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Edgar A.

Viagem pela obra de Poe


PERSONAGENS:

MARIO (O gato)- Ator, o mais tranquilo e seguro dos amigos

PEDRO (O bêbado)- O mais novo e medroso da turma, acredita em energias e tem medo das obras de Poe.

ANA (A mulher)- Atriz, forte e com temperamento difícil. Gosta de tim sarro e implicar com Pedro.

POE – Escritor.

Cena I - apresentação de Poe

Poe – Senhor, por favor, ajude a minha pobre alma! (inicia-se o tiquetaquear do relógio, que
deve acompanhar todo o espetáculo).

Não espero nem peço que acreditem no que irei demonstrar, interpretar ou representar e
talvez nem acreditem nestes relatos estranhos e simples. (ri). Louco sou eu se esperasse
isso de vocês, pois eu mesmo rejeito os fatos, apesar de os terem testemunhado. (ri
novamente) E com toda certeza não estou sonhando.

Com certeza, todos irão perceber que os relatos de pavor, nada mais são do que uma
sucessão de causas e efeitos muito naturais.

Mas, amanhã posso morrer e hoje quero aliviar a minha alma (em um ataque de loucura)
Senhor, por favor, ajude a minha pobre alma!

Cena II - Chegada dos atores

(barulho de chuva forte, muitos raios e trovões, dá se a entender quase que um caos
aquático).

MÁRIO- Caraca... Que chuva é essa?!

PEDRO- É bom que lava a alma antes da gente ter que falar de tanta coisa sombria.

ANA – Ih Pedro, vai começar com esse papo de energia de novo?

PEDRO- Tá, Foi mal. Não ta mais aqui quem falou. Só não acho uma boa ideia trazer Poe
para o teatro.

MARIO – Eu também tenho minhas dúvidas se isso pode dar certo.

ANA – Eu confio plenamente no nosso diretor, e se ele acha que o melhor para esta
companhia seja Edgar Alan Poe, eu acredito!

Sobem ao palco, cada um fica em um canto. Silêncio. Todos tiram a máscara, com exceção
de Pedro.

Pedro – Sério isso?


Mario e Ana – O que?

Pedro – A máscara... precisa tirar?

Ana – Estamos sozinhos aqui.

Pedro – E?

Ana- E... que a gente tá dentro do teatro, longe do vírus.

Pedro – O misterioso vírus que não entra em determinadas construções... faça-me um


favor.

Mario – Pedro, relaxa, teatro com máscara não funciona, né. Fica difícil de entender.

Pedro – Ta bom... vocês venceram. Cansei de ser o chato da companhia.

MÁRIO- Bem... Será que o resto do pessoal vai demorar pra chegar?

Pedro- O Combinado é começarmos o ensaio as 19h né..

ANA- E que horas são?

PEDRO- 20h30...

ANA- Bom, atrasar faz parte, não é?

PEDRO- Se você acha... Eu acho uma falta de respeito com a gente. Imagina, deixar a
gente esperando nesse teatro velho, cheio de energia pesada das personagens que aqui
passaram...

ANA – Pedro, achei que ia parar de ser chato. Controla esse seu medo ai vai, por favor.

MARIO – É Pedrão, até eu preciso concordar que já passou da conta.

PEDRO- Medo, eu? Quem disse que eu estou com medo? Eu não tenho medo de ficar num
teatro velho assim, durante uma tempestade, enquanto leio um bom e velho livro.

Ana assusta Pedro

PEDRO- Puta merda, Ana.

ANA- (Rindo Muito) Cadê? Cadê o homem que não tava com medo?

MARIO- Ei, querem parar vocês dois?

ANA – Foi mal, Mario, mas ele mereceu.

PEDRO- Sempre tão Engraçada, não é Ana?


MARIO – Chega vocês dois. Numa coisa o Pedro tem razão... Uma hora e meia atrasados...
não acho certo o pessoal fazer a gente esperar tanto. Tenta alguém falar com eles, aí. Eu
estou com zero de sinal aqui.

ANA – Pior que também estou sem sinal...

PEDRO – Aqui está normal, eu pergunto pra eles.... (Pega o celular)Acabou a bateria.

A tempestade fica cada vez mais forte.

PEDRO- Ótimo, cá estamos nós. Num teatro velho, sem sinal no celular, sem poder sair por
causa de uma tempestade.

ANA – Bem, então bora estudar. (Pega um livro do Poe)

PEDRO – Sério isso?

ANA - É sério sim.

PEDRO – Mario, você não vai concordar com essa doida né?

