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TEXTO

DRAMÁTICO
_SÃO PAULO

PALOMARES –
Uma notícia
em 16 quadros
Ana Maria Amaral

Palomares, texto de Ana Maria Amaral, retrata as consequências


para os moradores de um pequeno vilarejo situado na Costa
Mediterrânea da Espanha depois da queda, nos arredores da
cidade, de quatro ogivas nucleares devido à colisão entre dois
aviões norte-americanos em 1966. O texto foi escrito para teatro de
bonecos e destinado ao público adulto e teve a sua primeira versão
representada nos Estados Unidos em 1967. Em 1978, uma segunda
versão foi encenada no Brasil causando muitos ruídos no contexto
do teatro de bonecos no país. Com Palomares, Ana Maria Amaral
leva para os teatros, em horário nobre, bonecos de luvas que são
capazes de produzir intensa dramaticidade de forma a elevar o
drama a um nível extremo de tensão; algo que seria muito difícil
de se conseguir com atores, principalmente em se tratando de
uma temática repleta de dor, sofrimento e morte. Palomares é uma
obra paradigmática pois propõe possibilidades estéticas, visuais
e filosóficas para o teatro de animação. A versão do texto aqui
apresentada é aquela que a autora considerava a mais adequada e
que foi utilizada por ela em sua tese de Livre-docência defendida
na ECA-USP em 1994.

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Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria
Amaral. Foto: Ruth
Toledo. Acervo de
Berenice Raulino.

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INTRODUÇÃO – PALCO EM PENUMBRA
Música e canção. Só vozes.

Gente mais verdadeira numa história irreal


Gente de brincadeira num fato agora real
Laranjas, tomates, peixes e girassóis
Formas, sementes, pétalas
Surgem de nós, como rostos, sob embalo gestual
A vida que é um faz de conta
Do nascer ao pôr-do-sol

Gente mais verdadeira numa história irreal


Gente de brincadeira num fato agora real

Ilusão, carícias ou sonhos


No mover, longe, crescem tamanhos
Que na mente são corpos reais.

Gente mais verdadeira numa história irreal


Gente de brincadeira num fato agora real

Laranjas, tomates, peixes e girassóis


Formas, sementes, pétalas
Surgem de nós, como rostos, sob embalo gestual
A vida aqui é um faz de conta do nascer ao pôr-do-sol

Gente mais verdadeira numa história irreal


Gente de brincadeira num fato agora real.

QUADRO 1 – PALOMARES, UMA CIDADE E SEU POVO

Palco se acende aos poucos, bonecos estão em posição


congelada.

Lentamente começam a tomar vida.

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Preparando para 1º TEMPO – CENA DO COTIDIANO
a procissão.
Palomares (1978). Mulher varrendo;
Casulo - Centro
Experimental de Lavadeira passa;
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral. Verdureiro entra com carrinho;
Foto: Autor
desconhecido. Lenhador carrega lenha e cumprimenta verdureiro;
Pescador entra com sua rede;
Mulher grávida faz tricô, duas vizinhas conversam com ela.

Esta cena se desenvolve sem palavras, apenas ao som da “Música


do Cotidiano” (Ver trilha). Anoitece. Bonecos vão lentamente saindo
de cena.

2º TEMPO – A PROCISSÃO
Amanhece. Sente-se a preparação para a procissão. Igreja toca o
sino, canto de procissão começa bem suave. Entra um personagem
segurando a bandeira da procissão e se posta em fila junto com

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A cidade em festa. os outros, no fundo da cena. Quase não se vê a procissão que se
Palomares (1978).
Casulo - Centro prepara no fundo da cena. Luz aumenta. Música aumenta. Procissão
Experimental de
Bonecos. Direção: entra (Cantos dos manipuladores, ao vivo). Procissão passa e andor
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor para no centro do palco. Momento de reza. Procissão segue depois,
desconhecido.
apenas com canto.

