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LENDA DAS ARCAS

Entre escombros na rudeza


De vestuta fortaleza,
Batidas de vento agreste,
Empedrenidas, cerradas,
Há duas arcas pejadas,
Uma de oiro outra de peste

Ninguém sabe ao certo qual


Das duas arcas encerra,
O fecundo manacial
Que fartará de oiro a terra
Mesquinha de Portugal;
Ou qual, se não imprudente
Lhe erguer a tampa funérea
Vomitará de repente
A fome, a febre, a miséria,
Que matará toda a gente

Sempre que o povo faminto,


Maltrapilho e miserando,
Fosse ele cristão ou moiro,
Entrou no tosco recinto
Para salvar-me arrombando

A arca pejada de oiro,


Quedou-se os braços erguidos,
O olhar atónito e errante,
Sem atinar de que lado
Vinha morrer-lhe aos ouvidos
Uma voz agonizante
Entre ameaças e gemidos

"Ó povo de Montemor,


Se estás mal, se és desgraçado
Suspende, toma cuidado,
Que podes ficar pior!"
E nestas perplexidades
E eternas hesitações
Hão-de passar as idades,
Suceder-se as gerações
E continuar na rudeza,
Batidas de vento agreste,
Empedrenidas, cerradas,
As duas arcas pejadas,
Uma de oiro outra de peste

Conde de Monsaraz
LENDA DO MONTE NOVO
Ao princípio, é a própria História que nos conta o que se passou nesse ano de
1199....

Dera-se o rompimento entre o reino de Leão e o de Portugal. Afonso IX veio


sitiar Bragança e D. Sancho I marchou valorosamente ao seu encontro. Mas o cerco foi
levantado e os invasores retiraram-se. Porém D. Sancho, ressentido com a atitude
daquele que durante cinco anos fora o esposo bem amado de sua filha Teresa, passou o
rio Coa e acometeu Cidade Rodrigo. Foi duro o embate. Duro e valoroso. Nessa batalha
perderam D. Sancho I e Portugal dois dos seus mais aguerridos e nobres cavaleiros.(1)
Mas a contenda teve o seu fim, embora pouco firme. Qualquer pequeno atrito poderia
fazer quebrar o cristal da sensibilidade dos dois monarcas inimigos.

O rei português voltou. O descontentamento continuava estampado na sua


expressão inquieta, de homem habituado ao movimento e de carácter impulsivo, embora
bom de coração. E foi grande a sua inquietação quando soube que a sua filha Teresa o
esperava para lhe falar de um assunto de extrema importância para ela e para o reino –
segundo dizia. Intrigado, mandou-a introduzir-se no seu aposento.

A que fora esposa de D. Afonso IX entrou com passo firme, mas curvou-se
respeitosamente ante o seu pai. D. Sancho não escondeu o seu interesse. Olhou-a bem
de frente. A luz coada pelo vitral batia-lhe em cheio no rosto, extremamente pálido.

— Que me quereis, minha filha?

Era serena a voz do rei, mas inquieto o brilho do seu olhar. D. Teresa fingiu não
perceber essa inquietude e respondeu, com aparente serenidade:

— Perdoai-me senhor meu pai, se ouso vir falar-vos de assunto que só a vós
compete decidir...

O rei tentou ganhar tempo, receando censuras.

— Vindes falar-me das vossas rendas?

A rainha sorriu, num misto de tristeza e desdém.

— Não, meu pai. Bem sabeis que possuo o suficiente para mim. O que me traz à
vossa presença é algo diferente.

— Diferente?

— Sim...Trata-se de Afonso.

— Qual deles? De vosso irmão ou de...


O rei suspendeu a frase, num quase inexplicável embaraço. Voltou D. Teresa a
sorrir nesse ar estranho onde a amargura reinava como senhora. E apressou-se a
concluir:

— Venho falar-vos de Afonso IX de Leão!

D. Sancho prescrutou com olhar profundo o rosto da filha.

— Que desejais então, Teresa?

— A paz entre El-rei D. Sancho e o pai dos meus filhos.

Empertigou-se o rei de Portugal.

— O quê? Pedis a paz para aquele que vos repudiou?(2)

D. Teresa baixou levemente os olhos e a voz.

— Ele foi o meu esposo bem amado!

Voltou a ouvir-se, forte, a voz do rei.

— Mas hoje...ele é o esposo de Berengária, a filha do rei castelhano!(3)

Fitaram as pontas das chinelas de brocado, os olhos de expressão triste de D.


Teresa.

— Não o censuro por isso. Se Afonso me repudiou, foi só ao fim de anos de luta
interior. E bem sabeis que para esse desgraçado desfecho...muito concorreu o vosso
acordo no assento.

