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UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CURSO: ESTÉTICA E TEORIA DO TEATRO

ALUNO: MARCELO APARECIDO DA CRUZ PRATES


MATRÍCULA:20212415007

DISCIPLINA: INVESTIGAÇÕES CONCEITUAIS EM TEORIA DO TEATRO

PROFª. FLORA SUSSEKIND

ANO 2023.1
UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

"Monólogo para um cachorro morto"


DE NUNO RAMOS (2008)

Poesia (Pausa), entre nós dois. Entre nós dois, meu anjo, meu nojo, minhas
mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um
terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau-cheiro,
delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pelo. Assim: a chuva. Ladrada.
Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Meu olho. Nós dois, meu olho.
Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique
assim, morto. Permito que o carro passe. Permito o vento, a buzina. Estou
doente. (Pausa) Doente porque vejo claramente, porque sei que à minha frente
há o pedregulho. Ei-lo, pedregulho. Permito o pedregulho. Ei-lo, corpo lavado.
Permito o corpo lavado. Ei-lo, retina ferida, latido meio fome, meio medo, meio
noite imensa. Meu interesse é que não morre. Meu interesse gruda aqui,
exatamente aqui, o meu olhar fixo, cavado. Mas se espalha depois pelos
Shoppings, pelos enormes Shoppings, pelos saguões de aeroporto, pelas free-
ways, pelos mercados unificados, pelos boletins informativos da Bolsa de
Valores, pelas unidades de terapia intensiva dos hospitais, pelos condomínios
de luxo, enfim, por todas estas áreas onde um cachorro não entra. Meu interesse
olha para elas de olhos bem abertos - cegos e abertos. Bancos, centros
culturais, chão azulejado das embaixadas, cenários de televisão. Para quê isso?
Meu interesse olha pra isso (com ênfase) e passa. Vê? Passou. Mas em você se
fixa, e cava. E quando o assento do meu carro me traz de volta ao fluxo de ar,
vento e lata, ao núcleo de farol e de borracha, à cusparada da distância, ao
mugido da quilometragem - à estrada, à estrada-, de volta à boca aberta à minha
frente insistindo para que eu siga não sigo, não sigo não, não passo não, ao
contrário. Vê? Eu paro. Paro e contemplo, porque deve ser assim. Você aí, eu
aqui. Mesmo que meu dedo toque a tua pata há um quilômetro parado entre nós,
como na estrada. Mesmo que minha voz, esta voz, penetre fisicamente os pêlos
da tua (tua o quê? (pequena pausa, grita) carcaça!), mesmo que como uma pedra
num lago imóvel o som da minha voz se espalhe pela estrada e por toda a
vizinhança ao redor da estrada, mesmo que se transforme em quê? em (grita)
samba! (mais baixo) de novo: (grita) samba! (mais baixo) mesmo que migre da
minha garganta até o som do copo e do cabo da faca, dos dentes do garfo nas
hachuras da borda do prato, mesmo que se hospede numa inútil semelhança
com o que é belo, ou, ao contrário, num lamento contínuo, numa mulher
chorosa, na lama do meu tímpano ou na música gloriosa, espalhando-se como
um cântico, um (grita) canto!, uma (grita) batucada!, mesmo assim, ainda assim,
por causa disso, com certeza, é inevitável que, e nem poderia ser de outra forma,
não se deve esperar nada muito diferente disso, em suma, todos sabem, todos
concordam, todos têm pleno conhecimento de que - entre nós dois teria de ser
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exatamente isso: (Pausa. Voz grave) distância (pausa), distância (pausa), a


