso próp ri o s istema de represen -
en tre casai s o u ama ntes, ope r:írios e p':Hrõcs, be 1l1 C0l110 no meio de tações. Lr.mbrarem os aqui somente do is li vros recentes, que coloca ram no
~IIL 226 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 227
~I;
.I â:nago de sua trama os próprios massacrc.5. Em seu livra sob re <l violência distúrbios religiosos. Não somente a denúncia profética do herege pelos
no tempo das guerras de religião, Denis Crouzet recusa desde o início os pregadores mergulh::! os ouvintes num funcionamento mental que opcra
modelos histo riográficos que quiseram explicar:.: mudança r~ligiosa ape- uma fu são er.tre enunciadores e receptores, e os impele, para reafirm ar
'I nas -pelas variáveis econômicas c sociais, em particular a histori.ograf:a sua fidelidade a Deus, a um desaposs::lmento de si, mas os próprios
'ri' anglo-americana c sua interpretação sociológica da Reforma; se esta não gestos da violência "são uma Palavra, um sis tema coerente de signos
'I é mais considerada como a revolução ....univcrsalistu .. dos pobres c dos dispostos de t<l l maneira qt'e eles enunciam a Vr.rd'lde prof~tica"3 1.
opdmidos, d~ acordo com O modele proposto; já em 1899, por Hcnri Através do furor gestu~1 nos corpos martirizados dos huguen otes, atra-
Hauser, os his,toriadorcs do.s anes 1960-1980 não tcriam por acaso sim- vés das inumeráveis marcas que os desfiguram ou os deformam, emerge
plesmente invertido o quadro inicial de explicação. associando desta vez todo um ritual de nomeação do mal. As chacinas coletivas têm a função
a men s~gcm divul gada pela Reforma à expressão social vivida por certos de desvelar o animal imundo ~ de fazer aparecer a verdade profetizada,
1 grupos ou certas profissões urbanas (impressores em Lyon, estudados por de fazer su rgi r o monstruoso que se m asca ra sob o invólucro corporal.
N.Z. Davis, ou artesãos do têxtil em Rouen, analisados por P. 13enedic.t), A violência marca, pois, o reencon tro com a ordem da realização de um
que estariam mais especialmente pred;spostos a aceitar e compreender Deus vingad or. Se, tão freqüentemente, as criancinhas são enca rregad as
essa mensagem? O redu cionismo antropológico, que <4des istoriciza" os da lapidação final dos hereges, é porque sua inocência, abençoad: por
,I massacres, para neles ler o sur~ir de um '-inconsciente coletivo" vindo da Cristo, marca a presença do Espírito de Deus na vio lêl1cia profética que
noite dos tempos, não é melho r que a interpretação cultural, ql1e faz dos el as cumprem, e anuncia a iminência da purificação escatológica. É
'I:
·u motills reli giosos uma Hrica categoria" no interior do s is tema dos gestos razoável, aliás, pensar, lendo os rituais de agressão qce opõem os
violentos da Europa pré-i ndus triiJI 2'J. Parn D. Crouzet, a uma crise reli- meninos aos huguenote~, que o imaginário católico reutili zou, numa
giosa correspondelTI pulsões religi osas: os cOTr.balz do fiel papista foram nova configuração, os elementos portadores da es trutura simbólica que
Hcomb3tes por Deus, com Deus, em Deus" 30_ A violência religiosa do opunha meninos e judeus na Idade h1édia32 •

rI século XVI não se explica pela re lação cstre ita que manteria com os As guerras de religião são, pois, guerras sal/tas, a pulsão de cruzada

i ,.
~,
valores de uma comunidade e o se ntido que es ta tcm de sua identid ade, uão está ausente delas, e a violência que nelas se manifesta é uma vi o-
c sim, antes, pelo desli gamento que ela introduz em relação ao tempo do lência dn posse de Deus: as contribuições da ~ln tropo logia foram aqui
~~ cotidiano e da cOl1lu niua oe, pelo desprendimento mon ~e ntâne o de toda essenciais para extrair uma interpret ação coerente de uma agressão reli -
IfI determinação Hmundana". Daí a atenção dirigid a para o roteiro dos rituais, giosa que foi capaz de chegar até" antropofagia 33 . É verdade que, se o
para a força de uma carga simból ica que já n5.".) é imediatamente iegível es tudo do imagin:írio dos discJrsos e do sistema das crenças dos atores
por nossa consciência cont~mpor[lIlea. Os. pregadores ca tólicos dos anos é extremam ente precioso para. compreender a morfolog ia dos massacres ,
1545 -1560 mantiveram os fiéi s num clima profético que anuncia a ele é muito menos produtivo para explicar o próprio desencadeamento da
iminência do Jul gamento de Deus e do c~lstigo final: no limi ar da catfls- vio lência, a passagem para o ato, e em nenhum caso exclu i o recurso a
trofe, só a violência cont ra o herege pOd t' ri a rccC'ns tit ui r a aliança com 0 utras análises. A interpretação da Saint-Banh élemy, a partir de uma
Deus, já então pe rdida. Considerando qU l', por sua parte, os hu gucno tes recon strução hipotética do imaginário de Carlos IX, como um 4'crime
se entregam a uma agressã o simbólica extremam en te forte (que talvez sej a human ista", um "crime de Amor, destina do il impedir que um ciclo in-
o sinal de um protestantismo mais ladical, ma is "revolucionário"), ocu- fi nito de ::;ofrimc!ltos e desumanidad es pud esse abate r-se sob re o reino",
pando as igrejas e destruindo altares c im ~lge n s dos san tos, :.l explosão de ?.3 rec c muito frágil. perigosa e pouco convincente34 . A noite da Sa int-
violência dos anos 1560- 1562 se explica Il1 clh0 r. Barthélemy núo foi um so nh o, e a or igem dos massac res não foi espo n-
A violência cató li ca deve, po is, Sl' ~ cxar:1inacla 11 0 campo especí- !2 Ile:l . A reco ns tru ção que o historiado r tent:!. das lógic<ls do acontecil~~cn­
fic o do sagrado do séc ul o XVI: re loman do u ma prol~\elll:lti c a cara a t0 nã o pode se perder unicamente nas repres e nlações que os atores con-

Alph onsc Dupro11t, D. Crouzc l ·ana li sa a dinümic<l sacra no âmago dos tempo râneos de ram dele.
Mutações 229
228 PASSADOS RECOMf'O~IOS

Três séculos mais tarde, o assas::;inoto ritual de um jovem nobre, "canibal", precisamente porque é sentido ainda como próximo. Muito
torturado e depois queimado vivo a 16 de agosto de 1870 no local da feira frcqüentemente, a historiografio "desreali~ou" o sécu!.1 XIX, "seus
da comuna de Haulefaye (Dordogne), na presença de uma mullidilo de massacres são pastc urizad lJs" c "o sangue das revo luções euidadosa-
trezentas a oitocentas pessoas, que o acusa de ter gritodo "Viva a Repú- minte lavado", como se fosse prcciso recobrir sistematicamen!e o ho r-
blica", fascinou por seu horro!' as imaginações contemporâneas. Sua sig- ror. Essa história "pudibunda e doce [ .. .] decapita a história das repre-
nificação permanecia um enigma, poi,;, como ol"'servClva Gat.riel Tarde, sentações; desqualifica a priori toda tentativa visando a · discernir a
"nenhum dos camponeses de Hautefaye q~e mataram a fogo lento M. de evolução da,; sensibilidades coletivas; bloqueia a busca das figuras do
Moneys teria sido capaz, isoladamente, não apenas de perpetrar, mas de horro r e das práticas Ga crueldadc''''? Ao contrário, o estudo exemplar
querer esse abominávd assassinato"J5. Retomando este dossiê, rapida- do Vil/age des call1libales [Aldeia dos canibais] restitui a coerência c
mente esquecido pelos historiadores, para tentar compreender essa forma a lógica de um drama - um gesto pol;tico - que foram deliberadamcnte
de crueldade, que se tornou estranha e insuportável para os homens do renegada.s pela sociedade e ocultadas pela República cm scu início: o
fim do século XIX, Alain Corbin explorou todas as pistas possíveis de massacre se apresentava como o renascer obsceno de um outrora que
explicações. As notícias desastrosas da guerra, com todos os sinais parecia afastado para sempre.
anunciadóres da derrota diante dos Prussianos, esquentaram os espíritos, A este propósito, o estudo das feridas da história, de suas paixões
num momento em que este vil~rejo do Nontronnais não só celebra a festa e de suas febres sociais, dos estigmas que elas de ix am, ainda pode fiOS
nacional do soberano (15 de agosto), como tam bém conhece uma vida ensinar muita coi~a sobre a relação p:!10lógica que uma sociedade
intensa de rel<!ções por causa da feira do gado. O infeliz Alain de Moneys man~é:n consigo mesma. A estranheza perturbadora que emana dos

é, de fato , uma vítima expiatória: ele paga a análise política lúcida enun- fenômenos percebidos por nós (mas :ambém pelos contemporâneos)
ciada imprudentemer,~e alguns dias antes, em outro IlJcal de feira, por seu como insensatos, revel a as perguntas que o corpo social formula a
primo Cami!le de Maillud, depoi ;:; da leitura do jornal: "O Imperador está respeito de sua própria identidade, c os alarmes que se propõe conjurar
perdido". Em 16 de agosto, Camille de Maillard compreendeu que era segundo seu léxico próprio Js . É tare fa do historiador desotar, através de
me!!:or fugir rapidamente do local de feira. O rum or ac~sa Alain de suas operações, esta meada complexa, e propor um sentido que nunca
Moneys de ser um "prussiano" que grilou "'Viva a República". é estabelecido de uma vez por todas.
Trato~-se, pois, de desmanchar um complô, de queimar um "prus-
siano" do interior, de prevenir uma catástrofe iminente, purificando a
comun idade nacional (e não mais apenas local) desse monstro estranho Notas
que é um nobre ao mcsmo tempo " republicano" e "pruss iano". A fas-
I A. Dupront, Du Sacré. Croisades el pelerilloges. Imogcs ellollgoges, Paris, Gallimard,
cinação que exerceu o massacre de Hautefayc deriva da revelação da
1987, pp. 222-224.
distância entre a sensibilidade já dominante no século XIX "e os com-
po rtamentos camponeses, indiferentes à modificaçflo dos limites do 11-1. Taine, Les Origilles de lo Frallce cOllt<:l/Ipor.; ill(~ , Paris, co leção "Bouqu ins", edi-
tolerável")". Em relação à violência do século XVI, os rit os do massacre ções Robert Laffonl, 1986, I. I, p. 314.
e o s istema sacrificai do sup lício se desfizeram: nasceu uma nova sen-
llbid., p. 333.
sibil idade. O espetáculo da dor e do sangue derramado tornou-se into-
lerável: permanece público só o espetáculo àa execução capital, que em ·/bid., p. 341.
Paris se deslocou significat ivam ente da antiga "place de Greve" para a
"b:lfricre Saint-Jacques". No ent:mlo, não hl. "'I uve supressão da violência 5 //Jid., rp. 178- 179.
no sécu lo XIX, mas antes uma ma ior inlolerJncia ao desvelamento da
~ /6id., pp. 342·343.
crueldade coletiva: deseja-se exorcizar o '"'se lvagem", o "bc.írbaro", o
230 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mutações 231
' I bid., pp. 350-35 1.
l l/bid., p. 3 1.
' IbM., p: 562.
II G. Rudé, La Fou/e, op. cit., p. ~26. Para uma críli ca de G. Rudé, cf. C. Lucas , " 1l1C
• Sobre esses pontos, d. S. Barrows, Miroirs dé[orrnQ/l(s. Réflexiolls s.lIr /0 [cu/c CII crowd and politics", in C. Lucas (ed.), The Po/ilica/ Cu/lure of lhe Frend, Revo/uriofl,
,I Fra1lce à la fi" du X/Xc siêcle, Pa ris, Aubier, 1990. Oxford, 1988, pp. 259-283.
I I
'I lU G. Tarde, Les /ois d'! l'imiratioll (1890), cilada por S. Barrows, op. cit. , pp. 124 -1 25. :u E. P. Th o mpso n, "The morJ. 1 economy of lhe CIl &li sh c row d in lh e e;g htee nth
cent ury", I'a sl '1l1d PresCll r, n. 50, 197i, pp. 76-136, Irad . ff. in Gauthier c G.
11 G. Tarde, L 'Oliillioll et /0 Foule (1901), na edição das Presses U nivers itaires de France, R. Ikni (di r.), La Gucrre du b/é ou XV! f/e sicclc. La cr~liqlle popu la~rc cOlltre
Paris, 1989, p. 67. le libéra/isme économiqllc ou XVII/ e siec/e, Mon lreu il, Ej. de la PasslO ll , 1988,
pp.3 1-92.
"If,;d., p.163.
l~ S. L. Kap lan, Lcs Vellires de Paris. Pouvoir ~l approvisiol/llcmenr dans la Frol/cc
U Sobre Guslave Lc Bon, cf. R.A. Nye, The Ori~;'ls ofCrowd Psychology. 6'ustave Lc d'Al/ciclI Régime, Paris. Faya rd, 1988.
BOII and the Crisis of Mass Democracy ill the Third Rep"blic, Londres, Sage
Publicati ons , 1975. 1.5 S. L. Kaplan, Le Comp/CJI de famil/e: hisroire d 'lIl1e rWllcur 011 XVllle siêcle, Paris, A.
.' Colin, 1982. Sobre a politização do motim do tri go sob a Revolução, :c ia-se a a::álise
11 G. Lc Bon, PSYc/IO/ogic dcs foulcs, Presses Unive rs itaire s de F rance. co leçiio do pap..:1 das mu lheres duran te as jornadas revoluc ionárias dc abri l-maio de 1795 cm
""'Quadrige", 1963, pp. 19 ~ 25. D . Godineau, Ci(oyelll/(:s tricotcuses. Les femmcs du pe/lple ti Paris pendalll /0
Révo/utioll, Aix-cn-Provence, A 'i né:1, 1988, pp. 287-354.
I' Cf. A. Hitl er, MOII Combat, trnd uçiio de Meill Kam,7f. Pari s , Houve ll e.s Édi tions latines ,
l~ A. Farge, La Vie J~-agile. \fiofellcc, pOIll'oirs c! solidarirés ti Paris {!u X\fII/c siec/c,
1934, p. 51: "Ass im como a mulher é pouco sensibi li zada por raciocínios abstratos,
c:xperimenla lima indefjníve l as'piraçiio sentimenta l por uma alitude inteira e se subme- Pari s, Hac hettc, 1986.
(e ao forte enquanto dom ina o fraco, a massa p refere o senhor ao supl icante, c se sen:e
27 Ibid., p. 296.
mais tranqüilizada por uma doutrina que não admite oulra j unlo dela:!. não se r por uma
tolerância liberal". A respeito da inOuência verossíme l Ca tradução alemã de Lc Bon
~o hre Hi tl er, cf. A. Stein , "Adolf Hitler und G!.!st<lve Le I3on", Gescl:ich !e il:
lI! A fa rge , J. Reve l, Logiqucs de /" fou/e. L'afJaire des clI/evemcllts d'cllfallts à Paris
n
'I H'issellschaft IIm/ Ulllerricll/, t. V I, 1955, pp. 362-:3-68. (1750), Paris, Hache tte, 1988. p. 63.
~

I .. M. Perrol, Les Duvricrs cu grêve. Fral/cc, 1871-/890, Pari s-L1 Haye, Moulon, 1974, l~ É eSS3 a interpretação de N. Zcrnon Da "is em sua an:ílise dos ritos de violência, Lcs
~ 1011105. CullUrcs dll pcuple. Rilllcls, savoirs et résistallccs 0/1 XV/e siêclc, Paris, Aubier-
Montaigne, 1979, pp. 251-307.
11 G. Lcfebvre, La Grallde Pellr dc1789, pre f:ício dI! JJcCjlles Revel, Pari s, A. Colin,
; 988, p. 65; pp. 120-14 1. :11, D. Crouzc t, Lcs Cllerriers de Diell. La violellce 011 temps fies (roubles de rclir!il1l1, vcrs
/ 525'l'crs 1560, Scysscl, Champv31l 0 n. 1990. r. 75.
I I LciJ-se também o artigo de G. Lcfebvre, "Fou les rév\."'Ilulion nai res", escrito igualmenle
li /bit/., p. 239.
e m 1932, publicado in Étllllcs sllr la Révo/ulion fralçaise, 2. ed. rev ista, PJris, rUF,
i 963, pp. 371-372.
n Cf. o liv,'o recenlZ de C. Fabre-Vass:Js. La Bé/e sillgllliere. Lcs jllifs, les chréfiellS cf /c
I' G. Rlldé, Tlw Croll'd illlfle Frt'lIch Rcvollllioll, Oxft)( ."L Oxford University Pre ss, 1959: COChOll, Paris, Gallilllard, 1994.
:nd uç50 frances:!, La FOIl/e dal/s la Révolllliollfrar. çaise, Pari s, M:! spero. 1982.
H D. Crouzc l. op. cit., pp. 3 19·4 10.
:l, G. Rudé, TI,c Crmwl ill Nis(ory. A Srudy of Popular Dis(l/rúw:-:es ill Fml/ce 0//(1
D. Crouzel, /.(1 Nlli, de IfI Saillf-Barrhc.;/e:my. 1../11 révc pt:rdll de: III Rellaissfll/ce, Paris,
Eng /alU/, / 730-/8 48, Ncw York, Joh n \Vcilcy and Sons, 1964, p. 4 . H

faY3rd, 1994, p. 487.


I!I 232 PASSADOS RECOMPOSTOS

H G. Tarde, L 'Opillioll clla fOllle, Paris, PUF, rccd., 1989, p. ~5 S.


TRÊS
,.. A. Corb in, Le Vil/age des call1libales, Pari s, Aubicr-Montaignc, 1990, .p. 121.

n I bid., pp. 137-138. A Construçãq das Categorias Sociais


).a Cf. M. de Certcau, " Hisloric ités mysliqucs", in Rccht=rches de scicllce rcligiclIse, L 73, SIMON,1 CERU1T1

1985, pp. 325;354.

Foi pl..la crítica de uma imagem esclerosada das estruturas sociais,


originada de lima vistio exterior e não C01l1exlllal do illleresse, que IlUme-
rosos trabalhos históricos propuseram, nestes últimos anos, um retorno às
fOllles, uma atenção renovada para .1 linguagem dos dc., :umclllos e as
categorias ,los alores sociais. O confronto elltre modos de descrição
ill/ernos Oll externos às lógicas do passado - éticos ou aparelltes - ocupa
de agora em diallle um lugar ee1Jlral fiO debate historiogrâfico.

Há algun:; é.II'')S, 0S historiadores vivem urr..a CI ise de legitimidade


,i de ·sua disciplina, que provém em parte d3. opacidade do objeto histórico .
Sua especificidade, que se apresenta cada vez menos evidente, está sendo
i!"
J:I submetida a uma red iscussão radical. O mal- ~s tar é ainda maior porque
11 , o debate sucede a um período de relativa segurança, devida ao uso de

,"I1,,
modelos, de paradigmas e de metodologias ditos "fortes". Nos z,nos 50
'
c pa, uma grande parte da historiografia européia tentou supera r um sólido
!fi complexo de inferioridade' em relação aos ins trur,.entos de análise e de

IR verificação utilizados pelas ciências da n~turcza. Com efeito, se a adoção
da quantificação C0l110 modo de organiz..l.ção e de leitura dos dados foi
maciça, fo i, ent re outras coisas, para conseguir uma gara ntia de crcdibili-
dade das hipóteses de traba lho. Através das "leis numéricas", constitu íra-
se a 3mbiçúo de elabora r UI11<l discip lin3 enfim "ciell1ífica". A mesma
ambição transparece, como lembrou o hist0ri.ldor inglês Lawrcllce Stonc',
na imagem adotada por ce rtas revistas históricas (durante os anos 1950,
Pasl alld PresclIl, a mais prestigios3 das publicações anglo -saxônicas,
tr<lzi<l o subtítul o Rcvuc d'hislOire scienrifique).
Os exemp los mais típicos dessa atitude se enco nt ram entre os
"cliornelricisI3s" nos Estados Unidos, m3.S lambém na Europa, e sobre-
ludo na J7rança, onde por muit o temp o :,-i:' definiu o objeto da pesquisa
históri c:, através d;J const ituição de séries - quer ..ie trate de objetos, de
gê neros al imentícios, de preços ou de indivíduos. É ncs~e conlexto C!ue

I
II 234 PASSADOS RECOMl'OsrOS

1I i Mutações 235
I se situa o imenso sucesso de um modo de organização dos fato::, e das
his tóri a francesa, que levo u a definir os grupos profissionais como um
I análises, conhecido pelo nome de classificação s6cioprofissional. Em
ins trument o de identificação dos ind ivíduos . Estes alltores sublinharam
I to mo dessa g rade de lei tura das realidades sociais, neu tra apenas em
aparência, surg iu um debate que me par~cc cap ital .s e quisermos compre-
p arti cularm en te quant o essa forma de leitura era o rcs ultado de um
! e"J.d'.!f o objetivo do trabalho do histo ri ador d urante os últim os anos .
compromisso entre a vontade de conciliar uma pretensa continuidade da
o rganização corporativa do Ancien Régime, e l noção, .mais moderna
A crítica das categorias "ôocioprofissionais" embora vaga, de "meio :iocial", que em pdncípio remete ao mesmo
tempo a um estatuto e a um modo de vida. Como Desrosicres e Théveno t
Os estudos dedicados às sociedades do Ane ien Régirnc, em parti-
apon tam, o inven tor do termo "socioprofissional", interrogado sobre a
cular às sociedades urbanas, têm início freqüentemen te com uma aprcscn-
preferência qu e dava a esta expressão em rel ação àquela, mais simp les,
!2ção preliminar da população, de sua fisionomia social, de seus modos
de "categoria social ", respondeu: "Se tivéssemos escolhido essa palavra,
de produção c de s uas hierarquias internas. Muitas vezes, essa apresen-
te ríamos s ido criticados por todos. A esquerda julgaria que não eram
t~ção toma dois caminhos que não se exclc ~m neccssariamente:.por um
verdadeiras cl asses sociais, e a d ireita g rit ar ia, ao contrário, que eram
13do, a descrição de "tipos" representativos das diferentes ordens sociais
classes sociais. Ao contrário, com 'socioprofiss ional', ninguém disse
I,
(o nobre, o burguês, o comerciante), por outro, a classificação por ca te-
nada". Por trás desta pi lhéri a, entrevê-se um autêntico prob!ema : sob a
g..:..ria:; p:ofissio nais. Tem-se dl.l.do muita import ância a este segundo ca·
apa rência de uma descrição ap arentemente neut ra, a s íl~tc se entrc a
min ha. ti do como capaz de prestar conta globalmente dos caracte res
profissão e o cstatuto social deli mita g ru pos segundo critéri os compre-
fundame!ltais do es!,aço u;ba po. A repartição dos haiJit :mtcs por setores
ens ívei s para os pesquisadores, mas qu e não correspondem :lecessari a-
de. ativ idade pod ia, ao mesmo tempo, d ar um a im ;'\gem das orien tações
mente à experiência dos atores socia is.
econômicas da cidade (a indústria, as manufaturas, os serviços), e remeter
Entre os histori ado res, a reflexão relativa a essas g rades de lei-
êl sua es tratificação social, já que, mesmo implic itamente, ela desenhava
~ura, suscitada por sondagens empíricas, foi talvez menos explícita,
a escala das hierarquias. Assim, o~ quadros por profissões, tão freqü ente.;:;
porém mais precoec. J .í no início dos anos 1970, certos pesq uisado res
n:as monografias francesas, se enca rrega vam de fornece r coordenadas
começaram a sublinhar a pouca eficácia dessa classificação num domí-
essenciais; num segundo tempo, uma análise pormenor izada podia apli-
.1 ni o crucÍ3,!, o d:!. cOt11í-:rJção, onde, j l.ls::!n1ente, sua adoç50 deveria se
C:2r-se a aspec tos mais part ic ulares da vida soc ial.
mos trar part icu larmente útil. De fato, as calCgori as pareciam incapazes
Um amp lo debate, que remonta principalmente aos anos 1960-
de se adaptar à diversidade das s itu 3",iões, que se upresentavam cada vez
19 70, desenvolve u-se em torno desses c ritérios, de início fun dados uni-
mais complexas c irredut íve is umas às ou tras. Assim, reu ni am -se nos
C~lenle numa nomenclatu ra profissiono.l; or'3~ esta foi se enriquecendo,
mesmos comparti me nt os indivíd uos que exe rciam, na real idade, pro-
.h."lS poucos, com va riáveis sócio-eco nômicas tais CI')1110 o níve l de v id :1.,
fissêes diferentes, man ti nham rela ções dife rentes C0111 o sistema de
c setor de ativ idade ou os v íncu los de de pendênc ia entre as profi ssões.
produçiIo c se benefic iavam de um cstJt:lto soci al diferente. Esse ti po
.\"~ França, O modelo fo i tirad o d;IS grad ~s eSi~belccidas pelo INSEE, cuja
de c1assificaçüo se mostrava fo rçado, in epto a levar em conta impor-
rl! pó tcse inicial era precisamente co nst ru ir calegorias em que a profissão
tan tes espec ificidades loca is.
r:.:asse emparelhada com o meio soc ial.
Ao longo dos anos segu intes, novas elnpas foram vencidas: a crítica
Recentemente, as ca tegorias socioprofiss ionais fo ram objeto de
co nt rár ia a esses cri térios "exteriores" se aperfeiçoou, fundando-se el11
:- :-ofundas crít icas, ro rmuladas po r s oc ió lc'gos c d emóg rafos. A lain
dUils on..iells de co nsider;:lções. Em primeirl. "\ lugar, se u aspecto parcial: eles
Dcsrosicres c Laurent Th evcnot, cm parti cui:l r. e m Les Ca tégorics socio-
negligenciam ou, no pior dos casos, ocut:~lll ce rt os componentes funda-
r ··ofes siollllclles [As categori;:ls socioprofiss: .Jll ais] (Pari s. 1988), se in- mentais das soc iedadcs qu e pretend cm ar.:::.lisaf. Em seguida, pelo con:rú-
t ..... rrogaram sc bre o Illod o de c1aboraç50 dcss;:IS classifi\..ações, Cfuesti o-
ri o, eles "criam " grup os sociais cuja exis;tênc ia aind;:l nã o fo i provuda .
cando seu cará ter "natura l" e cvocand o o caminho indisso('iávcl d"
Delineou ·se ass im ullla reflexão l11uis ger:!l qU:1I1! O il maneira de descrever
I !I:
II
2.36 PASSAOOS RECOMPOsrOS

as sociedades do passado, qu anto à eficác ia de ins trum entos c de um


vocabulário estranhos à cxpc ri ênci:\ dos a~orcs sociais.
Mutações 237

os membros da mesma categori;:l. De fato. é esta última noção qo..:e coloca


a classificação como um modo de rep resentação plausível da sociedade e
"I: , Urna série de estudos, inilugurada por Nata lic Zemon Dav is em sua reduz a inq:Jietant~ disparidade dcs comj>ortamentus de grupo. ~t a questão
obra sob re Lyon no século XVI2, subvertel1 profundamente a imagem tradi- se situa no âmago do trabalho do historiador.
cional da cstratificaçüo social numa cidade de Ancien P.égirnc. Na origem
Uma noção preguiçosa: o "interesse"
desta mudança está um princípio apa ren temente simlJles: cons:sle em reler
li
I
os docurncnlq,s de uma maneira aprofundada. pres tando atenção a sua lingua- Enquanto obj eto de estudo, o gr upo é sem dúvida uma unid ade mais
tranqüilizadora que os indivíduos, e não é por acaso que um grande
gem. O resultado foi uma multiplicação dos atores sociais. Por exemplo, em
Lyon, durante a Renascença, a idade c o sexo não constituíam apenas vari á- número de análi::es desembocam na produção de grupos para o uso dos
I veis no interior d:l escala form ada pelas profissões, mas rep resentavam tam-
pesquisadores. Segundo A. Desrosieres, a própria noção de méd ia es ta-
bém grupos sociais au tôn'Jmos, que ocupavam um lugar reconhecido dentro tística desempenh a essa fu nção: já que exprime um va lor que não pertence
d3 es trati ficação urba na. AtribuÍi'\m-se a esses grupos funções de ordem e de a um elemento isolado, ela confirma a exi .. tência do grupo come: realidade
con trol e, eram mencivnados nos estat ut os, manifestando ass im sua legi timi- sup ra-individuaI 3 . A utilização que se faz muitas vezes do co nceito de
dJde no plano jurídico. Ora, esses grupos de idade e de sexo teriar.) sido "interesse" é um bom exemplo desta ati tude.
inv isíveis caso se tivesse adotado uma classificação socioprofissi'Jnal: e no Noma obra justamr.nte célebre, o economista Albert I-lirschman
, entanto estavam prese~tes no espírito dos contemporâneos, e permanecem examinou o processo pelo qual, nos séculos XVII e XVI II . a noção de
! essenciais para se compreender o compo rt ame nt o de l es. "interesse", q'le tin l:a u:na acepção muiro ampla, çôde ser assim:lada às
di simples van tagens materiais <?u eco nã micas4 • Acima de tudo, ele mostra
ti Ao mesmo tempo que di ss imula certos atores sociais, a c1ass ifica-
ç.5.o inventa outros, sem se preocupar muito com sua existência na socie- quanto o extraordinário sucesso de que gozava essa noção era di tado pelo
1~'"'1 ' dade analisada. Es ta crítica se apó ia numa constatação apar~nteme nt e efeito tranqüilizador que lhe era atribuído: tinha-se enfim definido uma base
~
,, ' evidente, mas crucial. A tax inomia não é u m instrumen to neutro, que que podia dar um a ordem plausível à sociedad·e. Seu principal mérito era
:\ vis:J ria uni camente refl etir as realidades . E la encon tra sua just ificação a idéia, que de la derivava, da continuidade e da permanência dos compor-
!:
.1
," numa idéia fOitc da verdade ~ do saber: um mode lo ~ristotéEco segund o tamentos sociais. Da continuidade à previsibilidade, havia apenas um passo,
e nisso reside a principal razão do en tus iasmo que eSD noção suscitou.
'aI'il 11 qual co nhecer é sinônimo de "fazer aparecer", de revelar o que já existia
Ent retanto, es te efeito tranqüilizador não seduziu somente os homens
em estado Inten te. Nes te sentido, a c1assiLcação não é um a das intcrpre-
~ - i::lÇÕCS possíveis da realidade, c s im seu espelho direto. Por conseguin te,

\,.", próp ri o ato de "classificar" não seria ma is que uma ordenação do real.
dos séculos XV Il c XVIll: ele explic., parece-IlIe, o f.to de qu e ús histo-
riadores adotam freqüentemente - e de modo mui tas vezes irrefletido - o
Na realidade, reuni r indivíduos em categorias dcfinidns pelo se tor de critério do " interesse". Dinnte de uma dispersão possível dos comportamentos
.?tividade nflo tem nada de natu ral: ao c\lllu:lrio, pos tula-se com isso mesm o indiv iduais, cle oferece a vantagem de fornecer um denominad or comum a
::1 exis tência de gru pos sociais, pelo menos de uma man ei ra implícita. Os
um cert o número de sujeitos. Basta fab r e-m in teresse para falar em grupos,
qu e exercem a profissflo de comercianlL'. de advogado. ou então os que se em ou tras pa lavras, para efetuar o deslizame ntv do indivíduo ao grupo, tão
e ncon tram na categor ia de nob res, torn:llll-se os co mp onentes de um corplls tranqü ilizador para quem pretende an 21 isa r os comportamentos sociais.
que a taxin om ia apresenta como coerente. Pouco im porta se n;io p~lrtil h a· Foi pela crítica dessa imagem es.c1erosada das est ruturas sociais,
":lm os mesmos interesses ou os mesm os idea is: a c1assificaçflo ignora o originada de uma visflo exterio r c nã o conlextual do interesse, que nu -
;l roblem<l da validade de seus próprios l'ritérios aos olhos dos protagonistas merosos trabalhos históricos propuseram. nestes últimos anos, um re torno
Ja época c, sob a aparência de uma leitura neutra da realidade, rei fica às fon tes, um a atenç~1O renov;}(b pJrJ :::. li nguagem dos docume nt os e as
grupos sociais. A través dela, desliza-sI.' assim do indivíduo elll direçüo aO categorias :los at ores sociais. O confronlo entre mod -:1s de desc rição in-
grupo, já que a cJassificaçüo subentende a n oç ~1O de interesse comum pum ternos ou exte rnos às lógicas do pass::Jdo ocupa um lugar central no debate