3º TEMPO – A FESTA
Procissão some por trás do palco. Som de procissão também
diminui. Sobe música forte e alegre. Fogos. Risadas. A festa cai
começar. Trazem a mesa do banquete. Entra a orquestra. Mulheres

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colocam pratos de comida sobre a mesa. Todos conversam e brincam
entre si. Improvisar cenas de festa popular. Danças. Comida.
Bebida. Um menino cansado, no final da festa, senta-se à beira
do palco e adormece. Luz diminui. Alguns personagens começam
a se retirar. Os membros da orquestra são os últimos a sair. Um
personagem chega perto do menino que dorme e o desperta. Saem
juntos. Anoitece.

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O povo não sabe 4º TEMPO – O DIA SEGUINTE
o que pensar.
Moradores de Amanhece. Passa lavadeira com sua trouxa. Um personagem
Palomares
conversam espia na janela. Passa Paco, pescador, e o cumprimenta. Passa o
sobre o ocorrido.
Palomares (1978). verdureiro e o menino puxando sua vaquinha. Paco vai para o mar.
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor QUADRO 2 – PACO NO MAR
desconhecido.
Paco está em seu barco, no mar. Paco segura sua rede e olha a
esmo o horizonte. Passa no céu avião I. Depois avião 2. Chocam-se.
Som forte. Paco olha estarrecido, recolhe sua rede e rema de volta à
praia.

QUADRO 3 - O POVO NÃO SABE O QUE PENSAR


Alguns personagens já estão em cena, outros entram apreensivos.
Nervosos. Este diálogo pode ser substituído por outro equivalente,
desde que traduza o medo e o espanto do acidente que alguns viram

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outros não, mas todos ouviram o som.

MULHER – Vocês viram o que aconteceu?

VELHA – Os aviões. Foi desastre, foi?

MULHER – É, nos vimos.

VELHO – Eu estava deitado, não vi nada,


mas ouvi um barulho infernal.

MENINO (entrando) – O professor mandou todo


mundo embora. Hoje não tem aula.

HOMEM – Eu vi uma fumaça brilhante no céu.

MULHER DO PACO – Paco estava no mar quando


os aviões caíram. Vejam. Ele vem vindo.

VELHO – O que foi que aconteceu, Paco?

HOMEM – Conta o que você viu!

Paco começa a falar e todos o rodeiam. Comentários. Buzina e


som de carro entrando.

HOMEM – O Prefeito está chegando.


Olhem! O Prefeito vem vindo.

Prefeito entra em cena com um carro sem capota. Começa a falar.

QUADRO 4 – FALA A AUTORIDADE

PREFEITO – Amigos e cidadãos! Um acidente aéreo trouxe a


intranquilidade para dentro de nossas casas. Dois aviões se
chocaram e caíram em nossa costa. Felizmente os danos são
apenas materiais e não temos vítimas a lamentar. Acabo de
receber um documento que me foi enviado pelo Governador
e sinto-me no dever de acalmá-los. Vou lê-los a vocês:

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O Prefeito
conversa com um
representante
do povo.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

“Dois aviões estrangeiros, em missão de controle, no


momento em que se preparavam para uma operação de
abastecimento, em pleno voo, chocaram-se e caiam em
nossa costa, exatamente na região de Palomares. Um
desses aviões carregava quatro bombas de hidrogênio
de 4,5 megatons, que felizmente não explodiram. Caso
tivessem explodido, ter-se-ia dado a detonação de
cargas de TNT, espalhando plutônio pela região”.

Todos olham para Paco e comentam. Murmúrio entre o povo.

PREFEITO – Amigos, como vocês veem, para a nossa alegria


nenhuma das bombas explodiu e devo solicitar que voltem

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em paz para suas casas. Se algum cidadão viu caírem essas
bombas, é seu dever auxiliar o Departamento de Segurança,
informando sobre a possível localização. Insisto, nada
devemos temer. Uma Comissão Especial de Inquérito acaba de
ser formada para determinar as causas do acidente e calcular
os danos causados por ele. Assim que for possível voltaremos
com mais notícias. Nesse meio tempo, por precaução, solicito
que se mantenham afastados da área do acidente, até o
pronunciamento da Comissão Especial de Inquérito.

Prefeito se retira.

QUADRO 5 – O POVO NÃO ENTENDE, O POVO TEM MEDO

Povo comenta:

- O que foi que ele disse? Duas bombas?

