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2020v13n26p498
O historiador e o sociólogo:
Nicolau Sevcenko e Sergio
Miceli
Introdução
“díptico”.
O percurso através dos nexos aproximando o trabalho dos dois intelectuais,
o diálogo entre eles, é, portanto, examinado de forma direta no exemplar
anotado de Nacional estrangeiro, nas citações e nas resenhas assinaladas; e,
indiretamente, de maneira contextual, nas abordagens ao redor de “objetos”
de interesse similares. Entre eles, cabe destacar a intelectualidade brasileira
da primeira metade do século XX, principalmente encarnada em escritores
e artistas, quer como individualidades ou sujeitos pertencentes a grupos ou
Artigos
alguns de seus trabalhos mais conhecidos são o citado livro Orfeu extático na
metrópole e a organização do terceiro volume da coleção História da vida privada
no Brasil (1998), dirigida por Fernando Moraes. Em um capítulo desta (A capital
irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio), trata das transformações urbanas,
sociais e culturais no Rio de Janeiro dos anos 20 e, naquele, de problemática
semelhante em relação a São Paulo.
Já Sergio Miceli graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Católica
do Rio de Janeiro (1967), obtendo mestrado na área pela Universidade de
São Paulo (1971) e doutorado, também em sociologia, simultaneamente pela
École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde foi élève de Pierre Bourdieu,
e pela Universidade de São Paulo (1978). Atualmente, é professor titular de
sociologia na mesma instituição. Seu mestrado gerou a publicação do livro A
noite da madrinha, voltado ao estudo da cultura televisiva, sob a inspiração da
semiologia. Já o doutorado deu origem ao livro Intelectuais e classe dirigente no
Brasil 1920-1945, de 1979, considerado um clássico no tema das relações entre
a classe intelectual e as elites no Brasil. Antes dele, já havia aparecido Poder,
sexo e letras (1977) que trata, assim, do mesmo período do primeiro livro de
Nicolau Sevcenko e Sergio Miceli
Camada esta que seria representada por alguns escritores da época, nomes
como Coelho Neto, Olegário Mariano e Afrânio Peixoto. O segundo grupo seria
constituído pelos “derrotados” ou ratés, por oposição aos primeiros, divididos,
por sua vez, entre resignados e combativos – cujos representantes máximos
poderiam ser Cruz e Sousa, de um lado, e Lima Barreto, de outro. Não obstante,
se o sucesso dos primeiros “repousava sobre um perfeito ajustamento aos gostos
e anseios do público6, daí suas temáticas cediças e sua linguagem aparatosa”
(SEVCENKO, 2003b, p. 132); o segundo grupo, “na busca permanente de um
alívio para sua situação, oscilaria entre o anseio de fruir do mecenato e o desejo
de exercer tutela, por mais contraditórios que possam parecer à primeira vista”
(SEVCENKO, 2003b, p. 135)7. Em suma, retomando as colocações do historiador
Nicolau Sevcenko e Sergio Miceli
pares: “alguns grandes senhores o honraram com seus elogios, alguns homens
de letras o rasgaram. Aqueles enxergaram nele apenas um orgulho estimável,
e os outros, apenas uma vaidade revoltante” (D’ALEMBERT apud BADINTER,
2007a, p. 83). Ao que poderia ser acrescentado: orgulho inútil diante da realidade
Ricardo Rocha
panorama francês do debate história social versus história das ideias, observa:
O historiador e o sociólogo:
socioeconômica antes disso. Acho que essa inovação veio para ficar e
hoje em dia é o modo como se articula o debate no campo da História
Social, com uma História Social enraizada no contexto urbano
(KANASIRO; HIRANO, 2012, p. 1) 14.
A seguir, com agudeza, através daquilo que chama de exposição das “regras
perversas”, Nicolau Sevcenko percebe o livro (proposta metodológica) de Sergio
Miceli como
instrumento decisivo para reorientar a compreensão do movimento
Ricardo Rocha
trabalhos de feição expressionista dos últimos anos de sua longa estadia alemã”
(MICELI, 2003a, p. 157)18. Tudo se passa como se houvesse certa inversão de
papéis. É possível, como sugerido antes, que Nicolau Sevcenko tenha sido
beneficiado pelo debate ao redor de Intelectuais e classe dirigente no Brasil 1920-
Ricardo Rocha
no caso da pintura a situação era ainda mais circunscrita aos círculos de consumo
da elite, em um ambiente restrito aos salões de arte e uma crítica insipiente
na imprensa (VERÍSSIMO, 2001). Em suma, a opinião pública interessava
pouco, restando ao artista agradar/ confrontar os críticos de plantão ou apelar
diretamente para o patrono ou mecenas.
Voltando à resenha, Nicolau Sevcenko encerra comentando, nesse sentido,
sobre o padrão de filantropia das “notabilidades” do mecenato paulista,
destacando, através da única citação direta, aquele que Sergio Miceli chama de
“príncipe do patronato artístico”, Freitas Valle, ato falho impresso como Freitas
Nobre.
