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“AINDA ESTOU AQUI”

Miró da Muribeca; Voz e Movimento II

Durante a peça o público ficará espalhado entre o espaço, fugindo do padrão de palco
italiano. No fundo, uma entrevista feita com Miró ressoa, enquanto os atores
recepcionam o público e os posicionam nos assentos disponíveis. Após isso, os atores se
espalham pelo palco e proscênio e cantam Minha voz não silencia porque poeta não
cala - Antonio Nóbrega.

CORO: Nem na faca, nem no grito


Nem no tapa, nem na bala
Nem na forca, nem na força
Nem na dor, que a bomba estala
Minha voz não silencia
Porque poeta não cala

Nem no açoite, nem no tiro


Nem na lança, que empala
Na angústia, na tortura
Nem na morte, que avassala
Minha voz não silencia
Porque poeta não cala

Nem no fogo afogado


Nem no óleo que empala
Nem no berro, nem no ferro
Nem na cela, sem a fala
Minha voz não silencia
Porque poeta não cala

Nem na tranca, nem no tranco


Nem no tronco, da senzala
Nem na trama
Nem no golpe da mentira que entala
Minha voz não silencia
Porque poeta não cala

Ator 1: Um vento quente que vira furacão para sacudir o coração dos distraídos sopra do
Recife. Atravessa fronteiras, inebria estudantes, acadêmicos, boêmios, trabalhadores que
olham a cidade pelas janelas de ônibus abarrotados. A uma só vez personagens e plateia,
eles ecoam em pensamento, voz e ação a poesia de Miró da Muribeca (1960-2022), que
ganha biografia com lançamento previsto para a obra do artista, primeiro semestre de
2023.

Ator 2: Nascido João Flávio Cordeiro da Silva, e que se encantou - para usar a fina
expressão de sua terra - há pouco mais de um mês, são de Miró frases que se tornaram
aforismos, como "merece um tiro quem inventou a bala", e poemas que dissecam as
entranhas brasileiras encharcadas de violência sem desistir da defesa de que, "apesar
dos efeitos colaterais, o amor ainda é o melhor remédio".
Ator 3: Seu legado, vida, memórias estão no centro da biografia que será publicada pela
Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e que está sendo escrita por Wellington
Melo. O trabalho trará "detalhes sobre a formação de um poeta que viveu desde 1985
exclusivamente da poesia e um relato também das suas contradições e das dificuldades
de um poeta periférico, negro, que passou por preconceitos de diversos tipos",
Conta à Folha Melo, escritor, editor, amigo e curador da obra do artista.

Ator 4: Em uma entrevista à Folha de Pernambuco no ano passado, Miró comentou com
entusiasmo que gostaria que sua biografia se chamasse "Ainda estou aqui".
Enquanto houver dor e injustiça mas também beleza, irreverência e indignação para
desvesti-las à clara luz do dia (e na solidão da noite) o poeta estará mais presente do que
nunca

CORO: A poesia é uma arnegunição


Um antídoto forte, um sentimento
Libertai-me liberto como o vento
Que na paz se encerra e principia
A poesia esconde armamento
Contra o ódio que cega e silencia

Uma campainha toca e rapidamente um ônibus é formado pelos corpos dos atores que
reproduzem o som que ressoa seus motores.. Paulo entra com sua mochila e encontra
um espaço na janela.

Paulo: " Janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar
Ainda mais quando a viagem é longa
Uma casinha branca lá no alto da montanha
E eu perguntando: 'quem morava lá?'
Um homem na BR olhando pro nada
Uma mulher com um saco de capim na cabeça
E o sol estralando nas suas costas
E os políticos dando as costas
É, janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar
Ainda mais quando a viagem é longa"

Após a cena, Paulo pede parada, desce do ônibus que logo se desfaz.

Camomila começa a descer da cabine de som com suas bagagens. Um cesto que
parece pesado. Dentro do cesto também se encontram papéis vazios.

Ao chegar no palco começa-se um jogo de corda bamba, enquanto diz o texto.

CAMOMILA:: " ... e ainda nos chamam de vagabundos.


4 séculos de seca
4 séculos de orações pra são josé
4 séculos de promessas e cestas básicas
1 tonelada de nada.
o país todo comovido, a televisão derrama lagrimas
e a água??
e a sede de outras coisas??
4 séculos de solidão
e os pés rachados de tanto tentar a vida em São Paulo
quero deixar claro
que o problema do Nordeste não é a falta d'água
é a falta de vergonha na cara"

As coisas trazidas por Camomila ficam espalhadas no mesmo espaço em que finaliza
seu texto. Após a cena, se junta a Elza para ajudá-la a montar o varal .

