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04/11/2023, 13:04 Gramsci

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Euclides e Rosa entre sociologia e literatura


M. C. Leonel & J. A. Segatto - Setembro 2007

Introdução

Questões derivadas das peculiaridades da literatura e da história ou da distinção entre ficção e ciência
continuam não só recorrentes como muitas permanecem sem solução, levando a indagações e gerando
controvérsias teóricas e analíticas. Exemplo disso é o fato de o livro-ensaio de Euclides da Cunha, Os
sertões, ser considerado, ao longo do tempo, pela crítica, como obra de literatura e de, posteriormente, o
romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa ser lido como ensaio.

Entendemos que o exame desse problema é não só relevante como oportuno. Nesse sentido, buscamos
recontar e/ou expor, na sua historicidade, como, de um lado, o primeiro foi consagrado com o status de
obra compósita, pertencendo, ao mesmo tempo, ao campo da literatura, da história e da ciência -
caracterização inaugurada por José Veríssimo, logo após seu lançamento em 1902, e que se tornou moeda
corrente e cânon quase inquestionável, sobrevivendo por mais de um século. De outro lado, intenta-se
investigar como a narrativa rosiana passou a ser vista e analisada, por uma determinada vertente da crítica -
sobretudo a mais recente - como romance-ensaio, estudo ou retrato dos sertanejos despossuídos e das
relações de poder no Brasil. Essa indistinção, paradoxal, entre história e literatura, ciência e ficção requer
análise e problematização, objetivando compreender tal embaralhamento de gêneros.

1. Os sertões como obra literária

Recentemente, em 2002, quando das comemorações do centenário de Os sertões, publicado em 1902, a


tônica geral das análises da crítica foi a manutenção, praticamente intacta, do cânon consagrado há muito
que tem como chave da leitura da obra de Euclides da Cunha a idéia de que se trata de um texto híbrido de
literatura/ficção e ciência. Imbuído dessa concepção, Roberto Ventura (2002, p. 24) considera que

Os Sertões é uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a ciência, ao unir a
perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção literária, marcada pelo
fatalismo trágico e por uma visão romântica da natureza.

Com viés um pouco diverso, mas na mesma direção, Leopoldo M. Bernucci (2002, p. 12 e 15), embora de
modo menos categórico, afirma:

[...] mesmo estando em terreno etnográfico em que predominam normalmente as descrições e


análises, Euclides usou matrizes ficcionais que vieram muito a calhar [...]. A incorporação de
materiais extraídos de fontes ficcionais combinados com os das fontes históricas, científicas e
jornalísticas faz de Os sertões a primeira grande obra verdadeiramente canibalesca de nossa
literatura [...]. A exemplo de Tucídides, será o consórcio entre arte, exatidão e o tom sincero do
narrador que modelará Os sertões como história ao gosto do Romantismo.

Esse tipo de caracterização do livro de Euclides da Cunha é bastante antigo e foi, como dito, proposto
inicialmente por José Veríssimo com a publicação de seu artigo-resenha, no jornal Correio da Manhã, em
três de dezembro de 1902. Nele, o crítico interpretou Os sertões como uma obra de ciência, história e
literatura, asseverando que

[...] é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um etnógrafo; de um


homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de
sentimento, um poeta, um romancista, um artista [...] (VERÍSSIMO, 1977, p. 45).

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No mesmo dia, por carta, Euclides - que trabalhava em Lorena no estado de São Paulo - responde às
observações de Veríssimo, considerando que o "consórcio entre ciência e arte" era a "tendência mais
elevada do pensamento" e que o trabalho literário exigiria o registro científico; alega, ainda, que o "escritor
do futuro" deveria ser um "polígrafo" e que seria necessária a criação de uma "tecnografia", capaz de
agregar diversos saberes (CUNHA, 1966, p. 620-1).

As posições de Veríssimo e também de Euclides seriam corroboradas, logo a seguir, por Araripe Júnior em
dois artigos no Jornal do Comércio de 6 e 18 de março de 1903. Esse estudioso (ARARIPE JÚNIOR,
1978, p. 22) constata que a fascinação que o livro exerce, "resulta de um feliz conjunto de qualidades
artísticas e de preparo científico [...]". E mais: seria o "[...] único no gênero, se atender-se a que reúne a
uma forma artística superior e original uma elevação histórico-filosófica impressionante [...]".

Tais exames avalizadores de Os sertões como obra de literatura e história ou de ciência e ficção tornar-se-
iam, ao longo do século XX, o paradigma manifesto das análises do livro. Sem a pretensão de enumerar
todos os estudos sobre Os sertões, vale a pena citar alguns a título de exemplo. Gilberto Freyre (1944, p.
32) diz que a paisagem que transborda da obra é a da personalidade angustiada do autor, que precisou
"exagerar para completar-se e se exprimir nela" - de forma que "é Euclides mais do que a paisagem, que
transborda dos limites do livro científico [...] tornando-o um livro também de poesia [...]".

Afrânio Coutinho (1980, p. 82-86), no início dos anos 50, é mais peremptório, ao afirmar que, apesar de
haver na obra uma mistura de elementos de diversos gêneros (ensaio, drama, ficção), não é uma obra de
ciência - é "sobretudo uma obra de arte", o que "sobreleva a tudo é a sua parte artística", "obra-prima da
literatura"; enfim, "Euclides era um artista, um ficcionista, um criador de tipos, tal qual um romancista".

