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Íris de Queda

Sérgio Ortiz de Inhaúma

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Íris de Queda
/Sérgio Ortiz de Inhaúma

2020

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© 2020 Sérgio Ortiz de Inhaúma

Todos os direitos desta edição reservados à


Sérgio Ortiz de Inhaúma
Avenida Itaóca 2358 / Vila Acorizal 181 - Inhaúma
ranzus@gmail.com

dados internacionais para catalogação na publicação (cip)

Inhaúma, Sérgio Ortiz


Íris de Queda / Sérgio Ortiz de Inhaúma
Rio de Janeiro: 2020.
1 - Teatro brasileiro.
I. Título.

Impresso no Brasil

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Cenário+Paisagem+Tempo:
Um Balneário rente a um Subúrbio em meio a uma Guerra. Que ora se
confundem numa aglutinação, que ora se distinguem, por uma fenda que os
separa.
Balneário: Pequeno, remoto, isolado. As aves marinhas piam
sobrevoando as praias, quase desertas, exceto o uso frequente de redes pelos
pescadores, pobres. Restingas, coqueiros, ondas quebrando pelas miúdas e
remotas praias. Crianças que vivem de lá pra cá em corres, piques, brincadeiras
como se não houvesse um outro mundo que não aquele. E pelo miúdo cais que
não recebe há anos alguma embarcação que se meça, viviam uns pulgueiros
que se transformaram em inferninhos.
Subúrbio: Destroços, ruínas, casas e ruas trincadas, gente morta,
desguarnecida. Tapumes e muros sob estilhaços. Casamatas, trincheiras,
morros descascados, favelas fumegando.
Paisagem-híbrida: Ondas lambendo as ruínas pelas bordas e invadindo
as ruas debulhadas, aves marinhas pousando pelos postes capengas de ruas
arruinadas, favelas cobrindo-se de restingas, pescadores chefiando bocas-de-
fumo.

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Personagens:

O melhor seria, para maior coesão e consistência do enredo, três


atores, cada um deles incorporando uma série de personagens, formando uma
rede topológica.

Que seriam:

ATOR I:

Proscrito / Proscrito, o Mijado / Fugitivo III / Saderre / Matador / Juliano


/ O Primeiro / Monarco, o Santíssimo / Tõezinho

ATOR II:

Mascatte / Eusébio / Fugitivo II / Valdecir / Padre Ciomar / Analuzía /


Homem Sem Face / Marcos / Perneta / Bispo Domingos

ATOR III:

Naír / Canivete / Manuella / Fugitivo I / Nita / Maria Mindomira / Cristina


/ Nicácio, o Flagelo / Putinha / Alfredo / Boquita

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Ato I
galeria de sonhos banidos

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A cortina se abre.

O palco está nu, exceto por alguém que está deitado em seu centro. Sem gestos, sem
movimentos. Naír chega cambalhotando no palco (ou numa série de estrelinhas, ou o que for mais viável).
Sua entrada no palco é um enchimento de mundo. Naír é amorenada, açucarada, cor de caramelo. Aquele
que está deitado no centro do palco é um sujeito esfarrapado (Proscrito), cor parda, cara de sofrido, preso
sob algemas, correntes invisíveis. Ao entrar Naír, ele começa a chorar, se amaldiçoar, não acreditando no
que lhe acontece (som de mar, ondas explodindo ao fundo e trinados de aves marinhas).

Naír (olha Proscrito de todo vento, solta uma gargalhada, com as mãos nas cadeiras) –
Quiácácácá! se fode aê!

Proscrito se rasteja em direção aos pés dela, enquanto ela se afasta entre risos e deboches.
Ele se rasteja em volta do palco, com braços e pernas mobilizados visto que está acorrentado. Se rasteja
como uma minhoca, mas ela escapole, frustrando suas intenções. Ele se cansa e fica de papo pro ar.

Proscrito (deitado, boca ao ar) – Eu desejo de toda minha alma, de todo meu delírio, de todos
os meus desejos, que a terra arda e renasça pelo Fogo.

Naír (alcança as nádegas, abre com maestria pro lado de lá do palco) – Fogo é que não falta
meu bem!

Proscrito rasteja novamente em direção aos pés dela, reagindo a provocação. Novamente ela
escapole, ele se cansa e fica de papo pro ar.

Proscrito – Hoje eu acordei com meu coração ensandecido, porque senti de dentro de meu
espírito que todas as coisas queimavam.

Naír (maliciosa, chupa o dedo mínimo da mão, se agachando e se virando na direção do


Proscrito) – Puxa, meu bem! Quiácácácá!

Proscrito (repete) – Eu desejo de toda minha alma, de todo meu delírio, de todos os meus
desejos, que a terra arda e renasça pelo Fogo.

Naír, virando-se pra plateia, solta uma gargalhada de pomba-gira (quiácácácácácácá) e


requebra as cadeiras. Pronuncia a boca num arrepio carnudo, flor, rebola. Ouve-se o som de uma onda
estourando no quebra-mar, as aves marinhas piando neste momento (som ao fundo).

Proscrito – Quero que tudo venha: catástrofes, estiagens, inundações, terremotos, desastres
ecológicos em escalas hediondas, descontrole de todos os satélites, a derrubada dos sistemas econômicos
(som dos trens-de-rolamento de tanque passando por cima de ruínas e escombros).

Naír (se volta pro Proscrito, numa cambalhota) – Puxa, repuxa, agora vai hein!

Proscrito – Todas essas coisas passarão por mim e se revelarão como uma crença.

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Naír solta um jato florido, brilhoso, ao ar de boca aberta do Proscrito. Era o mijo. Ele resfolega,
engasga, cospe. O Proscrito se batiza em mijo. Agora é Proscrito, o Mijado. Era a vagina. Naír sai de cena
(tanto pode ser em cambalhotas ou estrelinhas).

Proscrito, o Mijado, após lamentos, engasgos e cuspes, parece liberto e se levanta. Começa
uma longa fala, ora em direção pra plateia, ora pra si mesmo.

Proscrito, o Mijado (andando de lá pra cá) – Então na rua vi aquele osso. Os cachorros nos
traíam, mordiam-nos. Era uma jabuticabeira acrunhada, e debaixo dela sombras esparramadas, mordiam
os cães aquele osso. Depois não o vi, estava em sobressalto, aturdido, onde então eu estava? Cercado,
ouvi um barulho, uns estalos escabreados, um grupo acolá, mas não se via nada, uns mexidos (som dos
trens-de-rolamento de tanque passando por cima de ruínas e escombros). Transmutado, levei pra mais
longe que pude e não consegui. Fui cometer crimes em outro lugar, afrontar de perto a raça humana,
atrofiados. Adentrei o balneário capengando (barulho de ondas ao fundo e piados de aves marinhas). Um
vento chiando, levando as árvores desfronhadas num farfalhar agudo. Tive medo, ouvindo as ondas
estourando no quebra-mar. Cheiro de gaivotas, de garotas postiças, de hálito salgado que o mar guarda
em lágrimas. Aqui não se lembraram, ninguém me conhecia. Ri. Passei esquecido por entre eles, sal na
boca cortei uma frente dos olhos. De minha vida chorava sangue. Tonto, sentei num vislumbre daquele
tempo e nos antevíamos como de costume. Uma retirada e tropecei e cai sobre o céu um lento esgar e o
vi. Osso.

Entram Mascatte e Manuela. Estão em risos e deboches. Ambos entram trazendo dois caixotes
desses de feira (podem ser bancos também). Uma linha divisória se abre entre ambos, divide o palco ao
meio. De um lado do palco fica o Proscrito, de outro, Mascatte e Manuela. Ambos entram no exato
momento que o Proscrito para de falar a primeira parte de sua longa fala (que aqui será chamado de
devaneios). Mascatte e Manuela conversam eufóricos como numa festa, rindo, cacarejando. Duas da
manhã. Ainda nem estavam em ontem. Eles falam e Proscrito, o Mijado, observa.

Manuela (entre adornos, olha de soslaio para a plateia) – Ó quanta delicia nesta hora de
descasos!

Mascatte (voltando-se pra ela) – É porque nos enlevam os destinos, o divino, Manuella.

Manuela (voltando-se para ele) – Que dia, hora, lugar seria tanto que nem aqui? Eu me
pergunto, Mascatte. Outro lugar não nos seria, nem tanto nem tento.

Mascatte – Uma hora e sempre, sempre sempre e sempre....

Manuela – É porque ninguém liga para o que queremos, nem pra onde ir....

Mascatte – Ah, quanta balela! Mas aproveitemos, a festa nos condiz, condiz a tudo e até aquilo
outro.