1
238 PASSADOS RECOMPOSTOS
Mutações 239

historiográfico atual. Ele tem abalado rneita s certezas apressadas quanto raçosos problemas de in terpretação para os historiadores da "nova esquer-
ao caráter objetivo da ~nálise histó ri ca. d a", como observaram rece nt eme nte D_ Mayfield e S. T horn é. Em outras
palavras, a adesão ti ideologias que não corrcspondem aos · intertsscs
A linguistic turno uma renúncia evidentes de um grupo detenr..inado, legitima o divórcio entre os "discur-
Esta rcflex;:;'o, entretanto, chegou a resultados diversos. Por um lado, sos" e o plano do social. Opera-se entãc. uma reviravolta completa em
certos trabalhos (cs de Natalie Davis são o melhor exemplo) analisam o relação ao paradigma que se pretende cOCJ.bate r: no limite: os indivíd~os
vocabulário dos atores sociais para compreender as interpretações e as pro- dcsapa recem dcste tipo de análises, ,!ue CC:1cernem antes de tudo às
posições relativas à est ratificação social: esforçam-se por reconstituir os c ons truções narrativas. E são os semiólogos, i.lais que os especialistas das
sistemas de sentid o inerent ~s às classificações sociais do passado, sem se ciências sociais, que se tornam a referência dos historiadores.
contentar em substituí-los às ca tegorias socioprofissionais, mas examinando Es ta nova int c~discip lin a rid ade merece um tempo de reflexão. Ela
sua gênese, sua utilização eventual ou os conflitos dos quais se originaram~ se asse melha mais a uma ren úncia do que a uma verdadeira convergência
Abord a-se pois a estratificação através de uma leitu rl atenta dos discurso~, de temas e de problemáticas. Se este tipo de trabalhos postul a, como
qu e a ela se referem, juntamente com o comportamento dos protagonistas. di ssemos, a auton om ia da linguage m, é devid o à inadequação dos instru-
Por outro lado, uma corrente histórica j á ab und ante proclamou a mcntos de análise dos historiad ores para explica r, por exemplo, a distân-
"d is.so: uçf.o el o ~oc ial "; ela rejei ta radica lmcn.e toda análise dos compo r- cia entre ideologia e comportamento social. Uma visão mecânica e ríg: da
tam entos do passado em te rmos que impliquem na co nsideração da expe- ela es tratificação, que faz corresponder interesses específicos aos dife ren-
riência dos at ore::: e de s~ u s int::resses (materiais ou ou tros) . N(;s tp. ca~o, as tes papéis exerci~os pelos :ndivíduos, dei.xa de lado as di scord âncias e
an álises da linguage m não servem de ponto de partida para a exploraç ão as contradições qu e surgem consta ntemente na análise.
dos processos sociais que a produziram. Pelo con trário, elas ~ão restritas, Entretanto, op tandc por atribu ir às linguagens uma aut onomia abso -
pois o essenc ial é a "construção di scursiva", conside rada como reveladora luta e por negar-lhes qu alquer relaçãe com os c('lmportamentos, desiste-se
do uni ve rso cultural dos que a adotaram. Portanto, a lillguistic rum (virada d e fa to de enfrentar essas con tradiç~es: C011s tata-se um a dificu ldade se m
.I lingüística) volta a ques tionar se ri ament e a pe rt inênc ia do social como procurar resolvê-Ia. O reques ti onamento cbs certezas d i sc iplin ar~s - entre
contexto da aná lises: aprese nta -se' mcsmo, no espírit o de seus defensores, as qua is, sem dúvida, os modos de descriç5.o e de in terpretaç50 fornecidos
'"
como uma maneira de ultrapnssa r um determi nismo sociológico Cjue teria pelas ca tego rias socioprofissio nais - se traduz por uma at itude globa lment e
por de:nasiado tempo carac teri zndo os tra bnlhos históricos. passiva. Ou, em caso ex tremo, por uma fo nna de cetic ismo, comum hoje
É importante obse rvar que muitos de sses tr abn lhos se ocupam de a numerosos historiadores, qu anto as possibilidades explicativas das ciên-
fenômenos ou co rrentes políticos. É qu e as explicações em termos "socia is" cias sociais, se us objetivos e sua ap tidão para ter acesso à rea lidade.
- que determinariam motivações e interesses a partir da posição dos ind i-
As ide ntidad es sociais: das tnj e tórias ind ividua is
v íduos na escala- hie rárqui ca - parecem restrit i"as, insufic ien tes. Ao COI1 -
às so licl:tri ed~des
tr:.írio de um a ótica "ontológica" dos grupos ê das classes, a abordagem
lingü ísti ca se propõe a analis;l-los como construções di!:.cu rsivas : atri bu i- Todavia, as aná lises lin gü ís ti cas pOOCIll co ndu zi r a outras direçõ es.
se ~1O di sc urso ti capacidade agrega tiva e a fLtc uldade de ge rar a solidarie- Nfio so me nt e elas ajudam a co nceber o q!..:c foram no passado os crité ri os
daJ c social que faltam visivelmente aos simples interesses m ater iais. Assim da estra ti ficação social e a red iscu ti r os critér ios alllu is do his toriador,
a lin guage m pode abs trai r-se dos atores que ;! uti lizam. como també m, di spe nsa ndo uma ate nção c rític<l às li nguagens, pe rmit em
Com efeito , co nstataram-se freqücnteme nt e ruptura s importnnt es formu lar de uma mane ira menos rígid .1 :l noçüo de interesse, na qu a l,
":0111 0 vim os, a classificaçiio sociopror:"5::ion:ll funda sua legitimidade.
cn(~ c o ordenamento políti co e as condiçl-1C:, ::l:lte ri a is. Nâ o é por acaso
que :1 linguistic /urll se dese nvolvcu nUIll mundo tl ng lo-saxô ni..;o, num En tretanto, é nece!'i!'iário que o discurso ~~rl1lancça o ponlO de partid;J, e
m .... me nto el11 que reagani .-:i lllo e thatc llerislll o -po pulares" criav am emba - ni"t o o res ultado da pesquisa. De certa m::"':1c ira, é prec iso rcinlrod uz ir na
Z40 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 24l

análise os atores sociais que utilizavam essas linguagens. Esta acepção relações, ou mais em termos de aglomerações humanas que de ligaçAcs
do contexto, cada vez mais difundida enlre os historiadores, é a que entre seus compone!1tes c o mundo que os cerca.
parece a mais rica em desenvolvimentos ülteriores. Esta perspectiva relaciona I parece-mo susceptÍ'Jel de reformular
Partindo dos indivíduos, recompondo-lhes o percurso social e a relação entre as nornlÜ.s e os comportamentos: ela enriquece a id éia
tentando reconstituir-lhes as escolhas, C' pesquisador se interroga sobre que temos das primeiras, já que elas não são determinadas. de uma vez
a experiência deles c, por conseguinte. sobre o modo de formnção d\:! por todas pelo lugar que o i.ndivíduo ocupa na escala social c profis-
11 sua identidade social. Esforça-se por desenhar seu ho:izonte, e para isso sional, e sim produzidas c negociadas no interior dos vínculos sociais.
li" , define seus interesses muito além 'da profissão ou do estatuto oficial. É Por outro lado, ela pode contribuir a definir a ~xperiência c, por con-
uma perspectiva que também parte da constatação dos limites das ca- seguinte;:, os interesses dos atores, pois, ao reconst ruir as interrelações ,
tego rias, mas que, longe d~ se traduzir por uma renúncia, se propõe a o pesquisador não pode se limitar a ní"eis de análise preestabelecidos
redisc'utir os pressupostos e a enfrentar as contradições das mesmas. (as relações de produção, de mercado etc.). O percurso dos indivíduos
Nã0 se trata tanto de negar o fato de os indivíduos pertencerem a no interior de diferentes meios - a famIlia, o trabalho, a vida soci~ 1 -
',;
categorias profissionais, mas de examinar como as relações sociais criam desenha seu horizonte social.
solidariedad es e alianças e, afinal de contas, grupos estáveis. Assim, a Esta perspectiva implica também in tercâmbio com outrns disc ipl i-
,I, LUpura entre os "discursos'~ (; os comportamentos vai constituir um na:;: ~em clúvica alguma com uma forma de antropo logia "relacional"
problema para o historiador, que não poderá livrar-se dele isolando cada e amifuncionalista, que se desenvolveu sobretudo a partir dos anos 1970
, u.m dos dois termos. Este problemJ não cons istirá apenas em reconstruir no mundo anglo-saxônicn, c cuja repercussão junto aos his tnriadorcs
;'1
'I, "'0 que as pessoas diziam", a maneira como interpretavam o universo franceses permanece até agora limitada"". Os que orientaram seus traba-
em que viviam, ou as ideologiJ.s de que se nutriam, mas wmbém em lhos mais para a análise das redes sociais tecidas pel os indivíduos - do

!!Il compreender como alguém pode, muitas v..:zes, pronunciar pal av ras em
aon tradição com seus próprios atos.
Debruça:--se sobre o percurso dos indivíduos testemunha uma gr:m-
que para os sistemas normativos que em princípio regulam seu compor-
tamento - .obedeeeram a motivações análo"gas às que evocamos. A
questão é conseguir compreender do mterior as formas adotadas p~la
,I I de ambiçã0. À noção de uma vida social regida por normas exteriores, estratificação da sociedade que se prete.ndc analisar e as razões dessas
't a um comportamento que se define a favor ou contra essns normas, opõe- forma s. Nesta base, a interdisciplin arida de não represent;J nem uma
"
i ~ uma visão menos linear, porém mais capaz de expl icar a relação que rer:.ún::ia nem um plágio, e a "crise das certezas" pode se tr aduzir por
I UJ"le os indivíduos ao mundo em que evoluem. Pode-se ver o indivíduo um enriquecimento sa lutar.
c. .""Imo
. um ser racional e social que pretende atingir um certo número de
o.hjetivos. Os impedimentos e os limites de suas c<l?acidades de escolha
c;;,pcndem essencialmente das características de suns relações com ou-
~=~~ m: inscrevem-se na rede dos compr Oi:::ssOs, das expectativas c dos NorJ.5
bços de reciprocidade que a vidCl em sociedade lhes impõe. Por conse- 1 L. Slone, " The revi va i of n:Hrnlive: rcnccli ons o n a nc\V old hi slory", I'asl lIlId Prescllt,
~uin l e, é o própr io processo social que se situa no centro da aná lise, c n. 85, 1979, Ir:ld. rr., Le Débaf, n. 4, 1980, ~ç_ 119-122.
F. .l rtanto as interações dos indi víduos em di \'ersos contex tos sociais mais
~ue as simples instituições . Das cstrutur::..5 c das inst ituições, o foco da l N. Z. Davi s, Lcs Cu/furcs du pCllp{C. Uilfl el: ..ml'oirs cf résis(al/ccs (/1/ XV/c siecle,
Paris, Aubicr, 1979 (Ir::ld. de Sociel)' (//ul CU::::.Jre i/1 I"::arly Modem Fral/ce, Stlllrord
:l_11álise se desloca para o processo e as int eroções. Resolve-se assim o que
Univcrs ity Press, 1975) .
~~ cOI1:-. iderou como uma am bigüidCldc e-::istelllológica fundamental da
cicncia ocidenta l: li lendcncia a criar fal s::..s unidades de ~1I1~lise - o fato \ A. Dcsros iêrcs, M ::sses, i/ldividus, 1II0)'c lllle:..' . Ia srn/istiq/U: socia/e t:!1 X/Xc siecle ,

I
cc. pensar mais em termos de unid ades ind ividu ais que de sistemas de P::lri s, J-Icfm cs, 1988.
242 PASSAOOS RECOMPOSTOS

.. Al bc rt O. HirSCIlnHIO,La PassiOIl cl (cs IlIlér{Jls. JusfifiCDIÚJ/lS politiqllcs tlu capi;alismc


aVi11/1 SOIl apogée, Paris, PyF. 1980 (cd. original, Priuce(on ~nivcrs ity Prcss, 1977);

"i " ,, ', h !') Vl l ...·,' 'JJ,: ' . . ' , "l- '
j Cf. O, Elcy, "De l'histoire sociale au ' toum a;1t linguistiquc' da ns ]'historiographie anglo-
l ' -~:~ ..' 'r
., .... .. ' '''Mulheres I Homens: ."" I(".~
o ' ' o • ' •

amé ric a i n~ des .an nées 19SQ", Gelleses, 7; 1992. pp, 163-193, .. ~ . .
I. '!l I.' .... , : 1, :-)J:..I ...' ' ' ,:J,

~ D. Mayfield e S. Thornc, "Social hi story íl nd its disconlcl!ts: Garcth Stedma n Jones and
. Uma Questão Subversiva
..; ""')1.,', fl IH',H"'''''':!. :,I.:,. .
thc politics of languagc", SClcial J-listory, maio 1992.
OLlVEN H UFTON
, rl[.;1 .... 1 ",!; ;', . " .,
7 Rcfiro-me aos traballlOs de F. Barth, em particular ....Modcl s af soc ial orga nizatio n",
Occasio~/al Papers Df ti/c Ropl AIl("r~pologica( ft tStilllle, 23, 1966, e Proce~s al/d
Form il/ Social Llfe, Londres, 1980 , Quem imaginaria hoje em dia uma história da religião e das prá-
. ,.
.1 ticas religiosas sem se referir à distinção dos sexos para explicar a
participação diferente das mulheres e dos homens? Quem pellsaria em
i
11' escrever uma hi:;tória das indústrias téxteis sem evocar a mão -de-obra
extremamente barata das operárias que permitiu a decolagem para o
Ir crescimellC<?, e quem esCreveria uma história tios modos de consumo sem
I leva r em conta a procure:- divergente de cada sexo? Quem, em 1995, se
.,,,i debruçaria sobre a estrutura histórica das migrações sem considerar as
,~ .m ulheres que permaneceram I lO lugn.:' para cuidar da terra, indispensá-

:, ~ veis par~ a comunidade?

Em Le Del/xie",e Sexe [O segundo sexo] (1949), Simone de Beau-


voir fez duas 'Jbservações de importância considerável para a escrita da
história das mulheres. A primeira era que as mulheres não tinh am histór!a
c não podiam, por isso, orgulhar-se de s i próprias, A segunda era que não
se nasce mulher, fica-se mulh er; que as mu lheres são o produto de um
processo complexo de aculturaçiío , de um ) cons trução histór ica do espírito
que determ ina seu papel social e seu comportamento diante do mundo.
Nenhuma dessas observações e ra orig ina l. Ja ne r\usten, pela boca de uma
de suas heroín::ts, se laslim::tva de que as mulh eres, co m exceção de um
punhado de " in úteis", estivessem ausen tes da história, o que, na opinião
dela, fazia com que a história se inclinasse de um só lodo; era u~1a escolha
de li berada dos historiadores, uma vez que - lodo mundo sabe disso - ;:1
históri a era uma ill';ençflo, Desde o século XV II, as escritoras feminis tas
hav iam insist ido '10 fato de que as mulheres eram produto de uma educação
i1nperfeita: suas facu ldades de rac iocínio e suas rea li zações históricas nã o
podiam ser comparadus 1IS dos homens, pois cbs tinh am sido privadas de
instrução e condicionadas para exe rcer um pape l secundário e subordinado,
em suma, tornada s ins ignificantes. Ora, as observações de S, de Beauvoir,
244 PASSADOS RECO!>.lPQSTOS
Mllwções 245

apoiadas num di scurso fil osófico erudito envolvendo os g rand es filósofos, Clark, então relativamente pouco conhecida . Sua obra, The Workill g Life
Marx e Freud , intervinham num mo mento singularmen te apropriado. Seu of l-\0men ill Sevenleenlh Celllllry Eng lar;d [A vida das mulheres trabalha-
discurso iria tornar-se um dos textos fundad ores do movim ento das mulhe- doras no século XVII na In glaterra] (1919), tornou-se um clússico nos anos
res que estava começando pel o fim dos anos 1960, movimento por sua vez 1970, e forneceu o pano de fundo ao debate sob re a deterioração da posição
o ri ginado pelo dos direitos cívicos. das mulhe!"es no capitalismo: o livro esboçava o retrato de uma vigorosa
Um dos primeiros objetivos desse movim ento consistia em apreender mulher ele lavrador, a qual tinha levado uma existência útil e produtiva que
o passado legítimo das mulher;::s, ~m introduz;-las na hi stória. Ao mesm o a :1ascente economia de mercado havia des truído. A tesc era scdutora e se
tempo, supunha-se, a explo raçüo dessa hist óri a ev idenciaria que as mulhe- tornou uma das primeiras formulações gerais sobre a história das mulheres
res hav iam sido trat ad as injustamente . A hi stória da opres.s ão da mulher, na sociedade, mas - e is to é s ig nificativo - tais generalizações iam se r
da qu :,·l a exclusão ca histór ia era apenas urn a manifcstacão entre outras, submetidas a controle rigoroso e modifi cação por lima nova geração de
ficaria entüo cla ra. A mulher ernergeria sob formas diferentes, mas antes pesquisadores. Verificou-se que a própria A. Clark era lima so lteirona da
de mais nada, talvez, como vítima de uma conspi ração masculina tendente classe média com sólid as origens burgues::lS, cuja visão era infl uenciad~ por
ilfazê-Ia ca lar. Apareceriam assim hero ínas, que não ernm ne cessa ri amente sua incapacidade de evadir-s;:: de seu papel de mulher solteira enclaus urada
rainhas, amant es de íei s e san ta s, e sim mu lh eres conscientes de sua em casa. A vida de traba lho da mulher do lavrador lhe parecia útil e
Situação difíc il de mulheres, que te ri am tc n ta do rem edi á-la, la nçar-se dinâmica em relação à S:la própria si tuaçã o, mas ela nflo se dava co nta de
nessa c0 rrida de obstácu los, para percebe r que os obstáculos tinham sido qu e desc revia "penas uma ínfima m inoriJ. de mulheres, e que a camponesa
de repentc elevados ou redistrib uíd os sorratc rra!l1cnte. Antes de tud o, esse lev ava uma vida I'ude m<.lrcada pela pobre<:a, afastada de qualquer sociedade
, I, e~~ercício permitiria ~l ge raçflo do "ago"!"<.l" - e nenhuma out ra ge ração
ideal. Em resum o, A. Clark, ap esar de sua for maçflo históri ca e de seu
estava mais presente nos anos 1960 - dizer: "Nós estávamo~ lá". conhecimento do assunt o, interpretava eSte assunto à luz de seus próprios
Em suma, essa história devia fazer p::ute de u:n processo de c0ns- desgos tos, e esc reveu assim um grande livro errôneo: grande porque for-
cientizaçflo ; era um exe rcício d!;! o rgulho, uma declaração diri g ida aos neceu um a hipó tese e algumas prova!:>, mas talvez mais ainda porque seu
historiad ores c aos professores de hist ó ri a , pa ra dizer que, um a vez que questi o nam ento levou uma nova f;e ração de histor iadores do traba lho a
pelo menos 50%, senflo mais, de toda turm3 eram mulh eres, essa porcen- comp reender melhor a vida profiss ional das mulheres e sua posiçflo no
t3gem tinh a direit o a um passado. "Por ac;JSo as mulh e res tiveram uma mercad o de trabalho, tant o na sociedade pré- industria l como na industri al.
Re nascença?" perguntou Joa n Gad ol Kc ll y, ç'e rg unta seguida au to matica- O esp írito de pesq ui sa que se manifes tava nos anos 60 era ao mcsmo
ment e por uma segunda: "E se nã o for o c..:. so, por que não" I? tempo militante e vivificador. Sua dir. 5.micn impeli a jovens pesq ui sadores

,
As primeiras hi stó rias das mulh eres foram lançadas nos Es tad os ambi c iosos a estender as investigações CI..""' 111 téc nicas científicas que favo-
Unid os, por li ma boa raz ão. A universid;J ce america na era sensível às reciam a profissionalizaçã o do campo cc pesqui sa. Se Íl história das mu-
t("lrç as do merc ad o - pel o me nos abstr:lilld r~ os memhros ela Ivy Le,lgue lhe res con he ceu sua prim ei ra e.'\ prcssãc :-:·.:lis aparente na Améri c'l. a Grii-
{,:írcul o das velhas universidades pres tig in:-. _s dos Estados do Les te) que, Bretanha, a França e os Pa íses 13aix0s :- ~~1 vi nham muit o atrás, apesar do
graças a seu prestígio. pod iam se permitir o ::..I XO do conservador ismo . As

!
aparecimento de important es diferenças. :" 3 Amé ri ca, a his tória das mulh e-
Illrmas de hi stória estav~lln sofre ndo um r ~ oc esso de feminizaçfiO e a res faz ia parte, cad a vez mais, de um :1 1l15lgama multidisciplin ar - os
clientela proc ura va oht: r uma aprec i:lç:-10 ..:~. seu passado . Era preciso 1V01llCII'S sllldies - em que a liter:llur:: . :1 antropo logia, a sociolog ia e a
fl"lfllecer manua is e C'st abelecer bibti ogr:l ri a~ Es te e xerc íc io reve lo u q ue, fil osofia represe ntavam também UIll ? .:?el importante. Em numerosas
I c11!re as ge raçôes :lI1tc ri ore:-. de mulh e res. e...;: ~ i [or<ls ha vi:lI11 hu sC<ldo lI!l1~1 uni ve rsidades, os es tud os so bre as mU::-::ícS f:-> ram incorporados aos pro-
~' xpe ri é !l c ia nitidallll.'lltl! fem inina, <.: pr u ·. \..·o u sua rc.:tkscnhcrta e a g ramas uni vcrsi t,írios. Na Europa, n J C 5 ~':1Vo lvill1ent o intervei o li a quad ro
fl'ecl içflo de suas ob ras, vendidas em qU ;ll1 ti":;! dc be m maior que ti cdiçüo tradi ciollal das disc iplinas, c coe.'\isliu . .-,""Im outros aspec tos do processo
..' rigillal. Um exemplo sig nifi c ativo no nHII H.: ..... ~lflglo-saxüll i co é o de A lice hist ó rico para rc rorç{l -Ios o:; compl et:.i -:\.. . :-: .
i:

246 PASSADOS RECOMPOSTOS Mucações 247

Certos campos de pesquisa histórica se revelavam mais recepti- importado para as línguas românicas. A noção de uma gender history que
vos, mais acolhedores que outros. O reconhecimento das mulheres como se interessa pelo processo de definição tanto do masculino como do
tais incomodava freqüentemente muitos professores universitários, que feminino numa sociedade particular, em lugar de uma história dedicada
tinham levado tranqüilamente sua vida de historiadores constitucionais apenas às mulheres, era amplamen!e aceitável, ao mesmo tempo para um
políticos ou intelectuais sem refletir no desequilíbrio do passado ne~ vasto conjunto de historiadores de matéria social, econômica e cultural,
perceber o que uma abordagem baseada na distinção dós sexos trazia e IJara numerosos cientistas que se tinham consagrado inicialmente a
para sua disciplina. Alguns viam ,nisso uma intriga feminista, e consi- arrancar as mulheres ao esq11ecimento.
deravam pouco respeitável o fato de se ocupar da história das mulheres. Já em 1984, numa importante coleção de er,saios, Michelle Perrot
Os historiadores da família emm mais favoráveis, e o acento posto na lançava a s~guinte pergunta: Uma história das mulheres é possível? E
demografia, componente importante da abordagem das Annales, que o m~terial contido no vo!ume sugeria inevitavelmente a resposta: pro-
resultara também na constituição do "Cambridge Population Group" na vavelmente não. As mulheres viviam em função dos homens, e suas
Grã-Bretanha, ajudava a entender a lógica de tal evolu'ião. Os historia- vidas eram freqüentemente percebidas através de um prisma masculino.
dores da sociedade e da cultura, os que estudavam a criminalidade e as O mercado distinguia os sexos: o trabalho dos homens e o 'trabalho das
práticas religiosas, também estavam receptivos e prontos para integrar mulheres eram avaliados diferentemente~ havia profissões de homem e
esta nova dlmensiio a suas ~náliscs; será que existe uma dicotomia entre 'profissões de mulher, assim como mercadorias cujo valor refletia a
comportamentos masculino e feminino diante deste ou daquele proble- produção por um ou pelo outro sexo. A Igreja era outro e~paço marcado
ma, e, na afirmativa, por quê? A nova hi!;tória cultural, lidando com a pela distinção sexual: as mulher\!s eram excluídas da hierarqu,ia seeular,
construção e a transmissão de idéias e de atitudes expressas, por exem- a vida religiosa regular tomava formas diferentes conforme a ordem ou
plo, nos rituais, ~as tradições ou nas formulações dos textos, se dava a congregação fosse para horuens ou para mulheres. Quando, no século
conta de que as hipótese:; sobre o papel dos homens e das mulheres XVII, Mary Ward tentou constituir uma ordem de mulheres missionárias
criticava~ as questões de que ela se ocup~va. Nenhum documento, semelhante à dos jesuítas, o papado firou atrapalhado. Incapaz de as-
nenhuma imagem, nenhuma cerimônia era neutra, e sim incluía, qual- sociar a Igreja a mulheres errantes, jogou-a logo na cadeia. A ampla
quer que füsse a sociedade, julgamentos de valor a serem decodificados obra social da Contra-Reforma que florescia na França, produzindo não
- entre os quais os que diziam respeito aos papéis respectivos dos dois somente as Irmãs de Caridade mas também centenas de ordens e de
sexos - para interpretar sua significação. As noções de um comporta- congregações votadas ao cuidado dos dl"cntes, dos pobres e dos inváli-
mento mais de acordo com um dos dois sex('s podiam ser indicadores dos 2, dotou a Igreja em seu conjunto d~ características distintivas. Os
de distinção entre as culturas. O véu muçulmano, por exemplo, era o historiadores da educação se davam conta de que a educação não era
resumo de um conjunto de atitudes e de crenças próprias ao ~slã. dada igualmente para os dois sexos, que $eu conteúdo mudava conforme
Nas mãos dos historiadores da cultura. 3 distinção sexual tornava- os sexos para corresponder ao que devi~ convir ao homem ou à mulhcr.
s.; um instrumento analítico para ser u[Íliza"':~) ao mesmo tempo que as Nas estatísticas criminais, os cri;::i .. ~~~.- ~ do sexo masculino eram de

I
I
I
distinções segundo a raça ou a classe social. Tanto quanto as mulheres,
C~ homens se tornavam então o produtl) de ura processo de aculturação:
t:::ham pois sido fabricados e não tinham n:.l~ddo assim. Seria artificial
e exagerado isolar as mulheres, quando irnp\.'nava pôr em contexto ho-
cinco a seis vezes mais numerosos que (';~ criminosos do sexo feminino,
mas as mulheres eram vítimas de um cri:::c violento mais freqüentemente
que os homens. Quanto às condenações. variavam para corresponder ao
que era considerado como apropriado:..:. :ada sexo. Por que a preocupa-
ção penal se prendia mais às pfl)~titu :~:' que a sua clientela? Por que
:::;;-ns e mulheres, para perceber a dinân:ica .:-ultural de uma sociedade.
C :·ntra 'as práticas fechadas dos womell S sl: •. ;'ies, tal abon.Ja~em contri- 80% dos casos de bruxaria eram J;:; ~'_: hcres?
b:..:ía para transformar a hi~lória das mulher;;~ em gellder hi.;rory. É so- Essas perguntas e essas reprcscnt::'';0es favoreceram a metamorfose
r::~nte c:n inglês que o "gênero" tcm 'Jma CCI[h"ltação sexual; teve que ser da história das mulheres numa gellder ;!:.'1ory, e fizeram do sexo um dos
I! 248 PASSADOS RECOMPOSTqS Mutações 249

temas de estudo dos historiadores do sociocultural. Ora, esta trans- Este debate é salutar. 'Ele nos lembra que o enriquecimento do
formação não se fez sem debate. Agender history é a história das mulheres campo histórico pela introdução da distinção social dos sexos se produziu
separada de qualquer programa f~minista, menos militánte, menos de modo desigual, segundo os -::ontextos Dacicnais mais ou menos recep-
engajada do ponto de vista político, e portailto mais, objetiva? Ou se trata tivos. Provavelmente, tal processo poderá ser um dia analisado com
de um processo em que, mais uma vez, é atribuído às mulheres um papel proveito. Com toda evidência, teve melhor êxito nos lugares em que os
secundário no discurso? historiadores não tiveram medo de novas perspectivas, e também não
É claro que gender não é um conceito sem preconceitos. Não procuraram impor julgamentos de valor sobre o que deve ser um campo
responde necessariamente à preocupação prioritária das feministas 'dos legítimo de pesquisa para um historiador.
anos 1960, que queriam dar às mulheres o lugar que lhes era devido no Um grande colóquio organizado de dois em dois anos nos Estados
passado ,e explicar
, por que; muita., vezes, elas não figuram na história Unidos, a "Berkshire Conference", que atrai vários milhares de cientistas
escrita. E também provável que, sem a insistência militante das primeiras dos dois sexos, constitui agora uma estrutura internaCional para conferências
protagonistas da história das mulheres, talvez o sexo nunca fosse desco- sobre a história das mulheres. As revistas especializadas j:í. remontam a mais
berto como instrumento da análise histórica. Um debate verdadeiramente de dois decênios, e seus nomes, tais como F eminist Sttldies, Signs, Pénélope,
pungente figura num dos últimos números da lrish Historical Review3. a r~vista italiana Memoria, e a recentíssima publicação Gender and History,
Poucas Ii1~lheres se viram negar seu passado tão radicalmente quanto as revelam aigUlnas c!as mudanças ocorridt's. Outra~ revistas, como History
irlandesas, que, sem exceção, foram riscadas da história; as instituições Workshop, incorporaram como assunto pemlanente a história das mulheres.
históricas oficiais, extremament~ lentas em recuperar o at~aso, parecem Os editores descobriram que as m~lheres compram livros sobre a~ mulhe·
mesmo persistir numa espécie de distorção historiográfica. Uma obra res. A casa editora Laterza, que havia encomendado a Storia delle Donne
I inovadora recente, editada por Margarei. Mac Curtain e Mary O 'Dow::i 4, [História da Mulher], realizada ~ob a direção geral de Georges Duby e
.11
:". apresenta uma rica coletânea de ensaios, cicntificamente inatacáveis, sobre Michelle Perrot 6, estava pasmáda com o sucesso obtido por essa obra. Esse
difrrentes aspectos da existência e das atividades das mulheres na polí- monumento em cinco volumes propõe abordagens muito divergentes DO que
tica. no direito e na gt:~rra, na religião, na literatura e na educação, bem diz respeito às mulheres e a suas relações, tais como emergiram no decorrer
como na família e no trabalho doméstico. A presidente da República dos dois últimos decênios; apesar de seu título, a obra trata igualmente dos
a.."Sistiu pessoalmente à apresentação do volume. A publicação constituía homens, das idéias sobre os sexos, das mentalidades, da maneira COffi:> os
uma experiência histórica vivificante num nível que ia além da simples Europeus concebiam sua vida de família, seu trabalho, sua religião, e como
iciormação. Dava às cientistas, às estudantes, às leitoras irlandesas a cons- viviam no interior dos horizontes mentais da vida cotidiana. Vinte anos
ciênciá de pertencer a uma coletividade, experiência que as outras mulheres atrás, tal exerdcio teria sido impossível. Só os misóginos obstinados podem
ocidentais haviam conhecido mais de vinte anos antes. Re·.:elava quanto ainda negar a evidência de um semelhante enriquecimento da história.
r~tava por fazer, e algumas das potencialidades do que podia ser desco- Quem imaginaria hoje em dia t.:::1a história da religião e das
:·::-w. Ora, em sua resenha de obras reCCl1lCS s,-'~re a história das mulheres práticas religiosas sem se referir à dis~:::.;ão dos sexos para explicar a

~
iriandesas, David Fitzpatrick, historiador irlandês de grande valor, qua- participação diferente das mulheres e dL"'IS homens? Quenl pensaria em
IL.~cava a história das mulheres de "gueto sorr.brio em que os homens e escrever uma história das indústrias têxteis sem evocar a mão-de-obra
r:.:.:..~erosas mulheres não se aventuram PL)í meJo ou por desprezo"s. Em extremamente barata das operárias, que permitiu a decolagem para o
'Ir
5:':3 resposta, Mac Curtain c O'Dowd julgam qt.:e o estado atual da historio- crescimento, e quem escreveria uma his~l.,;ria dos modos de consumo sem
;:2.fia irlandesa dá pouca latitude <! cstuUl''\S ce~tinados a tomar verdadei- levar em conta a procura divergente de ,,'3d .. sexo? Quem, em 1995, se
~ .::1ente Ctn c011sideração os sexos; é pr~'..:-:~.' ~·\.)is continuar o cmprcen- debruçaria sobre a estrutura histôric~ ;:, .:~ migrações sem considerar as
c::nento, principalmente explorando os c..k)r:1Íni\.)s em que ele pode entrar mulheres que permanec~ram no lugar ? ~1fa se ocuparem com a !erra,
e=1 colisão com a história nacional. indisr'ensáveis para a eoml&nidadc?
250 PASSADOS RECOMPOSTOS
.
" ~.','
.",.
.'

'I'
"
As perguntas deste gênero são inumeráveis. Um exercício come-
çado para tornar as mulheres cor.scientes de si próprias deu assim origem
à conceptualização da diferer.ciaçãc social dos ~exos, que está invadindo
o conjunto da disciplina histórica. O que começou por um assalto, pros-
segue - ::;e completa - pela persuasão e pela infiltração.
" 1: CINCO

Depois de 1989,
Esse Estranho COlnunismo
MARC LAZAR

Notas Depois da queda do muro de Berlim, seria absurdo e perigoso votar


o "comunismo" ao esqüecimpnto. A no,'idade de uma situação política
I J. Gadol Keily, "Did women have a Renaissance?". in R. Bridenthal e C. Koonz.(ed.),
Becoming Visib/e: ",ome" ill Europea" Society, Boston, Houghton Mifflin, 2a ed., inespera!Ja incita mais do que nunca a um esforço exigente de compreensão
1987. de um fenômeno que é parte integrante da hist6ria européia, e mundial.

:: C. Langlois, Le CatllOlicisme au fémi"i", Paris, te Cerf, 1984, conti nu:! o estudo dessa Teria o comunismo se tornado, no sentido vulgar da expressão, uma
obra feminina depois da Revolução.
"história antiga"? A incredulidade de que a opinião pública francesa fez
:; M. Mac Curtain e M. O'Dowd, "An Agenda for women's history in .Ireland", Irislr alarde até 1991 quanto ao fim do comunismo estava na medida do que
Historica/ Studies, XXVlfl, 1Ç92. este representara, ao mesmo tempo, nas relações internacionais e na
realidade nacional J. Mas a irreversibilidade das rupturas no Leste acabou
4 lVomell in Ear/y Modem Ire/alld, Dublin, 1991. por impor-se, e o comunismo é cO:1siderado como um caso arquivado. A
desafeição para com ele não é apenas uma ~pinião política! mas uma
$ D. Fitzpatrick, "Women, gender and the writing of Irish history", in Irish Historical
Studies, XXVII, 1991.
atitude de conjunto: o comunismo está afundando nas águas frias da
indiferença, engoHndo com ele cerca de um quarto do planeta, antes de
• A obra foi publicada depois em francês: Histoire des femmes, Paris, Plon, 5 volumes tudo na China, mas também no Sudeste da Ásia, na África ou em Cuba.
1991-1992. Está atualmente traduzida em várias línguas. A mídia já não se interessa.muito por um assunto que antes enchia páginas
e páginas. Ocasionalmente, rompe-se o silêncio com a publicação ruidosa
de arquivos, como foi o caso recentcmente com o livro de Thierry Wolton,
que desencadeou novamente as paixões em torno da figura de Jean
Moulin 2, com o de Arkadi Vaksberg, descrevendo a vida dos dirigentes
comunistas internaCionais cm Moscou, C'U com as Memórias "do super-
cspião soviético Pavcl Soudoplato\" .. ~. E~:J busca do "sensacional", ainda
mais impressionante porque, manifestamente, a realidade dos serviços de
informação soviéticos ultrapassa a ficçãC' à qual nos acostumara um John
Le Carré, não desmente a tcndência funjamental; quase de um dia para
outro, o comunismo, que obcecava noss~"\ prescnte, foi rejeitado para um
passado aparentemente distantc.
O llieio das ciências humanas n5c .:':,capou a semelhante inclinação.
Assim, até uma data muito recente, nur.1crosos manuscritos de qualidade
enfocando o comunismo ou tudo que H:.? está ligado (o mundo operário,
252 PASSAOOS RECOMPOSTOS Mutações 253

po r exemplo) têm sido recusados por grand es e ditores, que alegam ausência maneira se perpetuou, não comp reenderem os nosso tempo. Não se trata
de público 4 . Estranha atitude. Pois, na Fran-ça pelo menos, o estudo do simplesnlente de escrever a história dos fatos, mas do que se passou nos
comunismo atesta uma forte vitalidade, a ponto de representa r um dos mais modos de relações entre os homens, no mundo de suas crenças, nos núcleos
preciosos elementos da história do tempo presente. Constituiu'-sc como uma míticos em torno dos quais se organi::am suas formas de adesão a si próprios
verdadeira disciplina universitária, com professores, estuda~tes, pesquisa- e aos (Julros. Se o co~unismo não tivesse modificado a vivência dos
dores, um Ce!!tro de estudos de história e de sociologi<l 0.0 comunismo homens, se não tivesse transformado as relações de você a mim, de mim
dirigido por Annie Kriegel e Stéphane Courtois junto à Univers\dade de ao outro, as ligações das pessoas entre si [... ], não teri a acontecido nada.
Paris X-Nanterre, uma revista, Comnllmism~. cuja qualidade foi unanime- [ ... ] É tudo isso que se trata de compreender e de repensar "8. Bonito
mente saudada na França e no estrangeiro. Em dez anos, esta publicação programa, que constata que o desaparecimento, pelo menos na Europa,
mostrou sua capacidade de desbravar !l OVOS te rritórios de investigação c de desse eShanho comunismo faz dele um verdadeiro assunto histórico, mais
criar uma metodologia original. C0m efeito. enquanto fenômeno total, o circunscrito no tempo do que antes, desembaraçado dos "efeitos de teoria"
comunismo su?u nha uma história tot.:ll, mobi lizando o conjunto das ciên- (P. Bourdieu). O que estimula a renovar as interrogaçõcs.
cias hüm<Jnas (em particular,·a sociologia, a ciénci3. política, a antropologia,
a etnologia). Scu estudo permitiu transcender as fronteiras das disciplinas URSSIFrança: diversidade dos comunis:nos?
para chegar a uma história so~ia l do político ou a uma sociologia histórica ~Jar.lOE indica r aqui algumas pistas. Não sem ter previamente ueli-
do político, que resti tui sua espessura social e desvela sua signficação mitado o campo de exploração. Deve-se falar de um comunismo ou de
profunda, quase existencial, fruto do enconrro entre um projeto político comunismos? Velho debate. Existe, com efeito, uma grande diversidade de
I'
o. I' inéd ito e comportamentos, trúdições, culturas c estratégias de diversos correntes, de movimentos, de grupelhos que se declaram connmistas. Aliás,
I
grupos, especialme~te operários c campo::es.es, em momentos históricos .é um .. de suas características retinir de rupturas, de cisões ou de cismas,
I~I particulares das sociedades onde se implantou. que engendram outras tantas tendências, facções, frações, correntes, grupos
,
,f
,
Votar o comunismo ao esquecimentO é pois ao mesmo temp o ou partidos, cada um dos quais pretende possuir a verdade e acusa os ou tros
~bsurdo e perigoso. Absurdo: O que se diria dos que desenvolvessem uma de traição e de dcsvio. Quanto a nós, consideraremos apenas o "comunismo
argumentação semelh:lI1te a propósito do nazismo? Absurdo ainda, porque bolcheviquc", posto em prática na Rússb a partir de 1917, c que constitui
o comun ismo é parte integrante ua históri a européia, já que n<lsceu no a experiência fundadora C; legitimadora de um movimen to mundial, cujas
coração do velho continente, de seus debate-s ideológicos e de suas rea- pretensões c('.ntr:tlizadoras e unitárias fazem dele um fenômeno único, não
lidades socia is e políticas. Mas perigoso tar:.lbém. Com efeito, querer se obs tante a diversidade das formas assumidas. Esta unic idade e esta diver-
livrar de uma lembrança pungente enterrandC'-a no mais fundo da amnésia sidade são os próprios componentes do comunismo. Este, enquanto ideal
coletiva provocaria infalivelmente seu retomo obsessivo sob a forma de tipo à Max Weber, comporta duas dimensões li gadas entre si: a dimensão
uma verdadeira síndrome. Daí, aliás, o dcb:!.1e atua l nos países ex-comu- teleológica provém de seu projeto rev olucionário universalista, e implica
nistas sobre a depuraç:1O e a mancir:\ de c :. ::H o passador,. Além diss o, lima estratégia, uma hi erarquia de c rg 2. :--.: z3ções centrlllizadas e uma ideo·
embora destruído no Leste e em via dc cesaparecimento no Oeste, o logia de conjunto; a dimensão "socie tária" é co nstituída pelas relaçõcs que
comunismo pesa nas transições democráti c:l. ..'~, oneradas por sua "herança cada PC tecc com a sociedade a que pertcnce.
gigantesca, problemáti ca" ', ou na desest ;.:.:-i lizaçüo e na fragmentaçüo A prodigiosa extcnsão do comunismo (l~enhull1 contincnt e foi
eleitoral da Europa ocidental, devidas , em ~J rte não desprezível, ao forte poupado) obriga a proc.eder de modo seletivo. Limitar-nos-emas a dois
rec uo dos partidos comunistas, em p;Irticu l;.:.: na rrail ça e na It;.ília. Como exemplos, a URSS e O comunismo oc idental numa de suas tcrras de
exp lico u o filós ofo Jean·Toussaint Desa:-:::' "A chapa de chumbo do predileç50, a França, a fim de capt3i ('. ::-.:c o desmorona mcn to da primeira
comunismo nüo ca iu do cé u, c ni"io pnde J.;::::'. aparecer como por mila g re. c o declínio de um dos dois mai s poJc rosos PC da Europa ocidental
Enquant o não com preende rm os de que se c or::pôe, co mo se instal ou, de que modificaram na inteligência deles.
~
ti€!
"...
254 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 255 's
n-
I '."
J<!
Inicialmente, um lembrete. Há uns vinte anos, os estudos de úutra se concentrava na estratégia, julgando que sua elaboração era deter- ~.a

sovietologia se dividiam em duas grandes correntes opostas 9. De um lado, minada por imperativos antes de tudo naC'ionais1S; ambas as variantes vi- ~a
I
a escola totalitária, inspirada pelos filósofos do totalitarismo ou pelos b-

t~
savam, pois, demonstrar o caráter essencialmente .francês do PCF.
polit610gos, essencialmente de origem american~ quis estabelecer os ~
critérios distintivos dos regimes totalitários 10: a análise dela estava centra-
~
A pesquisa recente ou a fragmentação das certezas ~
da no partido único, seu ~aráter' monolítico, sua ideologia oficial, seu O que foi que os acontecimentos recentes mudaram hesSas percep- ra

~t
rec.urso sistemático à mentira, sua onipotência, seu terror, sua tentativa ções? A crise do PCF, que se manifestou com evidência em 1981 com
de absorver a socie~ade em suas redes, de mobilizar as massas ou ainda o fracasso da candidatura de Georges Marchais· à eleição t>residencial,
de forjar uma nova humanidade. Daí uma forte atenção à política, à provocou um processo de desagregação, durante o qual "o reboco do
ideologia e à idéia da permanência de um sistema que se edificou esma- muro comunista,se solta em l:ugos Fedaços""16, pondo a descoberto os
gando tudo em sua passagem. Por outro lado, desde o fim dos anos 70, materiais desiguais que haviam permitido a construção do edifício. Ime-
afirmou-se uma escola revisionista, que criticava as implicações políticas diatamente, como num movimento de pêndulo.. os pesquisadores tiveram
~
I

dos partidários do totalitarismo (muito embora seus pr6prios tr~balhos tendência a abandonar a dimensão teleológica do PCF (ainda mais porque ~('

tenham também pressupostos e conseqüências políticos), e queria apre- os arquivos não estavam disponíveis), e a se precipitar sobre sua consis-
ender :1 URSS com outros instrum~ntos. Refutando a noção de totalita- tência "societária". Assim, já que se destruía a representação mítica de
~: .