O amálgama de literatura e história, com predominância da primeira, está presente também em Dante
Moreira Leite (1969) [1], em Nelson Werneck Sodré (1960) [2], em Franklin de Oliveira (1959) [3], em
Olímpio de Souza Andrade (2002) [4], em Walnice Nogueira Galvão (1976) [5], em Nicolau Sevcenko
(1983) [6].

Valentim Facioli (1998, p. 38) retoma a discussão, considerando Os sertões como um livro de
"interpretação científica do processo histórico brasileiro", segundo os parâmetros do "consórcio de ciência
e arte". Para esse crítico, Euclides estava impregnado por concepções - do positivismo, do determinismo,
do evolucionismo, do naturalismo - que vêem o conhecimento científico como auxiliar na descrição e na
elaboração do retrato da realidade na busca da verdade, superando o subjetivismo; sendo assim, o literário
deveria submeter-se às leis naturais. O inverso também seria válido.

Talvez não seja exagerado verificar que as relações entre discurso descritivo da ciência e discurso
metafórico da arte em Os sertões imbricam-se, tornando-se quase indistintos, resultando num discurso
outro que quer sintetizar os dois para a produção de um gênero artístico híbrido e indefinido, que abarca
dimensões inusitadas. Parece evidente que o texto euclidiano permite um trânsito em duas mãos: tanto a
ciência produz a arte, quanto vice-versa (FACIOLI, 1998, p. 55).

Mas a tentativa de realizar o consórcio entre ciência e arte por parte de Euclides teria fracassado. Produto
de seu tempo, a obra hoje estaria sendo recusada tanto pelas ciências sociais como pelas ciências naturais;
só a "historiografia literária", apesar das ressalvas, ainda a acolhe. Facioli (1998, p. 57) acrescenta ainda
que Euclides teria atingido apenas a "virtualidade" no que se refere ao projeto de consórcio de ciência e
arte. Teria havido confiança exagerada nas possibilidades de revelação do país, na linguagem da denúncia
do crime que a República praticara em Canudos. Nesse "ensaio" euclidiano, "sem gênero definido", reponta
uma linguagem "monumental", "oratória" com a finalidade de "comover e persuadir".

Otto Maria Carpeaux, em 1958 (p. 4), por seu turno, e com visão um tanto diversa, afirma que o "valor e o
prestígio da obra de Euclides criaram, de Canudos, uma imagem que não pode ser desfeita". Vai mais além,
valendo a pena citá-lo:

Mais do que escrever história, Euclides fez história. Mas os exemplos de Tácito e Saint Simon
bastam para demonstrar até que ponto a imaginação entra, como elemento criador, justamente
nas maiores obras de historiografia. No Brasil foi João Ribeiro, parece, o único que duvidou da
exatidão científica de Os sertões, falando em "ficção"; escrevendo hoje, teria falado em science
fiction. Com efeito, não se diminui o valor excepcional da obra, afirmando-se que os elementos
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científicos dela, as considerações geológicas, etnológicas, sociológicas e de psicologia social,


são hoje tão antiquadas que dão a impressão de ciência fantástica. Contudo, não seria possível
eliminá-los simplesmente [...] A ciência fantástica de Euclides faz parte integral de sua obra.

Pouco tempo antes, em 1956, escrevendo no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo - mesmo
jornal em que Otto Maria Carpeaux publicou suas considerações -, Antonio Candido (2002, p. 174)
observava que Euclides da Cunha havia realizado uma análise histórico-sociológica sui generis. Nela
pesquisou "a psicologia dos protagonistas" e, para "compreendê-la, vai até as influências da raça e do meio
geográfico"; no entanto, Euclides estaria ultrapassado na sociologia, porque o livro é "demasiado
mecânico", o que "a seu tempo era de preceito, para corresponder às concepções dominantes então, do
naturalismo científico" (CANDIDO, 2002, p. 174). O crítico afirma ainda que o autor opera com conceitos,
análises e critérios "especificamente sociológicos de interpretação" que "aparecem concretizados em alguns
princípios diretores" (p. 179). Além disso, "mais que sociólogo Euclides é quase um iluminado", havendo
"nele uma visão por assim dizer trágica dos movimentos sociais e da relação da personalidade com o meio
físico e social" (p. 181). Assim, só pode ser compreendido

[...] se o colocarmos além da sociologia - porque de algum modo subverte as relações sociais
normalmente discriminadas pela ciência, dando-lhes um vulto e uma qualidade que, sem
afogar o realismo da observação, pertencem antes à categoria da visão (p. 182).

Florestan Fernandes, fazendo uma análise do desenvolvimento histórico da sociologia no Brasil, constata
que Os sertões é o primeiro ensaio a procurar fazer uma "descrição sociográfica" e uma interpretação
histórico-geográfica do meio físico, dos tipos humanos e das condições de existência no país. Teria um
valor de marco na constituição da sociologia brasileira e, a partir desse momento, "o pensamento
sociológico pode ser considerado como uma técnica de consciência e de explicação do mundo inserida no
sistema sociocultural brasileiro" (FERNANDES, 1977, p. 35).

Em "Canudos não se rendeu", introdução feita a Os sertões em 1973, Alfredo Bosi afirma haver, na obra,
dois grandes planos, um histórico e outro interpretativo. Ao histórico corresponderia a parte final e, ao
interpretativo, as duas primeiras partes. Essa ordem relaciona-se com a cultura determinista do autor, tendo
mediações ideológica e literária intrinsecamente ligadas (BOSI, 2002, p. 212). Euclides faz uso de
processos retóricos que não são neutros; por meio de recursos com finalidade hiperbólica tenciona
transmitir a noção de "grandeza", de "terribilidade" "do inelutável" (BOSI, 2002, p. 216; grifo do autor). A
linguagem manipulada por Euclides da Cunha, de denúncia e de protesto, tem função de apelo (BOSI,
2002, p. 218).