Manuella abre um sorriso, e mecanicamente se vira pra plateia. Depois se vira novamente para
Mascatte e tira a roupa de cima. Seus seios aparecem como dois gomos pudendos de polpa nua.

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Mascatte (extasiado) – Deus deveria estar muito excitado quando a fez.

Manuella (requebrando os ombros) – Não acredito em Deus.

Mascatte – E tampouco acredito!

E a vida aparece sedenta e úmida, em todo seu esplendor, mesmo que fosse apenas naquele
instante. Mascatte aponta para Proscrito, o Mijado. Entre sorrisos continuam e Manuela cobre-se com um
membro molhado. Manuela calcada em espartilhos. Voam os sêmens ao caírem nas lânguidas dobras.
Não há mais nada senão acenos e aberturas, expulsando o silêncio do pátio pra fora (som de gritos de
multidão se esvaindo aos poucos). Proscrito, o Mijado, volta aos seus devaneios. Manuela coloca
novamente a roupa de cima. Ela e Mascate se sentam nos caixotes (ou bancos), silenciam-se e observam
Proscrito, o Mijado, reiniciar sua longa fala.

Proscrito, o Mijado (andando de lá pra cá) – E foi àquele osso que me apeguei, mas à medida
que me apegava, no esforço de me apegar, vi que nada havia. E neste impulso, algo descobri e quando
vi, não havia mais osso. Olhei em volta e sentei, o que me servia apontou um assento. Olhei pra lisa
superfície de madeira já sem fome e comi um dos lados do peixe. Bebi a taça afogada de vinho o melhor
me trazido pela maresia. Fiquei abismado pela noite e desci o quartinho da pensão. Margareti botou a mão
na minha cabeça e disse: “Melhor, bem melhor. siga o caminho que leva a praça”. Ouvi o som das violas
num agito, carícias de cetim suadas, um sopro chega-pra-cá de tamborins, pandeirolas, violas 12 cordas,
ganzá (esses sons repercutem ao fundo, tudo misturado) vieram vindo cobras lentas, meu pescoço
amarrado, ao que senti e vi um breve arquejo de volta, as ancas delgadas, seios lentos, na fronte que
vergou a minha cara de otário. Ela suada vertia sons cristalinos de cítaras, num labirinto de punhais
vertendo maresias camufladas, de florais, sopros de coqueiros, o soluço, o espasmo, um esgar, fluídos...
então senti o cheiro de seu interior. Ela latejava, chupei-lhe o vapor da flor que se entreabriu, o corpo
tremia-me da base ao osso e tudo nublava. No contato farto, a língua deslizou ouvido, correndo o pescoço
na nuca, ela tremulou, desvaneci sentado sobre minhas pernas. Sonhei com aquilo no mar de ipês, nos
cantares correndo a ficção do vento. A corrupção vazou-me pela boca. Era a filha de satã liberta: Analuzía.
E me afogou em sua turbulência íntima, meteu-me as unhas e trouxe o calafrio da espinha aos cotovelos.
Ao errar em agarrar-me, prostrei indo. Sem osso.

Mascatte e Manuela se desfazem. Viram Eusébio (Mascatte) e Canivete (Manuela) e se


levantam, depois de assistir os devaneios do Proscrito, o Mijado. Ambos, dois soldados recrutados para
uma Guerra Sem Nome que acontece e dizima o Subúrbio, deixando apenas ruínas. Estão perdidos de
seu pelotão, não sabem muito o que fazer. Eram da favela do Coqueirinho. Até que Nicácio, o Flagelo e
suas falanges, incendiaram o Subúrbio, ao se levantarem contra Monarco Santíssimo, o Abençoado
(Ditador). Estão atrás de um muro (que é a linha imaginária entre os personagens). Eusébio e Canivete
ainda sentados nos bancos (ou caixotes).

Canivete (segurando um fuzil invisível, se vira para Eusébio) – Diabo de mormaço dos infernos!
E essa cerração que num acaba? Enxergo nada daqui, Eusébio.

Cai uma cerração (luzes baixas) que os nubla.

Eusébio (olhando de um lado pro outro, apreensivo) – Fodace, quando é que tu enxergou?

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Canivete (vencido) – É mermo.

Eusébio ouve um barulho, lá longe. Parece o trem de rolamento de algum tanque (som de
tanque passando por cima das ruínas). Pode ser o Exército, ao que tudo indica. Ambos ficaram sabendo
do ataque dos rebeldes, pelos ruídos que pairam no ar (colocar sons de ruídos de chiados de rádio).
Canivete se levanta do banco (ou caixote) se agacha e olha pelo buraco no muro.

Eusébio (talvez convencido) – Deve de ser o Exército. As tropas já devem saber o que nos
aconteceu. Vieram em nossa busca, decerto. Daqui consigo ouvir os tanques triturar as pedras das ruínas,
com sua passagem.

Canivete (ainda olhando pelo buraco) – Espero que seja. Ouvi dizer que os rebeldes às vezes
sequestram tanques e fardas, e se disfarçam de soldados. Nossos soldados.

Eusébio (faz uma careta) – Bobagem, Canivete! Essas bichas não têm presteza para tanto. Em
breve o Abençoado irá esmagar toda essa gente, e dançaremos e mijaremos sobre seus cadáveres. Não
vejo a hora de voltar pro Coqueirinho e sentir o odor de suas ruas.

O som dos trens-de-rolamento aumenta esmagando os escombros (som ao fundo).

Canivete (ainda pelo buraco) – Ih, cara, acho que é o Exército mesmo. Graças ao bom Deus.
Tão vindo com um tanque.

Eusébio – Ótimo. Estão a que distância?

Canivete – Uns trezentos metros e pouco. Por aí.

Eusébio – Sobe numa dessas vigas derrubadas aí no chão e faz sinal com as mãos. Vou ficar
de butuca aqui pelo buraco, se não forem do Exército, meto bala pra dar tempo da gente correr daqui.

Canivete levanta e sobe no banco (ou caixote). Eusébio se levanta do caixote (ou banco) e se
agacha ao lado.

Canivete (balançando os braços) – Ei! Ei! Tâmos aqui ó! Aquiiiii!!!!

Eusébio olha pra Canivete em cima da viga, e balançando as mãos pro alto. A poeira das ruínas
enchendo o ar. Quando volta ao buraco, percebe que não são soldados do Abençoado, mas os rebeldes
de Nicácio, o Flagelo.

Eusébio (assustadíssimo) – Desce daí, Canivete, seu idio...

Mas já é tarde demais, o canhão do tanque dispara (som de disparo de canhão), e eles caem
no chão, dilacerados e espalhados. A linha divisória se desfaz. Os três personagens se desfazem e viram
fugitivos: Canivete (Fugitivo I), Eusébio (Fugitivo II) e Proscrito, o Mijado (Fugitivo III). Os três se

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concentram do lado onde estava Proscrito, o Mijado. Sai os caixotes (ou bancos) entra uma escada, do
lado de lá.

Fugitivo I – Que merda, mermão, que merda!

Fugitivo II – Pulemos pro lado de lá.

Os três pulam a fronteira invisível para o outro lado do palco.

Fugitivo III (olhando para a plateia) – Queria comer gordura, tenho fome!

O Fugitivo I e o II conversam perto da escada. O Fugitivo II bufa, algo não está nos eixos, sente.

Fugitivo II (voltando-se para o I) – Que merda, tô falido.

Fugitivo I – Como assim?

Fugitivo II (balançando a cabeça, indignado) – Falido, falido.

Fugitivo I (repete, sem entender) – Como assim?!

Fugitivo I (repete mais uma vez) – Porra, falido! A filha da puta veio, se encostou e foi embora,
me tirando tudo.

Fugitivo III (andando em círculos, um pouco distante do I e II) – Um pedaço de seio, alcatra,
comeria um pé de manicure.

Fugitivo I – (se recosta na escada) – Que filha da puta, mermão, tá maluco? Não há ninguém,
aliás, nunca houve ninguém

Fugitivo II (olha o I, se fazendo de desentendido) – Ah, sei lá! Só sei que tô falido.

Fugitivo I (sorri zombeteiramente, e retorque) – Cara, para se estar falido, você deve ou deveria
ter tido dinheiro algum dia, o que não é o seu caso. Você já nasceu fodido.

O Fugitivo II vai se desmanchando até o chão, se encolhendo em posição fetal. O Fugitivo I o


olha como se fosse folhas de cajueiro mortas e amarelecidas pelo chão.

Fugitivo III – (grita, se aproximando de I) Balela!

Fugitivo I (assustada) – Como assim?