~
rismo, relativizando o lugar da política e da ideologia tais como se ex- "partido da classe operária" que o PCF dera de si próprio, numerosos
primiam oficialmente, ela privilegiou a aborda~em social. A URSS foi tràbalhos puseram em foco a complexidade dos encontros entre PCF e
então percebida na longa duração russ~ e a partir de "baixo". O objetivo comunidades operárias ou camponesas, e o tipo de dominação estabelecida
consistia em delimitar a influência dos movimentos de fundo, que afeta- pelo PCF nos ecossistemas sociais e políticos: o Partido prestava serviços,

~
vam a so~iedade em sua inércia ~ suas rupturas, sobre as <?rientações e desenvolvia sociabilidade, difundia valores, :eassumia, modificar.do-Ihes
as decisões políticas. Esta escola chegou a falar num consenso e numa. o sentido, tradições políticas, ou inventava novas; organizava mobiliza-
autonomia das instituções sociais que se teriam progressivamente reali- çõeS rituais, simbólicas ou festivas, fornecia uma mitologia, dava uma
zado na URSS, resultando num "polimorfismo institucional "11. Gorbachev identidade local, social, nacional e internacional a populações desenrai-
teria ~ncarnado perfeitamente essas transformações.
Na França, o estudo do comunismo se dividiu segundo duas prin-
cipais sensibilidades historiográficas l2 • Annie Kriegel, com sua tese pionei-
zadas, traumatizadas, em busca de estabilidade, cujas condições de tra-
balho e de vida valorizava, e que enraizava em territórios· 7•
Do mesmo modo, a observação do declínio do PCF não se limitou
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,.

at
ra, depois no resto de sua obra, sublinhava a originalidade irredutível do a dissertar sobre a habilidade tática de François Mitterrand: ele foi apre-
comunismo na França. Produto de um enxerto estrangeiro ocorrido ao final endido em termos sociológicos, ligando-o às mutações do mundo industrial, ~
)r

de um acidente histórico, o PCF rompia com uma t:-3dição do movimento operário e urbano, e examinando desse ponto de vista suas respostas po- ~il
ã.
operário francês, pelo fato de pertencer a um siste:::a comunista mundial líticas e culturais ll'. Assim, as pesquisas ins:~:iam nas funções sociais e
lU
inédito na história das internacionais operárias, e de ter montado uma antropológicas cumpridas pelo PCF. Com isso. aliás, corriam o risco de lã
organização radicalmente nova, da qual ela tentou 2.1iás a etnografia 13. A reduzir o PCF a um simples prestador de servi;os e de identidades, esque-
leitura da obra de Annie Kriegel feita pela historiogr~ia surgida das fileiras cendo que foi um partido político que consegdu, graças a suas estruturas
comunistas, que procurava conquistar uma pane :eal de autonomia em organizacionais, a seus dirigentes, a sua estr:l:égia, a sua cultura política, 1<
relação à direção do Partido, era bastante parcial: guardava apenas, no homogeneizar essa diversidade "francesa, antr\..-·?ológica, operária "19, ultra- =i

essencial. a idéia de um pcr apêndice do comunisr.:~' internacional. Contra p3ssar essas diferentes "artes de viver" ::!II, r:':'::1 forjar uma entidade que
ela. duas abor~agens eram propostas: uma se conce::trava na implantação, adquirisse sentido para os que a ela pertencia=::. Ora, a abertura dos arqui-
sublinhando a inserção do PCF no centro das realübdes do hexágono l4 , a vos em Moscou, mas também em Paris (tem:·,:' o PCF decidido abrir uma
li
;ll
'f , 256 PASSADOS RECOMPOSTOS Mutações 257
·1
p<!rte de seus fundos até aí inacessíveis para o pós-1944), faz com que, já Inversamente, por trás da fachada monolítica dos partidos, desco-
agora e num futuro próximo, o pêndulo volte a se posicionar em direção brem-se por vezes as rivalidadp-s entre instâncias burocráticas, os engui-
ao centro, no ponto de equilíbrio entre o político e o societário. ços da máquina organizacional, OI) enfrentamentos internos no seio dos
Com toda evidência, a possibilidade de acesso, segundo modali- grupos dirigentes, assim como a dur~za, a desconfiança e a suspeição que
dades muito variadas, às fontes, por muito tempo ~antidas secretas, de reinavam quase sempre nessas altas esferas. O trabalho empreendido por
numerosos partidos comunistas e da Internacional comuflis'ta, inaugura alguns pesquisadores, como, por exemplo, Nicolas Werth, nos arquivos
uma fase radicalmente nova da pesquisa21 • Assim, o deb<!te entre escola do partido soviético, devia intcoduzir uma distinção salutar entre a inten-
totalitária e escola revisionista deveria mudar de natureza. Já a perestroika ção totalitária e as condições de sua realização. A primeira já é incon-
tinha embaralhado as cartas. Não existia mais uma verdade oficial, e a testável. Ela se caracteriza, especinlmente nos anos 30, por uma violência
história se tornav~ parte interes~ada d0 debate político que estava no estarrecedora, uma brutalidade inaudita, uma vontáde efetiva de subverter
auge22 • Mas o fim da URSS, que seguiu o golpe de Estado fracassado de alto a baixo os quadros sociais existentes antes da Revolução e de
c~mtra Gorbachev em 1991, acabou de abalar as certezas das duas grandes a:-regimentar uma população traumatizada. Os historiadores que desco-
historiografias existentes. Os partidários do totalitarismo revelaram-se brem esses papéis cuidadosamente colecionados pOI uma burocracia
incapazes de admitir a possibilidade de uma reforma interior do Partido minuciosa, versão moderna e hipertecnicizada daquela do Egito faraôni-
e do regime, (; os "revisionistas" viram se estilhaçar seu famoso consenso co, têm a sen:;aç5.o estranha de explorar essas "pirâmides" ou esses "pa-
" entre o Partido e alg!.lmas frações da sociedade. As duas correntes, embor~ lácios dos sonhos" descritos por numerosos escritores, como Ismall
! neg:lSsem, foram finalmente fascinadas por seu objeto de estudo e prisio- Kadaré, opositores do sistema comunista e geniais visionários24 • Mas o
"f
';.
neiras de sua metodologia: ambas só podiam pensar o comunismo em sua
perenidade, a primeira porque o acreditava quase que imutável, a segunda 1 que transparece também nesta documentação oficial, e suscita uma quan-
tidade de pesquisas específicas, é a dominação de um pequeno grupo de
peia preocupação de demonstrar seu enraizamento no mais fundo das
realidad'!s sociais c históriéas da Rússia.
I, dirigentes todo-poderosos sobre o dispositivo central do poder; esta elite
tende, por todos os meios - que se trata agora de explorar e de reconstituir
A superação previsível das disputas científicas é auspiciosa. As (repressão, corrupção, mobilização de uma pluralidade de redes, forma-
primeiras pesquisas fundadas em arquivos delimitam melhor a especifici-
dade e a realidade do projeto, da organização e do poder comunista. Os
I ção de clientelas) -a estnbelecer seu domínio, até as regiões mais remotas
da periferia, sobre todos os grupos étnicos e sociais em decomposição 011
documentos do Komintern (que funcionou de 1919 a 1943), tanto da em formação 25 • Porque as realidades econômicas e sociais são mais
org~nização como dos principais responsáveis~ permitem ~nalisar melhor complexas do que deixava pensar a propaganda oficial, e as resistências
a estratégia comunista, avaliar de perto o empreendimento mundial de à imposição de uma nova ordem tomam uma grande variedade de cami-
subversão de um aparelho superorganizado, em que o centro (Moscou) nhos26 • Tanto que, em lugar de opor o social à ideologia ou ao político,
tenta controlar os mínimos detalhes va ativiêlde das diferentes seções o observador tenta, de preferência, apredar sua interação, a exemplo de
nacionais e dos militantes, dá um lugar fUJl(b:::;:ntal à doutrina, exige uma Alain Blum, que aplica a demografia l::~:,-~rica à URSS e restitui o~ ajustes
submissão completa de seus aderentes, e recorre a todas as práticas - variáveis conforme as Repúblicas e 3$ grandes zonas cultl!rais - dos
possíveis e imagináveis para penetrar nas sodedades ocidentais. As bio- comportamentos vitais das populações diante da gigantesca c inédita ten-
grafias dos dirigentes, cerca de 5.000 no c;.ssc do PCF, a quantidade dos tativa de remodelagem da socicdade e:7.preendida pelo regime27 •
rel:ltórios extraordinariamente detalhados c F:ccisos sobre o estado das Ainda mais funcamentalmente. na URSS, nos países do Leste,
forças em cada país, aprofundam o coahcci:::cnto dos PC, e em breve como naqueles em quc houve podero5 . . . s. PC que não chegaram ao poder
ter.:po renovarão a sociologia do comunis:::: do período entre as duas central, se deveria progredir na COI11::- ~ ~ ~ :1!'ão geral do que representou o
guerras, na espera da abertura mais complct~ ':,:-\s fundos do pós-Segunda comunismo como continuid:tde e rup::'::~l em relação à religião, à ulopia,

I
Guerra Mundial 2J • às corrcntes culturais e polítiea3 de c;::,"::.l história nacional, às estratégias
258 PASSADOS R EcoM ro~iros Muwções 259

de in sc rç;lo 11;1 IIH lIlcrnizal(;lo, 011 :1 hIl SC ;I dL: itkntid:ulc dos "torL:S stlci:lis. '1 W. lIelcl nwi lt: h, " La ·slIvi éllll llJ'.ic ' ;I]lH:: S k ]luls!'h. Vc r... UIIC guérisonT', Poli/ix,
Re sum ind o, trat a-se de apreend er a que necessidades sociais c culturais n. IS, 1992, pp. 7-20. Es te ;I rl igo 1l01:'IVC] se apú ia Jlllllt:l bibliugrafi:l exausliva.

co rrcspondi a esse fenômeno. O qu e não deixa de se r uma maneirn de nos


10 Numn liler:llura gi g:ln tesea. indicaremos aqu i npenaS::l obra de !.ínlese ma is re cen le
int erroga rm os sob re nosso presente pós -comunista. c de mais ftici l acesso: n.
I3a die , G. He rmet , Poliliqlle comparéc, Paris, PUF, 1990,
Quem disse que o estud o do cOlllun islllo era hi s tória antiga? 404 p.

11 M. Ferro, "Y n-I·iltrop de dérnocralie en URSS?". Alllmles ESC, XL, ]985, p. 820.

12 Simplificamos excessiv:lmente um dorlínio de estudos particul:l rm enlc rico, ao


Notas
qual a ciência política em especi::ll Irouxe' conlribu ições que escap3m a esta
I Ver, por exemplo, :15 50neJ:igen5 de novc mbro de 1989 e setembrc de 1991 , in Sofres, distinção.
L'Élat dc I'opil/ioll 1991, ::Irrcsent:ldo r o r O. Duh:lme l e l .l:1ffré, P:lri s, Lz Seuil,
199 1, 296 r., e L'Édlf dc I'opil/ioll 1992 • .. present:ldo po r O. Duh:lmel e J. l :lffré, I) A. Kriege l, /Iux origines du cO/;/I1ll1nismc frnllçais , Pnris, FJ arnm:lrion , 1969,442 p.;
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isso, a pu blic.lç:io de um só lido volullle de G. -G. f\'lo ull ec c N. \Verth, intitu lado eommun is le ff:lnç::lis et l' lnlernalion::lle communisle (1925 -1 933), lese "d 'État",
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edilori:ll do Seuil, que :lnuncia um:l grande CO IC Ç~ll "Arc hives du comm unisllle", lfi S. Courtois, "Co nslruction el déconslruc tion du communisllIe", Comlllllllismc, n.
dirigida po r S. Counois e N. \Venh . 15·16, 1987, p. 52.

., A ravisln r,IIIIIJIII/';Wh', '1111' !,,,hli, .1 ' l" !l trn IIlimt·r'l" !l'lr 111111, é edi llltl ., pIH L' Age 17 A tftulu de exemplos, [\11111:1 produção já n~or :l imp0rlnnlC, vco': "Communismc
d'homllle. rrullçnlA el nod él 6 ollvdcfe!l", (.'01ll11ll1ll1:.1IIt", rI. 1:;·16, IIJH7; "te COlllrllUllhllllC
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tl u CNRS/ L1 Découverte, 1992, rr . 17.48; os dossiês "Po ids el cnjel!x des épura- d'l'" commlll/isme idt.'/Ititnirc, Ulle, Prcsses universil:lires de UlI e, 199 1, 43 8 p.;
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e "Mémorinl", l.es calliers d '!Jistoir" s ocin/c, n. 2, primavera de 1994. 1986, 321 ~ p.; Ol/I'riers, ol/I'rii:r('s, /11/ COlllillCl/t /Ilorcc/é cr silencicllx, AUlremcnt,
j:lneiro de 1992,220 p.; l .-P. Terrn il , DeSfill,f oltvricrs. La fill d'lI/ic classe?, Paris,
7 V. H:lve l, op. cil. , r. 18. pur, 1990, 275 p. Parn um bnlnnço comple to desses trnbalh os, ver M. Lazar.
"Communisme el hi stoire du le rnps présent", cOlll unicnção no colóquio "Mare B10ch
A Un cnt relien nvee l.-T. Desanti, I,c MOI/de, l a de lII:1rço de 1992. et le temps présen t", 13-14 dejunho de 1994, Paris, EHESS, atn s iI se rem publicadas,
260 PASSADOS Rr:COMrO~TOS

"I J.-P. Molinari, 0I'. cit., p. 211.


SEIS
. ! 211 J. Chesne:lIIx, I.e PCI'; 1111 nrl de "h're, Paris, Mallricc N:\(Jeau, 19~W, 212 p.

2' ~c~rc os problemas metodológicos suscitados por esses arquivos, ver o artigo (Ie A Arqueologia
E. François nesta obra.
à Conquista da Cidade
22 N. Wcrth, "La transparcnce et la Illéllloirc. Les Soviétiqllcs :1 la rccherche de leur
HENRI CAL/N/É E MANUEL ROYO
passé", in Villglicme Sii!cJe, n. 21, janeiro-março de 1989, p. 5-27.

23 Sobrc a apreciação rclativa à contrihuição destes arquivos, ver especialmentc S.


Courlois, "Archives du communismc: mort d'une mémoire, naissance d'une Se a política de conservação do patrimônio, que a criação de setores
histoirc", in Le Débnl, n. 77, novembro-dezembro de 1993, pp. 145-156, e as para pedestres e a restauração dos centros urbanos e dos bairros antigos
respostas de F. Bédarioa, "Du bon IIsage de I'histoire du temps présent" c de P.
testemunham cada dia mai.\~ parece fazer dos arqueó/()gos os interlo-
Vidal-Naquct, "Propos d'un méclHlllt p:lmphlét:drc", I.e f)c.:!JfIt, 11. 79, março-abril
de 1994, pp. IR3-1CJ2; M. tazar, "CClllllllllllisme ct histoirc dll temps présent", 0I'.
cutores dos responsáveis pelo futl:ro das cidades, sua posição permanece
cit. Já foram pllhlic:ldllS dlll'III111'IIItI" II'slll'it:1I1111l :IS regias hisltlrÍl'as: ver "I.es ambíKua. 1t'stcmlllllws da formaçlio do subsolo atual das cidades, é
archivcs du cllmlllllllislIIC", ill COIIIIIIIIIII,WII:, 11. 3~-33-J4, IIJI)J; lOtes cumll1unistcs difEcil que eles participem de Sita destruiçiio, em nome de outros interes-
et la CGT", Commllllisme, n. 35-37, J 994; "Le PCF et l'lntcrnationalc", in CoMers ses que não os do conhecimento histórico, mas também Iltes é impossível
d'Hisloire de 1'lnstituI de rechercllc,\' mnrxistcs, n. 52-53, verão-inverno de 1993
recusar completamente lima evolução sobre a qual fundam a leritimidade
e P. Buton, I.es IClldemnins qui déc!/(IIII('l/t. Le Parti CO/",lIl11liste [rançnfs ti In
Ubérnt;0I1, Paris. Presscs de la FNSI'. 1993. 352 p.
de seu procedimellto.

24 Ver, a este propósito, J. Rupnik, "LI: lolalitarisllle Vil dc l'EsC', (soh a direção de A arqueologia não se interessaria mais pelo Belo? Ao vermos os
G. Hermet, com a colaboraç:io de P. lIassncr e J. Rupnik), in Totalitnrismes, Paris, restos que os arqueólcgos expõem quando os museus lhes abrem as portas,
Economica, 1984, pp. 43-71. às vezes duvidaríamos, Ela é pelo menos ainda "uma e indivisível"? Ao
percorrer os títulos das publicações arqueológica~, vê-3e a disciplina se
25 Ver, por exemplo, "Passé et préscnl rcligieux cn URSS", RevlIC! tI'Étlftles
CompornlivC!s Est-Ouest, n. 3-4, setc..'llIbro-dezcmbro de 1993. atomizar: arqueologia agrária, náutica, industrial, ambiental, "moderna",
"experimental" ... A irrupção das ciêl'cias exatas - matemática e física -,
21, Estas rencxóes devem muito às COIlllI/licaçilcs dedic:rdas ao est:rdc' do~ trabalhos das ciências da natureza ou da terra - e das técnicas de análise ou de
snhre n URSS c aprcscnladas por W Ikrt'Jowilch l' N, \\Inlh 110 sl'min:írin da imuAens que as acompanham - translornou profundamente no~ últimos
I,'vi'illl ("",II'III11;WII'III1II1!c'11I dll :111".1" 1')')\ V" N \V""r.. "111' la ~.lIvl'\h,IIII~I('
villlc tllIOS a alul/dagclII :llqllcIIUlgica. A H/lJ"clllllclria, uinda engatinhando
Cll généml cl dcs archivcs nlsscs CII I'allil.llliel", I.c IN/ml. li, 77, Jlovcmbru-
dezembro de t 993, pp. 127-144. nos anos 50, aproveitou amplamente esses avanços técnicos para oferecer
à arqueoiogia de campo propriamente dita novos meio~ de análise, no
27 A. Blum, Naitre, "il're et mOllr;r C!II URSS. Paris. PI'.m. 191)4, 273 p. estabelecimento das cronologias e no conhecimento dos ambientes de vida.
O impacto desta especialização teve por conseqüência limitar o espaço, da
abordagem no terreno, fazendo da arqueologia o ponto àe encontro de
várias disciplinas e abrindo assim seu campo de estudo à longa duração.
I Obrigada a r~correr a diferentes técnicas que nem sempre pode
dominar, a arqueologia é lcvada cada vez mais a orquestrar resultados, cuja
I significação, freqüentemente, só adquire todo seu valor depois de ultrapas-
sada a estrita aplicação a um pet'Íodo determinado. Apareceram assim
. ~t~;"

.{l~::~i

I j
rI Mutações 263
I'i 262 PASSADOS RECOMPO!ITOS
.,.
I'

:~ !: cúbicos, este solo do qual hoje se sabe que constitui l~rC)uivos que encer~
fenômenos (Ie evolução CJue iI espccializ,u;:jo lJislúr ica de cada um impedia
':I"j'
'!. de levar em conta plenamente. Tudo isso contribuiu para ampliar o campo ram, eles também, a história, ameaçada, das cidades.
'H Espaço, tempo, destruição, eis o maelstrom que fez nascer a ar"; 1:.'
.:1: cronol6gico e o campo temático tradicionais: arqueologia clássica, medie- :'=:•.-
!I; ...: ... -~
,:,al, oriental, egitologia ... O Belo e o Uno, outrora unidos sob a tutela queologia urbana. Numerosos arqueólogos se encontram na proposição
.~: ··fel',
::i que subentende que arqueologia urbana significa mais arqueologia do
I, acadêmica da história da arte e da arqueologia, cederam lugar a uma Babel ' : :-". -. ~~-"1":
li urbano do que arqueologia das coisas urbanas. Para evitar qualquer mal- . (. ...;:
de práticas: entre estas, a arqueologia urbana, recém-aparecida, a primeira
entendido, preferiremos falar em arqueologia da cidade, termo unívoco . ~~~:
a acrescentar à pluridisciplinaridade, já agora habitual, a longa duração. '.~~ r
que define o estudo dos p:-ocessos que determinaram a morfologia do ;~; '.

Do monumento à cidade espaço urbanizado pré-industrial das aglomerações.


Durante muito tempo, para os arqueólogos, a cidade apresentou as
características de um mercado onde cada um vinha, ao sabor de suas
Espécie de espaço "':;'.
necessidades, comprar aquilo de que precisava: este do forum, aquele de A cidade é por natureza, aos olhos do arqueólogo, um conjunto
um templo, outro de um bairro dc habitações salpicado de mosaicos, e fechado, de limites definidos, uma verdadeira categoria do espaço à qual
"indu outro de uma hnsílicn Jl:lkCll'l isl:"t. Assim se dcsmcrnhrnva lima estilo ossocindns fllllÇÕCS cspccíficllS. A nr'l\lcologia os apreende facil-
aglomeração. Nas mais vastas ou mais famosas, multiplicavam-se, amon-
toavam-se as concessões. Os arQucólogos medievalistas se uniram, com 1 mente, porque estão concentradas em lugares identificáveis: espaços
públicos, sistemas defensivos, monumentos civis e religiosos, estabeleéi-
atraso, a seus colegas especialistas em Antiguidade, e foi a vez dos mentos do comércio e do artesanato, lugares funerários.' Partindo do
castelos, das igrejas, das necrópoles. Em tudo isso, nada de cidade. Ela estado atual da cidade, tudo isso se presta ao tipo de análise regressiva,
era objeto de história, não de arqucologia. Cabia aos textos estabelecer 'próprio do estudo da longa duração. Por sua constituição, feita de cama-
os vínculos entre os monumentos, clucidar as sociedades que haviam das cronológicas, que deixaram vestígios mais ou .menos abundantes
erigido esses edifícios. conforme suas fases de desenvolvimento ou de recesso a fizeram aban-
Nas últimas décadas, vários fenômenos contribuíram para fazer as donar, destruir ou conservar as construções herdadas do passado, a cidade
coisas evolnírem. Dois são de ordem cicntífica, um dc nrdem urbanística: é o produto da longa duração. Seu deser.volvimento, que segue de perto ",
dos monumentos da Antiguidade, os arqueólogos passaram para a apre- a evolução das condições sociopolíticas, econômicas, religiosas, se traduz 'é.,

ensão da cidade, inicialmente antiga, em sua dimensão espacial. Interes- po~ dilatações ou contrações do tecido urbano. Uma d(!s conseqüências
saram-se pelo que revelava da organização das socicdades a totalidade do desse movimento é o afundamento dos ilíveis de ocupação mais antigos,
forldo :Irhnnn. !itHU mllis 1i~ limit:II"11I 11 IIlgllll~ C"t1ifil'iCl~i ri,llI:i r01ll1l htllll enllltl 1\ 1'(Il'lJlwrnçno tI 11 IJ'I'nsfmlHllçfin llllS construl\õoR '1\10 nno cor·

reveladores. Paralelamente, as técnicas da arqueologia se aperfeiçoaram respondem mais às necessidades para as quais foram criadas. Antes mesmo
e permitiram a compreensão das cstruturas em materiais leves que, du- da Revolução, quantos monumentos antigos ou medievaic;, civis ou religio~
rante muito tempo, não se soubera distinguir no solo. Enfim, a reestru- sos, não serviram como depósitos de pedra ou como granjas? :; ..
Sf.' o princÍpio de tal evolução não tem em si nada de novo -as ,. . . ~~ .• ~.~ "-;
,~~1f~~:
turação dos centros históricos fez compreender a amplitude do que se
perdia e que, de agora em diante, se sabia ver. Foi na Europa meridional fontes escritas o explicitaram há muito tempo - suas manifestações'Dó
que a topografia histórica, a apreensão global do espaço, se impôs; foi terreno são, ao contrário, mais confusas para captar, quando o conside;.' !
na Europa do Norte que as técnicas se aperfeiçoaram, nos lugares onde ramos na longa duração. Os vestígios "históricos", por sua singularidade·
a construção tradicional era de madeira, e não de pedra, e por (,;onseguinte e sua monumentalidade, são outros tantos marcadores cronológicos ~qu~:
deixava raros vestígios que era preciso apreender com !ltcnção. É por toda mascaram a evolução das cidades, impondo delas imagens tão fortés'
a parte que as obras, parques de estacionamento no subsolo, construções quanto redutoras. A história de Paris se reduziria às tp.rmas de ClunY;l~a
subterrâneas como as linhas do mctrô, retiram, por milhares de metros Notre-Damc e à torre Eiffel? A de Roma, ao Cóliseu, ao V~ticanol~':à

~. '.4~ f ,~. , , .

,.'~ ,' ........


• "" I'
Murtlçõcs 265

praça Navona? O !lupel da arqueologia urhana é ir além dessas primeiras e, no qual as funçfles urbanas que apontam, cada um a seu modo, histo-
impressões, remontar mais longe do que permitem fazer a geografia riadores e ~eógrafos, concerncm à totalidade das partes desse espaço.
histórica e a histólia do espaço edificado, aproximando os elementos que Se, por muito tempo, a arqueologia serviu aos historiadores para
estão acima do solo dos que nele estão enterrados. A singularidade do reforçar a teoria das passagens inscritas no espaço urbano de uma forma
espaço edificado, por sua repartição ou seu modo de construção, torna de sociedade a outra, desde o Homo politÍclIs da Antiguida·:le até o Homo
sensível, para quem nele circula, uma verd:tdeira hierarquia entre diferen- oeconomicus da Idade Média, por exemplo, esta nova abordagem está
tes espaços urbanizad'.Js. Outros indícios são perceptíveis através da at\!nta à profusão das situações particularcs escondidas por este movimento
densidade e da hierarquização do habitat ou do traçado das ruas. Revelam ,. de conjun~o, as quais, de um certo ponto de vista, o tornam tão caduco.
a existência de um "parcelário fóssil", A originalidade do procedimento Paradoxalmente, procurar não favorecer desde o início nenhum período
arqueológico recente reside então numa abordagem sem limite cronoló- e ne~hum lugar leva a colocá-los melhor em perspecHva e, por conse-
gico, que associa estreitamente os dados da escavação, os da geografia guinte, a medir melhor aqueles cujo impacto sobre o desenvolvimento
histórica, os da amílise do espaço edificado c os das fonte~ cscritas. Não supelOu o dos outros.
se trata mais, como no passado, de dar conla tia diversidade histórica Já se percehe o cnriquccimento, cm qualidade e em C]unntidnde, dos
d~l paisélgclJJ urhall:l cm três inwgl:II" lIIuitas vezes estl:reotipadas (:. fundos doclIJllcntfl,iw; cxislclltcs, COIlIO o das nccr('J>O/cs ar.tiglls ou () dns
cidade antiga, medieval e enfim moderna), nHaS sim da gênese das muralhas do Baixo Império. Discerne-se também a abertura de novos
cidades, isto é, dos processos de transformação revelados pcla acumu- dossiês, o da casa urban.l, medieval e moderna, o do artesanato dos
lação, pelo apagamento e pela substituição das formas de ocupação do períodos recentes etc. Estes poucos exemplos estão longc de refletir a
solo. Neste sentiuo, a arqueologia urbana não poue ueixar de interrogúr- amplidão do campo explorado e a variedade da base documentária, em
se a partir do estado atual do espaço urbano. quantidade como em diversidade dos assuntos e das fontes, que a arqueo-
logia urbana começou li c::mstituir, e que estimula a desenvolver outro tipo
Palco e atores de questionamento, o da identidade das cidades atuais, e isso através da
Para o historiador, a cidade é o lugar da história, o palco em que multiplicidade das práticas reveladas por nossas fontes. Ao mesmo tempo,
se desenrola a ação. Para o arqueólogo. a cidade, enquanto palco, é objeto essas pesquisas tem:íticas, regularmente alimentadas por novas descober-
de história. As duas abordagens são mcnos complementares uo que motivo tas, permitiram desenvolver lIm estudo da morfogêncsc das cidades.
para olhares diferentes, cujo objetivo comum, todavia, permancce o de Apesar de serem de um tipO um pouco particular, porque fundamental-
compreender o papel e a evolução das sociedades que se sucederam num mente voltados para a gl'slão futura d,) patrimônio urbano, os documentos
IIICH/UO /11&"1. MC:'IIICI ql/lll1dn IIhlll/iadflw, I: :lr'l'II'II'III~II'1 '1"'II/rC'II' :a '"1111 ele IIvaliru;IIC1 :lI'IJllC'tllll,',i,'a cI:/~i c'iclac/c's p:l,'ic'ip:llll c/esla IIhnrdagclll olrn-
fonte comum, sua apreensão dos fenômcnos, seu enfoque, levariam muitas vés da longa duração. Nenhum dos volumes publicados até agora, na
vezes a crcr que recorreram a dois documentos distintos. Pam o historiador, Suéda, mi Inglaterra, nos Países Baixos ou na França, pr~tende restituir
a cidade é o lugar do poder, da troca, da cultu:a, o lugar onde sc exercem a história das aglom~rações em questão, à moda das coleções históricas
os confrontos, as tensões e os conflitos, onde nasceu o mundo moderno. que já existem, e cujo objctivo é esse mesmo. O objcto desses novos
No pior dos casos, ela se resume ao quadro de onde emergem monumen- estudos é estabelecer a 1igação entre sociedade e espaço.
tos como o fórum ou a prefeitura, cujo v'llor deriva inteiramcnte da função Um exemplo concreto vai :llIstrar o assunto: cm 1973, M. Biddle,
que exercem. Para o ar'-1ueólogo, o espaço urbano não se divide nem em The Flltllre of lhe LOlldolls Past [O futuro do passado de Londres],
cronologieamente nem topograficamente; é o revelador da evolução leuta constatava, a partir das fontes tradicionais, que sc a Londres medieval se
das sociedades urbanas. É espaço antes de ser monumento, o que significa inscrevia nos 'imites da aglomeração antiga, nada permitia compreender
que obedece a regras, a um processo de evolução que devc ser possível o que se tinha passado nas "eras sombrias" da alta Idade Média. Se nestes
esquematizar, ainda que isso nunca tenha sido verdadeiramcnte tentado, vinte anos as escavações lIrqlleológicas não se tivessem liberado da
266 PASSADOS ItEC:OMPOSTOS Mutações 267

problcmáticn Jwhitm.l, O aVlmço scr ia f, aco. EIII CO/l'pclIsaçao, rcconsi- intl'rcsses que niro os do conhccimento hist6ricu, mus tllmbém lhes 6
derar a questão a partir dos dados de escavações periféricas permitiu ao impossível recusar \.!ompletament~ uma evolução sobre a qual fundam
mesmo M. Biddle em 1986, num artigo intitulado "London on the Strand", a legitimidade de seu procedimento.
propor a transferência da atividade da alta Idade Média pélra fora dos Há, na cidade cúmo no inferno, vários círculos, e a competência
limites do recinto cercado por muralhas. Semelhante deslizamento, que do arqueólogo só se exerce num deles, o mais central, o da cidade pré-
teria ficado invisível à luz das fontes históricas tradicionais, só se percebe industrial. Em superfície, isso significa muito pouco em relação à medida
colocando as questões na perspectiva arqueológica. Assim se pode enfim de nossas cidades contemporâneas. Nos centros históricos, o movimento
explicar a dupla denominação, há muito tempo conhecida, da Londres da pendular das Folíticas de urbanização vai da reestruturação à conservação:
alta Idade Média, LllIulellburgh e L Ulu/ellvie: de um lado, a cidade cercada ora se arrasa para reconstruir, ora se fixa restaurando. Mas é fora desse
de muraJhas, sede da administração e da elite, do outro, a aglomeração ~spaço muito reduzido que, com algumas exceções, se decide realmente o
mercantil, que concentra as atividades e a população. desenvolvimento da cidade, nas ZAC (zolles d'aménagement coneerté)
Por sua própria natureza, as fontes dos historiadores e dos arqueó- [zonas de urbanização combinada] da periferia e outras ZUP (zones à
logos exprimem ritmos diferentes, l', por consegllinte, hislllrias paralelas. urlmniser ell priori/(~ (zonas a sere'll urbanizmlas em prioridade].
necnnhccê-In nfill é querer ;llimcnt:1I 11'11 dehatc estéril slIhre iI alltonomia Existc a ciência de 11m passado urhano qlle se revela como um todo
ou a pretensa especificidade da disciplina arqueológica. Muito pelo con- homogêneo em suas condições de instalação durante cerca de dois mi-
trário, o impacto Ja arqueologia urbana sobre a cidade contemporânea lênios, até meados de nosso século; em seguida, outra história urbana,
pode fazer da arqueologia o ator mais ou menos voluntário de uma bem recente, com a idade de meio século, que não tem nenhuma ligação
política do patrimônio, da qual Se apresenta tanto como o refém quanto com esse passado terminado e antiquado. Durante dois mil anos, com o
como o abonador. único recurso da energia animal, os habitantes modelaram pouco a pouco
as cidades. O urbanismo neoclássico é uma fachada que não abalou as
o arqueólogo na cidade estruturas topográficas nem ultrapassou as avenidas. No século XIX e no
Gestão do patrimônio urbano e abordagem glohal são, com efeito, começo do século XX, as ddades históricas conheceram sobretudo
a conse.:jüência normal de semelhante procedimento, com toda a ambigüi- excr~scências. Quaisquer que tenham sido, os meios utilizados ficaram
dade que cerca naturalmente a passagem do conhcr;Ímento dos processos modestos, na escala urhana. É preciso, claro, excluir algumas das grandes
"
do passado às opções de urbanização presente. cidades pré-industriais, mais marcadas que as outras, como Bordf!aux ou
O arqueólogo, pela natureza de suas observações, deve ser capaz Nantes, mas o grosso da armadura urbana conservou, até uma data recent~,
de prndll;dr lima l'xpl it.'lIç~C) dt.~ conjlllllll das 1I11111:lIh;as "'>lInidas desde lIntll fisionomia til' ddadl' Jll'tJlIl'I\:I.

