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O Sopro do Espírito e

O Tempo do Homem
José Francisco Oliveira

1ª edição
Gestão 2014-2016 / 2016-2018
O Sopro do Espírito e
O Tempo do Homem
José Francisco Oliveira

1a edição | 2018
EXPEDIENTE:

Tarso Lameri Sant’Anna Mosci


Presidente SBGG-RJ 2014-2016 / 2016-2018

Márli de Borborema Neves


Presidente Dep. Gerontologia SBGG-RJ 2014-2016 / 2016-2018

Revisão:
Ligia Py

Colaboração:
Daniel Lima Azevedo

Ilustração:
Lucas Busatto
Vinicius Lima

Projeto gráfico:
Anelise Stumpf
www.finotraco.com.br
SUMÁRIO

Apresentação 5
Prefácio 7

I. O tempo 9
• Marcas do tempo 10
• Reflexões sobre o envelhecimento humano 27
• Clarita 37

II. O silêncio 45
• A eloquência do silêncio 46
• Solidão 63
• A propósito da dignidade humana 71

III. A finitude 78
• Finitude na experiência religiosa 79
• O Sacrifício 91
• A partida de Dona M. 101
• O amplo significado de pálio 107

IV. A transcendência 114


• Fragmentos 115
• Visitas aos espaços do sofrimento 123
• A espiritualidade e o corpo 127

O autor 148

O dia do filósofo 149


APRESENTAÇÃO

Ao longo desses últimos quatro anos, fomos impulsionados a lançar


uma visão para um ponto cada vez mais profundo, sem nos perdermos
na infinitude do princípio. Dessa maneira, convidamos o Prof. José
Francisco Oliveira para compor uma obra sobre espiritualidade.

Nossa proposta de desenvolvimento e progresso para a SBGG-RJ foi


se construindo pela dignidade nas relações humanas em associação
ao campo da pesquisa. Meticulosamente, raciocinamos os conteúdos
abordados nas atividades: sobre curso e qualidade de vida, tempo
espacializado e tempo duração, dor e conforto... a vida que se cumpre...

Procuramos entrelaçar no decorrer da gestão, o diálogo entre


ciência - nos seus modelos funcionais e operativos, frutos da nossa
civilização tecnico-cientifica e o seu acúmulo de conhecimentos;
e a comunicação com o componente subjetivo de cada pessoa,
como premissa para entendimento do homem integral nas suas
diversidades: biológica, psicológica, social, espiritual - a existência
verdadeiramente livre, vivida pelo eu profundo - o espírito!

Sendo assim, temos a honra de apresentar - ao encerramento de nossa


gestão - esta produção riquissima, que estará para sempre na Biblioteca
Eletrônica SBGG-RJ, para amplo acesso a quem se interessar.

Um desprendimento do Prof. José Francisco Oliveira compatível


à responsabilidade humana, nos aspectos culturais, políticos,
econômicos, morais - e éticos!

5 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A contemporaneidade não mais é possível sem esse conhecimento
- uma concepção transformadora para a prática gerontogeriatrica
- uma reflexão sobre o próprio mundo interior de quem cuida, e de
quem é cuidado.

O SOPRO DO ESPIRITO E O TEMPO DO HOMEM - de autoria do


Prof. José Francisco Oliveira, é uma leitura instigante sobre o universo
humano, transcendendo comentários.

Imenso orgulho sermos nós, a apresentar esta produção de mente


tão brilhante!

Os nossos PARABENS, Prof. José Francisco! E os nossos sinceros


agradecimentos,

Tarso Lameri Sant’Anna Mosci


Presidente SBGG-RJ

Márli de Borborema Neves


Presidente do Depto. de Gerontologia SBGG-RJ

Gestão 2014-2016 / 2016-2018

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PREFÁCIO

Os Seminários de Tanatologia da Comissão Permanente de Cuidados


Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG)
aconteceram, sob a condução de Ligia Py e Claudia Burlá, na sede
da SBGG-RJ, de 2007 a 2011. O intuito dos Seminários era congregar
profissionais de múltiplos saberes para um aprofundamento na
temática da morte na contemporaneidade. Cada disciplina aportava o
seu olhar sobre um assunto complexo e desafiador. As contribuições
vieram da Antropologia, da Psicologia e da Medicina, nas vozes
de profissionais envolvidos diretamente na assistência à saúde
de pessoas idosas com doenças graves. Um dos participantes, no
entanto, ocupava um lugar especial, uma vez que seu distanciamento
dos temas em questão permitia que ele encantasse os demais com
comentários inusitados, sempre embasados em fontes consagradas,
que iluminavam as discussões por ângulos originais.

O Professor José Francisco Oliveira, mestre em Filosofia, era naquela


época membro da Comissão Permanente de Cuidados Paliativos da
SBGG e se dedicou aos estudos de tanatologia com unhas e dentes.
Costumava levar para os encontros algum texto de autoria própria
que elevava o nível da discussão, inspirado pelo assunto do momento
ou por um comentário feito na reunião anterior. Era um espetáculo. A
leitura dos textos emocionava e incitava à exploração de novos rumos.
José Francisco aportava uma contribuição ímpar, para muito além da
preocupação com o sódio e o potássio, implicada com a Ética e com
a essência do Ser Humano. Falava de um lugar que ocupava com
maestria – um lugar que, francamente, nenhuma das outras disciplinas
tinha competência para alcançar. Não por acaso, em outra ocasião,
José Francisco coordenou um curso sobre interdisciplinaridade.

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Ele detém a habilidade de alinhavar, como ninguém, o pensamento
do grupo, ao atuar como o elo que faltava para interligar a fala dos
participantes dos seminários. Suas intervenções explicitavam a
importância da interpenetração dos saberes para a construção de
um raciocínio que permitisse abordar as demandas múltiplas que
se descortinam aos profissionais que lidam com o fenômeno do
envelhecimento e com a realidade palpável do processo de morrer.

Por iniciativa da SBGG-RJ, ao final de sua gestão 2016-2018, alguns


dos principais textos de José Francisco foram reunidos neste
volume. Trata-se de homenagem justa, ainda que tardia. Cada texto é
precedido de uma breve apresentação, que situa o leitor no contexto
da discussão. Aconchegue-se em sua poltrona favorita. Coloque um
fundo musical de sua preferência. Você está prestes a se deliciar
com as reflexões que tem em mãos. Desde o magistral ensaio “A
Eloquência do Silêncio”, até o texto sobre a visita solidária a pacientes
internados em um hospital, todas as linhas de José Francisco são
primorosas. Assim como o filósofo francês Henri Bergson, ele explora
a compreensão conceitual do objeto e atribui também importância
ao seu entendimento pela via concreta, intrínseca à atuação do
profissional. A tensão entre essas duas vertentes do saber é uma
das espinhas dorsais da obra de José Francisco, agora compilada de
forma a insuflar no leitor um provocante humanismo.

Daniel Azevedo

Presidente da Comissão Permanente


de Cuidados Paliativos da SBGG (2012-2016)

Secretário Geral da SBGG (2016-2018)

8 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O TEMPO

“Sim, o tempo nos traz suas marcas. Envelhecemos. A


velhice, entretanto, não pesa mais do que a nossa história.
Não é ameaça. É horizonte de sabedoria e amor ... No espaço
misterioso do amor, o homem pode transcender os limites
de sua finitude e também os limites dos saberes e ciências. É
que o amor quer ser sempre para mais e para sempre...”
MARCAS DO TEMPO

Envelhecimento: a família e sua trajetória


entre valores e gerações

Ao começar o texto, lembrei-me, meio de repente, antes de quaisquer


considerações sobre valores e gerações, do poema “Retrato de
família” do saudoso Carlos Drummond de Andrade (l967), registrado
em suas “obras completas” e que há de dar o tom deste trabalho:

“Este retrato de família


está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
(...)

Texto publicado com a referência: Oliveira, JFP. “Marcas do tempo– envelhecimento:


a família e sua trajetória entre valores e gerações”. Documenta. UFRJ/Programa
EICOS. V. I, nº 1, 1993-1994, p. 19-36.

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Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.
(...)
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne” (p. l80).

Este retrato se coloca aqui como um retrato de qualquer família,


dessas nossas, que já nem são tão assim, mas que continuam
inexoravelmente viajando através de nossas carnes e da história.

O tema constitui-se em as marcas do tempo nas relações entre as


gerações e os valores que aí se articulam. E como é difícil falar de
valores e de gerações por sobre um tempo que escorrega, corre
como um rio que vai nos carregando.

Se nos apoiarmos na história, veremos que os antigos gregos


empregavam duas palavras para nomear o tempo: “chrónos” (χρόνος)
e “kairós” (καιρός). O “chrónos” era o tempo do calendário, o tempo
cronológico, o tempo em relação ao qual nós não somos propriamente
sujeitos; o tempo medido por unidades convencionais e arbitrárias:
um ano será um ano, um século será um século, e, assim, uma hora
e um minuto. Portanto, um tempo inexorável, fatal, que passa por
mim e me faz passar por ele, sem que eu nele possa interferir, possa

11 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


atuar. Dominante, poderoso, a ponto de ter sido antropomorfizado, o
“chrónos” era mais ainda; era um deus.

O “kairós” - próximo semanticamente do poético “aión” (αιών) -


significava o tempo oportuno ou favorável; tempo como movimento
intuído; um vir-a-ser contínuo, um ir-sendo constante. Tempo em
totalidade, vinculado à consciência, não à natureza (externa). Tempo,
portanto, que não se mede de um ponto ao outro. Tempo do qual nós
somos os sujeitos, somos os senhores. Tempo que existe, vale e dura, na
proporção da intensidade com que eu o vivencio, experimento, padeço:
cinco minutos, por exemplo, de espera pela pessoa querida podem
durar o equivalente a horas e, por outro lado, as horas de convivência
seguintes acabam passando num átimo, supreendentemente rápidas.

Ainda por exemplo, no processo de envelhecimento, sob a dimensão


do “kairós”, fazer anos é, ou deveria ser, construir realmente os anos,
fazê-los à imagem de nossos projetos, de nossas aspirações, de
nossos sonhos. Noutras palavras, fazer anos é fazer o nosso próprio
tempo, produzir os nossos próprios momentos, desenhar o nosso
próprio horizonte e dar a estes a consistência e o sentido de nossa
vida, o tamanho de nossas experiências, de nossa liberdade, de nossa
vontade, de nosso conhecimento e de nosso amor.

É na dimensão deste tempo ”kairósico” que eu me coloco, ao


refletir sobre envelhecimento, família e sua trajetória. Porque valores
e gerações não se articulam e passam como numa crônica de
efeméride. Ocorre o que se poderia chamar de tempo do significado,
do sentido; que nega radicalmente a mentalidade materialista e
utilitária do “time is money”.

O tempo, assim visto, não flui no vazio. Ele acontece no espaço da


consciência, mas também no espaço da casa, do aconchegante, do
verdadeiramente familiar e ainda no universo da rua, do anonimato,
do impessoal, onde nem sempre temos vez e voz; ou simplesmente
entre os dois, em um patamar reservado ao mistério, à renúncia do
mundo. É sob esta visão de temporalidade que gerações e valores se
constroem e se desmontam.

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É algo como criar o tempo, rolar o tempo, rodar no tempo!...

Nouwen e Graffney (2000), em “envelhecer: a plenitude da vida”,


comparam, muito singelamente, o processo de envelhecimento
ao girar de uma roda de carroça: “Nenhum dos seus raios é mais
importante do que os outros, mas, juntos, eles completam o círculo e
revelam o cubo da roda como o núcleo da sua força”. E, continuando
na mesma reflexão, “a roda da carroça nos lembra que as dores
do envelhecer valem a pena. A roda gira da terra para a terra, mas
sem deixar de mover-se para frente. (...) De fato, vamos de pó a pó,
subimos e descemos, mas o primeiro pó não precisa ser o mesmo
que o segundo, a descida pode se transformar na subida”...(p. 14).

Em uma linha de tempo semelhante a esta, “a casa e a rua”, de


Roberto Da Matta (1985) mostra que estes espaços, o da família e
suas circunstâncias, são categorias sociológicas, que determinam nas
pessoas mudanças de atitudes, valores e princípios, gestos, roupas,
assuntos e papéis sociais. É aí, na casa e na rua, na família e suas
circunstâncias, que se criam, simultaneamente, pontes, contrastes,
oposições, trocas e complementaridades.

De qualquer forma, será assim e agora, nesse tempo e nesses


espaços, refletindo, ouvindo e lembrando de virtudes e defeitos,
que nós envelhecemos; que os mais velhos se põem meninos, meio
perplexos, meio inconformados, com um mundo que avançou tão
depressa e de modo tão opressor, que chegou a fazê-los misturar
o passado com o presente e convidá-los, assim, a se reconciliarem
com suas mágoas e decepções, deixando-os profundamente felizes
por terem vivido e por estarem vivendo, alternando os momentos
heróicos com os mais mesquinhos do dia a dia, que legam como
herança para os seus e para o mundo.

Foi nesse sentido, no prólogo de suas “curvas do tempo”, que o quase


centenário mestre Oscar Niemeyer (1998) se viu e nos emociona ao
afirmar: “Releio este livro e sinto que nele duas pessoas distintas
aparecem. Uma voltada para o lado bom da vida, dessa vida divertida
que sempre me atraiu. Outra, pessimista diante dela e dos homens,

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revoltada contra este mundo injusto em que vivemos. (...) Tudo isso
explica os momentos de exaltação e angústia que se alternam em
minha pobre vida. Mais intensos e sentidos quando de amizade se
tratava. Aos amigos, como os estimei, como os atendi! (...) E a família...
Como sempre a amei! Como de longe, ao lembrá-la, me comovia e
de perto a adorava! (...) E assim correu minha existência. Nunca olhei
para trás. Nunca me critiquei pelas faltas cometidas. Sou filho da
natureza, um pequeno e humilde ser nela inserido, e para ela transfiro
– em parte, pelo menos – minhas qualidades e defeitos. Foi assim que
ela me fez” (p. 9).

Oscar Niemeyer integra tempo, valores e gerações em um estatuto


maior. Vê o passado consubstanciado no presente e dá aos fatos e
às situações recordadas a dimensão como que ecológica da mãe-
natureza, que acaba absorvendo e conciliando o lado bom e o lado
mau, alternados em nossa caminhada.

Transparece-nos com muita clareza que os velhos olham o passado,


ao mesmo tempo tão longe e tão perto, com aquela atitude de
admiração, de contemplação, que os filósofos gregos assumiam
como etapa propulsora do processo do conhecimento.

E agora, o que dizer das marcas do tempo, do envelhecimento, nas


relações entre as gerações, nesse instável bojo da família, transferindo
para as curvas deste percurso qualidades e defeitos?

O que dizer dessa família que começa o terceiro milênio não se


reconhecendo e buscando uma identidade que parece ter se esvaído?

É que vai surgindo um novo modelo de família. O acelerado processo


de urbanização acontecido nas últimas décadas foi provocando
uma redução do tamanho familiar e determinando novos modos de
relação entre os membros. Tornou-se grande a mobilidade residencial.
O fator presença das pessoas no espaço físico familiar diluiu-se
bastante. As residências foram racionalizadas. Já não se encontra,
na grande maioria dos apartamentos, a sala ampla com aquela
posição privilegiada da mesa, que centralizava reuniões quase que

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litúrgicas. Os horários de encontro são muito pouco coincidentes.
Nesse modelo de família nuclear, o pai, a mãe e mesmo os filhos
precisam estar integrados ao trabalho externo, que lhes toma muito
do tempo de vida e convivência. Paralelamente, a emancipação não
é mais apenas uma aspiração, tornou-se um compromisso que cada
um busca assumir o mais cedo possível.

Por outro lado, quanta coisa poder-se-ia falar em termos de mudanças


na compreensão da moral e seus valores, da ética e seus princípios;
valores e princípios que se tornaram tão relativos, pois foram vividos
em um fluxo também cravado de transformações; vividos em um
tempo que foi mudando mais rápido do que a nossa capacidade de
reflexão e absorção, em nossa caminhada para o envelhecimento!

Vamos analisar, então, mais ordenadamente esse início de milênio.

Creio que ainda não conseguimos medir os efeitos e consequências


dos grandes fenômenos sociais que surgiram, quase que de repente,
e hoje causam grande impacto em nossas cabeças, em nossas casas e
nossas ruas, em nosso trabalho e nossas emoções, em nossos sonhos
e nossa vida. E, sobretudo, em nosso processo de envelhecimento.

Faz-se mais do que legítimo se perguntar: o que sobrará amanhã


do vendaval da globalização? Este fenômeno tão falado que reduz
o mundo a um grande mercado, que homogeneíza a cultura e os
comportamentos, não reconhecendo nem admitindo as diferenças
pessoais e grupais, restringindo-se à dimensão da utilidade,
desprezando a dimensão do sentido, excluindo aqueles que vão
envelhecendo? Este fenômeno que vincula a vida, o conhecimento
científico e suas tecnologias unicamente à produção material e ao
lucro imediato?

Que consequências advirão, daqui a pouco, da crescente diluição das


fronteiras éticas, que levam a confundir quantidade e qualidade, o
essencial e o acessório, os fins e os meios, fazendo com que os fins
justifiquem os meios, mesmo os mais violentos?

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Que resultados serão produzidos – insisto – por esta lenta diluição das
fronteiras éticas que promove uma enorme confusão entre verdade
e utilidade, entre sucesso e fracasso, entre participação e exclusão,
entre idade e produtividade, entre atividade e envelhecimento, enfim,
entre o humanamente aceitável e o humanamente rejeitável?

E a violência, tornada tão trivial e amplamente instalada sob


todas as formas na rotina da sociedade e no dia a dia de nossas
famílias, em nossas casas e nossas ruas? Indubitavelmente, já se
colocam bem evidentes os seus efeitos, atingindo principalmente
os mais fragilizados.

No fundo de tudo isso, paira a ideologia do consumo que nos muda


de consumidores em consumidos. Que nos mete em um círculo
vicioso desenhado entre apetite, saciação e vazio: um apetite que
postula uma saciação, que, de tão passageira, volta ao vazio e acaba
gerando um novo apetite e... assim por diante.

Na verdade, não vivemos apenas no plano do imediato, mas no plano


do sentido, da busca de sentido. Não somos animais-máquinas;
somos seres simbólicos. Não podemos cair no risco do exemplo
descrito por Rubem Alves (1981), em “o que é religião”, de um velho
açougueiro alemão que embrulhava carne com partituras de J. S.
Bach, já que, para ele, elas não tinham outro sentido a não ser o de
serem folhas de papel, muito boas para se embrulhar carne... Ele não
era capaz de entender o contexto simbólico, não conseguia ver o
sentido das pautas nem ouvir a música escondida no papel.

Ainda bem que a experiência civilizatória - não só de outras épocas,


mas de outros espaços culturais – pode ser confrontada com o
utilitarismo frio de nossa sociedade urbana, onde o tempo é medido
apenas pelo valor do que nele se produz, pelo tamanho de sua
lucratividade. Felizmente, ainda se mantém viva, em significativos
pedaços do mundo, uma admirável vivência da temporalidade.
Na parte mais ocidental da África, por exemplo, a duração das
ações é proporcional à intensidade com que são vivenciadas, ou
experimentadas, ou padecidas. De modo que ninguém se assusta

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quando se percebe mais velho; nem se frustra por não ver suas
crianças crescerem ou seus jeitos irem mudando.

Na maioria das vezes, na raiz dos fenômenos negativos inseridos nas


relações entre as pessoas, está um entendimento equivocado da ideia
e da experiência de liberdade, concebida não como a capacidade de
cada um criar e realizar um projeto pessoal a partir de seus objetivos
mais originais e de seus horizontes mais queridos, porém, como uma
espécie de força autônoma de afirmação individual, levada a olhar
unicamente para seu próprio e restrito espaço, insensível aos outros
– não raramente contra os outros – visando apenas o bem-estar
egoístico e egocêntrico.

É claro que, como pano de fundo, não se pode deixar de levar em


conta a realidade mais contundente de nossa sociedade atual: o
aperto que aflige a instável classe média e o sofrimento que atordoa
as classes mais carentes, calejadas nas agruras da pobreza cada
vez mais irreversível; faltam a muitas famílias, muitas mesmo, os
meios fundamentais para a sobrevivência e dignidade: o alimento, o
trabalho, a habitação, os medicamentos; faltam, na verdade, as mais
elementares liberdades, as mais simples possibilidades de escolha, as
mais razoáveis condições de participação; falta, enfim, a cidadania.

Nas camadas mais ricas, pelo contrário, o bem-estar excessivo e a


mentalidade consumista, paradoxalmente, entretanto, unida a certa
angústia e incerteza – porque o poder e o dinheiro não compram o
futuro – roubam a homens e mulheres a generosidade e a coragem
de se abrirem aos outros, principalmente aos mais velhos, em termos
de acolhimento e solidariedade.

Se, por um lado, este quadro contribui para o individualismo que


perpassa a complexidade das sociedades, por outro lado, favorece a
abertura de uma maior assertividade no que diz respeito às decisões
existenciais. Isso fica bem manifesto na escolha do cônjuge-parceiro-
companheiro, no desdobramento do projeto de vida conjunta – seu
início, sua duração, sua eventual cisão –, na definição da atividade
profissional e na criação e educação dos filhos.

17 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Frente aos desafios dos novos tempos, a família continua sendo
uma forte referência para as pessoas; um centro de vivência,
emoção e afeto. É inegável que surge e vai se consolidando uma
nova consciência de apoio e amparo às crianças e, sobretudo, aos
idosos e de orientação aos jovens. Uma consciência que não vem
encontrando, todavia, o devido respaldo e as bases necessárias em
uma ação política sociofamiliar razoavelmente eficiente.

Ainda no plano dos desafios, se, por um lado, os idosos sentem-se


metidos em um processo de dependência que, por força da própria
vida, vai se intensificando; tornam-se, por outro lado, referências
de maturidade; tornam-se o elo nas conexões entre as gerações e
emergem como testemunhas vivas da história, revelando “a memória
como função social”. Memória que se põe muito mais do que um monte
de lembranças; que se põe como um processo, sempre interminado, de
atuação sobre o tempo; sobre passado, presente e, até mesmo, futuro,
como destaca Ligia Py (1996), em seu livro – resultado de um estudo
tão consistente quanto singelo – “Testemunhas vivas da História”.

Diante do quadro que acabamos de delinear, penso que se pode


afirmar que o maior adversário da família, em nossos dias, não reside
no endurecimento ou frieza dos corações, mas na instabilidade
econômico-financeira que vai atingindo contingentes cada vez
maiores da sociedade.

De toda a forma, como é importante para cada um de nós, em


família, seja qual for nossa posição social, demonstrarmos aos
nossos idosos que estes são uma forte razão de felicidade e não
considerá-los um estorvo que incomoda, uma espécie de ameaça
da qual é preciso defender-se!

Creio que caibam aqui mais algumas considerações sobre a rica


experiência que vivi na Guiné-Bissau, extremo oeste africano, no
final dos anos oitenta. Refere-se à posição dos idosos não apenas
na família, mas no grupo social mais amplo. É que ali, os velhos
adquirem uma venerabilidade profundamente reconhecida, que lhes
dá senhoria, direitos, admiração e, sobretudo, respeito. Com a idade

18 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


madura, o guineense torna-se garandi – homem grande - reserva
ética que guarda um precioso patrimônio cultural.

A idade madura é, por excelência, para a cultura crioula, a idade da


sabedoria. Vem eivada da experiência adquirida na árdua caminhada
da vida, no diálogo sempre dramático com a realidade circunstante,
na atuação cotidiana sobre seu pequeno espaço e sobre o seu tempo,
na convivência com os outros; enfim, em suas descobertas, em seus
acertos e em seus erros. É um saber mais fundo que vai sendo tecido
através de uma lenta percepção sensitiva: o velho sabe da vida, porque
a tocou com as mãos, viu-a com seus olhos em sua complexidade,
ouviu ao pé do ouvido o som e a fala das coisas e das pessoas, as
histórias daqueles mais velhos que acompanharam o seu crescimento.

O pesquisador guineense, Benjamin Pinto Bull (1988), em seu


livro “o crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e sabedoria”, registra: “o
discurso proverbial crioulo dirige-se especialmente aos jovens; é
essencialmente a partir deste ponto de vista que são formuladas as
recomendações referentes a pessoas de idade”. Portanto, “´garandi´
na Guiné-Bissau não significa, de forma alguma, qualquer indivíduo
senil, com faculdades mentais enfraquecidas, que está reduzido a
um estatuto dependente de outrem física e intelectualmente” (...) “A
longa experiência pode, até certo ponto, suprir a diminuição física.
É caso para lembrarmos do provérbio (nativo): garandi k´jungutu ta
ma ojo lunju di ke mininu k´sikidu” (p. 167). Numa tradução livre: um
velho de cócoras vê mais longe do que uma criança de pé.

Como quer que seja, mais do que em séculos passados, a família


do nosso tempo precisa restaurar a importância dos valores morais
como sendo essencialmente os valores da pessoa humana. Trata-se,
pois, de se humanizarem as relações; de colocar a pessoa como o
objetivo essencial de todos os projetos; como a destinação final de
todas as realizações.

Sim, é na família que deve se originar o processo de construção


da consciência ética e moral; uma consciência que consolida a
capacidade de julgar e discernir, a capacidade de juntar a sabedoria à

19 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


ciência, visando à promoção da pessoa humana na sua verdade, na sua
liberdade, na sua dignidade, na sua totalidade, afinal. Uma consciência
sábia, capaz de ler e interpretar os sinais e marcas do tempo.

Sem dúvida, é preciso urgentemente recuperar a sabedoria que é


construída e se enriquece no tempo, que nos leva à competência de
ver, de interpretar, de ouvir, de acolher, de buscar, de recomeçar, de
atuar, de crer nos projetos, de tolerar, de dar-as-mãos, de contemplar,
de deixar-se tomar, de criar e principalmente de testemunhar isso
tudo. Essa é a sabedoria dos mais velhos.

A verdade é que cada um de nós, no curso do processo de


envelhecimento, se fez e se faz nas curvas concretas do tempo
e no espaço familiar. E aí constrói histórias diferentes. Tão ricas
exatamente porque tão diferentes, integrando-se em um tecido
multiforme – a família.

Então, mais do que conflito de gerações, dá-se na família o encontro


de histórias e experiências, de sucessos e fracassos, de realizações e
frustrações, de atuações e omissões, de esquecimentos e saudades...

É importante que nos perguntemos: mesmo em um começo de século


intensamente conturbado, onde, mais do que nunca, o anonimato e
a reificação das pessoas perpassa as relações, até mesmo as mais
familiares, quem de nós, no recinto íntimo da memória mais terna,
não se vê sentado, ouvindo o velho avô, ou a velha avó, ou outro
velho querido a contar histórias de lindos pedaços de vida-vivida,
fazendo virem à tona casos de um passado distante e deixando no ar
conclusões tão simples quanto sábias, tão encantadas quanto atuais?
No mesmo exercício de lembrança, quem de nós não recompõe
cenas daquela casa, daquele quarto, daquela mesa, daquele cantinho
dos nossos velhos, hoje transformados em saudade?

Continuando nessa direção, ocorre-nos referir o “memorial de


Maria Moura”, da operária do imaginário, Rachel de Queiroz (1992);
memorial que é uma história de amor e não menos desamor... Retrato
sem retoque de relações sociais, culturais, morais e afetivas entre

20 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


personagens, que foram sábia e comovidamente delineados. O que
eu quero destacar aí é a forma com que é descrita a densidade
da memória, o farto peso do passado, a ponto de se fazer castigo
na lembrança do Beato Romano: “Mas, à noite, quando me volta
o passado à lembrança, muitas vezes me ponho a chorar. Chego a
soluçar tão forte que estremece a rede nos armadores”. (...) “O maior
dos castigos (...) é a gente recordar. Lembrança que vem de repente
e ataca como uma pontada debaixo das costelas, ali onde se diz que
fica o coração. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de
futuro, que resista ao assalto das lembranças” (p. 188).

Pergunto-me hoje, já mais velho, quais os valores que me foram


legados. Estou certo de que não foram aqueles índices classificatórios:
verdade, honestidade, retidão, justiça, etc. Posso mesmo afirmar
que os valores foram se consolidando sob a forma de episódios, ou
situações, ou anedotas, ou pedaços de histórias, ou lances de zangas,
amores, castigos e afeto... Muito afeto; consolidaram-se à maneira da
própria vida.

No fim das contas, na contagem dos nossos anos, a pirâmide de valores


e princípios se desmonta e se refaz por diversas vezes em nossa
história pessoal e familiar, na medida em que vamos envelhecendo.
Vira um grande baú, como na parábola da Escritura Sagrada; um baú
de onde se tiram coisas novas e velhas, coisas boas e imprestáveis.

A pirâmide de valores vem mesmo como uma herança maior que se cria
e recria, passada de pais para filhos e para os filhos dos filhos, de geração
em geração, de forma quase encantada, viajando através da carne.

E aí, nesta herança-baú, se, por um lado, tudo é fragmento, tudo vem
aos pedacinhos, por outro lado, tudo é integrado, tudo faz sentido,
tudo é pleno.

E o grande valor da família e dos idosos, quando a gente se concede


o privilégio de vê-los de longe, é exatamente a plenitude que
constitui seus pedacinhos. Mais ou menos como Carlos Heitor Cony
(1996) escreveu em sua singela “quase memória”, referindo-se ao

21 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


pai: “Se ele viveu e morreu cheio de truques, de certa forma legou-
me alguns deles. Foi sua herança a melhor, porque, entre outras
coisas, única” (p.202).

O Cony viu e sentiu esta herança como única, porque a viu e sentiu plena.

Pois bem, julgo oportuno me referir, a essa altura, à presença, tão


sedutora quanto saudosa, do existencialismo que povoou minha
juventude, ao qual cedi com alguns limites.

É que a família não é uma síntese de pessoas – jovens e velhos –


que perdem aí suas identidades próprias para formar uma substância
nova e diferente, mesmo que Émile Durkheim (1927), com toda sua
autoridade de pioneiro da sociologia, tenha assim visto a sociedade.

O sentido maior da família, penso eu, está na permanência da


identidade de cada um dos seus membros. Na riqueza destas
identidades. Cada um sendo sujeito de seu próprio projeto.

Jean-Paul Sartre (1946), no melhor estágio de seu existencialismo,


proposto como um humanismo, afirmava que cada um é e deverá ser
o que se fizer de si mesmo; cada um é e deverá ser o projeto de si
mesmo. Projeto vivido a partir da radicalidade dramática da liberdade
humana à qual ele, Sartre, nos acreditava todos condenados. Encanta-
me esta radical opção pelo primado da existência sobre a essência,
pela liberdade como total abandono a si mesmo, pela subjetividade
como único e radical suporte para a construção de si mesmo. O que
não consigo, todavia, é aplicar ao nosso tema uma radical conclusão
do pensamento sartreano: a afirmação de que o nada é a fonte de
todos os valores.

É que sinto a fonte dos valores aqui tratados posta em cima


de muita história; em cima de muitas experiências concretas e
articulações reais. Sinto todos profundamente inseridos no drama
das relações humanas. Apesar de experimentarmos o abandono
como base de nossa liberdade, como queria Sartre, percebemo-
nos, entretanto, inapelavelmente enraizados no singelo drama da

22 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


vida e da família, um drama tecido e marcado no tempo pelos fios
trágicos e doces do cotidiano.

Estou convencido de que é no bojo das relações familiares que cada


um se faz gente, cresce e vai envelhecendo, assumindo e refazendo
a cada momento os valores herdados e. acima de tudo, articulando
exemplos e testemunhos edificantes ou rejeitáveis, na proporção
das reais limitações da condição humana. Julgo que não dá para ser
muito diferente disso.

É neste bojo familiar que cada um vai se amadurecendo; vai se


plasmando como pai ou mãe, nas descobertas dos mais novos e na
experiência dos mais velhos, com um bocado de surpresas e outro,
de decepções toleráveis.

É neste bojo familiar que cada um vai envelhecendo; vai se construindo


pessoa, carregada de angústia e de esperança; vendo a família como
sendo ela mesma um grande valor, que ultrapassa todos os conflitos
e contradições; um grande valor do qual emanam outros valores;
valores reais, fatos históricos, situações cotidianas; valores feitos
testemunhos pessoais de vida dados pelos mais velhos, assimilados
ou desprezados, mas sempre lembrados com um tanto de remorso
e muita saudade; valores concretizados na herança que a gente vai
recebendo e mais tarde vai transbordando para os outros, ao longo
da caminhada. Repito, julgo que não dá para ser muito diferente disso.