Fugitivo III (se acalma, voltando-se pra plateia) – Vou explicar, se assim lhe parece melhor:
nossa aliança terminou. Nossa parceria era uma veia em falso, trêmula, frágil. Ela se quebrou e caiu
espatifada nos vãos. Agora sou eu pra um lado e você pra outro qualquer.

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Fugitivo III é direto, com tudo e todos. Suas resoluções são ligeiras, possessas, e terminam com
um murro. É o que o Fugitivo I mais odeia.

Fugitivo I (cora, vencida) – Não podemos ser tão frágeis...

Fugitivo III – Somos sim. matamos todas as possibilidades fogosas, arredias, furiosas como
garanhões. Preferimos o conforto da bobagem e balela, e acatamos o óbvio. O cansaço apropriou de
nossos sentidos e de cada partezinha de nossa carne e nos deixou desprezíveis. A pior das dimensões
vingou, e rastejamos fartos em nome dela. Esse nosso vilarejo à beira-mar se criou em nome da covardia
desbaratinada. Temos uma gente mole, casas enquincalhadas e crianças débeis. Nossos cachorros não
deviam usar focinheira, mas sim enforcados. nossa parceria termina aqui.

Fugitivo I, cora, morde os lábios.

A cortina se fecha.

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Ato II
garotas postiças

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Abre a cortina.

Proscrito, o Mijado, está sozinho no palco. Som parado, aos poucos se levanta ecoando
lentamente (barulho de ondas ao fundo e piados de aves marinhas).

Proscrito, o Mijado (olhando para as mãos abertas, de frente pra plateia) – Póstuma, com as
pernas erguidas abertas, a vejo. Litorâneas. Eis que eu, Proscrito, o Mijado, ouço um silêncio de cobre,
doze estacas vinham fincadas. Retrocessos. Olho Naír arrebitada. Esteira de palha, coberta de chão,
trouxe um vão ao momento. Do sul correu cortes, eu vejo. Este pleno plano-sequência de grelos. Sinais.
Fricções. Não se deteve Naír, nem um só dia. Me olhou de esmero, com danação. Sorria (ele levanta os
olhos para plateia e guarda as mãos lentamente no bolso). Leves e erguidos seios, pequenas cumbucas
onde lambi minhas ruínas. Dela se desentranhou um borrifo de tempo. Fábulas castanhas, crespas,
morenas pelos travesseiros. Ocorreu, a mim, num sonho distante, olhando-a por detrás de meus olhos,
que se friccionava, sorrindo num gesto enluarado. (ele se desmancha lentamente, indo em direção a
posição fetal). Saçaricando seus lábios de baixos, tenros, azedamente salgados, com delícia que se
cumpriu de quatro. Amordaçado, para minha perdição, eu a via.

Proscrito, o Mijado, vai para uma extremidade do palco. A fala cessa. Pela outra extremidade
entram Nita e Valdecir.

Nita – Tá repreendido em nome de Jesus!

Valdecir – Porra, Nita, só uma cuspidinha!

Nita – Sê ta doido!

Valdecir – Tu nem precisa engolir.

Nita – Tá maluco, Valdecir?! Nunca que eu ia deixar isso.

Valdecir – E nos peitos, de levinho?

Nita – Pô, num sei não.

Valdecir – Vamos pô, quebra essa.

Nita – Vô pensar.

Valdecir – Mas aí, posso passar a cabecinha e pedir pra tu dar uma lambidinha?

Nita – E quié que eu ganho com isso?

Valdecir – Uma boa chupadinha no grelo e aquele tamanco que você pediu.

Nita – Jura!

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Valdecir – Claro pô, e depois ainda te levo pra dar umas volta.

Nita – Hummmm, só quero ver.

Valdecir – Vai vê.

Nita e Valdecir saem.

Proscrito, o Mijado (vai ao centro do palco e se vira pra plateia) – Sobre as carcaças da carne,
me viu, Padre Ciomar. As duas empilhadas num trajeto ardente, elas postiças, com o topo do gozo, o corpo
entorno, e elas ardiam. Riam entretalvez. Uma só piscadela que caíram os tolos, em armadilhas. Padre
Ciomar de uma vez boquiaberto, ouvia lá pelo quebra-mar, o som vadio entre as falésias. Olhou a pequena
igreja, crianças que não tiveram vez. O céu que sucumbia pra todo mundo ver. No quarto-veraneio, a
tapera sacudia no negrume onde o sol ardia.

Padre Ciomar entra carregando uma boneca de tez amulatada nas mãos.

Padre Ciomar (se ajoelha de frente a plateia, com a boneca apertada contra o peito) –
Pequerruxa diabrurinha, mal saída do ventre. Esta pequenina santidade de antros (ele leva a mão da
boneca a boca da boneca), essa toda agudeza no sangue, quão crédula por apartar desavenças. (Padre
Ciomar levanta os olhos, em direção a plateia) Vivi entre pedintes, cuidados órfãos, enchendo boca de
incapazes. E todos me diziam: “És tu, Padre Ciomar, um santo que nos redime.” E todo dia santo dia
andando pelas ruas, me condoendo pelos infelizes. Cristo untado entre os mangues, foi o que me disseram,
não acreditei. Quando soube do milagre. Vinha o surgido, um milagre, brotando naqueles cafundós, me
disseram. Esquecidos por Deus eles uivavam, na ânsia de afastar as desgraceiras dali. Criaturas
tumultuadas que se entregavam ao vento naquelas casas podres à beira-mar. Sorrisos, bichos de sal,
silhuetas, estranhos devaneios no quengo. Cristo surgira no mangue, o nazareno.

Entra Naír. Padre Ciomar se cala, mas continua a gemer com a boneca agarrada contra o peito.

Naír (preguiçosamente, se vira pra plateia) – Sonhos que tenho do mar, pernilongos avançando
descascavam no quarto. Muxiquei, outros tantos tempos, devorei um trecho logo, era Subúrbio. Mas veio
a Guerra, as explosões, os trincados, e logo veio o fogo, e mais fogo, e tudo eram cinzas, beiras e ruínas.
(Naír muxicou) Bateram nas trincas das janelas, os devaneios. Eu, Naír, sentia o calor chover sobre as
bananeiras. Todos aqueles suores atrevidos nas partes (ela aumenta o fundo da voz, traz um mimo tesudo
a fala). Um azedo que não me deixava dormir, alvéolos do mar.

Proscrito, o Mijado se desfaz e vira Saderre, Cafetão. Naír se desfaz, e vira Maria Mindomira,
Matadora do Cão. Padre Ciomar se levanta e se vira pra plateia, ainda com a boneca nos braços, virando
narrador-coro.

Padre Ciomar – Maria Mindomira, matadora arredia em seu instinto voraz. Leva em peito um
oco que foi ao terraço, céu de atobás. (Maria Mindomira dá um passo à frente e se apresenta pra plateia,
abrindo um sorriso). Chega então, Saderre, Cafetão, corte travessado no olho, boca de sorriso de ouro
(Saderre dá um passo à frente e se apresenta, abre um longo e malandrioso sorriso em direção a plateia).
Na ponta, Maria Mindomira fez trajeto, curtiu couro brabo, meteu o punhal na cintura, saiu avoada pelos

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calcanhares, um ensaio (Maria Mindomira dá meia volta perto do próprio eixo e uma requebrada). Quando
partiu, levou a navalha nos dentes, danada, então avançava pelo Balneário (sons de ondas no quebra-mar
e trinado de aves marinhas) levando a fogo entre os barracos podres à beira-mar. Batia o sal, o sol sobre
o nervo, que viviam vindos, celebravam antigos crimes, cortes, sangramento, suores, caminhos sob a
sombra dos coqueiros. Pela areia marinha, corriam pequenas valetas e rios e lagoas, tudo numa plena
vez. Cabelos do mar aberto, balançavam as pobres jangadas pela manhã, as crianças quicando, os
pescadores no mar bravo, sonhavam com as danças em volta da fogueira estalando dourada, a noite
bebida pelos olhos, e riam até o amanhecer.

Padre Ciomar se afasta do centro do palco e Maria Mindomira se aproxima de Saderre,


abruptamente.

Saderre – De sua formosura


deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.

De sombras agitadas
valetas que rompiam
esperma ao solo d’água
no mar que os convinham.

Maria Mindomira se invoca.

Maria Mindomira (para Saderre) – Rezei tempos, para que tempos passassem, até qu’eu
chegasse aqui.

Saderre (num sorriso) – Pra que tanta aflição?

Maria Mindomira – Você sabe bem, muito bem e tenho os Ventos como prova.