Não seria o caso de insistir em sutilezas do argumento de Miceli, comparados
ao de Orfeu extático na metrópole, como quando assinala que, em quadros como
Homem com cachorro, Léger abriria mão do “léxico expressivo e geometrizante,
ou melhor, desistia do fingimento imagético cubista, de sua veemência
imaginativa” e, no parágrafo seguinte: “as ‘paisagens animadas’ abdicavam dos
poderes da pintura, reivindicados pelo cubismo, no sentido de um universo de
representação que pretendia contradizer a experiência” (MICELI, 2003a, p. 11).
Cabe, entretanto, lembrar sua arguta observação de que
Nicolau Sevcenko e Sergio Miceli
O historiador e o sociólogo:
Em outras palavras, “os grandes artistas não têm pátria” tampouco uma
linguagem intransigente, mormente quando desejosos de serem “vencedores”
no mercado de arte internacional.
Artigos
Um exemplar anotado
única citação direta utilizada na resenha publicada pela Folha de São Paulo e
O historiador e o sociólogo:
movimento.
Mas eu não os vejo assim, porque me formei olhando-os na rua,
nas fotografias de jornal, nas salas, no noticiário e na referência
viva de terceiros (CANDIDO apud MICELI, 2001, p. 73).
Considerações Finais
segue a resenha A república dos mandarins escrita por Nicolau Sevcenko, ambos
em 2001, e o aparecimento de Nacional estrangeiro, do sociólogo, em 2003, o
O historiador e o sociólogo:
pretensão científica, ainda que só consiga lograr tal rendimento tentando dizer
O historiador e o sociólogo:
num registro no qual não se diz nada por completo” (MICELI, 2001, p. 76-77).
De qualquer forma, como nota Daniel Roche, “os universos do criador e de
seus receptores não são separáveis e não se pode reduzi-los a uma só definição
ideológica” (ROCHE, 2012, p. 18). Não obstante, talvez seja possível falar,
Ricardo Rocha
Referências
18 abr. 2020.
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MICELI, Sergio. [Mensagem e-mail]. Destinatário: Ricardo Rocha. [S. l.], 20 nov.
2017. 1 mensagem eletrônica.
ROCHE, Daniel. Histoire des idées, histoire sociale: l’exemple français. Revue d’
histoire moderne & contemporaine, Paris, n. 59-4 bis, p. 9 - 28, 2012. Disponível
Artigos
em: https://www.cairn.info/revue-d-histoire-moderne-et-contemporaine-
2012-5-page-9.htm. Acesso em: 18 abr.2020.
SEVCENKO, Nicolau. A república dos mandarins. Folha de São Paulo, São Paulo,
24 jun. 2001. Caderno Mais. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
Notas
1
Doutor em História da Arquitetura (2006). Professor Associado na Universidade Federal
de Santa Maria.
2
Agradeço a Sergio Miceli por seus comentários e críticas sobre as primeiras versões
Ricardo Rocha
deste texto (cf. ROCHA, 2018). O título remete à Le sociologue et l’historien, entrevista
publicada de Pierre Bourdieu (2017) por Roger Chartier.
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Explora-se aqui, portanto, um conjunto diversificado de fontes, trabalhando-se desde
resenhas até um exemplar anotado de livro, cuja dedicatória e anotações revelam ou
documentam o diálogo sugerido. Um tratamento sistemático do assunto aparece em
Rocha ([2020], no prelo), que oferece um panorama mais amplo sobre os temas da
recepção de uma obra em um determinado grupo ou “comunidade de sentido” (e sua
“livre” interpretação pelo leitor), a circulação e a apropriação das ideias, as sociabilidades
e redes de colaboração entre intelectuais diversos etc.
Depoimento ao autor por e-mail em 08 jul. 2017.
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Artigos
5
O inverso acontecendo na “bibliografia sumária” do texto Intelectuais brasileiros
incluído em Sergio Miceli (2001).
E esse público, provavelmente, incluía patronos e mecenas.
6
7
Para Elisabeth Badinter – ver comentários adiante – no tempo de Luís XV “o escritor,
não raro sem posses, continua a sonhar com um mecenas que haverá de convidá-lo à
sua mesa e oferecer-lhe uma renda e proteção em troca de dedicatórias à sua glória”
(BADINTER, 2007a, p. 11).
8
Basta ler a frase de Sevcenko “os homens de talento sentiam-se unanimemente repelidos
e postos de lado em favor de aventureiros, oportunistas e arrivistas sem escrúpulos”
(SEVCENKO, 2003b, p. 109) paralelamente à de Badinter “a ausência de competência
intelectual desses juízes mundanos torna-os cegos aos verdadeiros gênios, inclinando-
os para os talentos medíocres” (BADINTER, 2007a, p. 80) – ou ainda com Lima Barreto
citado por Sevcenko, “fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a
seleção das mediocridades” (SEVCENKO, 2003a, p. 207).