- Não, quatro bombas!

- O que você está pensando, Paco?

- ... que “os danos foram apenas materiais” e que “não temos
vítimas a lamentar...” O que ele quis dizer com isso?

- Não posso acreditar! Não posso acreditar!

- O que é bomba de hidrogênio?

- É perigoso!

- Tenho medo!

- Tenho medo.

- Eu também tenho medo!

Saem de cena Paco e a mulher, o boticário e a mulher. Menino.


Povo comenta:

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- Partículas de que?

- De urânio. Você já ouviu falar disso?

- E plutônio?

- Tenho medo.

- Sinal dos céus.

- Tenho medo.

- Sinal dos céus.

- Tenho medo.

- Caíram no mar.

- Na terra e nas sementes.

- E agora? O que vai acontecer?

Luz se apaga. Povo sai de cena. Surge um coro composto por


três velhas.

CORO: No povo em sossego, no desprevenido dos sonhos


O canto do mar foi perturbado
O vento em sua dança desviado
Objetos metálicos abriram os rochedos
Debaixo da terra sementes com bombas

Plutônio. Hidrogênio. Urânio.


Sementes de flores, flores estranhas.
Nomes, palavras, novos conceitos crescendo no ventre
No dentro da noite, na terra, na mente
No vácuo dos sonhos
Medo que chega em meio a sossegos.

O canto do mar e o mar em seu canto foi perturbado


Sementes se abriram em flores
Obscuros conceitos no vácuo e no sonho.

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Palavras tornadas em pane e pane semblante
Palavras semblantes, semblemânticas semânticas
De um mar e seu povo.

QUADRO 6 – ESTRANHAS COISAS PODEM VIR A ACONTECER

CORO – O povo quer saber. O povo merece saber (3 vezes).

Bomba. Bomba. Bomba.

Em cena, no meio da cortina, duas máscaras...

MÁSCARA 1 – Vejamos! Hidrogênio. Bomba de hidrogênio.


Tipo de bomba atômica extremamente destrutível, operada
sob o princípio de fusão nuclear, na qual os átomos de
pesado isótopo de hidrogênio se fundem com helium sob...

As duas máscaras se entreolham.


MÁSCARA 2 – Mas, o que é hidrogênio?

MÁSCARA 1 – Hidrogênio? É um elemento


químico inflamável, sem cor, sem odor...

MÁSCARA 2 - E megaton?

MÁSCARA 1 – Megaton? Megaton é unidade usada para


se medir o poder das explosões das armas nucleares.

CORO – Armas nucleares!!!

MÁSCARA 1 - Átomo. Vamos ver átomo. Átomo é a


menor partícula de um elemento, que se combina
com partículas similares de outros elementos.

MÁSCARA 2 – E plutônio?

MÁSCARA 1 – Plutônio? É um elemento químico radiotativo,


altamente tóxico e que emite radiações durante 24.000 anos.

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Coro das CORO – Vinte e quatro mil anos?!!
três Velhas.
Palomares (1978).
Casulo - Centro MÁSCARA 2 – Elemento. Elemento é tudo aquilo
Experimental de
Bonecos. Direção: que entra na composição de alguma coisa.
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido. MÁSCARA 1 - Uma substância não pode ser decomposta
por processos comuns, exceto por desintegração nuclear.
Os elementos são: bismuto, oxigênio, radium, helium...

MÁSCARA 2 – Absurdo! Este povo jamais ouviu falar nesses


elementos. Este povo conhece quatro elementos apenas.
Elementos que basicamente não podem ser desintegrados.
Este povo é feito de sol, de terra, de água e de ar.

MÁSCARA 1 – E em sol, em terra, em


água e ar será transformado.

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Música. Luz na cena dos bonecos. Povo está aglomerado na
praça. Aparece o Prefeito em sua mesa de trabalho. Distante e em
plano superior ao povo que já se aglomera.