Saderre – Não devia confiar neles.

Maria Mindomira – Mas confio, eles eram tudo que eu tinha ao os avistar correndo pelas folhas
das árvores.

Saderre – Você devia esquecer, velhas lembranças abrem cicatrizes já curadas, derrama de
nós muitas vezes o que não queremos.

Maria Mindomira – Pra você é fácil, os de sua laia são assim, ilesos, falam coisa com coisa,
mas no fundo são os vermes que são.

Saderre (confirmando suas próprias falas) – Não disse.... (sons de gargalhadas femininas ao
fundo)

Saderre – A vida é um longo e temeroso jogo, eu te disse, nunca te enganei.

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Maria Mindomira (indignada) – Você só pode estar brincando... (sons de gargalhadas femininas
ao fundo)

Saderre – Tem tempos, minha menina, que já não brinco.

Maria Mindomira (ainda mais indignada) – Não sou sua menina!

Maria Mindomira (aperta os braços contra o peito, como se um frio repentino a dominasse) – Eu
não tinha nada, lá isso é verdade. Eu acho que nunca tive e pensando melhor, ninguém têm. O dinheiro
na conta, os reajustes, as crianças patéticas, os velhos que socamos dentro de quartos com medo moral
de não os cuspir rua afora, nada disso nos pertence. Eu penso em antigos amores, eu molhada que só!
ao sentir o menino me vendo por debaixo das sombras folheadas de uma amendoeira. Aquelas tardes
comendo o doce de setembro, o sorriso esbanguelado daquele velho com cheiro de terra que nunca me
esqueci. E hoje sinto, aqui (ela leva as mãos a barriga) agarrado em minhas entranhas, que não temos
nada, que nada disso nos pertence, nem mesmo os velhos.

Saderre (abre um sorriso dentifrício) – Bonitas revelações! Vocês fêmeas não apenas possuem
a pele sensível apenas em volta do útero, mas também em volta dos tolos sentimentos e da carne que
habitam. (sons de gargalhadas femininas ao fundo)

Maria Mindomira – Você tirou a minha infância!

Saderre (debochado) – Ué, agora você possuía alguma coisa? (sons de gargalhadas femininas
ao fundo)

Maria Mindomira (vencidamente indignada) – Você sabe do que tô falando...

Maria Mindomira – Tinha uma infância sim, mas você a tirou.

Saderre – Então tirei aquilo que você nem tinha! (sons de gargalhadas femininas ao fundo).

Maria Mindomira se desfalece aos poucos, e se deita no chão. Saderre permanece onde está.

Padre Ciomar – Costurando as redes, braços taludos, peles ensolaradas, agitando os arrastões
esticados, anzóis ao sopro salgado (sons de ondas no quebra-mar e trinado de aves marinhas). Batia nas
carnes, Maria Mindomira (Padre Ciomar se agacha perto de Maria Mindomira), pobre Maria Mindomira!
(se levanta) No atabaque, girava fogo, gozo, sonhos e tudo virou de instante. Olhou do vento fogoso retinas
entreabertas, cascas de insetos banidos. Olhou a dor cumprida, chutada pelo chão, e gemia, ouvindo as
vozes dos que a curravam sobre o peso dos joelhos. Coisas na boca e o silêncio abrindo sua mata.

Maria Mindomira se levanta, lentamente, com dificuldade.

Maria Mindomira (para a plateia) – Dentes do diabo insinuando, a todo instante o gosto dos
assassinatos. Entrei pelos becos, pelas vielas tortuosas, avancei, entre outras putas e paredes retorcidas.
Agitadas, irmãs de gírias. Elas desafloravam e riam. Quando vi Saderre, paletó branco, pisante bico-fino.

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No talho, ele me arrebitou (Saderre abre um sorriso dentifríco em direção a plateia). Mas tirei o punhal
(Saderre faz uma cara de espanto) lasquei, meti-lhe na garganta (Saderre desfalece no palco) e sorri
disfarçada, era um ensaio.

Padre Ciomar – Balançou o punhal, agitada (Maria Mindomira balança a mão direita em direção
a plateia, como se estivesse ciscando o punhal ao ar) andando na rua de pedra socada o vento varrendo
seus cabelos. Coqueiros agitados, um sopro balançando as nuvens, a lua entrecortada de chamas uivando
no topo dos morros.

Saderre se levanta, lentamente, com dificuldade.

Saderre (em direção a plateia) – Toda vez que me sento à sombra do tempo, eu me penso em
cima de todas as mulheres que nunca terei, inseminando-as. Sim, levando minha semente ruim adiante,
dentro delas, que exatamente como um tiro na testa de vidro, e eu jamais as possuirei. Nasci no século
amargo e toda dança de vertigens aéreas, bimotores, fissão nuclear, morte a domicílio e universos
paralelos (sons de gargalhadas femininas ao fundo).

Maria Mindomira se aproxima de Saderre.

Maria Mindomira – É porque ninguém liga para tuas convicções fajutas que carregas nos
cadáveres do tempo.

Saderre (grita, como se a vida ainda existisse) Mãnhêêêêêêêêê!!! (sons de gargalhadas


femininas ao fundo).

Maria Mindomira lhe degola e Saderre desfalece novamente, definitivamente.

Fecha a cortina, abre alguns instantes depois.

Padre Ciomar está sozinho no centro do palco. Ajoelhado, com a boneca apertada contra o
peito (sons de ondas no quebra-mar e trinado de aves marinhas).

Padre Ciomar (levanta os olhos para a plateia) – Naquela rapsódia entrei, no antro de palafitas
acesas, lamparinas, duas velhas no parto e a mulher encruada, berrava. Vozes turricadas, esbeiçavam a
fumaça das lamparinas. Alguém que disse: “lá ê vem Padre Ciomar.” Tudo marejava como em princípio, o
fogo soprando entre os ribeirinhos, pronto e ansiosos para se abençoarem em sorriso de Cristina. Sim, era
Cristina, ali, na eminência de rebentar do ventre. Os que estavam presentes, se entreolharam. Uns olhos
amarelos no passo dado, tremendo de uma estranha euforia. Ao longe, o luar sobre os coqueiros. Marejado
(sons de ondas no quebra-mar e trinado de aves marinhas), eu tremulava entre os ribeirinhos
entreolhando-se, e disse: ué cadê Cristina?

Cristina e Matador entram, cada um por uma extremidade. Se encontram no meio do palco.

Cristina (para Matador) – Confesso que para mim, esta Cristina que vês, você seria apenas
mais um. Mais um alvo, mais uma morte, mais um quinhão a se juntar aos outros.

23
O Matador não diz nada, seus olhos varrem à fronte hipnoticamente.

Cristina (continuando) – Pois bem, tu não és um qualquer, Matador. (ela se aproxima mais do
Matador, coloca suas mãos em seu rosto, ele inclina a cabeça para trás, num gesto pouco solicito, mas
ainda assim a deixa encostá-lo) É feio, confesso, os olhos caindo prum amarelado, a boca insossa, no
entanto, rígida. Sua cabeça magra, compacta, tem um quê de sobrevivência. O ardor de lutas
desconhecidas. Você flui como o aroma da guerra. É um prazer. Te matar, será como o mais sublime dos
movimentos, na altura de todas as quedas.

O Matador levemente franze os cílios, e se mantem hipnótico.

Cristina – Somos dois miseráveis, meu amigo. O que sofro, é bem maior que minhas palavras.
Venho errante das ruínas, levando-os do útero ao túmulo. Alheio aos dados, aos resultados, querendo
apenas o sumo da trajetória, desprezando os destinos. Ó meu amigo! Vim para lhe matar. Afogar-te em
sangue.
O matador, com os olhos concentrados em Cristina, balbucia alguma coisa na superfície dos
olhos, uma mancha fluída na tez dos encantos. Cristina bate duas palmas e se sai do palco. Matador sai
em seguida.

Era o acordo, naquele lugar, os dois lutariam.

Entra Proscrito, o Mijado.

Proscrito, o Mijado (em direção a plateia) – Um proscrito, inválido, levado entre estacas à mercê.
Inundado pelo que ia me acontecer. Chuvas de frequência instantânea nos atingem. Eu olhava os vitrais
iluminados, frouxamente, dezenas de ipês pendidos sobre as ombreiras das portas. (lentamente, Proscrito,
o Mijado, se ajoelha, numa pequena pausa) Era o dia do anjo da morte passar, com suas asas de enxofre
incendiando as palmeiras, levantando a areia até a altura dos ombros. (num gesto de pânico e submissão,
ele roga as mãos em direção aos céus) Levaram-me pro subsolo úmido, goteiras ecoando pelos cantos.
Ouvia-se gaivotas em círculos sob céu cagado e penas, Naír atenta, soltou riso, caiu e se quebrou em
pequeníssimas tramas suculentas. Naír, aquela rampeira, cadelinha arredia, lambendo um pedaço do
escuro. Lamparinas dependuradas pendiam sobre o nada, querosene, fumaça negra rondando a treva.
Houve um desabamento e em minha existência a vida comungou pelos ventos e, de mim, tive acessos de
pânico.