E nesse prisma – ouso acrescentar algo ao final do poema “Museu da


inconfidência” – Claro Enigma – do já citado Drummond, quando ele
diz que “toda história é remorso” (p. 257). Nas marcas do tempo, toda
história é também saudade. Toda história é tão saudade quanto remorso.

Passo, agora, às considerações finais. Nas dimensões limitadas deste


texto, procurei refletir sobre as atitudes das pessoas na dinâmica
familiar, buscando contextualizar o processo de envelhecimento
em um plano bem distante dos preconceitos da sociedade
contemporânea. Busquei as formas mais ligadas à sabedoria de

23 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


nosso coração. E penso que a atitude humana fundamental para a
compreensão e a ação frente aos idosos é a da não divisão do mundo
entre fortes e fracos, entre os que podem muito e os que dependem
mais, entre os que aparecem exteriormente e os que são esquecidos,
entre os que vivem o tempo da semeadura e os que vivem o tempo
da colheita, entre os que constroem mundos e os que, sobretudo,
recordam, refletindo criticamente sobre seus mundos construídos.
Assim pensando, estou certo de que é possível entrar em um afetivo
contato com o nosso próprio processo de envelhecimento.

Vejo aí uma imensa oportunidade de enriquecermos nossa caminhada,


de darmos um sentido de profunda dignidade à nossa vida.

Já não falo mais sobre os velhos, falo com eles, através da visão
plena dos poetas, tão fiéis à palavra quão fiéis à sabedoria que
elas carregam em si, não só pro-nunciando, mas a-nunciando e de-
nunciando a realidade que nos cerca. De Pablo Neruda (1974), colho
uns pedaços de “Os vinte poemas”:

“Sinto viajarem teus olhos e é distante o outono.


(...)
Céu (visto) de um navio. Campo (visto) dos montes:
tua lembrança é de luz, de fumaça, de lago em calma!
Mais para lá de teus olhos ardem os crepúsculos.
Folhas secas de outono giravam na tua alma.
Gosto de ti quando calas porque estás como ausente
e me ouves de longe”. (p. 51).
E, em “canção desesperada”:
“Em ti se acumularam as guerras e os vôos.
De ti alçaram as asas os pássaros do canto”.
(p. 55).

24 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


De Drummond, por duas vezes aqui evocado, colho “os ombros
suportam o mundo” e assim encerro:

“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor,
porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E o coração está seco.
(...)
Ficaste sozinha, a tua luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És toda certeza, já não sabes sofrer.
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
(...)
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação” (p.110).

Sim, o tempo nos traz suas marcas. Envelhecemos. A velhice,


entretanto, não pesa mais do que a nossa história. Não é ameaça. É
horizonte de sabedoria.

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26 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


REFLEXÕES SOBRE O
ENVELHECIMENTO HUMANO

Pressupostos conceituais

Vamos tomar como base algumas afirmações provenientes do Tratado


de Geriatria e Gerontologia, que refere a Gerontologia como a disciplina
e a ciência do envelhecimento e vê a Geriatria tendo em seus domínios
os aspectos preventivos e curativos da atenção à saúde. Papaléo Netto
(2016) registra que a Geriatria mantém uma relação estreita com as
disciplinas da área médica, como neurologia, cardiologia, psiquiatria,
pneumologia, entre outras, dando origem a subespecialidades, como
neurogeriatria, a psicogeritaria, a cardiogeriatria, etc. E também
com outras disciplinas não pertencentes ao currículo médico, como
nutrição, enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, odontologia,
psicologia, assistência social. E quanto à Gerontologia, o autor
distingue a social da biomédica. A social, abordando os aspectos não
orgânicos como os antropológicos, psicológicos, legais, ambientais,
econômicos, éticos e as políticas de saúde. E a biomédica, com o eixo
posto no fenômeno do envelhecimento, do ponto de vista molecular
e celular, enveredando pelos caminhos de estudos populacionais e
de prevenção de doenças associadas. Podemos concluir, então, a
importância da interdisciplinaridade, já que a natureza do processo
de envelhecimento permeia todos os aspectos da vida de uma
pessoa, não apenas os biomédicos e os sociais.

Este texto é a transcrição da conferência proferida pelo autor na “Semana do Idoso”


em eventos promovidos pela Secretaria de Saúde do Estado do Ceará e Universidade
Estadual do Ceará, 2014.

27 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A Epistemologia nos convida a estudar a velhice e o envelhecimento
de modo interativo, de forma que o conhecimento aí gerado não
seja igual à soma das partes, mas seja fruto da integração de
métodos e ações, termos e teorias, criando explicações novas e mais
satisfatórias do que as disponíveis nas disciplinas isoladas. Este é o
compromisso maior da interdisciplinaridade (Py e Oliveira, 2013).
Na mesma linha, Alda Brito da Motta (2006) nos adverte que não
existe a velhice, existem “velhices”, o que também significa que não
existe velho, existem “velhos e velhas”, em pluralidade de imagens,
socialmente construídas e referidas a um determinado tempo do
ciclo da vida. A idade, então, não é um fator propriamente natural,
mas simbólico, uma certa representação corporal e ideacional,
referida à passagem do tempo.

O envelhecimento humano
entre a espiritualidade e a finitude

Corpo e alma são como instrumento musical e música. O corpo


é o violino e a alma a música que o violino toca. Pode-se ter um
instrumento maravilhoso, mas que não toca nada; pode-se ter um
instrumento extremamente frágil, um violino de uma corda só, e
tocar uma coisa fantástica. (Alves, 2011).

Um dos problemas discutidos pelos filósofos antigos era como fazer a


conexão entre a coisa material e a espiritual. Há aí um grande mistério.
Estou pensando em criar, diz Rubem Alves (2011), um professor de
espantos. Certas coisas são muito espantosas, tão espantosas como
a questão da alma, como a questão do espirito humano.

A dimensão espiritual é condição fundamental do homem, até


porque spiritus quer dizer sopro, (donde provém a vida humana).
Consideremos que, enquanto o espírito é afirmação, a matéria isolada,
por si só, não se a-firma; é negação. A a-firmação, sinal da presença
do espírito, é vida; a negação, sinal da ausência do espírito, é ausência
de vida. É morte. A espiritualidade como condição fundamental da

28 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


pessoa humana, evidencia que o homem não se reduz a um simples
composto orgânico, mesmo que muito complexo e perfeito.

É inegável que a abordagem do domínio espiritual constitui um


processo de construção, tanto da fé, quanto do sentido, como os
trabalhos de William Breitbart (2004) e Viktor Frankl (1985) tão bem
nos fundamentam. É por sua dimensão espiritual que o homem supera
o plano puramente funcional de sua corporeidade/animalidade e se
faz um ser simbólico, capaz de dar sentido à sua existência; capaz de
descobrir um sentido para o mundo, a realidade que o cerca e para o
tempo no qual ele está inserido.

O tempo

Começo a considerar o tempo pelo gênio solitário e angustiado do


africano Agostinho (1999), bispo de Hipona, século IV d.C., o mais
antropólogo dos filósofos, que ousou escrever sua filosofia na 1ª
pessoa. Ele proclamava: quando me questionam sobre o tempo, eu
acho que sei o que ele é. Quando, porém, me perguntam efetivamente
o que ele é, eu já não o sei. Portanto, eu sei o que é o tempo, mas o
sei somente, quando não tenho que falar sobre ele.

Esse inquieto Agostinho, de coração e mente insatisfeitos, para quem


o tempo não tem dimensão concreta, pois, quando vamos pegá-lo,
tomá-lo, ele já se desvanece! É que, para ele, o tempo não é algo
externo, que possa estar aí, em algum lugar, como estão as coisas
materiais. O habitat do tempo é a alma. A alma, e não os corpos, é a
verdadeira medida do tempo, é a verdadeira dimensão do tempo. O
bispo de Hipona observava, em suas célebres confissões: o passado
é o que se recorda, o futuro, o que se espera e o presente, aquilo que
nos ocupa a atenção. Passado, futuro e presente se põem, então,
como memória, espera e profunda atenção.

Tempo e memória se juntam, pois, com as surpresas do presente,


sempre prestes a desvanecer, com a lembrança de um passado que

29 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


insiste em ir para a frente e um futuro que é intensa expectação, um
tempo que inquietamente se espera.

A verdade é que, se nos ativermos à visão grega de tempo,


constatamos que o termo tem duas acepções: como chrónos, o tempo
do calendário, o tempo medido inapelavelmente por unidades rígidas,
convencionais e arbitrárias. Podemos concluir que este é o tempo em
relação ao qual ninguém é propriamente sujeito. É o tempo inexorável,
fatal, que passa por cada um de nós sem que possamos atuar sobre
ele. O chrónos aparece de tal modo dominante e poderoso, a ponto de
ser antropomorfizado. O chrónos era um deus. Mas os mesmos gregos
usavam um outro termo para designar o tempo. Era o kairós. Este era
o tempo oportuno, favorável; tempo como movimento intuído; tempo
em totalidade, vinculado à consciência, não à natureza externa. O
kairós significa o tempo que não se mede de um ponto a outro, mas
que é um vir-a-ser contínuo, um ir-sendo constante; tempo do qual
cada um de nós é sujeito, é o senhor.

Ao meditar sobre o tempo, temos, no fundo, uma base que mistura,


em estado de dramática fusão, passado, presente e projetos de futuro.
Tal é o tempo, esse fenômeno que não acontece apenas no espaço do
calendário, que não flui no vazio, mas habita o espaço da consciência,
ou, como queria Agostinho, o espaço da alma. Um tempo como que
flexível e criador.

O mundo que nos cerca

Mesmo como alguém de natureza espiritual, o homem dialoga com


o mundo material com o qual se defronta. Entretanto, dialogar com
o mundo não quer dizer submeter-se passivamente a seus desafios
e provocações. Ao contrário, intencionalmente, o homem busca
superá-los, transpô-los, ultrapassá-los.

Voltando a nosso filósofo africano, dizemos que o mundo é um campo


de batalha; é um confronto infinito, no qual as vitórias são sempre

30 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


provisórias. E o homem não entra aí como um mero espectador. Não!
Ele participa desta batalha e “nela se vê envolvido até a medula”.
(Carmo, 1975). Tanto ele mesmo, ser dilacerado, dividido, insaciado,
insatisfeito com a finitude de suas experiências, quanto como parte
do próprio universo.

O envelhecimento entre os horizontes da finitude


e infinitude, a fatalidade da morte e o apetite
humano de imortalidade

Importa afirmar que a questão da finitude é, antes de tudo, uma


questão antropológica. Atinge o homem como peregrino da
existência, como buscador de seu próprio sentido no âmago mais
profundo de si mesmo. E aí, nesta profundidade original, buscador
do sentido do outro, buscador do sentido de todo o mundo que o
cerca. Não se pode, pois, falar fundamentalmente em finitude sem
ser a partir do homem. Do homem em sua solidão mais eloquente,
em sua força interrogativa mais dinâmica. É que a finitude se põe
existencialmente como fundamento de toda a inquietação humana.
É a fonte de suas mais radicais interrogações (Oliveira, 1999).

Os escritos religiosos antigos descreviam o homem como uma


dualidade de corpo e alma. O corpo finito, a alma infinita, dois
departamentos estanques: o corpo corruptível, a alma incorruptível.

A Idade Média encarregou-se de reduzir o corpo a fonte e ameaça


de concupiscência e de pecado. O interessante de se destacar é que,
exatamente porque é manifestação da finitude do homem, o corpo é
também desejo. Desejo que Freud via como inerente à condição humana,
imanente ao homem, em oposição ao valor que lhe seria transcendente.

A mais radical experiência da finitude humana é, sem dúvida, a morte.


A morte se nos apresenta como o mais incontestável dos fatos. Da
morte o homem só tem uma consciência indireta: a visão dos

31 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


outros que morrem, sob a certeza de que a vida é um progressivo
itinerário em direção à morte. O mesmo Agostinho nos lembra que
o homem começa a estar na morte no momento em que começa
a existir no corpo.

Na maioria das civilizações primitivas, a crença na sobrevivência


da alma depois da morte é um dos pontos fundamentais de seu
patrimônio cultural. De Platão a Kant, a quase totalidade dos filósofos
não considera a morte como a extinção do homem todo, mesmo que
não apresente argumentos para fazer crer que a alma é efetivamente
imortal. Porém, se os filósofos não encontram argumentos para
provar a imortalidade da alma, não conseguem também provar o
contrário, como Descartes observa em suas “Meditações”. Heidegger,
depois de afirmar o homem como um ser-para-mais, afirma-o como
um ser-para-a-morte, ou seja, o homem torna-se consciente de sua
sujeição à morte, como expressão mais forte de sua angústia, de sua
finitude. Karl Jaspers conclui que a imortalidade não é uma parte do
nosso saber, mas uma riqueza do nosso amor.

É isso aí. O mistério da finitude frente à infinitude não é apenas um


túnel escuro, mas, sendo uma grande metáfora da esperança humana,
é extensivamente, a metáfora da luz no final do túnel escuro. A gente
não sabe como e quando vai chegar lá. A gente não sabe o que está
por lá. A gente não sabe que surpresas pode encontrar. Mas a gente
vislumbra aquela luzinha que nossos olhos, nossas pernas, nossos
corações, enfim, todo o nosso ser busca alcançar.

Tudo isso, afinal, constitui a abertura ao mistério da vida e da morte,


ao mistério da finitude e infinitude; ao mistério da frágil esperança,
da luz bem sumidinha lá no final do túnel.

Creio que podemos concluir essa parte com Gabriel Marcel (1944): o
homem espera e espera profundamente que o seu ser não venha a se
extinguir. Da validade de tal esperança ele não tem provas, tem certeza.
Uma certeza dada pela experiência do amor.

32 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A dimensão essencial da interdisciplinaridade:
o grande abraço, as mãos dadas,
a transcendência dos limites

Pode-se dizer, de modo bem simples, que a interdisciplinaridade


se constitui em um amplo encontro, um grande acordo, que prevê
relações bem transitivas e estreitas entre as ciências e as técnicas
e alianças envolventes entre as diversas práticas dos participantes,
em um processo de pesquisar, conhecer e fazer. Esse encontro de
disciplinas ou ciências, áreas ou tópicos do saber, é sempre um
espaço onde se deve praticar a solidariedade mútua e a humildade
de reconhecer as limitações de cada um.

A raiz da interdisciplinaridade está, pois, em que ninguém e nenhum


conhecimento ou prática têm uma estrutura de valores e uma “certeza”,
só para si, mas as tem em relação aos outros e ao mundo exterior.

Os profissionais da saúde, a família e o próprio idoso alternam o


protagonismo na ação de acompanhar e tratar. Sob um aspecto
mais simbólico, todos afetam e são afetados, todos sofrem, todos se
tratam, todos envelhecem e, por que não dizer, findam.

O objetivo da interdisciplinaridade e da ética que a fundamenta é a


unidade do saber e do fazer. Com certeza, quando se fragmentam o
saber e o fazer, acaba-se por fragmentar também a pessoa, que é sujeito
e objeto destes processos. Da mesma forma que não há um saber,
nem um conhecimento mais alto, ou mais nobre, ou mais importante
que os demais, não há também um participante do processo que se
sobreponha aos outros. Na verdade, o risco das soberanias acadêmicas,
como diria ainda Japiassu (1976), é o surgimento de estudiosos
que sabem quase tudo de quase nada. Realmente, o conhecimento
científico não pode conhecer tudo. A preocupação fundamental de
uma reflexão epistemológica, base de toda interdisciplinaridade, não
é o intenso domínio do conhecimento, mas é “situar os problemas tais
como eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou desaparecem na

33 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


prática efetiva dos cientistas”. É a de permitir que as ciências ou os
saberes dialoguem entre si; entrem em confrontação mútua, ou até
mesmo em um sadio conflito, discutindo sua origem e sua destinação.
E aí se encontra o homem.

Paralelamente, G. Gusdorf (1976) lembra que se pode constatar um


crescente hiato entre o conhecimento científico e todo um acervo de
sentimentos ou de valores. A ciência, por definição, tende a ignorar
os valores. E tampouco preocupa-se, por si mesma, com o afeto, com
a imaginação criadora.

Por outro lado, o homem real e histórico, o homem do cotidiano, não


vive, nem se articula, nem se constrói num laboratório. Para o homem
real não basta o suporte das ciências e das técnicas. Ele há de requerer
sempre a presença pessoal e solidária, o carinho envolvente, o olhar
atento, a mão estendida, o ouvido disponível, o coração aberto.

A verdade é que o homem se vê como um todo, inteiro. Ele não


deve suportar jamais qualquer forma de “mutilação” provocada
pela fragmentação da ciência com suas departamentalizações. As
especializações só se justificam quando servem para reconstruir e
consolidar sua unidade de pessoa.

Sim, o homem se experimenta como um todo integrado. Por exemplo:


quando ele sente dor nos rins, ele conclui dizendo: “eu sofro dos rins”.
Portanto, quando seus rins vão mal, ele sofre; é ele todo que “sofre”.

Sob a dimensão da interdisciplinaridade, as ações solidárias que se


sucedem são o grande abraço de projetos que caminham de mãos
dadas e, por essa trilha, vão seguindo; e por aí vão assumindo direções
e sentidos sempre maravilhosamente surpreendíveis.

Enfim, é importante que se enfatize que a dimensão geral do saber


não é justificada em plenitude apenas pelo intelecto humano, mas
também (e sobretudo) pelo coração do homem.

Gabriel Marcel (1944) proclama com a maior ternura: amar alguém é

34 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


dizer: você não vai morrer!... Se eu consentisse na sua extinção, eu trairia
o nosso amor e, portanto, seria como se eu o abandonasse à morte.

No espaço misterioso do amor, o homem pode transcender os


limites de sua finitude e também os demais limites da Geriatria, da
Gerontologia e dos demais saberes e ciências. É que o amor quer
ser sempre para mais e para sempre... E verdadeiramente é assim.

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36 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


CLARITA -
TEMPO E MEMÓRIA

Incumbe-me falar de TEMPO E MEMÓRIA, diante de um filme que


não é apenas um filme, mas a vivência de um processo existencial
de dor e, por que não dizer, de mistério. Tempo e Memória de Clarita
não são, por certo, categorias apenas acadêmicas, mas questões que
emergem com todo o impacto e “patos” (paixão), de uma trajetória
humana, carregada de significação.

Por isso, começo pelo gênio solitário e angustiado do africano


Agostinho, bispo de Hipona, século IV d.C., o mais antropólogo
dos filósofos, que ousou escrever sua filosofia na 1ª pessoa e que,
com a honestidade que marcou sua obra, proclamava: “quando me
questionam sobre o tempo, eu acho que sei o que ele é. Quando,
porém, me perguntam efetivamente o que ele é, eu já não o sei.
Portanto, eu sei o que é o tempo, mas o sei somente quando não
tenho que falar sobre ele”. Inquieto Agostinho, de coração e mente
insatisfeitos, para quem o tempo não tem dimensão concreta, pois,
quando vamos pegá-lo, tomá-lo, ele já se desvanece!

É que, para ele, o tempo não é algo externo, que possa estar aí, em
algum lugar, como estão as coisas materiais. O habitat do tempo é a
alma. A alma, e não os corpos, é a verdadeira medida do tempo, é a
verdadeira dimensão do tempo. E com sua certeza meio paradoxal
e eivada de perplexidade, o bispo de Hipona observava, em suas

Este texto foi escrito baseado no documentário CLARITA, dirigido por Thereza
Jessouroun: “Narrado na primeira pessoa, e baseado na história da mãe da
diretora, portadora da Doença de Alzheimer, o documentário apresenta reflexões e
questionamentos sobre o sentido da vida e a convivência com a morte”. O texto é a
transcrição da fala do autor, apresentada na cerimônia de lançamento do documentário,
no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de junho de 2007.

37 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


célebres Confissões: “o passado é o que se recorda, o futuro, o que
se espera e o presente, aquilo que nos ocupa a atenção”. Passado,
futuro e presente se põem, então, como memória, espera e profunda
atenção. Tempo e memória se juntam, pois, com as surpresas do
presente, sempre prestes a desvanecer, com a lembrança de um
passado que insiste em ir para a frente e um futuro que é intensa
expectação, um tempo que inquietamente se espera.

Muito mais tarde, o alemão Heidegger, que nos deixou o antológico


Ser e Tempo, afirmava que o “da-sein”, o estar-aí, podia (também)
atingir a esfera semântica do termo preocupação: a ocupação, um
enraizamento no presente, a pré-ocupação (com hífen), uma referência
ao passado e a preocupação (tudo junto), um arremesso ao futuro.

E é nesta direção que queremos meditar sobre o filme. Um filme


diferente, que nos apresenta um duplo protagonismo: o protagonismo
quase que imperscrutável de Clarita e aquele de Thereza, sua filha,
que empreende com ela, cheia de dignidade, a dolorosa caminhada.

A filosofia não há de responder, com seu rigor racional, o que se passa


na cabeça de Clarita, que vai dramaticamente perdendo a memória,
numa agravante desorientação tempo-espacial; uma forte confusão
mental, com gradual comprometimento da memória, primeiro, a
recente, depois, a remota; um irreversível declínio das capacidades
intelectivas, a de compreender e a de ajuizar e um demenciamento
proclamado pelo grave e irredutível défice cognitivo, que a leva a não
reconhecer mais os familiares e os amigos, os caminhos de sua casa, a
paisagem circunstante, na mesma proporção que aumentam o estado
de agitação, a aparente agressividade, a paranoia, a incontinência,
chegando a um quadro trágico de radical dependência.

A verdade é que, se nos ativermos à visão grega de tempo como


chrónos, o tempo do calendário, o tempo medido inapelavelmente por
unidades rígidas, convencionais e arbitrárias, concluímos que este é o
tempo em relação ao qual ninguém é propriamente sujeito, o tempo
inexorável, fatal, que passa por cada um de nós, que passa por Clarita,
sem que nenhum de nós, sem que Clarita, possa interferir nele, possa

38 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


atuar sobre ele. O chrónos aparece de tal modo dominante e poderoso,
a ponto de ser antropormorfizado. O chrónos era um deus.

Mas os mesmos gregos usavam um outro termo para designar o


tempo. Era o kairós. Este era o tempo oportuno, favorável; tempo como
movimento intuído; tempo em totalidade, vinculado à consciência,
não à natureza externa; tempo que não se mede de um ponto a outro,
mas que é um vir-a-ser contínuo, um ir-sendo constante; tempo do
qual cada um de nós é sujeito, é o senhor; tempo que existe, vale
e dura, na proporção da intensidade com que cada um de nós o
vivencia, experimenta-o, até mesmo, padece-o; tempo que pode ter
o tamanho de nossas experiências, de nosso sofrimento, de nossas
utopias, de nossa liberdade, de nosso amor.

É sobre esta ótica que eu me ponho a meditar sobre a misteriosa


caminhada de Clarita e daqueles que a acompanham e assistem.
Uma ótica menos fria e cruel do que a do chrónos. É que o tempo-
kairós não flui no vazio, mas acontece no espaço da consciência, ou
como queria Agostinho, no espaço da alma. E, mais complexamente,
como sugerem os antropólogos, (em especial, Roberto Da Matta),
um tempo que acontece no espaço da casa, do aconchegante, do
verdadeiramente familiar, mas paradoxalmente também no universo
da rua, do anonimato, do impessoal, onde nem sempre temos vez e
voz, ou ainda, simplesmente entre os dois, em um patamar sagrado,
reservado ao mistério, à renúncia do mundo. Sem dúvida, creio que
nos sentimos mais humanos, quando, nesta perspectiva kairótica,
meditamos sobre a construção e as dramáticas desconstruções na
trajetória de Clarita e suas circunstâncias.

Paralelamente, Rocha Filho e Einloft (2006), no capítulo 3 de


Espiritualidade e finitude, observam que a Física contemporânea,
na abordagem do tempo se afastou muito do saber que vem do
cotidiano. Acentuando, então, a subjetividade do tempo, citam
Jung “a psique possui certas qualidades que transcendem os limites
do tempo e do espaço. Em outras palavras, a psique pode tornar
elásticas essas categorias, ou seja, cem milhas podem ser reduzidas
a uma jarda e um ano a poucos segundos”.

39 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Ora, isso vem ao encontro da perspectiva que nos orientou acima.
Mais adiante, os mesmos autores apontam para o ganhador do Nobel
de química de l977, Ilya Prigogine, com seus estudos das estruturas
dissipativas, que, de modo até certo ponto surpreendente, acreditava
no tempo como algo criador, anterior à vida e ao universo, um “tempo
potencial, um tempo que está sempre já aqui, em estado latente, que
só exige um fenômeno de flutuação para se realizar. Nesse sentido,
o tempo não nasceu com o nosso universo: o tempo precede a
existência, e poderá fazer nascer novos universos.” E concluem
mostrando um tempo como que flexível e criador.

Será que, a essa altura, não fico eu na obrigação de devolver a


Clarita, ao menos em potência, um pouco do protagonismo, que, em
princípio lhe pareceria negado? É que deparamo-nos com o mistério
do inconsciente e com os meandros não menos surpreendentes da
memória que aí se articula. Nesse sentido, Jung chega a afirmar que
“o inconsciente não conhece tempo. Parte de nossa psique não está
no tempo nem no espaço”.

Quem sabe, enfim, o que se passa no fundo da mente de Clarita?


Como oportuno apoio, por que não ouvimos, mesmo com todas as
nossas desconfianças contemporâneas, o velho Platão? Ele via dois
momentos na constituição da memória: a retenção/conservação das
sensações e a reminiscência. E elas não nos dariam nada mais do
que uma simples sugestão da realidade. A psicologia antiga, pós-
socrática, insistia no aspecto pelo qual a memória é conservação,
persistência. Plotino, num rasgo místico, negava uma base física para
a memória e via no corpo mais um obstáculo do que uma ajuda na
mencionada conservação e persistência e ousou propor a memória
como indestrutível. Agostinho chega a elencar os “milagres” da
memória e a expressa como “ventre da alma”. Tomás de Aquino
a chama “o tesouro e o lugar de conservação das espécies”. O
interessante é que, “sobre a memória como conservação insistem
também concepções modernas e contemporâneas que, retomando
a concepção agostiniana do tempo como distensio animi, ou seja,
duração da consciência, veem na memória a conservação integral
do espírito por parte de si próprio, isto é, a persistência nele de

40 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


todas as suas ações e afeições, de todas as suas manifestações ou
modos de ser”.

Diante de tudo isso, nós ficamos a nos perguntar. Quem sabe


como podem emergir dos subterrâneos obscuros da mente de
Clarita, os registros que pareceram se perder sem que ela pudesse
perceber? O que se pode dizer, com pretensa certeza, sobre a volta,
mesmo que desmantelada, da memória de Clarita numa como que
desesperada defesa de seu ser, de seu haver existencial? O que se
inscreveu numa hipotética e ampla lista de perdas nos registros de
suas lembranças? E que novidades hão de ser imperceptivelmente
proclamadas nos sagrados e insondáveis refúgios de sua atribulada
mente? O que nos foi dado a ver foram os angustiantes e dramáticos
resultados da ansiedade e desespero, centelhas de empreendimentos
desordenados da atribulada e gravemente lesada mente de Clarita,
centelhas estas, que, parafraseando Paul Valery, correm do real ao
pesadelo e regressam do pesadelo ao real, desvairadas, como um
rato que caiu na ratoeira. Como, no caso de nossa meditação, cabe o
lamento de André Gide ao afirmar que “há estranhas possibilidades
em cada homem. O presente estaria cheio de todos os futuros, se o
passado não projetasse já nele uma história. Mas, ai de nós, um único
passado propõe um único futuro - projeta-o a nossa frente, como um
ponto infinito no espaço”.

Por outro lado, abordando tempo e memória, é impensável não se


recorrer a Henri Bergson (l859-1941). É que ele resistiu a admitir
materializar as atividades consideradas tradicionalmente espirituais.
E mostrou a importância de se utilizar outra forma de abordagem e
apreensão do real, da realidade que nos cerca; uma forma capaz de
fazer, por assim dizer, uma ponte de comunicação entre a intimidade
do sujeito, o eu profundo – que é pura duração, sem sucessão temporo-
espacial – e a intimidade do objeto, que também é pura duração. Esta
forma de contato ou, como ele chamava, de “simpatia” entre o sujeito
e o objeto é a intuição. Intuição que dispensa intermediações, que
dispensa a fragmentação e espacialização da duração, a estagnação
de seu fluxo, de seu movimento. É ela, a intuição, na concepção de
Bergson, que fornece um sentido muito peculiar a tempo e memória.

41 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Destituída de motivações utilitárias, sem pragmatismo algum, ela
permitiria, assim, a apreensão ampla e profunda do que é vida,
dinamismo, mudança qualitativa, duração, criação.

Creio que a luz destes fundamentos bergsonianos - que eu assumo


o risco de aqui expor, de forma muito sintética e incompleta - pode
iluminar em parte o quadro de penumbra que envolve a alma de Clarita.

É que, em Bergson, o tema da memória vincula-se não apenas à


questão do inconsciente, mas ao relacionamento entre corpo e alma,
e, na alma, entre o mental e o cerebral. Ao abordar os distúrbios da
memória – em particular, o da afasia – ele não os atribui a lesões
no córtex cerebral: “a lesão pode, sim, prejudicar o mecanismo de
ativação das lembranças, mas não atinge as próprias recordações;
o espiritual ou o mental ultrapassa o físico ou o cerebral, embora
nele se apóie e dele dependa para se manifestar”. Ainda com
Bergson, concluímos que, justamente porque o cérebro é o órgão
da atenção à vida, ele seleciona as lembranças, recalcando aquelas
que são desnecessárias ao momento presente. Como órgão de
integração da pessoa à vida, o cérebro é, assim também, órgão do
esquecimento. Quando a atenção à vida se afrouxa, é então que o
inconsciente pode aflorar.

Cabe, a essa altura, a pergunta: o que acontece na profundidade da


alma de Clarita, quando esta atenção à vida se afrouxa? Que sonhos
são sonhados por detrás de seu olhar paradoxalmente atento e
ausente, que o filme tão bem revela?

Para encerrar, atenho-me ao filme propriamente dito. As cenas, as


sequências, os quadros – muito mais significantes do que significados
– dão exatamente a marca do tempo-sucessão-fluxo e o sentido
da memória-retenção-lembrança. São, então, os passos, os gestos
mecanizados pela enfermidade, os balbucios, as rodas da cadeira, os
corredores, o jardim e, sobretudo o olhar paradoxal, tão fixo quanto
buscador, tão atento, quanto ausente, que dão a Clarita o lugar de
protagonista. Protagonismo que é compartilhado com Thereza, sua
filha, que, pela narração, conduz o doloroso processo de construção

42 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


e desconstrução da história de sua mãe e opera, através do debulhar
dos retratos, o nostálgico resgate desta história.

Diante desse quadro, nós, os que assistimos ao filme, fazemo-nos


testemunhas.

Por todas essas considerações, eu não me propus analisar nada.


Coloquei-me a meditar. O que vai aqui escrito não é propriamente
um texto, mas um pretexto para que eu comunique minha meditação.
Estou certo de que não conseguiremos entender uma existência que
vai dramaticamente silenciando a não ser em profundo silêncio de
meditação. É assim que se torna possível acompanhar a caminhada
de Clarita ao fundo de seu próprio poço e participar de sua solidão.
Afinal, cada um de nós tem também o seu próprio fundo do poço,
que esconde lá dentro segredos, histórias e as próprias raízes de
nossa liberdade. Um fundo que também mistura lá dentro, em estado
de dramática fusão, passado, presente e projetos de futuro.

Um passado que é a sacralização de todas as lembranças; um


presente que é a consumação efêmera da atenção e um futuro que
deixa de ser esperança para ser a própria dignificação da espera.

Referências bibliográficas

Bergson H. Matière et mémoire, in Oeuvres. Paris, PUF, 1959.

Gide A. Os frutos da terra. In: Picon, Gaëtan (orgs). Panorama das Ideias
Contemporâneas, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1958.

Heidegger M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002.

Os Pensadores (Coleção). História das grandes ideias do mundo ocidental. São


Paulo: Civita/Abril Cultural, 1973.