a origem no tecido urbano. Isso siglllllca quc ele e uhr igado, ao mcsmo As políticas brutais do pós-gucrra tlcixarum ele existir, 6 certo,
tempo em que sua abordagem se alarga, a sair dos limites precisos do acabou-se com a produção do espaço em hipercentro, mas nele se injeta
conhecimento formal. A difusão de suas conclusões, por pouco que agora c~nservação, isto é, representação urbana - vocês sabem como é,
faça o esforço de torná-Ias acessíveis ao não-especialista, o engaja de as ruas tortuosas da Idade Média - das fachadas e da galeria comercial
uma maneira ou de outra junto aos urbanizadores contemporâneos. Se no subsolo, insidioso ressurgimento da produção de espaço. Podemos
a política de conservação do patrimt>nio, que a criação de setores para hoje estar certos de que a cidade histórica, de origem antiga ou medieval,
pedestres e a restauração dos centros urbanos e dos bairros antigos é um lugar de cons~mo, tal como está integrada, enquistada na cidade
testemunham cada dia mais, parece fazer dos arque<'llogos os interlocu- contemporânea. Rétorno ~IS fontes? Em todo caso, ,aqui nos encontramos '", 'X\.,
, ~~~:-:
tores dos responsáveis pelo futuro das cidades, sua posiçiio permanece bem longe da cidade, lugar privilegiado da troca, da reflexão, do com- ~~J ~
ambígua. Testemunhas da formação uo subsolo atual das cidades, é promisso. Quando conhecemos um pouco os recursos locais, ficamos ,..tii
difícil que eles participem de sua destruição, em nome de outros espantados, assombrados, com o caráter pré-fabricado, serial, e por ,I,:~" ~:.~~:~
': ~'. ~r.i~!j~,
':.
,/I, .
~ ~ ;~
~

• ' t:.: ..• ~

\ ~ ~.\;. t',:~<
268 Pt\ ~SAOOS RECOMPOSTOS

consegu inte com a uniform izaçi:io que se apodera pouco a pouco da


paisagem das cidades. Essa história nfio precisa de história. No momento
~,
IV
em que se revela uma pr:ítica que suspende <~s especializações cronoló-
gicas, hei um pouco de ;lIll;ugura em tcr que parar ;\s portas do present c. TESTEMUNHO
''':.:':~
'.,'

UM

A Memória Viva
~
1
dos Historiadores
J
j ENTREVISTA COM PIERRE VILAR 1
i
I, Pierre Vilar é um dos 'mestres da história francesa do século xx.
Pela primeira vez, ele se entrega ao jogo da entrevista. Ao longo de
I
1
uma vida que se confunde com o século, reflete com paixão e probidade
1 sobre o sentido de uma profissão que une a compreensão exigente do
I
~ tempo presente à observação das múltiplas dimensões do passado de
i
i nossas sociedades.
~
1 Numa época em que os historiadores são freqüentemente solicita-
dos a darem sua opinião (autorizada?) sobre qualquer tema de atualidade,
não é de se admirar que Pierre Vilar - um dos maiores historiadores
franceses deste século - permaneça desconhecido do grande público.
Diante da reflexão apressada ou do espetáculo, ele sempre deu prioridade
a um debate intelectual que não deixou de suscitar, com paixão, rigor e
probidade. Dentro do mundo universitário, nunca ocupou posição de
poder. Foi por seu magistério, na VI seção da École pratique des hautes
études, na École normale supérieure e na Sorbolllle, que Pierre Vilar foi
um extraordinário estimulador de vocações de historiadores. Sem dúvida
porque permaneceu fiel ao ensino da história como problema c cuidou de
armar seus ouvintes de rigor metodológico: "O excesso de preocupação
metodológica na pesquisa", escreve 'no prefácio de La Catalogne dalls
['Espaglle moderne [A Catalunha na Espanha moderna] (1962), "será
sempre preferível à ausência de preocupação". E continua: "Não seria
necessário dar aos jovens historiadores um mínimo de familiaridade com
a economia, a demografia, a sociologia, que diversificaria seus instrumentos
de análise e os preservaria també:::l de entusiasmos muito rápidos?" Isto
equivalia a apontar a estreiteza de uma formação monodisciplinar, na qual
'. dominavam. ainda amplamente a história política e diplomática.
Três traços fundamentais caracterizam sem dúvida o procedimento
intelectual de Pierre Vilar.
'~ I
272 PASSAOOS RECO:-"IPOSTOS T esccmunho 273

Em pr imeiro lugar, a preocupacão de fundar o trab<1lho histórico '.


numa teor ia g lobal permitindo dar co nta de lodos os aspectos da hi stória A descoberta da Catalunha n os anos 1930
humana em sua complex idade, c recusando o reco rte d;j história el11 Senhor Vilm; telldo nascido pouco depois deste século, o senhor
setores estanques. Aqui, a reflexão sobre Marx - C0l110 "única teoria é alualmente a memória viva de uma geração excepcional de historia-
ex istell te da hist ória" - é esse ncia l, c o aprofu ndamento teór ico se operou dores f ranceses que,. depois daquela dos fUlldadores dos Annales, fez fi
durante seu cat iveiro num Oflflg na Al e manha, longe de seus dossiês c historiografia frallcesa COJl temporânea. Como o senhor viveu essa allell-
de seus livros: "Eu sei, escreve ele no mesmo prefúcio, que es ta obra niio lura coletiva?
ser ia a I11csm:t se cu nã o tivesse ad quirido, no longo parêntese de meu Eu iniciei de fato meu s trabalhos nos anos 1925 -30. O que sem
cativeiro, o gosto de uma teorização q ue ajude realmente a to rnar patente dúvida caracterizo u meu itinerúrio in ic ial foi qu e me senti, nfio histo-
a anatomia das sociedades, c o desgosto das teor izações apressadas, das ri ador, e sim geógrafo. O qu c l11e in teress ava era o mun do atua l. Quand o
co nstruções 'na moda "'. tinha apenas 13 ou 14 anos, já me pe rguntava: "O que se passou em
Em segu nd o lugar, Pierrc Vilar le m dialogado incessantementc 1917?" Ora, eram os geógrafos que nos f:.Jziam apreender este mund o
co m as ciências humanas v izinhas. Co nfront o, mais qud debate ou a tu al. N'o domínio, hoj e mu ito na moda, da ecologia, Maxim ili e n Sorre 2
polêmica: com lima inabalávcl von tade de compreender, mas com um a publicara trabalhos importantes sobre as rela ções ent re o homem e a te rra,
preueupa ç~io de rigor na crítica , Pierre Vilar, .at ento às grandes obf<ls de isto é, as relações técnicõls e s ua evolução, desde que , com a agricu ltura,
scu tempo (Keynes, Schulllpeter, Ro stow, ·C. Clnrk, Aro n, Ricoeur, a hum an idad e teve in ício. Eram tõlmbém os geógrafos que nos apresen-
Foucault, Althusser ..), lel11 se 1l10strado hos til a qualquer esquema- tavam o terr it óri o - divi d ido e m p:lÍses, cada um com suas carac terísticas
tizaçã o, a qua lque r espec ial ização abu s iva, bem como a qualquer redu- próprias - no começo do livro de Marc Bloch sobrc a hi stória rur::ll. Todos
çfio simplificadora. esses problemas mc pareciam fundam enta is. Ora, os hi storiad ores come-
Enfim, Pi c rre Vilar é um obse rvador agudo de seu tempo . Em
Barcelona, em julho de 1936, quando chega a notíc ia do levante militar do I çaram a abord á-los enquant o, ]Jcssu~tim e l1t e, eu aintl<l es tu dava geog rafia.
Ass im, fui incit ado a ver uma históri a diferente da que se fazia, graças,
ge nera l Franco. um de seus co legns, possuído "de paixão exclus iva pel a especialmente, aos hi s tc:-iadores da Antiguidade, na Sorbolll/ e, como
Es panha exclusiva c tradi c iona l", lh e :lfirma:."É uma questfio de três dias".
"Nesse momento, testemunha Vilar, lima gargalhada in esperada, bastante
'j Gustave Bloch, ou mesmo Jérôme Carcopi no, que nos davõll11 a impressfio
d e se interessar pe lo conjunto desses p rob lell1:1s, em p articular pelas
insolente, nos surpreendeu. Tínham os esq uecido a presença, a poucos passos relações entre o homem e a terra, ou e ntre o homem e ~l técnica.
de nós, da alllil de m eu filh o, uma ga lega analfabeta, tota lment e indifercntc No fim de 1929, no momento exato em que eu saía C0 l110 geógrafo
à políti ea, e qu e no entanto aco mpanhara avidamente nossas p:llavras. Eru, da École Ilormafc Supéricllrc - o nde começara ineus trabalh os eOI11O
diante do evento, a instintiva reaçüo popu lar: 'Ah! E/es pensam nos vencer geógrafo -, foi publ icado o primei ro número das AI/ ll a/cs. Ficamos muito
em três dias? Po is be m, eles vüo ver!' Assim int e rvinham, em ju lho de entusiasmados. Na equipe das AllIlflies, havia num erosos geógrafos : Jul es
1936, nos dois ex tremos da sociedade espanhola, as púxões e os interesses 5iol1, Albert Demangeo n, até certo ponto Raoul Bl ancha rd 3. 5entiJ110~n os
de classe". Deste modo, o presente vem Illodific:lr perm:mentel1le nt e as e ntiio familiares co m a vi são geográfica da s coisas, e ao mesmo te mp o
qucstões dos hi storiad ores, obrigando-os a um procedi mento retrospectivo C0111 a visüo histórica.

que os leva do co nhecido para o desco nhecido, que os faz oescob rirelll Foi então que, para meu própri o lrubalho, fui a I3arccl on~l. Queria
Ill tidanças e cont inuidades ... Essa cur ios idade rell ov nda nunca é gratui ta: estudar uma q~ estfio que pod ia pa recer banal: como se instalou uma in dús-
o fat o é que a compreensüo exigente do presente é inseparáve l do conhe- tri a têx til nos vales descendentes ao re dor de I3areelona? Esbar rei com um
c im en to do passmlo. "Ne nhum tl e meu s trabalhos sobre o passado espanhol, problema que absolutamente não esperava, para o qual nüo estava prepa-
mes mo muito distante, o bservav:1 cle recentemente, l11e pareceu estranho ;1 rado: o naciona li smo catalüo. Quando, uns trinta e c inco :mos mais tarde,
apreensão do presente". publiquei La Calnfogll e, em J 962, alguns, e ntre os quais Fernancl I3raucl el,

I
274 PASSADOS RECO:-'lro~.iTOS

Testemunho 275
pensaram que eu me havia interessado pelo problema ca talão por ser catalão
- dc fato, nasci em prontignan, no I-Iérau lt. Braudcl - e isto mc lisonjeava tínhamos formado o quó"se chamava ent[io um "soviet" ; éramos quat ro,
- me comparava a Lucicn pebvrc e sua paixflo pela pranchc-Comté, ou a Henri-Irénée Marcou, Alp hon.se Dupront, Jean Bcultat e cu mesmo, pe:--
Henri Pircnnc e seu intcressc pela Bélgica. Comigo dcu-se o contrário: foi sonalidades e interesses muito diferentes: Bruhat, comunista militante e
por não sc r catalão qu c [ui impressio na do pelo catulanisll1o. Eu fo ra à especialista do movimento ope rário, Dupront, um dos construtores de lima
Catalun ha pa ra propor um problema quase puramente econôm ico, e perce- história do sagrado colc tivo, Marrou, catól ico, hi storiador talen toso de
bera que isso me levav:l a propor um problema nacional. santo Agostinho e da An tigu idade tardia. Tínhamos organizado isso de
COJ~ efeito, u primei ra coisa que as pessO<.ls me dizi<llll, fossem elas maneira inabitual. Cada um de nós devia expor, não a questão que co-
da classe alta ou C<llllpOneSes ou open.írios, e ra: nós somos catalães. Isso nhecia melhor, mas a que dom inava menos, c;abendo aos q ue a conheciam
me impressionou, c cu comccci a me qucstionar sobre um problema que, bem corri gir, adaptar a exposição. Assim, l11e aconteceu trabalhar, durant e
evidentemell te, não er<l geog ráfico. Era econômico? Até certo ponto. Ao três ou qu atro sema nas, na questão do Sacerdócio e do Império, sob o
estudar a indústria catalã, eu tinha visto e entr·cv istado pessoas que liga- olhar vig ilante de Henr i-Irénée Marrou e de Alphonse Dupront, O que
vam o fato industrial ao fa to cat<l!50: porque nós somos os únicos indus- cons titui uma lembrança francamente origina l... Portanto, a hi stória não
tr i<lis da Espanha, diz iam elcs, a Espa nha nos olha de certa ~~neira, nós me era totalmente cstranha.
olh amos ti Espanh~ de outra i71aneira. Mas enUio, esse fe nômeno catalfio, Um a vez em Barcelona, descobri rapidamente a necess idade de não
desde quand o existe? Dcsde 1910, com a pub licaçfio de um :li vro funda- fa lar de modo muito vago de questões econôm icas_ A Catalunha possuía
mentai, La Nacionalitat cata/alla, de Prm de la Riba? Desde 1906, data . ur.:J ind ~.:;tr i a no século XVIII. Esta era documen tada por arquivos ex-
do primeiro congresso da língua catalã - era minha data de nascimento, tremamente precisos, como livros de contas que registravam escrupulo-
por conseguinte isso mc divertia? Ou então desde 1892, com as Bases de samen te, por exemplo, os salários. Fo"i nesse momento que descobri Erncst
Manresa, isto é, a primeira formulação polít ica do catnlanismo? poi assim, Labrousse<l, depois prançois Sim iand (por intermédi o de Labrousse)5,
remontando cnda vez mais longc no passado, que, finalmente, me tornei Earl J. Hamilton fi, que trabalhava na questão dos preços na Espanha desde
hist oriador, e pratiquei o que sempre chamo, em duas pnl<lvras, de hist ór ia o século XVI, e mesmo antes. Encontrava-me en·tão diante de outra
retrospec tiva. Isso me permitia voltar atnís, conWnto que IlUllca esqueces- necess idade imprcvista, a de fazer a esmtística intervir na hi stória, o que
se as condições materiais, geográ!icas de un; lado, e técni cas do outro; também me pareceu essencial.
era possível então col ocar outras questões, como questões de língua, de I Lembro-me de ter di~r:utido sobre tud o isso com um homem qu e
colonizaç50 etc. A partir de certo momen to, nfio vi mais que uma úni ca desempenhou um papel político na Espanha, Carlos Pi Sun)'cr, que foi
ciê ncia. Nesse sentido, as I\/Ifwles tinham inaugurado muita coisa: ocu- sucessivamente secretário da fcder~lçfio têxtil, dep~is, COm a Repúbli ca,
pa r-se ao mesmo tempo das condições materiais, geogníficas e técnicas prefei to de Barcelona, deputado, enfim ministro, um dos grandes perso-
das coisas, observar em que medida essas condições int erv êm na orga- nagens durante a Guerra Civil. Por interesse, ele escrevera liv ros de
nizaçüo socia l e, a partir da orga nização social, ver surgirem fenômenos história econômica, sem d úv'ida fra gmentários, porém cxcelentes. Quan-
políticos, fenôm enos de poder, fcnô menos de nac ionalidad e ... com a COI1- do, muito ma is tarde, o reen cont rei, el11 Caracas, confidenciou-me que
dição, bem-entendido, de s6 Irntar disso ludo em conjullto. Bem sei qu e meu livro lhe revelara a possibilidade de fa lar de economia em relação
é um pouco ambicioso querer fazer da história lIllla ciência universal, mas aos séc ulos passados, de ligar a economia li geografia, como as relações
foi assim mesmo. que ell a concebi inicialmentc. en tre a terra e as instala çôes humanas, ns qu es tões hi dr:íu li cas, sobretudo
Uma vez que. partilldo de illterrogações gcogrtifi.::aj~ o sellhor de toma r essas questões corno um todo. Foram esse desvio pela econo mi a
ell COlllrou a história, quai.\· foram seus guias "esse caminho illesperado? c minha pos ição de eSlr~ngei ro que me leva ram a colocar os problemas
Gost ari a de esclarecer. Quando eu estava na Écolc lIorma/e, fre- de maneira diferente daquela como os catalães tinham o hábito de tratá-
qüentava mu ito os historiadores. No tempo da preparação da agrégatioll, los. Um c<l talão, que mais tarde foi mi nistro d ~l Saúde na Espanha, gostav:'l
de fazer alusão à prim eira au l<l minha que ouv ira na Éco/c des hallfes
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Testemunho 277
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ét!ldes; muitos jovens catalães assistiam a minhas conferências porque Apesar disso, não me parece rer havido tanto debate. Febvre, depois
nelas eu tratava de questões que era impossível examinar na Espanha, Braudel, nunca participavam dos grandes congressos internacionais.
então em pleno franquismo: ele ficara estupefato. Esperava por certas Labrousse, que, ao contrúrio, representava um grande papel nesses con-
análises sobre a nação, pelo processo da Espanha, ou por afirmações gressos, não pertencia realmente à "escola das Amzales"; sem dúvida, ele
marxistas. Ora, eu estava estudando as contas, entre 1720 e 1734, de uma e,
colaborava, mas ficava à par:te nos congressos, nunca o vi discutir esses
propriedade catalã cuja contabilidade havia sido encontrada. Não me problemas. Bem entendido, sempre havia historiadores que procuravam
associo totalmente à crítica um tanto dura que ~ebvre fazia da história pensar de modo mais amplo que o cantinho de que se ocupavam. Refiro-
à maneir~ de Seignobos, porque ninguém jamais escreveu história pura- me a A. Dupront, que tratou de "História e psicanálise", depois de
mente política e diplomática. Mas é verdade que, para muitos, a história "História e linguagem "9; mas Dupront também não era um homem das
é a política, as relações diplomáticas e os fatos militares. O que a tese Annales. Ele estava à parte, não estava em contradição.
de Raymond Aron veio confirmar em 193~ 7: a história, dizia Aron, Talvez o senhor queira se referir a algumas discussões como aquela
consiste em restituir a imprevisibilidade das coisas, como na política no sobre o "feudalismo". Para definir o regime feudal" eu tinha reunido um
momento atual. Eu creio que é justamente o inverso: é ver~ade que não dia, em meu seminário da École des hautes étlldes, Ernest Labrousse,
podemos saber o que vai se passar, diplomática ou politicamente, nos dois Roland Mousnier 10, Don Claudio Sanchez Albornoz Jl e Boris Porchnev 12;
próximos meses, mas o historiador, porque jú sabe como isso acaba, pod~, saímos sem saber o que era o regime feudal, mas foi extremamente inte-
ao contrário, explicar porque as coisas evoluem desta ou daquela maneira. ressante. Para Don Claudio, medievalista dos períodos antigos, o regime
É por isso que eu sempre fui o anti-Aron por excelência. feudal era antes de tudo um fato jurídico; para Mousnier, à dimensão
O historiador deve saber distinguir o que há de acaso e o que há jurídica vinha necessariamente se ácrescentar a dimensão social, a da
de necessidade. O problema havia sido posto pelos dois livros de Pierre sociedade de ordens; para Labrousse, que se interessava pelo século XVIII
Vendryes 1:1. Ele tomava o exemplo da destruição da esquadra de Bonaparte na França, era preciso atentar para a articulação clero-nobreza-terceiro
em Abukir por uma tempestade. Ora, eu não penso que a França e a estado; para Porchnev, que tinha estudado as revoltas populares do século
Europa teriam evoluído de uma maneira tão diferente se a esquadra de XVII, o feudalismo devia ser ligado a fenômenos úgrários muito precisos.
Bonaparte não tivesse sido destruída. É absurdo fazer do acontecimento Se a discussão tinha uma aparência teórica, resultava, no fim de contas, que
algo que desencadeia coisas importantes. eles não estavam em desacordo: era uma questão de vocabulário ou de
perspectiva, e não um verdadeiro debate. Para Labrousse, a "crise [econô-
As condições do trabalho histórico mica] do tipo antigo" não podia ser exatamente a mesma no século XVIII
Durante sua vida, em várias ocasiões, o senhor afirmou su~s e no século XIX: não existia mais dízimo nem direitos senhoriais; no
posições e suas convicções. Quais foram, /la sua Opilliiio, os grandes entanto, as revoltas que ela podia oc~sionar eram muito próximas, sempre
debates que animaram os historiadores? que a circulação dos cereais encontrava algumas dificuldades e os insurretos
Não sei se a palavra "debate" convém realmente. Sem dúvida, o responsabilizavam o governo pela carestia ... A discussão tomava um aspec-
aparecimento da escola das AIlJlale.\" - não gosto do termo, porque penso que to político, mas não tocava muitos pontos fundame,ntais.
jamais houve "escola" no sentido preciso da palavra - havia produzido um Penso que foi só depois de 1960-1970, talvez um pouco 'depois de
pouco o efeito de uma bomba no meio dos historiadores. Núo de todos, pois 1968 - uma data simbólica - que o debate se abriu, após um abandono do
um historiador da arte como !Ienri Focillon, por exemplo, já praticava uma qual a École des Izallles études foi o teatro. A VI seção da École pratique
história que encarava os fenômenos em seu conjunto. Mas havia ainda todos des haures études, escola" criada no Segundo Império por V. Duruy, nunca
aqueles para quem a his~ória era a sucessúo dos ministérios ou as causas se tinha constituído: os juristas e os economistas, que poderiam tê-Ia cons-
imediatas da guerra de 1914. Saber, por exemplo, se a imprensa francesa tinha tituído, não se 'interessavam pela pesquisa e pela reflexão teóricas. Fcbvre,
sido comprada pela diplomacia russa. Esses tentavam ~esistir, com vigor. vendo aí uma espécie de vazio, julgou que cabia aos historiadores estruturar
., ..... '. . .-, -~."'t:!..- ...... "-~.-. . -'.':'_.'-.... ,•.

278 PASSADOS RECOMPOsrO? . Testemunho 279

as ciências humanas e sociais c.ercando-se de etnólogos, psicólogos, lingüis- luz... Não é uma escola que se forma então - eu não gosto desrí:6 palavra,
tas etc. Assim, os historiadores não ignoré'fiam essas ciências, que lhes são como não gosto do termo "escola das Annales". Muito simplesmente, os
necessárias, e estas, por sua vez, adquiririam um pouco de espírito histórico. historiadores se encontram entre' si segundo as necessidades que eles
Desse projeto intelectual nasceu, em 1947, a VI seção. A concepção de .próprios sentem. Já faz quinze ou vinte anos que eu não freqüento mais
Febvre se manteve, penso eu, durante uns bons vinte anos. Entrei nela em assiduamente a comunidade dos historiadores. Atites, meu grupo de tra-
1951- dois anos após ter sido expulso da Espanha -, ao mesmo tempo que balho foi ao mesmo tempo a École des hautes études, de Lucien Febvre,
Jean Meuvret e Charles Bettelheirr., e, por iniciativa de Lucien Febvre, e a escola que chamarei, por exemplo, "Estrutura/conjuntura", em torno
Fernand Braudel, Ernest Labrousse e Georges Lcfebvre. Éramos então vinte de E. Labrousse. Naquele momento, éramos suficientemente compactos
ou trinta, e 'tínhamos a impressão de estar criando algo. Mas a partir de certo e produtivos para que todo mundo pudesse compreender de que se tratava.
momento, as ciências humanas e sociais vizinhas ganharam tanta importân- Desde então, tornou-se extremamente fragmentado.
cia que, finalmente - sobretudo a partir da prçsidência de um não-histo- O senhor pensa que pessoas como F ebvre, de um lado, e Labrousse,
riador, Marc Augé, um grande etnólogo, para quem a história é provavel- do outro, nos anos 50-60, propuseram um modelo de trabalho que do-
mente a menos segura, a menos científica das ciências sociais.'-, a École minou além de Ilossas fronteiras e ajudaram a ll.nificar o trabalho his-
se tornou uma espécie de enciclopédia das ciências sociais em sua totali- t6rico, em escala internacional?
dade, onde a história não teve mais papel de direção, nem como ensinada .Nisso estou inteiramente de acordo. Exprimirei apenas uma reser-
nem como ensinante. Isso, ~ claro, não está desprovido de sentido: significa ya: F~bvrc ou Lnbrousse não devem ser vistos simplesmente como
. que, na evolução das l::~ncias sociais, e mesmo em geral, a história não tem homens que exerciam uma dominação sobre estruturas, digamos, mate-
absolutamente mais o sentido de diretriz, ou de síntese, que, por exemplo, riais ou universitárias.
Lucien Febvre quisera lhe dar. Insistirei noutra coisa: as pessoas se agrupavam em tomo deles, não
f Talvez os grandes debates se desenvolvessem /10S congressos his- porque eles estivesse!n na moda, mas porque - permita-me um pastiche
j
tóricos internacionais, onde se enfrentavam sistemas ou escolas? de De Gaulle - nós tínhamos uma certa idéia da história. Era isso· que,
Nos congressos, eu nunca percebi realmente escolas, nem mesmo apesar das diferenças consi~eráveis que podiam existir entre pessoas
escolas nacionais. Nosso método consistia sobretudo em propor grandes como J. Meuvret, P. Goubert ou eu próprio, fazia a solidez de nosso grupo,
questões. Eu acompanhei, em geral, os grandes debates sobre as nacio- que constituía uma verdadeira comunidade de trabalho, unida pela mesma
nalidades. As longas apresentações dos congressos são muito instrutivas, concepção da história.
mesmo para os estudantes, porque nelas as pessoas explicavam o que
tinham procurado, o que quiseram fazer, examinavam as objeções que o historiador e o aconteciménto
tinham sido feitas ... Além disso, a cada cinco ou. dez anos, esses congres- O senhor desconfia dos "aá)/~tecimelltos". No entallto, um certo
sos of~reciam atualizações neste ou naquele domínio. Mais que uma número de acolltecimentos importalltes /lão imprimiram uma marca
comur.idac!e interllJcional de historiadores, existiam reagrupamentos por profunda em sua vida de homem e de historiador?
especialidades, freqüentemente em torno de grandes especialistas, que É evidente; é impossível, sobretudo quando se é historiador, não
todos nós admirávamos. É certo que o papel representado por um Hamil- sentir os "acontecimentos". Coloco a palavra entre. aspas porque, é óbvio,
ton no domínio da história dos preços ou da história da Espanha foi os acontecimentos são de dimensão muito diferente. Ter vivido na Espanha
considerável. Os laços que podíamos manter ficavam r"uito individuais. - num país que não era o meu e onde, por conseguinte, eu podia observar
É aí que ap~rece a situação muito paradoxal do historiador. É os acontecimentos com certa distância - durante a República, ter vivido
. certamente um trabalhador solitário. Mas não é mais solitário na medida a preparação da Guerra Civil - deixei a Espanha desde os primeiros dias
em que se interessa por ul!1a questão: um certo número de pessoas se do conflito -, tudo isso não podia deixar-me indiferente. Ainda mais
reagrupam então, em torno dessa questão, em torno daquele que traz certa porque eu via chegar os outros grandes acontecimentos que levaram à
'"' . "'," .......
.) ,~:-:.,

280 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunhó 281

Guerra Mundial. Não seríamos historiadores se não formulássemos para meus companheiros: quando eu lhes falava da Espanha, alguns se 'ínte-
nós mesmos as perguntas suscitadas precisamente pelos grandes "acon- ressavam pelo aspecto pitoresco; outros perguntavam: "Afinal, o que se
tecimentos", os que abalam as condições gerais de uma nação, de um '1
passou na Espanha enquanto você lá escava?"; outros enfim gostavam de
.1
: continente ou do mundo. pensar que a Espanha tinha sido um grande país católico, ou mn grande
!
O cativeiro também me tornou muito sensível aos acontecimentos;
1
país de colonização. ·Em lugar de ter como interlocutores estudantes -
foi um período durante o qual vivemos o~ acontecimentos dia a dia. Eu espíritos jovens -, como quando estava no ensino secundário, ou especia-
estava em Nuremberg; gozávamos lá de uma espécie de quase-liberalis- listas, como quando estava em ambientes de historiadores ou de geógrafos,
mo, pois_~os Alemães se julgavam definitivamente vitoriosos. Tinham eu descobria as curiosidades, os interesses de pess~as de todas as catego-
reunido 10.000 oficiais de todas as nações. Quando a guerra começou no rias. Isso constituiu uma verdadeira lição.
Leste, fomos transferidos, porque começavam a chegar prisioneiros. .Depois da Segunda Guerra Mundial, o que foi que marcou sua
Prisioneiros: isto significa, neste caso, mull~eres, crianças, velhos que reflexão de historiador?
morriam em torno de nós. Fomos então instalados na Polônia, não muito Evidentemente, tivemos a impressão de que o mundo se dividia
longe de Dantzig; depois, bruscamente, por acaso, eu fui trqnsferido para em dois: procuravam mostrar-nos face a face dois mundos que se des-
o Tirol. Mais tarde, quando a guerra atingiu a Itália, e a frente de batalha truiriam reciprocamente, de um lado o comunismo, de outro - não se
subiu novamente para o norte, fomos deslocados do Tirol até o meio da dizia o cap.italismo, pois ninguém procurava pensar o fenômeno com
Áustria; enfim, quando a Hungria começou a ser invadida, fomos envia- . esse nome:'" o Ocidente, o fenômeno ocidenta!, a civi!ização ocidental...
dos para HallliGVer. Devo di~er que, se jamais seguimos os acontecimen- Confesso que isso me irritava um pouco. É evidente que nós víamos,
tos, foi certamente nesse momento, 'porque deles dependia nosso destino. nesse momento, tudo que fOfa apostado, antes da guerra, nessa divisão
F. Braudel declarou que, durallte seu cativeiro, sua cOllcepctio da entre um mundo comunista e um mundo não comunista, todos os dramas

j "lollga duraçiio" o ajudou, contra as dificuldades do presente, a conservar


a esperança /lO Jilluro: os acolllecimelltos eram apenas a superfície enga-
que isso pudera provocar, pois, até a declaração de guerra de 1939, tudo
repousara, no espírito dos dirigentes ingleses e frànceses, e. de certos
IlOsa de uma !ristória que devia lemr à derrota de Hitle/: .. dirigentes americanos, sobre a avaliação do que era, ou não era, pro-
Também estou de acordo. A história aão pode se desenvolver sem veitoso para a União Soviética. De tanto colocar a questão nesses ter-
a estabilidade a muito longo prazo de um certo número de fatores. Somente, mos, tinham acabado por nos arrastar num face a face com Hitler.
a "longa duração" é uma realidade variável, e o resultado depende do tempo Mussolini, e toda a Europa' simpatizante do fascismo ... Tendo vivido
que as pessoas lhe concedem. Na escala humana, isto é, para si mesmo, isso, eu me perguntava para que dramas - até o af.rontamento atômico?
só se pode, obviamente, contar com os acontecimentos. Se, ao contrário, - este mundo doravante dividido em dois nos arrastaria.
se procura considerar o destino da humanidade, é coisa bem diferente. A descolonizaçlio desempe/lhoú ~1I11 papel importallte em sua refle.:t:ão?
De fato, o cativeiro me permitiu desenvolver minha reflexão sobre Sim e não. Confesso que não esperava por ela. Mas, ao mesmo
a história ep.quanto disC:plina. De duas maneiras. 'Uma, confrontando-me tempo, pareceu-me tão importante quanto os fenômenos revolucionários.
com a história tal como ela era vista por meus companheiros de cativeiro, Andei pensando nisso nestes últimos tempos, porque se tem falado muito
que representavam uma boa parte da sociedade francesa, dos professores na desintegração do império soviético. Se, nos anos 1925-1930, a nós,
primários até os grandes aristocratas, ou aos maiores financistas - pode- alunos de Demangeon, especialista do império britânico, a n~s, testemu-
se dizer as classes dirigentes? -, com exclusão das classes popdares, visto nhas da Exposição colonial de Paris de 1931, tivessem dito: "Daqui a
que se tratava de um campo de oficiais. Outra, ensinando a meus compa- trinta anos, não haverá 1l1ais nem império francês nem império britânico",
nheiros. Com efeito, cad.~ um procurava ensinar aquilo e~n que se sentia teríamos todos dado uma gargalhada. E, no entanto, foi o que se passou.
mais sólido. Tive, por exemplo, uma aula de Georges Vedei sobre o direito A descolonização foi para mim uma espécie de boa surpresa, mas tam-
internacional. O cativeiro me mostrou assim aquilo por q.ue se interessa\'am bém, muito rapidamente, uma grande decepção. Porque a colonização, e
282 PASSADOS RECOM PO~TOS T e5 remunlio 283

a descolonizaçüo, foram fracassos. Se o senhor olha para a África, só h á~' sentimentos. Entretanto, eu não estava co ntra: hav íamos redig ido, com
Estados que não se sus ten tam, n:lções que não se constituem . A América A lbert Sobou l c Jacq ues Drnz, um arti go, que nfio foi pu bli cado, para
Latina, outro co njun to descolo nizado - não esqueça mos -, con hece as protes tar contra um afligo de Raymond Aron em L e Figaro, que se diria
mesmas dificuldad cs . Mesmo as na ções que lutaram il maneira do Vietnã re digido peloperc Gillen o rmand de Os Miseráveis, um burg uês legitimis ti.!
não conseguem se co nstituir economicame nt e. Tudo isso é decepcionan te. transtorn ado ao ver cons tr uir barricadas. Sem dúvida, se ti véssemos que
Veja a incapacidade da Argél ia, por exemplo, ~m se constit uir numa escolhe r O campo, estaríamos do lado dos estudnntes, mas sustentávamos,
verd adeira naçüo modern a, ou aquilo que se passa no Oriente Médio. ao mesmo tempo, que e les núo sabi am o que estavam fazen do. O peri go
Efetivamen te, a descolo niz<1ção dese mpenho u um papel considerável na é um pens::lmento revolucionário qu e se transfc-rma em místi ca rcvoluci-
evolução de minha reflexão. onária. N50 se dev e esq uecer que Pai Pot foi formado na Paris de 1968.
Tamal/IUI sensihilidade em rcla çii.o ao mUlldo atual levou o sel/h or Suslent ;:"\ r, por exemplo, que os camponeses s50 o úni co valor, e, po r
a um engajamel/to político? conseguinte, suprimir tu do que n50 é camponês, é totalm entc absurd o,
Talvez o scnhor fique admirado se eu lhe responder não. Entretan- mas estava na ment alidade de 1968. E era perigoso.
,
to, em minha infãnc ia, a distinção fundamenta l em meu. vilarej o era Também n50 penso que a subversão un ivers it ária t ~nha sido posi-
política, entre os republ ica nos e os muito rilros - os "reacionários" - que tiva . É evidente qu e nfio se podia mais conse rvar a Sorbonne tal como
nã o o era m. Pertçnço ti mes ma ge ração qu e S:lrtre, que via. todos os dias, era ant igamente. Mas as muda nças foram feitas na maior deso rd em in-
dur<1n te três ano~, q ua ndo eu estava na École l/om~~ /e. T; -;e numerosos 1 ~lect ual. No iníc io, quando foi fundada a Univers idade de Paris I, cu