Lentamente, Proscrito, o Mijado, se levanta e sai.

Houve-se um gemido, seguido de um longo chiado que termina numa repetição sem sentido.
Padre Ciomar se levanta repentinamente e começa a andar de um lado pro outro.

Padre Ciomar – Cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê
cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê cadê
cadêcadêcadêcadêcadêCADÊCADÊCADÊCADÊ????????????????????????????????????????????
???????????????????????????????????????????????????????????? (sons de ondas no quebra-
mar e trinado de aves marinhas) seguido de (sons de gargalhadas femininas ao fundo).

24
Um apagão, o palco se escurece num susto, as cortinas se fecham. Apenas silêncio, um silêncio
completo e sepulcral. As cortinas se abrem novamente, a luz foca em Padre Ciomar em posição fetal, a
cabeça da boneca degolada num canto, o resto do corpo em outro. Uma voz anônima, ao fundo, narra os
eventos.

Voz Anônima – As escórias que ele inundado no topo


olhou vértices correndo o céu estrelado
espatifado sua onda de espantos
expiar expiar expiar expiar
zonzozonzozonzozonzozonzozonzozonzo
nada por onde ir a quem ou quê?
acessos que lhe inundava a corrupção à batina
onde se for?
Padre Ciomar atolado nos mangues
da saia pra baixo o ar da lama
andou
anteviu os olhos de prantos corridos nas bordas
saciou em murmúrios oscilando nas ânsias
confessa confessa confessa!
o que vês daí?
NADA
DESCIA O SUOR NA ESPINHA ENVERGADO
DE JOELHOS NA LAMA CINCO HORAS
ANDANDO. A MADRUGADA INTEIRA?
olhou controverso a latida vinda dos antros
um troço submergiu reluzente
oval pequenina entre os galhos atolados na lama
se aproximou
entre os braços Padre Ciomar apalpou-a
em concha
o feto afogado inchado inexistia
engasgos na garganta Padre Ciomar só repetia
murmúrios
morto
morto morto morto morto morto morto morto
morto morto!
e se desfazia
em sorriso de Cristina.

A voz anônima cessa. Entra Cristina e Matador, cada um por uma extremidade. Cristina chuta
o corpo da boneca em direção a plateia e o Matador chuta a cabeça. Ambos mantem uma certa distância.
Padre Ciomar continua em posição fetal.

Cristina (enxuga as palmas das mãos, elas suam) – Não há ninguém por perto, ao redor, nada.
Qualquer um que morrer, morre só. Morremos sozinhos.

25
Cristina tira o punhal da cintura, ajeita-o cuidadosamente na mão.

Cristina – “Todos os meus mestres estão mortos”.

O Matador apena a olha.

Cristina corre em sua direção, mas há uma pedra no caminho... Num tropeço rápido, estúpido,
repentino, Cristina voa ao chão; o punhal na carne, na altura do abdômen, o sangue grosso lavrando o
paladar. É tudo por demais estúpido, nesta guerra fratricida, onde o sangue de todas as mães rosna em
seu olho.

Cristina (diz de si para si, murmurando) – “Eu não posso contar a ninguém... Devo me esquecer
disso... O mais belo dos acontecimentos.”

O Matador faz um breve esforço, e dá um passo. Depois outro, e outro, e outro, e outro, e outro...
Cristina por sua vez ri, ri resfolegando o sangue pela boca e narinas. O matador a abraça, seu gesto lhe
vem, mais da vida que dela se vai aos poucos do que pela morte estúpida. O Matador também ri. Um riso
ameno, sem charme, sem promessa, ou compromisso. Um riso. Um rito. O matador consente...

Cristina – Como somos patéticos!

Novamente um apagão, o palco se escurece num susto, as cortinas se fecham. Apenas silêncio,
um silêncio completo e sepulcral. As cortinas se abrem novamente, a luz foca desta vem em Proscrito, o
Mijado, em posição fetal. Novamente uma voz anônima, ao fundo, narra os eventos.

Voz Anônima – Outra noite Maria Mindomira


punhal de reto voltou
madeiras estalos retorcida
fortes pisões sambadas
forrobodó
vinda de terreiro
Maria Mindomira arretada
cabra mulher homem da peste
cão que não se fez passar fome
de punhal mascado
de dentes tremendo no
tanque
lavadeira chutada pra zona
deu que deu danado
agora nada de ensaio
subiu danada
vim que vim danada!!!
Saderre gingou
sapato bicolor de breve
errantes nas biqueiras da vida
Maria Mindomira lascou

26
Saderre ficante de rumo cedou
rasgo no bofe
língua derrame de fisgo lanhada
as putas ergueram-se
um zázázá cantante
Saderre caiu de bofe e se foi
Maria Mindomira de inclinada de lado errante
no talo de punhal em sangue pingou
olhou descabelada pros cantos
de todo lado entreolharam-se
putas de vida lascante
apertou o punhal entreolharam-se
e de fato gozaram todas num instante.

A voz anônima cessa. Entra Naír e Analuzía, cada uma por uma extremidade. Ambas estão de
vestidos franjados e longos e começam a rodar pelo palco feito baianas de escola de samba. Proscrito, o
Mijado, se levanta lentamente, enquanto Naír e Analuzía rodopiam em sua volta.

Proscrito, o Mijado (em direção a plateia) – Amordaçado, a via, goteiras de úmido esplendor.
Levantado, jogado no canto, eu vi dezessete de cacetes erguidos, suados, molhados, infames (sons de
gargalhadas femininas ao fundo). Vim de longe, de outras paragens, desnascido onde quer que eu fosse,
implícito na seteira errante. Saí banido para nunca mais, outra vez, e aqui vim parar no instante que de
outro lugar fui saindo. Não morri quer mesmo que se diga, nem parei se mesmo me perguntassem. No
primeiro dia que vi Analuzía, loucamente me apaixonei num furor. Se distante vim num galope, foi porque
estes ventos daqui de sal e graça num cortante te invadem (sons de ondas no quebra-mar e trinado de
aves marinhas), e foi porque Analuzía me sugou num vórtice de cada instante. Sua carne de láudano,
distinta de pele diamante, de cupuaçu ao leite no cálice, e de longe vim pros seus braços que logo me
agarrou num relance.

(sons de gargalhadas femininas ao fundo) ambas cessam a dança e o rodopio.

Bate à meia-noite (sons de sinos e piados de aves noturnas ao fundo). Começa um vestígio de
um diálogo não escrito entre Analuzía e Naír. Ambas se aproximam.

Analuzía na cama se vê desencarnada.


Analuzía sente nos ouvidos, sussurros...

Analuzía:
– Sentada. Não! Em pé! Quem sabe?
Ou talvez aos pés de mim.
Sou Analuzía, flutuo, como-me.

Analuzía (no antro onírico, agoniza, grita):


– Ó Naír atiçada! Meu pomo devasso!
Minha queda delícia!

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Analuzía (no cimo do despertar):
– À meia-noite bati na porta
Ai, quem me dera!
Dar-me ao impossível!
E conhecer teus caminhos.

Naír:
– À meia-noite trucidei tuas fotos
Teu rosto rasgado na boca
À meia-noite...
Que caí em ventania.

Analuzía:
– À meia-noite cheguei aos Subúrbios
Ai, quem me dera!
Dispersar-me em afagos
E suprimir teus caminhos.

Naír:
– À meia-noite o espelho quebrou
Meu rosto quebrado na boca
À meia-noite...
Tornei-me cacos.

Analuzía:
– À meia-noite surrupiei-me na fenda
Ai, quem me dera!
Descolar-me do ato
Troçar da miséria.

Naír:
– À meia-noite entrei no intento
Minha cova, minha boca
À meia-noite...
Solucei sem nada.

Analuzía:
– À meia-noite sentei no vértice
Ai, quem me dera!
Desatar o nó do ponto
Ver o hiato nu.

Naír:
– À meia-noite tu eras-me fundo
Cavei-a tudo com a boca
À meia-noite...

28
Era eu, era o nada.

Analuzía:
– À meia-noite corri nos desertos
Ai, quem me dera!
Desbussolada nos infernos
Vi-me aterrada nas dobras.