QUADRO 7 – AS AUTORIDADES ADVERTEM

PREFEITO – Povo de Palomares. Cumpro o doloroso dever de


informá-los sobre as conclusões a que chegou a Comissão
Especial de Inquérito a respeito da catástrofe que nos atingiu
em consequência desse lamentável acidente aéreo. Gente
de minha terra, de acordo com as recomendações finais da
Comissão, as cidades de Palomares, Águilas e Vilarricos
devem ser imediatamente abandonadas. Embora as bombas
não tenham explodido, partículas de plutônio podem ter-se
espalhado pela região e o solo pode estar contaminado de
radioatividade. Meu povo! Devemos acatar o parecer desta
Comissão, formada por técnicos e cientistas de renome. No
momento, o governo está enviando todos os esforços para
providenciar transporte necessário para toda a população.
Dentro de poucas horas estarão pousando aqui aviões
que o governo põe à disposição de todos para embarque
imediato. Não há condições de levar nenhum bem pessoal,
além do estritamente necessário. Se voltamos ou não... isso
não foi previsto ou explicitado pela Comissão Especial de
Inquérito. O governo garante a todos instalações provisórias,
porém confortáveis, e por isso não devemos nos prender
aos bens materiais, que no momento devemos deixar.
Enquanto a retirada não se efetiva recomendamos, em
nome da Comissão, que evitem beber água e comer peixe.

Reações do povo, murmúrios.

PREFEITO – Como governo, creio que este lamentável


acidente está encerrado, sem maiores prejuízos. Sobre
o assunto, estamos à disposição de qualquer cidadão,

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ou grupos, que queiram obter maiores esclarecimentos.
Sigamos, pois estas recomendações e partamos felizes
para um futuro de progresso e alegria em outras plagas.

QUADRO 8 – O POVO DECIDE, O POVO FICA

Reação do povo. Incredulidade. Espanto. Desconfiança.

MULHER – Partir? Para onde?

MENINO – De avião? Eu nunca andei de avião...

VELHA – Mas, partir assim, sem levar nada!

HOMEM – As bombas. O Prefeito disse que é perigoso.

VELHO – Eu prefiro morrer aqui do que sair assim de repente.

MULHER – Eu também acho. Eu também acho.

PACO – Meu avô nasceu aqui, meu pai nasceu


aqui e o meu filho também vai nascer aqui.

HOMEM – Ir embora? Só por causa dessas


bombas? Mas elas nem explodiram, ora essa!

Momento de silêncio. Preocupados, todos se entreolham.

VELHO – Querem saber de uma coisa?


Vou voltar para o meu trabalho.

HOMEM – É isso mesmo. É viver a nossa vida. Tem graça,


agora! Me tirar da minha casa! Tomar avião! Eu?

PACO – Mulher, vou aprontar a minha rede. Amanhã


saio para pescar de madrugada, como sempre.

MULHER DE PACO – E eu vou acabar o meu tricô.

Os dois saem de cena. Junto com Velho e Homem (fala anterior).


Ficam em cena outros personagens que vão comentando e também
saindo.

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O lamento
das velhas.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

Detalhe do rosto de
duas velhas do coro.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

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Detalhe de uma
das velhas do coro.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

HOMEM – Eu não vu muito nessa conversa, não. Essa


história de evacuação não está muito bem contada, não.

OUTROS - É, não está não.

QUADRO 9 – PACO RETORNA AO MAR


QUADRO 10 – DENTRO DO MAR E DENTRO DO VENTRE.
QUADRO 9 E QUADRO 10

Apaga-se a cena. Surge novamente cena (igual à primeira, ver


QUADRO 2) de Paco pescando; é o QUADRO 9.

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Na cena de Paco pescando vê-se Paco puxando a rede e, em sua
rede, aparece um esqueleto de peixe.

Na cena do QUADRO 10 vê-se a mulher de Paco, grávida,


deitada numa rede, como que sonhando.

