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ANO 2023.1
UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Poesia (Pausa), entre nós dois. Entre nós dois, meu anjo, meu nojo, minhas
mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um
terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau-cheiro,
delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada.
Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Meu olho. Nós dois, meu olho.
Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique
assim, morto. Permito que o carro passe. Permito o vento, a buzina. Estou
doente. (Pausa) Doente porque vejo claramente, porque sei que à minha frente
há o pedregulho. Ei-lo, pedregulho. Permito o pedregulho. Ei-lo, corpo lavado.
Permito o corpo lavado. Ei-lo, retina ferida, latido meio fome, meio medo, meio
noite imensa. Meu interesse é que não morre. Meu interesse gruda aqui,
exatamente aqui, o meu olhar fixo, cavado. Mas se espalha depois pelos
Shoppings, pelos enormes Shoppings, pelos saguões de aeroporto, pelas free-
ways, pelos mercados unificados, pelos boletins informativos da Bolsa de
Valores, pelas unidades de terapia intensiva dos hospitais, pelos condomínios
de luxo, enfim, por todas estas áreas onde um cachorro não entra. Meu interesse
olha para elas de olhos bem abertos - cegos e abertos. Bancos, centros
culturais, chão azulejado das embaixadas, cenários de televisão. Para quê isso?
Meu interesse olha pra isso (com ênfase) e passa. Vê? Passou. Mas em você se
fixa, e cava. E quando o assento do meu carro me traz de volta ao fluxo de ar,
vento e lata, ao núcleo de farol e de borracha, à cusparada da distância, ao
mugido da quilometragem - à estrada, à estrada-, de volta à boca aberta à minha
frente insistindo para que eu siga não sigo, não sigo não, não passo não, ao
contrário. Vê? Eu paro. Paro e contemplo, porque deve ser assim. Você aí, eu
aqui. Mesmo que meu dedo toque a tua pata há um quilômetro parado entre nós,
como na estrada. Mesmo que minha voz, esta voz, penetre fisicamente os pêlos
da tua (tua o quê? (pequena pausa, grita) carcaça!), mesmo que como uma pedra
num lago imóvel o som da minha voz se espalhe pela estrada e por toda a
vizinhança ao redor da estrada, mesmo que se transforme em quê? em (grita)
samba! (mais baixo) de novo: (grita) samba! (mais baixo) mesmo que migre da
minha garganta até o som do copo e do cabo da faca, dos dentes do garfo nas
hachuras da borda do prato, mesmo que se hospede numa inútil semelhança
com o que é belo, ou, ao contrário, num lamento contínuo, numa mulher
chorosa, na lama do meu tímpano ou na música gloriosa, espalhando-se como
um cântico, um (grita) canto!, uma (grita) batucada!, mesmo assim, ainda assim,
por causa disso, com certeza, é inevitável que, e nem poderia ser de outra forma,
não se deve esperar nada muito diferente disso, em suma, todos sabem, todos
concordam, todos têm pleno conhecimento de que - entre nós dois teria de ser
UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Por sua vez, o monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos evoca uma
resposta emocional intensa. A fragmentação da linguagem, combinada com
imagens perturbadoras, provoca uma sensação de desorientação e
incompletude. O texto convida o leitor a mergulhar em um estado de
desconexão e confusão, refletindo os pontos cegos da percepção e reforçando
a fragilidade de nossas certezas.
BIBLIOGRAFIA: