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CENA 1:

Horácio:
Começava assim, com o escuro. Apenas a luz da lua, por sobre as nossas cabeças. (aponta) E de
lá ouvia-se um ruído, que assustava ao ator, sozinho no centro do palco.
O escuro era essencial; a noite, ao longo da cena, ia passando, o dia ia clareando. Refletor por
refletor, as luzes no palco se acendiam, aos poucos. E a fumaça anunciava a presença do
Fantasma. Ah, eu achava lindo, a fumaça, o escuro, os refletores se acendendo aos poucos,
tudo muito teatral, com muito bom gosto.
(aponta para a coxia) Eu ficava ali, escondido, tremendo de medo.
O que era bom, na verdade, muito bom, porque me ajudava a falar as primeiras linhas do
texto. Sim, a covardia de um ator pode ser o seu melhor método. E nos dias que eu me sentia
mais confiante, eu olhava para a plateia e via os rostos, a expectativa nos olhos deles era o que
chacoalhava as minhas pernas. Tremia de medo, de frio e medo, e usava isso em cena, ah sim!
Entrava em cena, tremendo, e escondendo meu temor de meus companheiros de cena. Não,
eu pensava, não, um oficial não poderia ter medo diante de seus subordinados. Eu sou amigo
do Príncipe! Como poderia me apavorar naquela noite escura, com um boato, um mero rumor?,
eu pensava. E assim eu escondia meu medo. Mas quando a coragem começava a me voltar,
quando o medo ameaçava faltar, eu estrategicamente olhava o público atento, e sentia,
aliviado, a covardia tomando conta de mim. Ah, isso sim era um laboratório de atuação! O
medo diante da plateia, da expectativa da plateia, guiava o ator dentro de sua personagem.
Não é bonito?
Era escuro, apenas a luz da lua e uma lamparina que trazíamos a mão. Era lindo, a fumaça
entrava, aumentávamos o ar condicionado no talo, todos nós sentíamos muito frio. O público
também. E aí entrava o Fantasma. Da esquerda, cruzava o palco, vindo para a direita baixa, ao
nosso encontro. E nós, covardemente fugindo para o fundo do palco, e depois, fingindo
coragem, nos aproximando da boca de cena, só para ver o Fantasma sair pela outra cortina. Eu
tomava coragem, lhe dizia para falar, lhe dizia que se era gente ou criatura, que tinha de me
dizer o que queria. Mas ele jamais me respondeu. Não, nunca falou, não com palavras. Parava
sempre no quase. Era o ápice da cena, o fantasma prestes a falar. Uma vez, mais inspirado – eu
ouvi, juro pela minha vida – ele peidou. Eu lhe dizendo: fala, criatura, fala!; e um sonoro
PUUUUUUUUUUUM ecoando por todo o teatro.
Tive vontade de rir, é claro.
Mas olhei de novo para a plateia, espantada com tamanha heresia. Como podiam fazer isso
com esse texto?
Aquele som, aquela trombeta, aquela sonora flatulência... era um anúncio, por certo que era.
Nós ali, falando do sobrenatural, mas incapazes de escutar nossas próprias entranhas... tem
algo de podre no reino da Dinamarca! (ri).

O galo então cantava. De longe, lá da plateia, alguém fazia cocorico.


E o fantasma ia embora, deixando a nós sozinhos, perdidos, diante dos olhos daquelas pessoas
que não nos conheciam, mas que sentiam o cheiro da nossa merda.

CENA 2

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