MÚSICA E CANÇÃO - Paco pescador no mar puxa a rede


Puxa a rede no mar
Puxa a rede e ama o mar
Paco pescador
O que aconteceu com seus peixes?
Já vão sozinhos pra praia
Ou foram expulsos do mar?
Paco pescador
Na sua rede ficou preso
Um esqueleto do mar

Sua mulher e sua rede


Numa rede sua mulher
Se a vida ainda é a mesma
O que se passa no mar?
O que se passa no ventre?
Seu filho é fruto ou semente?
Paco pescador embala sua mulher na sua rede

(Apagar luzes)

QUADRO 11 – UMA PACÍFICA PASSEATA

Cena da praça. Povo discute. Casal de velhos e parteira


conversam. Surge Paco com seu esqueleto de peixe na mão, os
três se voltam curiosos. Paco conta o acontecido. Chegam outros
personagens.
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VELHO – Todo o nosso azar começou com aquela bomba.

PARTEIRA – Ela acabou com a nossa força de viver.

HOMEM – Não há mais nada de que se


possa viver em Palomares.

Forma-se um círculo fechado, que de repente se abre e vê-se


no centro uma faixa onde está escrito: “QUE VOLTE A VIDA A
PALOMARES”. Os bonecos avançam em direção à plateia. Surge
um policial que apita, arranca a faixa das mãos do povo. Povo
recua assustado. Luz se apaga rápido.

QUADRO 12 – AS AUTORIDADES FAZEM UMA ADVERTÊNCIA

Bem distante do povo surge a imagem do Prefeito. Esta cena


pode ser feita com o prefeito/boneco em cena ou apenas sua projeção
em sombra ou tipo vídeo de TV. O povo aparece meio na penumbra,
de costas para o público e de frente para a imagem do Prefeito,
ouvindo o seu discurso.

PREFEITO – Cidadãos! O momento crítico que atravessamos


nos leva a adotar atos restritivos, a fim de garantirmos
a segurança nacional e o bem-estar de toda a população,
evitando qualquer movimento que acarrete maior inquietação
popular. O governo permitiu a opção de permanecerem na
cidade. E enquanto Prefeito de Palomares, compreendendo
os problemas financeiros de alguns, ofereci-me a indenizar
os que concordassem em abandonar suas terras, agora mais
desvalorizadas. Mesmo assim não foi possível fazer entender
a todos a gravidade da situação e o governo volta para baixar
algumas normas absolutamente necessários à mínima
segurança daqueles que decidiram permanecer na cidade.
As ordens deste decreto devem ser seguidas na íntegra:

Art. 1º - Toda a população, independente de sexo ou


idade, deve submeter-se a exames médicos periódicos;

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Art. 2º - As casas, utensílios domésticos, roupas,
móveis e aparelhos ou máquinas de trabalho devem
ser desinfetadas diariamente com preparado químico
especial, que pode ser retirado nos postos de saúde;

Art. 3º - Toda criança e animais domésticos


devem ser imediatamente sacrificados.

Art. 4º - A população deve permanecer no interior


de suas casas, evitando chuva ou sol;

Art. 5º - Passa a ser obrigatório o uso de máscaras


especiais de oxigênio para toda a população,
independente da idade, mesmo durante o sono;

Art. 6º - A alimentação permitida é a fornecida pelo Centro


Nutricional de Palomares e deve ser retirada nos postos
de saúde mediante a aquisição de carnês semanais.

As pessoas que não cumprirem as ordens constantes


do presente decreto de recomendações estarão
sujeitas às penas previstas no Código Penal, e
incursas na Lei de Segurança Nacional.

A administração desta cidade foi transferida para local


isento de radioatividade e estamos à disposição de todos para
assisti-los em tudo o que estiver ao alcance deste governo!

(Luzes se apagam)

QUADRO 13 – PACO ASSITE AO NASCIMENTO DE SEU PRIMEIRO FILHO

Cena de um interior de quarto. Mulher de Paco na cama, na


hora do parto, sendo assistida pela parteira. Ela geme e mostra
estar sentindo as contrações no ventre. Parteira suaviza sua dor
ajudando-a com exercícios de respiração e enxugando seu rosto.
Nasce finalmente uma criança. Parteira segura a criança. Paco
entra e estende os braços para pegá-la. Parteira sacode tristemente
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Paco e esposa.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

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a cabeça fazendo-o entender que a criança está morta. Entram dois
vizinhos segurando a rede do enterro. Criança é colocada na rede.
O enterro sai. Parteira consola Paco, desolado.