No que refere à mediação literária, a obra de Euclides não se distancia de seus coetâneos como Afonso
Arinos, Coelho Neto, Rui Barbosa e Olavo Bilac. O nacionalismo ou sertanismo desses autores
manifestavam-se por "uma dicção purista levada ao extremo do arcaísmo e do preciosismo" (p. 219).

Bosi (2002, p. 220) adverte ainda, coerentemente, que uma leitura atual do livro não deve insistir naquilo
que é documento de seu tempo: "a linguagem rebarbativa, o ângulo faccioso da visão". Outros são os
valores a que se deve ater a leitura moderna de Os sertões: a potência da representação, o empenho em não
separar o fato de seu contexto, a busca de superar esquemas ideológicos e atingir "uma objetividade mais
alta, realizada na denúncia de um equívoco que, consumado, se fez crime" (p. 220). A par do acerto dessas
considerações, devemos lembrar que, em nenhum momento, o ensaísta refere-se à composição de Euclides
da Cunha como ficção ou literatura. O estilo literário, evidente no livro, advém, como dito, da tradição do
momento.

Nessa linha de interpretação, que se distancia da leitura canônica que se fez - ou ainda se faz - segundo a
qual Os sertões é uma obra híbrida de história e literatura ou de ciência e ficção, temos, mais recentemente,
Luiz Costa Lima. De forma mais enfática, tem chamado a atenção para o fato de que os critérios utilizados
por Veríssimo - e posteriormente incorporados acriticamente - remontam a concepções do século XVIII,
quando não se distinguiam de maneira clara as diferenças entre história e literatura e não eram reconhecidas
a autonomia e a peculiaridade artística da última. O crítico repara que, no Brasil,

[...] ainda no final do século XIX e durante grande parte do XX, não se havia assimilado muito
bem por que história e ficção pertenceriam a campos diversos. Ao contrário, tornando literatura
e ficção equivalentes, era mais fácil manter a convergência entre história e literatura. Para
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tanto, era suficiente que o historiador fosse capaz de atualizar o potencial da língua em
construções incomuns da linguagem. Esse potencial, na verdade, já não era definido puramente
por um critério retórico - o uso rico da língua -, mas por sua combinação com a força emotiva
(LIMA, 2006, p. 381).

Reconhecer que existem elementos ficcionais ou mesmo literários em Os sertões não significa - para o
crítico - aceitar a "interpretação homogênea" atribuída ao livro. O que há de literatura presente na obra é só
"borda que ornamenta um argumento científico" (LIMA, 2006, p. 383). O que há de arte nele - e esse teria
sido o intento de Euclides da Cunha - é a apresentação de uma capa de verniz "que daria maior visibilidade
ou impacto ao exame científico do caso" (LIMA, 2006, p. 383). Luiz Costa Lima defende ainda que a
essência da obra é científica, porém, admite "um tratamento literário que ajudasse a empolgar o leitor, por
força de sua eloqüência" (p. 383). Sua conclusão é a de que seria inconcebível "ver em Os sertões uma obra
simultaneamente de história e literária [...]" (p. 385).

A partir das visões aqui expostas, conclui-se que a visão homogeneizadora - que considera, como única
possibilidade de caracterização de Os sertões, o cânon "consórcio entre ciência e arte" - há muito vem
sendo rediscutida e posta em dúvida. Essa concepção é descartada por Antonio Candido já nos anos 50 do
século passado e, de certa forma, também por Otto Maria Carpeaux. O mesmo posicionamento do autor de
Formação da literatura brasileira é encontrado em Alfredo Bosi e, com ênfase, em Luiz Costa Lima.

2. Grande sertão: veredas - um ensaio?

Desde sua publicação em 1956, o romance Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa despertou a
atenção de inúmeros críticos, tendo acumulado uma bibliografia extensa, das mais diferentes vertentes
analíticas: histórico-sociológicas, míticas, metafísicas, esotéricas, lingüísticas, estilísticas, culturais,
folclorísticas, cartográficas.

Pode-se destacar, entre esses estudos, duas análises pioneiras - as de Antonio Candido e Manuel Cavalcanti
Proença - elaboradas logo após a publicação do romance. O primeiro, numa resenha-ensaio publicada no
ano do lançamento do livro, já assinalava: "este romance é uma das obras mais importantes da literatura
brasileira" e sua característica fundamental é a de transcender o regional, "graças à incorporação em valores
universais de humanidade de tensão crítica" (CANDIDO, 2002, p. 190). No ano seguinte (1957), o crítico
edita, como é sabido, o ensaio "O sertão e o mundo" sobre a mesma narrativa, mais tarde republicado sob o
título "O homem dos avessos" (CANDIDO, 1978). Nele, afirma que, na composição rosiana, misturam-se o
"real e o fantástico", e "combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação
racional". Conclui que pode ser visto no livro

[...] um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra
que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do cotidiano, onde se
tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe (CANDIDO, 1978, p.
139).

Do mesmo modo que Antonio Candido abre caminhos para a leitura do romance rosiano, em especial na
direção dos estudos sócio-históricos e políticos, Manuel Cavalcanti Proença também tem sua análise
posteriormente retomada pela crítica. Todavia, o viés da leitura de Proença é outro.