Sentiu-se D. Sancho I apanhado em censura.

— Vindes agora reprovar uma medida tomada há quatro anos?(4) E bem sabeis
como o castiguei depois...

D. Teresa abanou a cabeça, como a afastar as sombras negras dum passado


tormentoso.

— Senhor! Eu venho apenas lembrar-vos que, se não continuo a ser a esposa de


Afonso IX de Leão, a culpa não foi só dele...Bem sei que os negócios de estado são
pesadíssimos fardos, difíceis de transportar. Porém...a única vítima fui eu!

— Bem sabeis, Teresa, como esse casamento foi mal visto pelo Papa.(5)
Instigado decerto pelo rei de Castela, impôs a vossa separação...

— Com a qual vós concordastes!

— Não sem reluntância, bem o sabeis...Mas...porque vindes agora lançar-me


tudo isso no rosto?
— Perdoai-me, senhor meu pai! Não estou aqui para vos censurar. Bem sabeis
que essa afronta não vos fiz nem quando o meu coração foi ferido...

— Então...que quereis?

— Apenas suplicar-vos que cesseis esta guerra! Igual pedido enviei a Afonso IX.
Que ao menos haja paz entre o reino de Leão e o de Portugal, já que a chaga aberta em
meu peito continua viva e sangrando!...

O rei D. Sancho ficou um momento silencioso. Os seus ombros largos descaíram


um pouco. Baixou também a voz. Já não era o rei quem falava, mas sim o pai.

— Tendes razão, filha minha! Muito deveis ter sofrido no isolamento a que vos
submetestes! No torvelinho de pensamentos diversos que assaltam o cérebro de um rei,
cheguei a pensar que a ferida do vosso coração estivesse a caminho de sarar...

Teve D. Teresa um leve trejeito de estranho significado. No seu olhar passou


uma imensa tristeza. E a sua voz soou quase velada.

— O mal de amor...é moléstia cujo remédio só o próprio amor pode dar!

Novo e pesado silêncio caíu na sala íntima de D. Sancho I de Portugal. Depois o


rei levou uma das mãos ao rosto e passeou-a pela barba. A sua cabeça agitava-se num
movimento lânguido, como quem diz não a qualquer pergunta do seu subconsciente.
Olhou de novo a filha e sentiu comiseração pelos estragos deixados em quatro anos
nesse rosto outrora tão maliciosamente alegre.

— Filha! Que poderei fazer, então, para amenizar a vossa dor?

— A paz é tudo quanto desejo agora, senhor meu pai!

— Dar-vos-ei novas terras...

— Dai-as aos meus irmãos, que muitos são!

— Teresa!

— Senhor?

— Afligis-me! Precisais distrair-vos! Sou eu que vo-lo ordeno!

Foi a vez de D. Teresa abanar negativamente a cabeça.

— Perdoai-me, senhor meu pai! Precisamente vivo ainda...porque me alimento


das minhas recordações!

— Como desejaria que compreendêsseis a minha posição!

— Sempre vos compreendi, senhor meu pai!


— Tive de ceder a Celestino III...

— Não o esqueço, senhor! E o Papa Inocêncio III continuou a insistir no assento


após a morte do seu antecessor...Como queríeis que o esquecesse?

— E sabeis, Teresa, que se diz que nova excomunhão vai cair sobre Afonso IX,
se não repudiar a sua nova esposa?(6)

Os olhos de D. Teresa refulgiram. Perguntou apressada:

— Será possível, meu pai?

— Tudo é possível! E o motivo é o mesmo: o próximo parentesco...

Fugiu de novo a luz intensa que iluminara momentâneamente o olhar da infeliz


rainha.

— Pois ide vós em paz, Teresa! Pela minha parte prometo-vos cessar a guerra
com Afonso IX de Leão. (7)

— Graças, meu pai!

— Ficais connosco mais algum tempo?

— Algumas semanas apenas. Mas desejo isolar-me.

— Isolar-vos?

— Sim! Agora a minha única ambição é encontrar um local onde possa viver
longe de importunos e onde a minha recordação consiga continuar a ser viva!...

Alguns meses passaram. Extinguiram-se os vestígios de guerra entre Leão e


Portugal. D. Sancho voltava-se para os negócios internos do reino. Os cuidados da
colonização vieram substituir as lutas com os estrangeiros. A povoação das terras
começou a fazer-se em ambas as margens do Tejo. Ia-se buscar povoadores a outras
regiões da Europa. Exaltava-se e ajudava-se a agricultura. Faziam-se cedências em troca
da defesa e o país começava a prosperar.