CORO – Azul e lindo era nosso mar


Generosa sua pesca
Mas, perigosa se tornou

Verdes, vermelhos, viçosos eram nossos vegetais


Venenosos se tornaram

Azul profundo é nosso céu, fino o ar


Mas que dele não se respire mais

Férteis, felizes eram nossas mulheres


Férteis e saudáveis os seus filhos
Que crianças agora nascerão?

Esta colheita se perdeu


E a outra, e a outra, e as outras
Árida está a terra
Não mais vida em nosso mar
A felicidade aqui morou, mas
Parece que há anos ou séculos atrás.

QUADRO 14 – A ENTREVISTA

A entrevista pode ocorrer com atores ao vivo. Os atores se


espalhariam entre o público, na plateia. O Prefeito continua sendo
o personagem-boneco.

VOZ – E agora, com vocês, o jornal falado da Rede Difusora


de Comunicações. Notícias nos chegam de Barcelona:
casos de morte sem causa aparente continuam a ser
diariamente registrados na pequena localidade de
Palomares. Os poucos moradores que ainda restam
evitam fazer declarações a qualquer órgão da imprensa. O

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ex-prefeito, Sr. Gregorio de Medina y Castro, hoje assessor
geral do Ministério dos Negócios Exteriores e da Política
Externa, nos concede uma entrevista exclusiva.

REPÓRTER 1 – Sr. Assessor, gostaríamos de saber sobre


as consequências do acidente aéreo de Palomares.

PREFEITO – Esse acidente é coisa do passado


e não há por que falarmos sobre isso.

REPORTER 2 – Desculpe-me, Sr. Assessor, mas


Palomares não é assunto resolvido.

PREFEITO – Como não? Houve uma catástrofe, mas


tomamos as medidas necessárias. Que mais?

REPÓRTER 3 – Então, o Sr. considera


que houve uma catástrofe?

PREFEITO – Força de expressão. Catástrofe por ter


acontecido em Palomares. Era uma cidade pacata. Ali
mesmo uma batida de carro ou carroça assumia um
caráter de acidente grave e abalava a opinião pública.

REPÓRTER 1 – Por que o Sr. disse que era


uma cidade pacata? Não é mais?

PREFEITO – Eu disse “era” porque não estou mais


ligado a Palomares. Além do mais, reafirmo o que
disse há pouco: este é um caso encerrado, ninguém
mais se lembra do assunto. Pergunte ao povo.

REPÓRTER 4 – Ao povo, Sr. Assessor? Mas sabe-se


que o povo de Palomares está desaparecendo.

REPÓRTER 5 – Qual a população atual de Palomares?

PREFEITO – Não há censo atual, pelo menos oficial, mas


acredito que existam ainda umas novecentas e tantas pessoas.

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REPÓRTER 3 – E qual a população de
Palomares antes do acidente?

PREFEITO – Bem, chegava a duas mil pessoas, mais ou menos.

REPÓRTER 2 – E o Sr. considera natural que, em apenas


um mês e pouco, essa população tenha caído em 50%?

PREFEITO – O que não é natural é falarmos sobre um


assunto oficialmente encerrado. A população que lá
está escolheu permanecer ali. Cada pessoa decide seu
futuro. Isto é uma democracia, eu pelo menos...

REPÓRTER 5 – E as pessoas que decidiram


deixar a cidade foram indenizadas?

PREFEITO – Claro!

REPÓRTER 4 – Sim, mas desde que não


falassem de seus prejuízos.

PREFEITO – Mas falar por quê? Não houve


prejuízos. Foram todos pagos.

REPÓRTER 3 – Então, por que pagar?

REPÓRTER 4 – Ou por que não falar?

PREFEITO – Ora. Bem. Por exemplo. Vejam... Para não


causar alarme. Houve na época muita especulação
em termos das bombas por parte da imprensa.

REPÓRTER 1 – Já que o Sr. falou em especulação... é verdade


que o Sr. comprou muitas terras dos antigos moradores?

PREFEITO – Sim. Comprei, para ajudar. As terras já não


valiam nada. Não deturpe isso. Comprei por espírito de
solidariedade. Eram meus concidadãos e ajudei-os como pude.