MARIO – E por que não? Ela tem razão. Não temos como sair daqui. Viemos para ensaiar.
Então vamos começar estudando a obra do cara.

ANA – E outra, quer situação melhor para ler Edgar Allan Poe?

PEDRO – Na minha casa?!

MARIO – (Dando um livro na mão de Pedro) Vai cara, entra no clima. A gente precisa
estudar se quiser fazer algo bem feito.

Neste momento a luz acaba.

PEDRO- Ótimo. Agora sim, não falta mais nada. Acabou a luz. Como que lê assim?

ANA – Calma, vou ver se acho umas lanternas pra gente. (Sai, pega as lanternas e as
entrega)

MARIO – Perfeito.

Pedro – É... Perfeito... Ler no escuro. Uhul!

Todos sentam e folheiam os livros.

ANA – A gente pode começar com um que separei aqui. Pode ser “A mascara da morte
rubra”?

MARIO – Podemos Ler.

PEDRO – Sobre o que é?


ANA – Sobre uma doença, que mata todos fora do castelo, até que alguém com uma
mascara vermelha entra no castelo e todos morrem.

PEDRO – Já vi isso hein… (pausa) Tá, eu começo. (Lendo) Havia muito tempo que a
“Morte escarlate” devastava todo o país. Jamais uma peste fora tão letal e terrível…

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO

Cena III - (baile da morte vermelha)

(inicia-se um som de relógio bem marcado)

O Gato - Sejam todos bem vindos, senhoras e senhores, neste lugar estamos protegidos!
Nunca, nada nos afetará. Aqui, estamos livres de qualquer peste, qualquer desgraça,
estamos livres do amor. Não nos faltará grãos e vinhos, não nos faltará alegria e dança.
Vinde, vinde todos! comei de minha comida, bebei de minha bebida. Só não se apaixonem;
poderá ser este o fim!

Que comece o baile!

MÚSICA INSTRUMENTAL

(começa um minueto que A mulher e o Bêbado devem fazer, ainda separados como se
dançassem com seus respectivos pares, à medida que se encontram a música vai se
transformando em um tango. Ambos devem dançar o tango de duelo, que vai se
transformando em um tango apaixonado, a passo que o Gato passa de vermelho, vestido
também com uma máscara vermelha, ele passa lentamente).

Poe - Tornei-me escravo cativo às tramas do amor e meus trabalhos e decisões assumiram
as cores dos meus sonhos, mas a esses absurdos não devo detalhar. Permita que eu fale
somente sobre aquele cômodo amaldiçoado e daquela aparição fantasmagórica.

(Enquanto o Poe fala o texto acima, acontece um beijo, e com agressividade. A música vai
se transformando em um som pesado de badalar do relógio. Ao final da última badalada
acontece também o blackout, luz somente na máscara vestida pelo gato, dando uma
imagem fantasmagórica).

Poe - Os foliões tombaram, um por um, nos salões de baile respingados de sangue, caindo
na posição em que foram ceifados, crispados de desespero. A vida do relógio de ébano
esgotou-se junto com o coração do último convidado. As chamas das lamparinas
extinguiram-se. E a Escuridão, a Decadência e a Morte Vermelha instauraram seu reinado
sem limites sobre tudo.

Cena IV - O corvo

Silencio. Pedro, que está no centro põe a mascara de novo. E todos os olham com ar de
julgamento.
Mario - Nunca tinha parado para pensar o quão atual a obra de Poe pode ser.

Ana - Isso é, o mais louco é que dois anos atrás, se eu tivesse lido isso, ia dizer que nunca
passariamos por algo parecido.

Pedro - Exatamente.

Mario - O que mais me impressiona é que, no conto, mesmo com uma peste matando todos
ao redor do castelo, eles ainda dão uma festa cheia de gente, e esquecem do risco…

Ana - (Sarcástica) Nossa, eu nunca vi isso antes…

Mario - A ficção se mistura com a realidade.

Pedro - Depois não quero saber de vocês por não terem me escutado.

Ana - Bom, se nos arrependemos é sinal que aprendemos né.

Pedro - O difícil é conviver com a culpa depois.

Ana- Não tenho problemas com isso.

Pedro - Mesmo? E a culpa não fica ecoando na sua cabeça?

Ana - Depende do que estamos falando.

Mario - Culpa é culpa. E quem a carrega, não a deixa tão cedo.

Atores congelam. Entra Poe, escrevendo.

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO

Cena V - O corvo

Poe - É possível repousar sobre qualquer dor de qualquer desventura, menos sobre o
arrependimento. No arrependimento não há descanso nem paz, e por isso é a maior ou a
mais amarga de todas as desgraças. O remorso é uma impotência, ele voltará a cometer o
mesmo pecado.