Platão. O Banquete. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Prigogine I. Entre o tempo e a eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Progogine I, Stengers I. A nova aliança: metamorfose da ciência. Brasília: UNB, 1984.

43 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Rocha Filho JB, Einloft EF. Espiritualidade e finitude: aspectos psicológicos.São
Paulo: Paulus, 2006.

Agostinho Santo. Confissões. 5ª ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955.

Valery, P. Nós civilizações, sabemos agora que somos mortais. In: Picon, Gaëtan
(orgs). Panorama das Ideias Contemporâneas, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1958.

44 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O SILÊNCIO

“O silêncio humano tem sempre um rosto. E este rosto,


quando desfeito pela opressão, esconde uma voz, um
lamento, um grito de socorro. E reflete a experiência-base
da vida humana ... Tal é o silêncio que se constitui em um
pacto íntimo entre nós e o nosso interior, no qual só nós
somos capazes de alcançar e de interpretar as mensagens e
segredos escondidos nesta profundidade.”
A ELOQUÊNCIA
DO SILÊNCIO

Introdução ao significado de silêncio,


anterior a quaisquer considerações

O significado de silêncio é muito vasto e vai muito além da ausência


dos barulhos e da fala. É que o silêncio pode seu entendido tanto
como ausência quanto como plenitude. Tanto como expressão de
sossego e paz, quanto como manifestação de inquietude e temor.
Tanto como carência de poluição sonora, quanto como presença do
espaço espiritual. Ainda neste sentido, há o silêncio eterno dos espaços
infinitos que atemorizou Pascal. (Japiassu e Marcondes, 1996). Há o
silêncio de Saint-Éxupery, que nos leva a amar o deserto. Que nos
leva a sentar numa duna de areia e não ver nada, não falar nada.
Não escutar nada. Aquele silêncio que, entretanto, nos irradia alguma
coisa e torna belo o deserto, porque traz a certeza de que, em algum
lugar, se esconde um poço. (Saint-Éxupery, 1969). Há o silêncio dos
monges enclausurados que dá espaço à voz de Deus escondido na
profundidade de suas almas. Há o silêncio que questiona e o silêncio
que responde. Há o silêncio que liberta e o silêncio que oprime.

Este texto é a transcrição da palestra proferida pelo autor no II Seminário Internacional


Sobre Aposentadoria, promovido pela Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Cidadania. Brasília, 01 e 02 de março de 2012.

46 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O silêncio do princípio de tudo

Na verdade, para aquém de todos os silêncios, há o silêncio do começo


de tudo. Aquele silêncio que se encontra, de maneira tão singela, na
narração cosmogênica das Escrituras: o silêncio eterno de um espaço
infinito, sem forma e vazio, que impregnava os abismos do nada. O
silêncio que é rompido pelo ato criador do Espírito de Deus. Quando
no princípio era apenas o Verbo; era a Palavra geradora, a Palavra
criadora. E por ela fez-se a luz e a luz se separou das trevas, fez-se o
firmamento chamado de céus e este se separou das águas ajuntadas
em oceanos. Por esta Palavra criadora, que preexistia a tudo, formou-
se a porção seca que se chama de terra e nela produziram-se a relva,
as ervas que dão sementes e as árvores que dão frutos. Por ela, foram
criados no firmamento dos céus dois grandes luzeiros, o maior para
governar o dia e o menor para governar a noite. Assim também foram
povoadas as águas por um ‘enxame’ de seres vivos e o firmamento
dos céus por uma ‘multidão’ de aves. Pela Palavra criadora que
rompia o silêncio foram criados os seres viventes da Terra, os animais
domésticos, os répteis e os animais selvagens. E quando uma neblina
subia da terra e regava toda a superfície do solo, a Palavra criadora
do Senhor rompeu o silêncio inicial e fez o homem à sua imagem,
a partir do barro da própria terra, e soprou sobre ele um espírito de
vida, fazendo com que ele tivesse o domínio sobre os peixes do mar,
sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre todos os
répteis e sobre todo o que nasce da terra. E para que o homem não
se sentisse só, a Palavra do Senhor, ainda uma vez rompeu o silêncio
e fez-lhe uma companheira, que ele reconheceu como osso de seus
ossos e carne de sua carne. (Gen. 1, 1-26; 2, 7-23).

No princípio de tudo, portanto, quebrando o silêncio dos espaços


infinitos e vazios, havia o Verbo, a Palavra criadora, sinal do mais
fundamental dos diálogos: o diálogo do Criador com as criaturas e
do homem com toda a natureza.

47 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O silêncio que aprofunda os problemas da vida

Por outro lado, seguindo o pensamento de Wittgenstein, (apud


Abbagnano, 1970). podemos dizer que o silêncio aprofunda os
problemas da vida e nos convida a calar sobre o que não podemos ou
não conseguimos falar. Tal é o silêncio que se constitui em um pacto
íntimo entre nós e o nosso interior, no qual só nós somos capazes de
alcançar e de interpretar as mensagens e segredos escondidos nesta
profundidade.

É que, na medida em que envelhecemos, passamos a reivindicar um


espaço-momento radicalmente nosso, para aquém das solicitações
externas que nos afastam de nós mesmos. O momento de calar
passa a ser tão essencial quanto o momento de falar. Paralelamente,
o silêncio como comunicação reflexiva faz com que todo o diálogo
que aí se articula, aconteça à maneira de um espelho, onde cada um
vê a própria imagem, na exata medida em que vê refletida em si a
imagem do outro. (Wittgenstein, in Abbagnano, 1970).

O esquecimento como manifestação de silêncio

Breitner investigou, recentemente, a etimologia da palavra:


esquecimento. Notou que se tratava de uma palavra frequentemente
utilizada para descrever o estado que entramos, quando próximos da
morte. E o que é mais interessante, registrou ainda que esquecimento
é uma palavra eivada de conotações negativas; pode significar
exclusão, aniquilação e/ou, simplesmente, nada. Breitner, entretanto,
acrescentou um novo significado para tal palavra, relacionando o
conceito de esquecer ao de perdoar, dando a ele uma conotação
como que anestésica. Convida-nos, então, a pensar em esquecimento
como um espaço onde tudo é perdoado e nada é lembrado, um
estado de paz, sem passado, nem futuro, somente o presente. Tal

48 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


posicionamento leva-nos, creio eu, a fundir esquecimento com uma
forma de silêncio. Silêncio como uma espécie de suspensão da
consciência no tempo. (Breitner, 1990).

A verdade é que a memória é a pedra-de-toque do silêncio. É muito


interessante a maneira como Florindo Stella apresenta a memória no
processo do envelhecimento. Como a memória de trabalho ou memória
operacional, aquela que implica a capacidade de “registrar e resgatar
informações referentes a determinadas formas de ação, como manipular
um equipamento ou transmitir algum recado” mantém-se praticamente
intacta ou apresenta apenas um discreto declínio!... O silêncio aí não se
manifesta. Como fica preservada a “memória de reconhecimento, como
lembrar-se espontaneamente de certas situações significativas”!... O
silêncio aí não se manifesta. Como fica igualmente preservada “a
memória de longa duração e mantém-se relativamente intacta a memória
semântica, isto é, a capacidade de registrar e recordar o significado
conceitual de palavras, objetos e comportamentos!...” O silêncio aí
não se manifesta. Nem se manifesta na “capacidade de utilizar-se de
‘pistas contextuais’ para a recordação de conteúdos registrados e para
isso estabelece associações entre os elementos de uma situação que
facilitem a recordação dos conteúdos memorizados”.

Mas silencia a memória de “conteúdos recentemente aprendidos,


sobretudo quando estes se referem a situações episódicas ou
isoladas”. Silencia discretamente a memória imediata e a recente.
(Stella, 2006, p.242).

A aposentadoria, um lento processo


de silenciamento

Ao abordar o amplo significado de ciclo de vida, Pacheco (2006,


p.175) nos remete a Erikson (1976), mostrando-nos que novas etapas
– idade escolar, adolescência, idade adulta, maturidade e velhice –
que se seguem àquelas propostas por Freud, “completam o ciclo de

49 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


vida com um sentido de trajetória, permeado pelo meio, numa relação
de retroceder e avançar, de terminar e recomeçar” e alerta-nos que
“as crises inerentes a cada fase podem ser resolvidas nesta mesma
etapa, sem necessariamente remeter o indivíduo às fases iniciais de
sua vida, em busca de um objeto perdido”. (Pacheco, 2006, 175).

Acrescente-se a isso que, no recente horizonte semântico de


ciclo de vida, escola e trabalho de modo a não serem mais vistas
como momentos estanques da experiência cotidiana do homem
contemporâneo. Assim como a distinção entre trabalho intelectual e
trabalho braçal vai se tornando velha na concepção de um humanismo
de qualidade nova que busca reinterpretar o homem e sua atividade
no mundo de hoje. A própria dicotomia entre trabalho e lazer vai
chegando a um ponto de integração. Reconheço que tudo isso ainda
se dá mais no plano conceitual do que no plano prático. Mas também
alerto que é a partir deste plano que as transformações históricas
germinam e florescem.

Se as grandes rupturas tendem a se dissolver, julgo que a


aposentadoria também vai deixando de ser a expressão de uma
ruptura. No espaço de uma economia ainda muito contaminada
por uma real divisão de classes e pelo já desgastado, mas ainda
significativo binômio capital-trabalho, a voz e a vez que faltam ao
homem-trabalhador-enquanto-trabalha não lhe é devolvida quando
ele ingressa no descanso de sua aposentadoria.

É por este viés de vez e de voz que pretendo considerar o lento


processo de silenciamento, que se agrava no momento da
aposentadoria. Um silenciamento que acompanha o gradual processo
de envelhecimento.

50 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Envelhecimento e emudecimento

É sob múltiplos aspectos que se dá o silenciamento como também


é sob múltiplos aspectos que acontece o envelhecimento. Ele
aparece no nível biológico, quando o organismo apresenta sinais
evidentes de fragilidade e cansaço. No nível psicológico, quando
a esperança enfraquece e as perspectivas de vida começam a se
ofuscar; quando a alegria já não desabrocha em sorriso; quando o
ânimo vai se transformando em desânimo; quando alguma coisa que
não se sabe de onde vem começa a minar a confiança em si mesmo.
No nível intelectivo, quando as aptidões cognitivas traem a antiga
segurança de saber; quando a memória resvala para o ‘como é que
é mesmo’; quando os problemas começam a ser maiores do que a
capacidade de solucioná-los; quando o impulso de criatividade vai
dando lugar à mesmice. E para além de tudo, quando emergem as
modificações negativas no campo das emoções, das motivações, da
autovalorização, do aproveitamento do tempo livre, da recreação,
atividade sexual.

A verdade é que todos estes aspectos que denunciam o


envelhecimento, anunciam paralelamente um silêncio que vai pouco
a pouco ocupando as curvas finais da vida.

O silêncio e o estatuto da conspiração

Medeiros quando aborda o lugar do velho no contexto familiar (in


Py et al. 2006), fala da conspiração do silêncio, referindo-se a S.
de Beauvoir (1970), que analisou a maneira como os velhos eram
tratados na França: uma sociedade não apenas culpada, mas
criminosa. Os velhos são um estorvo, são párias nessa sociedade
do espetáculo, da abundância e da expansão. O que fica ressaltado
na velhice se restringe a perdas, doenças, incapacidade. Não se

51 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


interpõe nenhuma aquisição advinda com o tempo e a experiência
de vida. É fácil prever onde ficam os velhos, quando o mais alto valor
ético é o novo. Medeiros mostra que não se leva em consideração
a utilização do benefício dos mais velhos na contribuição da renda
familiar, tornando-se eles, numa proporção de mais de 60%, a base
econômica da família. Não se leva em consideração a crescente ajuda
dos avós na criação dos netos; nos cuidados gerais com a família;
no enriquecimento cultural constituído pela transmissão da história
familiar e dos fatos históricos em geral.

Por outro lado, muito ao contrário, em diversas culturas originais,


os anciãos são tidos como fonte de sabedoria. Creio que caibam
aqui algumas considerações sobre a rica experiência que vivi na
Guiné-Bissau, extremo oeste africano, no final dos anos oitenta.
(Oliveira, 1993). Referem-se à posição dos idosos não apenas
na família, mas no grupo social mais amplo. É que ali, os anciãos
adquirem uma venerabilidade amplamente reconhecida, que lhes
dá senhoria, direitos, admiração e, sobretudo, respeito. Com a idade
mais avançada, o guineense torna-se ‘garandi’ – homem grande -
reserva ética que guarda um precioso patrimônio cultural. A idade
madura é, por excelência, para a cultura crioula, a idade da sabedoria.
Vem eivada da experiência adquirida na árdua caminhada da vida,
no diálogo sempre dramático com a realidade circunstante, na
atuação cotidiana sobre seu pequeno espaço e sobre o seu tempo,
na convivência com os outros; enfim, em suas descobertas, em
seus acertos e em seus erros. É um saber mais fundo que vai sendo
tecido através de uma lenta percepção sensitiva: o velho sabe da
vida, porque a tocou com as mãos, viu-a com seus olhos em sua
complexidade, ouviu ao pé do ouvido o som e a fala das coisas e
das pessoas, as histórias daqueles mais velhos que acompanharam
o seu crescimento. O pesquisador guineense, Benjamin Pinto Bull,
em seu livro, o crioulo da Guiné-Bissau: filosofia e sabedoria, registra
que o discurso proverbial crioulo dirigido especialmente aos jovens
emana essencialmente das pessoas de idade, dos homens-grandes,
os ´garandis´. “Estes na Guiné-Bissau não significam, de forma
alguma, um indivíduo senil, com faculdades mentais enfraquecidas;
dependentes de outrem física e intelectualmente. Muito ao contrário,

52 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


a longa experiência pode, em larga parte, suprir a precariedade
física. Os idosos não estão condenados ao silêncio. Sua voz é a voz
da sabedoria e todos abrem seus ouvidos para ouvi-la. Por isso, os
guineenses afirmam que, quando um velho morre é como se uma
biblioteca se incendiasse. Ligado a este, vem outro provérbio nativo
que revela bem o papel dos velhos na comunidade: garandi k´jungutu
ta ma ojo lunju di ke mininu k´sikidu”. Numa tradução livre: um velho
de cócoras vê mais longe do que uma criança de pé. (Bull,1988, p.167).

Estou certo de que por aí se encontra a razão de S. de Beauvoir ter


escrito seu livro, a velhice, propondo-se radicalmente a quebrar a
conspiração do silêncio.

O ‘Silêncio’ de Ingmar Bergman e


o ‘Silêncio dos Inocentes’

Em 1963, o famoso cineasta sueco Ingmar Bergman encerrou uma


célebre trilogia de filmes, também chamada de trilogia do silêncio,
com um filme do mesmo nome, “o silêncio”. Apesar de manterem
entre si uma certa autonomia, os filmes componentes da trilogia,
“através de um espelho” e “luzes de inverno”, mantêm o silêncio como
um sólido pano de fundo. Um silêncio que perpassa os personagens
e gira em torno de uma questão mais espiritual do que psicológica.
Trata-se de um silêncio que alcança um tal grau de transcendência
que ultrapassa o patamar da mera falta de comunicação entre os
personagens e o das aflições humanas, chegando ao ponto de uma
dimensão metafísica. Há a problemática dos conflitos, mas não
há a preocupação com as respostas. O silêncio não é, pois, uma
metáfora da ocultação das indagações humanas, mas uma profunda
realidade que separa mundos diferentes. Há uma linha tênue, que
jamais se enrijece, entre as distorções de comportamento e o que é
realmente patológico. E o resultado de todas as formas de silêncio
apresentadas é o silêncio maior, o silêncio de Deus. Não um silêncio

53 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


propriamente religioso, mas o silêncio do sagrado. Na verdade, o
silêncio do sagrado se mostra mais como ausência do Amor do que
como incomunicabilidade, o que faz gerar sua identificação com um
sentimento da morte.

No fundo, é isso que os personagens, sempre torturados, tendem a


dizer a si mesmos, ou como diz a personagem Ester, à beira da morte:
... agora é solitário demais. Tentamos tomar atitudes e as achamos
inúteis. As forças são muito fortes. Quero dizer as forças, as forças
horríveis. É preciso ter cuidado com os fantasmas e as lembranças.
Para que isso? Não adianta discutir a solidão. É perda de tempo.

A verdade é que em o silêncio, nenhum personagem caminha à toa.


Caminha, por certo, em torno da trilogia toda, que no fim de cada
filme nos impõe a pergunta: o filme acabou mesmo?... Não! Sabemos
que não, pois os silêncios continuarão martelando nossas cabeças,
bem como os personagens de cada um dos filmes continuarão, por
certo, em busca da voz inacessível.

“O silêncio dos inocentes” (Jonathan Demme, 1991), revela o silêncio


das vítimas, que cerca de uma bruma de mistério a realidade de suas
mortes. E as investigações, impotentes, se calam diante das mortes. O
filme vai se engendrando em um jogo de enigmas, num clima de forte
tensão. A investigadora Clarice se serve de um psicopata, Hannibal
Lecter, ex-psiquiatra, para perseguir a única e inusitada pista que leva
ao assassino: casulos de uma borboleta tropical encontrados no interior
dos corpos das vítimas.

Afinal, numa das sequências mais tensas do cinema, o silêncio das


vítimas é rompido na escuridão do porão da casa do assassino.
O silêncio das vítimas é um dos mais desumanos silêncios da
experiência humana. É a manifestação de forma total da nossa
impotência. Nele não se calam apenas as vítimas, mas toda a
sociedade e cada um de nós.

54 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Dependência e autonomia, o silêncio e a voz

Em uma visão liberal, sobre a qual se deita a tradição do Ocidente,


autonomia se confunde com liberdade individual. Esta, por sua vez, se
confunde com independência e deve ser entendida como liberdade de
ser deixado em paz. Como consequência, somos levados a constatar
que o individualismo preside o contexto social do envelhecimento. E
nesta esteira, vem o ideal do Estado mínimo, que, no fundo, é mesmo
um Estado neutro, que renuncia a seus compromissos sociais e
encargos éticos fundamentais e deixa o velho como que largado a
sua própria sorte.

Tal tipo de mentalidade oficial se constitui em um ideal político que


põe a liberdade individual, a autonomia, “protegida” por mecanismos
jurídicos. Mas é de se perguntar: que tipo de “proteção” é esta? Que
forma é esta de se deixar o indivíduo em paz? A verdade é que a
teoria liberal, se analisada em todos os seus matizes e consequências
faz-se um rigoroso e até cruel processo de silenciamento do
velho. Numa sociedade pobre, com um acentuado desequilíbrio
na distribuição de renda, acaba por significar o descompromisso
do Estado com uma grande faixa da população sistematicamente
desassistida, que passa a ser como que cinicamente proclamada
responsável por sua própria carência.

Deste contexto, emerge uma conclusão paradoxal: “o papel


do Estado, (segundo a teoria liberal), deve ser primariamente
aumentar a capacidade dos indivíduos de perseguir livremente
seu estilo de vida e suas preferências. A teoria liberal, assim, apoia
vigorosamente o direito dos idosos – juntamente com o de outros
adultos competentes – de decidir o que constitui seus melhores
interesses. Essa teoria chega mesmo ao ponto de apoiar o direito
dos indivíduos de recusar tratamento de suporte de vida”. (Agich,
2008, p. 57). O grande nó da questão, no entanto, está na aplicação
da teoria à prática, ao cotidiano de uma maioria da população, que,
a partir de sua pobreza, não tem como pensar em “estilo de vida”,

55 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em “preferências”, em “recusa de tratamento de suporte de vida”.
Há uma ironia básica embutida nesta posição.

Por exemplo, e a propósito, ao analisar as práticas de clínicas de


repouso, o autor cima citado, mostra que os idosos não são envolvidos
no processo de admissão. Os contratos são caracterizados por
relações de poder. ”Apesar de tecnicamente sujeitos a negociação, tais
contratos são oferecidos na base do pegar ou largar”, (Op. cit. p. 65).

Tudo isso gera abusos, lesa direitos, fere os fundamentais princípios


da ética e põe em cheque o conceito de liberdade, tão decantado
nas saciedades liberais. Nem se consegue distinguir entre o que é
moralmente permitido e o que é moralmente injustificado. Creio ser
claramente oportuno referir H. Miles (1988), quando expressou: “como
um absoluto, a autonomia revela uma visão empobrecida de como
vivemos e somos sustentados (...). No balanço, a ‘ética da autonomia’
serve bem a muitas pessoas. Mas o epitáfio ‘é de responsabilidade
deles’ é uma maneira simplista de culpar os não servidos por esse
padrão e desculpa-nos da necessidade que eles têm de nosso
cuidado”. (Miles in op. cit. p. 71). E vai-se, assim, num crescendo até
se atingir a esfera dos relacionamentos humanos.

A verdade é que os idosos fragilizados e dependentes no domínio da


ética têm o foco do cuidado que lhes é dispensado restrito ao que
é objetivamente prescrito nos papéis e não ao que é moralmente
indispensável. Condena-se o paternalismo por tornar o idoso passivo
em relação à luta por direitos que lhe são devidos, mas não se cria
um programa estrutural que lhe devolva a vez e a voz.

Além de tudo isso, há que se considerar o fenômeno do idosismo,


tratado por Butler (1975, in op.cit. p. 110). O idosismo é muito sério
na medida em que leva os mais jovens a ver as pessoas mais velhas
como fundamentalmente diferentes, subtraindo dela o que têm de
humano. E aí o próprio idoso, descrente de si mesmo, mergulhado
em sua incapacidade, fragilizado em suas esperanças e em sua auto-
realização, vê o que sobras de sua energia pessoal ir devagarzinho

56 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


se aproximando da derrota final, que é a exclusão da família e do
contexto social e mais seriamente, a morte.

Creio que não existe processo de silenciamento mais expressivo,


apesar de sorrateiro, que este.

O rosto do silêncio

O silêncio humano tem sempre um rosto. E este rosto, quando desfeito


pela opressão, esconde uma voz, um lamento, um grito de socorro.
E reflete a experiência-base da vida humana. Boff propõe com muita
propriedade que tal experiência-base é constituída de sentimento,
de afeto e de cuidado. Não é, pois o logos (o conhecimento, a razão,
o verbo), mas o pathos (a capacidade de sentir, de ser afetado e
de afetar) que forma a matéria prima da existência humana. Uma
existência que é essencialmente co-existência. O mesmo Boff
parafraseia Descartes, quando sentencia “sentio, ergo sum” (sinto,
logo existo). Por isso, diz ele, “as estruturas axiais da existência
circulam em torno da afetividade, do cuidado, do Eros, da paixão,
da com-paixão, do desejo, da ternura da simpatia e do amor”. (Boff,
2009, p.82). Mostra que o pathos não se opõe ao logos: o sentimento
é também uma forma de conhecimento e de manifestação da razão.
E refere Pascal, quando este afirma que os primeiros axiomas do
pensamento vêm intuídos pelo coração e que cabe ao coração
apresentar as premissas de todo o conhecimento possível do real.

Nessa linha, a voz feita sentimento-afeto-pathos é o avesso da voz


feita conhecimento-lógos-verbo. Há, então, um acordo entre voz e
vez; entre voz escondida e voz manifesta. E “o homem moderno e
pós-moderno está à procura desse acordo perdido que subsiste, no
entanto na lógica do cotidiano (nisso somos tão arcaicos como os
humanos de antanho), nos seus sonhos, nas utopias regressivas e
progressivas e em seu fértil imaginário”. (Boff, 2009, p. 83-84). E é aí
que entra o cuidado como essência humana, É aí que somos levados

57 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


a admitir que o ser humano é fundamentalmente um ser-de-cuidado,
mais do que um ser-de-razão. Cuidado entendido como uma relação
amorosa para com cada um de nós, todos e tudo. Cuidado que abarca
a vida, o corpo, o espírito, a natureza, a saúde, a pessoa amada, a
pessoa que sofre, a casa e o espaço que nos acolhe e o tempo no
qual estamos inseridos. Sem cuidado, a vida perece.

Todas essas dimensões são, numa ponta, expressões da face humanitária


da voz e, noutra ponta, articulações do rosto do silêncio.

O silêncio des-velado pela solidariedade,


reciprocidade, com-paixão e libertação

Em Ethos mundial, um consenso mínimo entre os humanos, Boff


(2009) aborda a ética do diálogo. Aproveito para dizer que a ruptura
do silêncio, ou melhor, seu des-velamento e eloquência vêm através
da solidariedade, da reciprocidade, da com-paixão e da libertação,
com as quais Boff embasa o tema.

Solidariedade que destaca a interdependência de todos os seres, de


todos nós; nossa origem e destino comuns; as feridas comuns que
carregamos, as esperanças e utopias comuns que almejamos.

Reciprocidade que emerge da natureza comunicativa e dialogal do


ser humano; que faz surgir uma exigência primordial, a de que todos
tenham seu lugar na comunidade da comunicação, do silêncio que-
é-voz e da voz-que-é-silêncio; a de que todos caibam neste universo
do diálogo, tendo voz, podendo ser escutados, em exclusão, sem
silêncio opressor.

Com-paixão e libertação que fazem romper o silêncio dos


marginalizados e excluídos; que faz romper o silêncio dos descartáveis;
dos que vivem submersos em um mar de sofrimentos e humilhações.

58 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Uma das formas de tornar concreto o pathos é reinventar como
princípio a ética da compaixão. Reforçando o que já dissemos,
instituindo o pathos como matéria prima da existência humana.
Compartilhando nossa capacidade de sentir, de afetar e ser afetado.
Reinaugurando uma prática histórica que se faça impulso e luta de
libertação dos excluídos, usando as dimensões mesmo que limitadas
e pequenas de nossas mãos. (op. cit. p. 94-96).

Afinal, não há de ser nossa voz teórica a rompedora do silêncio dos


excluídos, mas nosso silencioso trabalho de cada dia.

Silêncio e invisibilidade

Simone de Beauvoir (in Agich, 2008, p. 108), não se referiu ao silêncio


imposto aos velhos, mas à sua invisibilidade. É que a velhice passa a
ser olhada com um olhar mais turvo do que é olhada a morte. O plano
de fundo da velhice é a morte e esta perspectiva assusta os mais
jovens. Nos velhos é vista a perspectiva de nossa própria extinção.
Os velhos devem, então, permanecer invisíveis, já que a visão de
sua velhice é a perigosa e ameaçadora ante-visão da morte. Neste
contexto, fica estabelecida a forma mais cruel da morte: a morte em
vida, a silenciosa morte social. Fica estabelecido o próprio estatuto
do mais fatal dos silêncios, o silêncio da morte. Assim, o simbólico
silêncio da morte que emana da progressiva perda das capacidades
do velho impõe-se como um corolário da invisibilidade daquele que já
não tem muito o que esperar da vida.

Paralelamente, à decadência do sentimento do tempo cronológico


sucede o sentimento da perda do espaço. O velho que sente faltar-
lhe o tempo pessoal, experimenta a ausência do lugar humano: no
trabalho, em casa, na sociedade em geral. O velho que vai sendo
empurrado para fora de sua própria história é também empurrado
para fora do seu próprio espaço. Sem sentido histórico, acaba, na
mesma proporção, perdendo seu sentido espacial.

59 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Há uma inevitável diminuição nas relações que definem seu já
pequeno mundo social, que caminha lado a lado com o sentimento
de já não ter muito tempo. Os fragmentos de passado, presente e
futuro se distorcem: o passado vai sendo sentido como uma ilusão,
o presente, como uma ameaça e o futuro, como uma dolorosa
expectação, a expectação de um fim. Onde ficam, então, os sinais
de sua identidade, se desapareceu e se tornou invisível seu lugar,
se o passado tornou-se impotente para robustecer o presente e o
futuro se esvaziou de esperança? Onde, então, sua voz há de ecoar,
se vão diminuindo os que são capazes de ouvi-la? Onde se estampa
seu rosto enrugado e sua visão deficiente se vão, também sumindo
os olhos capazes de vê-lo?

Silêncio e invisibilidade podem não significar o imediato fim da linha


de uma existência plena, útil, produtiva, mas são, sem dúvida, a
proclamação de sua fatal e lenta emergência.

O silêncio... Só, sem mais nada

Encerro com Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o livro dos


prazeres: “Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo
escuta: nenhum rumor. Nenhum galo possível. Como estar ao alcance
dessa profunda meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembrança
de palavras. Se és morte, como te abençoar?... É um silêncio (...) Inútil
querer povoá-lo (...) Ele é vazio e sem promessa (...) O silêncio é a
profunda noite secreta do mundo (...) Mas há um momento em que
do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua.
Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois
ele é o de dentro da gente(...) Pois nós não fomos feitos senão para
o pequeno silêncio, não para o silêncio astral” (...) Enfim, “às vezes no
próprio coração da palavra se reconhece o Silêncio. Os ouvidos se
assombram, o olhar se esgazeia – ei-lo”. (Lispector, 1969, p. 33 a 36).

60 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O que quero dizer é que tudo isso é a eloquência do silêncio. O
silêncio só... Sem mais nada.

Referências bibliográficas

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Bíblia Sagrada. Trad. Matos Soares, 38 ed. São Paulo: Paulinas, 1982.

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Solomon RC. Espiritualidade para céticos: paixão, verdade cósmica e racionalidade


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Rio de Janeiro: Edit. DOC, 2010.

62 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


SOLIDÃO

Fundamentando o conceito de solidão

Era uma hora qualquer na UTI de um hospital do Rio. Lá dentro,


eu alternava uma letargia vazia, sem memória ou sonho que me
alimentasse a ausência com raros lampejos de vaga consciência,
acompanhada pelo bip-bip dos monitores que vigiavam a vida. Foi
naquela espécie de limbo tão neutro que, num instante passageiro
de lucidez, ouvi, com inesperada clareza, uma voz feminina bem
fraquinha, que pedia a alguém: “me dá a mão!... me dá a mão!...”.
Logo em seguida, apaguei de novo. Hoje, percebo que aquela voz
sumida de uma moça expressava com incrível eloquência o amplo
universo significativo da solidão. (Esta é uma experiência pessoal do
José Francisco).

Na verdade, muito antes da ideia de solidão afirmada pelos


antropólogos e cientistas da alma, tocam-nos as vivências das
solidões cotidianas, iguais à da mocinha da UTI ou à do conhecido
José do poeta: “sozinho no escuro / qual bicho do mato, / sem
teogonia, / sem parede nua / para se encostar,/ sem cavalo preto /
que fuja a galope”. Um José igual a todos nós, que “com a chave na
mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, /
mas o mar secou, / quer ir para Minas, / Minas não há mais”. Restando
mesmo só a pergunta: “E agora, José?”. (Drummond, 1983).

Estas solidões – a da moça da UTI e a do José do poeta – todos


nós conhecemos e os que têm um pedaço bem maior de estrada

Texto publicado com a referência: Oliveira JFP. Solidão: fundamentando o conceito


de solidão. In: Pacheco JL, Sá JLM, Py L, Goldman SN (orgs). Tempo: rio que arrebata.
Holambra/SP: Setembro, 2005, p. 119-133.

63 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


percorrida, com suas inumeráveis curvas e atalhos, conhecem-nas e
experimentam-nas com grande intensidade.

É que cada um de nós tem seu próprio fundo do poço, túnel escuro
e vazio, que esconde lá neste fundo, muita história e tantos segredos,
muitas alegrias e tantas mágoas. Esconde nossa própria identidade,
aquilo que somos e fomos; aquilo que fomos capazes de fazer de
nós mesmos a cada passo, a cada escolha, a cada encontro, a cada
descoberta, a cada perda. Como todo o fundo de poço, entretanto, o
nosso também oculta uma água cristalina e pura, que quando alcançada
– e sempre há os momentos de alcançá-la – sacia nossa sede mais
original: a de encontrarmos um pouco de nossa verdade mais íntima.

A noção de fundo do poço fica muito próxima do conteúdo do mito


da caverna de Platão. Uma caverna que é ponto de convergência do
mundo real sentido por nossas mãos e que está sempre mudando
e do mundo ideal gravado de modo imutável na nossa mente. Uma
caverna que, ao mesmo tempo em que esconde, revela a verdade
profunda de toda realidade, numa oscilação entre a própria verdade
e as ilusões sugeridas.

Cremos que todos nós experimentamos em muitos momentos


de nossa vida esta ida-e-vinda à procura de nossa identidade; na
incessante proposta que o filósofo Sócrates colocou como o mais
genuíno de nossos compromissos: homem, conhece-te a ti mesmo!