Uma parte do texto desse crítico, "Trilhas no Grande sertão" (1959), já havia sido publicada em 1957. O
estudioso defende a idéia de que Grande sertão: veredas tem um plano objetivo e um subjetivo - as
reflexões do protagonista -, além de um plano mítico. Proença também lança a idéia de que os jagunços são
símiles dos cavaleiros da Idade Média, o protagonista é um "cangaceiro cortês" e o julgamento de Zé
Bebelo relaciona-se com essa dimensão cavaleiresca da obra. Examina ainda os elementos míticos do
romance, além de analisar seus aspectos formais, como os processos de formação de palavras. Todas essas
propostas de Proença, como dito, foram apropriadas pela crítica, abrindo mais de uma linha de pesquisa.
Como se pode notar, o crítico examina várias dimensões da obra rosiana, mas não a relaciona com a vida
sociopolítica do país.

Entre os pioneiros, há um terceiro estudo sobre o romance, de menor repercussão, de Rui Facó (1958), no
qual a narrativa de Guimarães Rosa é abordada como obra "eminentemente popular", "um retrato quase
sociológico do interior do Brasil" (FACÓ, 1958, p. 185), destacando-se, ainda, "outra qualidade do
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romance: o lirismo vigoroso e belo de que está impregnado". Todavia, a qualidade mais notável da
composição é "o seu profundo realismo" que o coloca no "mais alto degrau" da literatura brasileira. Trata-
se do "documentário de uma época", de um "mundo gerado pelo latifúndio, pela grande propriedade
territorial, pelo monopólio da terra casado aos restos feudais" (p. 186). Com isso, conclui que

Aí está o melhor retrato do latifúndio semifeudal, com toda a sua brutalidade e selvageria,
gerando o cangaceiro e os retirantes [...] Este o sertão visto pelo romancista Guimarães Rosa.
O sertão heróico e trágico, valente e sofredor, povoado de seres profundamente humanos,
como Riobaldo, obrigados a viver uma vida de tropelias, sem consciência de sua situação de
oprimidos, sem terem encontrado ainda o caminho certo para se libertarem da exploração do
latifúndio (FACÓ, 1958, p. 187 e 189).

A partir dos anos sessenta do século passado, a fortuna crítica da obra rosiana em geral e do romance
Grande sertão: veredas em particular, cresce em escala notável, multiplicando-se por meio de artigos,
livros, teses, dissertações, estudos e pesquisas dos mais diversos níveis e gêneros, enfoques e métodos. O
crescimento das investigações foi quantitativo e heterogêneo. Uma boa amostra disso está na coletânea
organizada por Eduardo Coutinho de 1983.

Das correntes analíticas da produção rosiana, quatro concepções polarizam-se ao longo do tempo. Uma
delas valoriza os aspectos míticos, metafísicos, esotéricos; outra, prende-se ao virtuosismo lingüístico e às
perspectivas formalistas. A terceira vertente provém de certo marxismo reducionista e sectário que entende
a obra como literatura alienada em relação à dimensão histórico-social do país e do ser social. Nela, o "o
homem se vê reduzido à mera figuração abstrata, campo para o debate entre meros dados ontológicos e
metafísicos [...] Aceita-se como definitiva a fetichização, a alienação" (RIBEIRO, 1974, p. 104).

A quarta corrente tem como referência críticos pioneiros, sobretudo Antonio Candido, acentuando e
maximizando alguns dos aspectos por ele ressaltados. O exemplo mais consistente dessa vertente é o de
Walnice Nogueira Galvão (1972, p. 74), que considera o romance Grande sertão: veredas como um
"retrato do Brasil", um "ensaio", "o mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira", em
que o escritor "dissimula a História para melhor desvendá-la" (p. 63).

Nas décadas de oitenta e noventa do século XX, houve um crescimento acentuado das duas primeiras
vertentes. Nas análises da crítica, especialmente no meio acadêmico, mas não só, há a valorização de temas
e questões metafísicas, míticas, psicanalíticas, folclóricas, lingüísticas. Como contraponto ao crescimento
desse tipo de enfoque - que se torna mesmo preponderante -, críticos que têm como referencial concepções
histórico-sociológicas, reagem com análises que acentuam e, de certo modo, radicalizam a dimensão sócio-
histórica do romance, procurando recuperar e destacar dimensões obscurecidas ou relegadas a um segundo
plano - como, por exemplo, as relações sociais e de poder - pelas análises prevalecentes.

Retomando teses elaboradas por Walnice Nogueira Galvão, Sandra Guardini T. Vasconcelos (2002, p. 324)
discute a questão do coronelismo e da jagunçagem e examina, "a partir de uma perspectiva histórica, a
inserção de Grande sertão: veredas numa linhagem de estudos de interpretação do Brasil que abordaram
esse traço das relações sociais e de poder em nosso país". Para essa estudiosa, o banditismo e a violência,
que são inerentes ao romance e o atravessam do princípio ao fim, determinariam "em grande parte seu
movimento e desfecho", permitindo "inscrevê-lo no cruzamento entre o literário e o histórico" (p. 324).

É com esse "entrecruze" que o romance "pode contribuir para iluminar", a partir do relato de um partícipe
do "mundo da jagunçagem, o modo como se estabeleceram as relações de poder vigentes no sertão
brasileiro durante a República Velha, envolvendo fazendeiros, bandos de jagunços e milícias" (p. 324). Ao
representar esse mundo, o romancista "deu voz às contradições e dilaceramentos do nosso país, cuja
imagem como um espaço em que o processo de modernização nunca se deu de maneira homogênea" (p.
324). Guimarães Rosa expõe, dessa forma, as contradições nacionais e mostra que o arcaico não é sobra do
passado, mas configura-se no presente como "corolário do projeto de modernização do país." A autora
conclui afirmando o caráter e a natureza compósita de Grande sertão: veredas:

Na sua mescla de ficção e história, o romance de Guimarães Rosa é não apenas o ‘mais
profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira’, como avalia
Walnice Nogueira Galvão, mas é sobretudo um agudo ensaio sobre a liquidação do
coronelismo durante a Primeira República, narrado de dentro e debaixo, da perspectiva de uma
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personagem que viveu todo o processo.. Só por isso já mereceria figurar ao lado dos melhores
ensaios de interpretação de um dos períodos mais conturbados da história do Brasil que nossa
historiografia produziu (VASCONCELOS, 2002, p. 331).