Começa a tocar Domingo à tarde - Nelson Ned. Enquanto a música toca, Elza começa a
recolher as coisas e colocar o varal. Após isso,começa a dizer a poesia

ELZA: "As pessoas estão passando por mais uma segunda feira
Eu sentado no banco da praça ainda sou domingo"

A música aumenta, Elza termina de estender as folhas em branco no varal. Começa a


dançar, e convida os atores para uma abraço/dança coletiva. Alguém da plateia
também é solicitado para se juntar. O abraço é interrompido pela cena de Ingrid que
abre a porta com violência e passa correndo

INGRID: “Quem fala demais não tira. E tem gente doido, pra dar um tiro na cara na
segunda-feira."

Novamente a campainha toca, e o ônibus é novamente formado pelos corpos dos


atores, que continuam a reproduzir sons. Olga começa a subir no ônibus, passa a
catraca e tenta chegar ao fundo daquele ônibus lotado.

OLGA: “Por trás de um ônibus lotado" fala, como se estivesse prestes a enfrentar um
suplício. Olha e parece avistar um lugar. Anda pelo meio das pessoas, se esquivando,
pedindo licença.

OLGA: “...e uma cadeira vazia...”

Quando Olga chega nesse espaço livre ver algo e as pessoas do ônibus vomitam. Olga
reage a esse vômito.

OLGA: “...há sempre um grande vômito!”

Após a cena o ônibus se desfaz. Os atores permanecem no palco e Alice começa sua
cena. Ela desce do palco e começa a subir as cadeiras enquanto diz o texto

ALICE: "não sei porque cargas d'água dias de chuva me agradam "

Chama os atores do palco para entrar no jogo dessa subida

ALICE: "os fins de tardes são mais simpáticos as manhãs de sol servem pra provar
que ainda existo.
depois de noites lúdicas de amor
os revólveres só disparam
se alguém puxar o gatilho

os presídios estão cheio de dedos


mas há uma esperança que uma chuva fina
abra um guarda chuva
no coração dos homens"

Os atores permanecem espalhados pela plateia. Começa a cena do bêbado saindo da


plateia. Cas começa a vim andando se apoiando pelas escadas enquanto tocar a
música Naquela Mesa - Otto . O bêbado fala o poema tentando ultrapassar e lidar com
a música alta. Ao chegar no palco se sentar. A música abaixa e ele consegue falar o
poema.

CAS: "Recife
Cidade das pontes
E das fontes
de miséria
Poetas mendigando passes
Pra voltar pra casa
E sua poesia
Passando despercebida
Aliás
Nem passa"

A cena ocorre no palco. Uma cadeira é arrastada até o proscênio e posicionada com as
costas para o público. A atriz senta de forma despojada, montada na cadeira.
- “Outro dia

num tempo quase distante digamos não sei bem quantos anos lembro como se fosse
ontem sapato conga azul [...]”
(Começa a levantar aos poucos, excitadamente lembrando de cada detalhe daquela
mulher. )
- “Olhos castanhos de Fátima fruta-pão
Roberto Carlos
o primeiro beijo (Exalta-se) e minha mãe dizendo:”
(Levanta um dos braços com mão levantada pra cima, como a de uma mãe que ameaça
distribuir tabefes)
- "Passa pra dentro, João Flávio!".
(Ainda com a mão lá em cima, o rosto volta aos pouco a encarar a plateia enquanto
cantarola “Cama e Mesa” de Roberto Carlos)
- “Eu quero ser sua canção, eu quero ser seu tom Me esfregar na sua boca, ser o seu
batom
O sabonete que te alisa embaixo do chuveiro
A toalha que desliza no seu corpo inteiro”

A música passa a tocar no fundo e aos poucos os outros atores começam a cantar
juntos, exatamente nos lugares que estão. O som vai ficando cada vez mais alto.
“Eu quero ser seu travesseiro e ter a noite inteira Pra te beijar durante o tempo que você
dormir
Eu quero ser o sol que entra no seu quarto adentro Te acordar devagarinho, te fazer
sorrir”
Quero estar na maciez do toque dos seus dedos E entrar na intimidade desses seus
segredos Quero ser a coisa boa liberada ou proibida

Tudo em sua vida


Eu quero que você me dê o que você quiser
Quero te dar tudo que um homem dá pra uma mulher E além de todo esse carinho que
você me faz
Fico imaginando coisas quero sempre mais
Você é o doce que eu mais gosto, meu café completo A bebida preferida e o prato
predileto
Eu como e bebo do melhore e não tenho hora certa De manhã, de tarde, é noite, não
faço dieta
E esse amor que alimenta minha fantasia
É meu sonho, minha festa, é minha alegria
A comida mais gostosa, o perfume e a bebida Tudo em minha vida
Todo homem que sabe o que quer
Sabe dar e querer da mulher
O melhor e fazer desse amor
O que come, o que bebe, o que dá e recebe
Mas o homem que sabe o que quer E se apaixona por uma mulher
Ele faz desse amor sua vida
A comida, a bebida, na justa medida
O homem que sabe o que quer
Sabe dar e querer da mulher
O melhor e fazer desse amor
O que come, o que bebe, o que dá e recebe
Mas o homem que sabe o que quer
Sabe dar e querer da mulher [...] (O som come’ça a baixar até tudo ficar silencioso)

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