Esta é a faceta mais interessante da solidão. Mais interessante porque


a mais positiva. Quando a solidão se constitui em um espaço de
revelação, um momento de busca de nós mesmos, uma oportunidade,
um caminho de encontro conosco mesmos. Um mergulho em nosso
interior, do qual retornamos mais conciliados com a nossa realidade,
mais sossegados em relação a nossos segredos íntimos, e nos pomos
bem mais resolvidos na confrontação com o mundo que nos cerca.

Sim, esta é a dimensão positiva da solidão, condição básica de


nossa existência, que faz com que nos desviemos da preocupação
estressante com o lado-de-fora, com o mundo que nos envolve,

64 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


provoca e oprime, apesar de nos atrair e fascinar, para a preocupação
com o lado-de-dentro de nós mesmos. É que nos gastamos em
buscar saber das coisas que nos rodeiam e, de repente, nos vemos
confrontados com o desafio de nosso próprio mundo interior. Os
pensadores dizem que este desvio é uma fundamental passagem
de um estado de ciência para um estado de con-sciência, sinal
manifestador de nossa maturidade existencial.

Não é à toa que os dicionários referem solidão também como ermo,


deserto. Realmente, ainda neste plano, nossa solidão pode ser nossa
experiência de deserto, uma experiência de silêncio e reflexão,
que nos tempera para a caminhada seguinte e dá a ela um sentido
renovado. Torna-a não uma fatalidade irretocável, mas um amplo e
variado horizonte de possibilidades. Traz o futuro para o âmbito do
momento presente, este momento de deserto, e trata dele com uma
espécie de saudade prévia.

É nesta dimensão de solidão que podemos ouvir nossa voz interior.


Lembro que Platão em alguns de seus “Diálogos” e Xenofonte em
seus “Ditos memoráveis”, falam de um certo “demônio” interior, o
demônio socrático, não como uma entidade maligna, mas como uma
voz que ressoa lá no fundo da gente, que sinaliza e alerta, provoca e
orienta, sendo, a um tempo, graça e provocação.

Assim, Antoine de Saint-Exupéry, na antológica alegoria do “Pequeno


Príncipe”, experimentando a erma solidão do deserto, põe-se a
repensar a vida, constatando que o essencial é invisível aos olhos
rotineiros e viciados do cotidiano. “- O deserto é belo, acrescentou...
E era verdade. Eu sempre amei o deserto. A gente se senta numa
duna de areia. Não vê nada. Não escuta nada. E, no entanto, no
silêncio, alguma coisa irradia... O que torna belo o deserto, disse o
principezinho, é que ele esconde um poço nalgum lugar (...) O que
faz a sua beleza é invisível”.

Esta postura é muito semelhante à do Robson Crusoé, de Daniel


Defoe: “Sozinho, abandonado numa ilha deserta, desconhecida e fora
das rotas de comércio, (eu) não alimentava a menor perspectiva de

65 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


sair dali com vida”(...) “Mas havia aprendido a gostar da vida que
levava, valorizando cada nova conquista ou sucesso. Na verdade, (eu)
tinha descoberto um outro mundo. E encontrado dentro de mim um
renovado homem”.

Por outro lado, pensamos em uma outra dimensão da solidão, que


é talvez a mais cruelmente experimentada e vivida no processo de
envelhecimento. A dimensão do desamparo, da exclusão. Aquela com
a qual iniciamos este texto, a da mocinha da UTI, ou a do José sozinho
no escuro. Aquela que nos faz pedir, com pouca esperança, que nos
deem a mão. Ou faz manter no ar a triste pergunta, e agora, José?
Aquela que não gera impulso algum de libertação, nem promove
nenhum encontro e faz a pessoa se constatar ausente do seio familiar,
fora do ninho da sociedade. Aquela que expressa os vestígios mais
frágeis de nossa humanidade e que só se deixa mostrar através dos
fragmentos de nosso sofrimento.

É exatamente a visão de solidão vinculada ao sentimento de dolorosa e


inútil espera que Chico Buarque de Hollanda retrata em Minha história,
descrevendo o desamparo da mulher abandonada: “Assim como ele
veio, partiu não se sabe pra onde / e deixou minha mãe com o olhar
cada dia mais longe. / Esperando parada, pregada , na pedra do porto,
/ com seu único e velho vestido cada dia mais curto”... Uma dolorosa e
inútil espera manifestada em um vago olhar cada dia mais longe.

Sem respaldo filosófico que lhe dê sentido, esta solidão se constitui


na razão primeira das queixas e da desolação dos idosos. Volto a citar
alguns pedaços de Robson Crusoé, perdido na ilha perdida: “Andei sem
rumo pela costa, pensando nos meus amigos, todos desaparecidos,
com certeza mortos” (...) “Eu estava molhado, sem água e sem comida.
Nos bolsos, apenas uma faca, um cachimbo e um pouco de tabaco.
A noite avizinhava-se” (...) “Nessas ocasiões, recriminava e maldizia a
Deus. Como podia Ele arruinar suas criaturas de modo tão mesquinho,
tornando-as miseráveis, deixando-as ao completo abandono?”.

Não estamos falando, pois, de uma solidão psicológica ou que


signifique um estado de espírito passageiro, mas de um padecimento

66 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


que é experimentado com dor. Uma solidão que se insere no âmbito
da desesperança e pode, perigosamente, escorregar pelos limites do
desespero. Uma solidão que se apodera do idoso quando ele não tem
mais a quem ou a que se apegar. Quando desaparecem os pontos de
referência. Quando não há sinais que mostrem os caminhos. Quando
não há mais muita coisa a esperar. Quando fica difícil mover-se e
orientar-se entre as coisas. Quando os ombros, já enfraquecidos
pela idade, não conseguem suportar o peso do abandono, da terrível
responsabilidade de escolher e optar, sem que os olhos alcancem um
horizonte de possibilidades desejáveis. E, então, o idoso abdica de
optar e vai removendo de seu horizonte seus desejos mais simples.

A solidão que passa a morar com ele, como companheira de todos


os momentos, vai perdendo toda a força crítica e vai tirando dele a
condição básica de reagir.

Paralelamente, é oportuno notar, sob outro prisma, que a solidão


se faz também fuga da algazarra, da confusão do mundo. Tem-se,
deste modo, a solidão como defesa contra a ansiedade, que vem
acompanhada da apatia e da falta de emoções. É que a sensação
de isolamento ocorre justamente quando a pessoa se sente vazia
e amedrontada. Ela deseja, então, sentir-se protegida na multidão.
Usando uma imagem de Rollo May (1973), em O homem à procura de
si mesmo, diríamos que é um sentir-se protegido, da mesma forma
que “um animal selvagem se resguarda vivendo em bandos”.

“Não há dúvida de que em todas as épocas a solidão foi temida e as


pessoas a ela procuraram fugir”. É o mesmo Rollo May quem lembra
que “Pascal, no século XVII, observando os esforços que todos faziam
para divertir-se, opinou que a finalidade das distrações era evitar que
as pessoas pensassem em si mesmas. Kierkegaard, há (mais) de cem
anos passados, escreveu que em sua época as pessoas faziam tudo
o que era possível em matéria de empreendimentos atordoantes
para afastar a ideia de solidão, assim como nas florestas da América
mantinham-se à distância os animais selvagens por meio de tochas
acesas, gritos e toques de chocalhos”.

67 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Entretanto, a solidão-desamparo-abandono não há de ser enfrentada
assim. A solidão que aflige o idoso, que fá-lo renunciar a sentir e a
querer não é apenas fruto da futilidade do mundo, que, sem dúvida,
também provoca um vazio interior. É bem mais perversa, pois gera a
impotência, entendida como bloqueio das mais preciosas qualidades
da pessoa humana.

Cremos dever apontar aqui, em relação a esta solidão-desamparo-


abandono, uma das mais dramáticas queixas da história, que vem
registrada no Evangelho segundo Matheus. É a queixa de Jesus,
homem-de-Nazaré, no momento em que tudo estava para ser
consumado. Assumindo radicalmente o máximo de humanidade
possível, ele bradou: “Pai, pai, por que tu me abandonaste?” É certo que
não consideramos esta queixa de Cristo do ponto de vista teológico
(ou da fé), quando ela se faz formidável alicerce para toda a queixa.
Consideramo-la do ponto de vista antropológico, como profunda
experiência de existência, quando um homem, à beira da morte,
assume em extremo sua radical humanidade. Aí, a solidão-desamparo-
abandono adquire um sentido de intensa e definitiva dignidade.

Pois bem, preocupamo-nos, até aqui, em expor a solidão em suas


diversas dimensões ou acepções. Procuramos considerá-la como
condição de descoberta, de encontro; como espaço fecundo, uma
espécie de choco, que faz gerar autoconhecimento, realização,
vida. Ou, de forma mais singela, como um deserto lindo, muito
lindo, exatamente porque esconde um poço em algum lugar.
É a solidão de que fala a antropologia filosófica. A solidão que
só é ponto de chegada e permanência, quando se faz ponto de
partida. A solidão que coloca cada um de nós em confrontação
corajosa conosco mesmos, fazendo-nos senhores de nós mesmo,
possuidores de nós mesmos. A solidão que nos convida e provoca
a pôr entre parênteses a confusão atordoante do mundo que nos
envolve. A solidão que nos possibilita uma radical experiência de
silêncio, talvez a mais original experiência de silêncio de nossa
trajetória, aquela que nos permite ouvir, com surpreendente
clareza, para aquém da barulheira do mundo, os segredos de nós
mesmos, os segredos das coisas e das gentes.

68 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


E, paralelamente, uma outra dimensão de solidão. Aquela mais cruel
e estéril, que denota apenas abandono e desamparo, que não gera
impulso algum de libertação, nem é, como afirmava Sartre, expressão
de nossa admirável condenação à liberdade. Ao contrário, é uma
solidão que – como vimos – manifesta a exclusão, a terrível exclusão
do seio da sociedade, a triste exclusão do ninho familiar. Uma solidão
que se constitui, repetimos, na razão primeira das queixas e da
desolação dos idosos.

Ou, ainda, a solidão tida como válvula de escape de uma realidade


que nos atordoa e oprime e da qual queremos fugir. Uma solidão,
enfim, que, paradoxalmente, faz com que nos escondamos de nós
mesmos no alarido e anonimato da multidão.

Como quer que seja, buscamos considerar, nesta fundamentação, os


diversos fatores que podem levar não apenas o idoso, mas o homem
em geral, aos graus mais variados e intensos da solidão; desse sentir-
se só, largado a si mesmo e sem rumo prefixado para trilhar. De
toda a forma, não quisemos demonstrar que a solidão signifique um
estado que se deva desejar ou procurar. Acompanho Raymundo E.
do Carmo (1975), em Antropologia filosófica geral: “Se privilegiamos
de algum modo a solidão é tão somente em virtude de sua força
questionadora; tão só na medida em que devemos reconhecer nela a
mola propulsora do pensamento antropológico. A solidão não poderá
nunca constituir um estado definitivo. Como dizia M. Buber, o homem
deve triunfar da solidão sem perder sua força interrogativa”.

Concluímos esta parte de fundamentação da solidão com as palavras


de Arcângelo Buzzi (1991), em A existência humana no mundo,
refletindo que “na solidão, a tarefa mais importante consiste em
lançar-nos para a existência-no-mundo, para o encontro com o que
está junto a nós, próximo, mas sempre tão distante”.

Sim, a solidão adquire um sentido maior quando se faz impulso para


o encontro conosco mesmos e como mundo que nos envolve.

69 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Referências bibliográficas

Andrade CD. José. In: Nova reunião. vol. 1. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. p.101-103.

Buber M. Le probléme de l’homme. Paris: Aubier, 1962.

Buzzi AR. Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem - O estudo da


filosofia. Petrópolis: Vozes, 1991.

Carmo RE. Antropologia filosófica geral. 2 ed. Belo Horizonte: o Lutador, 1975.

May R. O homem à procura de si mesmo, 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

70 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A PROPÓSITO DA
DIGNIDADE HUMANA

Na verdade, dignidade é uma categoria que só se aplica ao homem,


pois só ele é e tem um fim em si mesmo. Apenas ele é valor absoluto
opondo-se às coisas materiais, que são apenas meio e têm valor
relativo, podendo ser substituídas por algo equivalente. Dignidade
humana, sendo também um valor absoluto, mostra que o homem não
tem preço. Segundo Kant, o homem é superior a qualquer preço, vale
integralmente tanto quanto tem de humanidade em sua identidade
de pessoa. A noção de dignidade humana emerge, pois, da própria
autonomia do homem. É ele o único ser capaz de se escolher a si
mesmo, independente de qualquer determinação externa. Aí reside
a pedra-de-toque, o eixo, de sua dignidade.

Daí se conclui que dignidade significa tudo o que manifesta e sustenta


a humanidade do homem. Nesta linha, podemos dizer que dignidade
é o espaço mais sagrado de sua natureza humana, ou melhor, de sua
condição humana. Agredir este espaço em qualquer uma de suas
dimensões é profaná-lo; é aviltar o homem em sua totalidade.

Em suma, dignidade é tudo o que faz do homem ele mesmo: sua


liberdade, sua autonomia, sua consciência moral, sua faculdade de
escolha, sua capacidade de decisão, sua possibilidade de construir
um sentido para sua vida, sua adesão aos deveres que decorrem
de sua liberdade e, enfim, a garantia que lhe é devida em relação a
seus direitos fundamentais – o de se alimentar, o de habitar, o de se

Este texto é a transcrição da fala do autor, na sessão sobre a Dignidade Humana,


do Seminário de Tanatologia da Comissão Permanente de Cuidados Paliativos
(CPCP) da SBGG, realizada na sede da SBGG-RJ, em 12/03/2011, arquivado no
acervo da CPCP.

71 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


educar e poder acessar a cultura de seu meio, o de trabalhar para
sustentar-se a si e aos seus, o de ser atendido em suas enfermidades,
amparado em sua velhice e acompanhado em sua morte.

A dignidade não precisa, então, ser definida categoricamente,


pois é reconhecida por intuição no íntimo de cada um. Negar
este reconhecimento fundamental significa ficar ameaçado a uma
das mais radicais alienações. Não precisa, assim, a dignidade ser
demonstrada por argumentos. Tanto que os escolásticos traduziram
o termo “dignitas” como “axioma”, com todo o sentido de evidência
original que axioma tem. Desse modo, repetimos, dignidade é um
valor absoluto. Se aproximarmos dignidade de axioma, veremos
que descartes julgou-a e os aspectos que a compõem como se
constituindo verdades eternas. Leibniz a considerou como princípio
inato, verdade evidente por si mesma. as certezas que a dignidade-
axioma traz em si sempre foram proclamadas como imediatas. Bacon
desvia-se um pouco, acreditando que se podia chegar a tais certezas
por indução e dedução. Como quer que seja, temos consciência de
que o entendimento da dignidade humana requer não só inteligência
e profundidade, mas, sobretudo coragem e autenticidade.

Concretamente, preservar a dignidade do doente, principalmente


do doente terminal, significa preservar o valor da vida, sinal da
humanidade, que pulsa em sua pessoa, incrementando seu sentimento
de esperança, coparticipando de suas emoções, dividindo com ele, o
quanto possível, as decisões que vão sendo tomadas a seu respeito,
buscando diminuir sua solidão, aliviando suas dores e sofrimentos
da forma mais competente e responsável possível, respeitando sua
identidade histórica, social e pessoal, outorgando a ele o protagonismo
que lhe é devido nessa dramática curva de sua existência, buscando
o equilíbrio inteligente entre as providências curativas e os cuidados
paliativos. Em termos mais largos, preservar a dignidade do doente
é lutar pela “dignidade” (entre aspas) – pela humanização – do meio
social, do sistema político aos

Desse modo, a dignidade humana está também na raiz de toda a


ética. É o critério da harmonia da pessoa e da sociedade. Pois é quase

72 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


impossível para uma pessoa já fragilizada física e socialmente conservar
sua dignidade íntegra em condições indignas porque desumanas, numa
sociedade indigna porque desumana.

Como riqueza individual, a dignidade humana é de tal forma preciosa


e nobre que a dignidade de cada um só é limitada pela dignidade do
outro. Do mesmo modo que eu não sou digno só para mim mesmo,
mas reconhecendo-me digno, eu também me ponho digno em
relação ao outro com o qual eu me defronto.

Parafraseando Hannah Arendt, podemos afirmar que a dignidade


humana não é medida pela força com que a paixão afeta a alma, mas
antes pelo tanto que a paixão a ela transmite. Pensar a dignidade
humana que emerge da profundidade de nossa consciência não
se constitui em uma espécie de diálogo silencioso entre nós e nós
mesmos, mas em um diálogo antecipado com os outros e com a
situação que nos envolve. Nem se resume a dignidade a sentimentos
filantrópicos, de um apego fraternal a outros seres humanos, apego
este que brota da aversão ao mundo onde os homens são tratados
inumanamente. A noção que temos de dignidade humana não
prescinde, pois, de uma relação real com o mundo. Ao contrário, a
ausência de mundaneidade acaba por descambar quase sempre em
uma disfarçada forma de barbarismo.

Voltando a Arendt, no âmbito da dignidade, não podemos dominar o


passado nem desfazê-lo, mas podemos nos reconciliar com ele.

Sob o signo da dignidade, só humanizamos o que ocorre no mundo e


em nós mesmos, ao falar sobre o que nos aflige. É no curso desta fala,
sempre um diálogo com os que nos são próximos, que aprendemos
a ser humanos.

Paralelamente, mesmo tendo consciência de que nossos


comportamentos são limitados por nossa fragilidade humana, não
podemos concordar que haja uma gradação para a dignidade como se
pode admitir no caso da virtude. Uma atitude ou um comportamento
indigno, que fere e profana os fundamentais princípios e direitos da

73 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


pessoa, negam a humanidade de quem os comete. Nessa mesma
linha, uma sociedade indigna, no que tem de indigna, revela seus
traços e suas manchas de barbárie e desumanidade.

Assim é a dignidade, cujo mais alto predicativo que a ela se liga é ser
humana. E assim somos nós diante da dignidade: antes de sermos
dignos de qualquer coisa, somos dignos de nós mesmos e, sendo
dignos de nós mesmos, somos dignos de toda a humanidade ou em
relação a toda a humanidade da qual fazemos parte.

Para o Dr. Daniel Azevedo: uma palavra sobre a sua apresentação da cena
da morte de um paciente

Não é o corpo, com suas vicissitudes e fragilidades, que fundamenta


ou diminui a dignidade humana. Mesmo que dele provenha um odor
fétido, que provoca náusea, preenchendo todo o ambiente.

Quanta dignidade transparece no gesto da acompanhante debruçada


sobre as pernas do paciente e da esposa deitada afetuosamente a
seu lado!

A espiritualidade não se confunde com religião; é o espaço do sentido


da vida (e da morte) e habita lá na profundidade da alma de cada um.
Na maioria das vezes sua linguagem é o silêncio.

A verdade é que o doente estava morrendo.

O que é a morte diante da dignidade da vida?

Façamos um parêntese:

Platão julgava que filosofar é aprender a morrer e que a crença na


imortalidade da alma é um belo risco a ser corrido.

74 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


E a dignidade humana está também em assumir os riscos de suas
convicções. Para o homem que chega à vida, vindo do aconchego do
útero materno, é digno também quando se devolve ao “aconchego”
da morte, de uma morte plena e dignamente vivida.

Freud afirmava que, no fundo, em seu inconsciente, cada um está


persuadido de sua própria imortalidade.

Burdin crê que existe um laço estreito (e muito digno) entre a maneira
de olhar a morte e a maneira como cada um vive.

Assumir com dignidade nossa relação com a morte ajusta


profundamente as relações que a vida nos impõe para conosco
mesmos, para com os outros, para com a realidade que nos cerca,
para com a história e para com o universo.

O advento dos cuidados paliativos, com seus meios para dominar


a dor, nos mostra que os instrumentos da ciência e da técnica
provocaram um recuo no império da morte. Reapareceu o sonho de
imortalidade, ou melhor: é possível reinventá-lo.

Heidegger, em sua filosofia existencial, nos mostra que a morte é o


sinal da finitude e da individualidade que o homem precisa assumir
para escapar da indigna alienação de si mesmo e da banalidade do
cotidiano.

Fechando o parêntese.

A limitação de nossa existência pela morte é absolutamente decisiva


para a nossa compreensão e apreciação da vida.

Aí está também a face translúcida da dignidade humana.

Voltando ao relato do Dr. Daniel: a cena da morte, com suas frustrações


(e náuseas), é o retrato e a consciência de que somos finitos e que a

75 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


ciência nem sempre dá conta de todas as nossas necessidades.

A revolta do Dr. Daniel reflete sua justa angústia de não ter podido
participar do “pedaço de protagonismo” que lhe cabia na “história”.
Revolta por não ter podido outorgar uma tonalidade diferente
àquele desfecho.

Quanta dignidade! Sagrado seja o profissional que se revolta


com sua insuficiência. Pois o homem não é um ser originalmente
conformado. Ele é permanentemente insatisfeito. É tal insatisfação
que o impulsiona à busca de horizontes sempre mais distantes.

Quantas providências ficaram abertas, algumas até tangenciando a


ética! O “abandono” da oncologista; a responsabilidade pelo atestado
de óbito; a afirmação da oncologista à família de que “não havia o que
fazer”; a indicação de uma internação hospitalar.

Tudo isso nos leva a refletir que a dignidade não significa a


posse segura da verdade, mas sua incansável busca. E, até seus
intermitentes encontros.

O coração humano, então, “vive” inquieto. E tal inquietação jamais há


de ser o reflexo da nulidade humana. Antes, como queria o africano,
Agostinho de Hipona, é a mais evidente transparência da dignidade
do homem; daquilo que faz cada um digno de si mesmo; digno do
outro com o qual convive; digno da humanidade da qual faz parte.
E, como apresentamos na 1ª parte, sob o signo da dignidade, só
humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos, quando
falamos sobre o que nos aflige.

É, afinal, no curso dessa fala, sempre um diálogo, que aprendemos a


ser plenamente humanos.

76 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Recomendação de leitura

Oliveira JFP, Py L. O homem, a velhice e seu apetite pela vida. In:


Santos SS, Carlos SA (orgs). Envelhecimento com apetite pela vida:
interlocuções psicossociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 17-30.

77 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A FINITUDE

“A questão da finitude atinge o homem como peregrino


da existência, como buscador de seu próprio sentido no
âmago mais profundo de si mesmo, e aí, nesta profundidade
original, buscador do sentido do outro, buscador do sentido
de todo o mundo que o cerca.”
FINITUDE NA
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

A morte é um engano para as famílias;


para o morto, tudo continua...
(J-P. Sartre, O diabo e o bom Deus,
fala de Heinrich - IV cena do 3º ato)

O ponto de partida que se faz necessário

Há bastante tempo, me chamou a atenção um antigo livro de um


venerando teólogo (Estevão Bettencourt) sobre o Novo Testamento,
A vida que começa com a morte. Este título me acompanhou como
um referencial pela vida a fora. Abro agora um parêntese. Venho
de uma família grande, patriarcal no jeito, portuguesa no afeto e na
sagacidade da pouca instrução dos velhos, religiosa nas entranhas,
que viveu, floresceu, brigou, fracassou, amou, denunciou, proclamou,
me ensinou a chorar na alegria e na tristeza, caminhou entre o pecado
e a graça, sob o testemunho de Deus e de quase todos os santos,
apelados nos sucessos sem charme e nas frustrações desanimadoras.
E assim fui vivendo-vendo aos poucos eles/elas morrendo, findando,

Texto publicado com a referência: Oliveira, JF. Finitude na experiência religiosa. In:
Py, L. (org.). Finitude: uma proposta de reflexão e prática em Gerontologia. Rio de
Janeiro: Nau, 1999, p. 45-54.

79 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


sem muito respeito à ordem de precedência, os velhos, os não muito
velhos, os apenas maduros, os ainda jovens, nas camas dos quartos
das casas, na Santa Casa, nas UTIs, na violência da repressão, no
sítio das nossas crianças, de morte matada ou morrida, ungidos e
sacramentados, mas sempre, sempre velados na dolorosa saudade,
- a dor do horto das oliveiras -, na paz do Senhor, na pouca herança
material deixada, porém no mais digno e irretocável descanso que
se confirmava eterno pelas ave-marias e a absolvição de erros que
já não importavam. Na esperança, na sabença profunda de que as
vidas cristalizadas na morte viravam plenitude.

Assim, fui experimentando devagar, mas em cadência constante, o que


é finitude, a finitude concreta de gente querida que foi passando, mas
que não consegui jamais crê-las findas na minha história. Acabadas, sim,
mas como uma obra-de-mão, em absoluta depuração, toda uma força
voltando a ser origem, os seres repletos de suas próprias substâncias,
(como poetou Pablo Neruda). E toda a saudade, as lembranças, os
remorsos foram se desviando para o lado-de-lá, onde já não há dor
e onde todas as lágrimas são enxugadas. Uma reconversão à vida. A
vida que começa com a morte. Fecho o parêntese.

É que eu não estava conseguindo começar a escrever sem me pôr


transitando as fronteiras da morte, a mais radical finitude, através
de pedaços-idos-de-mim-mesmo, nessa genuína visão de família
viajando pelos nossos corpos, em tempos mais longínquos e mais
próximos. Agora, sim. Vamos lá.

A questão da finitude entre


a antropologia e o cristianismo

A questão da finitude é, antes de tudo, uma questão antropológica.


Antecede a esfera das ciências naturais ou cosmológicas em si
mesmas. Atinge o homem como peregrino da existência, como

80 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


buscador de seu próprio sentido no âmago mais profundo de si
mesmo, e aí, nesta profundidade original, buscador do sentido do outro,
buscador do sentido de todo o mundo que o cerca. E é também no
plano da questão antropológica que se articula a experiência religiosa.

Não se pode começar a falar fundamentalmente em finitude sem ser a


partir do homem. Do homem em sua solidão mais eloquente, em sua força
interrogativa mais dinâmica. É que a finitude se põe existencialmente
como o fundamento de toda a inquietação humana. É a fonte de suas
mais radicais interrogações. E é aí que entra a convocação antropológica
e todo o caráter dramático da experiência religiosa.

Quero explicitar que o homem de minha reflexão não é o homem


apolíneo da cosmologia clássica, o homem tomado como caso, o
homem não-problemático, o homem que fala de si em terceira pessoa
como se falasse de um ele. Não! Refiro-me ao homo tragicus, dionisíaco,
que ao se debater em sua subjetividade, aprofunda-se em sua solidão,
insere-se em sua totalidade dramática, para, a partir daí, projetar-se,
transcender para mais.

Se não é então possível refletir a finitude sem refletir o homem da


antropologia, o homo antropologicus, não dá também para separar
a experiência religiosa - principalmente, a cristã - da antropologia.
O Deus dos nossos pais, o Deus de Abraão e dos patriarcas, o Deus
de Moisés e dos profetas, o Deus do mais genuíno cristianismo é
o Deus-do-homem, ou o Deus-para-o-homem, ou o Deus-com-o-
homem. É o Deus que se revela infinito na e pela finitude humana. É
o Deus que instaura uma aliança como quem inaugura um diálogo
com o homem. O Deus que empreende uma caminhada junto com o
homem, Ele infinito, este finito. O Deus que aceita as perguntas dos
profetas e aquelas de cada um de nós. O Deus que faz História com
o seu povo e põe suas respostas no transcorrer desta História. É o
Deus, que, por sua vez, espera respostas vitais do homem peregrino.
É o Deus que desafia e se deixa desafiar.

A visão de finitude da experiência religiosa será sempre a visão


de uma experiência intensamente pessoal, porque não se faz,

81 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


epistemologicamente, pelo critério da razão eficiente, mas pelo critério
audacioso da fé, que se articula entre a primeira e a segunda pessoa,
entre o eu e o tu, que, por sinal, embasou todo o pensamento do
inesquecível filósofo judeu Martin Buber. O Deus bíblico e cotidiano dos
nossos pais é o Deus que se intercala entre as nossas frustrações e as
nossas esperanças, entre as topias e as utopias, entre o escândalo da
morte na cruz e a visão perene e infinitamente transparente do Reino.

Por isso me impressiona o filósofo da metade do século IV d.C.,


Agostinho de Hipona. Foi o primeiro a escrever aquela antropologia
por que tanto esperava a História da Filosofia. Uma antropologia
escrita na primeira pessoa. Ele percorreu um itinerário novo: seu
movimento espiritual partiu de dentro, foi para aí que concentrou o
lado de fora, e daí dirigiu-se para cima.

Frustrado pela insatisfação dos gozos experimentados em sua ávida


e turbulenta juventude, voltou-se para o seu íntimo. Seu pensamento
filosófico central foi um desdobramento de seu eu confessional. Se era
possível encontrar uma resposta para o problema do homem, que ele
nucleou no problema de uma felicidade que superasse a fugacidade
das experiências vividas, uma felicidade não-finita, mas inacabável,
inesgotável; se era possível - retomo - encontrar uma resposta, foi
no âmago do próprio homem, em sua interioridade mais funda, que
Agostinho esteve convencido de poder encontrá-la.

Destaco Agostinho, porque, por tudo o que apresentou, por tudo


o que foi, ele só pode ser compreendido como um pensador que
se recusou a pensar fora das perspectivas da fé - como observa
Raymundo E. do Carmo, em sua Antropologia filosófica geral. É que
a fé (como gostava de lembrar o teólogo Y. Congar) não é uma meta
para onde se possa ir, ela toma a gente. E Agostinho foi um filósofo
que buscou tirar todas as conclusões de um pensamento orientado
pela fé. E é nesse contexto que remeto seu pensamento à questão
da finitude. Ele converteu-se ao cristianismo vindo do maniqueísmo.
E foi daí que brotou sua concepção de mundo, “como um mundo
essencialmente dividido, dilacerado, disputado por forças opostas
igualmente poderosas”. (Op. cit. p. 42)

82 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Ainda com o autor acima citado, vejo Agostinho considerando
o mundo como um campo de batalha de um confronto infinito,
no qual as vitórias são sempre provisórias. E o homem não entra
aí como um mero espectador. Não! Ele participa desta batalha e
“nela se vê envolvido até a medula” (ibidem), tanto ele mesmo, ser
dilacerado, dividido, insaciado com a finitude de suas experiências,
quanto como parte do próprio universo. O que quer dizer que ele,
como ninguém, tinha experimentado em sua própria carne a divisão
do homem: finitude versus infinitude. “De um lado, sua aspiração
infinita ao Absoluto, à Felicidade; de outro, sua radical e misteriosa
incapacidade de os conseguir”. (Ibidem). Uma divisão interna que é,
de certa forma, a de cada um de nós.

A finitude do corpo e
a consciência enquanto liberdade

Os escritos religiosos antigos punham o corpo entre a experiência


de prazer e de dor. E a Idade Média se encarregou de cobrir o
corpo, escondê-lo, reduzi-lo a fonte e ameaça de concupiscência e
de pecado. Sinal de corrupção, o corpo acabava sendo objeto de
mortificação para abafar os desejos que dele emanam. Memória do
primeiro barro, do qual foi plasmado, o corpo servia sobretudo para
manifestar ao homem a realidade de sua finitude no pó. Memento,
homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris: lembra-te, homem, que
és pó e em pó te hás de tornar. (Liturgia católica, com base no livro
do Gênesis 3,19).

Entretanto, exatamente porque manifestação da finitude do homem,


o corpo é também desejo. Desejo, enquanto é sintoma de ausência,
de privação e assim, por ele, o homem se expressa como alguém
não-completo, não-definitivo; expressa-se em sua inacababilidade,
em sua insatisfação, em sua inquietação fundamentais. Freud viu o
desejo como imanente à condição humana, em oposição ao valor que

83 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


lhe seria transcendente. É o desejo, expresso no corpo, que procura
o prazer, enquanto outro corpo, o social, proclama a ordem, (assim
expõe Rubem Alves, em O que é religião?). Sim, sintoma de privação,
de incompletude, de in-definido, o corpo é desejo e Feuerbach diria
que é justamente aí que se encontra a essência do que somos: somos
o desejo que não pode florescer.

Noutras palavras, fonte de desejo, de procura de superação da


finitude, o corpo alcança e abarca a realidade. É que ele é o anúncio
de que o homem vive na esperança de que a realidade se harmonize
com o desejo. Sem dúvida, é pelo corpo que o homem, enquanto
deseja, afirma todo um universo simbólico. E, em troca, esse universo
se oferece ao desejo humano e “proclama que toda a realidade é
portadora de sentido humano e invoca o cosmos inteiro para significar
a validade da existência humana” (L.Berger, op. cit.. p. 31).