distância (pausa), uma distância que se mostra, para a qual se aponta, à qual
alguém pode se referir como a alguma coisa concreta, palpável, em suma, (voz
bem grave) esta distância aqui. (Pausa) Não canso de te encontrar onde não
quero, dentro das minhas coisas, dentro de certas palavras, numa alegria súbita,
no formato de uma nuvem, no gosto da saliva de outra pessoa, que beijei e bebi.
Por que não largo você? Por que não abro as pálpebras e solto a tua imagem?
Imagem, matilha aprisionada - saia daqui. Saia de trás das minhas pálpebras.
Não te guardo mais. Flutue até que a próxima chuva te encharque, até que o
excesso de luminosidade te apague. Vire corpo, imagem. Vire corpo
completamente - casca, derme, pêlo, baba, plástico. Vire tigre. (Pausa) Estou
alegre. Tão alegre que esqueço o nome do que me cerca. As ruas, pessoas,
placas, cifras, apitos, avisos, preços, mercadorias. Esqueço o nome de quem há
tanto me rodeia e seduz. Sou o sabão que tem mil nomes - mas esqueci os
nomes todos de uma vez. Todos eles. De uma vez. Vejo o azul da substância
pastosa, vejo as embalagens de plástico, a gôndola multicolorida onde fica
depositada, mas não sei, alegremente não sei o nome de mais nada, nem de
ninguém. Esqueci todos eles. Graças a Deus! (Pausa.) Estive diante da grande
massa de sabão no meio da grande massa dos enormes supermercados (como
brilhavam de noite! mais que uma lua!), estive diante da massa conjunta de
tantas ruas, inúmeras, diante da grande lâmpada de todos os postes com
refletores de néon na ponta, da gosma de sabão e dos produtos já classificados
em ramos diversos ("alimentação", "higiene", "limpeza", "construção"), dos
índices rigorosos de lucros assombrosos, dos discursos em feiras de marketing,
estive na matéria primordial de todas as placas de inauguração de cada obra, de
cada loja, de cada pensamento utilitário - estive ali mas esqueci completamente
o nome do que fiz, dos produtos e das pessoas e dos lugares, das ruas e
avenidas onde estavam. Esqueci, como um milagre. Esqueci tudo, alegre e
absolutamente tudo, e me debrucei sobre você, trazendo no bolso um pequeno
pedaço do sabonete gigantesco em que você se transformará, um pequeno
pedaço da grande massa perfumada, ó cachorro amado. Esqueci os nomes das
mercadorias mas ainda sei dizer: é noite, estou aqui, parado, meu medo, meu
gesto, meu nome, meu cachorro, a carranca libertada da tarefa de morrer, de ser
a carranca de um cachorro morto. Mas não sei teu nome. (Baixinho.) Não sei teu
nome ainda. Posso dizer cachorro como quem lembra um substantivo
masculino, mas não sei teu nome, não sei como você se chama, não sei
despertar a tua cauda ao pronunciar teu nome. Cachorro. (Pausa) Agora
digamos, cachorro. Vamos imaginar, cachorro. Imagine. Digamos que eu te
levasse agora mesmo para um terreno baldio, uma terraplenagem, um chão
cheio de folhas e frutos de mamona caídos e de sementes de girassol, onde um
cheiro de gasolina flutuasse, digamos. Eu incendiaria teu corpo, colheria
cuidadosamente as cinzas que depois atiraria pela janela do meu carro (sim,
cachorro, eu tenho um carro) nesta mesma estrada onde estamos agora. Ao
saber disso, centenas de jovens maciçamente vestidos de blusas coloridas
perseguiriam meu carro e me tirariam lá de dentro, cachorro, algemando meus
pés ao guard-rail. Depois jogariam seus calhambeques mal cuidados, carros
com mais de trinta anos de uso, em altas velocidades contra mim, me
despedaçando como despedaçaram você. Cachorro, você faria o mesmo? Faria
o mesmo que eu fiz? Faria o mesmo por mim? Incendiaria meu corpo num
barranco, num chão com folhas de mamona? Cobriria meus olhos com dois
girassóis enormes e botaria fogo? Colheria as minhas cinzas cuidadosamente?
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Cachorro? E quando reclamassem meu corpo, a família e os amigos enlutados


reclamassem meu corpo, como descobriria meu nome? Que nome daria a eles?
Que nome você daria? Qual o meu nome, cachorro?

A literatura contemporânea é um campo fértil para a exploração de


temas complexos e paradoxais que refletem a condição humana. Dentre esses
temas, destaca-se o conceito de ponto cego, que abrange tanto as limitações
da percepção quanto os aspectos ocultos e inconscientes da experiência
humana. Neste trabalho de conclusão de semestre da Disciplina Investigações
Conceituais em Teoria do Teatro, ministrado pela Prof.ª Flora Sussekind, no
Curso de Estética e Teoria do Teatro, exploraremos o conceito de ponto cego,
tal como desenvolvido por Bernardo Carvalho, um dos principais escritores
contemporâneos, em sua obra, e sua relação com o monólogo do cachorro
morto, um texto marcante do renomado artista Nuno Ramos.