(cena de confessionário)
A Mulher (para o Gato) - Ola, quero me redimir, eu preciso da minha salvação!

O Gato - Diga seu pecado e darei tua penitência.

A Mulher - Esta noite, enquanto eu lia, quase adormecendo uma tristeza se apossou do
meu coração, o tornando completamente sombrio.

O Gato - É só isso e nada mais?


A Mulher - Nada mais.

O Bêbado- (para o gato) Eu me lembro bem, era um dia frio de Dezembro. Eu lia meus
livros para tentar esquecer de minha amada, e quando enfim pude esquecer seu nome, me
senti culpado por não me lembrar mais. E uma tristeza preencheu meu coração, invadia
meu peito.

O Gato - É só isso e nada mais?

O Bêbado- nada mais!- e após isso, eu sentia em meu peito grande trevas, ela foi entrando
de forma sorrateira, se alojando lentamente em cada pequeno espaço do meu coração, da
minha casa, da minha imaginação e então eu sussurrei o nome dela. Eu preciso do perdão!

O Gato - É só isso e nada mais?

O Bêbado - nada mais!

A Mulher - (para o Gato) Eu percebi, ou imaginei o som do vento frio na minha vidraça. Me
perdoe! Eu abri a janela, foi quando ele entrou em minha vida. Era uma ave grande e preta,
um corvo. Pousou na minha janela!

O Gato - pousou e nada mais?

A Mulher - Nada mais. - (para o Gato) - E eu sorri!, eu sei que não deveria, mas sorri. Eu
queria saber o seu nome, mas o nome que deveria vir das terras infernais. Eu queria saber
o motivo daquela escuridão, gritei! e não ouvi nada.

O Gato - Nunca mais?

A Mulher - nunca mais.

O Bêbado - (para o gato) Estando eu em pecado, sinto como se minha alma estivesse
coberta por um veludo, que impede que a luz entre, eu não tenho mais salvação. Se há um
bálsamo para a minha alma, eu peço que me entregue.

A Mulher - Nunca mais. (para o Gato) Aquela ave seria um profeta ou um demônio? Vá
embora, tome a noite e a tempestade. Vai embora!, não deixe em mim a solidão que me
resta, leva esse vulto do meu peito.

O Gato - (para a mulher) Nunca mais.

Poe - E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda por sobre os meus umbrais. Seu
olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra
no chão há mais e mais, E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á...

Todos - nunca mais!


Os atores voltam, Mario fecha um livro, como se tivesse acabado de ler o Poema “O Corvo”.

Mario - E então? O que acham desse?

Ana - Eu não entendi nada.

Pedro - Também não sei se entendi muito bem.

Mario - Não é óbvio? Olha o tamanho da culpa do Eu-lírico. Ele é atormentado por suas
memórias, atormentado por um amor interrompido. O corvo que ele conversa, traz para ele
verdades duras de aceitar.

Pedro - Pestes, culpas, amores interrompidos…

Ana - Me identifiquei.

Mário - Boatos que as histórias dele, são sobre a própria vida.

Pedro - Agora eu tenho que acreditar que esse doido falava com corvos?

Ana - Não, mas já reparou que as histórias quase sempre são protagonizadas por um
bêbado? Adivinha só quem tinha problemas com bebida… E os problemas afloraram após a
morte da mulher que adoeceu.

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO

Cena VI - (Berenice)

(enquanto o gato retira do cadáver os dentes).

O Gato - Ahn! e como se conheceram?

O Bêbado - Nos conhecemos ainda tão cedo. Nosso amor veio de uma força notável do
vigor da imaginação e do ardor da paixão.

O Gato - (fazendo força com uma das mãos e fumando um cigarro com a outra) ahn!

O Bêbado - Você me acha louco? (pausa) Chamaram-me de louco; mas a questão ainda
não está resolvida: se a loucura é ou não a inteligência sublimada, o que você acha?

O Gato - Os que sonham de dia, conhecem muitas coisas que escapam aos que sonham
somente de noite. É para tirar todos os dentes?

O Bêbado - sim! todos eles.

O Gato - no duro?

O Bêbado - No duro.
O Gato - Mas, não quero que os outros saibam que fiz esse serviço hein, eu sou professor
de odontologia.

O Bêbado - Sabe de uma coisa, eu sempre soube que os pensamentos de um doente não
podem brotar de um espírito exaltado, será que aqueles que dormem a noite sonham com
as mesmas coisas daqueles que dormem durante o dia?