Sem colocar propriamente a questão da finitude, Sartre não julgava


possível ver na consciência algo distinto do corpo. Para ele, o corpo
não é algo que apenas se justaponha à consciência. O que faria,
noutro contexto, o apóstolo Paulo afirmar aos Gálatas que trazia em
seu corpo as marcas, as cicatrizes das feridas de Cristo (Gál. 6,17), a
manifestação, a consciência da Paixão do Senhor, da própria passio,
(com toda a propriedade, a profundidade, a tragicidade do patos
grego). E, como a consciência é estruturalmente intencional, ela se
abre à relação com o mundo. É o corpo exprimindo a inserção no
mundo, característica maior da existência humana. E mais ainda:
trata-se do corpo como a condição da própria liberdade. A própria
condição de escolha. E, por sua vez, como toda escolha pressupõe a
contrapartida da entrega, assume um sentido de profunda dignidade
e da mais radical liberdade a frase de Cristo, à mesa, com seus doze
apóstolos, celebrando a Páscoa, a mais genuína das Passagens; com
o pão na mão e a angústia no semblante, disse: isto é o meu corpo
(Mc. 14,22). O Corpo como presença e como memória. O Corpo
- numa ideia tão a gosto de Sartre - como consciência enquanto
liberdade. Assim, o cristão vivencia a Eucaristia: o Corpo de Cristo,
presença e memória, totalidade, prenúncio de um fim, anúncio e
proclamação de uma nova plenitude... já acontecendo. Na dimensão

84 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


dessa consciência, o cristão crê na ressurreição da carne, crê na
ressurreição do corpo.

Leonardo Boff medita em Vida para além da morte, que nesta cada
um ganhará o corpo que merece; ele será “a perfeita expressão
da interioridade humana, sem as estreitezas que envolvem nosso
presente corpo carnal”, sinais de finitude. (Op. cit. p.43).

O cristão crê na ressurreição do corpo. A ressurreição não apenas


como plenificação de uma nova vida, mas como glorificação do corpo.
O corpo transfigurado, plenificação na infinitude; feito totalidade de
sua própria expressão como comunhão, presença e relacionamento
com todo o universo. (Ibidem). O homem finito é o homo absconditus.
Mas no término da vida terrestre, ele deixa para trás um cadáver. “É
como o casulo que possibilitou o emergir radiante da crisálida e da
borboleta, agora livre no horizonte infinito de Deus. (...). O fim dos
caminhos de Deus é a carne jovem em comunhão com Ele, com os
outros, com todo o cosmos”. (Op. cit. p. 44).

A finitude entre o definitivo e o fazer-se;


entre o passado, o presente e o futuro

Enquanto a experiência religiosa tradicional insiste em reduzir a


complexidade humana à dualidade corpo-alma, aquele absolutamente
finito, esta aberta ao infinito, o existencialismo resgata a dramaticidade
do homem. A vivência cristã original oferece, também, uma nova
visão inserida no contexto do drama da existência humana: retoma,
assim, a questão do finito como potência continuada. Então, também
na experiência cristã mais genuína o definido, o definitivo, entendido
como natureza humana essencial dá vez ao tornar-se, recuperando
o fieri, o fazer-se. Nessa linha, Sartre afirma que o homem não é, a
priori, nem isso nem aquilo; ele é radical liberdade; ele é o que se fizer
de si mesmo. Como ser-para-si define-se como ação. O homem se

85 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


obriga a fazer-se ao invés de simplesmente ser. O-que-se-fizer-de-si-
mesmo não é uma opção romântica, é uma condenação à liberdade.
Só que, para Sartre, a liberdade provém do nada. Não havendo
essência alguma precedendo a existência, a vida não tem sentido
algum antes e independentemente do fato de o homem viver. E o
valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo.

Superando a bipolaridade essência versus existência, o definido


versus o fazer-se, Sartre instaura não propriamente uma oposição,
mas uma tensão entre o fenômeno de ser e a consciência de ser - o
homem-ser-em-si e o homem-ser-para-si. E o tempo é a expressão
dessa mistura. O tempo integra essas duas dimensões. O passado,
na radicalidade existencialista, não existe, a não ser enquanto ligado
ao presente. Todo homem pode dizer: eu sou o meu passado e no
momento de minha morte não serei mais do que meu passado, que
agora é meu presente; Assim, passado para Sartre é a marca do em-
si. Já o futuro é a manifestação do para-si. E o homem, enquanto ser
para o futuro, é espontaneidade criadora.

O religioso, por outro lado, integra a noção do abandono a si mesmo


à noção da transcendência da entrega. Em Cristo, nos momentos
finais de sua agonia, as duas dimensões aparecem: Pai, por que
me abandonaste?... e nas tuas mãos eu entrego o meu espírito.
(Mt. 27,46 e Lc. 23,46). Para Cristo, a morte é uma expressão de-
finidora: consumatum est! (Jo. 19, 30) disse Ele na cruz; (tudo está
acabado, definido, definitivo). E nossa imaginação poderia continuar
ouvindo: agora, Eu sou o meu passado e este passado é o meu
presente. O universal e perene presente. Consumatum est! Deste
ser-em-si somente se pode dizer que, tendo sido Ele, é aquilo que
é. É fenômeno. Entretanto, como consciência, Ele é como que uma
fissura na esfera radical de subjetividade: ainda hoje estarás comigo
no Paraíso. (...) Eu estarei convosco até a consumação do tempo. (Lc.
23, 43 e Mt. 28, 20).

Creio que se pode dizer que o existencialismo acabou por emprestar


à vivência religiosa uma dramaticidade que não a deixa aquietar-
se. É assim que o cristão entende o abandono que uma existência

86 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


autêntica não deixa de impor. Mas, sem o desespero sartriano, pois,
para Sartre, o nada é a fonte de todos os valores. Para o cristão,
entretanto, ao invés do nada, há uma base de gratuidade. Há a
graça. Georges Bernanos, no final do Diário de um pároco de aldeia,
põe um farmacêutico a narrar os últimos momentos do moribundo
padre Francisco, que, largado no abandono de seu pequeno quarto
paroquial, não haveria de fazer da morte um momento heróico como
o quis o místico francês Charles Péguy, (Temoin du temporel chrétien).
Diria tão-somente, balbuciante, com a serenidade da esperança: que
importa? Tudo é graça! E tendo dito isto, morreu.

Finitude, morte e imortalidade

Falei da morte, no início dessa reflexão, como a mais radical experiência


de finitude. É que a morte se nos apresenta como o mais incontestável
dos fatos. No entanto, ninguém experimenta a morte, a não ser
ao morrer. Com toda a sua autoconsciência, autotranscendência,
espiritualidade e personalidade, da morte o homem só tem uma
consciência indireta: a visão dos outros que morrem, sob a certeza de
que a vida é um progressivo itinerário em direção à morte. Agostinho
declara em Cidade de Deus que o homem começa a estar na morte
no momento em que começa a existir no corpo.

Por outro lado, para a maioria das civilizações primitivas - como


estudou J. Servier em L’uomo e l’invisibile - a crença na sobrevivência
da alma depois da morte é um dos pontos fundamentais do seu
patrimônio cultural. “De Platão a Kant, a grande maioria dos filósofos
não considera a morte como a extinção do homem todo”, mesmo que
não recuperem argumentos para fazer crer que a alma é efetivamente
imortal. (B. Mondin, O homem, o que é ele? p. 302). Porém, se não
encontra argumentos para provar a imortalidade da alma, a maioria
dos pensadores não consegue também provar o contrário, como
Descartes observa em suas Meditações.

87 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Todavia, grande parte dos filósofos posteriores a Kant não se põem
o problema da imortalidade ou simplesmente a negam. Assim,
Feuerbach vê na imortalidade uma simples expressão do desejo
de sobrevivência. Freud considera a morte como o primeiríssimo
instinto (uma pulsão inerente à vida orgânica) de retornar à origem,
ao estado inorgânico, “havendo, portanto, na própria origem da vida
uma tendência a abolir a vida ou, se se prefere, a negar o tempo,
a anular a duração”. (Op.cit. p. 306). Nietzsche, sem considerar
a morte a antítese da vida, julga que ela representa a suprema
possibilidade da liberdade humana. Para Sartre, que considera o
homem essencialmente liberdade, um dos limites intransponíveis
desta liberdade é a própria morte e é apenas a sorte que decide sobre
o caráter da nossa morte. (O ser e o nada). Heidegger, depois de
afirmar o homem como um ser-para-mais, afirma-no como um ser-
para-a-morte, ou seja, o homem torna-se consciente de sua sujeição
à morte, como expressão mais forte de sua angústia. Por sua vez,
o marxismo clássico, em sua visão materialista, considera a morte
do indivíduo um evento necessário para o progresso da sociedade e
para o triunfo do proletariado. (Op. cit. p. 307).

Outros pensadores, entretanto, veem a morte sob um prisma


próximo ao da visão religiosa: Gabriel Marcel, o mais religioso
dos existencialistas, considera que sem um mínimo de certeza na
sobrevivência da alma, a morte seria a total desesperação. No entanto,
o homem espera “e espera profundamente que o seu ser não venha
a se extinguir. Da validade de tal esperança ele não tem provas, tem
certeza. Trata-se de uma certeza profética dada pela experiência do
amor. Amar alguém é dizer: você não vai morrer!... se eu consentisse
no seu aniquilamento, eu trairia o nosso amor e, portanto, seria como
se eu o abandonasse à morte”. (Présence et immortalité, p. 184).

Karl Jaspers conclui, na mesma linha, que “a imortalidade não é uma


parte do nosso saber, mas uma riqueza do nosso amor”. (L’immortalité
de l’âme, p. 51).

Já o teólogo Leonardo Boff, vendo a fé como decisão radical em


busca de um sentido para a vida, medita que o céu começa na terra,

88 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


dando as razões da nossa esperança. Reflete a morte como cisão,
mas também e sobretudo como passagem, como fim-plenitude da
vida, como o lugar do verdadeiro nascimento do homem e espera
a ressurreição como o toque final da hominização. Vê o céu como
profundamente humano, como a pátria e o lar da nossa identidade e
a comunhão de todos com tudo. Para Boff, muito para além da morte
individual, o fim da vida planetária efetivará o encontro do homem
que ascende com Deus que descende e, superadas, enfim, todas as
dimensões de finitude, Deus será tudo em todas as coisas. (Vida para
além da morte).

De minha parte, eu gostaria de encerrar essas pequenas reflexões


sobre finitude proclamando o homem – cada um de nós – como
alguém inserido no espaço e no tempo, no mundo e na história,
vislumbrando a existência como risco sadio, como possibilidade a ser
realizada dia a dia. Creio firmemente que o homem – cada um de nós
– deve reinventar a cada momento o próprio humano, para poder, no
humano e pelo humano, descobrir o divino.

A verdade é que o homem – cada um de nós –, após séculos de


civilização, venturas e desventuras, ingressando no terceiro milênio,
mais do que nunca se percebe incompleto, insatisfeito, inquieto... E
vai tecendo a utopia “concreta” que a postura mística de (Santo)
Agostinho propôs, com a simplicidade da fé e a sabedoria do amor,
como síntese de todos os projetos de vida cristã: Tu nos fizeste para
Ti, Senhor, e o nosso coração se mantém inquieto até que descanse
em Ti. (Confissões, livro I).

Bibliografia básica

Alves R. O que é religião. 2ª ed. S. Paulo: Brasiliense, l98l.

Alves R. Variações sobre a vida e a morte. São Paulo: Paulinas, 1982.

Bettencourt E. A vida que começa com a morte. Rio de Janeiro: Agir, l955.

Boff L. Vida para além da morte. Petrópolis: Vozes, 1982.

89 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Boff L. Paixão de Cristo, paixão do mundo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1994.

Carmo RE. Antropologia filosófica geral. 2ª ed. Belo Horizonte: O Lutador, 1975.

Libânio JB. Deus e os homens: os seus caminhos, Petrópolis: Vozes, 1990.

Mondin B. O homem, quem é ele?, São Paulo: Paulinas, 1980.

Nogare PD. Humanismos e anti-humanismos, 4ª ed., Petrópolis: Vozes, l977.

Os Pensadores (Coleção). História das grandes ideias do mundo ocidental, São


Paulo: Victor Civita, 1973.

90 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O SACRIFÍCIO – ESPAÇO
ESPIRITUAL – POSSIBILIDADES
DE TRANSCENDÊNCIA

Uma pequena introdução

Parece-me oportuno começar recorrendo a uma descrição de


como o diretor Andrei Tarkovski compôs a cena do primeiro dia de
filmagem de O Sacrifício, nos arredores de Estocolmo, em abril de
1985. Ele preparou um ambiente de sonho, espalhando jornais velhos,
fotos arrancadas de um livro e moedas estrangeiras sobre o chão
ainda gelado e lamacento da primavera escandinava. (Tomo como
base um pequeno texto ao qual acessei em “burburinho.com”). Nesse
ambiente, a câmera deveria ir se movimentando (como nós vimos
acontecer) e mostrando aqueles elementos, enquanto seguia os
passos de uma criança descalça. Um membro da equipe teria, então,
perguntado: tudo isso é para simbolizar alguma coisa? Tarkovski

Texto apresentado pelo autor no Ciclo de Cinema “Velhice, Novas Identidades”,


organizado pelo Departamento de Gerontologia da SBGG-RJ em parceria com o
Projeto de Valorização do Envelhecer da UFRJ e o Departamento de Comunicação
da PUC RJ onde aconteceu o Ciclo no período de maio a junho de 2004.

Filme: “O sacrifício” - Título original: Ofret (Sacrificatio) – 1986


Direção e roteiro: Andrei Tarkovski
Fotografia: Swen Nikvist
Elenco: Erland Josephson, Susan Fleetwood, Valérie Mairesse, Fillippa Franzén, Allan
Edwall, Tommy Kjellqvist
Prêmios:
Prêmio Internacional da Imprensa – Cannes – 1986
Prêmio Especial do Júri – Cannes – 1986

91 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


respondeu sorrindo: simbolizar? Não me pergunte isso, porque eu
realmente não sei responder! Isso não é símbolo... Isso é a matéria da
qual os sonhos são feitos...

Bem, eu gostaria de me prender, então, à matéria do filme – O


sacrifício –, antes de relacioná-la à velhice e às novas identidades daí
emanadas. O que quer dizer sacrifício? O que é sacrifício? Mais do que
o significado de sacrifício, eu queria, antes, vê-lo só como significante,
como coisa, como algo que significa a si mesmo, com toda a força de
seu núcleo sólido e multifacetado: sacrifício, holocausto, dádiva, oferta,
presente, purificação, expiação, redenção, imolação, consumação... E,
paralelamente, queria revelar a carga etimológica do termo: sacri-fício,
vindo de sacrum-facere ou de sacrum-fieri, algo que se faz sagrado, que
realiza o sagrado, que se torna sagrado, o próprio ofício do sagrado;
algo, enfim, que se insere no campo do sagrado. É que a etimologia é
a palavra, ela mesma, vista em sua genuína e original objetividade; é a
tomografia crua e radical da palavra.

Creio que este comportamento metodológico me leva a caminhar


de dentro para fora. E isso é bom. É que há certas situações em
que as palavras deixam de significar algo fora de si, abandonam o
mundo arbitrário do símbolo e passam a existir no espaço das coisas,
ao lado das coisas, como coisas apenas, sem se remeter para nada
além de si mesmas. Ocorre-me referir, como narra R. Alves (1982),
à pergunta que alguém teria feito a Beethoven, depois de ter ele
executado ao piano uma de suas sinfonias: o que o senhor quer dizer
com esta composição? O que ela significa? Beethoven pensou: o que
ela significa?... O que eu quero dizer com ela? É simples. Assentou-se
ao piano e executou a mesma peça com igual vigor e virtuosismo. A
sinfonia não significava coisa alguma; não simbolizava nada além de si.
Ela significava exatamente a si mesma. Ela se dizia a si mesma.

Neste sentido, acompanho a objetividade de E. Durkheim. Considero,


então, O Sacrifício, filme-de-Tarkovski, antes de tudo, como fato. Ele
se erige como um organismo poderoso, que desenvolve vida própria,
não dependente de nossas interpretações, de nossas digressões, das
versões que viermos a dar a ele.

92 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


De toda a forma, presumo que os cineastas prendem-se
essencialmente aos significantes: o ritmo, os planos, as sequências, a
luz, as sombras, a textura de cada personagem, os ruídos, a música,
os objetos, as coisas... No nosso filme, o passeio lento da câmera,
o movimento do chão ao céu, a disposição como que litúrgica
dos personagens nas cenas, a alternância entre a cor e o preto e
branco, os reflexos nos quadros da parede, as aproximações e os
distanciamentos, as vozes e a música, tudo à maneira de um ritual
que se desenrola como se acontecesse num templo. Um conjunto
de sinais cujos significantes reclamam e revelam significados que
nos convocam imperiosamente à reflexão.

Uma rápida visão dos personagens

Alexander, ator e professor, é o velho que expressa já não ser possível


qualquer perspectiva para além do materialismo contemporâneo. Um
ancião que mora com a família em uma ilha isolada e que, na medida
em que as coisas vão deixando de manifestar sentido, depara-se
com a ansiedade causada pelas notícias de uma guerra nuclear. Não
apenas mora numa ilha. Ele mesmo se faz ilha, separado do mundo,
amedrontado pela morte. Vão sobrando o vazio, o medo, a falta de
sentido, o fim da história, que vão inibindo a fronteira entre a lucidez
e a loucura, uma fronteira que Nietzsche (tão citado pelo carteiro
Otto) fez por desestabelecer em seus escritos. Aliás, por baixo de
tudo, no âmbito da própria narrativa, outras fronteiras se diluem: a do
real e do imaginário, a do factual e do sonho (como aconteceu nos
dois filmes anteriores do diretor russo, Solaris e Stalke) e a da magia
e do princípio da realidade.

O filho fica como o único elemento a fazer sentido para Alexander.


A propósito, permanecendo no campo das aproximações, vem-me
à consideração aquela cena final de “O sétimo selo”, de I. Bergman
(tão querido de Tarkovski), quando, lá no horizonte, um menino vai
puxando a família, mãos encadeadas, ultrapassando concretamente

93 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


o limite da finitude. É que a cinematografia do diretor russo, em
muitos momentos, lembra o cineasta sueco.

A esposa, dividida entre dilemas amorosos. Será que só dividida ou


torturada por estes dilemas?

A empregada, a quem são atribuídos poderes mágicos. A magia que é


capaz de nos levar a uma realidade para além da realidade convencional.
Realidade mágica, por certo, mais real do que a própria realidade.

A televisão, que é o istmo a ligar a ilha ao mundo exterior. Não elemento


de comunicação, mas aparelho que noticia. Como dizia o saudoso
Paulo Freire, algo que não comunica, mas emite comunicados. Noticia
uma catástrofe nuclear que acabara de acontecer; projeção do
sacrifício na mais pura raiz do holocausto: uma queima por completo;
consumação total pelo fogo; sem altar, sem fumaça a deuses, sem
sacerdotes; só as vítimas e um imenso cogumelo atômico.

Contraposto a tudo, o carteiro Otto, que coleciona centenas de


eventos, sempre perguntando e ele mesmo respondendo, a pontuar
a perplexidade de Alexander e a citar Nietzsche, o filósofo da morte
de Deus, da trajetória trágica e dionisíaca da existência, do homem
subterrâneo que cada um esconde no fundo de si.

As fronteiras que se diluem

O filme de Tarkovski coloca-nos de fronte a pólos que, ao mesmo


tempo em que se excluem, convidam-se à aproximação, a uma fusão,
a uma con-fusão. Fatalidade & esperança; teatro & vida; presença &
re-presentação; a ordem & o desejo; medo/pânico/caos & inocência/
espiritualidade/libertação; magia & princípio da realidade; sonho
& vigília; loucura & lucidez; o ator/autor & a obra; pintura icônica &
secularização religiosa; o idiota & o sábio; a ilha & o mundo; a mudez
& a palavra; o Deus-escondido & o Deus-evidente. Tudo isso glosado

94 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


pelo anão de Nietzsche proclamando a Zaratrusta a teoria do eterno
retorno, que é rejeitada pelo velho Alexander. Ocorre-me neste sentido
citar P. S. Costa (2003), em Notas sobre Tarkovski, quando afirma
que há “uma dialética tênue onde do fundo da fraqueza nasce força”,
concluindo que “a coragem de Alexander brota de seu medo”.

Sinais do sacrifício e espaço espiritual

Mais ou menos evidentes ou mais ou menos periféricos, são


apresentados no filme sinais do sacrifício e sua esfera espiritual. A tela
“adoração dos magos”, de Leonardo da Vinci, o grande paradigma
histórico de oferenda. A profunda oração do ofertório de Alexander,
depois do “Pai Nosso”: Deus nos salve neste terrível momento...
Darei tudo o que tenho... Abandonarei a família... Destruirei a casa...
Desistirei de meu filho... Não falarei mais. A dissolução da pessoa
dentro do personagem. O holocausto atômico. A fatal e radical
entrega da empregada Maria ao velho professor, em ato de amor,
de expiação, de redenção, de salvação; em ato de amor não erótico,
mas sugestivamente próximo da ágape cristã, com toda a pureza
da levitação. O incêndio da casa, iniciado numa mesa-altar-de-
holocausto. Os presentes-oferendas de aniversário: o mapa de uma
Europa que não há mais, a miniatura da casa, que as mãos do menino
e do carteiro construíram e acabaram deixando no chão gelado da
ilha. E amarrando todos estes sinais, fica a sentença do carteiro: toda
oferenda, todo presente é um sacrifício. Quero acrescentar, concluindo
a proposição destes sinais, que Tarkovski declara explicitamente que
deseja “resgatar o sacrifício cristão”.

Não julgo, a essa altura, que seja possível falar de espaço espiritual e
possibilidades de transcendência, como propõe o tema de hoje, sem
mencionar a relação entre sagrado e profano. Até porque estamos
tratando de sacrifício, que, como vimos, tem sua raiz no sagrado,
sendo o próprio ofício do sagrado. Volto, então, a me referir a R.
Alves, quando ele propõe antropologicamente o sagrado como o

95 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


centro do mundo, como a garantia da harmonia: o círculo do
sagrado oposto ao círculo do profano, no qual tudo só vale enquanto
expressa utilidade e vantagem material, em cuja esteira avança todo
o tipo de individualismo e desumanização. E ficando, por extremo,
no ponto de vista estritamente utilitário, sob a exclusiva visão
interesseira de eficiência, acabaríamos por concluir que seria mais
prático e econômico se nós nos livrássemos de tudo o que viesse
a prejudicar a eficácia da sociedade: eliminássemos os defeituosos,
fizéssemos desaparecer os adversários, fuzilássemos os criminosos,
acabássemos com os velhos... Aí está o círculo do profano!

Por outro lado, no círculo do sagrado, tudo se transforma. O indivíduo


não pode se julgar o deus absoluto das coisas, já que neste espaço
são as coisas que o possuem. A essência do sagrado não é, pois, uma
simples idéia, é força. Nem é o sagrado um círculo de saber, mas de
poder. Numa entrevista a O Globo (15/05/04), L. Boff afirmava: “o
ser humano não controla todos os fatores; nós estamos entregues
ao arbítrio, ao fortuito, somos uma realidade quântica, virtual, cheia
de possibilidades”, mas que não desentranham de dentro de nós. Se
o sagrado tange a esfera do mistério, Boff proclama que este não
é “um mistério que mete medo, é um mistério que acolhe, marcado
pela amorosidade”. E é isso que o ser humano busca: ser acolhido.
Suponho que por trás de toda a perplexidade “está a dificuldade de a
pessoa ser acolhida como ela é”. A perplexidade é um grande tributo
que se paga, “um preço de humanidade a ser pago para a tecnologia
e para o mercado, que transforma tudo em mercadoria, até a arte, o
amor” e o próprio homem.

Possibilidades de transcendência e seus sinais

Costa propõe, ainda, a idéia de sacrifício como temporalidade e


conclui que o tempo não pode realizar a infinitude na experiência
existencial do velho professor. De toda a forma, tanto Alexander
como cada um de nós, continuamos a buscar o obscuro objeto do

96 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


desejo, cuja dinâmica de procura é sempre uma dinâmica de ruptura
da estagnação, da conformidade, da inércia e uma adesão a uma força
de superação, de ultrapassagem. E exatamente isso é movimento
de transcendência. Aparece claro, com muita nitidez, que o velho
Alexander há que desprofanar a própria vida para transcender. Uma
transcendência, que como afirmava E. Mounier, experiência de um
movimento infinito; se não infinito, ao menos indefinido, no sentido
do ser-mais: transcendência completando o incompleto e dando a
ele sentido, como pensava C. Jaspers.

O filme do diretor russo sugere à nossa leitura – dentro de uma


visão ética como que pré-hermenêutica – alguns profundos sinais de
transcendência: a surpreendível vida escondida no âmago de uma
árvore seca que o menino continuava a regar, tal como fazia o velho
monge da fábula, que um dia a encontrou florida; os quadros sacros
que permeiam a narrativa fílmica e se fazem constante referencial de
fundo, uma espécie de permanente memória do sagrado; a empregada
Maria, chamada pelo carteiro de feiticeira no bom sentido, que oferece
seu corpo como última esperança de superação e de redenção; a
fervorosa aliança de Alexander, suplicada como libertação extrema do
terrível pavor; e o Verbo que São João anuncia no prólogo do seu
Evangelho como princípio dos tempos e que, na pergunta singela do
menino, se torna mais sagrado, libertador e transcendente: no princípio
era o Verbo!... Por que, papai?... Fica aqui, entretanto, uma ambiguidade
ou ao menos uma tensão entre um prenúncio de plenitude na eclosão
do Verbo, através da fala recuperada pelo menino, e a frustração do
retorno ao silêncio, logo após o por que final.

Para concluir

Em As formas elementares da vida religiosa, Durkheim (1912),


reconhecendo um vazio e anunciando uma esperança, conclui que
onde estiver a sociedade, ali estarão os deuses e as experiências
sagradas. E, então, proclama: “os velhos deuses já estão avançados

97 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em anos ou já morreram, e outros ainda não nasceram”. No entanto,
“um dia virá quando nossas sociedades conhecerão de novo aquelas
horas de efervescência criativa, nas quais as idéias novas aparecem
e novas fórmulas são encontradas, as quais servirão, por um pouco,
como guia para a humanidade...”.

Como quer que seja, o derradeiro sacrifício de Alexander, verdadeiro


holocausto, é o incêndio de sua própria casa; a casa que é o invólucro
e o sacrário de toda uma cultura. Refiro ainda uma afirmação de P.
S. Costa de que “o sacrifício, aparentemente a negação absoluta da
liberdade e também a afirmação absoluta da liberdade, é o momento
possível de redenção. Acrescento eu que se trata de algo muito
próximo ao sentido cristão de graça, de gratuidade. E, “quem sabe, a
experiência da gratuidade não seja tão rara assim”.

Creio não ferir a coerência destas reflexões se transcrever, para


encerrar, um paradigma poético de transcendência, tirado da
Comédia de Dante, no verso em que ele canta sua saída do Inferno:
“Para voltar do mundo à face clara / nessa vereda oculta penetramos
(...) / Virgílio e eu logo após nos elevamos, / até que do céu risonho
as coisas belas (...) divisamos, / saindo a ver de volta as estrelas”.

Andrei Tarkovski morreu de câncer, aos 54 anos, um ano depois de O


Sacrifício e dedicou o filme a seu filho, com esperança e fé.

Referências bibliográficas

Alighieri D. A divina comédia. Rio de Janeiro: W.M.Jackson, 1949.

Alves R. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1991.

Costa PS. Notas sobre A. Tarkovski – sacrifício e tempo. Disponível em: www.
cinemaisonline.com.br

Durkheim E. As formas elementares da vida religiosa. In: Da divisão do trabalho


social. São Paulo: Abril Cltural, 1973.

Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

98 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Jaspers K. Filosofia da existência. Rio de Janeiro: Imago, 1973.

Mounier E. O personalismo. Lisboa: Morais, 1960.

Mounier E. Sombras de medo sobre o século XX. Rio de Janeiro: Agir, 1958.

Nox N. O sacrifício – A. Tarkovski. Disponível em: www.burburinho.com

São João. Prólogo, 1, 1 e 4.

Proposta para uma conversa posterior

Considerando o filme como um pré-texto, proponho alguns


itens para desencadear uma conversa:

• No binômio colheita-oferenda, que fundamenta a visão


antropológica de sacrifício, a velhice se põe como tempo
de colher o que foi plantado no curso dos anos. E muito do
que é colhido, certamente há de ser oferecido. É disso que
se faz o tecido de cada vida. Esta é a matéria da qual é feita
a história de cada um.

• Se o envelhecimento vem a gerar alguma insegurança, é desta


insegurança que brota a coragem. Os velhos experimentam
uma força que nasce da fraqueza. Esta é a mais significativa
aprendizagem que a idade conquista, como aconteceu com
o velho professor.

• O amor transita entre as experiências de posse e entrega. No


entanto, ao invés de se constituir em espoliação, a experiência
amorosa de entrega, na velhice, faz-se transbordamento
de uma imensa bagagem de vida da qual o velho está, por
certo, repleto.

• Alexander teve que desprofanar a própria vida para


transcender; para superar o medo, a solidão, a insegurança,
a perplexidade. Desprofanou sua própria vida, na medida

99 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em que já não se julgava o deus absoluto das coisas, mas
adquiria, com a sabedoria da idade, o entendimento de que
eram as coisas que o possuíam. Era o mundo que o possuía;
era a família que o possuía; era a história que o possuía...
Como uma imensa riqueza.

• Da mesma forma que Alexander, cada velho se torna


sagrado. Torna-se ele mesmo sacri-fício. Afasta-se do reino
da utilidade e passa a viver a experiência da gratuidade. O
velho, portanto, não tem que se preocupar em ser útil; ele é
gratuitamente um privilégio.

Ao final do filme:
“No princípio era o Verbo”...
Mas o Prólogo do Evangelho de João continua:
“A vida estava nele (Verbo) e a vida era a luz dos homens”.

100 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A PARTIDA DE DONA M.

É inegável que a abordagem do domínio espiritual nos cuidados


paliativos constitui um processo de construção, tanto da fé, quanto
do sentido, como os trabalhos de William Breitbart (2004) e Viktor
Frankl (1985) tão bem nos fundamentam.

No caso de Dona M, contudo, a dimensão da fé vem indubitavelmente


identificada com uma vivência religiosa que, tendo nome e história,
respondeu à busca do sentido da vida, da dor, do sofrimento, do silêncio,
da esperança e da morte de Dona M. Sua visão de fé não foi, pois,
só um impulso genérico e profundamente humano à transcendência,
mas a construção de uma caminhada para um endereço – um sentido
– que seu coração escolhera e para o qual ansiava.

Dona M, em seu silêncio e abandono, propunha apenas um pedido:


a presença do seu pastor. Ele aparecia somente uma vez por mês.
Esta era sua única queixa. Nada em relação ao tratamento médico.
A necessidade espiritual se sobrepunha à corporal e brotava da fé.
Uma fé que não é um objeto para o qual ela vai voluntariamente, mas
que a toma toda inteira como pessoa. Uma sedução igual àquela
envolveu o profeta Isaías e ele acabou por se deixar atrair.

Dona M era uma convicta evangélica batista criada na resignação


espiritual diante das vicissitudes da vida, do sofrimento. Na verdade,
ela não precisava nem devia chorar perante a morte, nem de rezar

Este texto integra o “Relatório do Seminário Tanatologia” desenvolvido pela


Comissão Permanente de Cuidados Paliativos (CPCP) da Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia (SBGG) em parceria com o Hospital do Câncer 4 / INCA,
publicado em: Py L et al. Cuidados paliativos e cuidados ao fim da vida na velhice:
Relatório do Seminário Tanatologia – CPCP-SBGG. Geriatria & Gerontologia. 2010;
4(2): 90-106.