Naír:
– À meia-noite voou as urucubacas
Engoli-me na foz da boca
À meia-noite...
Era desordem e regresso.

Analuzía:
– À meia-noite soltei meus gritos
Ai, quem me dera!
Caída de puro entusiasmo
Inchado de quimeras.

Naír:
– À meia-noite clamei a Iansã
Aterrada até a boca
À meia-noite...
Surrupiando o sonho dos ventos.

Analuzía:
– À meia-noite minhas lembranças fugiam
Ai, quem me dera!
Buscar outras vidas
No boitatá de mais versos.

Naír:
– À meia-noite, quem eu era?
Fugindo pela boca
À meia-noite...
Eu já não era mai...*

*Aqui o diálogo se interrompe em cinzas

Naír e Analuzía se sentam no chão, viradas uma de costas pra outra, formando uma fenda entre
elas. Há um silêncio breve e logo depois o som de ondas, aves marinhas e gargalhadas de mulheres, tudo
misturado. Proscrito, o Mijado, se aproxima da beira do palco passando por entre elas, se ajoelha e em
peditórios, roga em direção a plateia.

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Proscrito, o Mijado (para a plateia) – Rendido na ponta de seus seios estacas, fui prensado a
verter meu sangue. De cada soluço no peito que me batia, ah meus deliciosos desejos! que volúpia! que
tardes cantantes! Amordaçado eu lhe via, Analuzía, rodeada por uns dezessete de cacetes erguidos (sons
de gargalhadas femininas ao fundo) e, logo depois, todos ao mesmo tempo sobrepujando seus orifícios.
Analuzía saudava, suada, as glandes que em seu corpo entravam e a cercavam num círculo. Penetravam-
lhe a boceta, cu, boca e ouvidos e suas mãos erguidas se excitavam. Amordaçado, tudo eu via num canto,
rendido, no que Naír ria em trapézio e me olhava em desvio. Aquela armadilha que me preparam em
vinhos, em 7 noites de estrelas cadentes por todo Balneário. Contra mim conspiraram, o que depois fui
saber, distraindo os que podiam me ajudar: Padre Ciomar com seu cristo no mangue e Maria Mindomira
com Saderre na lâmina. Neste ínterim, caí na arapuca através de Analuzía, e elas me fizeram jurar tudo o
que pude e minha vida em suas mãos entreguei num instante. Resta-me agora ver Analuzía sendo currada
por uns dezessete infames, que riem suados em volta de seus orifícios. Naír num prenúncio de êxtase
alisa as nádegas e fico embriagado (sons de gargalhadas femininas ao fundo). Todos gozando na boca
de Analuzía, aquela enorme poça de porra que ela me olhando, me fez ver, engolindo cada sêmen de
dezessete cacetes em seus orifícios, sorrindo para mim, alisando os lábios com a língua ainda pingando a
semente da porra de todos (sons de gargalhadas femininas ao fundo).

Naír se levanta, e numa louca dança de alongamentos, esfrega na boca os pés de Analuzía,
sua discípula, que de boca aberta recebia o gozo de cada um por sua vez e gemiam num estridente coro
de langores selvagens.

Novamente um apagão, o palco se escurece num susto, as cortinas se fecham. Apenas silêncio,
um silêncio completo e sepulcral. Logo depois as cortinas se abrem novamente, a luz foca em Proscrito, o
Mijado, em posição fetal, sozinho no palco. Novamente uma voz anônima, ao fundo, narra os eventos.

Voz Mecânica – garotas postiças


o som das ondas quebrava uníssonas
excitando o voo das gaivotas em transe
vendavais salgados atiram contra os mangues
rebatendo o sopro do mar nas falésias
numa tonteira não segurou seus antros
reproduzindo o clima fincado nas janelas
vomitou amargo e magro sem comer dias
todos sorriram ao ver sua queda
quando antes seu batismo mijado
uma silhueta dentre todas
viu se aproximar
olhou-a nos olhos lhe lançando um terremoto
pela luz das retinas e tremeu
aquela espessura quente do seu vômito que
Naír
tinha entre os dedos e lambia e chupava

(sons de gargalhadas femininas, de ondas no quebra-mar e trinado de aves marinhas)

A cortina se fecha.

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Ato III
arquipélagos e muambas ou o dia em que não o queimaram

31
32
Voz ao fundo de Proscrito, o Mijado.

Proscrito, o Mijado – Os cartazes amarelos das ruas contêm secretas histórias que só os
errantes e os poetas conseguem decifrar. É comum para estes doidos de sarjeta contemplar longos
incêndios carcomendo as fachadas, ainda que não haja fogo algum. As crianças debilitadas são
enforcadas nos becos e expostas no meio da rua, como iguaria difícil de comprar. Os crimes, em tempos
assim, não conseguem ficar tanto tempo escondidos nos cômodos, e logo é possível observar seus vultos
rastejarem pelo lado de fora das janelas, pendendo escancarados sobre os parapeitos. Quando a vontade
é indomável, e se grita com bastante ardor dentro do pleno silêncio, pode-se ver, ao virar a esquina, alguém
com a cabeça rachada guardando um trecho da música do mundo dentro do crânio.

A cortina se abre. Entra um homem sem face. No lugar, uma camada branca, uniforme,
homogênea, lisa, sem expressão ou algo do tipo. O homem sem face traz consigo alguns papeis. Há uma
mesa e três cadeiras no meio do palco. O homem sem face se senta numa delas.

Um outro homem entra, mas com face. Se chama Juliano. Juliano se senta na cadeira oposta
do sem face, e coloca as mãos sobre a mesa.

Homem Sem Face – Aqui estão os papéis, como lhe disse pelo bilhete, caro Juliano. Bom que
ele não fora interceptado, e chegou ileso até você. Mas não podia lhe mandar esses papéis, pelos meios
que lhe mandei o bilhete. Tinha de lhe entregar pessoalmente, em mãos. Mesmo que eu não possua uma
“pessoa”.

A voz do sujeito tem a consistência e a sonoridade de metal sendo moído. Juliano não sabe o
que dizer, prefere o silêncio. Então o homem sem face ri, levanta e se distancia. Desaparece pelas
sombras. Juliano então guarda o maço de papéis como pode dentro da jaqueta, se levanta e se vai.

A cortina se fecha por um breve tempo e se abre. Em duas das três cadeiras, estão sentados
dois sujeitos: Juliano e Marcos.

Juliano – Onde se encontra o chamado, Marcos?

Marcos – Ainda está por chegar. Paciência vem com o que precisamos. Não sejamos
imprudentes.

Juliano – O Bispo Domingos nos disse bem, a Tradição e a Cultura são que nos mantêm coesos,
eretos, prudentes, certos de que as demandas serão cumpridas e as virtudes nos acudirão.

Marcos – Certo, certo. Não falei por mal, Juliano. Sei bem que o que faremos será vital para a
Nação. Ainda que o povo nada saiba, nossas incursões nesta maré que nos assombra darão o futuro
almejado para todos.

Juliano – Pode ser e pode não ser. Isso independe. Não de nós, é claro. Nosso
comprometimento é exequível, porém um faro que tateia as estátuas e vigia as praças. Os dados, contudo,

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podem nos enganar, como presenciamos outras vezes. A questão agora não é mais de permuta ou
acordos, mas metas que serão traçadas sobre quaisquer medidas. Iremos nos pautar, não nos
levantamentos que fizemos, nem nos resultados que virão, se assim posso dizer, mas nos laboriosos
caminhos que abrimos ao refletir sobre isso tudo.

Marcos – Sim, sim, de acordo.

Entra, Nicácio, o Flagelo, à presença dos três e se aproxima diante da mesa. Nicácio veio com
seus trajes de costume: uma calça militar grossa, uma jaqueta verde-escura, coturnos, camisa preta e os
cabelos soltos e desgrenhados.

Juliano – Então este é o chamado?! Parece mais um vagabundo!

Os três se calam. Uma voz ao fundo ecoa, mecânica e chiada.

Voz Mecânica – Ela veio até ali, quando o surto já se anunciava nas ruas. Irradiava com a carne
lacerada de quatro mil olhos sedentos brotando da pele em chamas. O sangue do mênstruo marcando os
postes, os fios desgrenhados, as vizinhas em pernas de pau acendem o querosene no alto das janelas. O
Subúrbio estribilha. Por onde passava as almas eram destroçadas e se partiam em partículas
bombardeando o ar elétrico. Deus tinha o supercílio rachado. Tudo dormia.

Juliano, Marcos e Nicácio se desfazem.

Tornam-se O Primeiro, Perneta e a Putinha.