Na mesma direção, mas tendo como referencial concepções e categorias de Walter Benjamin, Willi Bolle
(2004, p. 377) procura mostrar que o romance de Guimarães Rosa, além de ser uma história do indivíduo,
contém ainda "uma história social do Brasil". O escritor encena essa história do país por meio de
fragmentos e de modo criptografado que caberia ao leitor "decifrar". Em outras palavras, Grande sertão:
veredas, por meio da história da vida de Riobaldo, contaria a história social da nação: "ao narrar a sua vida,
ele convida o leitor a organizar os fragmentos da história despedaçada e criptografada do Brasil" (p. 378).
O crítico alega que, organizando os fragmentos "espalhados e ocultos ao longo de diversas passagens do
labirinto da narração", é possível decifrar a "identidade da nação e do povo" (p. 336). Assim, para esse
crítico,

[...] o romance de Guimarães Rosa é o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do
Brasil: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes populares, o que constitui
um sério obstáculo para a emancipação do país [...] . [...] o mais preciso e mais complexo
estudo dessa questão [...] (BOLLE, 2004, p. 9 e 17).

O crítico (BOLLE, 2004, p. 22-3) afirma ainda que o romance "se configura como uma forma de pesquisa",
o que permite lê-lo como "retrato do Brasil". Ao compreender Grande sertão: veredas como representação
alegórica da história brasileira, o ensaísta em pauta considera, especialmente, que a narrativa rosiana seria
uma "reescrita crítica" do "livro precursor", Os sertões de Euclides da Cunha. Como revisão crítica daquele
modelo historiográfico (determinismo positivista), "pode ser lido como um processo aberto contra o modo
como o autor de Os sertões escreve a história" (BOLLE, 2004, 34-5).

Para Willi Bolle, o romance Grande sertão: veredas, "retrato do Brasil", pode ser comparado com outros
ensaios sobre a formação do país elaborados por, além de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Antonio Candido
e Florestan Fernandes. E vai além, ao dizer que, "com potencial sui generis, ele ocupa em relação àquelas
obras canônicas uma posição complementar e concorrente" (BOLLE, 2004, p. 24).

Já Luiz Roncari (2004), em O Brasil de Rosa , relaciona três dos livros de Guimarães Rosa - Sagarana,
Corpo de baile e Grande sertão: veredas - com o momento em que foram produzidos, discutindo as
relações entre literatura e história e considerando, principalmente, o "fato de o autor tratar nos três os
mesmos tipos de problemas apresentados pela história". Uma das fontes do autor de Corpo de baile apóia-
se "não só na nossa tradição literária, mas também nos velhos e novos estudos do Brasil, efervescentes em
seu tempo" (RONCARI, 2004, p. 17). A seu ver, faltava, da parte da crítica, o exame de uma "camada" da
obra de Guimarães Rosa, que "alegorizava a história da vida político-institucional de nossa primeira
experiência republicana e numa perspectiva que poderíamos considerar conservadora" (p. 18-9).
Conservadora no sentido de crítica à ordem estabelecida que trouxesse de volta a autoridade que havia se
perdido com a República.

Guimarães Rosa teria, sem deixar de lado a vida amorosa e familiar, própria do romance de modo geral, a
preocupação de integrar também os costumes da vida pública, "o que deu a sua ficção também a dimensão
de uma representação do país, e muito mais realista do que se poderia supor. Foi essa a razão que [...] levou
[o crítico] a discutir parte de sua obra como sendo também a de um intérprete do Brasil, embora muito
peculiar" (p. 20, grifo nosso).

Para o ensaísta, o escritor mineiro teria seguido "de perto os paradigmas de Oliveira Vianna, do livro O
ocaso do Império [...]", construindo, na ficção, personagens que corresponderiam aos homens da vida
pública brasileira de acordo com aquele estudioso (p. 20).

Roncari relaciona o modo como os intérpretes do país apreendem nossa vida político-social com a maneira
de Guimarães Rosa compor suas histórias. De acordo com o autor de O Brasil de Rosa, Guimarães Rosa
teria proximidade com as visões de Alberto Torres, Alceu Amoroso Lima e Oliveira Vianna, mas também
de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Paulo Prado e outros mais.

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Os fatos políticos e sociais que se refletem na produção rosiana teriam sido apresentados na "perspectiva do
conservadorismo crítico" por Alceu de Amoroso Lima em Política e letras, ensaio de 1924 (RONCARI,
2004, p. 22). Esse texto de Alceu de Amoroso Lima propõe como solução para os impasses da vida
nacional a "harmonização das forças contrárias". Segundo Roncari, Guimarães Rosa teria tomado essa
visão de Alceu "como diagnóstico e aceito a sua proposta de solução, quase como uma missão a ser
cumprida pela sua obra" (p. 24).

Como se pode observar, para Roncari, o romance rosiano não deixa de ser ficção, mas exerce o mesmo
papel de historiadores e outros intérpretes que estudam a vida sócio-política do país.