amigos comu nistas. Participei, em 1939, da criação de La Pellsée, revista fiquei muito feliz em me encontra r ao lado dcs econom istas e dús soció-
do Part ido Comunista, mas que pretend ia ter uma visão um tan to ampl a logos. Íamos finalmente trabalhar juntos. Mas isso só durou três sessões;
das co isas. Mas llullca ti ve a idéia de fazer polít ica, pois se mpre estiv e em seguida, cada um voltou para sua faculdudc. Ouvi até dizer - co m
co nvencido de que um home m político é de fato impotente, e núo pode reserva: não verifiqu ei, mas não me e sp <1 ntari ~ - que Raymo nd Barre
realm ente agir sob re as coisas. pro ibia seus estudantes de irem ao curso cIe histór ia 'econômica, com o
Permita -me lima curiosidade: o sell"or disse recelltemente que pretexto de que nflo con hecía mos nada de econo mia . Nós tínhamos na-
1968, do pOIllO de \/i.\·w universitário, tillha sido lima catástrofe. EI/tre- I turalment e muitas razões para lhe dizer qu e ele nflo conhecia nrlda de
tamo, o sel/hor Il iio é 1/111 /tistoriador il/sensível às revoltas e aos movi- I hi ~ t ória, mas eu teria preferido dizer que tinha havid o al gumas reuniôes
mentos sociais. I que nos tin ham dad o algumas ilusôes. Em determinad o mo mento, profes-
Achei, precisame nte, que mai o de 68 era um a defo rma ção do ima · sores de ciências, dc literat ur a c de hi stó ria tinham resolvido lan çar em
ginári o revo luci oná ri o. Eu tinha sucedido a Labrousse na cadei ra de comum um programa de pesqui sa sob re a noçflo de' limi ar: a noç~1O de
hi stór ia eco nômi ca na Sorbon ne el11 1965. Lcmbro·me de uma di scussão li miar nas ciências, a noçã o de li miar na hist ória , a noçfio de limiar em
com Ou pront, que me divertiu . Foi durant e os acontecimentos; os profes- sociologia; era fascinante. Isso nunca deu em nada, pois é raro que a ~
sores da Sorbonne estavam reunidos no Instituto de história da arte, nn pessoas queiram realm ent e fazer um esfo rço de síntese.
ru e Michelet, e Duprollt me disse: "Enfi m! Você nfio vai me dizer que
nflO há um comp lô aids disso. A estes jove ns, ensinaram·lllCs a fazer I A ambição ela roralicb ele
barricadas". Eu di sse: "Não. Não vou lhe dizer qu e lera m Les Misérablcs o sellhor é, 110 el/lalllO, um dos historiadores que tivel"{llll°cui-
[Os Miserá ve is), po rqu e o livro é lid o cada vez l11enos, l11as basta que dado de manter relações com as disciplinas vizinhas, de discutir com
tenham visto ullla das três ou quatro ve rsões cinernatogrMicas". Com i elas. O sellhor leu muito cedo Palll RicoclI/; debateu com Raymolld ArDil,
efeito, hav ia nisso tud o um po uco dessn es pécie de romnn ti smo. Aci ma I dialogou com ;\Itllllsser, rCllg ia a certas publicações de Michel F Ollc(llIlt
de tud o, o que me incolllodava era Ulll pensamento fa lsa men te revoluci- - em particulr!r Les Mots el les choses [As palavras e as coisasp.l. Por
on;írio, um pensamento cIe intelectual que fnb ri ca va para si idéias ou que o sel/hor jlllgava importaI/te il/fervi,. nessas discussões?
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284 PASSADOS RECOMPOSTOS Testemunho 285
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Quando eu lia os historiadores, a maioria, p'arece-me, tinha reagido Eu reajo muito mal. É pena ver historiadores, formados numa
i positivamente naquele momento à lição das AlUlales, e os historiadores disciplina que quer levar em conta todes os fatores, não se interessarem
do puro acontecimento eram considerados historiadores sem grande im- mais senão por um, quando muito por dois dos fatores. Estou pensando,
portância. Em compensação, permitiam-se falar em história pessoas que por exemplo, em Jean-Claude Perrot, autor de um trabalho admirável de
jamais a tinham estudado. Eu constatava que Aron falava de história como
dela falavam os filósofos e os sociólogos alemães dos anos 1880-1900. i
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história total sobre Caen, o qual, por um período determinado - aqui, o
século XVIII -leva tudo em consideração, desde o ~Iemento demográfico,
Constatava que Althusser dizia: "Marx inventou o continente história", o campo, até tudo que resta da Idade Média através dos conventos, mas
sem se pe~guntar: "Como os historiadores escutaram esta lição?" -Em ~1 também tudo que pode haver de novo através das sociedades de pensa-
particular, eu o acusava de falar sobre história tendo simplesmente citado ~ mento etc. Certamente, compreendo que, depois de trabalhar como fizera,
Febvre, Labrousse e Braudel entre aspas, como pessoas de quem talvez .1 . ele possa ter tido algumas dúvidas sobre essa "totalidade" que querium
fosse conveniente falar. Tudo isso me parecia. muito superficial.
Quanto a Foucault, trata-se de outra coisa. Ele chamou atenção para
~ impor-lhe. Todavia, depois dessa leitura, eu sei verdadeiramente o que era
então uma cidade francesa, em sua complexidade. Sei que não posso
coisas de extrema importância como crimes e castigos,. loucura e qualificá-la simplesmente por essa execução sensacional com cantos
internação, regras sociais e vida sexual...; quando quis, em seguida, estudá- religiosos, que parece nos levar de volta ao século XIV, porque sei que
las historicamente, debruço~-se sobre textos. Quando os textos não dizi- havia também, ao lado disso, numerosos elementos de mudança. Ora,
am o que ele tinha vontade de ouvir, então não os tomava LOdos, f;l"lia J~an-Claude Perrot se interessa agora pelo nascimento da economia
suas seleções. Para dizer a verdade, não creio que ele tenh~ tratado como matemática: problema fascinante mas, ao mesmo tempo, extremamente
um verdadeiro historiador as excelentes questões que propôs. Não penso, restrito. Esta especialização me preocupa. Aliás, esta evolução tem estado
tampouco, C!ue o historiador possa propor essas questões como simples no centro de minhas preocupações há vários anos, e eu venho anotando
problemas, separados dos conjuntos históricos nos quais se inserem, como uma quantidade de reflexões a esse propósito. Recentemente, na última
aquela execução em Caen, por volta de 1760, descrita por Jean-Claude ve~ em que participei de uma reunião na École eles hautes éllldes, tínha-
Perrot '4, em que o homem que está sendo submetido ao suplício da roda mos peJido a Jacques Le Goff uma intervenção sobre um tema impor-
canta o Veni creator uo mesmo tempo em que.a multidão. E isso, apenas tante: o exemplo e a generalização. Ou seja: quando um medievalista
trinta anos antes que a Revolução Francesa inventasse, por sua vez, a estuda uma aldeia, ele está descrevendo o sistema feudal? J. Le Goff
guilhotina. Em suma, uma medida de eutanásia, que substitui os suplícios apresentou seu trabalho sobre a biografia de São Luís. Para explicur suas
de todas as espécies por uma morte brutal. Como estudar esse gênero de intenções, ele nos pintou um verdadeiro quadro, que ~u chamo de histó-
problemas sem recolocá-Ios no conjunto histórico que os propõe? Mas ria total: eis um rei que é ao mesmo tempo o rei menino, o rei justiceiro,
Foucault agia de modo diferente: indicava inicialmente como propunha o rei cruzado etc. Mas ele rejeitou logo a expressão de história total
o problema, depois, através de alguns textos, partia em busca de algumas porque, na opinião dele, esta se contentaria em adicionar várias histó-
indicações. Não creio que fosse o bom método. rias. Aí, eu não estou mais de acordo: não se adiciona, combina-se, o
Através de slta polêmica com FOllcault, o se~lhor propõe, de fato, i
~
I
que é totalmente diferente da história praticada por Ernest Lavisse. Em
duas questões diferentes. Uma, clássica, de método: o rigor /la seleção 1 sua Histoire de Frallce [História da França], publicada no {;omeço do

dos documentos, c em sua leiwra. A outra, mais ampla e mais debatida, século, Lavisse acrescentava, depois de desenvolvimentos essencial-
referente a sua cOllcepç{io da pesquisa histórica: a impossibilidade de
uma história que não "global". Como o senhor considera a evolução
das pesquisas /ristlÍricas que, /lOS zíltimos villte anos, privilegiaram a
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mente factuais c políticos, um capítulo sobre a economia, depois sobre
as artes, e assim por diante: É isto a história adicional, que esquece que
a história é um conjunto, no interior do qual há interconexões contínuas.
especialização, llS sondagens setoriais, cOllfrarialldo o que o sellhor É bem verdade que um historiador, atualmente, não pode pretender
sempre defendeu? rlnminar todas as especialidades necessárias, como a psicanálise ou a
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286 PASSADOS RECOMPOSTOS Tesceinunho 287


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!;~I econo:';.lia matemática Mas, de qualquer maneira, se ignorarmos a reali- num carro de bois, enquanto agora a mais simples diarista ou enfermeira
~: I:'I dade em seu conju,nto, sobre quê elas nos esclarecerão? Sobre absoluta- chega ao mesmo lugar em seu carro, e mesmo, muitas vezes, com seu
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mente nada. Isso é extremamente grave. Prefiro um historiador que con- ~
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celular. Nem tudo muda, pois, no mesmo ritmo, e a diferença entre esses
! fesse não se sentir competente para fazer a análise psicanalítica de certo ritmos é essencial para o historiador. Aí, os problemas técnicos são fun-
io,r personagem ou, o que seria muito mais importante, de certo fenômeno damen·tais. Braudel, que perdia freqüentemente suas fichas, me pedira várias
coletivo. Pode-se, é certo, tentar a psicanálise de Hitler, mas é daquela de vezes uma frase muito forte de Marx, que hoje eu seria incapaz de relembrar.
todos os que o seguiram que precisaríamos. Por isso, mesmo que não Em compensação, lembro-me'da breve alocução de Engels junto ao túmulo
): domine solidamente as diferentes ciências humanas, bastam ao historiador, de Marx, que menciona o seguinte fato: pela primeira vez, conseguiu-se
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j que sabe manejar os textos, a cronologia etc., algumas indicações tomadas transmitir a longa distância a energia elétrica 15. Com tudo que se passou
1 rias ciências humanas, para conduzir uma análise que os especialistas desses
I: ne~tes 109 anos, bem sabemos que são as invenções técnicas que subvertem
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domínios ·não podem conduzir historicamente ~e maneira satisfatória. nosso mundo. Apenas, essas mesmas invenções estão nas mãús de uns, e
Foi esse avanço das especializações que levou ao que é simples- não de outros; devemos, pois, estudar todos os fenômenos sociais que levam
. mente uma constatação, a história em migalhas, quando, em p~terminado esta técnica a ter êxito em certos lugares, ou em certas disciplinas, ou em
momento, nos tinham feito esperar que o historiador seria aquele que certas práticas, e fracassar em outros.
deveria sintetizar os conhecimentos sobre o homem e sobre a evolução Para pensar essas mudanças, a noção de estruturas sucessivas é
da humanidade. Berr e Febvre deram este títul~ a sua grande coleção ~ndispensável. Todos os historiadores da primeira metade do século XIX,
histórica: "A evolução da humanidade". É isso, no fundo, que me importa; digamos, antes de lé:70-1875, a utilizaram, Guizot, Augustin Thierry... Não
é diferente, por exemplo, de pesquisar sobre o devir do catolicismo entre foi Marx quem a inventou. Para eles, não havia dúvida de que uma socie-
os séculos XIII e XIX. O estudo da evolução de um fenômeno, entre duas dade moderna sucedera a uma sociedade feudal, um~ sociedade de classes
datas, esclarece sem dúvida muita coisa, mas não um todo; ora, é o todo a uma sociedade de ordens. Ninguém duvidava de que existira uma socie-
11 que me interessa. dade antiga, muito avançada do ponto de vista das idéiàs - a cidadania, por
Em sua concep;ão d~sta história total, existem partes da realidade exemplo -, mas que tinha também escravos. Certamente, falar em comu-
que têm mais importância que outras? nismo primitivo, em escravismo, em feudalismo, em capitalismo etc., é
Tudo isso é sobretudo uma questão de hierarquia. Por exemplo, eu um pouco esquemático, mas é verdadeiro, e, ouso dizer, todo mundo sabe
não digo que a economia tem mais peso que a psicologia, mas se a eco- disso. Do mesmo modo que hoje há pessoas que possuem o capital e
nomia não se mexer, a psicologia não se mexerá. Tomemos um exemplo pessoas que trazem o trabalho. Isso me parece tão evi~ente que não é mais
recente, que se refere à mentalidade do sagrado, cara a A. Dupront. Há uns necessário exprimi-lo, menos ainda analisá-lo.
trinta anos, em minha casa de campo no País Basco, num dia de temporal, A superestrutura, ao contrário,. é uma contribuição de Marx. An-
o granizo destruiu as colheitas; meu vizinho, que é fazendeiro e basco, me tigar.1ente, quando se fazia uma exposição histórica, mesmo repousando
explicou: é normal, o padre não estava aí na igreja para rezar, tinha saído numa análise de estrutura, começava-se freqüentemente - tomemos o caso
de férias. Na verdade, ele estava ocupado com uma colônia de férias. Vocês do Egito faraônico - por cima dos poderes políticos, pela teologia: Osíris,
têm assim vários conjuntos que se cruzam. A velha crença, multissecular, _ depois este ou aquele deus, depois o faraó; enfim, embaixo, as pessoas
até mesmo multimilenar, mais importante, é que se deve rezar a Deus; mas . que espiam a enchente do Nilo para saber se haverá ou não uma colheita.
a idéia de que o padre é apenas um funcionário que deve cumprir seu dever, Marx inverteu a ordem: devemos partir das milhões de pessoas que es-
é também uma idéia de Ancien Régime, que se ~antém depois da Revo-
2
piam a enchente ~o Nilo; por cima delas, um certo número de pessoas
lução. Ao contrário, o padre que sai de férias para cuidar de crianças qu~ as organizam; enfim, mais em cima, encontr~mos os que justificam
assinala uma mentalidade totalmente moderna, exterior à do camponês. É o sistema dizendo que depende de Deus. Ou seja, Marx reencontra exa-
preciso mencionar logo que, há trinta anos, subia-se até a casa de campo tamente o que, no século X, dizia Adalbéron, bispo de Laon: há os que

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mandam, os que pensam,'.os que trabalham. É uma fórmula que sempre e não o tinha compreendido"; eu sempre disse: "Com vinte anos, eu não
valeu, que é estrutural em toda a humanidade. A simples sucessão dos 1! tinha lido Marx, mas o tinha compreendido". Li bastante cedo o Mani-
r.eis e dos regimes, isso é que não pode satisfazer o historiador, e que é festo, Salários, preços e lucros, e os textos sobre a Espanha; só li o resto
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preciso destruir. muito mais tarde. Minha concepção do marxismo, não creio ter necessi-
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.~ dade de retocá-la, a não ser a idéia que eu podia ter da aplicação do
A exp~riência soviética: retrospectiva. marxismo nesses países. Eles se afirmavam continuamente marxistas,
Os recentes acontecimelltos na Europa Centrai e na Europa do
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eram politicamente marxistas, e de fato provavelmente não o eram, por-
II
Leste pode'R levar o senhor a modificar o uso que tem feito do marXismo .~
que, se o tivessem sido, teriam feito passar o econômico antes.do político.
!, em suapro[lSsão de historiador? Pondo de lado as questões morais, as questões de repressão etc., é certo
Efetivamente, eu acreditei que as estruturas. trazidas pela revolução que, economicamente, ~té 195~, tiveram grande êxito no que diz respeito
soviética fossem mais sólidas. Deixei um pouc~ de pensar assim a partir à grande produção - segundo concepções próximas das do século XIX -,
do momento em que, tendo ido à União Soviética - é verdade, somente a siderurgia, o petróleo etc. Ora, eu não conheço análises muito boas da
duas vezes,... descobri, ao saltar do avião, que estava cercado.dé pessoas historia soviética - não quero dizer que não existam. C. Bettelheim fez
que eram contra. Havia uma resistência ao sistema, sobretudo nas cama- estudos parciais muito interessantes: uma revolução não oetém a luta de
das intelectuais e nas camadas dirigentes. Quando os dirigentes não classes; essas lutas prosseguem, mudam. Certos grupos lutam pela esta-
acr~ditam mais no sistema, é evidente que o sistema está em perigo. Mas bilidade, outros passam para a contra-revolução ... O que falta em
que uma contra-revolução intervenha depois de uma revolução, não é a Bettelhcim é o exame das questões cul~la(Uis, à parte o fato de que não
primeira vez que isso se produz. Meu amigo, o historiador catalão losep se tem resposta para as grandes questões: o que ia se mudar realmente
Fontana, considera que estamos em 1815, e é verdade. Porque, em 1815, nas estruturas econômicas, nas estruturas sociais,' o que era que se cha-
havia pessoas acreditando que a Revolução Francesa era coisa liquidada. mava "nomenklatura"? Não pode se tratar de uma nova burguesia, pois
Para eles, havia os problemas do rei, da carta etc., mas a hierarquia tal não são pessoas que tenham enriquecido individualmente, que se tenham
como era antes havia sido restabeleci da. Lamartine ou Hugo escreviam tornado fortes por sua fortuna individual; sem dúvida, viveram mais
então poemas monárquicos, mas sabemos o que se tornaram quarenta confortavelmente que os outros, mas, quando vemos o desperdício da
anos mais tarde. Devemos olhar para as coisas estritamente do ponto de sociedade capitalista, não podemos pensar que foi isso que poluiu o
vista do historiador. É certo que o que me inquieta há bastante tempo, sistema. Também não é uma nova nobreza, pois o privilégio da
desde que vi o próprio interior do sistema soviético modificar-se, é o "nomenklatura" não é, no conjunto, um privilégio dç posição. Talvez
que se poderia chamar a transição do socialismo ao capitalismo. Ora, fosse hereditário, no sentido em que Bourdieu diz que os filhos dos
infelizmente, ninguém a conhece. Ninguém ataca verdadeiramente os antigos alunos da ENA têm mais chances de entràr para a ENA. De que
problemas da propriedade, vemos se desenvolver um caos inverossímil, se trata então? Eu não tCilh0 resposta.
onde cada um procura tirar proveito das coisas imediatas. Só resta A agricultura não ioi a grande fraqueza. O Canadá conhecia, por
esperar que isso não produza grandes catástrofes, mas não é certo. Sem ex~'mplo, o mesmo fenômeno de desigualdade das colheitas. Em 1956,
dúvida, neste momento, não há mais ameaça de conflito nuclear, mas os $Oviéticos, que acreditavam cstar na frente, declararam que estavam
corremos o risco de que os conflitos interiores alcancem uma extrema na véspera 'da passagem para o comunismo. Foi então que surgiram as
gravidade. ":1inha vida foi bastante abalada pelas guerras de 1914-1918 grandes dificuldades.
e de 1939-1940; eu gostaria que a de meus netos não o fosse tanto, mas Eis o que eu chamo fazer passar o_político antes do econômico. Não
tenho muito medo por eles. basta dar boas diretrizes p~ra que tudo vá bem. Talvez o trigo fosse menos
Sempre fico embaraçado quando me perguntam se sou marxista. Na importante que no passado, ao passo que teria sido preciso examinar a
época de Althusser, Sartre escreveu: "Com vinte anos, eu .tinha lido Marx, questão, por exemplo, do automóvel. !,udo isso me deixa, de fato, uma
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290 PASSADOS RECOMPOSTOS
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Testemunho 291
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grande decepção: a partir de um conjunto de propo~tas socialmente justas, caso, os países muçulmanos - contra a autoridade de Moscou. Não foi
não é possível constituir um grupo de pessoas que possa planejar uma exatamente o que se passou: foi a autoridade de Moscou que se rachou,
e se há países que lamentam a perda do sistema, são provavelmente
II economia de maneira racional e progressiva. Não há dúvida de que, durante
I o mesmo tempo, as outras ec:onomias tinham progredido mais rapidamente. aqueles que, embora menos desenvolvidos atualmente, mas também na
I
O que se passa lias países do Leste lhe sugere uma /lava aborda- origem, têm a sensação de se terem desenvolvido sob o sistema soviético.
gem dos problemas de nacionalidade? Para a Rússia, é sem dúvida o inverso, e màis ainda para os países
Há muitos anos, minhas preocupações se afastaram da economia. Bálticos, que tinham aceitado com maior dificuldade dsistema comunista.
Fiz um estudo, o mais sistemático possível, embora muito limitado, sobre
a guerra da Espanha. Acima de tudo, continuei minha reflexão sobre o
Qual a formação para um historiador de hoje?
problema nacional, já que devia publicar um livro na coleção européia A partir de sua longa experiência, como o sénhor conceberia hoje
dirigida por· Le Goff. a formação de alguém que se prepara para tornar-se historiador?
Inicialmente, quero ·sublinhar um fato: todo mundo se considera Minha "longa" experiência parou uns quinze anos atrás. Sem
muito bem informado, porque se vêem pessoas que voltam co~ algumas dúvida, desde então tenho trabalhado - publiquei um certo número de
seqüências de televisão. É horrivelmente banal,. mas é preciso dizer que estudos ou de obras, principalmente em relação com meus amigos espa-
somos muito mal informados. Tomemos o caso da Iugoslávia: é um país nhóis - mas não tenho mais ~companhado as carreiras universitárias. Ora,
que visitei com relativa freqüência, sem me demorar, sobretudo sem conhe- elas .mudaram enormemente. 'Meu neto está se preparando para lOrnar-se,
cer-ihe as línguas; já (;m 1930, tínhamos ;t>.ito a excursão dita interuni- ele também, historiador. Visivelmente, d~pois da licenciatura, teve que
versitária dos geógrafos, sob a direção de E. de Martonne. Sem dúvida, escolher uma especialidade. Não tenho a impres~ão de que lhe tenham
nossa atenção se dirigira sobretudo para fenômenos físicos, pois de dado, salvo durante o preparo da agrégatioll, o desejo de fazer uma
Martonne era especialista em geografia física, mas não era só isso: fora ele história global, que leve em conta todos os fatores e, ao mesmo tempo,
ql1e, na ocasião dos tratados de 1918-1919, demarcara as fronteiras da que não ignore as lições das outras ciências humanas. No domínio
Romênia. Verificamos, por exemplo, que, no litoral dálmata, estávamos universitário propriamente dito, a especialização não pára de ganhar ter-
continuamente acompanhados por jovens italianos, que não paravam de nos reno; mesmo na École des Izautes éllldes, onde, com meu seminário,
dizer quanto tudo aquilo era italiano. É verdade que, muitas vezes, acredita- guardei mais longamente o contato, os estudantes seguem cada vez mais
ríamos .estar em Veneza. E era a época fascista! No· governo de Tito, apesar um seminário, ou outro, mas descuidam de passar de um seminário a
da estrutura feudal, tinha-se a impressão de uma espécie de autoritarismo, outro. Um bom exemplo disso é a evolução da demografia, a qual acabou
e de autoritarismo sérvio.- Tito, embora croata, fazia uma política sérvia. se tornando uma disciplina em si que, ou quer explicar tudo, ou já se
Eu pensava então que devia haver resistências, pois o sistema político e o considera, por seus métodos, inacessível ao historiador. Eis aqui coisas
sistema social são sempre irlscparáveis do sistema nacional. Rancores de perigosas: a pretensão de uma ciência a se bastar a si mesma, quando na
toda espécie se acumularam assir;} e, mal ü sistema rachou, se fizeram valer. realidade nenhuma ciência humana se basta a si mesma.
Por isso, quando se apresentam os conflitos atuais como exclusivamente Essa necessidade de apoiar-se nos instrumentos vindos de outros
inter~tnicos, não estou de acordo, porque se trata de realidades que sflo ao domínios foi ilustrada recentemente, há três ou quatro anos, por uma his-
mesmo tempo interétnicas, sociais, políticas, culturais e mesmo espirituais. toriadora grega, Vivi Perraki. Ela organizou sua tese de história econômica
Os problemas Ilão são exatamente os mesmos do lado ex-soviético? baseando-se num corpus de textos do jornal L 'Expallsioll, na época em que
É bastante embaraçoso. Mme Carrere d 'Encausse falou, há cerca se desencadeou a crise dos anos de 1973-1974, numa perspectiva
de quinze anos, de L 'Empire éclaté. Ela ~nunciara uma fragmentação d,? interdisciplinar 1(1. Ela pretendia acompanhar a reintrodução, logo após as
império soviético segundo o modelo da fragmentação dos outros impérios, Trente Glorieuses, do conceito de "crise", c a emergência de um período
isto é, provocada pela revolta das zonas menos desenvolvidas - neste de incerteza. O interesse do trabulho vem. do fato de que ela procedeu por
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\::1: 1

I: 292 PASSADOS RECOMPOSTOS

subsídios cruzados, da economia, da história, da sociologia, da psicanálise, '~


Testemun/w 293

isto e aquilo. Se o processo podia esclarecer a história, era sobretudo a


sem que qualquer disciplina tivesse um papel organizador. Durante a de- análise histórica que devia ajudar a ver claro nesse caso. O objeto da
fesa, a discussão, muito animada, referiu-se, por vezes, a problemas história não é exatamente o mesmo que o da justiça.
setoriais: escassez de psicanálise, excesso de psicanálise, disseram dois Existem leituras indispensáveis que o senhor aconselharia a jovens
psicanalistas. Mas o interesse do trabalho estava em outro aspecto: utilizar historiadores?
numerosas ciências humanas, e recusar a especialização. Um livro como o de Marc Bloch sobre Les caracteres originaux
Um percurso de formação ideal para um historiaqor deveria assim de l'histoire rurale frallçaise [Os caracteres originais da história rural
dar-lhe uma, visão total das coisas, enquanto os estudan~es atuais ,se francesa] (Oslo-Paris, 1931) - que trata dos bens c,omunais, da circulação
limitam a uma única linha. Não vou falar, é claro, dos prejuízos da livre dos rebanhos, do surgimento do individualismo agrário, das dificul-
formação à maneira da pedagogia ou da comunicação, da autonomia que dades que encontrou a propriedade, no sentido estrito, para se impor,
a pedagogia acabou por conquistar, contra os p~óprios saberes. Por que
1 mesmo no século XIX - propõe os problemas fundamentais das socieda-
"insistir continuamente na maneira de comunicar, quando, não" se sabe o
j des antigas. Mesmo hoje, quando nos encontramos diante do fenômeno
que se dcve comunicar? ..
Se utilizo meus próprios caminhos para pensar na formação de um
"I~ das cooperativas - até certo ponto, uma espécie de dissolução da proprie-
dade estritamente concebida -, não se trata de simples questões sociais
historiador, verifico que, quando me encontrava frente a um fenômeno de atuais. De onde vêm essas formas? As mentalidades mudaram? Elas estão
J
tipo psicológico, eu precisava s;aber quais eram os fundamentos d~ própria hoje totalmente independentes das mentalidades antigas?
sociedade, as relações dessa sociedade com as sociedades vizinhas, as 1 , Para o historiador, nU!l1erosas leituras são essenciais; furam as
formas de conflitos; era pois meu dever estudar essencialmente as estru- minhas: François Simiand, naturalmente, mas também Durkheim, sempre
turas sociais e seu funcionamento econômico. Para isso, as noções do tipo atual qua~do se tocam questões como a da nacionalidade. Os psicanalistas
ij'
de estrutura 'e conjuntura se apresentavam a mim como fundamentais e são muito úteis yuanúu se abordam os problemas de linguagl!m ou de
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inseparáveis. O estudo sério das conjunturas implicava um mínimo de mentalidades. Provavelmente, privilegiamos excessivamente Freud em
i educação estatíslica. detrimento de outros psicanalistas, como Adler, discípulo dissidente de
Ao lado da formação do historiador, há ~ questão da formação de Freud que fez repousar tudo na diferença, nos problemas de complexo de
todo mundo. Fiz uma de minhas últimas exposições, digamos, metodo- inferioridade e de superioridade. Se examinarmos as oposições entre duas
lógicas, para a inauguração, em Ávila, da fundação Sanchez-Albornoz, em populações vizinhas, sempre encontraremos este sentimento, que me
julho de 1987: nela eu desenvolvera o que havia chamado o "pensamento parece essencial, de se sentir mais forte que os outros. No famoso semi-
histórico", isto é, a educação histórica geral para ser dada a todos. O que, nário de Lévi-Strauss sobre a identidade, um etnólogo explicara que uma
aliás, deveria ter repercussões imediatas sobre o desejo dos historiadores população africana havia sido subjugada por outra população, mas tinha
de esclarecer certos problemas. No momento do processo Barbie, Le Monde guardado uma espécie de orgulho de sua etnicidade primitiva e de seu
tinha publicado um dossiê intitulado "Um processo para a história": eu caráter rural em relação às outras, que eram nômades. O orgulho de
tinha ficado muito chocado. Não foi esse processo que escla~eceu a história, pertencerem a esta ou àquela etnia equivale, entre nós, ao orgulho aos que
foi a história que esclareceu, esse processo. Dizer que o senhor Barbie era pretendem pertencer à classe superior. É um fenômeno do co~idiano,
um nazista não nos diz nada sobre o que era u~ nazista. Me é profunda- análogo ao racismo contra o magrebino encontrado no metrô, considerado
mente indiferente saber se tal dia a tal hora o senhor Barbie ordenou tal como inferior, e, por conseguinte, detestado.
coisa. Do ponto de vista judiciário, é perfeito, mas não venham me dizer Antigamente, as estruturas'econômicas globais criavam distâncias
que é uma exposição de história. A história é saber por que existiram extraordinárias entre as classes sociais. As classes superiores despreza-
Barbie, por que esse tipo de indivíduo existiu no exército hitleriano ..., e não vam certas classes médias, os que tinham tido acesso ao ensino superior
o fato de instalar, tal dia à tal hora, tal senhor em tal posto, para ele fazer desprezavam os que só tinham conhecido o ensino primário, o que não
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294 PASSADOS RECOMPOSTOS

excluía, por exemplo, um certo respeito pelo operário. Agora, talvez haja
menos distância entre as classes trabalhadoras e as classes dirigentes, mas
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,
Testemunho 295

teriam conseguido impor seus projet03, quando praticamente não há


I há o fenômeno dos excluídos, há esse enorme abismo para com as classes ! ministros catalães no século XIX? Assim, o esquema teórico importa
menos que uma história econômica inteligente, que deveria, aliás, ser
que são marginal izadas, e que já alcançam 20% da população nos Estados
ministrada aos alunos de economia política, de tal modo é assustador o
Unidos. Num de seus tratados da população, Alfred Sauvy formula, em
corte entre teoria econômica e história econômica.
-três ou quatro páginas, a teoria segundo a qual existem sociedades sufi-
O senhor é um historiador sensível, em suas reflexões, às solici-
cientemente ricas para que nelas seja mais econômico pagar, digamos,
tações do presente. O senhor escreveu: uNenhul1Z de meus trabalhos
20% das pessoas para não fazerem nada, e para que nelas seja, às vezes,
sobre o passado espa/lhol, mesmo muito distante, me pareceu alheio à
mais interes~ante para o indivíduo não fazer nada, ou viver à margem, do
apreensão do presente". À luz da reemergêllcia dos fenômenos de nacio-
que aceitar o salário mínimo que lhe ofereceriam. Isso me facilitara a
nalidade, o senhor construiria de outra maneira sua Catalogne?
compreensão da sociedade espanhola do Século de Ouro: muitos margi-
Com risco de espantá-lo, responderei não. Em primeiro lugar,
nais (inclusive o pessoal do teatro, da dança, de toda espécie de profissões
porque o fenômeno catalão não mudou realmente. Ouvi ontem, durante
que não são realmente profissões), que a sociedade aceita trat~r margi-
exatamente dois minutos, na rádio espanhola, o Presidente Pujol fazer
nalmente, fechando os olhos para sua marginalidade ... , aceita~ finalmen-
uma exposição ao conjunto dos parlamentares catalães; suas palavras me
te seu destino, às vezes com resignação, às vezes mesmo com contenta-
pareceram tão familiares, a propósito da Catalunha de um lado, do Estado
mento. Sem dúvida, se deveria matematizar tal teoria ...
espanhol cie outro! Quando eu vou lá, não tenho a impressão de que as
Teoria... O senhor acaba de pronullciar lima palavra que, em
coisas tenhall1 mudado tanto, apesar de, diferentemente do País Basco, ter
geral, os historiadores IUIO reivindicam muito. Ora, o sellhor não cessou
sido encontrada uma solução. Pode haver uma distância entre a teoria e
de chamar a atenção para a importâllcia da reflexão teórica. O que é
. i~, as problemáticas, isto é, a maneira de colocar as questões, de um lado,
que o sellhor c:::e:::!:: com isso?
,d através do que se ouve e se lê, de outro lado, através dos problemas do
I.. ,;
I
Vou partir de uma constatação simples. Eu dei cursos, pão teóricos,
tempo presente. No momento atual, o problema catalão pode se apresentar
I
e sim metodológicos: tratava-se de suscitar nos estudantes uma reflexão
como quase resolvido; pelo menos, é aceito. Os catalães proclamam todos
atenta e aprofundada sobre o que desejavam e~tudar mais _tarde. Quanto
os dias, como um slogan: nós somos seis milhões - embora haja, entre
a mim, aprendi muito da economia política. Mas, com a expressão de
eles, três milhões de imigrados do Sul da Espanha. Assim, o paradoxo
-"teórico", eu sempre temo as maneiras dogmáticas. A partir de um prin-
é a manutenção de um discurso nacionalista: o partido catalão, um partido
cípio dado, é possível elaborar uma teoria, utilizá-la para cálculos IY.<&te-
conservador liberal - o de Pujol -, é majoritário no país; frente a ele, o
máticos, sem que jamais se coloque a questão de sua aplicação a uma
partido socialista pretende ser suficientemente nacionalista para se opor
sociedade determinada. Foi o que se passou nestes últimos anos na
de maneira confiável a Pujol; assim, o nacionalismo fica.
historiógrafia espanhola: todos concordam atualmente na Espanha, e nos
É verdade que scmpre fui sensível à observaçi'ío do contemporâneo.
meios mais diversos, que a liberdade de empresa, que a formação do
Diante da situação iugoslava, aventuro uma hipótese: se os andaluzes, em
capital, são não somente úteis, mas fundamentais e sempre benéficas.
vez de se situarem no centro da comunidade, como operários nas dife-
Com isso, para certos historiadores espanhóis atuais, a Espanha teria sido
rentes indústrias, ou como trabalhadores agrícolas, se tivessem agrupado
um dos países mais desenvolvidos da Europa sem a intervellção das
em cidadezinhas no limite dos dois "países", o que teria acontecido? Não
indústrias catalãs, que impuseram o protecionismo, o que teria paralisado
posso dizê-lo, mas sei que na Iugoslávia as coisas se passaram de maneira
a indústria espanhola. É um absurdo total. No Peru, por exemplo - bem
diferente: t)s sérvios, em lugar de se porem à disposição de indústrias que
entendido, não é a Espanha -, os ingleses impuseram o livre-câmbio:
não existiam, ou de atividades de tUriSIUO que não podiam utilizá-los,
imediatamente, o Peru foi totalmente riscado do mapa dos "erdadeiros
instalaram-se, em territôrios que não lhes pertenciam na origem, por
países produtores. Por outro lado, de que maneira os industriais catulães
pequenos grupos, em pequenas cidades .... Em vez de se integrarem, essas
~,,~

I.~ .

II· <1~ .
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oi
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296 PASSADOS RECOMPOSTOS . 1 Testemunho ·297


i I
.~ 10 Especialista em história social e institucional da França do séculóXVII, R. Mousnier
populações, favoráveis à separação, ressuscitaram as velhas fronteiras ét- i
reagiu vivamente contra a análise de tipo marxista da sociedade francesa no século
nicas. A situação deve, sem dúvida, ser estudada caso por caso: a partir dos
XVII proposta por B. Porchnev.
recenseamentos, é preciso reconstituir, quase ano por ano, a instalação das
pessoas no território, a localização, os fluxos quantitativos; é preciso levar " Claudio Sanchez Albornoz y Meduiiia (1893-1984), professor da Universidade de Madri,
em conta a demografia, porque certas populações se multiplicam mais ministro do governo republicano espanhol de 1933, exilado na Fmnça, depois na Argen-
rapidamente que outras. Tudo isso abre abordagens comparadas. Mas será . tina; dirige de 1959 a 1970 o governo republicano no exílio; volta a Madri em 1983.
que, à vista disso, eu abordaria diferentemente a Catalunha? Não creio.
12 Historiador soviético, autor de Les SOlllevemellts populaires ell Frallce de 1623 à
/648, Moscou, 1948, trad. fr. Paris, SEVPEN, 1963, que suscitou nos anos 50 uma
Palavras recolhidas por Jean Boutier importante discussão sobre as estruturas sociais da França do 5éculo XVII.