9
“Os intelectuais têm, entretanto, perfeita razão, penso eu, de se apartarem do campo
onde a pretexto de patriotismo e outras coisas práticas em ismo, se manipulam todas as
transações, se preparam todas as capitulações de consciência, se aparelham e acomodam
todos os interesses, que constituem o fundo da vida política moderna. Os que lho
censuram confundem grosseiramente política, eleições, jornalismo, briga por empregos
e posições, o parlamentarismo com todas as suas mentiras, as ficções desmoralizadas
do constitucionalismo, com os altos interesses humanos e sociais, quando nada há de
comum entre uns e outros” (VERÍSSIMO apud SEVCENKO, 2003b, p. 112).
10
Apesar de seu ecletismo intelectual, Lima Barreto, por exemplo, era leitor, entre outros,
de Voltaire e Condorcet (SEVCENKO, 2003b, p. 195). Nessa direção, pode-se indagar
como entender os eventuais (novos) usos dados por um leitor brasileiro do século XX
aos escritos de pensadores do século XVIII – o que chamo em outro lugar de “ampliação”
de uma comunidade de sentido (ROCHA, [2020], no prelo). Ou como propõe Christophe
Nicolau Sevcenko e Sergio Miceli
Charle (2018) “certas realidades trans-históricas denominadas ‘intelectuais’” (p. 89) que
estabeleceriam “laços” entre, por exemplo, um pensador do século XX como Bourdieu
O historiador e o sociólogo:
11
Segundo Elisabeth Badinter , “no começo do século XVIII, a aristocracia manifestava um
desprezo feroz pelo conhecimento. Entretanto, a Academia de Ciências, contrariamente a
Academia Francesa (de letras), só aceitava membros por suas competências profissionais.
O ingresso nesta instituição se transformou, com efeito, em um instrumento de promoção
inesperado e, assim, em cenário das ambições da elite intelectual francesa. Isso explica o
grande número de intelectuais de origem modesta” (BADINTER, 2007b).
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No sentido de atividades relegadas ao segundo plano na estrutura de classes e gêneros.
Talvez seja possível entender essa aproximação ao “feminino” como sexualidade
masculina reprimida ou, pelo menos, sublimada. Como propõe Elisabeth Badinter, “no
começo deste século [XVIII, esses] personagens haviam herdado a tradição religiosa do
Artigos
trabalho intelectual exercido em conventos e claustros. Era uma época em que o homem
que se dedicava a reflexão não podia compartir essa atividade com uma vida de família,
arriscando perder o respeito dos pares. O matrimônio e até a sexualidade eram muito
mal vistos. […]. É realmente impressionante o número de ‘filósofos’ que não tinham
nenhum tipo de vida sexual […]: D’Alembert tinha fama de impotente, a sexualidade de
Voltaire era bem modesta, o mesmo com Rousseau” (BADINTER, 2007b).
O interesse de Bourdieu (1967) pelo “campo intelectual” e o “poder criador”, bem como
13
de Bourdieu.
17
Em Imagens negociadas, Sergio Miceli já falaria de “autonomia com que se impõe o
trabalho artístico e intelectual” (MICELI, 1996, p. 15) ou na contribuição exclusiva das
obras visuais “irredutível aos termos de balizamento impostos pelos praticantes dos
demais gêneros” (MICELI, 1996, p. 21).
Este trecho aparece grifado no exemplar de Nacional estrangeiro anotado por Nicolau
18
Sevcenko.
19
O que o autor irá denominar como uma estratégia calculada para “romper com esse
monopólio letrado de definir o valor dos demais produtores de cultura” (MICELI, 1996,
p. 21).
Nicolau Sevcenko e Sergio Miceli
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José Veríssimo apontava que, em 1890, apenas 14 ou 15% da população brasileira sabia
ler (apud SEVCENKO, 2003a, p. 110).
O historiador e o sociólogo:
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O método prosopográfico comentado por Miceli em Biografia e cooptação (o estado
atual das fontes para a história social e política das elites no Brasil), de 1980, republicado
em Sergio Miceli (2001).
Ricardo Rocha
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Em outra entrevista, Sevecenko assumirá claramente a influência de sua experiência
de vida em seu trabalho: “Em geral me volto para temas que me tocam intimamente e
àqueles em condições equiparáveis à minha, que tenham a ver com um modo bastante
peculiar de inserção na sociedade brasileira, de migrantes ou imigrantes, de classe
subalterna, de periferias remotas, de culturas exóticas, sobretudo com um forte substrato
de oralidade”; ou, em outra passagem, “Minha preocupação era, sobretudo, tentar
entender como se manifestava a imaginação de grupos excluídos, como a condição de
estar numa posição excêntrica e na posição de excluído acentuava a dimensão crítica
da imaginação e, portanto, trazia um elemento de contribuição, de colaboração para
uma reconfiguração muito mais radical da sociedade”. (KANASIRO; HIRANO, 2012).
Em direção semelhante, indica-se a leitura do final da entrevista de Sergio Miceli (2019,
Artigos
p. 422), citada na nota 15, onde o sociólogo menciona a importância de seu tio materno
no estabelecimento de sua ligação com o mundo intelectual, diante da “decadência”
familiar: “como não havia mais recursos disponíveis, me vi arrastado aos estudos e ao
vislumbre de uma carreira que não sabia bem como ia se viabilizar”.
Embora não trate de Machado de Assis, a frase dá bem a medida da alternativa
24
machadiana.