Assim se chegou ao ano de 1201. D. Sancho I andava de um lado para o outro,


visitando as cidades, vilas e aldeias, dando conselho e ânimo aos plebeus e aos nobres
que íam transformando Portugal.

Ora, numa dessas visitas, parou o rei na antiga «Castrum Malianum».


Acompanhava-o o seu conselheiro e amigo Julião. (8) Observaram as ruínas da antiga
fortaleza destruída pelos mouros, as terras desvatadas, esse ar de triste abandono que
punha no quadro pinceladas de tragédia. Julião acompanhou o seu rei na subida do
monte. Lá em cima, a vista de ambos voltou a abraçar toda a paisagem. Então Julião
abanou a cabeça reprovativamente, sem poder esconder a sua cólera.
— O que esses malditos mouros fizeram da fortaleza e de toda esta terra! Parece
um cemitério em ruínas!

O rei aquiesceu.

— Sim! É uma total desolação. Todavia, reparai nesta vista maravilhosa e neste
ar puríssimo.

O companheiro de D. Sancho I olhou em volta. Serenou.

— Na verdade, senhor, olhando daqui, temos a impressão estranha de ver o


próprio reino vizinho a nossos pés, numa vassalagem...

Ficou pensativo o rei.

Julião insistiu:

— O horizonte é largo e no ar prepassa uma espécie de franca serenidade, que


deve ser salutar...

O rei voltou-se então vivamente.

— Salutar...serenidade salutar, dizeis?

Intrigado, o cavaleiro sublinhou:

— Sim, meu senhor...eu disse salutar...

— É isso mesmo Julião! Tomai nota: Quero que se comecem imediatamente os


trabalhos de construção do castelo, pois desejo fazer daqui uma povoação de renome,
para oferecer a minha filha Teresa!

Interessado, Julião perguntou:

— E onde desejais construir o castelo, senhor?

Olhou-o o rei com assombro:

— Onde? Mas onde havia de ser, meu bom Julião? Aqui, neste monte mór!

Numa reverência respeitosa, o conselheiro do rei apenas disse:

— Serão cumpridas as vossas ordens, senhor!

Sorriu o rei. Sorriu intimamente, como reconfortado ou aliviado de um peso


interior. E murmurou baixinho estas palavras, que de momento pareceram estranhas ao
seu companheiro:

— Horizonte largo sobre o reino vizinho...propício à recordação...vista


agradável...e paz! Tudo isso ela terá aqui!...
E serenamente, lado a lado como dois homens vulgares, o rei de Portugal e o seu
conselheiro e amigo Julião desceram o monte mór da antiga «Castrum Malinum» e
vieram juntar-se aos outros companheiros. O sol brincava com as suas vestes e punha
mais brilho nos seus olhares. O vento rodopiava de vez em quando, em arremessos de
garotelho, levando salpicos de terra e pedra miudinha. Mas assim mesmo, havia um quê
de sereno que baixava às almas e punha nos lábios um sorriso de esperança!...

Dois anos passaram. E tanto bastou para que o castelo ficasse pronto. As terras
de Montemór começaram a povoar-se, descendo até ao vale. Como havia outra
povoação mais antiga também chamada Montemór, para que esta se distinguisse
daquela designaram-nas então por Montemór-o-Velho e Montemór-o-Novo. E um dia,
alguns anos mais tarde, na Primavera do ano de 1211, quando o rei D. Sancho deixou
este mundo, verificou-se que no seu testamento não esquecera a sua promessa, pois
entre as dádivas deixadas a seus filhos, netos e amigos, lá vinha mencionada vila de
Montemór para sua filha Teresa, a quem o destino marcara tão cruelmente. (9)
Assim nasceu Montemór-o-Novo, (10) cujos alicerces assentam num campo de batalha.

Bibliografia Marques, Gil - “Lendas de Portugal”, vol. II

NOTAS E COMENTÁRIOS

(1) – Dois cavaleiros herois -


Foi em Cidade Rodrigo que morreram «pelejando valorosamente», segundo a expressão das memórias da época – D. Lopo
Fernandes, comendador do Templo de Portugal, e o célebre cavaleiro D. Nuno Fafes. Este cavaleiro fizera parte da hoste comandada
por Gonçalo Viegas, então mestre de Santiago, e Rodrigo Sanches, o qual fora alcaide de Silves. Teve por missão esta hoste correr
em auxílio de Afonso VIII de Castela, quando em 1195 se deu a invasão dos Almóades.

(5) – O casamento –
Era o Papa Clemente III quem ocupava a cadeira de S. Pedro no ano em que achou por bem impedir que continuassem consorciados
a infanta de Portugal e o rei de Leão, por serem primos. Porém, como os cônjuges levaram cinco anos tentando fugir à cruel decisão,
só no tempo de Inocêncio III a separação se efectuou.