REPÓRTER 2 – E o Sr. tem renda pessoal


para ter adquirido tantas terras?

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PREFEITO – A pergunta é impertinente.

REPÓRTER 5 – Sr. Assessor, qual a razão de Palomares


não ter seguido o mesmo desenvolvimento turístico
de todas as outras cidades do país? O motivo não teria
sido o medo resultante da poluição das bombas?

PREFEITO – Alguns disseram isso ao povo. E o povo chegou a


formar uma Comissão para reclamar auxílio do governo. Essa
Comissão chegou a ir a Barcelona, mas voltaram correndo a
Palomares, dizendo que Barcelona era ainda mais poluída... (ri)

REPÓRTER 3 – Mas a poluição de Palomares foi de


natureza diferente. Poluição não apenas no ar, mas na
terra e no mar. Peixes não apareceram mortos na praia?

PREFEITO – Temos aí um mal-entendido. Nem tudo é culpa


do acidente. Se houve poluição devido às bombas, já não
há mais. Foram retiradas toneladas de areia e terra de
Palomares como medida de precaução. Depois disso eu
mesmo convidei a imprensa a assistir ao banho de mar que
“despreocupadamente” tomei em Palomares. E ainda comentei
ao sair da água: “se isso é radioatividade, eu gosto” (Ri).

REPÓRTER 4 – É verdade que a população de


Palomares atualmente é obrigada a cumprir
um regulamento severíssimo?

PREFEITO – Não há fundamento nessa pergunta.


Precauções de rotina foram tomadas, nada mais.

REPÓRTER 1 – Se não houve perigo, por que os campos


foram isolados e por que foram retiradas 1.750 toneladas
de areia e terra e foram elas empacotadas e levadas para
o cemitério nuclear de Savanah, na Georgia, USA?

PREFIETO – Precaução. Isto apenas prova


todo o cuidado que tomamos.

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REPÓRTER 2 – Sabe-se que grandes áreas de terra
foram vendidas a grupos estrangeiros.

REPÓRTER 3 - E, segundo outras fontes, esses grupos já


iniciaram projetos para a construção de uma grande usina
nuclear em Palomares. O que o Sr. tem a dizer sobre isso?

REPÓRTER 5 – Existe algum projeto desse


tipo em desenvolvimento na região?

Mulher do
Paco grávida.
Palomares (1978).
Casulo - Centro
Experimental de
Bonecos. Direção:
Ana Maria Amaral.
Foto: Autor
desconhecido.

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PREFEITO – Be, quero dizer (Pigarreia, consulta-
se com seu manipulador, limpa suor). Países de
avançada tecnologia estão sempre em busca de
locais apropriados para suas experimentações.

REPÓRTER 1 – Mas, os riscos não são grandes?


O Sr. não seria mais favorável à experimentação
de energia solar, por exemplo?

PREFEITO – Eu sou a favor do progresso para


o meu povo e para o meu país. Eu sou a favor
do grande futuro que nos espera.

QUADRO 15

Ouve-se um forte som de bomba atômica. Luzes piscam sobre


a cidade. Veem-se alguns dos bonecos já mortos, outros que
caminham lentamente em direção aos agonizantes e que, por sua
vez, vão morrer também.

Cena lenta de morte e desespero, até que todos os bonecos estão


imóveis.

No fundo, vê-se Paco, que ainda vive. Caminha. Olha seus


companheiros, um a um. Sobe numa parte do cenário, onde seu
rosto parece refletido como na água. Suas duas imagens se fundem.

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QUADRO 16 - PALOMARES SE ESTENDE

Em silêncio, um contrarregra (vestido de preto, como os


manipuladores) lentamente arranca a cortina do palco. Veem-
se atrás os atores-manipuladores em atitude estática. Momento
de silêncio. Depois, lentamente, um de cada vez, vão pegando os
bonecos deixados caídos no suporte do palco e os vão colocando em
pequenas caixas pretas; e seria como um enterro. Terminado esse
ritual, os atores vêm para adiante do palco e há duas opções: ou
todo o elenco canta a música do início, “Gente mais verdadeira”,
ou terminar a peça em silêncio.

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