101 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em sufrágio da alma. A misericórdia infinita de Deus há de garantir a
salvação. Assim, o apelo pela presença de seu pastor não significava
meramente a busca por um conforto humano, mas a última pedra de
uma construção que ela operara em relação a sua fé humilde e ao
sentido de sua dura vida. O pastor, muito além de uma representação
religiosa, era uma manifestação do poder e da força emanada de sua
fé. Nesse sentido, é importante lembrar Durkheim quando afirma que
o fiel que entrou em comunhão com o seu deus não é meramente
alguém que vê verdades novas que os descrentes ignoram; ele é
mais forte que outros. Ele sente mais força dentro de si, seja para
suportar os sofrimentos da existência, seja para conquistá-los. Nesta
linha, Rubem Alves (1982, p. 201) reforça:

o que faz a esperança é o fato de que nela o amor se


encontra amparado pelo poder. Aquele que espera,
aposta, de alguma forma que nem ele entende bem,
nos valores pelos quais vive e morre... ergue-se,
assim, a esperança, filha do poder e do amor.

O cântico que Dona M tantas vezes entoou diz que quando as águas
do mar da vida querem afogá-la; quando as tristezas da vida querem
sufocá-la; quando ela se dobra de cansaço sob o peso das jornadas,
há, sim, de segurar na mão de seu Deus, pois esta a sustentará. Há de
seguir adiante sem medo e sem olhar para trás, segurando na mão
de seu Deus.

A propósito, é essencial que se reflita que a base mais funda da


espiritualidade que Dona M tomou como sentido para sua vida é
uma ‘oferta das mãos’.

Cabe, aqui, a narração de uma experiência significativa que vivi: era uma
hora qualquer na UTI de um hospital do Rio. Lá dentro, eu alternava uma
letargia vazia, sem memória ou sonho que me alimentasse a ausência,

102 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


com raros lampejos de vaga consciência, acompanhada pelo bip-bip
dos monitores que vigiavam a vida. Foi naquela espécie de limbo tão
neutro que, num instante passageiro de lucidez, ouvi, com inesperada
clareza, uma voz feminina bem fraquinha, que pedia a alguém: “Me
dá a mão... me dá a mão!” Logo em seguida, apaguei de novo. Hoje,
percebo que aquela voz sumida de uma moça expressava com incrível
eloquência o amplo universo significativo da solidão. Na verdade, muito
antes da ideia de solidão estudada pelos antropólogos e cientistas da
alma, tocam-nos as vivências das solidões cotidianas.

Deve-se considerar que, para a fé de Dona M, há um pressuposto


anterior a qualquer reflexão sobre cuidados paliativos: no fundo
de sua espiritualidade, vivida com tanta simplicidade, o sofrimento
deve ser visto com os olhos de quem sofre. A fé e o sentido que seu
espírito construiu, ensinou-a que onde está um irmão sofrendo, cada
um de nós está sofrendo nele. Onde está morrendo um irmão, cada
um de nós está morrendo nele.

Não deixa de ser oportuno inserir neste contexto a comparação entre


o poder do médico e o poder do pastor, sempre esperado por Dona
M como ministro de deus. Vale transcrever a experiência de Davide
Laiolo, um deputado do Partido Comunista Italiano, que convalescia
de um brutal enfarte duplo, numa clínica particular de Roma (Casera,
1994, p. 201):

Eu abria os olhos e lá estava a irmã (uma freira) sentada ao


meu lado. A sua mão pequenina sobre as pontas dos meus
dedos era um enorme conforto. Parecia até que aquela
mão me impedia de morrer. Acabava qualquer medo. Eu via
a abóbada celeste escancarar-se sobre o teto do quarto.
Eu mergulhava naquele espaço celestial. Que sensação
de encanto, depois de tanta obscuridade e tanto terror.
Eu estava parado, tinha aprendido a ficar parado. Sentia
aquele líquido entrar nas veias lentamente. O oxigênio que
passava através daqueles apetrechos que me colocaram

103 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em torno ao nariz, me devolvia a força, eu podia voltar a
respirar vagarosamente. Com meus dedos, eu conseguia
apertar os dedos daquela irmã. Ela me fitava bem nos
olhos e sorria e com a cabeça me fazia sinal de que tudo
estava indo bem. Mas quando o ‘professor’ retornava, me
examinava, media minha febre, minha cabeça começava a
estalar e eu fechava de novo os olhos. Definitivamente, eu
já não estava muito bem. Mas, apenas eu abria os olhos,
a irmã me fitava ‘com todas as pupilas’. Desta forma, ela
me enchia (novamente) de coragem. Dizia-me que eu
não devia ter medo. Aquela irmã, tão nova, sabia dar o
necessário sentido (àquele momento de sofrimento),
o calor de uma mão para esquentar um corpo que
estava esfriando.

Como quer que seja, a necessidade da presença do pastor adquire para


Dona M um sentido maior se refletida a partir do conteúdo do salmo
23, uma construção muito mais humana do que religiosa: o Senhor
que é o seu pastor, não deixa faltar nada para ela. Ele a faz repousar
em uma campina verdejante. Leva-a para junto das águas cristalinas e
refrigera sua alma. Não a deixa temer mal algum, mesmo que ela ande
pelo vale da sombra da morte. Faz com que ela se apoie em seu cajado.
Prepara para ela uma mesa farta. Acompanha-a com sua bondade e sua
misericórdia, durante todos os dias que restam de sua vida. E lhe dá a
certeza de que ela habitará na casa do Pai, para todo o sempre.

Não. Para nenhum dos que circundavam seu leito, Dona M não era
um ‘caso’ tratado na 3ª pessoa do singular. Ela queria a presença
do seu pastor com a mesma segurança que queria se colocar como
protagonista de seu processo de terminalidade. Este é o diferencial
de sua história de fé e do sentido que deu a sua vida. Como o ‘cálice
de seu sofrimento’ não podia ser afastado dela, ela decidiu assumi-lo
e bebê-lo. Creio, seguindo o pensamento dos teólogos, que a agonia
e verdadeira ‘paixão’ de Dona M não estava nas dores do corpo, mas
na solidão do espírito à espera do seu pastor.

104 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Abandonada pelo mundo, ou fechada ao mundo, onde ela já não se
sentia caber, Dona M queria, então, o seu pastor, para velar com ela
as horas finais, até ‘tudo ser consumado’. Eu penso que essa atitude
de Dona M não é vagamente religiosa, mas profundamente espiritual,
brotada da construção de uma fé coerente com sua história de vida e
com as opções fundamentais de uma evangélica batista. Isto faz todo
o sentido. Isto é o que se pode concretamente chamar de construção
da fé e do sentido. Enfim,

a nossa fé (arquitetura espiritual) não faz cessar a dor,


mas ajuda a enfrentá-la; não explica o porquê das
tragédias humanas, mas ajuda a viver o mistério da vida;
não leva ninguém a fechar-se por temor de permanecer
mais ferido ainda, mas abre o coração à solidariedade.
(Pangrazzi, 1994, p. 252).

A verdade é que, apoiada no cajado do seu pastor, Dona M queria ir,


com suas próprias pernas, para a Casa do Pai.

Referências bibliográficas

Alves R. Variações sobre a vida e a morte. São Paulo: Paulinas, 1982.

Breitbart W. Espiritualidade e sentido. In: Pessini L, Bertachini L (orgs). Humanização


e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola, 2004, p. 209-227.

Casera D. L’accompagnamento spirituale del morente. In: Petrini A et al. (orgs).


L’accompagnamento della persona anziana morente. Roma: U.C. Del Sacro Cuore,
1994, p. 195-211.

Chauí M. Janela da alma, espelho do mundo. In: Novaes A. (org.) O olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 31-63.

Frankl V. Man’s search for meaning. New York: Simon & Schuster, 1985.

Oliveira JF. Solidão: fundamentando o conceito de solidão. In: Pacheco JL et al


(orgs.) Tempo: rio que arrebata. Holambra/SP: Setembro, 2005, p. 219-226.

105 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Oliveira JF. Finitude na experiência religiosa. In: Py, L. (org.) Finitude: uma proposta
de reflexão e prática em gerontologia. Rio de Janeiro: Nau, 1999. p. 45-54.

Pangrazzi A. Il lutto, una stagione difficile della vita. In: Petrini A et al. (orgs).
L’accompagnamento della persona anziana morente. Roma: U.C. Del Sacro Cuore,
1994, p. 239-253.

106 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O AMPLO SIGNIFICADO DE PÁLIO:
a matéria-prima do que se entende
por Cuidados Paliativos

O adjetivo paliativo tem como radical o substantivo pálio, no latim


pallium, que significa originalmente a peça principal do vestuário dos
gregos, também adotado pelos romanos. Significado que se estende
a manto, toga ampla, ou mesmo, coberta, cobertura, ou simplesmente
veste, sobretudo a usada em ocasiões especiais.

Assumido pela cultura cristã, pálio é um tipo de guarda-sol portátil,


feito de tecidos e franjas nobre s, que cobre o sacerdote que leva
a custódia eucarística fora do átrio dos templos, ou uma espécie de
toldo móvel, sustentado por hastes em ambos os lados, conduzidas
por acólitos, com a mesma finalidade. Daí passou a nomear, também,
a cobertura que se põe sobre a imagem do Senhor Morto, nas
cerimônias e procissões da Semana Santa.

Na liturgia católica, chama-se de pálio a faixa de pura lã branca,


circundando o colo, com dois apêndices, à frente e atrás, ornada com
seis cruzes pretas, usadas pelos arcebispos em cerimônias pontificais,
como distintivo de seu poder em sua arquidiocese.

Pouco conhecida é a significação meteorológica de pálio. Nomeia uma


nuvem de névoa que cobre os campos prenunciando chuva. Nas regiões
áridas, esta é a mais esperada promessa de vida, fertilidade e felicidade.

Texto elaborado pelo autor para subsidiar as discussões dos Seminários de Tanatologia
promovidos pela Comissão Permanente de Cuidados Paliativos da SBGG, na sede
da SBGG-RJ, no período de 2007 a 2011. Foi também apresentado no Seminário de
Iniciação Científica do Instituto de Psicologia da UFRJ, em março de 2008.

107 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Por tudo o que se vê acima, pode-se afirmar que a palavra pálio,
base etimológica do adjetivo paliativo, abarca um amplo círculo
semântico que se divide principalmente em dois blocos que se
tangenciam e, muito certamente, se complementam: um diz respeito
àquilo que cobre, protege, agasalha, enleva, alivia, defende. Outro se
refere a distinção, singularização, individualização e poder, este, não
entendido como dominação ou honra, mas como encargo e missão.

Como quer que seja, partindo das considerações etimológicas,


cremos que cuidado paliativo não se restringe ao paciente que
é cuidado, mas se estende àquele que cuida. Constitui, pois, um
processo profundamente intersubjetivo, de uma estreita relação
pessoal. Tal relação pressupõe uma radical crença no sofrimento do
doente. Uma radical sensibilidade a suas queixas. Uma intensa atitude
de disponibilidade. Penso que sem isso não se conseguirá avaliar a
intensidade e a extensão da dor, nem as conotações psicológicas
que a cercam, o que me parece fundamental para as decisões
propriamente medicinais.

Na verdade, a imagem que se pode extrair de pálio é literalmente a


de um manto que se estende sobre um corpo fragilizado, evocando
um singelo sentido de proteção e alívio. Um corpo fragilizado, mas
que se faz sagrado no que tem de humano, de único, de irrepetível.

Ocorrem-me, então, algumas alusões bíblicas, já que a palavra


pálio – vestes talares, manto – acabou por ficar muito vinculada ao
âmbito religioso.

Entretanto, antes de qualquer referência, destaco que, é com imensa


ternura que o evangelista Mateus relata a subida de Jesus em um
pequeno monte e sua pregação à multidão que o acompanhava. A
verdade é que, em um dos momentos da pregação, Ele aborda uma
dimensão muito mais larga de pálio. Uma dimensão que compreende
toda uma parte da natureza sermão e compõe uma das mais poéticas
assertivas das Escrituras. Fala sobre como a Providência de Deus
veste suas mais simples criaturas, como as pequenas flores dos vales

108 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


e campinas: “olhai os lírios do campo e vede como eles crescem. Eles
não trabalham nem tecem e Eu vos digo que nem mesmo Salomão,
em toda sua glória se vestiu como qualquer um deles”. (Mat.: 6, 28).
Ao cobri-las com o manto de Sua beleza, o Senhor faz com que elas
reflitam o resplendor como que divino de Sua criação.

Fica, ao final da romântica narrativa, a advertência: o homem há de


ser coberto, ser vestido ou revestido com um cuidado infinitamente
maior do que aquele dispensado pelo Criador às ervas do campo,
cuja existência é tão efêmera; que hoje vicejam e amanhã fenecem
e, ressecadas, já não prestam para mais nada, a não ser serem
lançadas ao fogo.

Ainda nesta pregação do alto do pequeno monte, Jesus institui e


proclama a grande novidade cristã do perdão ao inimigo que ofende.
Uma novidade que se constitui em um escândalo para a mentalidade
do tempo. E exatamente aí, o Mestre faz menção às vestes e à túnica
como uma das mais caras propriedades do homem: “Eu vos digo,
amarás os vossos inimigos. (...) E se alguém, em disputa contigo,
arrancar de ti tuas vestes, larga na mão dele também o teu manto.”

E o manto se torna, assim, sinal maior do fundamento cristão do


perdão. (Mat.; 6).

A partir daí, podemos continuar.

O patriarca Noé reservou uma bênção especial para seus filhos Sem
e Jafé. É que estes, num ato de desmedida dignidade, sabendo que
ele, embriagado, havia se desnudado totalmente em sua tenda,
tomaram um manto e, andando de costas, com os rostos voltados
para o chão, cobriram respeitosamente a nudez do pai, sem que a
vissem. É importante observar que nada indica nas Escrituras que o
patriarca Noé, o construtor da arca, escolhido por Deus para preservar
as raízes da humanidade da destruição do dilúvio, se embriagasse
constantemente. Ele era um lavrador, apesar da idade bem avançada,
que plantava vinhas e das uvas fazia o vinho, que quando novo é muito
inebriante. O essencial é que fica aí o registro do profundo respeito

109 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


que se há de ter com o corpo, sobretudo o corpo do idoso. Ao lado
da bênção derramada para Sem e Jafé, o livro do Gênesis relatada
a maldição proferida contra Cam, o filho que havia debochado do
velho pai, alardeando sua nudez. Seu deboche se constituiu um dos
mais fortes sinais de profanação do corpo, logo no primeiro livro da
Bíblia. (Gênesis: 9, 20).

Ainda no Velho Testamento, busco o livro de Jô. Falando de seu imenso


sofrimento e o dos inocentes que como ele padecem, proclama:
“transtornaram o caminho dos pobres, oprimiram os mansos da terra”.
(...) E, tomando a nudez como uma das maiores formas de opressão,
continua o seu lamento: “deixam nus os homens, tirando as vestes
àqueles que não têm com que se cobrir durante o frio”. (Jó: 24, 7).

Outra visão significativa de pálio, ainda no Antigo Testamento, é


aquela descrita no episódio da vocação do profeta Eliseu, convocado
por seu antecessor, o profeta Elias. É assim narrada na: “partiu, pois,
Elias e encontrou Eliseu, que estava lavrando. (...) Elias passou por
ele e lançou sobre ele o seu manto”. Eliseu de pronto entendeu o
gesto. Largou a junta de bois, com a qual lavrava a terra e, depois
de ir beijar seu pai e sua mãe, passou a acompanhar Elias. (I Reis:
19, 19). Da mesma forma, o pálio aparece no momento da sucessão
do profeta: “então, Eliseu pegou o manto que Elias lhe deixara cair,
tocou as águas (do rio Jordão) e disse: onde está o Senhor, Deus de
Elias (que havia sido arrebatado aos céus)? E, logo ao tocar as águas
(com o manto de Elias), elas se dividiram para um lado e para outro
e Eliseu passou”. (II Reis: 2,12). É a única vez, nas Escrituras, que o
chamamento e a sucessão de um patriarca ou de um profeta se dá
através da imposição e do legado de um manto e não da passagem
de um cajado ou da unção com óleo sagrado.

O interessante é que, nos dias de hoje, remontando àqueles tempos,


a entronização de um novo Papa, se faz através da imposição do
pálio episcopal.

Passando, agora, ao Novo Testamento, tomo a conhecida parábola


do bom samaritano. Além de ele mitigar a dor, passando óleos

110 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


lenitivos e vinagre nos ferimentos daquele pobre homem assaltado
e agredido, largado nu na beira da estrada, cobre-o com suas vestes,
envolve-o com seu manto. Fica, aqui, muito clara, novamente, –
cuidado paliativo – a relação entre o manto que cobre a nudez do
corpo e a dignidade da pessoa.

O teólogo presbiteriano Rubem Alves (1981), afirma, de modo muito


singelo, que a teologia é um jeito de falar do corpo. Afinal, os sofrimentos
interiores passam a ser visíveis e palpáveis na e pela decadência física
do corpo; o corpo doente, descarnado, deformado, mal escondendo
o relevo dos ossos. Por isso, o cristão considera o corpo, sagrado e
professa crer na vida eterna na medida em que crê na ressurreição da
carne, na infinita redenção do corpo. (Lucas: 10, 29).

Em outra parábola, igualmente conhecida, a do filho pródigo, quando


o pai o distingue lá no horizonte da estrada, recebe-o - filho perdido
que retorna – e ordena emocionado a seus servos: “tragam depressa a
melhor roupa, vistam-no com um manto, ponham-lhe um anel no dedo
e sandálias nos pés. Vestir as roupas novas, envolver-se no agasalho
aconchegante de sua família, antes, levianamente renegada, constituiu
o sinal mais evidente do resgate daquele que reconheceu junto a seu
pai haver pecado contra o céu e contra ele. Daquele que estava morto
e reviveu; que estava perdido e foi encontrado (Lucas: 15,22).

Há, por outro lado, nos primeiros capítulos das narrações evangélicas,
a figura austera de João Batista, tido como a voz que pregava
no deserto da Judéia. Homem de uma das mais radicais opções
de despojamento já descritas na história: morador do deserto,
alimentando-se tão só do que o deserto podia oferecer: gafanhotos
e mel silvestre. Sim, sem dúvida, o Batista nos revela uma visão bem
diferente de pálio, de manto. João cobria seu corpo com as vestes de
quem meditava na aridez do deserto: um tecido – se assim se pode
chamar – de pelos de camelo, amarrados à barriga por um cinto de
couro. (Mateus: 3,3). Este pregador singular, visto nas terras secas da
Judéia, não se vestia com roupas finas ou mantos e túnicas suntuosos,
pois os que assim se vestem habitam os palácios. Continuando com
as próprias palavras de Jesus, João é o protótipo do homem sólido,

111 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


inquebrantável e não um caniço agitado pelo vento. Pois é este
homem, que o Mestre proclama como o maior dos profetas; maior
mesmo do que qualquer um dos nascidos do ventre de uma mulher.

E é exatamente este homem, que, muito para aquém de sua opção


radical, prega, como paradigma maior de conversão, o gesto de uma
caridade bem simples. Um gesto simples de caridade que há de preparar
o caminho do esperado Messias: aquele que possuir duas túnicas,
que dê uma a quem não tem. O fim de sua heróica história, creio, é
bem conhecido: em uma noitada de diversão palaciana, sua cabeça é
oferecida numa bandeja à amante de um rei do tempo. (Lucas: 3, 11).

Falando da simbologia do pálio, não podemos deixar de evocar o


episódio da última ceia de Jesus com seus apóstolos. Aconteceu que
Ele levantou-se da mesa, tirou o seu manto e, pegando uma toalha,
cingiu-se com ela. Depois, colocou água numa bacia, começou a lavar
os pés dos discípulos e a enxugar-lhes com a toalha com a qual estava
cingido. (...) Tendo lhes lavado os pés, tomou de novo seu manto e
tornou a sentar-se à mesa. (João: 13, 4).

Aí está, na última ceia, o derradeiro testemunho de humildade do Mestre.


Ele se despoja de seu manto e se abaixa aos pés de seus discípulos.

Deixo para o final o momento extremo da paixão de Cristo, quando


tudo estava consumado. Quando, chegada a hora sexta, se fez trevas
sobre a terra e o véu do templo se rasgou de alto a baixo. Rasgado,
o véu do templo deixava desguarnecido o mais sagrado dos espaços
de sacralidade dos hebreus, o santo dos santos. E é, então, quando
simbolicamente o mundo estremece, que se volta a mencionar
o manto de Cristo. Os soldados, aqueles mesmos que o haviam
crucificado, pegam sua túnica, um manto sem costura, tecido em
uma única peça e decidem não dividi-lo, como faziam de costume
com as vestes dos condenados. Poupam-no, para que se cumprisse
a palavra dos profetas. (João: 19,23).

A Idade Média guardou a lenda do manto sagrado, manto que


atravessou os tempos como sinal de salvação e redenção para os

112 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


que, por suas obras, o mereceram, ou de condenação e danação para
os que, por sua vida, o renegaram.

Concluo referindo Petrini (1990), em sua antológica obra Accanto


al morente.

De forma muito bonita, ele opõe os cuidados propriamente médicos


às necessidades espirituais e psicológicas dos doentes graves.
Acompanha Jung e mostra que, “enquanto as providências voltadas
para salvar a vida ou para prolongá-la podem ser vistas como o
ANIMUS da medicina, os cuidados paliativos constituem-se na
ANIMA”. (p.60).

A gente pode ver, então, com muita singeleza, que a anima se


apresenta como a dimensão feminina dos cuidados e providências
curativas. Quando o corpo já não responde, é o coração que há de
ser tocado. E jamais se conseguirá tocar o coração sem uma feminina
e maternal ternura.

Aí se pode pelo menos vislumbrar, malgrado todas as incompletudes


e insuficiências de meu conhecimento, um pouco do mais genuíno e
amplo sentido de pálio, a palavra-matéria-prima do que entendemos
por cuidados paliativos.

referências bibliográficas

Bíblia Sagrada. Trad. Matos Soares, 38 ed. São Paulo: Paulinas, 1982.

Petrini M. Accanto al morente. Milano: Vita e Pensiero, 1990.

Rubem A. O que é religião. S. Paulo: Brasiliense, 1981.

113 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A TRANSCENDÊNCIA

“É por sua dimensão espiritual que o homem transcende o


plano puramente funcional de sua corporeidade/animalidade
e se faz um ser simbólico, capaz de dar sentido ao seu
sofrimento e à sua existência; capaz de descobrir um sentido
para o mundo e para o tempo no qual ele está inserido.”
FRAGMENTOS

Há, sem dúvida, na trajetória de nossa vida, momentos – e como são


preciosos estes momentos – em que somos levados a abrir as portas
da cabeça e principalmente as do coração ao espaço claro-escuro
do que podemos chamar de mistério.

Passo a falar por mim. Eu já não me se sinto mais muito confortável


no espaço sólido da razão, aquela mesma na qual fui educado e
aprendi e cresci e procurei e questionei e respondi e acertei e errei.
Já não há mais aquele velho acordo entre as coisas e a mente, entre a
realidade que nos cerca e nos provoca e a razão que sempre presidiu
e instrumentalizou a ciência e domesticou a natureza.

Parece que as minhas inabaláveis certezas vão envelhecendo junto


comigo. O interessante é que elas não chegam a me decepcionar.
Nem de longe. O sentimento é outro; vou, isso sim, ficando como que
indiferente em relação a elas.

Na década de sessenta, havia um velhote que andou frequentando


por um tempo a praça da Universidade Gregoriana de Roma, onde
eu estudava. Ele falava com um destacado e sonoro italiano, em
tom acadêmico. E ficava repetindo sem parar algo mais ou menos
assim: studiate voi. Studiate voi. Da me, no. Io non voglio sapere...
roba inutile. Io non voglio sapere proprio niente. Non ci sono più i
greci; non c’é più la religione; non c’é più la ragione. Alora, studiate
voi. Io non ne voglio! (Estudem vocês. Estudem vocês. Eu, não! Eu não
quero saber... coisa inútil. Eu não quero mesmo saber nada. Não há

Este texto é uma reunião de reflexões do autor destinadas a subsidiar as discussões


dos Seminários de Tanatologia promovidos pela Comissão Permanente de Cuidados
Paliativos da SBGG, na sede da SBGG-RJ, no período de 2007 a 2011.

115 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


mais os gregos; não há mais a religião; não há mais a razão. Então,
estudem vocês. Eu não quero!).

Ficava, assim, promulgado o divórcio do velhote com as bases


da tradição ocidental. Muito simplesmente, ele rompia de uma só
vez com o Humanismo greco-latino, com a moral do Cristianismo,
com aquela dúzia de racionalismos e idealismos, em uma única e
categórica proclamação.

O exemplo não quer dizer que eu ache que já seja bastante o propósito
humano de querer compreender o mundo. É inegável, porém, que
este mundo já anda todo explicado, pedacinho por pedacinho, nos
livros e nos computadores e nos discursos e nas academias e nos
laboratórios e na mídia e... nas esquinas de nosso tempo. E junto
com as explicações, vêm as contestações para novas e melhores
explicações... e assim deve ser pelo tempo afora.

Nem pretendo eu retornar ao obscurantismo que tanto emperrou a


história. Aliás, tenho a convicção de que nem o bom velhote italiano
da praça romana queria voltar ao obscurantismo. Se ele, o bom
velhote, parecia desvairado em sua proclamação, não era, entretanto,
nenhum idiota. Era, sim, “l’idiote savant”, o idiota sábio. Sabiamente,
já não queria mais saber. Saber se lhe havia tornado desnecessário
ou enfadonho. Roba inutile questo sapere, (coisa inútil este saber). Aí
estava, paradoxalmente e a um só tempo, o sinal de sua demência e
de sua sabedoria.

Pois bem, o que eu quero dizer realmente, a essa altura, é que


eu pretendo meditar sobre experiências diferentes, como as do
mistério, as da fé, procurando, o quanto possível, desatrela-las de
um pensamento religioso em particular. Quero me submeter à doce
confrontação com o que chamei, lá em cima, de espaço claro-escuro
do mistério. Estou, então, dispensando a segurança e o poder da
ciência e de seus corolários. Joguei fora as muletas.

Não quero ir a nenhum lugar definido por método algum. Quero


me deixar arrastar para águas mais profundas, mesmo que não

116 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


muito transparentes. Quero levar comigo, como modesta bagagem,
não propriamente uma mens cognoscens bem articulada por uma
ratio efficiens. Quero levar apenas como bagagem o corpo meu de
cada dia, que vai envelhecendo devagar e já começa a me dar mais
trabalho que meus raciocínios lógicos, mas que se tornou mais agudo
em seus sentidos e sentimentos. Quero levar meus olhos, tão mais
sensíveis, meus ouvidos, tão mais atentos, minhas palavras, tão mais
serenas, minhas mãos, tão mais disponíveis e, lá no fundo da mala,
minha cabeça, tão menos arrogante.

Na verdade, assumir os desalentos da aventura humana, tais como a


dor que não passa, o sofrimento que se mantém meio sorrateiro no
cotidiano, o cansaço que reaparece em cada empreitada, a doença
que não cura, o envelhecimento que vai inventando privações
e aumentando as insuficiências é experimentar uma espécie de
desconfiança nos grandes núcleos de onipotência que sustentam o
desenvolvimento, sobretudo as conquistas - sem dúvida inegáveis
– da ciência e da tecnologia. Assumir tudo isso é assumir os riscos
desta aventura humana. É deixar aberta a porta para a esfera do
mistério. E nesta esfera não moram só os desafios da matéria, que
constitui objetos das ciências, mas residem também os desafios do
corpo. Desafios que são superados em sua dimensão macro, mas
que acabam em frustração quando experimentados nos aspectos
mais sutis da decadência desse corpo.

De qualquer modo, deixar a porta aberta à esfera do mistério, para mim,


não é renegar a razão. Muito menos trair a incontestável eficiência da
medicina. Afinal, o mistério não é o grande adversário do conhecimento
científico. Paralelamente também, não é muito fácil descrever
nosso comportamento perante a simplicidade singela do mistério. O
“Principezinho” que Saint-Éxupery encontra no deserto chega bem
perto: “eu sempre amei o deserto. A gente se senta numa duna de areia.
Não vê nada. Não escuta nada. E, no entanto, o silêncio alguma coisa
irradia... O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço nalgum
lugar”. É assim que o mistério vai-nos impondo seus pequenos-grandes
pactos: com a solidão de um deserto amado, com um silêncio que irradia
alguma coisa, com um poço escondido em algum lugar. É assim que o

117 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


mistério vai se tornando impressionante e a gente deixando-se pouco a
pouco tomar por ele, não ousando desobedecer-lho.

Pois bem; seguindo essa linha, quando a gente percorre as


enfermarias ou “visita” a intimidade do doente-sofredor; quando a
gente consegue ouvir a voz-lamento menos superficial e mais funda
do doente-sofredor, a gente “inventa” dizer que o mistério não é o
denunciador de uma obscuridade desconhecida. É, sim, uma grande
metáfora da esperança humana, como será metáfora de outros
segmentos da experiência humana.

É que o mistério não é um túnel escuro, mas, sendo a grande metáfora


da esperança humana é, extensivamente, a metáfora da luz no final do
longo túnel escuro. A gente não sabe como e quando vai chegar lá.
A gente não sabe o que está por lá. A gente não sabe que surpresas
pode encontrar. Mas a gente vislumbra uma luzinha que nossos olhos,
nossas pernas, nossos corações, enfim todo o nosso ser busca alcançar.

A experimentação da precariedade humana, da fragilidade de nosso


corpo nos dirige a uma outra vivência; à vivência da finitude humana.
E aí, de alguma forma, reencontramos o mundo que a ciência
encantou, desencantado em nossa própria decadência física. E aí,
neste desencanto, também mora o mistério.

Nesse sentido, o mistério se liga ao comportamento místico. É


que o comportamento místico indica uma transcendência. Não
uma transcendência que pressupõe uma oposição filosófica –
ontológica – entre Absoluto (com letra maiúscula, ser supremo,
infinito) e relativo (finito, contingente). Trata-se, ao contrário, de
uma visão de transcendência como insatisfação de base – algo
como o coração inquieto de Agostinho – que busca um para-
mais, capaz de superar a fugacidade do tempo. Algo que se possa
esperar e esperando, saciar (ao menos mais) duradouramente a
sede originária de nossa incompletude.

Continuo, então, ousando considerar que, ao vivenciar os desalentos


da aventura humana, estampados nos mais sutis sinais da fragilidade

118 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


e decadência do corpo, a gente reinaugura o tempo de retorno aos
subterrâneos do espírito.

Japiassu (1996) descreve que o grande Newton sensibilizou-se por


uma sabedoria primordial revelada aos Antigos por intuição. Assim
também, o metódico Descartes, impregnado de um misticismo
mais “operativo” que “especulativo” fala de uma ciência acessível
à intuição. Mesmo Leibniz, defendendo uma espécie de filosofia
eterna, procurava a ciência oculta dos antigos. Mais próximo de
nós, Einstein crê que a certeza da existência das leis matemáticas
na natureza só pode fundar-se numa outra certeza: a da existência
de um Deus racional. É de forma tão incisiva quanto tocante que
Japiassu encerra o capítulo “O mundo reencantado”: são as raízes
mitológicas, míticas, religiosas que os cientistas, principalmente os
físicos, não conseguiram exumar de sua ciência. E, agora, elas estão
sendo desocultadas. Porque a ciência se faz também com “sonhos”.
É nas profundezas do “inconsciente” que se encontram as fontes da
ciência, da religião, da filosofia (p. 107-108).

Reinaugurar, pois, um tempo de retorno aos subterrâneos do espírito


quer dizer também que a vida humana não se quer ver ameaçada
por aquilo que a protege. Para que eu me sinta em casa ao lado
dos laboratórios de pesquisa e submetido a monitores e tubos, é
preciso que eu me sinta em casa na cama da enfermaria. É certo
que não vi ninguém, em sadia consciência, querer dispensar as
máquinas, os exames, os tubos, as agulhas, os estetoscópios e
demais providências curativas médico-científicas. Isso tudo faz
parte de uma dolorosa realidade que não oferece alternativa. Mesmo
pressupondo uma submissão meio incondicional. Isso tudo, afinal, é
também instrumento de esperança. Há, contudo, uma outra instância
pela qual o corpo implora: é a presença solidária; é o olhar desvelado;
é a mão estendida; é o toque reconfortante; é o ouvido perscrutador;
é a palavra amiga; é o silêncio profundamente eloquente.

Tudo isso, enfim, constitui a abertura ao mistério da vida, ao mistério


da finitude; ao mistério da frágil esperança da luz bem sumidinha lá
no final do túnel.