O ponto cego, em seu sentido literal, refere-se à área em nosso campo


de visão onde não somos capazes de enxergar. No entanto, em um sentido
mais amplo, esse conceito transcende as fronteiras físicas e adentra os
labirintos da psique humana. Bernardo Carvalho, em suas obras, explora a
ideia de que estamos constantemente cercados por pontos cegos, sejam eles
perceptivos, cognitivos ou emocionais. Através de narrativas intricadas e
personagens complexos, Carvalho nos desafia a confrontar nossas próprias
limitações perceptivas e a questionar a natureza ilusória da realidade.

É nesse contexto que encontramos o monólogo do cachorro morto, uma


obra provocativa de Nuno Ramos. Por meio desse monólogo, o autor nos
transporta para os cantos obscuros da mente de um protagonista cujas
percepções são deturpadas e fragmentadas. O monólogo do cachorro morto se
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torna um espelho literário que reflete os pontos cegos existenciais presentes


em cada um de nós, convidando-nos a examinar as camadas mais profundas
de nossa própria subjetividade.

A abordagem do ponto cego por Bernardo Carvalho e o monólogo do


cachorro morto de Nuno Ramos oferecem insights profundos sobre a condição
humana, despertando uma análise crítica sobre a natureza elusiva da verdade
e os limites de nossa percepção.

Uma das forças desses elementos é sua capacidade de desafiar as


certezas que muitas vezes consideramos como absolutas. Bernardo Carvalho,
por meio de narrativas complexas e personagens ambíguos, questiona a
objetividade da percepção humana. Suas obras nos lembram que a realidade é
multifacetada e que nossas experiências e predisposições moldam nossa
compreensão do mundo. Ao expor os pontos cegos perceptivos, cognitivos e
emocionais, Carvalho nos convida a questionar nossas próprias percepções e
a estar abertos a uma visão mais ampla da realidade.

Por sua vez, o monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos mergulha


na mente fragmentada de seu protagonista, demonstrando a vulnerabilidade de
nossa percepção. A linguagem fragmentada e as imagens perturbadoras do
monólogo enfatizam a falibilidade da nossa capacidade de entender
plenamente o mundo. Ao confrontar os pontos cegos existenciais do
personagem, Ramos nos lembra que nossa visão de mundo é subjetiva e que
nossas percepções são influenciadas por fatores internos e externos. Essa
abordagem nos desafia a questionar as certezas arraigadas e a explorar o
desconhecido em nosso próprio interior.
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Além disso, esses elementos literários têm um impacto emocional


significativo sobre os leitores. A complexidade narrativa de Bernardo Carvalho
e a linguagem fragmentada de Nuno Ramos evocam uma sensação de
desconforto e instabilidade, levando-nos a questionar nossas próprias certezas
e a enfrentar a ambiguidade da existência humana. Essa experiência intensa
nos obriga a refletir sobre os pontos cegos em nossa própria vida e a
reconhecer que nossa percepção é limitada.

Uma outra crítica que pode ser levantada é a dificuldade de acesso a


esses elementos literários para alguns leitores. A complexidade narrativa e a
linguagem fragmentada podem se tornar barreiras para uma compreensão
completa e imediata das obras. Além disso, a experiência emocional intensa
pode ser desafiadora para aqueles que preferem narrativas mais tradicionais
ou que não estão preparados para lidar com a desconstrução de certeza.

Em resumo, a abordagem do ponto cego por Bernardo Carvalho e o


monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos oferecem uma análise crítica e
profunda sobre a condição humana e os limites de nossa percepção. Ambos os
elementos desafiam as certezas e a objetividade da percepção, convidando-
nos a questionar nossas próprias visões de mundo. Embora possam
apresentar desafios em termos de acessibilidade e compreensão imediata, eles
proporcionam uma experiência emocional intensa e nos incentivam a explorar
além de nossos pontos cegos, abraçando a ambiguidade e a complexidade da
existência.

Ao estabelecer uma conexão entre o conceito de ponto cego de


Bernardo Carvalho e o monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos, este
trabalho busca compreender como esses dois elementos se complementam e
se reforçam mutuamente. Analisaremos a forma como Carvalho e Ramos
abordam o tema do ponto cego, explorando suas técnicas narrativas,
simbolismos e a influência dessas obras na compreensão da condição
humana.
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Ao longo deste trabalho, esperamos lançar luz sobre a importância da


literatura contemporânea como um espelho reflexivo que nos convida a
questionar, aprofundar e expandir nossas percepções do mundo.

