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Sebald
Como comecei a ler Austerlitz logo depois da Marcha de Radetzky, foi um choque de
leitura. O ritmo do texto de Austerlitz é muito diferente, mais lento, mais prolixo, com cara de
devaneio. Se com o Roth eu apostava uma corrida com o texto, na velocidade do pensamento,
com o Sebald, parecia um transe: mais monótono, uniforme e constante. Eu demorei a entrar
na história, mas ao longo do livro, fui pegando o gosto por ela. Enquanto lia, o Sebald foi se
afastando do Roth, e acabou se aproximando do Borges, que eu achei mais interessante. Mas
vamos começar do começo.
Em termos de formatação, é um livro que assusta. E não pela capa, que você despreza,
mas pelo preenchimento: as páginas têm blocos de texto sem parágrafo; ao folheá-las rapi-
damente, não existe divisão de capítulos. A impressão é que o texto é plano sequência, meio
Saramago, que começa na primeira página e termina só na última, sem cortes ou intervalos.
Não deixa de ser, certo? Outro detalhe de diagramação interessante – e eu comentei sobre ele
na minha resenha do Joseph Roth –, é que ele é visualmente parecido com os livros do Aldo
Rossi. Textos longos sobre arquitetura permeados por fotografias, entre o estudo e o diário
pessoal. Desnecessário dizer que essa semelhança se consolidou para mim. Mas acabei de dizê-
lo. E direi de novo, mais à frente nessa resenha.
Eu tenho a impressão que sou muito ingênua e literal quando ouço uma história. Tendo
a acreditar piamente no que está sendo contado, preciso de tempo para alcançar as entre-
linhas, e estranhei bastante a descrição do Austerlitz (personagem) sobre o Palácio de Justiça
da Bélgica, quando ele descreve o edifício como um enorme labirinto, construído e modificado
ao longo de anos, onde há salas inacessíveis e totalmente fechadas aos usuários. “Mas esse tipo
de construção é impossível, como vão fazer uma sala sem entrada?”, pensei. Primeiro que é
absolutamente risível que eu caia numa dessas, e segundo que eu precisei da explicação explí-
cita de um podcast para perceber que aquela descrição fazia uma alusão à memória e à cons-
ciência. A propósito, foi o podcast que te indiquei, About Buildings and Cities. Eles são ótimos,
mantenho minha recomendação.
A partir daí, passei a entender que o Austerlitz nunca falava de arquitetura, mas sim
dele mesmo. E de fato, ele passa a narrar a própria história, através dos lugares, das pessoas,
das cidades. O paralelo com o Aldo Rossi se instaurou de vez, e nunca mais me abandonou ao
longo do livro. Ao meu ver, o Arquitetura da cidade carrega mais semelhanças com Austerlitz,
embora a Autobiografia científica tenha o caráter pessoal mais em evidência, logicamente. O
que eu acho que aproxima o Arquitetura da cidade de Austerlitz é o sentimento de nostalgia
dos dois textos. Falam de arquitetura, descrevem minúcias de cada construção, utilizam os
nomes técnicos para cada canto da cidade ou do edifício, postulam meios de uso, relatam a
ocupação ao longo dos séculos, analisam cada detalhe. Por trás de todo esse conhecimento,
tanto o Austerlitz quanto o Rossi revivem aquilo que já não é mais, ativam tempos passados,
tentam trazer para o presente algo que já morreu, sobrepõem tempos históricos como se pudes-
sem provar a não-linearidade do tempo, sua sincronia simbólica. É um jeito de manter alguma
coisa ali viva, como se aquele evento (construção, histórias que ocorreram) não fosse em vão,
como se eles mesmos pudessem provar um certo propósito de todas essas particularidades que
os prédios e cidades carregam, ao invés de meras contingências temporais, totalmente cotidi-
anas e relativamente insignificantes. Eu mesma oscilo entre os dois pólos frequentemente.
Sei bem que tenho muitos textos do Rossi que vão mudar minha opinião a respeito des-
sa visão melancólica (que na verdade, já mudaram). Ao meu ver, tenho duas opções de defesa:
ou eu justifico que à época que li Austerlitz, me faltava um pouco mais de repertório em rela-
ção ao Rossi, ou então, assumo que a melancólica sou eu, e que eu emparelhei esses dois textos
porque uma coisa me lembrou a outra. O ponto é que eu não acho que tem como não empa-
relhar. Vou dar uma de Jorge Luis Borges e comparar dois trechos aqui, à la Pierre Menard.
Diz Sebald:
Naquele tempo, vimos um bom número de casas das quais se tinha subtraído
praticamente tudo, as prateleiras de livros, os lambris e a balaustrada, os
canos de aquecimento de latão e as lareiras de mármore; casas de telhados
desmoronados e cheias até o joelho de entulho, lixo e escombros, de excremento
de ovelhas e aves e do gesso que esfacelara do teto, amontoado em grandes
torrões argilosos.
Agora Rossi:
Quando levanto então de manhã cedo, ainda os vejo pousados em algum ponto
da parede, imóveis. Eles sabem, imagino, disse Austerlitz, que se perderam,
pois, se não são postos de novo para fora com cuidado, continuam onde estão,
parados, até exalarem o último suspiro — permanecem no local da sua
desventura mesmo depois de terminada a vida, seguros pelas minúsculas
garras enrijecidas na sua última agonia, até que um golpe de ar os desprenda
e os lance em um canto empoeirado. Às vezes, observando uma dessas
mariposas que chegam ao seu fim na minha casa, pergunto-me que tipo de
medo ou dor elas sentem enquanto estão perdidas.
Eu adoro essa ideia do congelamento até o último suspiro, e acho bonito que alguém
tenha se perguntado o que passa pela cabeça de uma mariposa, ou como ela se sente com sua
angústia. Volta e meia eu me pego pensando sobre essa passagem, e me pergunto se é isso
mesmo que acontece, se as mariposas se perdem e resolvem ficar paradas até a morte. Nunca
dei muita atenção às mariposas que achava pela casa até ler essa passagem. Será que elas
sentem angústia? Essa transposição de sentimentos dos humanos para animais sempre rende,
não? Não é à toa que memes de gatos e cachorros fazem tanto sucesso. Falamos deles, mas na
verdade, falamos de nós mesmos através deles.
O Austerlitz fala dele mesmo através dos lugares, da arquitetura e da história. Aí entra
minha fascinação com a linguagem: é claro que ela não dá conta da infinitude e complexidade
de nossos sentimentos e afetos, mas é o meio que temos para tentar dizer um mínimo, uma
fração daquilo que carregamos internamente. Seria a história um desses meios? Pelo Sebald,
eu diria que sim. A história dos pais de Austerlitz contada através dos acontecimentos da
Segunda Guerra, sua própria história contada através da arquitetura de Praga, de Bala, de
Paris. Todos contribuindo com fragmentos para a história geral do mundo, e a história geral do
mundo abrangendo as histórias individuais.
Essa noção de fragmento me lembra outro texto do Borges, lindíssimo, claro: Borges e
eu. O narrador fala do seu próprio sumiço no mundo, no tempo, e no “monumento” Borges.
Você conhece? Ele diz: “Al m disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e s
algum instante de mim poder sobreviver no outro.” (Pausa dramática). Um instante de mim,
um átimo, um fragmento no todo. É muito bonito, de suspirar mesmo. Aqui eu relaciono
é
á
ó
Borges a Austerlitz, e ambos a uma leitura recorrente que fazem do Rossi, de que a arqui-
tetura serve de “cenário”, ou pano de fundo (chroma key?) para as vidinhas que levamos, cada
um a seu tempo. Sim, eu sei, outros autores já balançaram essa interpretação, mas em se
tratando de Austerlitz, não tenho como não levantar essa bola.
Essa interpretação apareceu também num outro podcast que me indicaram, junto com
a noção de eternidade. A nossa atuação no tempo, escolhas que fizemos, ativa ou passi-
vamente, influenciam o curso da história, que só é o que é através da soma de todos os acon-
tecimentos que levaram até determinado momento, nosso momento, ou momentos futuros, que
seja. Um conjunto de instantes de nós, eternizados nos acontecimentos. É bem bonito, embora
eu não esteja convencida da noção de eternidade por esses meios. Também acho que a eter-
nidade não está presente em Austerlitz, mas um quebra-cabeça de momentos que ele tenta
montar para achar seu lugar no mundo.