(pausa)

O Gato - (dá uma gargalhada e começa a tirar os dentes cada vez com mais velocidade) e
porque se apaixonou tanto assim, qualquer um sabe que o amor não vale a pena.

O Bêbado - eu me apaixonei por Berenice, os olhos eram lindos, os lábios eram delicados
como o orvalho em gotas sobre uma cereja.

O Gato - Canalha! (ri) se apaixonou pela promessa de paz, por medo de morrer sozinho.
Você se apaixonou pelo dinheiro dela.

O Bêbado - foram os dentes.

O Gato - só falta mais um (faz força). Pronto!

O Bêbado - (se coloca a contar os dentes).

O Gato - estão todos aí!

O Bêbado - os 32?

O Gato - os 32!

O Bêbado - Como foi que da beleza eu derivei um tipo de horror? Do símbolo da paz, fiz do
sofrimento um troféu, mas como na ética o mal é consequência do bem, assim do prazer
nasceu com efeito a dor.

Vivíamos sob o calor de um sol tropical, nosso amor reluzia, brilhava como um arco-iris,
com cores tão variadas e agora, do amor, nenhuma vereda mais se abrirá, a morte em seu
esplendor me sufoca, já não posso respirar.

Berenice! Berenice! sua imagem ergue-se diante de mim, tão gloriosa e bela; Oh,
esplêndida e, no entanto, fantástica beleza! E então... então, tudo é terror e mistério... e
uma estória que não deveria ser contada. (pausa) Uma doença – uma doença fatal

O Gato - Oh, amizade!!!

O Bêbado - onde estava ela? Eu não mais a conhecia… ou não a conhecia mais como
Berenice.

O Gato - Amigo!

O Bêbado - Os dentes! Eles estavam aqui e ali, em qualquer lugar, e visíveis, e palpáveis
diante de mim; longos, estreitos, excessivamente brancos, com os lábios pálidos
retorcendo-se sobre eles, como no exato e terrível momento em que apareceram pela
primeira vez. Então, me veio a fúria total, e lutei em vão contra sua estranha e irresistível
influência.

O Gato - Ah! meu amigo! eu tenho um outro cadáver para receber em 15 minutos! você já
tem seus dentes, pode me dar licença?

Poe - Chamou minha atenção para um objeto qualquer que estava encostado na parede,
olhei para examinei durante alguns minutos.

O Bêbado - será que… (grito) O que você fez?

O Gato - (tirando ele da sala) Eu? (acusando) o que você fez? (quebrando) ta bom...
Próximo!

Cena VII - (Eleonora)

O Bêbado - desde ontem que você está nessa posição.

A Mulher - já me ajoelhei várias vezes.

O Bêbado - mas, não se deitou, nem dormiu?

A Mulher - Desde ontem que eu esperava!

O Bêbado - Esperava o que Eleonora?

A Mulher - Esperava você. Estava agora mesmo pensando, desejava fugir de tudo e todos.
Desejava fugir com você, queria que ninguém mais olhasse para você.

O Bêbado - pois então te prometo, agora aqui de joelhos: Jamais amarei alguma outra
mulher filha da Terra.

A Mulher - nem ela poderá te fazer feliz?

O Bêbado - Jamais! Tenho aqui por testemunha os anjos e querubins.

A Mulher - ainda é pouco, tão rápido os poderia enganar.

O Bêbado - invoco aqui então como testemunha o Grande e soberano Deus onipresente.

A Mulher - (ri e muda de tom) Você já se imaginou morto? de modo que ninguém mais
pudesse te tocar? tendo seus braços, peitos e costas em repouso total, sem que ninguém
pudesse nem ao menos te incomodar; morrer para se ter esse fim, seria um bem, não
compreende que seria um bem?

O Bêbado - compreendo.

A Mulher - Jura mais uma vez?, mas olha! A promessa é coisa séria, hein!

O Bêbado - pois mais uma vez eu juro: Jamais amarei outra mulher filha da Terra.
A Mulher - meu corpo já foi teu, é teu e será para sempre teu.

(passagem de tempo, mostra que Eleonora fica doente e morre, como que em um sonho a
cena retorna do início, porém a atriz agora apesar de ser a mesma, se comporta de forma
diferente.)

A Mulher - (chorando), nunca me disse que me ama. (pausa)

O Bêbado - Devo responder?

A Mulher - Desde ontem que eu esperava que me dissesse!

O Bêbado - Esperava o que Hemengarda?

A Mulher - Esperava seu amor e suas promessas profundas de paixão.

O Bêbado - pois então te prometo, agora aqui de joelhos: Jamais amarei alguma outra
mulher filha da Terra.