119 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Pois bem, quando os católicos professam formalmente sua fé, - e o
fazem desde o Concílio de Nicéa - dizem acreditar em um só Deus,
factorem coelli et terrae, visibilium omnium et invisibilium. Este Deus
“fazedor” do céu e da terra, fez também todas as coisas visíveis e as
invisíveis. Fiz a citação para me reter nas coisas invisíveis.

O que é este invisível? Onde se encontra este invisível? Não o Deus


Ele-mesmo, mas este pedaço – invisível - de sua criação? Crer nas
coisas invisíveis, ou experimentar defrontar-se com elas, o que conta
mais? E como defrontar-se com o invisível, quando a gente tem quase
total certeza de que o que nossos sentidos alcançam nas relações
com o outro, nas profundas vivências do amor, nas artes, nas lides
com a temporalidade, no cotidiano em geral é sempre uma dimensão
tão pequena da realidade visível que nos envolve? Vincula-se ele, o
invisível, só às experiências místicas? Vive ele permanentemente
escondido nas profundezas de nosso inconsciente? É ele um
fornecedor de ilusões, ou um promotor de des-ilusões? Não será ele,
o invisível, sinal de “perda de uma evidência porque é aquisição de
outra (nova) evidência” como diria Merleau-Ponty (1945)?

Pronto! No meio de tantas interrogações, – as que fiz e as que não


consegui fazer – sinto-me como se tivesse pondo uma cunha no meu
costume de pensar. Como se eu tivesse descascando o caule uma
árvore que não chegou a nascer. Na verdade, porém, esse monte de
perguntas não é propriamente para ser respondido ordenadamente.
Serve um pouco para irrigar o terreno deste pequeno trabalho.
Iluminar esta reflexão.

Chauí (1983), estudando Merleau-Ponty, diria que acabamos de nos


meter no desafio da iniciação ao mistério do mundo. Eu diria que
estamos nos arrumando para “ver”, e vendo, “decifrar”, e decifrando,
“des-velar”. Estamos nos aprontando para captar, absorver o sentido
da dor, do sofrimento, da finitude, da expectação. Não vamos
heroicamente desvendar os mistérios da dor, do sofrimento, da
finitude... Vamos nos deixar impregnar.

120 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


O que no mistério mete medo para que nós queiramos suprimi-lo
ou nos livrar dele? O mistério “não pede uma explicação. Convida à
iniciação”. Nós temos que buscar decifrá-lo. Serenamente. Sem que
esta decifração traga em si a ameaça contida no Enigma da Esfinge,
que era: ou tu me decifras, ou eu te devoro!

Vamos, a essa altura, buscar o ponto de vista de quem está do outro lado
da cena: recostado-caído numa cama, perdendo-se e encontrando-se,
esperando e suspeitando, crendo e desconfiando, vendo ir sumindo
aquele pouco de céu para se encostar e... nesse sumiço, o sumiço das
gentes, das vozes amigas, da condição de amar. Indiferente às certezas,
abandonado a si mesmo, esse outro vê sobrar como alento aquela
pequena luz que chamei lá no início como metáfora do mistério. De
qualquer modo, será que sobra algum alento?

É muito claro que não será uma arte a de viver da fé, mesmo não
sabendo fé em que. Já não há esperanças que venham do mar, nem
das antenas de TV. Como na Favela da Maré. Em não sendo uma arte,
viver da fé vai sendo uma forma de encher o oco de vida, que ali, na
solidão da cama, passa a ser como que vivida lentamente ao avesso.

Sim. Aí mora o mistério. Para um lado e para o outro lado: para quem
está recaído na cama e para quem está ao lado dela. E quantos
“pontos cegos” num e noutro lado das consciências? Num e noutro
lado das visões.

Tanto Merleau-Ponty (1945), como a Professora Chauí (1983),


descem fundo quando afirmam a aproximação entre o visível e o
invisível. Quase fusão. “O visível (num e noutro lado) está prenhe de
invisibilidade”. Visível e invisível já não são momentos da vida. Não
se negam nem se afirmam mutuamente. “São dois lados do (mesmo)
ser, direito e avesso. (...) Coextensivo ao visível, o invisível não constitui
uma outra ordem de realidade, mas é o forro que atapeta o visível”.
(p. 256-257).

Por outro lado, o mistério traz em si o caráter da ocultação. Revela-se


como o oculto, mas não como ficção. Na verdade, o que está oculto

121 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


está sempre se oferecendo a nós como algo a ser des-velado. E aí
cabe a pergunta: nas mais singelas ou densas relações humanas não
é o desvelo uma forma de se des-cobrir a intimidade escondida?

Como quer que seja, é a fé, esse movimento frágil e ousado do espírito
humano, que dá sustentação ao mistério. E o processo que articula
a fé, não se dá, apenas ou, sobretudo, no comportamento religioso.

...

Referências bibliográficas

Chauí M. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo. 3 ed. S. Paulo:


Brasiliense, 1983.

Japiassu H. A crise da razão e do saber objetivo. São Paulo: Letras & Letras, 1996.

Merleau-Ponty M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. Trad.


Carlos A.R. de Moura. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

122 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


VISITAS AOS ESPAÇOS
DO SOFRIMENTO

Há bem pouco tempo, entrei para “Pastoral da Saúde” de minha


paróquia. Na verdade, o meu maior desejo era participar da visita ao
hospital do bairro, buscando não só pôr em prática minhas reflexões
conceituais sobre a assistência espiritual aos doentes internados,
mas, sobretudo, prestar um pouco de solidariedade aos que sofrem.
Estou apenas iniciando esse meu trabalho voluntário; no entanto,
a Ligia Py me incentivou a registrar as experiências que considero
mais significativas. Confesso que tenho receio de, ao escrever, acabar
distorcendo, através de acréscimos e floreios, a objetividade dos
fatos, já que, para mim, todos eles vêm carregados de emoção. Por
outro lado, tudo o que vier aqui escrito deve se afastar radicalmente
do que se entende por reportagem.

Julgo oportuno observar que essas visitas são sempre feitas por dois
“agentes de pastoral”. E são realizadas apenas com a total e explícita
aquiescência do paciente e acompanhante(s), sem constranger ou
violentar, portanto, (mesmo que seja minimamente), a liberdade deles.

Feitas estas considerações, começo.

Era um rapaz, vítima de uma fratura (realmente total fragmentação)


do osso que liga o braço direito ao ombro, resultado de uma queda
violenta de bicicleta. Tinha sido operado naquela manhã e, segundo
ele, o cirurgião - muito competente - fizera tudo o que fora possível

Este texto descreve percepções e reflexões do autor após suas visitas a pacientes
internados em hospitais. Integram o acervo dos textos destinados a subsidiar as
discussões dos Seminários de Tanatologia promovidos pela Comissão Permanente
de Cuidados Paliativos da SBGG, na sede da SBGG-RJ, no período de 2007 a 2011.

123 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


para recompor, fragmento por fragmento, a integridade do seu osso
quebrado.

O acompanhante, também jovem, ocupava em silêncio a cadeira ao lado.

Declararam-se ambos agnósticos. Nós, então, desejamos muito boa


sorte na recuperação e já estávamos para sair, quando o paciente
nos interrompeu dizendo que receberia de muito bom grado aquela
nossa visita. Podíamos até rezar o Pai Nosso.

Rezamos o Pai Nosso e, em seguida, fiz uma pequena prece espontânea,


na qual eu pedia ao Senhor que devolvesse, na medida do possível, os
movimentos de seu braço e sua saúde de modo geral. Ele me fitou com
o olhar muito perplexo, ficou um momento em silêncio e, em seguida,
falou com uma voz tão firme quanto decepcionada: você não podia
pedir a Deus que fizesse o que fosse possível. Não! Fazer o possível, o
cirurgião já tentou. José Francisco, eu quero que você faça uma nova
oração. Quero que você peça a Deus para fazer o impossível!

Eu dei, então, a mão ao acompanhante e, sem conseguir esconder a


emoção, busquei toda a reserva de fé e contrição que moram lá no
fundo do meu coração e não apenas pedi, mas “intimei” o Senhor
meu Deus a operar o impossível no braço daquele rapaz agnóstico.

O rapaz e eu nos despedimos com os olhos molhados.

A moça estava semicoberta na cama perto da janela. Era negra e


muito magrinha. Tinha os olhos bem abertos, como que assustados,
acompanhando todo o movimento do quarto. Creio que não tinha
30 anos. Quando me viu, sorriu. Eu já estava sorrindo e tenho quase
certeza de que a minha barba, toda branca, sugeria alguma coisa...
sei lá. Perguntamos se podíamos rezar com ela o Pai Nosso.

Isso coincidiu com a entrada da enfermeira. Trazia um dispositivo


diferente para tirar sangue. Não rezamos o Pai Nosso. Ela agarrou
minha mão – o que é totalmente incorreto em nossa ação pastoral
nos hospitais, por motivos óbvios. Mas eu não tinha como não deixar.

124 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Contou que estava internada há dez dias e não sabia o que tinha.
Disse que estava com medo de tirar sangue. Eu falei, então, que
também tinha medo de tirar sangue, mas que sabia um jeito de não
doer. Pedi para ela não olhar para a agulha. Prometi que quando a
enfermeira “acertasse” a veia, eu apertaria mais forte a mão dela e
nós dois respiraríamos bem fundo.

Pronto! - Doeu?...

Ela fez o olhar mais vago que presenciei nos últimos tempos. E não
queria largar minha mão. Meio que de repente começou a rezar o Pai
Nosso. Eu fui junto com ela. Falou que tinha dois filhos e continuou...
O Pão Nosso de cada Dia nos dai Hoje... Não queria que eu fosse
embora... Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...

Tudo entrecortado, assim mesmo.

Muito delicadamente fui tirando a minha mão. Disse meio sem jeito:
Você vai ficar com Nosso Senhor. Ele gosta muito de você. E Nossa
Senhora vai cobrir você com seu manto. Foi o que consegui dizer.

Ela me seguiu até eu fechar a porta.

Será que é assim mesmo que deve ser?...

Umas quatro pessoas da família cercavam aquela senhora de cinquenta


e poucos anos. Nós nos apresentamos e minha companheira de
“pastoral” perguntou se queriam rezar conosco o Pai Nosso. Queriam.
Rezamos com os acompanhantes, de mãos dadas.

Àquela altura, eu já tinha feito, com toda a contrição, nos inúmeros quartos
visitados, orações espontâneas (não tão espontâneas assim, já que
sempre as preparo em meditação anterior às visitas) e o mais pessoais
possíveis. Eu estava cansado. E já começava a repetir os conteúdos.

Eles todos, naquele quarto, se declararam católicos, muito religiosos,


e se mostravam profundamente gratificados com nossa visita.

125 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Acabei não fazendo nenhuma oração. Ocorreu-me, isso sim, dizer:
L, tem muita gente afetuosa aqui com você, mas para Nosso Senhor
você é a L, única, irrepetível. Ele conhece bem você. Ele sabe de sua
dor... e fui por aí.

Sem ter muito por que, a cada frase, todo o mundo dizia amém, até
a última frase e o último amém.

No momento de nos despedirmos, ela chorava muito.

Olhou pra mim e com muita resolução disse: quer dizer que eu faço
a diferença!? E rezou: olha pra mim, meu Deus! Eu faço a diferença!

Os parentes, com imenso afeto, confirmaram: L, você faz a diferença,


sim! Amém.

Isso mesmo: todos, até uma atendente que passava, dissemos amém.

126 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A ESPIRITUALIDADE E O CORPO

Introduzindo

Assisti, há algum tempo, “À espera de um milagre” de Frank


Darabont, 1999, ambientado em 1935, no corredor da morte de uma
prisão americana sulista. Ficaram em minha memória algumas cenas
e diálogos dramáticos articulados na sequência da execução. Lá
ia o condenado, em sua última caminhada, passos arrastados, um
pequeno séquito acompanhando, um capelão recitando um salmo
em voz velada: “ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte”...
e um guarda anunciando, em voz muito baixa, no início do curto
trajeto: homem ‘morto’ caminhando. Os outros condenados batiam
nos ferros de suas celas, em solidariedade ao homem ‘morto’ que
caminhava e em protesto contra a execução.

A analogia que faço com os doentes prestes a morrer é um pouco


exagerada. Afinal, os últimos pedaços da vida de um doente terminal
não significam o resultado de uma condenação, nem os quartos das
casas ou as enfermarias dos hospitais são prisões. Contudo, há, por
certo, algumas tristes semelhanças entre o premiado filme e a matéria
dessa reflexão: há um curto caminho em direção ao fim; há simbólicos
passos claudicantes e arrastados de um caminhante enfraquecido; há
gente próximo-distante, cumprindo com rigor o ritual de acompanhar;
há um horizonte bem perto que invariavelmente descortina morte;

Texto publicado com a referência: Oliveira JFP. A espiritualidade e o corpo. In: Santos
FS. (org). A arte de cuidar: saúde, espiritualidade e educação. Bragança Paulista
(SP): Comenius, 2010, p.91-107.

127 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


há gente ‘previamente’ morta respirando, se mexendo, gemendo;
há, nos prontuários, a espera – quase uma certeza - do desenlace
iminente. Pronto, a sequência poderia ser reeditada...

Permiti-me começar desta forma, exatamente porque quis que a


questão da espiritualidade e corpo constituísse uma reflexão bem
pessoal, apoiada não exclusivamente em ideias, mas também na
emoção espontânea de minhas vivências. Não há nenhuma outra
intenção senão esta que estou convencido ser justificável.

É que, seja qual for o corredor trilhado, a morte lá adiante é sempre


morte. E o paciente condenado - aquele que há de morrer - não é
tão trágico como eram os gladiadores de Roma, que olhavam para
o imperador, antes das pelejas mortais e bradavam: Ave, Caesar,
morituri te salutant! (Salve, César, os que hão de morrer te saúdam!),
mas nosso paciente condenado seguramente nos fita com os olhos
distantes e embaçados de impotência e desamparo, sabendo que
está perto do fim, pedindo o que nem ele mesmo sabe. Não saúda
César, é óbvio, mas tem consciência de que há de morrer... em breve.

Após estas rápidas considerações iniciais, anteriores a quaisquer


reflexões conceituais, mostro, sumariamente, a trajetória temática
deste capítulo. Divido-o em sete fundamentos, abarcando a dimensão
espiritual e a corporeidade humana. Assim, proponho (1) a vocação
para a espiritualidade como parte da natureza humana, discorrendo
resumidamente sobre o tempo do qual emergimos e o mundo que
nos cerca; (2) a compreensão do sagrado e do profano como pólos
essenciais do espaço espiritual; (3) o binômio corpo e espírito e
a consciência da integralidade da pessoa; (4) a confrontação da
espiritualidade com a morte; (5) uma reflexão sobre a educação
no contexto da morte; (6) o direito inalienável de todo homem a
uma morte digna; (7) corpo e espírito integrados na dimensão da
historicidade humana; e uma também sumária conclusão, quando falo
da existência do homem como possibilidade superior, englobando a
vida e a morte. Passo, assim, a desenvolver.

128 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


1º fundamento:

A dimensão espiritual, condição


fundamental do homem

ESPIRITUALIDADE é condição fundamental da pessoa humana, pois


ela é muito mais que uma estrutura físico-material; ela não se reduz a
um simples composto orgânico, mesmo que muito complexo e perfeito.

A verdade é que “a vocação para a espiritualidade, para a busca do


significado do existir faz parte da natureza humana (...) O ser humano
reconhece a presença de forças e influências que o transcendem, isto
é, que estão além de sua consciência e que lhe dão uma confiança
básica (...) A espiritualidade é a dimensão que corresponde à abertura
da consciência ao significado e à totalidade da vida”, escreve
MONTEIRO (2006, p. 16-17). Para JUNG (OC, v.XI §116 in op. cit, p.23),
“não importa o que pense o mundo sobre a experiência (espiritual)
religiosa: aquele que a tem está na posse de um grande tesouro, algo
que se tornou para ele a fonte da vida, do significado e da beleza e
deu novo esplendor ao mundo e à humanidade”.

De toda a forma, é por sua dimensão espiritual que o homem supera o


plano puramente funcional de sua animalidade e se faz um ser simbólico
capaz de dar sentido à sua existência; capaz de descobrir um sentido
para a realidade que o cerca e para o tempo no qual ele está inserido.

A dimensão da espiritualidade é a dimensão do sentido. E a dimensão do


sentido é a dimensão da a-firmação do homem. Porque é nessa esfera
que o homem se torna firme, consistente, consciente, voltado a buscar
sua identidade mais íntima, sua trajetória, sua origem, sua destinação.

E, acima de tudo, é nesta esfera da a-firmação que o homem se inquieta


com sua busca, até que possa atingir um ponto-de-chegada, e aí
chegando, possa ultrapassá-lo, sempre insatisfeito, sempre para-mais.

129 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Então, na verdade, se o espírito é a-firmação, a matéria é negação. A
a-firmação, sinal da presença do espírito, é vida. A negação, sinal da
ausência do espírito, é morte.

Como quer que seja, faço, paralelamente, uma referência a


ALVES (1982, p.15): “os céus se esvaziaram de mistérios. Ficaram,
repentinamente, desabitados. Sem amor, sem ódio, sem finalidade
alguma... Apenas a beleza glacial, imóvel, das fórmulas (...) Deus foi
progressivamente expulso do mundo. Aqui está o embaraço dos
teólogos (e dos crentes). Antes eles falavam sobre Alguém que fazia
toda a diferença e em quem se dependurava o destino dos homens.
Agora eles falam sobre algo que não faz diferença alguma”... O
espírito conta pouco, em um mundo onde a matéria vale mais.

Entretanto, pode-se concluir este item, referindo mais uma vez


MONTEIRO (p.27): “Na vivência da espiritualidade dá-se a percepção
pelo eu consciente de algo como que provindo do mais profundo e
básico, um não-eu, que é anterior à sua própria personalidade”.

Mesmo que desvinculemos espiritualidade de qualquer sentido


religioso ou teológico, ainda assim, podemos afirmá-la como o amor
habitando a vida, como pensa SOLOMON (2003).

O tempo

E o tempo não é algo externo, que possa estar aí, em algum lugar, como
estão as coisas materiais. No livro XI de suas Confissões, AGOSTINHO
(1955) reflete que o habitat do tempo é a alma. A alma, e não os
corpos, é a verdadeira medida do tempo, é a verdadeira dimensão do
tempo. Passado e futuro e presente se põem, então, como memória,
espera e profunda atenção. Tempo e memória se juntam, pois, com
as surpresas do presente, sempre prestes a desvanecer, com a
lembrança de um passado que insiste em ir para frente e um futuro
que é intensa expectação, um tempo que inquietamente se espera.

130 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Mais adiante, quando abordarmos a questão da historicidade, no 7º
fundamento, estenderemos mais o tema da temporalidade.

O mundo que nos cerca

Mesmo como alguém de natureza espiritual, o homem não deixa


de se pôr obediente às articulações, tanto as mais simples, como
as mais dramáticas, de sua existência. No entanto, não se submete
passivamente a elas. Aceita o desafio de suas limitações básicas,
mas intencionalmente busca superá-las, transpô-las, ultrapassá-las.
Na verdade, enquanto alguém espiritual, o homem não se submete
fatidicamente às coisas e situações tais como são, mas volta-se
sempre e intensamente para as coisas e situações tais como devem
ser. A dimensão espiritual como que inaugura na experiência
existencial do homem o sentimento de sua inacababilidade, porém
direciona-o sempre à plenitude. Isso é bem traduzido na tradição
original cristã: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham
em abundância”. (João, 10,10). E é nesse sentido que a experiência
espiritual, como toda a experiência religiosa, promove a ousadia
de aproximar e até unir vida e morte. É paradigma cristão que “se
o grão de trigo não morrer sob a terra e apodrecer, não germinará
nem se tornará espiga”. (João, 12,24).

2º fundamento:

Espaço espiritual e relação


entre sagrado e profano

Não julgo, a essa altura, que seja possível falar de espaço espiritual e
suas possibilidades de transcendência sem mencionar a relação entre
sagrado e profano. Até porque tratar de espiritualidade toca a raiz

131 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


do sagrado. Sagrado como o solo do monte Horebe, onde Moisés,
ainda pastor de ovelhas, teve que descalçar as sandálias para pisá-lo
e poder receber a tremenda revelação do nome de Deus.

Acho oportuno voltar a me referir a ALVES (1981, p. 63), quando


ele propõe, antropologicamente, o sagrado como o centro do
mundo, como a garantia da harmonia: “o círculo do sagrado oposto
ao círculo do profano, no qual tudo só vale enquanto expressa
utilidade e vantagem material, em cuja esteira avança todo o tipo de
individualismo e desumanização”. E ficando, por extremo, “no estrito
ponto de vista utilitário, sob a exclusiva visão interesseira de eficiência,
acabaríamos por concluir que seria mais prático e econômico se
nós nos livrássemos de tudo o que viesse a prejudicar a eficácia da
sociedade”: se eliminássemos os defeituosos, fizéssemos desaparecer
os adversários, fuzilássemos os criminosos, acabássemos com os
velhos e doentes... Pronto! Aí está - escandalosamente - o círculo do
profano! Por outro lado, no círculo do sagrado, “tudo se transforma”.
O indivíduo não pode se julgar o deus absoluto das coisas, já que
neste espaço “são as coisas que o possuem”. A essência do sagrado
não é, pois, uma simples ideia, é força. Nem é o sagrado um “círculo
de saber, mas de poder”.

Numa entrevista a “O Globo” (2004), BOFF afirma que “o ser


humano não controla todos os fatores; nós estamos entregues ao
arbítrio, ao fortuito, somos uma realidade quântica, virtual, cheia de
possibilidades”, mas que não desentranham de dentro de nós. Se
o sagrado tange a esfera do mistério, este não é “um mistério que
mete medo, é um mistério que acolhe, marcado pela amorosidade”.
E é isso que o ser humano busca: ser acolhido. Suponho que por
trás de toda a perplexidade “está a dificuldade de a pessoa ser
acolhida como ela é”. A perplexidade é um grande tributo que se
paga, “um preço de humanidade a ser pago para a tecnologia e
para o mercado, que transforma tudo em mercadoria, até a arte, o
amor” e o próprio homem.

132 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


3º fundamento:

O corpo e as “coisas” do espírito

A questão da espiritualidade e do corpo acaba batendo nas indagações


mais originais do homem: o que é o homem? O que sou eu? De onde
venho? Para onde vou? É que quando todas as ciências do homem
dão por terminado o seu trabalho, mesmo sem nunca ter a plena
convicção de haver chegado ao final de suas buscas e pesquisas, são
estas questões tão simples quanto radicais que sobram. Diante do
convite à vida e da constatação da morte, após todas as referências
ao homem, objeto de estudo das ciências que o põem desnudo,
não obstante a precariedade de suas teorias, resta ainda aquela
pergunta que vem lá do fundo de nossa inquietação: e, então, o que
é o homem? O que sou eu? É neste espaço-momento que emerge a
antropologia filosófica, tratando do homem não como um ele, mas
como o sujeito de sua própria procura. Como proclama BUBER (1962,
p. 18)1, a integralidade do homem não poderá ser conhecida se ele
permanecer apenas um observador indiferente de si, do mundo das
coisas e das gentes. “(Ele) deverá entrar todo inteiro no ato do exame
de si mesmo, para poder tomar, intimamente, consciência de (sua)
integralidade humana. Deverá, pois, se expor a tudo o que puder
acontecer quando realmente se vive plenamente. Nesse caso, (ele)
não se conhece permanecendo na praia contemplando a espuma
das ondas. É preciso arriscar-se, lançar-se às águas e nadar com o
espírito desperto e com todas as forças”. Trata-se, sem dúvida, de
um procedimento de subjetividade. Mas uma subjetividade que se
distancia do subjetivismo relativista. É uma subjetividade que se define
como uma total abertura ao outro. Uma abertura ao humano em toda
a sua extensão. Muito igual àquela frase atribuída a Dostoievski: pinta
bem tua aldeia e terás pintado o mundo.

1
Tradução do autor.

133 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Daí, que nosso ofício de profissionais da saúde, de qualquer forma,
diz respeito a um encontro pessoal na curva declinante da vida de
alguém muito real, que tem nome e tem história. Trata-se de pormos-
nos a escutar, corpo diante de corpo, ouvidos colados à voz do
paciente, os segredos do espírito, os mistérios do espírito.

Por que não admitir que entramos, então, no espaço claro-escuro da


fé, que se apresenta com sua lógica toda própria, tão profundamente
simples quão extensamente complexa, nunca, por certo, redutível às
convenções do nosso costumeiro discurso científico?

Há, sim, uma dicotomia que inquieta até os teólogos: como refletir
sobre as ‘coisas’ do espírito, enquanto temos diante de nossos olhos
a realidade concreta de um corpo? Corpo solitário, extremamente
enfraquecido: a nudez dos ossos, a cor esmaecida, o olhar quase sem
nenhuma expressão... Uma súplica perdida no ar? De toda a forma,
corpo reduzido ao estado original de corpo.

Nesse momento, nosso ofício se assemelharia à singeleza do


questionamento do teólogo ALVES (1982, p. 9), por nós já citado,
quando sugeria ser a “teologia um jeito de falar sobre o corpo”.
Ou mesmo, ser ela um próprio “poema do corpo, o corpo orando,
o corpo dizendo as suas esperanças, falando sobre o seu medo de
morrer, sua ânsia de imortalidade, apontando para as utopias”.

O interessante é que, quando falamos das ‘coisas’ do espírito,


versamos, sim, sobre coisas invisíveis e eternas, mas que se tornam
patentemente visíveis e tangíveis nos corpos, na emoção dos
corações. Tudo que faz os rostos, já tão enrugados, chorarem e até
sorrirem, entristecerem-se e, vez por outra, exultarem, revoltarem-
se e tolerarem, experimentando inquietações e esperanças, muitas
dores e raros gozos, certezas e remorsos, angústias constantes e
eventuais consolações, resistências e entregas.

Nem sempre, porém, a dimensão espiritual, ou melhor, as ‘coisas’


do espírito são tidas pela moderna inteligência científica como
necessárias no trato com o corpo, sobretudo o corpo-que-sofre.

134 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Neste frio sentido, o corpo velho e doente, torna-se apenas objeto
de metódica investigação clínica. E as investidas da fé, as tentações
da fé, vão sendo, aos poucos, empurradas para fora deste admirável
mundo novo. As visões que daí se desviam, tidas como ingênuas e
inócuas, não passariam, sob o enfoque objetivo da razão eficiente, de
manifestação de uma postura piegas, não-crítica. Suas expressões
apenas mistificariam a limpidez da verdade, trairiam a certeza do
saber e prejudicariam a eficácia do tratamento. Ponho, pois, sem
nenhum pudor, como ponto de partida da espiritualidade, a radical
importância do corpo. É, sem dúvida, a partir do espaço sagrado
do corpo que a gente que crê nas ‘coisas’ do espírito. É a partir do
espaço sagrado do corpo, que a gente pode se acercar do doente
que trilha os passos finais de sua caminhada e articular com ele um
diálogo sem receita, mais silêncio que palavras, plena disponibilidade
para escuta, deixando vir à tona os questionamentos misteriosos da
fé, que brotam da fecundidade do sofrimento, das dúvidas, do medo,
das lembranças embaraçadas, da humana revolta e se voltam para o
desejo e a ansiosa expectação da luz. Luz que há de aparecer lá no
final do túnel escuro das atribulações.

Por todas essas razões, ouso chamar de sagrado o corpo. Sim, o


corpo é sagrado, porque se torna sinal de todas as alianças: a aliança
do homem consigo mesmo; do homem com o seu passado, sua
história; do homem com o ambiente que o cerca; do homem com
os outros; do homem com suas conquistas e frustrações; do homem
com seus desejos e sonhos; do homem com suas angústias e temores;
do homem crente com o seu Deus.

Exatamente porque é sagrado, o corpo jamais deve ser profanado


pela nudez, pelo frio, pela fome, pelo escárnio, pelo deboche, pela
violência, pela exploração ou o despudor sexual, pelo descaso, pelo
silêncio opressor, pela doença não tratada, pela dor não mitigada,
pela intolerância aos sinais da raça, pelo desrespeito para com os
gestos religiosos, pelo abandono familiar, pelo desamparo social,
na infância, na velhice, na decadência mental, na invalidez, na
proximidade da morte.

135 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A profanação do corpo - triste de quem o profana! - esta sim, é a
maior transgressão contra o espírito, o maior pecado contra o Espírito
(com letra maiúscula).

4º fundamento:

Espiritualidade e morte

A morte intimida. Realmente, não há como tecer uma visão romântica


e glamurosa da morte. As formas de espiritualidade conservam,
em geral, o significado da morte distante de um mero idealismo
metafísico. É, então, essencial ver a realidade da morte vinculada ao
ato de morrer, ao processo de morrer, com todas as implicações que
aí se inserem e daí decorrem. O ato de morrer é o mais individual
e pessoal da experiência humana. O homem morre em si e por si,
inquestionavelmente. O que intimida no processo gradual, mas
progressivo da morte é que ele se dirige para um fim irrevogável. Isto
independe da maneira como se entende a morte ou do sentido que
se dá a ela. O religioso, em geral, assume a morte como o início de
uma vida nova; o amanhecer de um dia eterno; o retorno à casa do
Pai. Já o estóico, por exemplo, aceita a morte mais ou menos como
o agnóstico ou o positivista, que, com honestidade, não negam os
fundamentais compromissos éticos do homem na observância dos
princípios e regras morais. Com resignação, eles veem na morte a
última fase de um ciclo natural que deve ser fechado, cumprindo-se,
assim, a trajetória da vida.

Todavia, mesmo que todos nós - ou religiosos, ou estoicos, ou


agnósticos, ou positivistas, ou outros quaisquer - saibamos que
somos mortais, que devemos morrer um dia; mesmo que todos nós
entendamos a vida como um ciclo natural que um dia se fecha, o ato
de morrer nos aflige a todos, intimida-nos, deixa-nos inseguros.

136 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Na verdade, em todos os tempos, a morte trouxe medo e angústia
ao homem. Hoje, é o próprio ato de morrer que intimida: temem-se
os tormentos da agonia. Teme-se a perda definitiva, sem retorno, de
toda uma história de vida; põe-se uma grande interrogação sobre
o desconhecido, o além-morte. Assim, pensar na morte, falar sobre
a morte, torna-se sempre difícil para homem, sobretudo para o
homem contemporâneo.

Há algum tempo, as pessoas morriam em casa, agonizavam em suas


próprias camas. A despedida da vida era, sobretudo, a despedida dos
seus parentes mais próximos. Era ali, sob o velho teto que os cobria,
que recebiam não apenas a atenção e o lenitivo do médico amigo,
mas o conforto espiritual. Isso não quer dizer que a morte deixava de
afligir, de intimidar, de trazer insegurança, mas que encontrava um
lugar afetivo no seio da vida.

Como quer que seja, o homem hodierno - falo genericamente - se


não pode propriamente recusar a morte, quer, ao menos afastá-
la de seu pensamento. O homem de hoje tem dificuldade de dar à
morte um sentido positivo. Não consegue estabelecer um suficiente
relacionamento verdadeiramente humano com a morte e com o que
lhe é vinculado: a doença, o sofrimento, a dor, a perda. E o que é pior,
esta resistência à morte, em geral, se faz também resistência ao doente,
àquele que sofre, àquele que está sozinho na curva final da vida.

De fato, tornou-se muito difícil falar com simplicidade e com


serenidade sobre a morte, sobre todo o processo que termina no
morrer. E, consequentemente, tornou-se muito difícil falar com aquele
que está caminhando rapidamente para a morte.

Por outro lado, diante do quadro da morte iminente, o cuidado


espiritual se desdobra na manifestação totalmente humana da fé,
na prática da caridade – o outro nome do amor – e na vivência da
esperança. Sem dúvida, que mais é o cuidado espiritual se não o
exercício da caridade e da esperança? É daí que há de surgir uma
renovada espécie de força. E que mais é a fé emanada do cuidado
espiritual se não uma expressão radical de humanidade, um dínamo

137 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


fornecedor de força? Assim, DÜRKHEIM (1989), pioneiro da sociologia
moderna, quando fala das formas elementares da vida religiosa,
observa que o crente, em estreita comunhão com o seu Deus, não
é alguém capaz somente de vislumbrar verdades novas que os
descrentes ignoram; ele se crê mais forte que outros. Ele sente mais
força dentro de si, tanto para suportar os sofrimentos da existência,
quanto para integrá-los significativamente em sua vida. E completo
com o teólogo ALVES (1981, p. 115): “o que faz a esperança é o fato
de que nela o amor se encontra amparado pelo poder. Aquele que
espera, aposta que, de alguma forma que nem ele entende bem, os
valores pelos quais vive e morre, no presente, viverão, ressuscitarão,
renascerão... Ergue-se, assim, a esperança, filha do poder e do amor”.