(2) – O repúdio de D. Teresa – Mais propriamente por motivos políticos do que pelo próximo grau de parentesco
que unia Afonso IX de Leão a D. Teresa, filha de D. Sancho I de Portugal, aquele monarca foi obrigado a repudiar a sua primeira
esposa, após cinco anos de feliz consórcio e havendo já três filhos do casal.

(6) – As decisões do Papa –


Roma, todavia, ainda não ficou satisfeita. Afonso IX de Leão separara-se, de facto, de Teresa de Portugal, mas casaria dois anos
depois com Berengária de Castela. Porém o casal continuava a afligir o Vaticano, pois também eram primos. E assim, após mais
cinco anos de luta interior, Afonso IX de Leão voltou a ficar sozinho, repudiando Berengária.

(3) – A nova esposa –


Dois anos depois de abandonar a sua primeira esposa, D. Teresa, Afonso IX de Leão voltou a casar, desta vez com a infanta
Berengária, filha do rei Afonso VIII de Castela.

(7) – Guerra entre Leão e Portugal –


Efectivamente, foi a seguir à peleja em Castelo Rodrigo que a luta entre o rei leonês e o de Portugal pareceu cessar. O ano 1200
entrou sem escaramuças. Assim diz o outor da «História de Portugal» editada pela Tipografia Universal em 1854: «desde o ano de
1200 não encontrámos vestígios de continuar a guerra entre Leão e Portugal...»

(4) – O castigo do rei –


Tendo o Papa lançado a excomunhão sobre os reis de Leão e Portugal devido ao pouco caso que faziam da sua condenação do
consórcio da infanta D. Teresa de Portugal com Afonso IX, os dois reis, levados pela pressão dos seus vassalos, acabaram por ceder,
e os dois esposos separaram-se no ano de 1195.
(8) – Conselheiro Julião –
Não sabemos ao certo se este amigo e conselheiro do rei que aparece na nossa lenda seria o chanceler Julião, «homem bastante
inteligente embora de consciência larga» - segundo o cronista – que muito ajudou D. Sancho I no governo do país. Mas tudo leva a
crer que sim.

(9) – O testamento de D. Sancho I –


Consultando vários livros antigos, entre eles a já referida «História de Portugal» editada em 1854, encontrei o testamento de D.
Sancho I de Portugal. Refiro-me, não ao primeiro testamento, feito por este rei após a sua subida ao trono, mas àquele segundo e
curioso testamento do qual vou transcrever apenas o começo: «”...” Dei também, a minha filha a rainha D. Teresa, por herança,
Montemór e Esgueira,”...”».
Como se vê, D. Sancho I não esqueceu Montemór no legado a D. Teresa. Porém, o que a história não conta é que esta rainha tivesse
aí acabado os seus dias. Pelo contrário. Ao que se sabe, foi D. Teresa quem reformou o antigo mosteiro do Lorvão, da ordem de S.
Bernardo, onde morreu com fama de santa, sendo beatificada por Clemente XI no ano de 1705.

(10) – Montmór-o-Novo –
A antiga «Castrum Malianum» é vila, sede de concelho rural de 2ª ordem, distrito e diocese de Évora. No dia 1 de maio tem o seu
feriado municipal, com feiras anuais nos três primeiros dias desse mês. Foi teatro de muitas lutas, mas ostenta também uma folha
larga de serviços prestados à causa de Deus e ao País. É em Montmór-o-Novo que existe o célebre Hospital de S. João de Deus, que
lá nasceu, e cujo nome no século era João Cidade.

No II volume de “Topónimos e Gentílicos”, Xavier Fernandes afirma que este Montemór é o mesmo que Monte Maior e foi o antigo
Mons Maior Novus. Por seu turno, a tradição assevera que a remota Castrum malianum, de que os romanos já falam no ano de 93 da
nossa era, foi berço natal da notável Santa Quitéria, cuja origem e martírio são objecto das lendas mais díspares e inverosímeis.

Quanto ao estudo da origem do nome de Montemór, Manuel Claro faz os seguintes comentários, insertos no volume III do «Album
Alentejano (Montmór-o-Novo Histórico e Monumental)»: «O nome de Montemór tem origem nos Celtas. Contraporíamos a Bem-
Mór, que os ingleses derivam dos Celtas, Monte Grande, pois pode ter-se substituído o Bem por Monte. E quanto ao Mór, tanto dos
Celtas como dos Germanos nos poderia ter vindo, pela sua excelente situação geográfica».

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