IJ As discussões com Aron, Allhusser e Foucault estão todas reunidas em Ulle Izisloire ell
cOllstruc/ioll (cf. bibliografia).
Notas
I .
I A conversa teve lugar em Paris, em abril de 1992. 14 l.-C. Perro!, GCIICSC d'ulle vil/e moderne, Caell ou XVII/e siecle, Paris, Mouton, 1974,
p.918.
2 Nessa data, M. Sorre,Les Pyréllées méditerralléemles, étude de géographie bi%gique,
Paris, 1913, 508 p. 15 F: Engels, "L'enterrelllent de K. Marx", Der So,daldemokrat, 22 de março de 1883,
citado em K. Marx, OCllI'reS, Paris, coll. de la Pléiade, 111, p. 72.
J Entre suas obras mais importantes, l. Sion, Les Paysans de Normallt!ic oriema/c, Paris,
1908; A. Demangeon, La Plail/e picarde, Picardie, Artois, Cambrésis, BeOlll'aisis. 16 V. Perraki, L 'ExpansiOll c/Ia premiere crise pétroliere: lec/tlre illterdisciplina;re d'u"
j. Étude de géographie sur /es p/aines de craie du Nord de /a Frallce, Paris, 1905; R. jourIla/ écollolllique lors c!'1II11ll0mellt de d;SCOlltilltlité, tese de doutorado em história
I, contemponinca, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1988, datiJ., sob a
Blanchard, Les Alpes occidelllales, Paris-Grenoble, 1936-1956.
direção de M. Aynard e R. I3oycr.
4 E. Labrousse, Esquissc d.l t mOllvement dcs prix cl des rCI'enus ell France au XVII/e
sU:c1e, Paris, Dalloz, 1933, 2 volumes .

.s François Simiand (1873-1935), sociólogo, um dos fundadores da história da conjuntu-


ra econômica; publica em 1932 seu livro magistral, Le Sdlaire, l'Évolutioll socia/c el
la MOllllOie.

" E. l. Hamilton, Americall Treasure and the Price Revolu/ion ill Spail/, 1501-1650,
. Cambridge (Mass.), 1934.

7 R. Aron,/Illroductioll à la plrilosophiede ""isloire. Essais sllr Ics limites de I'objccti,'ité


Mstoriqlle, Paris, Gallimard, 1938.

R P. Vendryês, De la probabilité elllristoire, Paris, A. Michel, 1952, c Détermi"isme el


au/oII"",;e, Paris, A. CoJin, 19!iG.

9 A. Dupront, '!L'histoire apres Freud", Revlle de I'ellseigilemelll sllpériellr, n. 44-45,


1969, .pp. 27-63, e Lallgage e/Mstoire, comunicação apresentada ao XIII congresso
internacional das ciências históricas, Moscou, 16-23 de agosto de 1970, atas do con-
gresso, I. I, 1973, pp. 186-254.

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Os Caminhos da Polifonia
JEAN BOUTIER E ARUNDHATI VIRMANI

Como o conjunto dos cientistas, os historiadores também estão se


tornando umacomulIidade mundial. Mas estarão, com isso,falando a
mesma língua? Como conciliam a ambição comum de explicar o devir
das sociedades humanas e a especificidade reivindicada, tanto das so-
ciedades como das culturas?

Na evolução recente, da pesquisa histórica percebem-se algu!Das


grandes tendências. Uma história ainda fortemente .dominada pelo ponto
de vista nacional, visando legitimar, <;lu mesmo exaltar o Estado-nação,
cedeu amplamente lugar, pelo mundo afora, a uma história mais temática,
dedicada às formações e às dinâmicas sociais 1• Err! lugar de justapor
histórias fechadas em si próprias - empreendimento ainda recentemente
defendido por alguns historiadores alemães ou americanos, em nome do
american exceptionalism ou do SOllderweg (caminho específico) ale-
mã02 -, os historiadores se esforçam cada vez mais em comparar, a partir
de determinados objetos produzidos por especializações setoriais, a
diversidade das experiências históricas, além das' fronteiras políticas ou
culturais. Cada país guarda, sem dúvida, questões ~ue lhe são especí-
ficas, incomparáveis, embora essenciais para a apreensão de sua própria
história, tais como a Guerra de Secessão ou a partilha da Índia em 1947.
Mas essa especificidade não é o único terreno no qual os historiadores
evoluem. Existe mesmo um consenso no sentido de se considerar a
exacerbação do sentim~nto nacional, muito marcada em certos países
que conseguiram recentemente a independência, como prejudicial à
pesquisa histórica, sem se recusar por isso a realidade dos limites na-
cionais. ~sim, F. Brauael,. procurando esclarecer seu propósito na
introdução a L 'ldentité de la Frallce [A identid~de da França], tenta
combinar duas abordagens opostas, uma que recusa a "expropriação",
o "aniquilamento" da história nacional, e outra que considera o espaço
nacional somente como um "setor do destino do mundo"3.
J02 PASSADOS RECOMf'OSTOS
Fronteiras 303
"
"Há vinte .mos, a diferença entre a história social fcita na Fran a graças a uma abordagem "pluralista" por suas perspectivas ou suas esca las
c aque la feita na Alcm;:mha federal era uma d iferença de natureza; ho~c de observação, que enriquece a análise e produz um a compreensão mais
é apenas ullla ques tão de lluanças"4. Esta convcrgênci~t inesperada, o~. fie l de sociedades de dimensões múltiplas.
scrvada recentemente por um historiador alcrnúo. entre dun s historiogr~fias Não é muito difícil explica r, em parte, essa "harmonização" pla-
que durante muito tempo se tinham ig norado rcciproC<lIl1Cl1lC, revela que netária. Os hi storiadores nüo podem fmtnr-se às grandes transfo rmações
métodos, problemáticas c centros de interesse comuns confederam hoje, de nossas sociedades cOlllempulâneas: a abertura das trocas, a mobilidade
para além das fronteiras, uma comun idade de hi storiadores, ainda mnis dos indi víduos, o aparecimer..to de novos me ios de comunicação ... influem
vas ta porqu ~, <l lu almcntc são raros os países onde a hi s tória .não é prilÚ. evidentemente em seu trabalho. Ou tros fenômenos, mai s específicos do
cada. Aos objetos de investigação j á tradicionais, tais COmo os mecanis_ mundo cien tífi co, também desempenh am um papel, como a mu lti plicação
mos de mográficos, o desenvolvimento econômico, a urbanização e n dos colóquios, os intercâmbios de pesquisadores, a instalação de redes
modern izaçã.o das ~oci edadcs, os grupos c os .movimentos sociais, as internacionais para a tran smissão de programas específicos, como a his -
cu lturas populares, viera m se acrescentnr, sem que a lis ta esteja fcchada tória das cidades ou da cr iminal idad e. Estns real idade s, sem dúvida an -
,
as formas de cr im inal id<lde e de desvio de conduta, <I família, a scxun_
,
tigas5 , limitaram-se durnnte muit o tempo a relações individuais, t"is como
li dade, a constitu ição das id ent idades de grupo e da mem ória coletiva, as as permanências na Alemanha de C. Seignobos em ] 877-1879, ou do
mulheres e a d ivisão sexua l dos pnpé is soc iais ... Constituiu-se assi m, jovem M. Bloch em 1908. Já antes dn prirneir<:. guerra mundial, essas
progressivamente, UI11 espaço discip lina r trans nac ional - embora com des- relaçé?es se tornam mais institucionais: são os primciros congressos int er-
locamentos no tempo, diversidades nas formul ações qu e remelem às tradi_ nncionais das \.~ :êndas his tór icas (Roma, 1903), as com issões de pesquisa,
ções culturais nacionais - espaço que reforç;lIll deba tes muito abertos, como a famosa comissão i nt e rnaciol~31 de hi stória dos preços, dirigida por
leituras comuns, como os livros de E. P. Thompson, E B:-auclel ou W. hula , Lord Bcve ridgc, ou a abertura em Oslo do Ins titut o norueguês de pesqu i-
't e referências partilhadas, Como Montaillou, Menocchi o ou Ménét,<l_ sas cult uwis comparativas; nasce então lima nova gcraçflo de revi stas, que
No imediato pós -guerr:.l, em numerosos países, o marxismo tinha não r~ivindieam mais a origem nacional, a \lierteljaltrscltrift fiir Sodnl
fornec ido unI primeiro grande paradigma unific~ldor, renovand o a an;ílise lllld .Virtclwftsgcschichtc (1903), a Ecollcmic History Review (1927), ;'IS
das formações soc iais e da dinâmica das soc iedades. Em seguida, no AI/I/nles d'bistoire écollomique cf sociale (1929), mais tarde Past a11d
decorrer dos ilnos 50-60, ·a adoção, em graus v;!riáveis, de instrumentos Pr:!sclll (1953). Entretanto, só nos anos 60 é que esse int ercâ mbic assume
e métodos vindos das ou tra s ciências soc iais - el11 particul:lr a antropo- \:01 caráter s istemá tico, por exemplo com a inauguração (1968), pe lo
log ia e a sociologia, em grau menor, a economia _ deu aos hi st oriadores departamento de história da universidad c de PrincelOn, de um programa
fragme ntos de linguagem comum. Mas, diferentemente das ciências "du- de intercâmbio internacionnl de doce ntes. Isso, porém, não nos autoriza
ras", esta comunhão n5 0 resu ltou num a circul ação maciça de noç.ões e de a faze r um balanço triu nfnlista.
esq uemas uni ve rsais. Invertendo freqüentem ente as man eiras de ver, as Não exi slC país ~d gum em que os hi sto riadores constituam uma
c iências soc iais deslocnlll Illuitns vezes a lógica dos model os explic:tivos. cOinu nidaue ho mogê nea nas preocupações e nns práticas. Em IOdo lu g:lf,
Assim, a antropologia que, atenta à especificidade de cada caso, rcintroduz os historiadores "internaci onal istas" constituem apenas a pm te emersa do
as representações dos atores sociais, recusa categorias muit o glob.lis,como iccóerg, e as práticns mais conservadoras es t;i o longe dc ter desaparecido.
a moderni zação, o c resc imento econôm ico ou o imperialismo, quc.enco. As tradi ções nac ionai s con tinuam pes<1ndo ainda mais porquc os
brem processos di versos e contfilditÓrios. A validade de categorias ~cs­ histori adores se fec ham em debates estrit amente r:-ircunsc rit os a seu próprio
critivas e int erpre tati vas elaboradas de nt ro de CSptlÇOS cu lturais c geogr5. país. A grande maior ia dos histo riadores italianos dos nnos 50, quer sc
f icas pa rticul ares é quest ionílda em nome do etnocentrislllo, que vai se liguem ao idealismo de 13. Croce, ou se dcclnrem "marxistas", escrevem
juntar ent üo ao anacronismo denunc iado ou trora por Luci cn Fc bv rc. A uma histór ia fortemente política, originada do modelo his toricista; se, por
uni form ização do trabalho cede o passo à compatibili dade das pesquisas, um lado, eles se importam co m o engajamento ideológico, po r outro, ficam
304 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 305

indiferentes às diversa. .~ ciências sociais e aos outros modelos historio- governam e agem, e sim a massa dos anônimos, deu lugar a formulações
gráficos, até as discussões dos anos 70 que, com a criação de novas revistas muito diferentes, nas intenções, nas argumentações ou nos objetos, inclu-
como Quademi storid ou Sodetà e Storia, levam a novas propostas sive as famosas "Perguntas de um trabalhador lendo" de Brecht. Se os
metodológicas e ao abandono do paradigma historicista6 • Até o debate livros de E. P. Thompson sobre a classe operária inglesa, ou os de M.
suscitado pela publicação, em 1961, da obra de Fritz Fischer sobrc o Bakhtin sobre a cultura popular, têm alimentado a reflexão, tornando-se
imperialismo alemão e seu papel no desencadeamento da Primeira Guerra referências fundadoras lll, a ausência de programa cu de manifesto funda-
mundial, a historiografia alemã, que, no entanto, fora muito inovadora dor favoreceu, de fato, uma apropriação multiforme, adaptada à diversi-
durante o século XIX, foi dominada por uma tradição conservadora, a da dade dos contextos ideológicos e culturais.
escola prusslana de Droysen: ou de Treitschke, que valorizava o papel do A expressão de história "vista de baixo" surge nos anos 50, em
Estado, a história política, institucional e diplomática, ao mesmo tempo em historiadores da Revolução Francesa ou do movimento operário, tais como
que minimizava a responsabilidade alemã nos grandes dramas do século G. Rudé, A. Sobbul, É. Hobsbawm, R. Cobb ou E. P. Thompson; ela
XX7• Insularidadc ainda mais surpreendente porque, no mesmo momento, remete, todavia, a uma prática historiográfica que remonta ao começo do
em numerosos países, a história vinha se integrando cada vez mais nitida- século, com a Histoire socialiste de la Révolutioll Frallçaise [História
I •
mente no mundo das ciências sociais. socialista da Revolução Francesa] de J. Jaures, e que se desenvolveu através
Finalmente, os grandes debates atuais passam dificilmente de um dos trabalhos de A. Mathiez sobre a "vida cara" durante o Terror, e rr.:lis
!>aís para outro. Nascida nos Estados Unidos no início dos anos 80, a ainda de G. Lcfebvre sobre os campOlleses e os medos coletivos 1I. Não se
"virada lingüística" que, sob o impacto da análise textual, do movimento trata de um movimento !l!1ificado: I,a Inglaterra, eb nasce em tomo de uma
feminista e dos trabalhos, entre outros, de J. Derrida, levou a uma crítica história operária (labollr history), fortemente inspirada no marxismo; nos
da história social e propôs uma "nova história cultural':, mal está come- Estados Unidos, ela deve mais a uma sociologia não marxista ou ao
çando a encontrar um eco na Grã-Bretan~::, ~ permanece ainda muito populismo da Ilew leftl2; na França, ela se situa no prolongamento de uma
marginal na França8 • A micro-história italiana, uma das inovações história sócio-econômica originada tanto das lições de ·E. Labrousse como
metodológicas importantes dos anos recentes, não conhece na França da corrente das Amzales. A partir dal, a história "vista de baixo" se aplica
mais que um sucesso limitado, enquanto inspira trabalhos nos Estados a objetos diversos: retoma os trabalhos dos folcloristas para produzir uma
Unidos ou na Alemanha. O sucesso da noção de' "lugar de memória" entre história das "culturas populares"; enriquecida pelas contribuições dos an-
os historiadores franceses não foi suficiente para sensibilizá-los, por tropólogos, dedica-se à vida material, à religião e à magia, à sociabilidade
exemplo, para o debate paralelo suscitado na Índia em torno do caso da e ~s festas, e acaba se imiscuindo num grande número de pesquisas. Ela
mesquita de Ayodhya, construída no século XVI, num lugar que a tradição volta, entretanto, a suas aplicações originais, quando historiadores dos
hinduista considera como o do nascimento do deus Rama; o caso, que antigos países colonizados se esforçam em continuar a descolonização no
cristaliza os conflitos entre hindus e muçulmanos, obriga, no entanto, a terreno intelectual, desenvolvendo umà história que lhes seja própria. Seu
reconsiderar, além do contexto indiano, questões importantes como as encanto reside, pois. em sua cap:tcidade de responder a problemas levan-
formas da prova histórica, a construção da tradição e da memória coletiva tados em contextos nacionais muito diferentes.
ou a formação da cultura popular9• Assim, mesmo a vanguarda dos his- No fim dos anos 60, no Japão, aparece uma série de trabalhos sobre
::-
toriadores permanece um grupo fortemente segmentado. a vida social no campo; seus autores, críticos ao mesmo tempo do passado
imperial, da modernização, da burocracia e das categorias historiográFcas
A história "vista de baixo" ocidentais, pretendem promover uma história etnográfica do povo
Um dos paradigmas mais fecundos de nosso século é, sem contes- (nzinshushi), em que os camponeses seriam a expressão da autenticidade
. tação, a história "vista de baixo"; esta inversão de perspectiva, que instala, japonesa antes da influência ocidental; a pesquisa, realizada locàlmente,
no centro das preocupações dos historiadores, não mais as elites, que quer ser uma "história sem nome próprio", atenta às realidades da vida
306 PASSADOS RECOMPOSTOS
'}ff:r. ,i~
Fronteiras 307
cotidiana I'. O mesmo interesse pelos grupos dominados anima os historia-
"não nos dá a conhecer nada sobre a função da mesma e suas significações
dores indianos reunidos, no fim dos anos 70, em tomo dos Suba/tern ~ para as pessoas que a ela estão sujeitas"19. Estas são preocupações bem
studies: mas seu projeto não tem por objetivo reencontrar uma "alma in- ~
.~ próximas daquelas dos historiadores dos Suba/tem studies. .
diana", desfigurada pela experiência colonial. Eles querem restituir às ,;
"4 Tendo partido de motivações freqüentemente militantes, a história
classes subalternas, tanto rurais como urbanas, um lugar como atores na
dinâ~ica do movimento nacionalista, analisado até então segundo dois "vista de baixo" descobriu ao mesmo tempo, quase paradoxalmente, a
fraca eficácia de uma unificação paradigmática da história e a extrema
pontos de~ vista, um político - limitado aos partidos constituídos, a seus
compatibilidade das pesquisas, localizadas e particularizadas, mas
chefes e a ~uas
~
neoociações
o
com o poder.
colonial -, o outro econômico,
construídas a putir de preocupações partilhadas.
de origem marxista. Para eles, "elitismo" e "economismo" são duas abor-
dagens insatisfatórias, e o que é pior, "produto ideológico da dominação A internacional das revistas
britânica na Índia"14. O estudo local ou regional dos breves momentos de
"Hoje em dia, a cultura das ciências não está confinada num país
aparição dos dominados enquanto indivíduos, de 'sua ligação com o, direito
privilegiado, nem mesmo na Europa. Ela é internacional. Todos os pro-
ocidental ou a medicina, de suas relações com a burocracia op .à. polícia,
blemas, os mesmos problemas estão simultaneamente em estudo em todo
desemboca numa análise das mutações complexas de uma sociedade sob
lugar"2o. Esta afirmação não vem nem de um matemático nem de um
dominação colonial. Ele obriga também a reformular o lugar da operação
físico, e sim de um historiador, Charles-V. Langlois, que, no fim do século
historiográfica, recusando a' antiga "posição central do antropólogo ou do
passado, já propunha situar a história entre as grandes disciplinas sujeitas
historiador europeu", para o qual a sociedade indiana era apenas objeto,
. anal'ltlcas
. ,. IS . às "condições modernas do trabalho ci~ntífico" e exigindo o domínio das
sem com isso rejeitar sistematicamente as categorIas europems
"línguas habituais da clCncia (alemão, inglês, francês, italiano)". Na
A história "vista de baixo" pode assim servir para constituir uma identidade
realidade, a história não respondeu senão muito incompletamente a essa
intelectual, ou para afirmá-la diante da introdução de moàelos estrangeiros
expectativa, mas a circulação dos resultados não parou de crescer, e com
ameaçadores, como certos historiadores italianos denunciando a depen-
ela a confrontação das abordagens em relação às mesmas questões 21 • A
dência historiográfica de seu país em relação à França no Em dos anos 70 16•
difusão das grandes revistas históricas é uma boa prova disso.
Capaz de tradução ou de adaptação, a hi~tória "vista de baixo" não
Hoje em dia, as grandes revistas históricas, em inglês ou em fran-
se organizou em sistema. Ela pôde constituir o ponto de partida de outras
cês são lidas muito além de seus países de origem. Amplamente expor-
tad~s (30% dos números para o Joumal of Modenz History, 48% para as
formulações, autônomas, embora aparentadas. Na Itália, segundo C.
Ginzburg l7, a história "popular" surge a partir de uma reflexão muito
Annales, 55% para a Revue d'lzistoire modeme et cQlltemporaille, 70%
internacional, na qual se misturam as Allllales, a Iabour history inglesa,
para Past alld Presellt), elas são difundidas em sessenta a setenta países,
as ciências sociais, de Polanyi à "escola de Manchester", sem excluir
pelos cinco continentes. Contudo, sua presença permanece muito desigual
referências mais pessoais, como o populismo russo através dos romances
e, nas grandes linhas, manifesta o peso do ;nundo rico e desenvolvido na
de Tolstoi. Uma década de intensas discussões resulta na formulação do
produção - e no consumo - dos conhecimentos contemporâneos: a po-
paradigma micro-histórico. Na Alemanha, aAIltagsgesc/lic/lte (história da
breza de grande parte da África, e provavelmente das antigas democracias
vida de todos os dias) afirma-se desde meados dos anos 70; fortemente
populares do Leste da Europa, lhes impede quase completamente o
penetrada de antropologia, ela propõe uma abordagem qualitativa dos
acesso a publicações relativamente caras. Por outro lado, uma dezena
modos de vida e dos meios sociais, descrevendo as realidades materiais
de países - a América do Norte e a Europa ocidental - totalizam mais
no trabalho, em casa, durante o lazer, explorando as dimensões subjetivas
de 90% das assinaturas. Existem todavia, entre essl'!s grandes consumi-
da vivência U!. Esses estudos muito localizados chegam ao ponto de negar
dores de história, diferenças que revelam, entre outras coisas, maior ou
a possibilidade de modelos únicos de inteligibilidade: para A. Lüdtke, a
menor abertura para as correntes historiográficas estrangeiras: a França
noção weberiana de "burocracia", por exemplo, em sua exc.essiva abstração,
ou a Grã-Bretanha lêem relativa~ente pouco em língua estrangeira,
308 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 309 I

diferentes nisso da Itália, primeiro comprador das Annales Íora da França


e segundo comprador de Past and Present fora do mundo anglófono. Notas
Quanto ao Japão, parece proceder, em marcha forçada, para uma espécie 1 P. M. Kcnncdy, "The decline of nationalistic History in the West, 1900-1970",
de acumulação primitiva de capital historiográfico, sem que, por en- Joumal of COlltemporary History, 1973, pp. 77-100.
quanto, vejamos surgir algo disso tudo ...
2 I. Tyrrell, "Amcrican exccptionalism in an age of international history", Americall
Nos últimos trinta anos, um número considerável de novas revistas
lzistorical Review, XCVI, 1991, pp. 1031-1055.
históricas foram criadas, resultado de uma especialização cada vez mais
declarada das pesquisas (por exemplo, loumal of Sport History, 1974; 3 F. Braudel, L '/delltilé de la Frallce. Espace et histoirc, Paris, 1986, pp. 14, 20.
lournal of Family History, 1976; International Joumal of Oral HislOry,
1980; Storia della Storiografia, 1982; Law and History Review, 1983; 4 H. Kacble, "L'histoirc sociale cn Francc ct cn Allemagnc fédérale: de I'ignorance
cordiale aux nouvcaux dinlogues", Cahiers du Celllre de r~cherc"es ltisloriques,
Histoire et Mesure, 1986; Ristory and Anthropology, 1988; Gender and
n. 1, 1988, p. 36.
Ristory, Memory and History, 1989; Musica e Storia, 1993;' Histoire t
et
sociétés rurales [História c sociedades rurais], 1994...), da reivindicação S C. Charlc, "Ambassadeurs ou chcrchcurs? Les rclations internationales dcs profcsseurs
de uma história específica por parte de regiões ou países anteriormente de la Sorbonne sous 1:1 IIle République", Gelleses, ]4, 1994, pp. 42-62.
ignorados, ou dominados (loumal of Pacific Ristory, 1966; Judian
6 D. Coli, "Idealismo e marxismo nclla storiografia italiana degli anni '50 c '60",
Historical Review, 1974; Revue s':négaluise d'lzistoire, 1980). Um
in P. Rosc;i (ed.), La storiografia cOlllemporallea. Illdirizzi e problc!lni, Milão, 19:: 7 ,
paradigma universal, um ponto de vista único é menos possível do que
p. 39-58; A. M. Banti, "S/ode e microstorie: I'histoire sociale contemporaine cn
nunca. Mas essa fragmentação não provocou o surgimento de categorias Italic (1972-1989)", Gellcses, 3, 1991, p. 134-147.
radicalmente novas, incompatíveis com as precedentes. Sejam quais forem
o lugar e o objeto, a prática da história requer sempre o uso de métodos 7 R. J. Evans, "The new nation:1lisnl and the old history: perspectives on the West
e de procedimentos que, pelo essencial, foram aprimorados na Europa no Gerrnan Historikers/rcil", .Iormwl of Modem Hislory, UX, 1987, pp. 761-797.

decorrer do século XIX, no contato com uma experiência específica, e que


11 G. Eley, "De I'histoire sociale au 'tournant Iinguistique' dans I'historiographie
todos os historiadores reconhecem e adotam. O 'aparecimento de novos anglo-américaine des annécs 1980", Gellc:ses, 7, 1992, pp. 163-193.
domínios se efetua em diálogo constante com as grandes ;lfopostas
historiográficas, como as AlUlales, a antropologia anglo-saxônica, ou os Y Esta ausência de conexão é ainda mais interessnfltc porque Picrre Nora levanlou
trabalhos, mais recentes, de M. Foucault, quer se trate de criticá-los, de recentemente a questão da aplicabilidade dos "lugares de memória" fora do caSO
francês: Le Déba/, n. 78, 1994. '
integrá-los ou de ultrapassá-los.
Entretanto, cada uma dessas experiências recentes se apóia numa 111 E. P. Thompson, TIl(: Mokillg of lhe Ellglislz Horkillg C/asso Londres, 1963, lr:ld.
reivindicação forte: retomar o controle de uma história própria, pensada ital., Bari, 1969, tr~ld. fr. Paris, 1988; M. Bakhtin. Frollçois Rabc!lais el /a I..ullllrc!
através de categorias que não sejam estranhas às realidades estudadas. A poplIlaire ou Moyell Âge cf à /a Rellaissallce, Moscou, 1965; trad ingl., 1968, lr:ld.
recusa dos grandes universais históricos, a formulação de noções adap- fr., 1970.

tadas a realidades diferentes, o interesse declarado pelas situações locais


1/ Esta genealogia é dada por G. Rudé, La FOll/e dO/ls la Révolulioll Frallçaise, Paris,
e por seus contextos, paradoxalmente, não tornaram impossível. toda 1982 (ed. inglesa, Oxford, ]959), p. 18.
comparação: enquanto a história, agitada por suas crises, não pára de se
~stender dividindo-se, essas vozes novas acabam convergindo numa ampla 12 Entre as obras marcnntcs, E. Genovcse, Ro/l .I0Ti/all RoII, TIze World lhe s/,;".·es
e rica polifonia. Será que todas elas conseguem, com isso, fazer-se ouvir made, Nova Iorque, 1973.
de iguais para iguais?
13 C. Gluck, "The people in history: reccnt trends in Jap~lncsc hisloriography",JoIlTlla/
of Asiall SllIdies, XXXVIII, 1978, pp. 25-50.
'_.~~!

:1
31 O PASSADOS RECOMPOSTOS
l'i
:1
i! ~
:, 14 R. Guha, "On some aspCCIS of the historiography of colonial India", in Suba Item
slud;es. Wr;l;ttgs 011 Soutlr As;all His/ory alld Society, I, Dclhi, Oxford University DOIS
Press, 1982, p. 1; S. Sarkar, "nlC construction of hislory in modem India n , S/or;a
della S/oriografia, XIX, 1991, p. 61-72.
A Comunidade Científica Americana:
IS V. Das, "Suballern as perspeclive", in Suba/tem s/udies, VI, Delhi, 1989, p. 310- Um Risco de Desintegração?
324.
TIMOTIlY TACKETT
Ui C. Ginzburg,~ C. Poni, "11 nome e il come. Scambio ineguale c mercato storio-
gra fi co", Quademi s/orlei, XIV, 1979, p. 181-183.
Os historiadores americanos atuais vivem com inquietação o
17 Por exemplo, a introdução de C. Ginzburg, Le Fromagc ct lcs Vers_ Paris, 1980 progresso das especializações e o estabelecimento de compartimentações,
(edital. Turim, 1976). conseqüência 4e seu nLÍmero e da diversidade de suas especializações. A
história, como a "filosofia na/ural" da idade clássica, estaria dando à
li! Uma ap:-esenlação rápida de T. Nadau, "L'Alllagsgcsellicil'c", A eles de la, recherclle luz um novo leque de disciplinas?
e/I seiellccs socialcs, n. 83, 1990, p. 64-66; para uma discussão mais desenvolvida,
G. Eley, "Labor Hislory, Social History, AlltagsgcsclriclllC: Experience, Culture
and the Politics of the Everyday, a New Direction for German Social History?",
Em sua volumosa obra recente sobre os historiadores a~ericanos no
Jouma/ 0/ Modem History, LXI, 1989, p. 297-343. s~culo XX - livro apreciado tanto por suas anedotas picantes, e mesmo
escandalosas, sobre alguns professores famosos, quanto por sua análise
'9 S. Kott, "De I'histoirc sociale à I' Alltagsgesch;clrte. Entretien avec Alf Lüdtke", nuançada da vida intelectual - o historiador Peter Novick chega a uma
Gelleses, 3, 1991, p. 153. conclusão um tanto pessimista. Hoje em dia, escreve ele, "como comunidade
de discursos, como comunidade de pesquisadores unidos por objetos univer-
211 C.-V. Langlois c C. Scignobos, Illlro:!uctioll aux études his/oriques {llltrodução
aos estudos históricos}, Paris, 1898; reed. 1992, p. 57. sais, por normas universais, por objetivos universais, a disciplina da história
não existe mais" I. Em certa medida, segundo Novick, essa fragmentação
21 Um bom exemplo: E. Moradiellos, "Ultimas corrientes en historia", Historia da comunidade dos historiadores pode ser atribuída a uma discordância
social, n.16, 1993, p. 97-113. fundamental sobre os valores epistemológicos. Por isso, ele insiste muito
na grande confront<!ção, explícita ou implícita, que põe, um contra o outro,
os membros da profissão quanto ao "problema da objet.ividade". E todavia,
na opinião dele, esse processo de desagregação se prende também a outro
fenômeno, a uma verdadeira transformação de escala.
Com efeito, em quase todo lugar no mundo ocidental, a história
e a profissão de historiador vêm, há trinta anos, conhecendo um cres-
cimento absolutamente sem precedente, crescimento que pode modificar
;-
a própria natureza da profissão. Embora Peter Novick se abstenha, em
geral, de dar estatísticas, mesmo assim é revelador examinar algumas
cifras que indicam·a evolução da comunidade dos historiadores no decor-
rer destas últimas décadas: Com esse objetivo, escolhemos, a título de
exemplo, o ca~o que, evidentemente, conhecemos melhor, o dos Estados
Unidos. Mas se pode pensar que a evolução em muitos outros países é
mais ou menos semelhante.
~·_·'i.
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.
312 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 3 13
I

A medida de um crescimento j Deixando de lacÍó o problema das admissões e das promoções depois
J
de 1975, essa verdadeira explosão demográfica de historiadores, essa tr::ns-
Durante toda a primeira metade do século XX, o corpo dos \
formação dramática na escala da profissão - e na pirâmide das idades de seus
historiadores nos Estados Unidos aumenta bem devagar. O número de
membros - exerce sem dúvida uma influência sobre a maneira como se
membros da American Historical Association (ABA), na época a mais
concebe e como se pratica a história. Em primeiro lugar, o aumento do
importante sociedade profissional do país, passa de 2.700 em 1909 para
número de historiadores formados se associa estreitamente a uma alta prodi-
3.500 em 1939, e para 3.800 no fim da Segunda Guerra Mundial 2. A
giosa do número de publicações históricas. Essa alta, aliás, cresce ainda mais
profissão é aiimentada por uma reserva de jovens com diploma de Ph. D.
pela concorrência entre jovens candidatos, que lutam pelos empregos e pela
(doutorado), que varia entre 100 e 200 por ano, até o início dos anos 50 3 •
titularidade num "mercado de compradores" e num sistema de "publicar ou
Nesse mundo estável e relativamente pouco dinâmico, o paradigma
perecer", que reina nas universidades americanas. Assim, a produção anu::.l
dominante permanece o da história política e diplomática. É bem verdade
de livros de história foi multiplicada por dóis e meio, entre meados dos anos
que alguns jovens revolucionários dos anos 20 e' 30, influenciados por
50 e o fim dos anos 80: de menos de 2.000 até cerca de 7.000 obras por ar.o,
idéias vindas da Europa, preconizam uma Ncw History, relati,":i~ta~ um
por exemplo, sobre a história dos Estados Unidos e dos países da Améric~ s.
tanto esquerdista, inspirada nas ciências econômicas. Mas na época da
Com a explosão de novas revistas (como veremos a seguir), a produção de
Segunda Guerra ~,1undial e r.o começo da Guerra Fria, este pequeno grupo,
artigos se desenvolveu, provavelmente, ainda mais depressa. De resto, os
sempre minoritário, desaparece quase por completo diante: do triunfo de
.:scrito~ publicados nos próprios Estados Unidos representam apenas um a
uma "história de consenso" do tempo de Eiser.hower.
parte das obras de que um historiador profissional deve tomar conhecimento.
Tudo mudou radicalmente, no entanto, nas duas décadas que seguem
Com efeito, o crescimento da história e' dos historiadores verificado nos
o acesso de John Kennedy à presidência. A chegada aos estudos superiores
Estados Unidos também acontece em muitos outros países. Na França, per
da enorme geração do pós-guerra, a expansão econômica americana sem
exemplo, o número de historiadores titulados na Universidade passa de 302
precedentes, o impacto da corrida espacial sobre o sistema acadêmico - de
em 1963 para 966 em 1983, e para 1.155 em 1991; durante o mesmo período,
início sobre as ciências naturais, mas também, finalmente, sobre as outras
o número de livros e de artigos sobre a história da França aumenta, e pass:l
faculdades -, todas essas mudanças produzen~ um desenvolvimento
de cerca de 6.000 para 13.000 por ano 6. Os americanos, há muito tempo a
extraordinário das universidades americanas. Em vinte e cinco anos, o
par dos estudos que se f~~em na França e na Inglaterra - e fortemente
número de estudantes de todos os níveis nos ciclos superiores passa de 5
influenciados pela "escola das Anllales", que marcou toda uma geração -,
a 12 milhões, e o número de instituições universitárias atinge mais de
se sentem cada vez mais obrigados, segundo suas ,especialidades, a
2.700 4 • No mesmo período, o corpo de historiadores parece aumentar em
acompanhar a produção de novas escolas de história na Alemanha, na Itália,
progressão geométrica. Contam-se 5.700 membros da AHA em 1950,9.400
na Suécia, na Rússia, na Polônia, na Austrália, no Japão - para nos limitarmos
em 1960, 18.500 em 1970. Para satisfazer à demanda, as usinas de
a alguns dos países mais impo,rtantes. Pela força das coisas, e pelos limites
doutorados trabalham em tempo integral, tanto que o número anual de
do cérebro humano na apreensão e integração de informações, cada historiador
novos Ph. D. em história se quintuplica no espaço de vinte anos: de 200
se acha forçado a reduzir cada vez mais seu campo de visão, seu domínio
a 300 por ano nos anos 50, a 560 em 1965, 1.075 em 1970, 1.360 em 1973.
de competência. Se, em 1960, ainda se podia pedir aos estudantes de
Infelizmente para os jovens, a criação de novos cargos pára por volta de
doutorado que assimilassem o inteiro domínio da história dos Estados Unidos,
1975, e se manifesta uma crise de superpovoamento acadêmico em que
em 1990 tem-se dificuldade em fazê-los dominar um único aspecto desta
centenas de historiadores, homens e mulheres, ficam desempiCgados. Apesar
história - história social, histÓria intelectual - durante um único século, até
disso, no fim dos anos 80, a produção de doutorados se estabiliza num nível
mesmo durante algumas décadas. "Apenas um Fausto demente - escreve
mais ou menos constante de 600 a 700 por ano, cifra três vezes mais elevada
Bernard Bailyn da Universidade ~e Harvard - poderia pensar em ler mCSr:1O
que em meados do século.
uma parte desta literatura imensa que ,pro1·& Ilera sem fiIm "7 .
314 PASSADOS RECOMPOSTOS " Fronteiras 315