5º fundamento:

Refletindo sobre educação no contexto da morte

Na verdade, na visão de uma pedagogia fenomenológica, pode-se


considerar que o homem se educa para a morte, na medida em que
se educa para a inconsistência do mundo, para a fugacidade das
coisas. Em um processo gradual de estar-no-mundo, ele vai tomando
consciência de sua finitude. É a vida em todas as suas formas, com
todos os seus segredos, que provoca o conhecimento, que alimenta
todas as culturas e se faz objeto do processo educativo. Entretanto,
ao se aprender a viver, aprende-se naturalmente a morrer. Constatar,
então, a própria finitude é uma expressão do reconhecimento do
sentido da vida.

E, no dizer de CARMO (1975, p. 107), “se fica progressivamente


acentuado o caráter finito da existência humana, é para dimensioná-
la às possibilidades do homem, lançando sobre seus ombros a
responsabilidade total de sua existência. É sua própria finitude que
faz dele um ser em movimento; um ser a quem compete caminhar

138 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


para a Totalidade”. De acordo com JOLIF (1967), a existência pode,
então, ser definida como movimento constante de totalização.

Sob o enfoque da antropologia fenomenológica, portanto, educa-se


alguém, ou mesmo a si mesmo, especificamente para a vida, já que é
a vida que se faz verdadeiramente pro-jeto da educação. E sendo a
educação essencialmente pro-jeto, é como que um salto antecipado
na compreensão que cada um tem de si, do mundo, da história e da
própria morte.

Por sua vez, DONDEYNE (1970, p. 292)2, resume assim este tema:
“que a filosofia existencial se apresenta como filosofia da finitude quer
dizer que pretende salvar a todo o custo a historicidade do homem
e sublinhar o caráter não definitivo, ou, como se diz, interrogativo do
pensamento e da ação humana”.

Por outro lado, como ressaltamos acima, se o caráter finito da


existência do homem lança sobre seus ombros a responsabilidade
total de sua existência, abre-se, também, como fundamento mais
original de sua liberdade.

Sendo a educação pro-jeto, acrescentamos que é a partir da


finitude que ela torna real o movimento maior da transcendência
humana. Porque, seguindo uma colocação tão a gosto de Heidegger,
percebendo-se um ser-para-mais, o homem se percebe um ser-para-
a-morte. E não é o processo educativo exatamente esta caminhada
do homem, em termos de apreensão existencial e cognitiva, de si
mesmo, do mundo e da história, em um movimento sempre para-
mais, mesmo reconhecendo ter que topar com a morte?

De toda a forma, este é o sentido maior e mais nobre da educação,


entendida como um ir-se-fazendo plenamente vivo, através de um
estar-no-mundo, um estar-do-lado-das-gentes e das-coisas, um
estar-com. E, assim, ir sabendo os segredos da vida e de tudo mais

2
Tradução do autor.

139 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


que a rodeia, que a dignifica, ou mesmo, que a limita. Ir tomando
consciência da realidade do seu fim, a morte. Então, em um sentido
mais amplo, o homem, deste modo, vai aprendendo também a morrer,
como ensina a clássica filosofia grega.

6º fundamento:

Por uma morte digna

Morte é a raiz etimológica da Tanatologia, (‘thánatos’ = morte).


Apesar, porém do sufixo ‘lógos’, (discurso sobre, conhecimento de,
ou equivalente) a Tanatologia não se define como o estudo da morte,
ou mesmo a ciência da morte. Ensina a saudosa Professora WILMA
TORRES que Tanatologia é uma categoria impossível de ser definida
como se definem as ciências específicas. Diz ela, à guisa de um
conceito, que “Tanatologia é um nome compreensivo para designar
os esforços que vêm sendo realizados para investigar, sistematizar e
aplicar conhecimentos de vários campos, aos fenômenos relacionados
à morte e ao morrer” (PY, 2004, p. 41). Mais do que um conhecimento
científico da morte, a Tanatologia é uma ação que pressupõe um
exaustivo trabalho de busca. Ou, mais singelamente, um olhar aberto
e atento que, alcançando um largo horizonte, vislumbra lá no alto o
homem, peregrino da existência, que, tanto na vida quanto na morte,
reclama por sua original dignidade.

Portanto, não apenas na dimensão espiritual, mas na fundamental


dimensão ética, morrer com dignidade é um direito inalienável
da pessoa humana. Acompanhar e cuidar, com o máximo de
humanidade possível, do irmão que padece, principalmente do que
está na fronteira da vida, é obrigação ética e dever essencial de
qualquer pessoa. Trata-se de um compromisso de incondicional
respeito para com o doente, principalmente o doente terminal, em
sua caminhada final.

140 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


A própria Organização Mundial de Saúde, (OMS, 1978, p. 52)3, proclama
ser “consenso geral que o médico, por não poder deliberadamente
dispor, sob hipótese alguma, da vida de uma pessoa, tem o dever
de fazer o possível para assegurar ao seu paciente uma morte com
dignidade e sem dor, mesmo que as medidas adotadas para tanto,
possam indiretamente acelerar seu fim”.

Nesta linha, chamou-me muito a atenção um trecho de um editorial


da revista “Civiltà Cattolica” (1987)4, baluarte da ortodoxia católica,
sob o título de “Morte humana, morte cristã”, que aborda com
simplicidade e objetividade a questão da morte digna: “É um direito
morrer com dignidade. E este direito se coloca no sentido de que
devam ser evitadas todas aquelas situações que impedem uma
pessoa de morrer com serenidade, sem ser submetida a tratamentos
por demais dolorosos ou excessivamente humilhantes, que com a
finalidade de prolongar, por algum tempo, a vida, reduzem o corpo
a ‘coisa’, ou mais precisamente, a uma floresta de tubos e fios. O
doente tem o direito de morrer em um clima de serenidade e de
recolhimento, cercado das pessoas que o amam e não segregado
delas em nome de tratamentos excepcionais e desproporcionais, que
exigem seu absoluto isolamento”.

Acrescento outros posicionamentos do mundo cristão altamente


significativos:

De JOÃO PAULO II em O Evangelho da vida, 1995:

“Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado


‘excesso terapêutico’, ou seja, a certas intervenções
médicas já inadequadas à situação real do doente, porque

3
Tradução do autor.
4
Tradução do autor.

141 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


não são proporcionais aos resultados que se poderiam
esperar, ou ainda porque são demasiado pesadas para ele
e para sua família”.

De BENTO XVI, para o Dia Mundial do Doente, 2008:

“A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados


não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes,
a aceitação da condição humana diante da morte. É
necessário enfatizar a importância de mais centros de
cuidados paliativos que possam prover cuidado integral
e oferecer ao doente assistência humana e, quando
necessário, acompanhamento espiritual”.

Do ARCEBISPO DESMOND TUTU. World Hospice &


Palliative Care Day: a human rigth, 11 October 2008.

“Todos os anos, milhões de pessoas no mundo todo,


portadores de doença terminal, sentem dor e desespero
desnecessariamente, por desconhecerem ou por não
terem acesso aos cuidados de que necessitam. Cuidados
paliativos de boa qualidade, que buscam atender às
necessidades da pessoa como um todo, são a
resposta. Essa é uma questão que afeta literalmente
todos neste planeta - todos nós gostaríamos que a
nossa vida e a vida daqueles que amamos chegasse
ao fim com paz e conforto”.

142 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


7º fundamento:

Corpo e espírito, a pessoa em totalidade

Corpo e espírito se ligam estreitamente à noção de historicidade.


Voltando a ouvir CARMO (1975, p. 135), “não sendo o homem nem
pura matéria nem puro espírito, mas espírito encarnado, chamado a
fazer-se (a si próprio) com a ajuda do mundo da intersubjetividade,
podemos afirmar que sua historicidade resulta e é como que a síntese
destes três componentes essenciais: a encarnação, a temporalidade
e a intersubjetividade”.

A encarnação significa esta condição do homem de assumir em sua


carne a realidade que o cerca e o tempo no qual ele está inserido; e
não só, mas poder reconhecer tudo isso e reconhecer-se a si mesmo.
“Então, já aparece (aí) a transcendência que nos define como ser de
intenção, isto é, como um existente que supera toda a realidade fechada
sobre si mesma e se eleva a uma presença capaz de visar como tal toda
a realidade, inclusive a sua própria”, resume WAELHENS (1961, p. 71-72).

A temporalidade nos mostra que o homem vive no tempo e aí


desenvolve sua existência. E o viver no tempo denuncia que o
homem nunca se torna verdadeiramente pleno em sua vida. CARMO
ainda observa oportunamente: “o tempo humano é simultaneamente
presente, passado e futuro”. Completando com WAELHENS, “o
tempo não aparece senão no horizonte do ‘nunc’ (do ‘agora’)”. O que
é, então, o tempo, senão aquilo que nos mortifica, que nos faz passar
pela dolorosa experiência do morrer contínuo? É que a plenitude de
existência à qual aspiramos nos é negada permanentemente pelo
tempo, que nos dá nosso limite. Por isso nos debatemos e lutamos
contra ele, não em sua dimensão de calendário e de relógio. Lutamos,
isso sim, contra o tempo de que somos feitos.

A intersubjetividade é que introduz em nossa condição humana as ideias


de diálogo e de comunicação. O fundamento da intersubjetividade

143 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


é a necessidade que temos uns dos outros. A intersubjetividade não
é, pois, um predicativo a mais somado à nossa condição humana.
Somos intersubjetivos para sermos o que somos. Por mais que
a desumanidade e o egoísmo de nosso mundo nos distancie da
necessidade do outro, este entra essencial e irredutivelmente na
esfera do nosso próprio eu. “O outro não é somente aquele do qual
posso receber (alguma coisa), mas ainda aquele que espera algo de
mim, por quem posso trabalhar, ao qual posso me dedicar, a quem
posso ajudar a se elevar ao estatuto de pessoa, reconhecendo-o em
sua liberdade. Talvez, esteja aqui o aspecto mais importante de toda
a filosofia da pessoa e de sua da liberdade”. (CARMO, 1975, p. 135).

Esta trilogia, encarnação, temporalidade, intersubjetividade, tem


os termos intimamente ligados entre si. Há uma implicação mútua
entre estas categorias que faz com que ao se falar de uma, remeta-
se inevitavelmente às outras. É esta composição que avizinha a visão
da historicidade humana à da finitude humana, como fundamento e
origem de toda a dimensão existencial e fenomenológica da filosofia
e de toda a forma de assistência à saúde, principalmente aos velhos
e mais necessitados.

Neste sentido, julgo muito oportuno afirmar que a ênfase que dei ao
corpo como espaço expressivo do espírito não deve, nem de longe,
nos levar a uma visão fragmentada do ser humano. Mesmo realçando
a primazia visível do corpo, sempre que me refiro ao doente, ao
paciente à beira da morte, quero, obviamente, expressar o homem
inteiro. Sem dúvida, é o homem todo, espírito e corpo, que nasce,
cresce, trabalha, produz, conquista, se frustra, erra, se recupera,
envelhece, decai e morre.

Tratar, pois, do corpo é tratar do homem em sua totalidade. Sendo


também o corpo uma totalidade. Tal consideração é, do mesmo
modo, substancialmente importante. Não há simplesmente um
coração doente, um pulmão deficiente, um rim prejudicado, um olho
enevoado, uma cabeça dementada. Há um homem todo, espírito
e corpo, que sofre, sente dor, padece intoxicações, não consegue
enxergar, não se lembra das coisas e as confunde, agoniza e morre.

144 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


E o corpo inteiro é onde tudo isso se reflete, tudo isso se expressa,
tudo isso é manifestado.

E, se quisermos ver na espiritualidade uma opção religiosa,


poderíamos afirmar que o Deus dos religiosos, em suma, é o Deus
do corpo reerguido, revitalizado, vivificado para além da morte. Não
o Deus da morte, mas o Deus da vida, da vida em abundância, para a
qual Ele criou todos os homens.

“O amor me habita com uma verdade tão intensa que a própria morte
não saberia, não poderia anular...”, registra ANDRÉ CHOURAQUI, (1994,
p. 13-14)5, em sua autobiografia. “Se eu tivesse que compor o meu
epitáfio, ele não teria mais do que três palavras: MORTO DE ALEGRIA!”

Concluindo

Finalizo dizendo que não existe nenhum motivo a priori para


privilegiar o homem como espírito ou como corpo; nem privilegiá-
lo em relação ao espaço ou em relação às esferas de tempo. Não
há razão para privilegiar o homem-que-foi ou o homem-que-será,
em relação ao homem-que-é, em relação à humanidade presente.
Nem se há de privilegiar, pois, o fim da vida individual em relação ao
presente que vivemos.

Como a vida, a morte também se insere na totalidade humana. E


quando falamos da existência do homem, falamos dela como uma
possibilidade superior, englobando a vida e a morte. Vislumbrando a
lembrança do homem com todo o seu horizonte, como que em uma
saudade antecipada. Caminhando para o que ainda-não-é, como se

5
Tradução do autor.

145 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


já-fosse, ou como devesse-ser. Quero encerrar este pequeno capítulo,
mais reflexão que ensaio, com um significativo trecho do “Apocalipse”
(João, Apoc. 21, 1-4): “Então, ouvi uma grande voz dizendo: eis a
tenda de Deus com os homens; Deus habitará com eles. Eles serão o
povo de Deus e o próprio Deus estará com eles. E lhes enxugará dos
olhos toda a lágrima, e a morte já não existirá; já não haverá luto, nem
pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram”.

Este é o nosso descortino, sabendo que o que encontramos em nossa


ampla área de visão não é jamais a realidade total que almejamos,
nem, porém, negativamente, é o fim desolador de tudo.

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147 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


José Francisco Pinto
de Almeida Oliveira
Licenciado em Letras – UERJ, Mestre em Filosofia –
Pontificia Università Gregoriana – Itália, Orientador
de Aprendizagem do Curso de Aperfeiçoamento em
Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idosa e do Curso
de Especialização em Gestão em Saúde da Pessoa
Idosa – EAD-FIOCRUZ/Ministério da Saúde. Membro da
Comissão Permanente de Cuidados Paliativos - SBGG,
Supervisor Acadêmico-Pedagógico SBGG-RJ 2014-2016,
Consultor em Gerontologia SBGG-RJ 2016-2018.

148 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


DIA DO FILÓSOFO –

Reflexões filosóficas no âmbito


do envelhecimento humano

José Francisco P. Oliveira

1ª edição

Rio de Janeiro/RJ SBGG-RJ 2017

A filosofia é, antes de tudo, vivência. Uma vivência que se inicia


pela admiração, pela contemplação da realidade da vida. É aquela
perplexidade diante da vida que nos toma, para o bem ou para o mal,
para a satisfação ou para a angústia, no decorrer de nossa trajetória.
Nós vivemos no tempo e é no tempo que, caminhando, constituímos
nosso ciclo vital. É no tempo que nós experimentamos a intrincada
relação com o nosso presente, o nosso passado, o nosso futuro. É
no tempo que nos confrontamos com nossos problemas mais fundos;
o que faz de cada um de nós permanentes e sempre insatisfeitos
indagadores, permanentes questionadores, continuamente à procura
do sentido da vida; do sentido de nós mesmos, do sentido do próprio
tempo que simultaneamente nos constrói e nos consome, do sentido
da sabedoria – sem nem mesmo sabermos direito o que ela representa
para o nosso equilíbrio. Completando com WAELHENS (1961, p. 71-72),
“o tempo não aparece senão no horizonte do ‘nunc’ (do ‘agora’)”. O que
é, então, o tempo, senão aquilo que nos mortifica, que nos faz passar

Texto elaborado em comemoração ao Dia do Filósofo - 16 de agosto. Prefixo Editorial:


92908. Número ISBN: 978-85-92908-03-4. Publicação digitalizada

149 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


pela dolorosa experiência do morrer contínuo? É que a plenitude de
existência à qual aspiramos nos é negada permanentemente pelo
tempo, que nos dá nosso limite. Por isso nos debatemos e lutamos
contra ele, não em sua dimensão de calendário e de relógio. Debatemo-
nos, isso sim, com o tempo de que somos feitos.

Verdadeiramente, é isso que faz de cada um de nós, em sentido


amplo, um filósofo. Um filósofo caminhante, que quando pequenino
compreende o mundo e age no tempo como uma criança pequena;
que quando grande compreende o mundo e age no tempo como
gente grande.

De modo geral, os filósofos não tratam especificamente do


envelhecimento humano. Mas suas reflexões estão cheias de
considerações que se aplicam ao declinar do homem; até porque,
sempre que abordam o homem, abordam-no como um ser-inserido-
no-tempo, que se constrói ou mesmo se des-contrói no tempo. Fica
bem lembrarmos o denso livro do existencialista Gabriel MARCEL
(1944), Homo viator, Homem peregrino, ou, numa linguagem mais
nua, homem andarilho. Isso mesmo! E é nessa caminhada, nessa
peregrinação através das estradas do tempo que cada um de nós,
concretamente amadurece e envelhece como homo viator. Sim, é
assim que se dá, ao menos nessa perspectiva, o nosso envelhecimento.

Antes das enciclopédias, havia os deuses. E os deuses de nossos


mais remotos ancestrais não envelheciam. Já os homens, mortais,
estes sim, nascem, crescem, envelhecem e morrem. E as perguntas,
as questões, que se podem e devem colocar a respeito deles habitam
numa espécie de terra de ninguém, a filosofia, exposta a ataques de
todos os lados.

Na medida em que mais envelhecemos mais constatamos que


caminhamos em um mar de incertezas. Incertezas que se põem entre
esperanças vivas e receios provocadores. “Ensinar a viver sem certeza
e sem ser paralisado pela hesitação é talvez o mais importante dom
da filosofia a quem a estuda”. (O.cit., p.14). É que a filosofia, em todos
os tempos, sempre foi a grande problematizadora do espírito humano.

150 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


Quando lemos Homero, vemos que os deuses estavam carregados
dos defeitos e das qualidades humanas. Só se distinguiam dos homens
pela imortalidade e pelo poder. Mas já nasciam adultos ou prontos
em sua essência. Os deuses homéricos também não envelheciam. Os
“verdadeiros” deuses homéricos proclamavam ter criado o mundo,
enquanto os deuses olímpicos, não. Estes apenas “apareceram”
para conquistar o mundo. Comportavam-se como “piratas” divinos:
usurpavam os mortais, seduziam suas mulheres, metiam-se em pelejas,
divertiam-se com jogos e músicas; bebiam muito e intimidavam os
homens frágeis com fortes e ecoantes gargalhadas, quando estes
os visitavam. Nunca tinham medo, porque não eram ameaçados pela
morte. Nunca mentiam, exceto nas coisas do amor e da guerra. Sim, os
deuses homéricos também não envelheciam. Permaneciam no estado
em que foram criados e, assim, transcendiam a cronologia do tempo.
Não passavam. Não acrescentavam anos à trajetória de sua vida
divina. Conheciam o tempo por referência aos mortais. Mantinham-se
submersos em um fluxo presente contínuo e o futuro se constituía na
vivência de suspeitas e intrigas entre si e com os mortais.

O homem civilizado, entretanto, se assemelhava ao que consideramos


o ideal do idoso de nossos dias. Distinguia-se do bárbaro pela
prudência, ou usando um termo mais amplo, pela previdência. Nesse
caso, inserimos a questão da temporalidade: aceitar as dificuldades
presentes por causa das compensações futuras; ou melhor, ter
aceitado as agruras do passado em nome da tranquilidade presente.

Sócrates foi uma referência na história do pensamento do Ocidente.


Tanto que os historiadores dividem as escolas gregas em antes e
depois do período socrático. Sócrates nasceu em 469 a.C, filho de um
escultor e uma parteira. Não foi homem de Academia. Frequentou a
rua e as praças (ágoras), discutiu mais do que ensinou; questionou
mais do que respondeu. Incomodou Atenas e fustigou as tradições
com seu espírito insatisfeito e perspicaz. Não deixou nada escrito
e tudo o que sabemos dele nos veio de Xenofonte e Platão, que o
conheceu aos 20 anos e dele sempre se lembrou. Seus inimigos eram
tantos quantos os admiradores que suscitou. Estava convencido de
que tinha uma missão: a busca da verdade. Verdade que devia ser

151 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


extraída lá de dentro do homem, como fazia Fenareta, a parteira sua
mãe, ao fazer vir ao mundo as crianças. Daí sua maiêutica poder ser
comparada com tanta propriedade a um processo de parto das ideias.

Assim era Sócrates, o filósofo que dividiu em duas partes a história


da filosofia grega, o filósofo que não tinha medo nem vergonha
de atestar a própria ignorância, o filósofo que mais indagava que
respondia; o filósofo sobre o qual o oráculo predissera ser o mais
sábio dos homens da Grécia, o filósofo que mais do que pregar a
Filosofia, viveu-a radicalmente e por ela foi condenado à morte;
e por ela morreu. Morreu com a alma sempre rejuvenescida, com
mais de 70 anos de idade. Acusado de corromper a juventude, foi
executado por envenenamento. A juventude que trazia dentro de
si era atemporal, simultaneamente serena e rebelde. Acreditava na
imortalidade da alma, que, por ser de natureza espiritual, sem as
vicissitudes da matéria, não envelhecia. Na verdade, Sócrates não
envelheceu da velhice da alma, nem morreu de doença do corpo. Foi
descrito como um homem feio, com o nariz achatado, mas, mesmo
assim, vivia cercado de discípulos, a maioria deles, jovens, que não o
abandonaram nem na proximidade da morte. Seduzia pelas ideias e
com elas esculpiu sua memória. Fez do aforismo inscrito no oráculo
de Delfos o princípio maior de sua filosofia: homem, conhece-te a
ti mesmo! Trata-se de um dos mais provocadores convites já feitos
na história do Ocidente. Um convite que transcende as idades. Um
convite a um mergulho dentro de si. Sempre há tempo, além das
idades, para este mergulho, para reentrar lá no fundo da alma onde
moram ou se escondem nossos mais íntimos segredos. Se, entretanto,
sempre há um tempo para essa submersão, o envelhecimento, de
modo muito especial, é o tempo forte para ela. É que atrás de nós há
toda uma vida que nos lançou para fora de nós mesmos e levou-nos
a perder um pouco nossos mais íntimos pontos de referência.

Agora é legítimo nos perguntarmos: que relação existe entre a


reflexão de nós para conosco e a solidão humana? Estamos certos
de que há, sim, alguma relação com esta solidão: “uma solidão que
mora conosco, como companheira de todos os momentos”. (CARMO,
1975, p.33), que desempenha, sem dúvida, um papel decisivo

152 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em nosso envelhecimento, não como ponto de chegada, ou um
estado morbidamente permanente, mas como força questionadora,
mola propulsora de nossa esperança. É isso que nos faz superar
a decadência de nossos tropeços históricos. É nessa dimensão
de solidão que podemos ouvir nossa voz interior. Platão, em seus
Diálogos, e Xenofonte em seus Ditos Memoráveis, falam de um certo
‘demônio’ interior, ‘daimon’, o demônio socrático, não como uma
entidade maligna, mas como uma voz que ressoa lá no fundo da
gente, que sinaliza e alerta, provoca e orienta, sendo, ao mesmo
tempo, graça e provocação. Pois bem, ir envelhecendo é se conciliar
com nosso(s) demônio(s) interior(es) e mostrar que nós não nos
aquietamos e sossegamos na realidade-cômoda-do-que-é, mas nos
voltamos ansiosamente para a realidade-que-deve-ser.

Muito se fala de Platão e sua famosa alegoria da caverna; uma caverna


onde se alocam estranhos prisioneiros que só veem a si mesmos e
as coisas como sombras projetadas nas paredes, produzidas pela luz
do sol ‘inteligível’, a única e grande ideia verdadeira, a própria ideia
de Deus. O prisioneiro libertado das cadeias, que consegue ver a luz,
é o filósofo, que, da contemplação das coisas sensíveis, sombras das
ideias (verdadeiras) se eleva a esta visão da luz (...). Segundo ele, é
aí que começa a missão libertadora do filósofo. Neste contexto, é
importante ressaltar que a visão que ele tem da relação da alma com
o corpo é a de que este é uma prisão que o homem arrasta pela vida
afora como o caracol arrasta a concha que o envolve.

De qualquer modo, por mais que se apregoe o idealismo platônico e


até se ridicularize sua exaltação pelo ‘mundo das ideias’, sua filosofia
não se reduz a uma espécie de arrebatamento despropositado,
como se conta a respeito de Tales que, estudando uma vez os astros
e olhando para o alto, caiu em um poço. Uma pequena criada da
Trácia, zombeteira e engraçada, riu dele, dizendo que, por desejar ver
o que há no Céu, não distinguia o que se achava próximo e bem de
baixo de seus pés.

Sob uma filosofia ou teologia profundamente antropológicas, Aurélio


Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) se nos apresenta, ineditamente,

153 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


na primeira pessoa do discurso narrativo, como um homem solitário,
angustiado. Põe-se como pensador do fim de um império, o poderoso
e grandioso Império Romano, que ele assiste caducar. É sob este
prisma que eu o aproximo do envelhecimento; envelhecimento
como vivência real. Seu coração esteve sempre inquieto, insatisfeito,
tanto a olhar para trás como a olhar para frente. E era este para-
frente, o descanso final no Infinito, que impulsionava sua trajetória.
Pouco se interessou pelas ciências naturais ou cosmológicas em
si mesmas, “seu centro de interesse e seu itinerário são outros (...)
Seu movimento espiritual era de fora para dentro e daí para cima”.
(CARMO, o.cit.,p.41), Não morreu novo para a sua época: tinha
76 anos. A questão radical da insatisfação humana, manifestada
pela aspiração infinita ao Absoluto confrontada com a também
radical e misteriosa incapacidade de o conseguir, além do espírito
permanentemente questionador, admitindo a dúvida como ponto de
partida para toda descoberta, não deixaram que sua mente e seu
coração envelhecessem.

No século XIX, assistíamos uma grande transformação das condições


de vida e de pensamento que iriam, por certo acarretar uma formidável
mudança nos princípios orientadores da existência humana.

A verdade é que o final do século XIX e o desabrochar do XX nos


mostram uma outra visão da História; mostram-nos o robustecimento
das Ciências Humanas; o surgimento de uma nova visão da Sociologia,
da Psicologia, mais profundamente, com o surgimento da Psicanálise.
Mostram-nos a ousadia de um Nietzsche, de um Dostoievski. E neste
caudal vem um homem surpreendível, muito mais complexo do que
poderíamos pensar. Vêm os estudos sobre civilizações e sociedades
fundadas em uma estrutura mental e em um sistema de valores
irredutíveis aos nossos, até então inabaláveis valores, forçando a
admissão de uma pluralidade de éticas. Vem a evidência de forças
consideradas ‘más’, desencadeadas do fundo de cada um, como
a vontade de poder, a agressividade, a realidade de um ‘homem
subterrâneo’ para aquém das aparências, aquele homem que se
desembaraça propositalmente da razão, para se ver realmente livre
e poder dizer a sua palavra. Vem um homem dominado por forças

154 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


consideradas imorais, acima de tudo a sexualidade, que se reprimidas
acabam por aparecer sob formas mais perniciosas do que em seu
estado original. E no fim disso tudo, uma questão que balança a
própria soberania da verdade: será que nossa consciência nos fornece
sempre a verdade verdadeira ou uma coloração externa e enganadora
da verdade? “O inconsciente parece assim mais vasto do que a
consciência; e esta já não pode aspirar a ser a medida da realidade”.
(O.cit., p.592). Sendo assim, as nossas ações já não seriam mais objetos
de julgamento, mas apenas de previsão e de descrição. O mesmo
Picon observa que as estruturas e valores tradicionais encontraram
no final do século XIX e início do XX uma espécie de inimigos cuja
força não deixará de aumentar: a análise marxista denunciando essas
estruturas e valores como mistificações interesseiras ou interesses
capitalistas camuflados; Nietzsche descobrindo a vontade de poder
na própria santidade; Freud revelando a sexualidade subjacente à
ação do artista ou mesmo ao simples afeto familiar.

E nós ficamos a nos perguntar quais as consequências deste vendaval


que assolou a história do pensamento. Sem dúvida, um intenso
sentimento de libertação. Poder-se-ia dizer que o homem pode enfim
aceitar-se, exaltar-se por aquela dimensão de si que o humanismo
greco-latino, a moral cristã e o racionalismo tinham desvalorizado
tanto: a vontade de poder, o orgulho criador, as forças como que
irracionais da alma, ou mais simplesmente, o instinto natural da vida
e da felicidade.

Creio que estas reflexões sobre a contemporaneidade mostram-nos


a herança que recebemos e que, tanto nos sustenta, como torna
complexo nosso caminhar cotidiano. É sobre este chão, ou nesta
atmosfera, que nos impulsionamos. É o clima no qual nascemos,
crescemos, amadurecemos e envelhecemos. É por aí que, quase
imperceptivelmente, o nosso pensamento se constrói, se desconstrói
e se reconstrói.

Vimos de forma sintética o percurso do pensamento filosófico e a


filosofia deste percurso, que é também o percurso do homem através
da História. Procuramos ver o homem em totalidade e não apenas

155 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


em seu movimento de declínio, a velhice. Neste sentido, vimos a
existência que o consolida e o faz pessoa; a realidade que o cerca, o
tempo que o condiciona, o conhecimento que o ilumina, a vontade
que o anima e o amor que o impulsiona, integra e plenifica. Vimos,
pois, o homem em seu ‘ânimo’ e em sua ‘anima’. Alertamos que a
velhice não deve instituir uma espécie de homem diferente, mas
apenas nomear a fase maior de seu amadurecimento. Se a sociedade
o rejeita em sua velhice, a filosofia, ao pensá-lo sem distinção alguma
de idade, resgata-o e dignifica. Nós, como seres-morais havemos
de nos aproximar deste homem maduro e com ele dialogar, através
dos fundamentos éticos da solidariedade, da cumplicidade, da
compaixão, da libertação, como insiste Boff (2009). Na verdade, aí se
encontra a missão profética da filosofia: ser voz e emprestar esta voz
a quem já não a tem ou a tem debilitada: denunciar decadências e
anunciar reinvenções. E como “philos”, amigo, firmar o compromisso
com a amizade. A amizade com a “sophia”, sabedoria, fazendo do
mister filosófico uma atividade não só da razão, “logos”, mas da
paixão, “pathos”. E deste modo, se conciliar com a historinha-poema
narrada na via de Chuang Tzu: “Havia três amigos discutindo sobre a
vida. Disse um deles: poderão os homens viver juntos e nada saber
da vida? Trabalhar juntos e nada produzir? Podem voar pelo espaço
e se esquecer de que existe o mundo sem fim? Os três amigos
entreolharam-se e começaram a rir. Não sabiam o que responder.
Assim, ficaram ainda mais amigos do que antes”. (Merton, 1977, p.73).

A filosofia é este singelo estatuto da amizade integradora. E os


filósofos – nós aí incluídos – vivendo na amizade da sabedoria.

Encerrando estas reflexões retorno a Platão, que deixou como


herança sua Academia, guardiã de suas ideias revolucionárias para
sua época. E com elas, uma lição que, também, nem sempre foi bem
compreendida. É que “seu ‘mundo ideal” encerra uma doutrina das
mais deformadas e caluniadas. E, no entanto, é dela que a filosofia
tira toda a sua força, aquela força de transformação que sempre a
fez suspeita aos poderosos deste mundo que, se não a proscrevem, o
máximo que fazem é tolerá-la. Pois destacando a distância entre (seu)
homem ideal e o homem com o qual estamos constantemente em

156 O Sopro do Espírito e O Tempo do Homem


contato, seja em nós mesmos seja nos outros, ela nos coloca de uma
só vez frente a um imperativo ético, o imperativo mais incondicionado
que existe: o de caminhar em direção a esse homem que não somos,
mas que podemos e devemos ser”. (O.cit., p.23). Verdadeiramente, é
a compreensão e vivência de tudo isso que faz de cada um de nós,
em largo sentido, um filósofo.

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