Perneta (para Putinha, num tique nervoso) – Pô Putinha, só uma bucetinha!

Putinha – Sai daí, seu Perneta fedorento!

Perneta – Quiácácácácácácá!

Voz Mecânica – Sua murrinha comia os átomos, invadia os poros, seccionava o sangue em
prantos. Os Quatro entraram sem se anunciarem. Os Quatro eram mármores incendiados deslizando no
átrio. Sondas luminosas vindas do Fogo em nome da Catástrofe. O ônibus inteiro era um anúncio do que
viria, e brilhava entre as luzes mundanas que morriam pelo caminho.

Perneta ri e baba monstrengamente.

Putinha – Clama-te excrescência banida da horda, é hora de lhe extirpar a alma e destituir os
resíduos.

Perneta – Quiácácácácácáglor plorck gorkkkkkkk......

Putinha – Sem jeito, melhor estripar.

O Primeiro – Não não, ainda não, deixe-me contemplá-lo de uma só vez.

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Voz Mecânica – O Primeiro hauriu, penetrou sua visão sobre as camadas do mundo, esbarrou
nos átomos, e arrancou do Perneta o que dali não queria sair.

O Primeiro – A miséria é fascinante, quanto olhar mais de perto, melhor. Uma pena que os
afortunados e alimentados desdenham isso. Caros senhores (se vira pra plateia), lhes proponho um índice
daquilo que chamamos horror, uma apreensão ejaculada pelas sombras malquistas e que incendeiam a
noite.

O Primeiro (virando-se para o Perneta) – Escória, o melhor seria você ter jamais nascido, mas
já que nasceste, o melhor seria morrer, e cá estou para levá-lo ao fim. Verás as linhas de sua vida se
desarranjarem e serem aniquiladas pra-sempre. Não irás engalfinhar a mim, creio, e o medo carreando
em suas veias, em breve serás estancado, onde soa o derradeiro alento de criaturas miserentas como tu.

Voz Mecânica – O Perneta abriu um sorriso sem entender patavina do que aquele Louco
dissera, os dentes podres do Perneta emergiam ao mundo com um lapso de lembranças soltas e
estilhaçadas rompendo pro horizonte. O Primeiro, vagaroso, começara a operação. De primeira,
lentamente, metera os dedos na bocarra hedionda do Perneta, arrancando-lhe os beiços numa sangria
sem dó. Depois, com apenas uma das mãos, o ergueu, estrangulando-o. O Perneta, balançando o único
pé dois palmos acima do chão, estrebuchava com o pescoço amordaçado com a mão do Primeiro. O
Perneta urrou, cuspindo pedaços de gengiva e sangue. O Primeiro sorriu. Diametralmente os dois olharam-
se e confirmaram tal feiura acontecendo. O Primeiro levou suas mãos aos olhos do miserável onde ainda
se ouve um estalo grunhindo. A bocarra sem beiços exibia os dentes podres encavalados, uma carranca
hedionda que exibia seus traços amarrotados. O Primeiro soltou-o, e o Perneta desabou. Deus tinha o
supercílio rachado. Tudo dormia.

O Perneta desabado no chão, sonha o sonho dos vencidos. O Primeiro e a Putinha fixam o
olhar um no outro.

A cortina se fecha.

Voz Mecânica (ecoando ao fundo) – Olhos abstratos confundiam-se. O pavor dormia entre as
águas escuras, o dia era parido feito gema explodida. Ele veio até ali, com a singeleza de um tiro
perfurando o céu de alumínio. Com o corte na têmpora sangrando os dias. Ele olhava com diabrura na
face e se aproximava deslizando fundamente no tempo. Queria algo, quase sondou, e levou suas mãos
ao peito. Sem pronúncias, Ele emitiu sonhos que apodreciam no pavimento. Nada a dizer. O acontecido
vibrava em ares remotos. A tessitura estalava com os passos numa rua ao longe. Por onde passava, as
carnes eram fatiadas com minuciosa precisão. Deus tinha o supercílio rachado. Tudo dormia.

A cortina se fecha, apenas o tempo suficiente para se introduzir no palco um boneco caído que
irá representar Marcos, morto, esmagado, assassinado.

A cortina se abre.

O Primeiro, Perneta e a Putinha se desfazem.

35
Tornam-se Juliano, Bispo Domingos e Alfredo.

Voz Mecânica – Na escuridão é possível encontrar, entre objetos impermanentes, vozes que,
de um lado, podem apenas serem ouvidas nas franjas do silêncio e, de outro, atravessadas por rajadas
retorcidas que beiram ao suicídio e o esplendor. Em lugares assim é difícil algo vingar, no entanto, quando
viceja, o que é pantanoso e infértil cresce como bambuzais. Nada é esperado acontecer, a loucura impera
e enverga os quadros fincados nas paredes, as velas sopram metano, os olhos se liquefazem e escorrem
pelas caras, os dias se trancafiam no mesmo, os relâmpagos se tornam opacos, ainda assim, algo
acontece, mesmo que não esperado, e uma chama atravessa as ruas arrancando portas e janelas com o
turbilhão de sua cauda.

Homens estranhos o chamaram entre portas sem trancas, espaços secretos, vozes que se
perdem em corredores não se sabe pra onde, ventiladores empoeirados rangendo no escuro, lâmpadas
obtusas refletindo a contração do nada e expandindo até a curva das sombras.

Sentados à mesa, estão Juliano, Alfredo e Bispo Domingos. E Marcos (boneco) caído no chão,
com marcas de sangue em todo corpo. Aqueles homens estranhos ainda permanecem em volta da mesa
e, permaneceriam assim por muito tempo ainda, se movendo apenas quando planejado. Uma fumaça
espessa paira entre o azul. A cabeça de Marcos reluzia rachada num canto da sala. Seus miolos escorrem
ante a luz da única lâmpada acesa sobre o centro da mesa. As cavidades de seus olhos estão vazias, os
globos oculares foram adequadamente arrancados para futura referência. Os lábios pendem arreganhados
no rosto e a língua, úmida e intumescida, desajeitadamente jogada para fora da boca.

Juliano (olhando em direção a Marcos caído no chão) – Bem, continuemos nobres senhores, o
que poderia nos importunar num futuro possível, foi enfaticamente posto de lado. Nossas atribulações, ao
menos quanto a isso, terminaram.

Alfredo – Perfeito!

Bispo Domingos – As insurgências logo terminarão. O novo governo se fundará pela abstração
dos planejamentos. Nossa Ordem se baseará em agentes implícitos, em coações destacadas, na
inteligência dos departamentos, na revolução gerencial que apontará e implementará a utilização dos
termos.

Juliano (virando-se para o Bispo Domingos) – Perfeito, Bispo Domingos. Quando esta Guerra
começou, achávamos que não duraria mais que semanas. Era apenas um desentendimento entre facções
e, logo, logo o Subúrbio estaria novamente calmo e os ânimos suavizados. Como bem sabemos, nada
disso aconteceu. A Guerra grassou como pólvora atiçada no ar, e quando os estopins foram acesos, os
incêndios começaram. Obviamente que toda Ordem precisa de uma pequena desordem, para sua própria
manutenção, para trazer mudanças em que todas as coisas permaneçam as mesmas. Monarco
Santíssimo, o Abençoado se levantou, mas propôs uma Ordem que não se cumpriu.

Alfredo (interrompe Juliano) – Exato! Até que o imundo do Nicácio juntou seu bando de
maltrapilhos e saqueou as ruas para derrubar o Abençoado, e deu com os burros n’água. Agora o Subúrbio
virou ruínas, Monarco terá um enterro de herói e quanto a Nicácio, jogaremos em vala comum.

36
Juliano (sorri sarcasticamente para Alfredo) – Belas palavras, companheiro Alfredo.

Bispo Domingos – As insurgências não serão mais toleradas, os rebeldes deverão ser punidos
severamente, caso voltem a levar a desordem novamente para as ruas. Todas as formas e medidas de
punição serão tomadas a fim de restabelecer a Ordem. Os estupros foram gerenciados, estatizados,
somente nossos oficiais estão autorizados a cometê-los. Afinal, o que fazer? Essa gente de quinta, sexta
categoria, vivem como uns velhacos por aí, suas mães a esmolar encurvadas pelas sarjetas e com um
copo à frente para as moedas, as irmãs nos prostíbulos para aumentar a renda, as doenças a carcome-
los diariamente; os irmãos, uns vagabundos a rolarem no chão com os cachorros, o pai, um sujo, aleijado,
alquebrado, entravado, humilhado rastejando pelas calçadas. Quando morrem, nem nos demos conta.
Uma limpeza que só! Vida nova, regras novas. Os crimes comuns e os calhordas terão ocorrências até
onde forem necessários. De resto, entraremos em cena encarcerando e esmagando os culpados. Espero
que estejamos entendidos. Até logo.