Ao analisarmos o conceito de ponto cego em Bernardo Carvalho e o


monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos, identificamos algumas
semelhanças, bem como diferenças em sua abordagem do tema. Ambos os
autores exploram as falhas inerentes à percepção humana e o modo como
nossas experiências subjetivas podem distorcer ou obscurecer a realidade
objetiva. No entanto, suas abordagens diferem em termos de estilo narrativo,
simbolismo e efeitos emocionais.

Bernardo Carvalho utiliza narrativas intricadas e personagens ambíguos


para explorar os pontos cegos da percepção humana; ele constrói tramas
complexas que desafiam as noções convencionais de verdade e realidade. Os
personagens de Carvalho são frequentemente confrontados com situações
ambíguas e paradoxais, forçando-nos a questionar a confiabilidade de nossas
próprias percepções e verdades subjetivas.

Por outro lado, o monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos mergulha


diretamente no caos e na fragmentação da mente de seu protagonista. O texto
é marcado por uma linguagem fragmentada e imagética, refletindo os
pensamentos e sensações desconexas do personagem. O monólogo nos
transporta para um estado de consciência onde a linha entre a realidade e a
ilusão se torna tênue, revelando a presença dos pontos cegos em nossa
própria subjetividade.
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Embora as abordagens de Carvalho e Ramos difiram em termos de


estilo narrativo, ambos os autores me parecem despertar nos leitores uma
profunda reflexão sobre a condição humana e a natureza elusiva da verdade.
Suas obras nos levam a questionar as percepções que consideramos como
certezas, revelando as falhas inerentes à nossa capacidade de compreensão e
interpretação do mundo ao nosso redor, cujas percepções são influenciadas
por filtros subjetivos, experiências passadas e predisposições cognitivas,
resultando em pontos cegos que obscurecem nossa compreensão plena da
realidade.

Em termos de efeitos emocionais, as obras de Carvalho e Ramos são


igualmente impactantes. Carvalho nos envolve em um labirinto de incertezas e
paradoxos, levando-nos a questionar nossas próprias percepções e verdades
subjetivas. Sua abordagem complexa e desconstrutiva gera uma sensação de
desconforto e instabilidade, desafiando as convenções narrativas tradicionais.

Por sua vez, o monólogo do cachorro morto de Nuno Ramos evoca uma
resposta emocional intensa. A fragmentação da linguagem, combinada com
imagens perturbadoras, provoca uma sensação de desorientação e
incompletude. O texto convida o leitor a mergulhar em um estado de
desconexão e confusão, refletindo os pontos cegos da percepção e reforçando
a fragilidade de nossas certezas.

Em resumo, a análise crítica desses elementos literários nos leva a uma


compreensão mais profunda da complexidade humana e dos limites de nossa
percepção. Embora complexas e fragmentadas, respectivamente, as narrativas
de Carvalho e de Ramos, desafiadoras para uma boa parte de leitores, essas
características também são parte intrínseca da proposta artística desses
autores.
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Por fim, ao concluímos esta análise, somos desafiados a reconhecer que


a busca pela verdade é uma jornada contínua, e que nossas percepções
foram, são e serão moldadas por nossos próprios pontos cegos. Portanto, é
essencial estarmos abertos aos questionamentos e à exploração constante de
novas perspectivas. E, através dessa exploração, poderemos abraçar a
complexidade da existência humana e desenvolvermos uma maior consciência
de nossos próprios pontos cegos.

BIBLIOGRAFIA:

Carvalho, Bernardo. "Nove Noites". Companhia das Letras, 2002.

Carvalho, Bernardo. "Mongólia". Companhia das Letras, 2003.

Meirelles, Beatriz. "Bernardo Carvalho: Um escritor no mundo


contemporâneo". Editora da Unicamp, 2013.

Lafer, Celso. "A personagem e suas vozes: Os romances de Bernardo


Carvalho". Editora da Unicamp, 2011.

Ramos, Nuno. "Ó". Editora Iluminuras, 1998.

Ramos, Nuno. "Cujo". Editora Iluminuras, 2001.

Nemoianu, Virgil. "Nuno Ramos: Como Pintar o Cachorro". New City


America, 2010.
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Link vídeo do poema :


https://www.nunoramos.com.br/trabalhos/monologo-para-um-cachorro-morto-2/

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