A Mulher - nem ela poderá te fazer feliz?

O Bêbado - Jamais! Tenho aqui por testemunha os anjos e querubins.

A Mulher - ainda é pouco, tão rápido os poderia enganar.

O Bêbado - invoco aqui então como testemunha o Grande e soberano Deus onipresente.

A Mulher - (ri e muda de tom) Você já se imaginou morto? Você pode morrer, não pode? É
tão fácil morrer, mas guarda contigo essas palavras: eu sinto que te amarei, assim como se
ama um grande amor de outras vidas, nem a morte seria capaz de nos separar,
compreende?

O Bêbado - compreendo.

A Mulher - Jura mais uma vez?, mas lembre que toda a promessa deve ser cumprida.

O Bêbado - pois mais uma vez eu te juro: Jamais amarei outra mulher filha da Terra.

A Mulher - Meu corpo jamais foi teu! e jamais será! (Sacando uma navalha e cortando-lhe
lentamente a garganta) Dorme em paz, fera imunda!, olha bem para mim. Sou
Hemenegarda!, e é em razão de sua promessa que conhecerás o céu. Nunca deves
esquecer dos votos que fez a Eleonora!

CENA VII

As luzes voltam a se apagar, lá estão os atores com suas lanternas.

Ana - Esse cara tinha mesmo problemas com mulheres. É só olhar esses dois contos que
acabamos de ler. Eleonora e Berenice.
MARIO - “As mulheres de Poe”… Existem livros e estudos que tratam só delas. Dizem que
de fato simbolizam mulheres que passaram pela vida dele.

PEDRO- São contos, galera. Acho que a gente não pode ligar o que ele escreve
diretamente com a vida do cara.

MARIO- Pra falar a verdade, eu acho que tem tudo a ver sim. Ele, de fato, perdeu mulheres
por quem jurou amor, por doença e pelo seus erros em relação à bebida.

PEDRO - Esse cara nunca esteve bem?

ANA - Pra mim ele é tempestuoso.

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO

Cena VIII - (Coração delator)

Poe – defino a poesia das palavras como a criação rítmica da beleza, o seu único juiz é o
gosto. Estando eu convencido, não preciso me preocupar em convencer alguém.

A mulher - quem está ai!

O Gato - Nervosa! está nervosa, pavorosamente nervosa (coloca água na bacia), dirá que
está louca!

A Mulher - Eu não estou louca!

O Gato - Está! está louca! a doença aguçou os seus sentidos. Ouça com atenção! Observe
a sanidade se esvaindo e com calma posso contar essa história para você.

A Mulher - Uma vez a ideia concebida, ela passa a assediar a minha cabeça, dia e noite.
Motivo? Não havia nenhum, paixão também não havia. Eu gostava do velho

O Gato - Não! não gostava do velho (a afoga).

A Mulher - Ele nunca me prejudicou e o ouro não me apetecia, acho que foi…

O Gato - o olho dele! foi o olho dele.

A Mulher - Sim! Foi isso o olho dele. Um olho de abutre, aquele olho coberto, embaçado
por uma membrana esbranquiçada…

O Gato - E você, decidiu que tiraria a vida do velho.

A Mulher - eu decidi tirar a vida do velho. E, vocês deveriam ter visto com que sensatez eu
agi, com que cuidado... meia-noite... enquanto todo mundo dormia. Eu sabia o quê o velho
sentia e eu tinha pena dele. Embora meu coração gargalhasse...
O Gato - E o que mais?

A Mulher - Você não pode imaginar a maneira furtiva com que entrei, passo após passo,
meus movimentos eram mais leves que uma fina teia de aranha, que espera por seu
alimento. (O Gato a afoga). Fui diretamente ao encontro daqueles olhos. Eles estavam
abertos e me observavam. Maldito olho!

O Gato - Eu disse que você é nervosa, agora você me entende bem?

A Mulher - tudo estava silencioso, somente o coração do velho não parava de bater!

O Gato - e batia, o som somente crescia.

A Mulher - sim, crescia, crescia crescia!

O Gato - e o velho não gritou?

A mulher - não gritou!

O Gato - e quem gritou então?

A mulher - O gritou foi meu. Gritei enquanto dormia. (pausa) O barulho está aumentando,
se tornando insuportável, quero me livrar disso. O barulho! O barulho continua aumentando.
(gritando e totalmente descontrolada) Ah! Deus, o que eu posso fazer? Vocês não escutam?
Será possível que não podem ouvir? Deus todo poderoso, salvai-me. Ah! Tira de mim esse
zumbido que insiste em aumentar! Me ajuda! Me salve! Tenha compaixão da minha alma!
(Gato a afoga).