3. Literatura e ensaio

A discussão que a crítica sobre os dois autores - Euclides da Cunha e Guimarães Rosa - suscita tem a ver,
principalmente, com a relação, aproximação ou separação, entre literatura e história. Os estudiosos que
retomaram a idéia de José Veríssimo de que Os sertões é uma obra híbrida são muitos e atravessaram o
século XX de tal modo que essa matriz, corroborada por Euclides, tornou-se modelo de caracterização da
obra. A avaliação do livro pode variar, no que diz respeito à proximidade com a literatura, considerando-se
o uso de "matrizes ficcionais", como quer Bernucci; o fato de ser "obra-prima da literatura" e Euclides " um
criador de tipos tal qual um romancista", como defende Afrânio Coutinho, e mesmo um poeta, como diz
Gilberto Freyre. A classificação da obra como sendo de ficcionista também se repete nos estudos de, por
exemplo, Olímpio de S. Andrade (2002) e Walnice Nogueira Galvão (1976). Mas, como dito, desde a
década de 50 do século passado, Antonio Candido caracteriza a obra como um ensaio de caráter histórico-
sociológico; Florestan Fernandes, por sua vez, caracteriza-a como marco inaugural da sociologia no Brasil.
Mesmo com Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima temos uma interpretação que apresenta aproximações daquela
de Antonio Candido, mas que enfatiza o uso da retórica, a eloqüência da obra.

O que, apesar do exposto, manteve a idéia do hibridismo, para Luiz Costa Lima, foi a manutenção, no país,
da noção anacrônica de literatura. Ao discutir o uso do termo literatura, o mesmo crítico o considera como
heterogêneo e baseado no "conceito de modalidades discursivas" (LIMA, 2006, p. 348). Desse modo, "Fora
da ficcionalidade, a literatura abrange aquelas obras que, perdida sua destinação original, recebem outro
abrigo, i.e, mantêm seu interesse, mudando de função. Entre os exemplos por ele citados está Os sertões
juntamente com Casa-grande e senzala [7]. Os dois livros mudariam de lugar, quando, extinto o "propósito
de interpretação sócio-histórica do país, neles sobressair a espessura de sua linguagem [...]" (p. 349-50). A
mudança só se dá porque a obra traz "um traço de destaque" em sua linguagem, apresentando o "correlato
sensível-codificado do mundo fenomênico" (p. 350, grifo do autor). Isso quer dizer que essas obras devem
ter não simplesmente uma linguagem diferenciada, mas uma linguagem que, por si, já veicule o mundo dos
fenômemos.

Pelo mesmo caminho, poderíamos perguntar por que um romance como Grande sertão: veredas, que tem
não apenas uma linguagem claramente literária, mas estrutura e fundamentos também literários, passa a ser
considerado como ensaio ou como estudo, ou "mescla de ficção e história". Para entender-se a leitura de Os
sertões como literatura e de Grande sertão: veredas como estudo, talvez tenha-se que levar em conta que
os leitores de Os sertões, que o caracterizam como obra literária, tomam como ponto básico de análise a
elocução, a linguagem. Por sua vez, os críticos, que consideram o romance de Guimarães Rosa como
ensaio, levam em conta, como critério de caracterização, a história contada, os acontecimentos nela
envolvidos.

De um lado e de outro, está em discussão a compreensão do que seja obra de arte literária relativamente às
suas duas faces, a forma e o conteúdo. Da maior valorização de uma ou de outra, chega-se a interpretações
diferenciadas e conflitantes. No entanto, cabe lembrar que essas faces são interligadas e inseparáveis, o que
já indica que a escolha apenas de uma ou de outra para análise é problemática, resultando em considerações
questionáveis como vemos em alguns estudos aqui elencados.

Com tudo isso, o exame de como Os sertões foi transformado em obra literária e Grande sertão: veredas
passou a ser lido como ensaio, suscita questões e dilemas importantes, postos e repostos ao longo do tempo
e que têm relações com as peculiaridades da literatura e da história. Tais questões indicam, ainda, que
problemas de identidade e diferença epistemológicas e cognitivas - como representação e compreensão,
distinção entre linguagens e formas - continuam a ser recorrentes.

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04/11/2023, 13:04 Gramsci

Se entendermos que a literatura, enquanto atividade artística, e a história, como modalidade "científica" ,
têm modos específicos de reprodução do real, faz-se necessário estabelecer as diferenças tanto nos
discursos quanto nas distintas formas de abordagem e compreensão do ser social e do processo histórico.

Pode-se dizer que o historiador seleciona para análise aquilo que supõe ter acontecido ou que acredita ser o
verossímil, a realidade objetiva, acessível e não simples construtos elaborados pela imaginação criativa
(HOBSBAWM, 1998, p. 8). O historiador ocupa-se com o existente, com a realidade em si, ou seja, com a
realidade histórica concreta que independe da consciência do sujeito. Nas análises elaboradas pela
historiografia, tenta-se reproduzir a realidade abstratamente, no plano do pensamento - por meio de
conceitos, categorias, alusões e comparações - tal como, de forma aproximada, ela supostamente se deu.

Na literatura, a realidade é criada ou recriada, inventada ou reinventada artisticamente por meio de figuras,
metáforas, símbolos, alegorias. O escritor cria uma realidade nova a partir do mundo em que está inserido,
utilizando a imaginação e a invenção. Ele reinventa a realidade ou inventa aquilo que poderia ter
acontecido, de maneira que ela é reproduzida não como é ou foi, mas como poderia ser, como Aristóteles
escreveu. Dessa forma, a obra de arte é "algo criado pelo homem, que jamais pretende ser uma realidade no
mesmo sentido em que é real a realidade objetiva" (LUKÁCS, 1970, p. 163). Sua representação é única e
insuperável, feita por imagens sensíveis, por meio das quais o sujeito (artista) cria o objeto e representa,
geralmente, destinos humanos concretos em situações particulares (LUKÁCS, 1968, p. 41 s.).