homossexuais, a alimentação, o trabalho, a cidade, a tecnologia, a educação, ,


A fragmentação da disciplina o livro, a cultura popular etc.; ou então estudos centrados em métodos e
Em ~egundo lugar, a produção de história em quantidade absoluta abordagens particulares: revistas de psico-história, de história e filosofia,
está estr:itamente ligada a uma multiplicação de novas abordagens, de de história e ciências sociais, de história oral, de história quantitativa, de
novos metodos, de novos gêneros de assuntos históricos. Por um lado, isto história econométrica, de "etno-história" etc. É a época em que surge toda
vem, provavelmente, do peso dos jovens no corpo de historiadores dos uma gama de histórias "novas": lhe new social history, lhe new ecollomic
anos 60 :e 70 - levando em conta a pirâmide das idades, devida aos history, lhe new cultural Izistory, e, enfim, uma primeira história
modelos de reprutamento da época - e da vitalidade e do espírito de verdadeiramente de esquerda, a "nova esquerda", nutrida com as idéias
inovação aí reinantes. Além do mais, numa profissão monopolizada marxistas - sobretudo na linha de Gramsci - e com o feminismo radical lU.
durante muito tempo por ambientes "WASP" - homens brancos de orioem Essa fragmentação da história nos Estados Unidos, essa descen-
~nglo-saxônica e protestante -, é o momento de um.a primeira penetr:ção tralização progressiva da profiss~o de historiado"r, nascida em parte de
Importante de mulheres e de grupos minoritários na comunidade (negros, um fenômeno demográfico, se revela bem na evolução da própria AHA.
hispânicos, italianos etc.). Esses recém-chegados contribuem, cer~ame~te, Ao longo dos anos 70 e 80, à medida que os estudiosos passam a se
par~ a~itar as idéias, para multiplicar os pontos de vista, e até para interessar pelas subdisciplinas históricas e por seus órgãos institucionais,

radIcalIzar um pouco algumas posições políticas. Mas, por outro lado
A ,
muitos abandonam totalmente a sociedade central. Entre 1969 e 1984,
mtervem também economias de escala. O aumento do estoque total de ou seja, em quinze anos, a AHA perde uns 40% de seus membros,
historiadores vai criar uma massa crítica de pesquisadores em toda uma cáindo assir.l de quase 19.000 a um pouco mais de 12.000. Durante o
série de especialidades novas. É a primeira vez que se encontram em mesmo período, o número de membros das sociedades especializadas
número suficiente para formarem novas associações e lançarem revistas atinge cerca de 100.000 11 •
especializadas. Com bases institucionalizadas desse gênero, conseguem Para certos historiadores, provavelmente saudosos de um período
desenvolver rapidamente seus métodos, sua linguagem, seu discurso passado - real ou imaginário - em que a profissão podia se apresentar
próprio e à parte. Com efeito, as décadas 60 e 70 tc..stemunham uma como uma comunidade unida, tendências desse gênero são deploráveis.
multiplicação extraordinária de "sub"disciplinas': históricas. Entre as WilIiam Bouwsma, historiador da Reforma protestante e presidente da
sociedades que se associam oficialmente à AHA, verificamos 13 esta- AHA em 1978, lamenta que "as especializações, em vez de unirem os
belecidas nos anos 50 - tanto quanto durante toda a primeira metade do pesquisadores numa comunidade geral de valores e de discursos, os
século -, 22 nos anos 60, 33 nos anos 70 8 • Quanto às novas revistas separam em pequ::1as igrejinhas seletas, muito limitadas em seus centros
americanas, a cronologia das fundações é semelhante. Se excluirmos as de interesse e em suas perspectivas". Thomas Bender, especialista dos
revistas de genealogia e de história local, verificamos que 12 foram Estados Unidos, descreve a história da década de 80 como "uma disciplina
lançadas nos anos 50, 37 nos anos 60, 52 nos anos 70 '.I. Muitas, é verdade seccionada em inumeráveis caixascompartimentadas ... onde cada
se interessam sobretudo pela história nacional e regional (estudos árabes: especialidade se desenvolve no isolamento ~ se vê liberada de toda
chineses, romenos, bálticos, eslavos, tibetanos etc.), ou pela história de obrigação de" se ligar a qualquer coisa fora dela mesma". Para Bcrnard
grupos" de imigrantes nos Estados Unidos (judeu-americanos, afro- Bailyn, americanista e, ele também, presidente da AHA (1981), "livros
americanos, asiático-americanos, ítalo-americanos, hispano-americanos e artigos caém do prelo e se amontoam... [e] a pesquisa histórica se
etc.) - assuntos, afinal de contas,- cujos métodos e perspectivas não diférem ramifica sem coordenação em cem direções ao mesmo tempo ... O que
muito da história dita "tradicional". Outras revistas, entretanto, se falta sobretudo, nesse fluxo de escritos, é .1 coerência" 12. Nos capítulos
consagram aos assuntos que, desde os anos 60, desenvolvem cada vez consagrados à época contemporânea, Petcr Novi.:;k insiste na diversidade
mais suas fontes, suas metodologias, seus vocabulários específicos: extraordinária de métodos. de linguagens, de suposições de basc que, na
estudos sobre a família, a criança, o camponês, as n~ulheres, os opinião dele, reduziria em migalhas o corpo dos historiadores. Para nos
316 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 317

limitarmos ao problema do jargão técnico, a leitura de uma análise deve desistir do esforço de fazê-lo. Aí também, não podemos encontrar'
histórica de demografia, de psico-história, de história econométrica, de paralelos com algumas ciências exatas - a física das partículas elemen-
dendrocronologia, do feminismo desconstrucionista poderia apresentar tares, a neurobiologia, a cosmologia, a geologia tectônica - que, todas,
problemas intimidantes e quase intransponíveis aos outsiders, aos lutaram recentemente ou continuam lutando com uma multiplicação de
historiadores não iniciados - sem falarmos no grande público. Tornar-se- dados e de teorias evidentemente contraditórias, e que, apesar de tudo,
ia quase iQ1possível escrever mesmo a simples resenha de um livro sem progridem com algum êxito para novas smteses , um'f'lcadoras?. , .
dominar o discurso obscuro e hermético do pequeno mundo de especia- Pedimos licença para acrescentar mais duas observações a pr~posIto
listas. O velho ideal do historiador generalista e humanista, homem da da mudança de escala da profissão de historiador, e da fragmentação da
Renascença, teria, pois,· desaparecido. história que poderia resultar. disso. Em primeiro lugar, a imagem da
história contemporânea seccionada em "caixas" isoladas não nos parece
Os desafios do presente muito satisfatória. Nos Estados Unidos, os historiadores sempre viveram
Devemos então desesperar do futuro da profissão de historiador, em dois mundos bastante compartimentados: os americanistas, de um
abalada pelas transformações que marcam a segunda metade do .século lado, e os especialistas da Europa e do resto do munào, de outro. Na
XX? Sem querermos negar as dificuldades reais, os desafios sein' prece- realidade, a criação de novas subdisciplinas históricas serviu freqüente-
dentes que o historiador deve enfrentar, cumpre dizer que não partilhamos mente pü:a enriquecer as perspectivas, criar laços e estabelecer um novo
de opiniões tão pessimistas. É evidente, a nosso ver, que é preciso aceitar sentimento de comunidade onde, anteÃormente, existia muito pouco.
esse crescimento e essa transformação de escala, não só como Assim, por exemplo, o estudo histórico dos camponeses, nascido na Fran?a,
irreversíveis, mas também, muitas vezes, como salutares. E verdade que mas rapidamente adotado pelos americanos, pode pôr em contato estreIto
os historiadores não podem mais se apresentar - mas alguma vez puderam especialistas da época colonial na América com os do Anden Ré~;'~,e
fazê-lo? - como uma comunidade unida e homogênea. Pode-se pensar que francês, do período imperial na Rússia, e do século XX no Sudeste da ~1U.
a história vai seguir, em certa medida, o desenvolvimento da "filosofia E poderíamos descobrir tendências semelhantes naquel.es que se dedIcüm
natural", que se vê dividida progressivamente, nos séculos XVII e XVIII, à história do trabalho, à história feminina, à história da feitiçaria etc. Neste
nas "subdisciplinas" da física, da astronomia, da química, da biologia etc, sentido, paradoxalmente, a "fragmentação" da história talvez tenha tornado
- subdisciplinas que, por sua vez, estão se ramificando mais no fim do o meio dos historiadores americanos menos compartimentado e mais aberto
século XX. Mas esse processo de especialização não será inevitável e para o mundo exterior do que antes.
necessário, se quisermos realmente progredir em nosso conhecimento do Em segundo lugar, parece que a força centrífuga, que domina a
passado, em vez de repetir e remanejar sempre as mesmas matérias, as história nas décadas de 60 e 70, vem se enfraquecendo sensivelmente há
mesmas narrações? É bem possível que, no tempo atual, a era das grandes alguns anos. Verifica-se, por exemplo, durante os anos 80, um claro
visões globais da história - à maneira de Arnold Toynbee, de Fernand declínio na criação de novas revistas e de novas sociedades históricas. Por
Braudel, de William McNeill - esteja acabacja. Tod~via, não devemos outro lado, é revelador o fato de que a revista americana que talvez tenha
esquecer que, nos úl.timos cento e cinqüenta anos, a historiografia tem exercido maior influência nos Estados Unidos nos últimos vinte anos, o
freqüentemente oscilado entre períodos obcecados pelos detalhes e Journal of bzterdisciplillary Studies, dedique um grande espaço à
períodos em que se aspira a sínteses mais amplas; entre a visão do catador possibilidade de encontros entre as diversas subdisciplinas históricas.
de trufas e a do paraquedista - para usar as imagens de Emmanuel Le Enfim, pode-se constatar há alguns anos uma baixa sensível no grau de
Roy Ladurie. Se a geração atual dos historiadores ainda se esforça por confiança - ou melhor na arrogância ou na 'lllbris - que certos adeptos
arrumar a colheita imensa de pesquisas juntadas durantr.- as três últimas de algumas subdisoiplinas exibem em relação aos outros historiadores.
décadas, se ela, até agora, nem sempre conseguiu encontrar "enredos" Por muito tempo, os que se chamam de "econometristas" estiveram
(plots), paradigmas que poderiam ligar matérias tão diversas, nem por isso convencidos de que, por meio da análise quantitativa informatizada, iriam
.... -- ...
_.'.·_·'. ·<?~'11;'.• 'f:..' .
.. : .
11 ~

!} 318 PASSADOS RECOMPOSTOS


Fronteiras 319
i

resolver, de maneira definitiva, todos - ou quase todos - os grandes ~, Mas devemos esperar que o futuro da história não se encontre em
problemas da história contemporânea. Aí, entretanto, o fracasso do livro estudos estreitos e em solipsismos desse gênero. Ninguém negará a
,J
de Robert Fogel e Stanley Engerman, Time 011 tire Cross, se demonstra ,I
J dificuldade da profissão de ~istoriador no limiar do século XXI. Com
t
decisivo. Trata-se de uma obra em que os dois econometristas se propõem efeito, a "comunidade" científica de antigamente não existe mais. Sem
a solucionar, uma vez por todas, a questão da economia da escravatura dúvida alguma, a enorme expansão do "território do historiador" (segundo
nos Estados Unidos. Mas, após um exame contundente empreendido pelos a expressão de Le Roy Ladurie), bem como sua tendência a se desmembrar,
melhores especialistas do país, descobrem-se erros fundame~tais do por vezes, em pequenos Estados quase autônomos, tornam a tarefa do
começo ao fim da obra: erros na transcrição dos dados, na interpretação pesquisador contemporâneo muito mais complicada, mais desordenada,
histórica dos fatos, na lógica do raciocínio, e até nos cálculos 13. Cada vez mais confusa. Em contrapartida, essa expansão também alargou e
mais, durante os anos 80, os estudiosos são forçados a reconhecer que enriqueceu enormemente nossa compreensão da textura e da diversidade
a história quantitativa não dispensa a crítica rigorosa de suas fontes e de da experiência humana. E por acaso tal resultado não vale o esforço?
seus métodos, e que, no fim de contas, ela produz raramente respostas
diretas. mas, antes, um novo tipo de documentos que é preciso, em
seguida, submeter à interpretação.
. t '
Notas
Infelizmente, no início da década de 90, certos historiadores I P. Novick, Tltat Noble Dream: Tlte "Objeetil';ty Questio/l" alld tlle Amerieall
pretendem tirar outra lição desse fato:: a saber, que é melhor renunciar Historical Professioll, Cambridge, 1988, p. 628.
totalmente à análise quantitativa e a todas as criações subdisciplinares da
2 Aqui, e no que segue, todas as cifras são tiradas do Amerieall Historieal Associatlo"
era precedente. Em suma, talvez o verdadeiro perigo para a história de
hoje não seja a fragmentação e a especialização das pesquisas históricas, AllIrual Report.
e sim, antes, a fuga, irracional e um tanto ingênua, de todas as abordagens 3 As cifras acerca do "úmero de doutor:ldos em história (cm todos os domínios) s50
e das perspectivas que se associam a essa especialização. Verifica-se o . tiradas da publicação anual Tlle Amerieall Doe/oral Dissertalioll.
crescimento de uma espécie de reação reaganista no seio da história,
reação que pretenderia, ao que parece, vol tar as ~ostas a um meio século 4 Baroll's Profile of Ameriean Colleges, 16e cd., Nova Iorque, 199], p. XII. Das
2.700 instituições de que se trata, 1.200, ditas COlIl/lIUllity eo/leges, só ministram
de aquisições históricas, aquisições ligadas, com ou sem razão, a
o primeiro ciclo. Poder-se-ia acrescent:lr os cerca de 600 institutos especializados,
ideologias de esquerda. Diante dos excessos evidentes de certos aspectos escolas de comércio, escolas independentes de direito, seminários etc., muitos dos
da "nova história" das décadas precedentes, e da tarefa considerável de quais incluem historiadores em suas faculdades.
tentar novas sínteses, opta-se por "jogar fora o neném com a água do
banho", e por voltar à história política e intelectual, tal como foi praticada S Cifras baseadas em Tlle AlI/lUal Reporl o[ the Librarlall of Congress, Washington,
ed. de 1948 a 1989. O AllIlual Report dá o número de livros cat~dogados pela
no século XIX. É um fenômeno que se pode observar nos Estados Unidos,
biblioteca do Congresso - depósito legal de todos os livros publicados nOS Estados
nos escritos da escola "neoconservadora" de Nova Iorque 14. Constata-se,
Unidos - nas séries E e F (história d:lS Américas).
além disso, a influência crescente, na história, do movimento "pós-
estruturalista", do qual alguns adeptos negariam a própria possibilidade 6 Ver D. Roche, "Les historiens aujourd'hui", Vingliellle Slecle, n. 12, 1986, pp. 3-20;
de se "conhecer" o passado ou de se compreender "fatos" objetivos fora C. Langlois e R. Chartier, "les historiens et I'organisation de la recherche", relat~rio
do espírito do historiador IS. Para os partidários mais extremos, a história redigido a pedido do diretor científico para as ciências humanas e sociais na Dircction
de la recherche et des éludes doclorales, s.elembro de 1991; Bibliographie ollllue/le
poderia se reduzir à a'nálise um tanto ~stéril de textos, ou' aos devaneios
de l'I,istoire de Frallce, Paris, Éditions du CNRS, ed. de 1960 a 1992.
profundamente subjetivos, quase poéticos e dificilmente compreensíveis,
que informam mais sobre o autor do escrito que sobre a condição humana 7 B. Bailyn, "The challenge or modern historiography", AmerieO/I Historleal Review,
e a experiência do passado. LXXXVII, 1982, p. 2.
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8 Cifras bae.~adas no Direclory ofAlfilioled Socielies, 1991-1992, editado pela
American Historical Association, Washington, 1991. Ao contrário, encontram-se
í. apenas oito sociedades novas nos anos 80. :1 TRÊS
:!

9 Cifras baseadas em J. Fyfe, I(islorical Joumal alld Seriais: Ali Allalylical Cuide, Um Mercado Mundial das Idéias:
Nova Iorque, 1988. Levei em conta apenas as revistas publicadas nos E.'i.lados
Unidos. o "Bicentenário" da Revoluçao
ANTOINE DE BAECQUE
J(J Ver principalmente J. Wiener, "Radical historians and the crisis in American
history", JOUf~1 oI Amer;colI Hislory, LXXVI, 1989-1990, pp. 399-434.

11 DireclOry of Affilialed Socielies, 1991-1992. Certos eventos, como o Bicentenário da Revolução Francesa e a
mobl1ização dos historiadores que o acompanhou, fazem emergir, da
12 W. Bouwsma, "Specialization, departmentalization, and the humanities",Americall
escala local à escala planetária, as redes de trabalho de uma comunidade
T.
Coullcil ofLeamed Socielies Newsleller, 36, primavera-verão 1985, p. 2; J3ender,
de estudiosos. Os deslocamentos incessantes de um historiador francês,
"Wholes and parts: the need for synthesis in American history",Joumal ofAmericall
Hislory, LXXIII, 1986, p. 18; Bailyn, artigo citado" pp. 2-3. M. Vovelle, revelam uma nova República das Letras, com seus espaços
plenos e suas casas vazias, situada diallte dos 'illteres.'\es nacionais e
13 Ver R. Fogel e S. Engerman, Time 011 l/te Cross. Tlle Ecollomics ofAmer;coll Negro políticos, que, a toda hora, ameaçam interferir em seu discurso.
Slavery, Boston, 1974; e P. David, H. Gutman, el ai., Reckullillg wilh Slavery,
Oxford, 1976.
Para uma comunidade de historiadores, a conjuntura comemorativa
14 Ver, por exemplo, G. Himmelfarh, Tlu~ New Hislory alld lhe OM, Cambridge, é uma grande oportunidade. Assim, o Bicentenário da Revolução Francesa
Massachusetts, 1987. multiplicou as ocasiões de encontros, de viagens, de publicações, a tal
ponto que se apresentou não só como um momento de mobilização
15 Ver, principalmente, P. Novlck, op. cit., pp. 543-546. intensa dos pesquisadores franceses, mas também como o da revelação
de uma verdadeira "internacional" de historiadores, comunidade atraves-
sada por tensões e rivalidades, mas agrupada em tomo de um centro de
interesse, e ligada por numerosas oportunidades de debates, ou por formas
de colaboração muito diversas. Michel Vovelle, secretário geral e em
seguida presidente da Comissão de Pesquisa Histórica para a Celebração
do Bicentenário da Revolução, foi colocado no centro desses encontros
internacionais, e levado, em virtude de sua missão e de suas aptidões para
"hist(\riador viaj:mte", a multiplicar os deslocamentos, percorrendo
colóquios, mesas-redondas, inaugurações e comemorações. Cerca de uma
I"
centena de viagens ao exterior se encadearam durante os dois anos mais
atarefados de sua missão, entre 1988 e 1989. Seguir os rastros de
semelhante périplo é reconstituir as redes da mobilização internacional
dos historiadores e descrever uma repartição do trabalho intelectual no
seio de uma comunidade de pesquisa, é revelar um estado dos lugares
da história estribado numa conjuntura política mundial perturbada e pintar
uma paisagem das curiosidades, das heranças e das novas tendências num
322 PASSADOS RECOMPOSTOS
I

momento historiograficamente sensível. Não é outro o objetivo deste das duas mãos os historiadores "estrangeiros" trab.:)lhando sobre o
artigo: propor o exemplo da internacionalização de um domínio de momento revolucionário, mas as interpretações contradit6rias que disso
pesquisa, e tentar avaliar-lhe as conseqüências e apreender-lhe os modos resultam marcam profundamente o debate dos anos 50, a tal ponto que
de organização int~rna. Michel Vovelle, no decurso de suas voltas ao uma das grandes disputas historiográficas francesas da década seguinte
mundo de avião, não comemorou apenas o evento; desenhou, muito _ as polêmicas que 9punham François Furet e D.enis Richet aos paladinos
geograficamente, os contornos de ema historiografia em plena expansão, da Sorbonne - é em grande parte herdada delas. Com efeito, é sempre
de uma historiografia doravante sujeita, queira ou não queira, à a questão da transição: histórica que se encontra no centro da disputa.
concorrência mundial das idéias. Marx frente a Tocqueville: interpretação marxista da "etapa burguesa"
entre feudalismo e capitalismo, baseada nas pesquisas agrárias e sociais
Uma historiografia abalada por sua expansão internacional dos alunos internacionais de Lefebvre; leituratocquevilliana da cultura
A pesquisa universitária sobre a história da Revolução se interna- política revolucionária, reencontrada por certos historiadores franceses,
cionalizou por etapas sucessivas. Entretanto, ela· nunca esteve totalmente graças ao intermediário das pesquisas americanas.
fechada em si mesma: as. repercussões do evento e sua cqndição de Durante os anos 70, a internacionalização da história revolucionária
modelo de fratura histórica sempre atraíram historiadores estrangeiros. experimenta uma mudança de escala: o imponente seminário de A1bert
Minzes, Loutchisky, Kareiev, primeiros desbravadore:; da história agrária Soboul, os "Sábados da Sorbonne", atrai numerosoS jovens pesquisadores
da Revolução bem nu início do século, foram C0l110 que os antepassados estrangeiros, enquanto a rápida ~radução inglesa - depois alemã e italiana
de uma comunida.le mundial de intercâmbio de idéias, seguidos, nos anos _ de Penser la Révolutioll [Pensar a Revolução] de Furet marca profunda-
50, no momento em que a cátedra de História da Revolução da Sorbonne mente as pesquisas anglo-s~xônicas. Assim, os historiadores franceses
tem o papel de farol em matéria historiográfica, pelos discípulos de recebem de volta do estrangeiro uma maneira nova de apreender o acon-
Georges Lefebvre. Assim, um grupo de pesquisadores trabalha ativamente tecimento revolucionário: nela, a leitura de Furet se impôs largamente, mas
em Paris, o australiano Rudé, o inglês Cobb, o norueguês Tonnesson, o a atenção dada aos arquivos, a minúcia da abordagem social e cultural
alemão Markov ou o japonês Takahashi, antes de ir ocupar postos de herdada das práticas de Lefebvre ou de Soboul encontraram também um
responsabilidade nas grandes faculdades de ~eus respectivos países, sólido ancoradouro. É esta ~íntese que faz hoje a força das escolas
criando sólidas tradições de pesquisas internacionais sobre a Revolução americanas ou italianas, entre pragmatismo de campo e interpretações
francesa. Paralelamente, em rivalidade ideológica, diante do que se poderia audaciosas: prodigalizar um "mais" de vida, mediante a carne e o sangue.
denominar uma "escola jacobina" dirigida na Sorbonne por Lefebvre e, arrancados dos arquivos e dos documentos, aos brilhantes conceitos
em seguida, por Soboul, aparecem nesses mesmos anos alguns pólos de propostos por François Furet e Mona Ozouf em sua "história crítica", cheia
de idéias, mas desprovida da matéria bruta, impura, misturada, que se
contradição reunidos em torno das equipes anglo-saxônicas de Cobban,
de Taylor ou de Palmer. O objeto dessas reflexões nascidas do olhar encontra em geral nas pastas de manuscritos ou nos dossiês de panfletos.
internacional pousado no acontecimento central da história da França é A reavaliação da história política, a elaboração de uma muito dinâmic~
de peso: que modelo de transição do "feudalismo" ao "capitalismo" a "história cultural da Revolução", mas também a eflorescência das
Revolução propõe ao mundo? Os historiadores dos países do Leste o lêem monografias locais ou urbanas, todos esses canteiros de trabalho estão, em
numa óptica marxista, os japoneses em função de sua própria experiência grande parte, ligados à internacionalização da pesquisa. A tal ponto que,
a despeito da rivalidade entre Michel Vovclle e François Furet, a despeito
de transição histórica, a era Meiji, ao passo que Cobb:m, Taylor e Palmer
relativizam o modelo francês, sublinhando-lhe o pequeno alcance social
j da ptesença de Mona Ozouf, as réplicas do palco intelectual do Bicentenário
ou integrando-o lio conceito muito mais vasto de "revolução atlântica". ,I foram, em grande parte, monopolizadas pelos atores estrangeiros: Robert
Darnton, Keith Baker, Colín Lucas, Lynn Hunt, Patrice Higonnet, impondo-
Como se vê, esta primeira ampliação internacional teve seu papel na
historiografia da Revolução: ainda se pode, é verdade, contar nos dedos
se~ nessa ocasião, na dianteira da historiografia revolucionária, os

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326 PASSADOS RECOMPOSTOS Fronteiras 327

pesquisadores alemães ou italianos, renovando nossa compreensão das que define os diferentes círculos da internacional dos historiadores do
imagens (Reichardt, Herding) e das práticas políticas (Lüsebrink, Viola, Bicentenário: 830 pesquisadores participaram de dois colóquios sobre a
Burstin), Simon Schama escrevendo o best-seller mundial do Bicentenário, Revolução, círculo dos "historiadores interessados" no acontecimento,
com suas centenas de milhares de Citizens vendidos através do mundo, correspondendo com bastante precisão ao número dos ouvintes inscritos
Steven Kaplan propondoAdieu 89, uma síntese sobre o próprio Bicentenário no congresso mundial de julho de 1989, que coroou a febre "coloquial"
considerado como acontecimento histórico, intelectual e político I. do Bicentenário; enfim, 170 apresentaram uma comunicação em mais de
Mais ainda, se se tenta "fotografar" a comunidade dos pesquisa- 5 colóquios, círculo que se pode identificar como um grupo de "trabalho"
dores, a pres~nça internacional salta literalmente aos olhos (cf. p. 308, sobre a Revolução, composto pela reunião do conjunto das equipes de
309). Reservei'para isso os sessenta grandes colóquios do Bicentenário, pesquisa revolucionária das universidades mundiais. "Galáxia",
os que, entre 1984 e 1989, reuniram mais de trinta comunicações, e viram "historiadores interessados", "círculo do trabalho sobre o acontecimento",
mais tarde suas atas publicadas. Chega-se aqu(a uma soma de 2.615 "núcleo dos porta-vozes", eis como se estrutura uma comunidade de
comunicações, verdadeiro "tesouro de guerra" do momento Bicenteqário. historiadores (seria preciso acrescentar, como último grau, os 3 ou 4
1.160 pesquisadores participaram desses colóquios, represeptAndo a "chefes de escola"), comunidade amplamente renovada nos últimos quinze
comunidade dos historiadores reunida pelo evento, comunidade no sentido anos por sua internacionalização. . o

mais amplo do termo, espécie de "galáxia" revolucionária abrangendo De certa maneira o Bicentenário coroou esse movimento, redistri-
tanto domínios estranhos à história (mas a interdisciplinaridade foi uma o buindo as problemáticas' e as especializações nu'ma área geográfica amplia-
das contribuições dos e!1coutros de 1989): literatura, história d.! arte, i da, largamente estruturada, todavia, pelos encontros e pelos objetivos
ciência política, ciência jurídica, como etapas cronológicas fugindo ao franco-americanos.
estrito período revolucionário: um bom número de historiadores da época
moderna ou contemporânea cruzaram o caminho de um ou vários 450.000 quilômetros pela Revo~ução
colóquios do Bicentenário. Na outra extremidade dessa corrente intelecual, Diante dessa comunidade repartida no globo, concentrada num
do lado da supermobilização e da hiperatividade "coloquial", cinqüenta trabalho intensivo, mas dividida pelas práticas, pelas condições e pela
e nove pesquisadores participaram de mais dG. dez grandes colóquios própria natureza desse trabalho (a história não se faz de modo idêntico nem
internacionais de história revolucionária entre 1984 e 1989. Trata-se aí encontra os mesmos ecos em todos esses países), calcula-se a necessidade
do núcleo duro da comunidade de historiadores, considerando-se também de uma ligação, de uma presença ao mesmo tempo singular e partilhada
que a maioria desses professores universitários, durante esse mesmo entre as diferentes regiões dessa geografia dos histori~dores. Michel Vovelle,
período, publicou um ou vários livros, participou das revistas, dos jornais, presidente da Comissão de pesquisa histórica do Bicentenário, tentou
dos ciclos de conferências, das exposições organizadas na ocasião. encarnar esse vínculo, essa presença. Tratava-se tanto de uma missão quanto
Essa comunidade de cerca de sessenta pesql1isadores - que seria de uma estratégia. Uma estratégia: já que Furet havia brilhantemente
necessário estudar também segundo outros parâmet:os (idade, furmação, anexado o domínio das interpretações do acontecimento, propondo, graças
especialização, carreira universitária) para poder estabelecer, i/l vivo, um a Pellser la Révolutioll e depois ao Dictiomzaire critique de la Révolutioll
apaixonante quadro sociológi~o e epistemológico de uma profissão muitas [Dicionário crítico da Revolução], uma espécie de "caixinha de pensa-
vezes discreta - essa comunidade é fortemente internacionalizada: 23 mentos" na qual cada um colhe com gratidão, VoveIle preferiu responder
franceses, 19 americanos, 4 italianos, 4 alemães, 2 ingleses, acompanhados nuin outro terreno, no "terreno", precisamente, isto é, a exploração de novas
de representantes de certos "pequenos países" de historiadores: Irlanda, fontes de arquivos (a imagem, particularmente), o interesse pelas novas
Israel, Espanha, Austrália, Canadá, Polônia e Países Baixos. Éntre a abordagens do acontecimento (as mentalidades, as práticas culturais, a
"galáxia" revolucionária e o "núcleo" da comunidade, se estabelece toda lexicologia, a análise de conteúdo, a cartografia geopolítica). O primeiro
uma gradação na mobilização, nos deslocamentos e nos encon.tros, gradação interpreta o acontecimento, invest~gando sem cessar a Revolução como um

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r· 328 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 329

meio de conhecimento do pensamento político moderno; o segundo o


esclarece, considerando a narrativa da Revolução (sob todas as suas formas:
impressa, figurada, discursiva) como o mais exemplar meio de
1
I
historiadofes, ligadas às vezes às lutas ideológicas, mas ainda mais
freqüentemente aos diferentes contextos nacionais. Por exemplo, os
j interlocutores de Michel Vovelle podiam ser muito diferentes de um simples
representação da história, atendendo à necessidade que os homens ponto de vista institucional (cf. quadro 1 p .... ): comitês nacionais agrupando
experimentam de "figurar" a política, de "fazer imagem" a partir de sua í
1 o corpo dos historiadores (como na França, nos Estados Unidos e, em geral,
história. Com isso, o poder de persuasão de um e de outro historiador é !
nos países do Leste), associações locais ou cívicas reunindo eruditos e
categoricamente oposto! pois a imaginação nascida de uma idéia e aquela , historiadores militantes (na Itália e na França particularmente), organismos
nascida de uma representação são profundamente diferentes. Assim, é universitários mais clássicos (como na Itália, na França, na Alemanha ou
evidente que as idéias de Furet circulam sozinhas, passando de um livro nos Estados Unidos), e mesmo academias ou institutos culturais franceses
para outro, retransmitidas de um historiador para outro, enquanto as no exterior. Do mesmo modo, muitas vezes, as especialidades de pesquisa
representações precisam sempre ser mostradas, comentadas, guiadas. (cf. quadro 2 p. 313) divergem totalmente de acordo com os diferentes
Vovelle se sentia obrigado a viajar, fazendo circular o conjunto de imagens lugares de recepção. Os historiadores de certos países (essencialmente
revolucionárias que ele estuda, assim como seu comentário, de um~ ~idade Estados Unidos, Itália, Alemanha) se têm orientado há muito tempo para
francesa para outra, de um país para outro. Seu poder de persuasão está assuntos propriamente ligados ao acontecimento revolucionário, traba-
ligado .. essa mediação. . lhando, do mesmo modo que os professores universitários franceses, sobre
A essa estratégia de comunicação direta s~ acrescenta um dever a política ou a cultura nascidas em 1789; outros, para dizer a verdade, na
missionário, uma obrigação sentida como cívica: visitar os múltiplos maioria dos países, só se orientam para as "repercussões" da Revolução em
lugares do Bicentenário (em matéria de historiografia, estes, como mostrei, sua própria área geográfica. É evidente que existe uma hierarquia dos
são muitas vezes internacionais) como um general-de-exército tem o dever interesses respectivos desses .trabalhos, mas cabe ao presidente de uma
absoluto de fazer o que se chama a "ronda dos ranchos". O projeto dessa comissão internacional de histonadores defini-la, com o risco de privilegiar
missão 2, estabelecido entre julho e setembro de 1983, esclarece que ela apenas os pesquisadores da Europa ocidental, desprezando os trabalhos da
deve se concentrar num papel incitativo: o encorajamento para "a "outra Europa". ou, mais ainda, dos países em desenvolvimento?
organização de comitês regionais e nacio!lais, a fim de dar à atividade de Enfim, as gerações coexistentes podem se opor com virulência em
pesquisa sobre a Revolução Francesa a amplitude internacional que deve alguns dos países visitados. Certas escolas, muito hierarquizadas, como na
ter", e num papel informativo: "Num empreendimento tão complexo por Europa central ou na Ásia, guardaram durante muito tempo o poder
sua amplitude internacional e sua articulação ao longo de cinco anos, de acadêmico nas 'mãos de alguns "dinossauros" extremamente marcados pelas
1984 a 1989, convém manter os diferentes parceiros em dia com as antigas disputas dos anos 50 e 60, ao passo que os his'toriadorcs mais jovens
iniciativas em curso e os projetos elaborados." As viagens de Michel procuram de preferência sair dessa .rivalidade um pouco arcaica, estrutura
Vovelle desempenharam este papel: garantir umapresença simbólica (abrir universitária ainda mais ultrapassada porque o Bicentenário se realizou
um colóquio, apresentar uma conferência, encerrar um simpósio), que numa conjuntura particularmente perturbada. A verdadeira comemoração
funcionou como um reconhecimento intelectual (cada manifestação visitada de 1789, foram as "des-revoluções" dos países ex-socialistas que a
é integrada na longa corrente das pesquisas ligadas ao Bicentenário), um ofereceram. Neste sentido, a tarefa do presidente da Comissão de Pesquisa
reconforto acadêmico (nem todos os esforços consagrados à elaboração de do' Bicentenário se complicou singularmente, embora se tornando mais
um colóquio permanecem vãos, já que o presidente da Comissão o confortou interessante: em certos países - na maioria, tal foi a repercussão dos
com sua presença), e um proselitismo cívico (fazer passar uma mensagem: acontecimentos do Leste europeu ou da China numa comunidade de
"Pa~a compreender a Revolução, é preciso amá-Ia" 3). historiadores que trabalhavam, entre outras coisas, sobre a Declaração dos
Essa tarefa era, sem dúvida, convencional, por vezes gratificante, e Direitos do Homem -, tratava-se de falar para pesquisadores repartidos não
no entanto árdua. Pois, as divisões não faltam no seio da int~rnacional dos somente dos dois lados de uma ruptura de geração, mas também de uma
330 PASSADOS RECOMPOSTOS
Fronteiras 331
fratura política. Ainda m.ais porque os primeiros contatos, feitos a partir de
1984, em período pré-perestroika, haviam proposto como interlocutores os
representantes mais conservadores das diferentes academias socialistas.
Tabela 1
Michel Vovelle evoca, assim, com certo júbilo, suas desavenças histórico- Organizadores de colóquios no mundo
diplomáticas com os diferentes comitês de historiadores russos, tchecos,
AdlnlniStr:l~Ú<.:s
poloneses ou romenos: como poupar os antigos representantes oficiais (às
Comitês do Inici:Uiv:u
Uni\'Crsldadcs Academias Associaç6cs
vezes ainda em seu posto em 1989), quando se sabe que são os jovens, ou 8iccntclÚrio Arqui\'OS
Pcc(citur:lS l':InicuJarcs
BibliotCClS
os que estão ~!egressando de um mais ou menos longo purgatório, que Mus(;us
lu:giõcs

carregam o futuro da pesquisa internacional? Outro caso de contraste,


't:!li:!
'2 36 10 , 1
bastante próximo, afinal de contas: os vetustos professores chineses ou (40%) (4S%) (12%) (12%) (1%)
,
coreanos que cercavam a tribuna de honra, onde ~ficiava o presidente da Esp:anha 13 2
c l'onug:zJ (86%) (13%)
Comissão de Pesquisa do Bicentenário, enquanto seus estudantes desfilavam
A1(''1n:lJ\lu li 6 2
lá fora, na rua, chocando-se violentamente com a polícia, ou perçoiri~ a OdJcnt:ll (S7%) (31%) (10%)
praça Tien An Men carregando uma faixa que proclamava: "O 1789 da P:úscs 17 17 8 3
China" ... Assim, rapidamente, o papel de Michel Vovelle, mola mestra de Socialisus (37%) (37%) (17%) (7%)

Escada;; 42 3 3
llina comunidade de historiadores sonhada como a mais ampla possível, foi
Unidos (87%) (7%) (7%)
gerir da melhor maneira possível essas oposições internas, essas rivalidades
América 16 4 3 I
de igrejinhas, essas disputas de escolas e esses acidentes que ocorriam num L:uin:a (66%) (16%) (12%) (4%)

terreno conjunturalmente instável. Como, de fato, falar aos historiadores,


respeitando cada uma de suas sensibilidades nacionais e promovendo, ao
mesmo tempo, um evento de alcance universal?
Tabela 2
Em direção a unla República unive~sal das Letras? Temas donlinantes (%)
Para responder a essa questão da fragmentação interna da
internacional dos historiadores da Revolução, Michel Vovelle não tentou AmériC:l AmériC:l Ási:!
colar os pedaços pela concentração dos saberes, mas escolheu seguir a
r I·..ris Pro\ince l'r:IIlÇl Europa
do r\one do Sul OI:L':Inia
ÁfriC:l 1bl:ll

dispersão das abordagens e fomentar a confrontação das experiências. HistÓltl polítiC:l l-f,5 12,1 12,7 14,6 30,7 .., 43 O lS,4