Canalha! Sem mais dissimulação eu confesso o feito! Mas, parem as malditas batidas deste
coração!

Poe - feito!

Gato e Poe - (a afogando novamente) Culpada.

Voltam os atores à cena.

Cena IX

Pedro - Ta bom, gente, chega de leitura, por hoje.

Mario - Sério, Pedro? Agora que estava ficando legal!

A luz volta.

PEDRO - Que pena, a luz voltou, fim de universo de Poe.

No mesmo momento, ouve-se um barulho muito alto, e todos se assustam.

PEDRO - E isso, agora?


ANA - Calma, deve ser só alguma coisa que caiu lá no fundo.

PEDRO - Sozinha? Sem ninguém sair do lugar?

ANA - É, corrente de vento, sei lá.

PEDRO - Como vocês podem estar tão tranquilos?

MARIO - Acho que é você que está assustado demais.

ANA - Você precisa se acalmar. Para de criar suspense com nada. eu hein.

O barulho aumenta, e se repete aos poucos, a luz se apaga, quando volta a se acender,
estamos na cena do conto “A queda da casa Usher”

Cena X - A queda da casa Usher

Poe - Seu coração é um alaúde suspenso; tão logo tocado, ele ressoa.

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO (ALAÚDE)

O Gato - amigo, vem ou não vem?, estou doente e tenho minha irmã recém velada e
enterrada. Preciso de sua ajuda.

O Bêbado - Tenho medo.

O Gato - De quem? medo de que?

O Bêbado - Sua irmã tão cedo já está falecida desta mesma doença, peste esta que
também ceifou a vida de sua mãe, seu pai e todos que vieram antes de você.

O Gato - Já começa você, para de besteira.

O Bêbado - Não sei.

O Gato - somente a sua alegria pode me ajudar neste momento.

O Bêbado - mas não posso me atrasar para voltar para casa, sabe como é meu pai.

O Gato - um chato!

O Bêbado - não te contei? outro dia só porque cheguei atrasado 15 ou 10 minutos ele já me
deu uma surra tremenda.

O Gato - conversa, conversa!


O Bêbado - pois eu que não abra o olho!

O Gato - ele não saberá de sua visita, pronto! Como saber? só desta vez. Eu juro!

O Bêbado - vontade eu tenho.

( na casa)

O Gato - Às vezes eu me lembro dela.

O Bêbado - de quem?

O Gato - da minha falecida irmã, ela não era linda? Dá tua opinião.

(acontece o barulho) BLACK OUT

O Bêbado - era linda. Morreu com 17?

O Gato - 16!

O Bêbado - Enterrada no mês passado?

O Gato - Ontem! enterrada ontem, a morte sempre deixou as mulheres mais bonitas.

O Bêbado - Como assim?

O Gato - há algo misterioso e belo em um cadáver. (pausa) Só pode ser a morte!

(acontece o barulho)

O Bêbado - ta bom, já chega, eu vou embora!

O Gato -Sossega, camarada!

O Bêbado - meu pai me mata.

O Gato - antes, me prometa uma coisa?

O Bêbado - prometo, o que quer?

O Gato - Quando eu morrer, me abraça? Eu quero ser abraçado; morrer nos braços de
alguém... Parece bonito.

(acontece um grande barulho)

O Gato - Ouviu isso?


O Bêbado - Sim! ouvi isso durante o dia todo, mas tive medo. Não tive coragem de dizer
que eu escutava.

O Gato - (ri) Sim!

(acontece o barulho, ele parece cada vez mais próximo)

O Gato - Eu a enterrei, cuidei de todos os preparativos pessoalmente. Cada detalhe foi


cuidado com a atenção de um cirurgião em sala de cirurgia.

(acontece o barulho)

O Bêbado - você…

O Gato - mas ela adormeceu sem um abraço, sem qualquer amigo.

(acontece o barulho)

O Bêbado - então você…

O Gato - eu a enterrei viva no túmulo! E é hoje o dia, o arrombamento da porta do


eremita… mas não deveria dizer isso de forma poética, já que o louco e o assassino, sou
eu! eu digo, hoje é o dia do despedaçar da tampa do caixão, do ranger das dobradiças de
ferro de sua prisão e escuto seu avanço pelas arcadas do calabouço! Oh! Para onde devo
fugir? Ela não estará aqui dentro em pouco? Não está vindo apressadamente para me
repreender? Não são seus passos que ouço vindos da escada? Não percebo aquela
pesada e horrível batida de seu coração?

(acontece o barulho)

O Bêbado - Louco!

(entra a mulher e abraça o irmão de forma feroz e agressiva, ele tenta escapar).

Poe - Fugi aterrorizado daquele aposento e daquela mansão. A tempestade ainda assolava
o lugar e então veio uma furiosa ventania em redemoinho. Meu cérebro vacilou quando vi
aquelas maciças paredes cair em pedaços. E aos meus pés, de forma sombria e silenciosa
pude ver os destroços da “Casa de Usher”.

Cena XI

Ana - realmente, ele deve ter tido uma vida muito difícil, escreveu coisas muito profundas,
Sei lá! Eu mesmo, muitas vezes nem consigo compreender o que ele queria dizer.

Pedro - essa eu saquei! Já sabemos que a esposa dele morreu vítima da tuberculose,
certo? Bom, ele faz essa referência no conto do baile da morte vermelha. Na queda da
Casa Usher, ele fala da casa que se destrói e ele não pode fazer nada, a não ser observar;
é quase que divino, não há o que fazer para impedir a destruição da casa Usher.

Ana - Compreendo, muitas vezes ele usa de imagens alegóricas para dizer aquilo que
estava vivendo ou sentindo. É isso?

Mário - Exatamente isso, parece que estão começando a entender um pouco mais a mente
de Poe. Esse cara não era um alcoólatra como muito se foi dito. Ele bebia? Claro que ele
bebia, mas não era um alcoólatra.

Ana - Eu não gostava de Poe, porque ele sempre foi muito confuso pra mim, além do que
ouvi falar que ele era machista e abusava de mulheres também.

Mário - sempre que lemos uma obra, devemos tentar entender o momento em que ela foi
escrita e realmente as mulheres não tinham grande direito quando Poe era vivo, né?

Ana - Ele se casou com a prima!

Pedro - Isso é verdade. E olha, até aí tem mistério!

Ana - Como assim?

Pedro - essa eu me lembro, anotei! (Pega o caderno) Como na época as coisas não eram
muito registradas, alguns estudiosos dizem que eles se casaram quando ela tinha 13 anos.

Mario - mas outros dizem que foi aos 16 ou aos 18 anos.

Ana - pois é, isso não temos como saber. Muitos mistérios envolvem a personalidade de
Poe.

Mário - Quando Poe morreu, o grande rival dele Griswold, que também era escritor, ficou
responsável por escrever o seu obituário, então…

Ana - então é claro, se um inimigo seu, fica com os direitos de todas as suas obras e além
disso pode escrever sobre a sua vida, é claro que vai manchar a sua imagem, e isso
influenciou a opinião pública por séculos. (Pausa) eu mesma, quando o Pedro morrer, por
exemplo, vou espalhar os podres dele (ri).

Pedro - como é que é?

Ana - é brincadeira amigo, pode continuar.

Pedro- Alguns dizem que o grande motivo da rivalidade se iniciou, porque Griswold era
apaixonado pela esposa de Poe.

Mário - realmente, não se pode confiar em todos os “amigos”.

Cena XII - (O gato preto)


O Bêbado - Desde a infância todos observaram minha docilidade, minha humanidade e
meu caráter, sei lá! Existe alguma coisa que me encanta no amor altruísta, acho que é o
sacrifício de dar-se ao outro.

O Gato - Veio mais cedo hoje?

O Bêbado - Cadê minha esposa?

O Gato - Saiu!!

O Bêbado - Que Estranho! eu avisei que estaria chegando do aeroporto, eu disse que
poderia fazer o jantar!

O Gato - Pois é!

O Bêbado - E eu to com uma fome danada!

O Gato - Pois é, e nem deixou nenhum recado!

O Bêbado - ela está ai. Esposa! Esposa! (o gato ri), ah! ela está aqui sim. Ta rindo de que?

O Gato - Eu to rindo, porque você não está acreditando.Saiu!, ta aqui seu cafezinho.

O Bêbado - Como é bom ter um amigo tão querido como você!

A Mulher - (off) você pensa que sabe muita coisa. Mas o que você sabe é tão pouco! há
uma coisa que você não sabe, nem desconfia, uma coisa que você saberá porque será
contada por mim. Escuta meu marido…

(acontece a cena com a intenção de passado)

O Gato - Ele não vai aparecer aqui agora.

A Mulher - Jura?

O Gato - sei lá!, finge que morreu.

A Mulher - Quem?

O Gato - Teu marido. Morreu, pronto, morreu!

A Mulher - Então, não há pecado para a mulher que trai um marido morto.