O Bispo Domingos levanta-se, faz um gesto de despedida a todos e se retira. Aos pés de
Juliano, Marcos jaz ensanguentado e inchado pelas pauladas. Serviços internos devem ser resolvidos
pelos que são servidos. Do lado de fora, o vermelho e o laranja cobrem o longo das ruas. Sangue e fogo
pesam sobre os pavimentos. O término de mais uma Era alcançava o Subúrbio.

Voz Mecânica – As ruínas que cobriam os bairros ainda fumegavam. O chão dos pavimentos
destroçados estava cobertos pelas cinzas. O cheiro de concreto chamuscado e carne queimada dominava
o ar. Os destroços cobriam as praças, invadiam os quintais, engoliam a beira dos rios. Os pedaços
rasgados e retorcidos nas paredes, mal lembravam os cartazes que um dia haviam sido. Rodovias e
avenidas arruinadas, postes quebrados e latas de lixo e tapumes perfurados por estilhaços, favelas
abandonas e sob incêndios, cachorros loucos arrastando os cadáveres pelas ruas.

Juliano e Alfredo se desfazem.

Transformam-se em Monarco Santíssimo, o Abençoado e Nicácio, o Flagelo, que se levantam


e se viram diante da plateia.

Nicácio, o Flagelo – Estou aqui pronunciando a voz que eclode das ruas,
eu, o Flagelo, e ainda mais profundo,
o som que emana da Vida que palpita nos subterrâneos.
Nunca poderei sentir uma coisa de cada vez.
Poderosa demais a chuva que se levanta da terra.
Tudo passa por mim num turbilhão, pelos cabelos,
pela pele, minha carne, me arrastando.
Eu sinto a respiração viva dos átomos,
a eclosão das formas de vida ínfimas que vivem para além da visão,
a eletricidade que machuca as paredes de pedra,
dos alicerces que sustentam a vida e os oceanos.
Estou fora de mim mesmo, eu sinto outras vidas,
outras espécies de gente,
outras terras tão baixas quanto a queda dos precipícios.
As sombras dos parapeitos me levam à tempestade não vista,

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por debaixo dos azulejos, por debaixo das luzes que escorrem pelas ruas.
A pele que calçamos arde nas protuberâncias,
e somos apenas uno no fogo, que nos queima, nos transborda.
Faremos um pacto então, para além das ruínas,
para além das bombas que carcomem nossa carne.
Vamos seguindo, em breve estaremos do outro lado disso tudo.

Monarco Santíssimo, o Abençoado – Santissimamente, venho de outras eras


Membro d’ouro das esferas
Luz régia última da força incontida
Férreo morro da foz inaudita

A cor rubra tece a nau


À bandeira hirta, tremulando
Ao vento este nos soprando
Ergue-se nossa terra, num canal

Pois de sonhos, a vida,


Seja estreita a enseada
Casa à vista, estreada
Tempo belo junto a ida

Aqui vaguemos ao ato


Ermo que nos vem ao tato
Deste rincão, aguerrida calma
Verdejando em nossa alma

Pesadelos supersônicos estremecem a atmosfera com suas asas metálicas, esfarelam as


nuvens, e tingem rastros pelo céu.

Monarco Santíssimo, o Abençoado e Nicácio, o Flagelo se desfazem.

Viram Tõezinho e Boquita. Se deitam no chão e Boquita adormece com sua cadela Quizinha
(invisível) ao lado.

É começo de madrugada. Tõezinho berra uma canção qualquer, enquanto Boquita dorme
espremido num canto, com a cara próxima das tetas de sua cadela chamada Quizinha.

Tõezinho (cessando a cantoria e falando em seguida) – De onde venho a coisa tá danada! Tem
que ter culhão pra guentar, caro Boquita.

Boquita (entre o sono e o despertar) – Ugh.... e daí? Não venho de lugar nenhum. Aqui como
em qualquer tranqueira, dá no mermo. Vê se não aborrece, Tõezinho, tô de sono.

Tõezinho – Fio de uma égua, só sabi durmi! Digarei-te lembranças de quando menino, fui e vim
e aqui tô. Queres ouvirte?

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Boquita (se sacolejando todo e espiando Quizinha num canto) – Véi chato pra porra... Conta
intão duma veiz.

Tõezinho – Agora sei se conto não! Corno fedido, anda muito marrudo duns tempos pra cá.

Boquita – He he he he he he... Conta logo essa porra duma veiz! Deixa de caô e solta o verbo
logo.

Boquita se levanta, dá uma batida nas roupas cheias de poeira, beija Quizinha no focinho e se
apruma num canto de rua.

Tõezinho – Vô contá mais porra nenhuma não! Corno safado.

Boquita – Quiácácácácá... Se quisé não contá, não conta. Conta eu intão, bexiga de galinha.

Boquita apruma uma guimba entre os beiços, dá uma esfregada nas costas de Quizinha, que
destroça algo nas presas, bole algo no bolso, suspira profundo em direção a lua redondinha no céu, capta
algum facho de luz postinal nas ideias, e começa a balangar os beiços...

Boquita – Deveras brevemente veio um surto em meu coração,


ó minh’alma cheia de profecias canhestras!
Ondi’que’foram parar os que já eram?

Tõezinho balança a cabeça lamentavelmente e funga um ar de deboche. Boquita atinado, se


liga qual é a de Tõezinho, belisca algo lá no fundão da alma, e a solta na superfície:

Boquita – ...ademais tempo d’outrora,


cerração que ficou e foi embora.
Sei de mim, sei de cá e lá amém.
Nunca me voltei e agora vou arteiro,
vou indo vou indo em caminhos longueiros.
Solto no tempo de minha carcaça
Louco na miragem que vibrou na miséria
Olhei de olhos espertozos
a pronta entrega que rasgou a Terra
Quem viu, não viu; e eu que não vi, vi.

Tõezinho engasga e cospe. Balança a cabeça novamente em tom de pilhéria e se esbalda de


canseira, largado num canto. Boquita desrri e mete a língua novamente no páreo:

Boquita – Alinhado à justeza do troço de quem viu, não viu; e eu que não vi, vi; entreguei-me
às fortes sensações que cuspiam da alma e batiam em meu corpo cambaleado de pancadas da velha vida,
me enchendo de fogo vivo. Devaneei, virei-me impróprio na guia na sina do Aparecido, ensolarado,
embriagado de lucidez, e nunca mais servi ao mesmo.

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Boquita – Ó minhas visões!
Ó minhas visões bulindo da terra e queimando tudo em volta!
Traçantes zuniam no bojo da minha serência.
Ruas meninas desvagueavam meus pés xexelentos.
Cego cego eu fui, céguim céguim eu fui e fui mermo.
Buli, encrenquei, parti e saltei...

Boquita para por instantes que pariam eternidades, e consente a canhestreza daqueles
presságios. No calar de Boquita, Tõezinho se levanta, aproveita o momento de sondagem do amigo e joga
alguma qualquer no meio:

Tõezinho – Vou falar de mim agora... Cheguei encachaçado no barraco de Margarida em dia
de Natal e ela me deixou de porta pra’fora. Cachorra! Meti o canivete na porta, mas não entrei. Foi aí que...

Boquita age rapidamente e interrompe subitamente Tõezinho, já com Quizinha nos braços e
pronto pra mais uma soneca, ele desdenha Tõezinho e manda:

Boquita – Cala boca desgraceira! Quero sonhá, deixa de conversa fiada!

e adormece...

Tõezinho permanece.

Boquita torna-se Nicácio, o Flagelo

Voz Mecânica – Tõezinho amanheceu sob os cadáveres dos meninos. Um silêncio mortífero
rondava por entre aqueles lugares. Ao levantar os olhos, viu um menino voando, segurando o barbante de
seu balão de gás, sobrevoando distraído o Subúrbio em ruínas, que logo, logo, estaria invocando os
urubus. Um vento firme atravessou os terrenos-baldios levantando em redemoinhos o pó solto sobre o
barro.

Nicácio, o Flagelo – Meu coração ouvia Cartola porque queria se entregar...

Começa a tocar “Preciso me encontrar” na voz de Cartola.

Tõezinho, ainda mais mendigo que antes, assente e diz ajoelhado aos quatro ventos:

Tõezinho (rogando) – Leve-me contigo, ó vento! Não me deixe aqui para viver na vergonha.

Cai o pano

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