Por meio da literatura, o homem relaciona-se imaginariamente com a realidade histórica. Todavia, a
literatura não é antagônica do real; ao criar um real imaginário, ela não deixa de representar um real
verídico, existente. Nesse sentido, Karel Kosik (1976, p. 118) afirma que a obra de arte "exprime o mundo
enquanto cria. Cria o mundo enquanto revela a verdade da realidade, enquanto a realidade se exprime na
obra de arte. Na obra de arte a realidade fala ao homem". Habermas (1987, p. 93), por sua vez, diz que a "
literatura faz proposições sobre as experiências privadas" e que sua linguagem "deve verbalizar o
irrepetível", além de reestabelecer a " intersubjetividade da compreensão".

Desse modo, a literatura - como a história - consegue desvendar e iluminar aspectos muitas vezes velados
da realidade. Isso quer dizer que, mesmo com linguagens e formas (artística e científica) distintas, ambas
têm uma função cognitiva fundamental. Isso não significa que a representação artística seja simples
reprodução (ou reconfiguração) da realidade. Não se pode dizer que "o romance simplesmente passa a
refletir a realidade tal qual ela se apresenta de imediato ou empiricamente" (LUKÁCS, 1976, p. 115), pois,
como dito, enquanto a história ocupa-se do real, a literatura liga-se ao possível.

Guimarães Rosa (1969, p. 3), atinando com a noção de que a literatura vai além da realidade histórica
concreta ou a supera, podendo mesmo significar seu reverso, pontuou adequadamente o assunto,
asseverando: "a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História."

Ademais, a ficção evidencia determinadas perspectivas particulares, íntimas, imperceptíveis, que as


ciências sociais, buscando recriar a realidade histórica verdadeira, não consegue nem pode captar.

Há sutilezas e grandezas da vida social que aparecem na obra artística com uma vivacidade que
as ciências sociais em geral apanham de fora ou não apanham [...] a literatura abre o horizonte
da cultura, da história, numa escala que a ciência apenas esboça. Ocorre que a literatura lida
principalmente com o singular, o privado, o subjetivado, o sensível. Por isso torna vivida a
vida que a ciência precisa buscar. Revela dimensões invisíveis, incógnitas, recônditas. Talvez a
parte submersa do iceberg (IANNI, 2006, p. 52).

Muitos estudiosos consideram válido observar que, se tanto as análises históricas dos cientistas sociais
quanto as narrativas ficcionais dos artistas têm algo de verdadeiro e real, têm também muito de imaginação
e fabulação. Desse modo,

[...] a obra de arte tem algum compromisso com a verdade, na medida em que ela inventa um
mundo que possui alguma verossimilhança em si. O trabalho do cientista social tem sempre um
elemento de invenção, ficção, arte. Nele há situações e climas, personagens e dilemas,
trabalhos e lutas, tensão e mistério (IANNI, 2006, p. 62).

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O fato de a obra de arte ter alguma relação com o real levou Friedrich Engels (apud LUKÁCS, 1968, p. 42)
a afirmar que aprendeu com a obra de Balzac muito mais sobre a realidade histórica da França na primeira
metade do século XIX do que com os historiadores, economistas, estatísticos, etc.

Esta penetração do escritor nas profundidades da motivação social e humana, esta ruptura com a motivação
superficial e aparente dos eventos (peculiar tanto aos ambientes "oficiais" como às impressões imediatas
das próprias massas), constituíam para Engels o necessário pressuposto de uma duradoura eficácia das
obras de arte (LUKÁCS, 1968, p. 42).

No sentido inverso, ou seja, quando a obra do cientista social contém elementos ficcionais e artísticos,
Antonio Gramsci (2000, p. 13) chama a atenção para o fato de que a característica medular de O Príncipe
de Maquiavel é ser "um livro ‘vivo’, no qual a ideologia e a política fundem-se na forma dramática do
‘mito’", e não um "tratado sistemático". Diferentemente das formas como se "configurava a ciência
política" até aquela época (início do século XVI), Maquiavel

[...] deu à sua concepção a forma da fantasia e da arte, pela qual o elemento doutrinário e
racional personifica-se em um condottiero, que representa plástica e ‘antropomorficamente’
o símbolo da ‘vontade coletiva’. O processo de formação de uma determinada vontade
coletiva, para um determinado fim político, é representado não através de investigações e
classificações pedantes e princípios e critérios de um método de ação, mas como qualidades,
traços característicos, deveres, necessidades de uma pessoa concreta, o que põe em movimento
a fantasia artística de quem se quer convencer e dá uma forma mais concreta às paixões
políticas [...] depois de ter representado o condottiero ideal, Maquiavel - num trecho de grande
eficácia artística - invoca o condottiero real que o personifique historicamente: esta invocação
apaixonada reflete-se em todo o livro, conferindo-lhe precisamente o caráter dramático.

Para outros pensadores, como o historiador norte-americano Hayden White (1995, p. 13), há um forte
componente fictício e artístico evidenciando a relação promíscua entre literatura e história nas
reconstruções históricas. Para outros, como Habermas (1990, p. 190), a literatura pertence a um domínio
autônomo. Lukács, por sua vez, sempre alertou para as peculiaridades diferenciadoras da literatura e das
ciências sociais e para as relações íntimas e inseparáveis da forma e do conteúdo - e lembrou, inclusive,
que, em arte, quando se tem "algo importante a dizer", é necessário que se encontre a " forma apropriada"
para fazê-lo (LUKÁCS, 1969, p. 181).