O contraponto interessante dessa prosa toda é que tanto Aldo Rossi quanto Sebald
(Austerlitz?) ligam a memória com espaço. Descrevem lugares, agregam valores simbólicos a
eles, e existe essa ideia bonita – que eu também adoro – do Rossi de que o espaço faz a
memória. Para cada momento vivido e lembrado, existe o componente local atrelado a ele. Esse
ponto me convence completamente. Qual não foi minha surpresa ao ler o diário de luto do C.S.
Lewis, quando ele descola o luto do espaço? Ele diz que a ausência de sua esposa não é sentida
com mais ênfase nos lugares que visitavam, mas que é presente e constante em todos os
lugares. É uma difusão completa, abrange tudo. Eu entendo como se ele dissesse – sem dizer –
que o luto fosse temporal. Ou atemporal, eternamente presente, minando inclusive o passado e
o futuro.
Lembro da Maria Rita Kehl mais uma vez, e o não-tempo do inconsciente, da melan-
colia, da depressão, e do luto. É o tempo do Austerlitz, eternamente em épocas passadas, com
pouquíssima existência no presente: deixa passar o amor de sua vida, vive numa casa quase
sem móveis, sem cor, muda-se de cidade em cidade. Um presente eterno e cinza.
E aí tem o trecho mais bonito do livro, aquele que fez o livro todo valer a pena para
mim: a medição e passagem do tempo. O Austerlitz quer viver nesse não-tempo, na sincronia
dos eventos, na sobreposição dos acontecimentos. Isso sim é eternidade. Por sinal, uma ideia
atraente. Bom, tenho a impressão de que a eternidade é um desses mistérios fascinantes para
nossa existência limitada. Além disso, é uma descrição perfeita da completa arbitrariedade do
mundo como construímos. Você também gosta desse trecho, vou transcrevê-lo aqui, para você
desfrutar dessa primazia novamente:
Eu poderia falar por horas a respeito só desse trecho. Ele é tão preciso e envolvente que
em cada frase cabe uma resenha inteira. “Um tanto de infelicidade pessoal já basta para nos
cortar de todo o passado e de todo o futuro”. Essa definição é perfeita para o luto! O que talvez
reforce a observação do Lewis, de que o luto não é uma questão espacial. E esse desafio de que
o tempo é ele mesmo pouco contemporâneo? É ótimo! Não parece à toa que existem tantas
frases motivacionais ou dicas de meditação que incentivam a estar no presente, porque esta-
mos sempre em algum outro lugar. De certa forma, não seria uma fração desse desejo auster-
litziano de simultaneidade? Estamos aqui, lembrando de ontem, e, em algum nível simbólico,
esses tempos de fato se sobrepõem? É perfeito. E as possibilidades de caminhos a explorar são
incontáveis. Novamente, O jardim das veredas que se bifurcam.
Estou com medo de dispersar demais e acabar num solilóquio de muitas páginas eu
mesma, então acho prudente encerrar minhas considerações por aqui. O paralelo principal era
entre o Aldo Rossi, Jorge Luis Borges e o W.G. Sebald. Acabou aparecendo o C.S. Lewis, e até
um podcast que explorava espiritualidade e marxismo (por isso a questão da eternidade). Veja,
essas relações foram uma surpresa para mim também. No fim, minhas considerações escritas
são boas para você ver (ou ler) como funciona minha cabeça. A Regina Meyer comentou sobre
isso na disciplina do seminário, que eu ia associando temas numa corrente sem fim, o que
obviamente é um problema para o mestrado. Mas podemos conversar sobre o mestrado em
outras circunstâncias. Esse texto é para tratar de literatura.
Austerlitz é um ótimo livro mesmo, eu achei que tinha gostado mais da Marcha de
Radetzky, mas agora já não sei dizer. Talvez eu sinta o mesmo com A morte de Ivan Ilitch,
que, se você ainda quiser, pode ser a próxima resenha. O que posso afirmar, com certeza, é que
eu tenho ressalvas em relação à afirmação da minha amiga – de que Brás Cubas não perde
para Ivan Ilitch. De fato, não perde, mas eles não são tão comparáveis assim. Deixo para
explorar esse argumento na próxima resenha. O bom das suas indicações é que elas são muito
diferentes entre si, com escritas que se chocam de um livro para o outro, e com as minhas
próprias leituras particulares. Seguimos com as indicações e considerações literárias?