Neste sentido, o presidente da Comissão de Pesquisa do Bicentenário Din:itu 10,9 3," S.2 5.5 5,7 8 6 O 5,4

estimulou incessantemente a supermultiplicação dos colóquios: não mais J-listÓltl (.'CO(lÕ/l1iC:l 9.1
I 8,6 8,8 3.2 3.8 O O O S.2
apenas as sessenta grandes manifestações universitárias reunindo o mundo História cultur.d 21.11 17,9 18,8 13.7 28.8 4 O O 16,2
dos pesquisadores em torno de um núcleo central ultra-especializado, mas J-listÓli:l das lTICI'Ialidadcs 7,2 4.6 S,2 4,1 5.7 O G 11 4,7
uma "nebulosa extragaláctica" que, como esclarece o dicionário, figura Hlqór!:lmilit:lr 7,2 1,7 1,7 0,9 O O O 11 1,2
essa "enorme acumulação de estrelas e de matéria interestelar de dimensão
A Rt:\uluç'io c o mundo 20 9.8 12,2 36.6 13.4 76 37 66 26
comparável à da Via Láctea". No total, na França e no universo: mãis de
Hc:r:IIlÇlS da Rc\uluç:io 9.1 5.7 6,1 20,1 11.5 8 6 11 12,3
600 encontros universitários 4 - colóquios, mesas-redondas, ciclos de
Monogr.úl:ls 1,8 28,3 ~~I,9 O O O O O 9,1
conferências - que Vovelle percorreu pessoalmente por cerca da metade,
Dlugrafl:lS 1,8 8,1 6,S 0,9 O O O O 3,2
não mais viajante aguerrido, mas verdadeiro cosmonauta intergaláctico,
pode~do passar de um dia para outro do imenso simpósio californiano Intcrprt.'t:tçücs c debates I,!! O O..' O O O O O 0,2
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332 PASSADOS RECOMPOSTOS

agrupando todos os professores universitários americanos, a um pequeno


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1
1
Fronceiras 333

numerosos pesquisadores, e entre os melhores, assustaram-se diante de'


colóquio organizado pelo Comitê das Ciências Sociais da República semelhante monstro de heterogeneidade, irritaram-se diante dessas
Socialista do Vietnã em Hanói, do encontro oxfordiano dos trinta melhores comunicações excessivamente afastadas de suas preocupações, esqueceram,
especialistas internacionais, à mesa-redonda que introduz o estudo da com certo desprezo, de ir a certas sessões "em que não se aprende nada,
Revolução em Kampala, no Uganda. com exceção do bizarro e do supérfluo"s, lembrando abertamente com
Às vezes, muitas vezes, surge a pergunta: quul é a eficácia desses saudades as discussões mais pertinentes e mais especializadas da série dos
gestos? O presidente da Comissão não corre o risco, com essa atividade, três colóquios de Chicago, Oxford e Paris sobre The Freneh Revolution and
I não somente.de perder a saúde e grande parte de suas forças, mas também lhe Creation ofModem Politieal Culture [A Revolução Francesa e a criação

I
I
de ver sua ação se diluir num excesso de encontros muito diversos? O
próprio Vovelle tinha consciência da armadilha: "Em verdade, poderão
nos objetar que ara uma missão impossível c~nfrontar realidades tão
da cultura política moderna], organizada por Keith Baker, Colín Lucas e
François Furet. Entretanto, nada substituirá a "mistura" criada então na
Sorbonne, esses clarões "bizarros e supérfluos", que nasciam justamente da
diferentes como o colóquio realizado numa prefeitura francesa, .numa discordância dos pontos -de vista e das culturas, como se cada pesquisador
universidade turca ou chilena, o grande encontro multiforn;te' de um tivesse sido colocado diante de sua própria capacidade de operar uma
campus americano, a mesa redonda de uma universidade alemã ou de uma montagem analógica entre fragmentos heterogêneos ilustrando percepções
cidade italiana", mas tenta evitá-la numa resposta muito pessoal: "Naua, múltiplas da Revplução. A homogeneidade do pensamento fabrica brilhantes
nem mesmo a mais estimulante das discussões de especialistas, substituirá . especialistas; o heterogêneo faz curiosos historiadores. Em que fonte deve
para mim essa profus50 multiforn'e e multicult~ral, da qual eu tive a abeberar-se uma comunidade de pe~quisa?
alegria e o privilégio de poder participar como emissário d~ Bicentenário, Assim, graças a essas duas maneiras de praticar a discussão histórica
nos limites da força física de um só homem"s. Vovelle fez a opção de - o colóquio dos melhores especialistas ou o encontro de experiências
querer falar para todos, para o especialista como para o estudante, para muito diversas e por vezes muito incertas -, é possível distinguir duas
o historiador como para o simples cidadão-ouvinte, conseguindo estabe- concepções do que pode ser uma comunidade de historiadores, dois modos
lecer a passagem entre níveis de discurso muito diferentes, manter unidas de enfrentar a concorrência mundial das idéias e das representações. De
geografias e sensibilidades por vezes totalment<? opostas, explorar mais um lado, uma "comunidade de pensamentos", reunida em torno de um
a fundo a "paisagem-de-alma coletiva da corporação de todos os sistema de valores compartilhados, ainda que o debate tenda a ser vivo
historiadores diante do encontro histórico"6. Esse "todos" os historiadores e enriquecedor, agrupamento que só confia no iniciado, e tem como
é i::!portante: é aí que se decide o sucesso ou o fracasso da missão de objetivo aprofundar uma questão precisa. Do outro. lado, uma "nebulosa
Vovelle, nessa espécie de ambição desmedida de encontros fcita de uma de experiências", tentativa de harmonizar as figuras muito diversas
grande humildade diante da comunidade internacional. A única maneira nascidas de um mesmo acontecimento histórico em culturas e sensi-
de enriquecê-la, de integrar experiências insuspeitadas nas universidades bilidades heterogêneas, agrupflmento qlJe pede a mistura dos gêneros, das
ocidentais, consiste em falar de j~ual para igual, por cima (ou por baixo) formas, dos métodos, e toma como objetivo investigar amplamente, a
. das hierarquias acadêmicas, apesar de todos os desníveis imagináveis dos partir de um tema estimulante. A primeira dessas comunidades é um
saberes, com todos os historiadores. círculo toeqllcvilliallo, "espécie de pensamento abstrato difundido nas
:-
O encontro geral, fruto dessas viagens, dessa profusão e dessa sociedades dos literatos" 9: ela pensa a história da Revolução; a segunda
humildade diante do outro,. foi realizado de 6 a 12 de julho de 1989 ·:13 é uma galáxia hllgoana, "um ideal de fraternidade universal e literária
Sorborule: o Congresso Mundial do Bicentenário '. Foram 265 comunica- manifestando uma visão do mundo" 10: ela visualiza a Revolução graças
ções, mais de 700 ouvintes inscritos; mais da metade dos quais provenientes a imagens múltiplas. É verdade que a fórmula ideal da comunidade
dessa nebulosa internacional de contornos às vezes bastante incertos. O internacional dos historiadores deveria reunir essas duas maneiras, o
funcionamento geral do congresso, bem-entendido, se ressentiu disso: "clube de pensamentos" de Franço~s Furet e a "internacional estilhaçada"

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de Michel Vovelle: especialistas que se alimentariam da mistura das
abordagens da história, uma espécie de República das Letras que aspiraria 1
à igualdade universal de todos os seus republicanos.
f
i BIBLIOGRAFIAS,
!,
Notas
J S. Kaplan, Adieu 89, Paris, Fayard, 1993.

2 Bulletill de la COllllllissioll lIa/iollale de reclterclte Itis/orique pour le Bicelltellaire


de la Révolutioll Frallçaise, n. 2, junho de 1985, Ed. do CNRS, pp. I-VIII.

3 Le MOllde de la Révo/ulioll Frallçaise, n. 1, janei ro de 1989, p. 29.

4 Les Colloques du Bicell/ellaire. Réper/oire des rellcOIl/res sciell/ifiqucf ,ia/iollales


ct illlematiollllles, apresentado por M. Vovelle com a colaboração de D. Le Monnier,
Paris, La Découverte/lHRF, 1991 (esta obra comporta, pp. III-XLI, um estudo
muito preciso de Michel VoveJle sobre a "sociabilidade coloquial").

5 Les Colloques du IJicclllellaire, op. cit., p. Xl.

li Les Co/loqlles du Bicell/ellaire, op. cit., p. IV.

7 L'lmage de la Révolll/ioll Frallçaise, atas do Congresso Mundial do Bicentenário


da Revolução Francesa, julho de 1989, M. Vovelle (ed.), Oxford, Pergamon Press,
1989, 4 vol., 2709 pp.

K Relato aqui fielmente uma reflexão ouvida em julho de 1989.

'I A. de Tocqueville, L 'Allciell Régime el la Révollltioll, Paris, GaJlimard, 1967, p. 230.

10 G. Rosa, "La République universelle. paroles et actes de Victor Hugo", in M.


Vovelle (dir.), Révolutioll el Répub/ique: ['exceptioll jrallçaise, Atas do colóquio
de Paris I, 21-26 de setembro de 1992, Paris, Éd. Kimé, 1994, pp. 649-663.

:-
' ....

Os "clássicos" da história no século XX


. Não é o caso, aqüi, de pôr no Panteão historiadores mas de conservar na memó-
ria obras que, em escala internacional, marcaram durável e profundamente o trabalho de
historiadores. Essa escolha não almeja, portanto,'nem uma utópica exaustão, nem uma
impossível imparcialidade. Não foram escolhidas, por exemplo, diversas obras de gran-
de importância, cujo impacto permanece, no entanto, limitado a um domínio circunscri-
to ou a um país. Não se deve esquecer, em suma, que, na pesquisa' histórica é muitas
vezes por intermédio de simples artigos que importantes inovações são introduzidas. Tal
qual, essa breve bibliografia visa somente evocar um percurso historiográfico que ultra-
passa amplamente as fronteiras do hexágono francês. Em sua concisão, as escolhas po-
I i.
derão parecer arbitrárias: em razão dos limites desse volume, elas implicavam necessa-
riamente inúmeras exclusões. Esses "clássicos" que resistiram ao tempo foram, todos
eles, publicados antes do início dos anos 1980.

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Sobre a "revolução documental", a reflexão fundamental encontra-se no artigo de J. Le


Ao lado das obras de historiudores, um certo número de livros influenciou Goff, "Documento/Monumento", in Ellciclopedia Eillaudi, l. v, Turim, 1978, p. 38-48.
consideravelmente o modo de pensar e de praticar simultaneamente a história e sua escri-
ta: a obra de Karl Marx, mesmo se a referência pode daqui pra frente parecer ultrapassa- Sobre a abertura do campo das ciências "auxiliares", um ponto de partida cômodo é dado
da, foi decisiva na evolução da pesquisa histórica durante nosso século. A fraca influên- em M. Balard (ed.), L'Histoire médiévale ell Frallce. Bi/all et perspeclives, Paris, Lc
cia do sociólogo alemão Max Weber na França é sem dúvida uma exceção no panorama Seuil, 1991 (especialmente p. 471-499), cuja bibliografia de orientação é complementada
internacional. Ao lado da obra de Michel Foucault e das discussões que ela suscitou, é em Bibliograplzie de I' /ristoire ",édiévale ell France (1965-1990), Paris, Publicações da
preciso também assinalar os trabalhos de mitologia comparada de Georges Dumézil e os Sorbonnc, 1992 (especialmente p. 405-435). Pode-se acrescentar, no que concerne às
de sociologia de Pierre Bourdieu, os do antropólogo italiano Ernesto De Martino, os da disciplinas particulares, a nova edição, ampliada do Trai/ê d'Izéraldiqlle de M. Pastoureau,
poJitológola americana Hannah Arendt, e estes, traduzidos tardiamente na França, do Paris, Picard, 1993 c os volumcs, em vias de publicação, da coleção "L'ateJier du
sociólogo alemão Norberl Elias. médieviste"/Turnhout, Brepols; publicados em 1993-1994: J. Berlioz (dir.),/delltifier
sourccs et citations; O. Guyotjeannin, J. Pycke e B. M. Tock, Diplolllalique médiévale.

Complementando o artigo: "A ascese do texto lJll o retomo às fOlltes"

Primeira abordagem:
M. Balard (ed.), L 'Histoire médiévale en Frallce. Bi/cm el perspec/ives, Paris, Le Seuil,
199] (passim).
~":,r,,
342 PASSADOS RECOMPOSTOS "I' Bibliografias 343

t Complemelttalldo o artigo: "A arte da Ilarrativa histórica"


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dossiê "Hayden's While Metahistory twenty ycars later".
Le Médiéviste et /'Ordillaleur (publication de I'IRHT), principalmente n. 28,1993), Os
CO-ROM. t '
C omp/cmelltalldo o artigo: "A violência das multidões:
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Complemelltando o artigo: liA história qualltitativa aillda é necessária?"
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(As duas obras pioneiras do fundador da tradição quantitativa francesa; C.E. L:1brousse Barrows, Miroirs déformallts. R~flexiofts SI/r la foulc: ell {-'rallce à {a fill c/u XIX siech:,
definiu as regras metodológicas pam o uso do número que continuam sendo válidas para Paris, Aubier, 1990.
muitas delas hoje.) .
D. Crouzet, Les Guerriers de Dieu, La v;olellce ali femps eles troubles de religioll. \'ers
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(Essa obra, escrita por um dos historiadores que aparelharam os setores mais diversos da
disciplina, dá uma boa visão da história quantitativa na França depois de C.E. L:1brousse.) A. Corbin, Le l''illage dc:s call1libales, Paris, Aubicr, 1990. ,

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Toda a obra de R. Fogel, prêmio Nobel de Economia, 1993, poderia ser citada tanto ela
se identifica li New Economic History, a seus sucessos assim como a seus fracassos; Complemc:waJulo () artigo: .. Mullleresll/O III C:/Is: /111/0 tluestilo s:tl)\'ersiva"
essa obra que ele dirigiu dá uma visão da variedade dos trabalhos realizados nesse
domínio. Bridcnthal ct C. Koonz (ed.), lJecomillg Visible. 11011/(:'11 in Europe.al/,S.ociefY, Boslon:
Houohton Miflin. 22 cd., 1987. (ConlrilNJiu para criar o campo da 11IstOfla das mulheres
P. D. McClelland, Causal Explaltatiolt altd Model Rui/diltg ill History Ecollomics alld na E~ropa e s~f\'iu de obra de base nas univcrsidades americanas.)
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(Um dos melhores livros de reOexão sobre a modelização em história e as questões G. Calvi (ed.). Rarocco aI Femmillile, Bari, Latcrza, 1992. (Belo exemplo de micro-
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Hisloire el Mesure, número especial "Séries temporelles", ]99], 1/2. P. de Boekhors!. P. Burke, W. Fri,ihoff, C/I/wur e/l Maotsc:lwppij 11/, .\'ed~rIQl/({, 1500-
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Um panomma variado sobre o uso, em história, das técnicas de análise das,séries temporais. que constituiu uma história social nova.)
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Oxford and New York, Oxford University Press, 1985. (Explora os registros da crimina-
/idade para expor o "duplo standard".) .
Complemelltalldo o artigo: "A memória viva dos lzistoriadores"
B. Taylor, Eve alld the NewJerusalem. Socialism alld Femillism in lhe Nilleleellllz Celllury,
Londres, Virago, 1983. (Considerada na Inglaterra como um clássico que relaciona a As obras de Pierre Vilar:
história de classes e a história das mulheres.)
Histoire de /'Espag/le, colo "Que sais-je 7", Paris, PUF, 1947, 125 p. (traduções em
W. ScoU, Gender alld lhe Polilics of Hislory, Columbi,a, New York,~1988. (Elabora alemão, inglês, catalão, coreano, grego, espanhol, húngaro, italiano, japonês, holandês,
uma teoria do gênero que influenciou muito o desenvolvimento da historiografia ame- polonês, português.)
ricana.)
La Cataloglle dalls l'Europe modeme. Recherc/res sur les fOlldemellts éCOlzomiques eles
H. Wunder, "Er iSI die SOlU', Sie ist der MOlld". Frauell ill der Frühell Neuzeil, Beck, slruc/ures I/aliol/ales, Paris. SEVPEN, 1962,3 vol., reed., Lc Sycomore-Éd. de I' EHESS,
Munique, 1992. (História de mulheres alemãs durante a época moderna, cuja tradução é 1982 (traduções em catalão c em espanhol).
esperada em todas as línguas européias.)
Or et mOllllOie dans l'histoire, /450-/920, cal. "Science", Paris, Flammarion, 1974, 440
p. (traduções em alemão. inglês, espanhol e português).
Complementalldo o arligo liA arqueologw lia cOllquisla da cidade"
Ulle histo"ire ell cOllstructioll. Approclle marxiste et problématiques cOlljOllcturelles, cal.
Para uma orientação geral: "Haules Etudes", Paris, Gallimard-Le Seuil, 1982,428 p. (Coletânea de artigos que reto-
ma, entre outros, as grandes discussões e os debates maiores.)
Helghway, Tire Erosioll ofHistory, Archaeology ol/d Plallllillg ill TOIVIlS. A Sludy ofHistoric
TowIls Alfected by Modem Developmettt i:: Ellglond, Wales alld Scotlalld, Londres, 1972. La GlIerre d'Espaglle (1956-1939), col. "Que sais-je ,?", Paris, PUF, 1986, 125 p. (tradu·
ções em ca,alão, espanhol. português, alemão, italiano.).
H. Galinié (dir.), dossiê "L'archéologie urbaine", Les NOlll'elles de I'arclléologie, 1979.
Os numerosos trabalhos de Pierre Vilar foram reunidos em diversos livros, publicados
M. O. H. Carver, UndemcathEllglislz TOWIlS, Illterpretillg UrballA rcllOcology, Londres, 1987. em espanho ou catalão:

Para exemplos precisos, remetemos à série dos Documel/ts d'él'olualioll du patrimoille Crecimiellto y desarol/o. Ecollomia e Historia. Reflexiolles sobre el caso espaliol, Bar-
arclré%gique urbaill, Centre national archéologie urbaine, Tours. Dentre as últimas celona, Ariel, 1964,542 p.
publicações:
Assaigs sobre la Catalzlllya dei segle XVIII, Barcelona, Curial, 1973.
Comte, J. Siraudeau, AlIgers, 1990.
IlIiciació" ai l'ocabulario dd análisis histórico, Barcelona, Critica, 1980, 311 p.
P. Demolon, Douai, 1990.
Hidalgos, amoli"ados y gucrrilleJ'os. Plleblo J' poderes en la historia de EspOlia, Barce-
O. Guilhot, C. Goy, Besallçoll, 1990. lona, Critica, 1982, 315 p.

A. de Montjoye, Grelloble, 1990. Estai, nadó, socialisme. ESlUdis sobre ef caso espanyo/, Barcelona, Curial, 1982.
:-
C. Sintes, Arles, 1990. Ecollomía, Derec"~, Historia, Barcelona, Ariel, 1983.

P. Poulle, Saim-Amalld-Molltrolld, 1991. Sobre 1936 y olros escritos. Madri, Ediciones VOSA, 1987.

P. Brunella, Metz, 1992. Uma bibliogr:lfia completa de seus trabalhos consta no final da coletânea:

F. Delacampagne, Bayeux, 1992. Homellatge a Pierre Vi/ar, Barcelona, Curial Edicions Catahtnes, 1990, 111, p. 203-219.

"l~ \ME2.i"'''
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1:-
i' ':j"": Bibliografias 347
1
época contemporânea, publicou Pt',êlres el paroisses au pays du Curé d'Ars (Ediçõ~s do
Cerf, 1987) e, em colaboração com Jacques Nassif, Mar/i" /' arclrallge (Gallimard, 1985);
1, com Jean Boutier, dirigiu o volume sobreLes Sociélés poliliqltes doAllas de la Révolutioll
. frallçaise (Edições do EHESS, 1992).
Biografia dos autores

Simolla Cerutti
Alltoille de Baecqlle
Mestre de conferências na École des hautes études en sciences sociales, publicou La
Mestre ~e conferências na Universidade de Saint-Quentin-en Yvelines, contribuiu para a Vi/le et les Métiers. Naissallce d'ulllallgage corporalif, Turim, séculos XVII-XVII r (Edi-
renovaçao .das questões relativas à Revolução Francesa, especialmente no domínio cul- ções do EHESS, 1990) que renova a análise dos grupos sociais no espaço urbano.
tural. PublJco,u,.ent.re out~os, La Caricature révo/utiolll,aire (Presses do CNRS, 1988) e
Le Corps de I_Justo/re. M~tapJlOres ~t ,?0liti1l1e, 1770-1800 (Calmann-Lévy, 1993). Mem-
bro da redaçao dos CaJuers du Cmema, e também autor de uma importante Histoire Pascal EIIgel
d'lIItc revlle: les Calriers du Cilléma, 1?51-1981 (Les C~hiers du Cinéma, 2 vol., 1991).
Professor de filosofia na universidade de Caen e membro do Institut universitaire de
France. Especialista em filosofia da linguagem, da lógica, do espírito e de filosofia ana-
Frallçois Bédaric/a lítica, traduziu diversas obras de filósofos americanos e publicou especialmente La Norme
du vrai (Gallimard, 1989), États d'esprit (Alinea, 1992; 2~ ed., La Découverte, 1994) e
Diretor de pesquisa no CNRS, foi .0 p!"imeiro diretor do Institut d'histoire du temps présent Davidsoll et la Plrilosop/rie du lallgage (PUF, 1994).
do CNR.S. d~ 1978 ~ 19?D' e ~ntnbulU amplamente, por seu impulso e seus escritos, a dar
u~ma legitimidade clentlfica a esse campo de pesquisas. Especialista em história contempo-
ranea da França e da Inglaterra (La Société allgfaise du XIX siecle à 1I0S jours Paris Étielllle Fra"çois
A,'th?ud, 1976, ree~.~f:c Seuil, 1990, Sylldicals ef palrolls ell Cram/e-Bretaglle, ~ition~
ouvneres,_ 1980), dirigIU, numerosas obras coletivas sobre a França contemporânea (em Professor da Universidade de Paris I e atu.almente diretor do Centro Marc Bloch (Centro
cO,la?oraçao com Jean-Plerre Azéma, La FI'OIlce des OIl11ées Iloil'es, Le Seuil, 1993; Le franco-alemão de pesquisas de ciências sociais) de Berlim, depois de ter sido responsá-
Regime de Vicl,y el fes Frallçais, Fayard, 1992), Fez parte d:\ comissão de historiadores vel pela Missão histórica francesa do Gõttingen. Especialista em história dos países
q,U!!, ~ob a direção de Renê Rémond, analisou o caso de Paul Touvier: Paul Touvier et gennânicos Ila época moderna, acaba de publicar Prolestanls ct catlro/iqlles ell A llemaglle.
I Eglrse (Fayard, 1992), belo exemplo de investigação de história do tempo presente. /delllités et pluralisme à Augsbotlrg, 1648-1806 (Albin-Michel, J9~3).

Domilliqlle Bome
Hellri Calilli,:
~enomado professor de P:emic~e superior (penúltima s6rie do 21! grau) no liceu Henri IV,
Inspe!or,g~ral da Educaçao nacional, decano du grupo história e geografia, especialista Diretor de pesquisa no CNRS, fundou e dirigiu o Centre national d'archéologie urbaine
em hlstona da França contemporânea. Publicou Pctits Bourgeois ell révolte ? Le do ministério da Cultura (1984-1992) Está preparando com Manuel Royo um Atlas de
mouvemelll p'0ujade (Flammarion, 1977), Histoire de la sociéléfrallçaise depuis 1945 la Frallce des vil/es.
(Armand Colm, 1992) e, em colaboração com Henri Dubief, La C,.ise des allllées trellle:
1929-1938 (Le Seuil, 1989).
JeOlr-Louis Gau/in

Jeall BOtllier Antigo membro da Ecole Française de Roma, depois leitor na Universidade de Bolonha. Mestre
de conferências de história da Idade Média na Universidade Lumicre-Lyon. Suas pesquisas
~e~tre de c~~ferências na École des h,autes études en sciences sociales (Centre de la o põem em contato com manuscritos e documentos de arquivos. Autor de tese sobre Pielro de
':'Iellle C,h?nte, Marselha). Membro da Ecole française de Roma, é especialista em histó- °
Crescelrzi e Nascimento da agrollomia /la Ilá/ia (sécs. XII e XIV), assim como anigos sobre
na d,a Itaha moderna. Seus trabalhos dizem respeito também à França revolucionária: a história da cultura agronõmica no Ocidente medieval. Publicou, em colaboração, Dalla vi/e aI
p~bllcou C~/!,pag"es ell émois (Treignac, Les Monédicres, 2 i ed., 1989) e, em colabora- villo. FOllt; e prob/em; del/a vitivi/licultura italialla medievale (Bolonha, CI ueb, ] 994).
çao com Phlhppe Boutry, o volumeSociélés politiqllcs doAtlas de la Ué"O/Ulioll frallçaise
(Edições do EHESS, 1992~. '
Jeall-Yves Crellie,.

Plrilippe IJotttry Encarregado de pesquisa no CNRS, é diretor de redação da revista AllIw/es, Iristoire,
sciellces socia/es. Especial ista em história econômica do período pré-industrial e de história
Professor de história contemporânea na Universidade Paris XII, co-diretor do Centro de do pensamento econômico, p~blicou Séries écollomiques fra!,çaises, XVI-XVIII siecles
antropologia religiosa européia (EHESS). Especialista em história religiosa e cultural da (Edições do EH ESS, 1985) e está preparando uma obra sobre L 'Ecollomie d'AIlciell Régime.
J48 PASSADOS RECO,\!POSTOS

Bibliografias 349
Olivi(}o,~, Guyotjemmill
obra do Atlas de la Révollltioll frallçaisc (Pa ris, Edições do EHESS); publicou Le
ArUi?o /l,l cmbro da Ecolc fran ca isc de ROlll ~ ,
a
'i
Ill edr,evars na Ecole des C h:Jrt;es, Publicou c ,,~rofessor de dlplom~tica c de arquivís tica Callw licisme GU [éminil/, Les cOlIgrégmiolls frall çaises ti slIpericure gél/éra/c ali XIX
si'::c/c (Ediçõc s do CERF, 1984),La Caricatll re cOllfrc-rél'olllliOlllwire ( Preses du CNRS,
/a sc/gnc/lric épiscOpllle au IlOrd d/l TOy l~l~~P/lS cf comes: aflirl/latioll et déc/ill de
(Genebra ; Or02 1987) P a - t /:1' aU~lIel c 'rallce, JJcllllvais _NoYOII X - vIII _-- / 19S8) e com François Laplanche, La Scicllce cafholiqlle (Cerf, 1992) ,
" .J /Ir u:rre
d arnento),ulllvOlull1edos" /- _ //'0 I~COIIcf A1/q _/ (L' II ' .1\ l/ec es
- :Jrrn:lItan, 1986 2 f ediç:ioc
./lrC/fI'CS(e cc/del/tm'l"' I V ' ' fl1:Jn _
e , em coJabomciiocom JJcqccs Pyck B _ , Cl /Cl'a , -À V siJc/es (Fayard J 99')
(T ,·
um lOu t, I3répols, 1993).
e e e llorl- r\'lrchc l Ti k . '.
oc , lJm;!f)'/I/om(ftiquemà liévale
- Marc La:mr

Professor d;) Un ive rsid:Jde Pari s X - Nantt!rre e do Institut d ' étudcs politiqucs de Paris,
Membro do Comitê de redação d:J revi sta COllllllllllislIIC, publicou recentemente, em co-
Fran çois Harlog labor;)ç50 com Stéphane Cou n ois, Cil/qual/le aus tI'III1C passiO// [rançais e, De Galll/e ef
~ireto,r de es tudos n;1 École des h: J u ' . /es COlIIl/1l1lÚSlCS (Ball:Jnd, 1991) e t.'/a ÊsOIIS rouges. Les partis comlllullisteslrnllçais e f
hl sto n ograria 'lIl1 iga e rnodern·~ . ' u~S, eludes erl Sctences sociales, tfab:llh3 COm i!aliel1s de la libéra/iol/ ti fiOS jours (Aubief, 1992),
Le, A~ i~~ir d'J-/érodofe , Essai ~ur la
cou
représelllation de /'atare (Gallirn;:;rd r J 9t
dCColI/all('t!s(PU~
ó ,
1988) • • O) e Lc ).l). Slcc/eel /'J-/istoire ,~I c cas /''II.WC /
Fatrick Nerho/

Professor de filosofia do direilO I.b Universidade de Ferrara ( lt:íIia), antigo professor do


Heil/z-GL"rlzard J-/aupl Instituto uni\'ersit;í rio europeu (fl o rença), ele concerll r:1 suas pesquisas na epislclllologi:'l
do direito. Diri g iu d U:J s obras co le tiva s Lall~ In terpreta/iol/ (//1(1 Reali/y. Essays in
Di re~or do IIl,S,li~u{ d'Histoire da
Univers id;lde de I , '. . ,
Epistemology. Hermellelltics mui Jllrispnuleflce (Kluwcr Acadcnlic Publishers, 1990) t.:
r rofe~s~r da ..... Il Jversidc1c dt.: Lyoll
/I e do I r 1.I.Jle \~I ~t7Illberg (Alell\:lnha): ,IJltj"o
eSP7 c /:JIJSla cm história social da Fran a ~IS !tu to ull.rversJI:mo europcu (f/orença), é l;;n .Legal KnolVledge mui AI/alogy. Frngm cnts 01 Epis/emology, h.:rm cllclI/ics am! Ungllistic
socI,a/c dc la Fran cc depuis 1789 fo i Ir;d
de I HOIllJlJe (1993).
,?;
AleJJl,!J~h? ,:olllcmpor;í ne:Js , SU<l Histoire
' uzr a pelas Edlçoes de la Maisol1 dcs Sci ences
( Kluwer AC:Jdemic Pu bli shers , !991). Publicou reCe nlel"cnte V/li; JIIrit il /g, Mcanillg,
/\11 Es,wy il/ Legfll l·/crlllclleu /ics ( Edinburgh UniversilY j· [CSS, 1992); Diriuo, S/orir/.
Saggiodi[i/osofia dei diriUo ( P:ídu:J, Cedam, 1994); L '/potesi perduta del/a Ic:gge (P~{ba .
Cedam, 1994) c " L1 vérité en hi sto ire ctlc rnétier d'historien", em Q/wdemi [ior':l/fil/i
(número cspeciJI março-abril 1995) .
O/fllel/ /fI/fiou
Proressor do Instituto universit;írio euro)' , .
de ~·Iarv;!rd onde dirigiu o WOlll en 's SllIdle~Up(F~o rença), ex-pr?fessora d:'l Universidade
)acqucs Revel
n,~ epoc:J moderna,'1 que consagrou d ivers:Js oro",r~rn. ~peCJ al l. s t:1 e m históri:J da Franç:J
/:"/~!lfeel/tlt . CCIltIllJ' Frm/cc (Oxford, 1 97~) , br~s .e ;~rlJ~~5, prrr,! c ip~llllel1 t e TI/c POO/· of Diretor de estudos Jl:J ÉcoJc des Im Jtes éludes en scicnces soci:J Jes, e membro do comité de
socw l da drrerenci,lc;!o dos papéis sexu:J. , rJ1ter.es.c:.I_se.1 partrr d:J 1 mais pela história dircç:io da revista AII/wles, Iristoire, sciel/ccs sociale,\'. PlIblicou, em colaboraç:io com Arlcllc
Farge, /40giques de la foule. L 'aflllire des cll/evCIIICmS d'cl/fall/s, Paris, 1750 (Hachel!c, 19S8)
al/d Ilt e Limits o[ Ci;izcllShip ill tlte Frel:~~; /c!s.po.;c/raJ,lller(lI~ em seu últim o livro : !Voll/ e ;'
C!'O 1111011 l oro/lto, 199 1). e co-dirigiu, com André 13urguierc, I'Histoire de la Frfll/CC (Le Seull, 4 \'01., 1989-1993),

DOllliniq/lc Julio Manllel Noyo


Diretor de pesqu is:Js /la CNRS (e _
I t· , en tro de pesqurs:J . I " ' . Ant igo membro da École fran çaise de Ro mc, mestre de conrerénci:Js em arqueolog ia-
ns rtulo unlversi/á rio e urope u (Flo re ' . . , s lIstO fJ c:Js), :JllIigo professor do
educ;I Ç;io na época moderna p '_I· nç:J), e~peCJ Jrrsla em história rc/ioiosa e hisIO -,-" d histó ria da arte na Un ive rsid:Jde I'rançois. Rabcl ai s de Tours . Arqueólogo, p:lfti cipa da
I /1 ' '. uU IÇOUcspec ral ment l 7" '" .. :J escavaç:io do Palatino em ROm a. Editou, com F. Hiu:Jrd, ROI/1fo!, I'espace IIrbaill ct SeS
~ a evo/lllion (Paris, Berlim 198 I) , e _ Jes ro/s Cou/eurs dll tableau 1I0ir.
Lc C li' , c , cm col.lbor:Jc·lo co M - M - reprt!se /J/(I(iolls, Pres.c:es de la Sorbonne-Maison dcs Sciences de la ViJle (Tours, 199 1) .
s o eges [rmlçais (XVI-X\ffll " I , ) 2 •" J.1I ane· adeleine Compere
1984 c 1988) . Diri'-'iu o vol"", c E~/fX ~s vo lul\Jes ( P:ms, Edili ons do CNRS . INI'I,' Prepara eom I-/enri G:J !inié um Atlas de la Francc des villes.
(I)" '"
'!fIS, Edi ções do EI-/ESS, 1988).
- lIselgl/el/lell/ I , I' A /
(c
/
, li as (e la Rél'o/II/ioll [ra l/çaisc
' ,

1Imothy Tac/..-et/

Claude Lallg /ois Professo r da Univcrsid<ldc da Ca lifórni a ( Irvin c, USA), é c speci alis t:! em his tó ri:J da
D- Franç a na époc:J mode rna. Seus Ir:lbalhos sobre o cl e~o, no rin a l do An ti go Regim e,
rre~or de estudos na École pratique des hau tes • . Pricst am! Paris" il/ Eig/rteellflr-Cell/ury F/'atrce (Princclon University Press , 1977) e
c ade rra de história e socioloo i:J do C:Jlol' . • ctudes (SCÇ;IO d:Js ciên c ias reHoiosas
nos primó rd ios d;1 Revoluç:io, La Révollltioll, I'L'glise, la Frmr ce ( P:lris, Edições do
GOR 1095 História do cristi~l;islllo '(X~~~~~o c:olltelllpor;l ll ~o) e dirc tor, /lO C NRS, d~
seculos), co-dlfJ"e co n, Sc rge D - a Cerr, 1986), con tri buíram <lmplalllenlc para re nova r:!s ól bo rdage ns cl:íssicas. Est:í prepn-
o , Onrn,
rando uma obra sobre os primó rdi os da Assembléia constitui nle .
"''):1

~l
1"
tF 350 PASSADOS RECOMPOSTOS
;1

" Pierre Vi/lIr

Antigo professor da Sorbonne e ex-diretor de estudos na École des hautes études cn sciences
sociales, publicou em 1962 seu livro-mestre, La Cataloglle! (/alls I'Espagllt! ",oderne (3
volumes, Paris, SEVPEN; rced., O Sycomore-EHESS, 1982). Especialista em história eco-
nômica, Pierre Vilar é um estudioso dos instrumentos conceituais do ofício de historiador
a partir de uma leitura a fundo da obra de Marx, o que o levou a questionar tanto as elabo-
rações de Louis Althusser como as de Michel Foucault. A coletânea de seus artigos
metodológicos foi publicada com o título Histoire marxisle, Histoire ell cOllstruclioll.
Approclze marxisle el problémaliques cOlljollc(urelles (Paris, Gallimard-Le Seuil, 1982).

ArUlldhali Virmalli
: \1
~estre de conferências da Universidade de Délhi, especialista em história da França c da
India contemporâneas. Colaborou para uma Hisloirede l'Europe (Délhi, 1985, em hindu)
e prepara uma obra sobre Le Drapeau de l'Unioll, Symboles politiqlles e/ idell/i/és
/la/iollales dalls 1'/IIde cOlllemporaille. l .

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