No que se refere à relação entre literatura e ensaio, Adorno (2003, p. 18) aponta a autonomia desses dois
campos, na forma e no conteúdo; o ensaio diferencia-se da arte "tanto por seu meio específico, os
conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética". Leandro Konder (2005, p.
44), na mesma direção, afirma que o terreno do ensaio não é "o da ficção nem o do primado da imaginação
criadora"; embora assimile "algo da liberdade de expressão apreendida na arte - seu programa é de natureza
científica".

Alguns dos equívocos derivados do nivelamento entre o ensaio e o gênero artístico-literário acabam por
reduzir a literatura a uma repetição direta e mecânica do mundo real, o que pode ocorrer, comumente, pela
tentativa consciente ou inconsciente de justificar uma tese, negligenciando-se a essência artística da obra.

Partindo dessas distinções entre literatura e história ou entre arte e ciência entendemos ser problemática a
caracterização de Os sertões como literatura e de Grande sertão: veredas como ensaio ou estudo histórico.
A existência de similitudes ou elementos comuns entre a ficção e a realidade, entre a compreensão e a
invenção não permite a inversão das peculiaridades das duas obras. Naturalmente, isso não quer dizer que
consideramos que as produções artísticas fixam-se ou fixavam-se em um único gênero ou que haja gênero
puro. Apenas quer-se entender quais são as características preponderantes em cada um dos livros em
discussão que permitem associá-los, principalmente, a um ou outro campo.

Antonio Candido (1978, p. 123), há meio século, levantou e analisou de forma adequada as diferenças
fundamentais entre o livro de Euclides da Cunha e o de Guimarães Rosa:

Há em Grande sertão: veredas, como em Os sertões, três elementos estruturais que apóiam a
composição: a terra, o homem, a luta. Uma obsessiva presença física do meio; uma sociedade
cuja pauta e destino dependem dele; como resultado o conflito entre os homens. Mas a
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analogia pára aí; não só porque a atitude euclidiana é constatar para explicar, e a de Guimarães
Rosa inventar para sugerir, como por que a marcha de Euclides é lógica e sucessiva, enquanto
a dele é uma trança constante dos três elementos, refugindo a qualquer naturalismo e levando,
não à solução, mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte, e permite a sua
ressonância na imaginação e na sensibilidade.

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Maria Célia Leonel é pofessora do Departamento de Literatura, Unesp/ Araraquara; José Antonio Segatto é
professor do Departamento de Sociologia, Unesp/Araraquara.

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Notas

[1] "[...] Euclides poderia ter escrito um livro científico, limitado pela perspectiva da época; se continua e
continuará a ser uma obra-prima da literatura brasileira, isso se deve às suas qualidades formais e à visão
humana que Euclides consegue transmitir" (LEITE, 1969, p. 204).

[2] "[ ] a importância de Euclides consistiu em conferir grandeza, em dar forma literária, [...] como
suprema realização artística, a uma interpretação nova do Brasil [...]" (SODRÉ, 1960, p. 453).

[3] "[...] contra o que está, porém, superado ou obsoleto em sua análise, reage Os sertões pelo que há de
permanente: seu caráter de obra literária [...]. É talvez a mais alta interpretação social do Brasil feita em
termos de arte" (OLIVEIRA, 1959, p. 306-7). Em estudo posterior (OLIVEIRA, 1983, p. 22), o autor
afirma que o livro de Euclides não pode ser considerado como ficção ou romance, embora saliente sua
dimensão artística (p. 29).

[4] Euclides é "[...] esse ficcionista que se espraia assim, do começo ao fim de Os sertões, sem deixar de ser
o historiador consciencioso [...]"(ANDRADE, 2002, p. 449).

[5] "Mais uma vez, em Euclides, o ficcionista ganha do historiador, na dramatização do episódio, nas
sugestões ambientais, na descrição do movimento e do ruído, nas imagens violentas. E é possível mesmo
que ele tenha preferido seguir a versão de Arinos, que lhe chegara às mãos já romanescamente elaborada; o
que não impede de desenvolvê-la ainda mais, no mesmo sentido" (GALVÃO, 1976, p. 83).

[6] "A preocupação de realizar uma síntese entre linguagem literária herdada e a elocução científica do
presente é pois consciente e constitui uma verdadeira obsessão para Euclides [...] Síntese entre literatura e
ciência, combinação de estéticas, cruzamento de gêneros, oposições de estilos; sua obra parece ressudar
tensões por inteiro" (SEVCENKO, 1983, p. 135).

[7] Tornou-se comum atribuir à obra do antropólogo pernambucano elementos e caracteres literários.
Exemplo recente é o de Lilia Moritz Schwarcz (2007, p. D11): " [...] assim como a arte, a história que
Gilberto Freyre conta tem muito de narrativa, estética, impressão, memória e romance. Por sinal, a técnica
de romance ou do drama é amplamente desenvolvida pelo autor de Sobrados e mucambos." Como essa
estudiosa, Franklin de Oliveira (1983, p. 28) alega que "No Brasil pós-euclydiano podemos lembrar dois
exemplos civilizacionais que alcançaram a dignidade de obras de arte literária. São eles: Casa grande &
senzala, de Gilberto Freyre, e Os donos do poder de Raymundo Faoro".

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