(volta ao presente)

Poe - Nossa amizade perdurou com amor por diversos anos, porém, devido à interferência
criada pelo Demônio, já vivíamos uma mudança radical em nossa confiança. Um dia após
chegar em casa, bastante embriagado, após minhas noturnas caminhadas pela cidade.
Encontrei meu melhor amigo e minha mulher (encontra os dois aos beijos). A fúria de um
demônio possuiu-me instantaneamente; e uma malevolência mais do que satânica,
alimentada pelo gim, assumiu o controle do meu corpo. Tirei um canivete do bolso de meu
colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta pela garganta e deliberadamente arranquei da
órbita um de seus olhos. E como se não bastasse, passei uma corda em uma árvore e o
enforquei.

A Mulher - meu marido! Venha até aqui! Agora você me interessa. Talvez porque agora
exista um morto entre nós, e que segredo pode ser mais íntimo de um casal que não uma
morte a ser oculta por nossos beijos apaixonados?

Poe - em uma noite, eu estava entorpecido de tanto beber e o vi novamente! Era ele. Eu
juro que era ele mesmo, eu o via. E assim ele me seguiu para a casa. Passo após passo,
pausadamente me esperava e me seguia em seu ritmo mórbido. Dia após dia, ele se
deitava em minha cama com minha esposa

O Bêbado - Saia daí, já está trancada a meia hora!

A Mulher - Tenho medo!

O Bêbado - Não tem sentido, escuta! Eu sei que você está sozinha.

A Mulher - É o que você pensa?

O Bêbado - (ao ver a mulher que agora abre a porta) Vagabunda! Vagabunda!!!

Poe - Eu o via novamente, abraçado à minha esposa, ele me olhava, conseguia me


observar com a força de mil olhos, entretanto só podia observar um único, o único olho do
demônio que novamente e julgava por ter tirado de mim a esposa. Erguendo um machado,
dirigi um golpe com a intenção de acabar com aquela imagem fantasmagórica, porém
acertou diretamente minha esposa, fui acometido então de uma raiva. Ela caiu morta no
mesmo lugar, sem soltar um único gemido.

INSTRUMENTAL TRANSIÇÃO

Silêncio. Cada ator está em seu lugar no palco.

ANA - Como o ser humano é frágil…

Mário - É o vício, percebe? O personagem se corroe pelo vicio, e se engana. Enxerga o que
o vício permite ele enxergar. Não o que as coisas são.

ANA - Imagina o que não se passava na cabeça dele.

MÁRIO - Do personagem? Do bêbado?

ANA - Do próprio Poe.

MÁRIO - Como assim?

ANA - Não se escreve tamanhas calamidades sem vivências ruins.


MÁRIO - Ja falamos demais da vida pessoal dele né? Podemos focar nas obras?!

ANA - Mas vocês não ficam curiosos? Não querem saber como esse cara viveu?

PEDRO- Fico curioso pra saber como é que ele morreu.

ANA - Pedro.

PEDRO - Não, sério, não tem nada sobre a morte dele. É um mistério.

MARIO - Mistério mesmo é onde o povo do ensaio foi parar. Aquela tempestade já diminuiu,
já era pra ter chegado pelo menos mais um.

Ana levanta e vai até seu celular, ver as horas.

ANA - já fazem quase duas horas que estamos aqui e…

MARIO - E…

ANA - E ta todo mundo procurando a gente, preocupados…

PEDRO - Não é a gente que deveria estar preocupados com eles?

ANA - Deveria ser… se a gente tivesse chegado pro ensaio. São eles que ficaram
esperando a gente noite inteira.

BLACKOUT

Ligar a morte do Poe com o lugar errado do ensaio


Acaba bem e de forma incompleta!

Cena XIII - Atores vão embora

Cena XIV - Poe (finalização)

Poe - A vida do relógio de ébano esgotou-se junto com o coração do último convidado.

Em mim, esses relatos representam pouco a não ser somente o horror, mas para muitos
pode parecer somente repugnantes e antigos ou empoeirados; (ri) Quando um louco parece
completamente lúcido, é o momento de colocar-lhe a camisa de força.

Se o senhor estiver determinado a me abandonar de vez, então serei duas vezes mais
ambicioso do que já sou e, um dia, o mundo ouvirá falar sobre o filho que você julgou
indigno de sua consideração. (ri) Contudo, quem sabe alguém mais inteligente, sereno,
mais lógico e com certeza bem menos sensível do que eu um dia, reduzirá meus
fantasmas a um lugar comum, quanto aos senhores, não me julguem, já paguei a minha
penitência as consequências dos eventos já me aterrorizaram, me torturaram e por fim me
destruíram.

Senhor, por favor, ajude a minha pobre alma!

(blackout)

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